Você está na página 1de 1

mais Criar um blog Login

Contos que valem a pena


Cada semana um novo grande conto

Início Os Contos Meus trabalhos

Arquivo do blog terça-feira, 2 de agosto de 2016 Quem sou eu

► 2017 (2)
097 – A Vida Secreta de Walter Mitty – J Thurber
▼ 2016 (20)
► Outubro (1)
► Setembro (1) James Thurber (1894-1961), contista e cartunista norte americano,
▼ Agosto (1) nascido em Ohio foi editor do The New Yorker. Este conto, publicado Marcelo
Antinori
097 – A Vida
Secreta de
em 1939 é reconhecido como um dos melhores contos escritos nos Ver meu perfil
Walter Mitty Estados Unidos e foi adaptado para o cinema em 1947 com Dany completo
– J Thurber
Kaye e em 2013 com Ben Stiller
► Julho (2)
► Junho (2)
► Maio (2) A vida secreta de Walter Mitty
► Abril (1)
► Março (2)
James Thurber
► Fevereiro (4)
► Janeiro (4)
– Vamos atravessar! – a voz do Comandante era como o quebrar
► 2015 (52)
de uma fina camada de gelo. Estava de uniforme de gala e tinha o
► 2014 (28)
boné branco, cheio de galões, caído displicentemente sobre um dos
olhos frios e cinzentos.

– Não vamos conseguir, Senhor Comandante. Vem aí um


furacão, se quer saber a minha opinião.

– Não quero saber a sua opinião, Tenente Berg – disse o


Comandante – Potência máxima! Aumentem a velocidade de rotação
até os 8.500! Vamos atravessar!

Intensificou-se o bater dos cilindros: tá-poquetá-poquetá-


poquetá-poquetá-poquetá! O Comandante ficou por um momento a
observar o gelo que se formava na janela do piloto. Em seguida girou
uma fileira de botões complicados.

– Liguem o motor auxiliar número 8! – gritou.

– Liguem o motor auxiliar número 8! – repetiu o Tenente Berg.

– Potência total na torre número 3! – gritou o Comandante.

– Potência total na torre número 3!

A tripulação, ocupada nas várias tarefas dentro do gigantesco


hidroavião da Marinha, propulsionado por oito motores, entreolhava-
se e sorria.

– O Velho vai fazer-nos atravessar – diziam entre si – O Velho


não tem medo do Inferno…

– Não vá tão depressa! Você está correndo demais! – disse a Sra.


Mitty – Por que você dirige tão rápido?

– Hã? – disse Walter Mitty. Espantado, olhou para a mulher,


sentada no banco ao seu lado. Pareceu-lhe muito pouco familiar, como
uma desconhecida que no meio da multidão lhe tivesse gritado uma
coisa qualquer.

– Você estava a mais de oitenta por hora – disse – Você sabe que
não gosto de andar a mais de sessenta. Você estava a mais de oitenta.
Walter Mitty continuou a conduzir em silêncio até Waterbury,
enquanto o rugido do SN202, que enfrentava a pior tempestade em
vinte anos de Aviação Naval, desaparecia nas remotas e íntimas rotas
aéreas do seu pensamento.

– Você está ficando tenso outra vez – disse a Sra. Mitty – Você
está num daqueles dias. Devia deixar que o Dr. Renshaw o
examinasse.

Walter Mitty parou o carro em frente ao prédio onde a mulher ia


ao cabeleireiro.

– Lembre-se de comprar as galochas enquanto estou no


cabeleireiro – disse ela.

– Não preciso de galochas – disse Mitty.

Ela devolveu o espelho à bolsa.

– Já discutimos isto – disse, saindo do carro – Você não é mais


uma criança.

Ele fez o motor acelerar um pouco.

– Por que você não coloca as luvas? Você perdeu as luvas?


Walter Mitty levou a mão ao bolso e tirou as luvas. Colocou-as, mas
depois que a mulher virou-se e entrou no prédio e que ele chegou ao
sinal, começou a tirá-las novamente.

