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A História de uma Mãe

His t o rien o m en Mo der (1848)

Estava uma mãe sentada junto da sua pequena criança, tão aflita
e receosa de que ela viesse a morrer. O menino mostrava-se tão páli-
do, os pequenos olhos tinham-se fechado, respirava lentamente e de
vez em quando com uma aspiração funda, como que suspirava, e a
mãe olhava cada vez mais angustiada para a pequena alma.
Bateram então à porta e entrou um pobre velho envolvido
como que numa grande manta de cavalo, pois esta aquece, e bem
precisava ele dela, já que estava um Inverno frio. Lá fora estava
tudo coberto de gelo e neve e o vento soprava de tal modo que
cortava o rosto.
Como o velho tremia de frio e o menino dormia por um
momento, a mãe afastou-se, deitou cerveja num púcaro e pô-la no
fogão a aquecer para o velho. Este sentou-se e começou a embalar
o berço, entretanto a mãe puxou uma cadeira para junto dele e
ficou sentada a olhar para o filho doente, que respirava tão fundo,
levantando-lhe a pequena mão.
– Não crês bem que ficarei com ele? – perguntou ela. – Deus
não irá tirar-mo!
O velho, que era a própria Morte, acenou com a cabeça tão
estranhamente, que tanto podia querer dizer sim como não. E a mãe
pousou os olhos no regaço e as lágrimas correram-lhe pela face.
A cabeça pesava-lhe. Durante três noites e três dias não fechara os

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olhos, então deixou-se dormir, mas só um momento, pois logo deu


um pulo, levantando-se a tremer de frio.
– Que é isto? – disse, olhando para todos os lados. O velho desa-
parecera e o menino também. Levara-o consigo. Lá no canto,
o relógio antigo zuniu e zuniu, o peso grande de chumbo foi escor-
regando até ao chão, Pum! E assim ficou também silencioso.
A pobre mãe saiu de casa a correr, chamando pelo filho.
Cá fora, no meio da neve, estava sentada uma mulher com
um vestido preto comprido que disse:
– A Morte esteve na tua casa, bem a vi. Saiu a toda a pressa com
a tua criança. Corre mais veloz do que o vento e nunca devolve o
que leva!
– Diz-me só que caminho tomou! – retorquiu a mãe. – Diz-me
o caminho, que eu a acharei!
– Sei que caminho tomou! – respondeu a mulher que vestia de
preto. – Mas antes de dizer-to tens de cantar-me todas as canções
que cantaste ao teu filho! Gosto delas, já as ouvi. Sou a Noite, vi as
tuas lágrimas quando as cantavas!
– Cantá-las-ei todas, todas! – respondeu a mãe. – Mas não me
retenhas, para que possa achar o meu filho!
No entanto, a Noite ficou muda e queda. A mãe, torcendo as
mãos, cantou e chorou; eram muitas as canções, mas ainda mais
as lágrimas. E a Noite disse então:
– Mete à direita e entra no escuro bosque de abetos, foi aí
que vi a Morte tomar caminho com a tua criança!
No fundo do bosque os caminhos cruzavam-se e ela já não
sabia por onde ir. Havia aí um espinheiro, sem folhas nem flores
– estava-se no Inverno – e a geada caía-lhe dos ramos.
– Não viste passar a Morte por aqui com o meu filho?
– Claro que vi! – observou o espinheiro. – Mas não te digo
que caminho tomou sem primeiro me aqueceres no teu coração!
Tenho um frio de morte, estou a ficar completamente gelado!

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Ela apertou o espinheiro contra o peito, bem apertado, para


poder aquecê-lo bem, e os espinhos entraram-lhe na carne e o
sangue correu-lhe em grandes gotas. Do espinheiro, porém,
rebentaram frescas folhas verdes e brotaram flores naquela noite
fria de Inverno, tanto calor havia no coração de uma mãe aflita.
E o espinheiro indicou-lhe o caminho que devia seguir.
Chegou então a um grande lago, onde não havia nem barco
nem barcaça para o atravessar. Não estava suficientemente gelado
para que pudesse aguentar-lhe o peso, nem aberto e baixo o sufi-
ciente para passar a vau, mas tinha de atravessá-lo, se queria
encontrar a sua criança. Deitou-se, então, na terra, para beber o
lago, o que era naturalmente impossível para um ser humano,
mas a mãe, aflita, pensava que podia dar-se um milagre.
– Não, assim nunca conseguirás nada! – disse o lago. – Vamos
ver antes se chegamos a acordo! Gosto de coleccionar pérolas e os
teus olhos são os mais claros que já vi. Se chorares até os perderes
para mim, levar-te-ei à grande estufa onde vive a Morte, cultivando
flores e árvores. Cada uma delas é a vida de um humano.
– Oh! O que não dou eu para chegar ao meu filho! – exclamou
a mãe, exausta de chorar; mas chorou ainda mais e os olhos caíram
no fundo do lago, transformando-se em duas pérolas preciosas.
O lago, então, levantou-a como num baloiço e num só impulso
ela voou até à outra margem. Havia aí uma casa estranha com a
extensão de milhas. Não se sabia se era um monte com bosque e
cavernas, ou se assim fora construída, mas a pobre mãe não a podia
ver, tinha perdido os olhos a chorar.
– Onde acharei a Morte que levou o meu filho? – perguntou ela.
– Ainda cá não chegou! – respondeu a Velha Mulher que
guarda as Campas, que tomava conta da grande estufa da Morte.
– Como achaste o caminho para aqui e quem te ajudou?
– Foi Nosso Senhor quem me ajudou! Ele é misericordioso e
tu também serás! Onde acharei o meu filho?

