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A mangueira do vizinho

Sempre a grama do vizinho será mais verde. Se a grama é mais verde, o que dela brota
deve ser melhor também, eu presumia. Meu avô, homem íntegro e de vida imaculada, era
dono de uma propriedade pequena, dessas em que a satisfação é maior que as canseiras.
Morava lá também minha vó, Dona Esmeralda, santa e de oração. Era um casal feliz. O
pomar do meu avô era completo, tinha de tudo, mas quem roubava a cena eram as mangas.
Dessas mangas-rosa que a gente vira diabético só em imaginar. Sempre o ditado me vinha
à mente. Havia uma mangueira enorme logo aos fundos da casinha no sítio vizinho, do
outro lado da cerquinha, e o ditado que havia ouvido na escola havia martelado durante
todo o verão as minhas ideias. Sempre a grama do vizinho será mais verde. Então logo
imaginei que as mangas do vizinho seriam melhores do que as do meu avô.
O sítio vizinho, separado por cerquinhas de plantações espinhosas e enfileiradas, era de
Manoel Macedo. Meu avô nunca se deu bem com ele, não sabia o real motivo; sabia só
de uma coisa, para brigar com meu avô, a pessoa é que devia não prestar.
Passava todos os verões no sítio dos meus avós. Minha prima, pouco mais nova que eu,
também tirava suas férias lá. Eram longos dias e curtas noites ao lado da minha prima. A
propriedade tinha uma parte de mato alto nos fundos e era lá que nós brincávamos na
maioria das vezes. Lembro que ela nunca conseguia me encontrar quando me escondia
bem, sempre fui muito bom em esconder. O rio que por lá corria é testemunha de nossas
brincadeiras e banhos e pulos e risadas. A gente passava quase todas as tardes lá, era raro
voltarmos cedo. Num desses dias, nossa avó nos avisou que iria à cidade comprar algumas
coisas e que voltava somente à tardinha.
Nesse verão minha prima estava um pouco diferente, tinha tomado mais forma feminina,
cabelos cheios de um loiro inocente, branquinha como algodão novo. Eu não conseguia
só olhar para ela como antes, sem pretensão ou isentamente, como a olhar algum amigo,
algo mais existia agora, eu não entendia o que sentia.
— Que foi? que tá custando em tirar o vestido hoje? Enquanto já nadava no rio e dava
braçadas na água.
— Minha mãe falou que agora eu sou uma mocinha, não devo mostrar meu corpo pra
nenhum homem, mesmo que seja você, primo. Falou enquanto cobria o rosto com os
cabelos assanhados e as suas maçãs da face ficavam maduras na cor.
— Ah, prima, larga de besteira! Já te vi de tudo quanto é jeito, pode ficar tranquila,
ninguém precisa saber... Anda, olha como a água está boa, vamo, vamo, pula!
— Você promete? Enquanto perguntava as mãozinhas finas já desciam o vestido e o
aprumavam junto às sandálias com todo o cuidado para não sujar na terra molhada.
Pulou na água. Estávamos nadando juntos e, no meio de uma de nossas brincadeiras, a
gente ficou com os corpos juntos por um instante; ela tentava me afogar enquanto eu ria
da pouca força. Era costume brincar disso naquele rio.
— Prima, tem algo duro aqui em baixo... consegue sentir? Arrastei a sua mão esquerda,
que a essa altura estava na minha cabeça, para baixo d’água e fiz com que ela tentasse
alcançar.
— Não, ainda não consigo sentir direito, primo, o que deve ser? Os olhos dela
denunciavam medo.
— Não sei, não lembro de já ter sentido isso aqui... Talvez já estivesse aqui em outro dia
e nós só não tínhamos percebido...
Ela mergulhou a cabeça em direção aos meus pés, quando subiu, tendo nas mãos um gesto
de apontar, disse:
— É um pau, primo. Mas é pesado, não parece ser velho, tá bem duro ainda.
— Sim! Consigo sentir com os pés melhor agora, deve ser algum tronco que jogaram no
rio ou caiu por causa da chuva, o vovô sempre diz que nas chuvas fortes pedaços de pau
das árvores podem mesmo cair e que é pra gente não ficar embaixo delas durante as
chuvas.
Ela ainda apalpou por baixo d’água o pau por um tempo, devia querer descobrir a qual
espécie pertencera antes do incidente.
Depois de muito nadar, ficamos exaustos e a fome começava a nos unir. Saímos do rio,
com a pele das mãos engiadas, e de tão alvas, transparentes. Procuramos uma sombra, era
cedo ainda na tarde. Olhei ao redor, enquanto ainda estávamos nus esperando o corpo
secar e percebi que não lembrei de separar algo de que me servisse para o lanche.
— Que lindas, prima! Tão redondinhas e rosas... Me deixa chupar uma...
— Ah, primo... Você bem sabe que não é certo isso... Eu percebi seus olhares pra elas...
— Você não pode nem estar pensando em me negar, não é? Não é?
— Não é certo...
— Mas elas são tão durinhas, nunca havia visto assim, tão redondinhas e bicudas... Falei
enquanto tentava chegar mais perto e ela tentava esconder.
— Não, primo... São só minhas, mais ninguém pode chupar...
— Mas é tão rosinha! Não me faça isso, estou salivando... Olhe bem como estou por sua
causa... Enrijeci o cenho...
— Não, já disse! A vovó colocou quatro mangas em cima da mesa, duas pra cada um,
mas você saiu correndo que nem louco na frente e nem me esperou. Não vou te dar.
— Não? A vovó vai amar saber que você me negou uma manga, ainda mais com tamanha
fome que estou.
Peguei e vesti minha bermuda furioso. Corri de volta para a casa do vovô. Ao ver que eu
não blefava e que corri em direção da casa, ela temeu e gritou, quando já era tarde:
— Não precisa contar! Venha, eu te dou uma! E agora também se apressava para se vestir
e tentar me acompanhar. Deixou as mangas lá mesmo e correu atrás de mim após ter posto
o vestidinho sujo de terra.
Corri de forma que a raiva era agora maior que a fome. Nossa avó, em seus momentos de
ensino e palavras santas, sempre nos exortou à caridade. Nada mais a deixava tão brava
quanto a mesquinhez e o egoísmo. E minha prima também sabia disso. Durante a corrida
e os vários gritos de arrependimento da minha prima no mato, aquilo já não era mais uma
vingança, havia se tornado uma brincadeira, mesmo que a raiva ainda tivesse lugar.
Corri tanto olhando para trás, para ver se ela me alcançava, que acabei mudando um pouco
a rota do caminho. Não percebi e pulei do jeito que vinha as cerquinhas de plantas
cortantes do sítio do Manoel Macedo. Foram muitos arranhões de uma vez, daqueles bem
fininhos que queimam a pele. Parei e, enquanto olhava o fruto do meu pulo, minha prima
conseguiu chegar perto de mim preocupada e pedindo que eu não contasse nada. Logo à
nossa frente, já na propriedade do Manoel Macedo, uma cabaninha dessas onde as
galinhas dormem nos chamou a atenção por uns barulhos estranhos e abafados. Levantei
e puxei minha prima pela mão, quando a portinhola se abriu, encontramos o Manoel
Macedo em pé, do mesmo jeito que nadávamos no rio e, à sua frente estava nossa avó,
também sem roupas. Os dois perderam totalmente a cor ao nos ver. Minha prima, que
ainda não entendia, perguntou:
— Em qual lugar do rio vocês estavam? Nós acabamos de vir de lá e não os vimos.

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