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Copyright © 2021 Chasanna

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Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios. Qualquer semelhança com
pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência e não pretendida pelo autor.

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recuperação, ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico, mecânico,
fotocópia, gravação ou outro, sem a permissão expressa por escrito do editor.

ISBN:9786500359725

Design da capa por:Chasanna


Autora da obra por:Chasanna
DEDICATÓRIA
Este livro é dedicado a minha família que sempre deu valor a
tudo o que eu inventava. Nada era bobo, mas algo interessante. De
alguma forma isso me tornou quem eu sou, um ser criativo e feliz!

O
brigada!
BOOKTRAILER
Assista AQUI.
PRÓLOGO

Está começando a escurecer, no inverno o Sol dorme cedo.


Meus sentidos parecem mais aguçados. Acho que agora sou capaz
de ouvir o barulho das asas da abelha enquanto pousa na Alamanda
em meu jardim. Passei pela porta correndo, não fiz questão de olhar
se me observavam. Desci as escadas, a resposta está no porão.
Tudo é tão intenso dentro de mim. Minhas emoções parecem
esmagar a minha razão. Estou em perigo. Estamos em perigo!
Confiei em pessoas que não deveria e descobri que grande parte da
minha vida foi uma farsa. Estou em meio a uma batalha de deuses,
procurando por folhas e mais folhas em um baú atrás de
interpretações para minhas próprias visões. Ela não sabia o que
significava, isso não minimiza sua culpa. Tenho que solucionar o
mais importante problema da minha vida, o qual tirou de mim a
lembrança de sua existência.
1 PRIMEIRO ENCONTRO

Meu nome é Maíra Neiva. Eu vim do condado que deu


origem ao meu sobrenome. Na verdade, minha família é de lá, eu
mesma nunca fui ao tal local mencionado, pois nasci na Nau
Portonha a caminho da terra nova. Neiva significa branca e suave.
Esse significado não está diretamente ligado a mim, apesar da minha
pele clara.

Meus pais e eu chegamos aqui com a promessa de que


teríamos uma vida diferente e melhor. Não que eles não tivessem
algo agradável onde moravam, porque somos de descendência
nobre, mas ajudaríamos a construir uma geração forte que serviria a
Coroa em um novo território.

Como eu disse, minha mãe estava grávida de mim, entretanto


eu não era a única. Éramos gêmeas. Durante a viagem, uma
tempestade se propagou e no balançar das ondas, minha irmã caiu
do berço improvisado. Os lenços que o forravam, para o conforto
dela, foram os que a sufocaram, e a tormenta e gritaria dos
tripulantes camuflaram o que estava acontecendo.

Ainda embarcados, faltando muitos dias para a nossa


chegada, optaram por fazer uma cerimônia ao mar. A colocaram em
uma pequena caixa de madeira, acenderam velas e deixaram que as
águas a levassem, iluminando aquele imenso azul no final de tarde.

O luto não permitiu que meus pais me dessem um nome


naquele momento. A única coisa que eu tinha garantido era o
sobrenome Neiva. Todo esse episódio fiquei sabendo anos mais
tarde, em meio a uma discussão entre minha mãe e eu, mas conto
toda essa história para explicar a redundância que me identifica.

Chegando em terra firme, muitos nativos, que viviam em paz


com o meu povo, vieram e nos receberam com alegria. Minha mãe
forçava um sorriso, pois a conduta de boas maneiras que havia
aprendido era mais forte do que os sentimentos que cresciam e
apertavam sua garganta. Eles quiseram me ver, porque mesmo
muitos de nós já habitando em meio a esse povo diferente e corado,
ainda não tinham conhecido uma criança. Minha mãe disse que eles
me chamavam de Maíra. Ela se agradou com a sonoridade da
palavra que gritavam e pela circunstância vivenciada dias atrás, a
qual roubava sua criatividade em me nomear, chamou-me de Maíra
Neiva. “Maíra” quer dizer na língua deles branca estrangeira. Então
meu nome nada mais é do que branca estrangeira, branca suave.
Talvez tenha sido por causa da pele de uma recém-nascida sem
ainda ter tido contato com o sol ou pelos poucos fios de cabelos, um
loiro tão claro, que beirava essa brancura toda de meu nome.

Depois de uns anos, ainda pequena, nos mudamos para um


casarão branco com um enorme jardim, rodeado por árvores de
diversos tamanhos e canteiros tomados por flores. Gostava muito de
correr. Ainda gosto, mas essas roupas de adulta não favorecem
muito uma corrida prazerosa, com bastante aventuras. Lembro-me
de quando eu brincava com uma bola feita de sobra de tecidos dos
vestidos que as criadas faziam para minha mãe. Ela era toda
colorida, mas toda ressecada, vivia cheia de lama. Eu não tinha o
costume de limpar. Então eu a envolvia com mais um retalho e já
bastava para considerá-la nova.

Um dia me deparei com um homem na entrada da floresta.