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– Não sei como ele é – disse a velha – e tu não podes ver. Muitas
flores e árvores murcharam esta noite. A Morte deve estar a chegar
para transplantá-las! Tu bem sabes que cada ser humano tem a sua
árvore ou a sua flor da vida, conforme está destinado a cada um.
Assim, como se vêem, são iguais às outras plantas, mas têm bater de
coração. Os corações das crianças também batem! Procura, talvez
reconheças o da tua criança. Mas o que me dás se te disser o que
tens de fazer?
– Nada tenho para dar – respondeu a mãe –, mas irei por ti ao
fim do mundo!
– Bem, no fim do mundo nada tenho a fazer – disse a velha.
– Mas podes dar-me o teu longo cabelo negro. Tu bem sabes,
é bonito e gosto dele! Receberás em troca o meu cabelo branco,
sempre é alguma coisa!
– Se não queres mais nada do que isso – pronunciou a mãe
–, dou-to com prazer!
E assim lhe deu o seu belo cabelo, recebendo em troca o
branco de neve da velha.
Entraram depois na estufa grande da Morte, onde flores e
ár vores cresciam estranhamente umas entre as outras. Havia
jacintos delicados sob campânulas de vidro e lá estavam peónias
grandes e vigorosas. Cresciam aí plantas aquáticas, algumas muito
frescas, outras meio doentes. Nelas estavam pousadas cobras-
-d’água e caranguejos pretos apertavam-lhe os pés. Havia pal-
meiras, carvalhos e plátanos magníficos, salsa e tomilho flores-
cente. Cada árvore e cada flor tinha um nome, cada uma era uma
vida humana. As pessoas viviam ainda, tanto na China como na
Gronelândia, em qualquer ponto do mundo. Havia árvores gran-
des em pequenos vasos, tão oprimidas que estavam prestes a
rebentá-los, havia também em muitos lugares uma florzinha insig-
nificante em terra gorda, com musgo à volta, coberta e tratada
com cuidado. A mãe, aflita, contudo, curvava-se sobre todas as

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plantas mais pequenas e escutava como batia o coração humano


dentro delas e, entre milhões, reconheceu o do seu filho.
– É este! – gritou, estendendo a mão sobre um açafrãozinho
azul que pendia para um lado, bastante doente.
– Não toques na flor! – disse a velha. – Mas fica aqui e quando
a Morte vier… Espero por ela a todo o momento… Não a deixes
arrancar a planta e ameaça-a até de fazeres o mesmo às outras flo-
res, que ela ficará receosa! Tem de responder por elas a Deus,
nenhuma pode ser arrancada sem Ele primeiro dar autorização.
De súbito perpassou uma aragem gelada pela estufa e a mãe
cega pôde assim aperceber-se de que era a Morte a chegar.
– Como encontraste o caminho para aqui? – perguntou esta.
– E como conseguiste chegar mais depressa do que eu?
– Sou mãe – respondeu.
A Morte estendeu a longa mão para a florzinha delicada, mas a
mãe manteve as mãos firmes à volta desta, bem de perto, receosa,
contudo, de tocar na mínima pétala. Então a Morte soprou-lhe nas
mãos e ela sentiu que esse sopro era mais frio do que o frio do
vento, e as mãos caíram-lhe desfalecidas.
– Como vês, nada podes contra mim! – disse a Morte.
– Mas Deus pode! – redarguiu a mãe.
– Eu só faço o que Ele quer! – sentenciou a Morte. – Sou o Seu
jardineiro! Pego em todas as Suas flores e árvores e transplanto-as
para o grande Jardim do Paraíso no país desconhecido, mas como aí
crescem e como é aí, não ouso dizer-te!
– Devolve-me o meu filho! – pediu a mãe, chorando e implo-
rando. De súbito estendeu ambas as mãos sobre duas belas flores
e gritou para a Morte:
– Arranco todas as tuas flores, pois estou desesperada.
– Não lhes toques! – exclamou a Morte. – Dizes que és muito
infeliz e agora queres tornar outra mãe igualmente infeliz!…
– Outra mãe? – inquiriu a pobre mulher, logo retirando as

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mãos das flores.


– Aqui estão os teus olhos – disse a Morte. – Pesquei-os no
lago. Brilhavam tanto! Não sabia que eram teus, toma-os, agora
são mais claros do que antes. Olha agora para o fundo desse poço
aí. Vou dizer-te os nomes das duas flores que querias arrancar e
verás todo o seu futuro, toda a sua vida humana. Observa o que
querias perturbar e destruir!
A mãe olhou então para o fundo do poço. Viu como uma se
tornava uma bênção para o mundo, quanta felicidade e alegria
espalhava à sua volta. Depois viu a vida da outra, e tudo era tris-
teza e miséria, horror e desgraça.
– Ambas são a vontade de Deus – disse a Morte.
– Qual é a flor da desventura e qual a da ventura? – perguntou
a mãe.
– Isso não te digo – respondeu a Morte –, mas saberás de
mim que uma dessas flores era a do teu filho. Foi o destino dele
que viste, o futuro da tua própria criança!
Então a mãe gritou aterrorizada:
– Qual delas era o meu filho? Diz-mo! Salva o inocente!
Salva-o de toda essa desgraça! Leva-o antes! Leva-o para o reino
de Deus! Esquece as minhas lágrimas, esquece as minhas súplicas
e tudo o que disse e fiz!
– Não te compreendo! – observou a Morte. – Queres que te
devolva o teu filho ou devo levá-lo para lá, para esse lugar que
não conheces?
Então a mãe, torcendo as mãos, deixou-se cair de joelhos e
rogou a Deus:
– Não me oiças, se suplico contra a Tua Vontade, que é justa!
Não me oiças! Não me oiças!
E inclinou a cabeça para o regaço. E a Morte partiu com a
criança para o país desconhecido.

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