– Vamos com esse carro! – repreendeu o policial, quando o sinal


abriu. Mitty tirou apressadamente as luvas e avançou num solavanco.
Dirigiu sem destino pelas ruas durante algum tempo e passou em
frente ao hospital, a caminho do estacionamento.

– …É o banqueiro milionário, Wellington McMillan – disse a


bonita enfermeira.

– Sim? – respondeu Walter Mitty, tirando lentamente as luvas –


Quem está tomando conta do caso?

– O Dr. Renshaw e o Dr. Benbow, mas há também dois


especialistas, o Dr. Remington de Nova Iorque e o Dr. Pritchard-
Mitford de Londres. Veio de avião.

Abriu-se uma porta em um corredor comprido e frio e apareceu


o Dr. Renshaw. Parecia aturdido e extenuado.

– Olá, Mitty – disse – Estamos passando um mau bocado com


McMillan, o banqueiro milionário que é amigo íntimo de Roosevelt.
Obstrução terciária de canal. Gostaria que você o olhasse.

– Com muito prazer – disse Mitty.

Na sala de operações houve apresentações sussurradas.


– Dr. Remington, Dr. Mitty. Dr. Pritchardd-Mitford, Dr. Mitty.

– Li o seu livro sobre estreptotricose – disse Pritchard-Mitford,


apertando-lhe a mão – Um trabalho brilhante.

– Obrigado – respondeu Walter Mitty.

– Não sabia que você estava nos Estados Unidos, Mitty –


resmungou Remington – Chamaram-me e ao Mitford para ensinar o
padre nosso ao vigário!

– Você é muito amável – disse Mitty.

Uma máquina enorme, complicada, ligada à mesa operatória,


com muitos tubos e fios, começou nesse momento a fazer poquetá-
poquetá-poquetá.

– O novo aparelho de anestesia está falhando! – gritou um


estagiário

– Não há ninguém no país que saiba consertá-lo!

– Fique quieto! – disse Mitty numa voz baixa e controlada.


Correu para a máquina, que agora fazia poquetá-poquetá-pip-poquetá-
pip. Pôs-se a dedilhar delicadamente uma fileira de botões cintilantes.

– Dêem-me uma caneta-tinteiro! – disse, áspero.

Alguém lhe passou uma caneta-tinteiro. Ele puxou um pistão


avariado da máquina e introduziu a caneta no seu lugar.

– Isto vai agüentar uns dez minutos – disse – Continuem a


operação.

Uma enfermeira veio correndo e sussurrou uma coisa qualquer a


Renshaw, e Mitty viu o médico empalidecer.

– Instalou-se a coriopse! – exclamou Rennshaw, nervoso – E se


você tomasse o meu lugar, Mitty?

Mitty olhou para ele, para a figura amedrontada de Benbow, que


suava em bicas, e para a fisionomia carregada e hesitante dos dois
grandes especialistas.- Se você prefere – disse.

Vestiram-lhe uma bata branca; ajustou a máscara e colocou


umas luvas finas; as enfermeiras passavam-lhe reluzentes instrumentos
cirúrgicos…

– Para trás, chefe! Cuidado com esse Buick! – Walter Mitty


pisou fundo no freio – Você está na contra-mão! – disse o empregado
do estacionamento, olhando fixamente para Mitty.

– Ih! é! – murmurou Mitty.

Com cautela, começou a dar marcha-à-ré na pista que dizia


“Saída”.

– Deixe-o aí! – disse o empregado – Eu o dirijo.

Mitty saiu do carro.

– Olhe, é melhor deixar a chave.

– Ah! é! – disse Mitty, passando-lhe a chave da ignição.


O empregado saltou para dentro do carro, recuou com uma perícia
insolente, e o arrumou no lugar.

São tão terrivelmente convencidos, pensou Walter Mitty,


caminhando pelas ruas do centro da cidade; pensam que sabem tudo.
Uma vez tentara tirar as correntes das rodas do carro, nos arredores de
New Milford, e as enrolou todas nos eixos. Teve que vir um homem
num reboque para desenrolá-las. Um jovem mecânico que não parava
de rir. Desde então a Sra. Mitty sempre o fazia levar o carro à oficina
para tirarem as correntes. Da próxima vez, pensou, vou com o braço
na tipoia; eles assim já não vão sorrir. Vou com o braço na tipoia e eles
hão de ver que eu não poderia de modo nenhum tirar as correntes
sozinho. Enterrou o pé na lama do passeio. – Galochas – disse para
consigo mesmo, e pôs-se à procura de uma sapataria.

Quando voltou para a rua, com as galochas numa caixa debaixo


do braço, Walter Mitty começou a pensar qual seria a outra coisa que a
mulher lhe tinha dito para trazer. Ela falara duas vezes, antes de saírem
de casa para Waterbury. De certa forma ele detestava estas viagens
semanais à cidade – sempre fazia alguma coisa errada. Lenços de
papel – pensou – pomada, lâminas de barbear? Não. Pasta de dentes,
escova de dentes, bicarbonato, esponja-de-aço, desiderato,
estardalhaço? Desistiu. Mas ela ia lembrar-se. “Onde está o não-sei-o-
quê”, perguntaria. “Não me diga que esqueceu do não-sei-o-quê”.
Passou um rapaz a vender jornais e a gritar uma coisa qualquer sobre o
julgamento de Waterbury.

– …Talvez isto lhe refresque a memória – O promotor agitou


uma arma pesada diante da figura calma no banco das testemunhas –
Já viu isto alguma vez?

Walter Mitty pegou a arma e a examinou com perícia.

– É a minha Webley-Vickers 50.80 – disse calmamente.


Um zum-zum de agitação percorreu o tribunal. O Juiz apelou à ordem.

– Imagino que o senhor seja um atirador de primeira com todo o


tipo de armas de fogo – prosseguiu o promotor, num tom insinuante.

– Objeção! – gritou o advogado de Mitty – Demonstramos que o


réu não pode ter disparado. Demonstramos que ele tinha o braço
direito na tipóia, na noite de 14 de julho.

Walter Mitty levantou a mão por um momento e os advogados


se calaram.

– Com todo o tipo de arma conhecido – disse, tranquilo – eu


poderia ter matado Gregory Fitzhurst a cem metros de distância com a
minha mão esquerda.

Gerou-se o pandemônio na sala. Elevou-se sobre o tumulto um


grito de mulher e de repente uma bela morena estava nos braços de
Mitty. O promotor esbofeteou-a selvagemente. Sem se levantar da
cadeira, Mitty deu ao homem o que ele merecia, na ponta do queixo.

– Cão desprezível!…

“Ração pra cachorro”, disse Walter Mitty. Estacou o passo e os


prédios de Waterbury emergiram do tribunal nebuloso para novamente
o rodearem. Uma mulher que passava sorriu.

– Ele disse “ração pra cachorro” – disse ao seu companheiro –


Aquele homem disse “ração pra cachorro”, falando sozinho.

Walter Mitty apressou-se. Entrou numa loja de animais, não a


primeira que encontrou mas uma segunda, menor, um pouco acima na
mesma rua.

– Eu queria ração pra cachorro de raça, pequeno – disse ao


empregado.

– Deseja alguma marca em particular?

O melhor atirador do mundo pensou por um momento.


– Na caixa está escrito: “Os cachorros ladram por ela” – disse Walter
Mitty.

A mulher sairia do cabeleireiro em quinze minutos, pensou


Mitty olhando para o relógio, se não tivesse problema para secar os
cabelos; às vezes havia problema para secar os cabelos. Ela não
gostava de chegar primeiro ao hotel; queria que ele estivesse ali à
espera, como de costume. Ele encontrou uma poltrona de couro na
entrada, de frente para uma janela, e colocou as galochas e a ração pra
cachorro no chão. Pegou um velho número da revista Liberty e
afundou-se na poltrona. “Pode a Alemanha Conquistar o Mundo pelo
Ar?” Walter Mitty olhou para as fotografias de bombardeiros e de ruas
destruídas.

– …O bombardeio deixou o jovem Raleigh muito nervoso,


Capitão – disse o Sargento.

O Capitão Mitty levantou os olhos para ele, por entre os ralos


cabelos despenteados.

– Metam-no na cama – disse, cansado – Com os outros. Vou


voar sozinho.

– Não pode fazer isso, Capitão – disse, ansioso, o Sargento –


São necessários dois homens para controlar esse bombardeiro e os
inimigos estão fazendo do céu um inferno. O palco dos combates vai
daqui até Saulier.

– Alguém tem que chegar àquele paiol – disse Mitty – Lá vou


eu. Uma dose de conhaque?

Serviu uma dose para o Sargento e outra para si. A guerra


trovejava e gemia à volta da trincheira e fustigava a porta. A madeira
estalou e farpas atravessaram a sala.

– Foi por pouco – disse o Capitão Mitty, despreocupadamente.

– O fogo de artilharia aproxima-se – disse o Sargento.

– Só se vive uma vez, Sargento – disse Mitty, no seu sorriso leve


e rápido – Não é?

Serviu mais uma dose de conhaque e a engoliu de um trago.

– Nunca vi ninguém aguentar o conhaque como o senhor – disse


o Sargento – Com o devido respeito, Capitão.

O Capitão Mitty levantou-se e pôs no ombro a sua gigantesca


Webley-Vickers automática.

São 40 quilômetros de inferno – disse o Sargento.


Mitty acabou uma última dose de conhaque.

– No fundo – disse suavemente – o que é que não é um inferno?

Aumentavam os tiros de canhão; ouviu-se o rá-tá-tá das


metralhadoras, e veio de algum lugar o ameaçador poquetá-poquetá-
poquetá dos novos lança-chamas. Walter Mitty foi para a porta da
trincheira cantarolando “Auprès de Ma Blonde”. Virou-se e acenou ao
Sargento: “Até breve!”, disse…

Algo lhe bateu no ombro.

– Estou à sua procura pelo hotel inteiro – disse a Sra. Mitty –


Por que você teve de se esconder nessa cadeira velha? Como é que
queria que eu o encontrasse?

– O cerco aperta-se – disse Walter Mitty vagamente.

– O quê? – disse a Sra. Mitty – Você trouxe o não-sei-o-quê? A


ração pra cachorro? O que é que está dentro dessa caixa?
– As galochas – disse Mitty.

– Você não podia tê-las calçado na loja?

– Estava pensando – disse Walter Mitty – Nunca lhe ocorreu que


eu às vezes posso estar pensando?

Ela olhou para ele.

– Quando chegarmos em casa vou ver se você tem febre – disse.

Passaram pelas portas giratórias que rangiam um tanto


zombeteiramente quando empurradas. Estavam a dois quarteirões do
estacionamento. Ao chegarem à esquina da farmácia ela disse: “Espere
aqui por mim. Esqueci-me de uma coisa. É só um instantinho”. Foi
mais do que um instantinho. Walter Mitty acendeu um cigarro.
Começou a cair uma chuva fina. Ele pôs-se a fumar encostado à
parede da farmácia… Endireitou os ombros e juntou os calcanhares.
“Para o inferno com esse lenço”, disse Walter Mitty com desdém. Deu
uma última tragada e atirou o cigarro no chão. Depois, com aquele
sorriso leve e rápido brincando nos lábios, encarou o pelotão de
fuzilamento, impassível, orgulhoso e desdenhoso. Walter Mitty, o
invencível, impenetrável até o fim.

Postado por Marcelo Antinori às 11:39 3 comentários:

Postagens mais recentes Página inicial Postagens mais antigas

Assinar: Postagens (Atom)

Tema Simples. Tecnologia do Blogger.

Você também pode gostar