Estava agachado, sentado apoiado em seus calcanhares.

— É sua? — perguntou o homem misterioso.

Minha bola estava em suas mãos estendidas, parecendo


querer que eu a pegasse de volta.

—Sim. — respondi um pouco encucada por achá-lo diferente


dos homens, amigos de meu pai. Ele tinha o cabelo grande, ruivo e
usava nas orelhas brincos de pena. Suas roupas eram estranhas,
pareciam de couro e possuía arco e flechas presos nas costas. —
Quem é você? E por que está aqui?

Apesar de estar com 8 anos na época, eu sabia me comunicar


muito bem. Na cidade não tinham crianças, eu só conversava com
adultos.

— Me disseram que você corria perigo, por isso eu vim aqui


— explicou.

— Perigo? — desdenhei porque achava que conhecia tudo


por ali. Não havia um animal sequer que eu não desse conta. E nem
árvore que eu já não soubesse escalar. Não ia tão alto, mas subia o
suficiente para fugir de alguns predadores.
— Você iria atrás dessa bola e escorregaria na pedra por
causa do lodo. Depois iria rolar até lá embaixo e quebraria o pescoço
— contou ele.

— Nossa! Não se fala assim com uma criança — surpreendi-


me com a frieza do tal moço.

— Me desculpa. Como deveria falar? Não tem muitas crianças


do seu tipo por aqui. Na verdade, não conheço nenhuma. As que eu
conheço não se importam com a forma que eu falo.

—Você deveria ser gentil. Poderia falar tudo com mais


carinho. É óbvio que precisaria passar uma seriedade, mas sem
informar essa parte tão trágica — disse a ele.

O homem dos cabelos vermelhos ficou calado me olhando,


tinha um aspecto de assustado. Talvez pela forma que eu falei e me
portei. Eu me sentia uma menina bastante esperta. Então continuei a
me pronunciar.

— Assim, por exemplo: "Menina, não vai por ali. Tome


cuidado! Você pode se machucar".

Então ele sorriu levemente. Transmitiu-me confiança. Depois


colocou a bola no chão, se levantou e foi recuando e olhando ao
mesmo tempo por trás de mim. Vinha vindo minha mãe, que me
chamou para almoçar. Ela não o reparou. E eu não sei se ele correu
ou algo do tipo, porque me dispersei ao olhá-la.
2 SEGUNDO ENCONTRO

Em uma noite, eu vi uma bela jovem sentada embaixo de uma


Jacarandá chorando de soluçar. Embora eu tivesse um instinto de
proteção, não poderia me aproximar sem um motivo maior. Então
observei os seus gestos, a forma como limpava as lágrimas que não
paravam de jorrar. Uma de suas mãos acariciava o seu próprio rosto.
Eu pude perceber uma marca vermelha estampada próxima a sua
boca.

— Quem fez isso? — perguntei bem baixinho como se ela


fosse me responder em seus pensamentos. Eu podia ouvi-los, mas
não era nisso que refletia, e sim em conhecer Neiva. Não entendi
quem era ou o que era. Escondia-me atrás de uma árvore e, para
olhá-la melhor, me apoiei em um galho que logo se rompeu, fazendo
com que me desequilibrasse e chamasse sua atenção em minha
direção. Acabei sendo exposto à menina, que parou de chorar de
forma instantânea.
— Você estava me espiando? — Limpava as lágrimas que
sobraram em seu rosto. Não consegui respondê-la. Fiquei sem ação.
— Foi ele quem te mandou? — insistiu em obter informações.

— Ele quem? Foi ele quem fez isso a você? — indaguei


imediatamente. Esperava que a floresta me autorizasse a protegê-la.

— Você não é um deles. Quem é você? — continuou a me


interrogar.

— Não posso dizer.

A menina se virou, suspirou e começou a pensar no homem


que a havia machucado. Ela se perguntava porque Arlo tinha feito
isso a ela.

Eu me aproximei e me sentei na pedra em sua frente.

— A direita tem um riacho. A água é bem gelada. Vai aliviar o


inchaço. Vamos, eu pego para você, para que não se molhe.

Ela me olhou com os olhos molhados. Achei que não aceitaria


por não me conhecer, mas afirmou que iria com um gesto feito com a
cabeça.

Levantei e estendi minha mão a ela. Quando a segurou, um


sentimento estranho tomou conta de mim. Senti como se tudo em
diante dependesse dela e fosse para ela, talvez até o que passou.

— Por que está me olhando assim? — perguntou. Mas antes


que eu falasse algo, continuou. — Seus olhos... eles são diferentes
um do outro. É só você ou mais alguém da sua família é assim?
Castanho e verde... interessante.

— Eu sinto muito pela sua família.

— Não sinta. Nem sei o que é isso — disse a ela.

— Como assim? Isso você também não vai me dizer, né? —


falou com um leve sorriso.

Apesar de perceber um tom de cinismo, me senti bem


mudando o rumo de seus pensamentos.

— Consegue ouvir o barulho das águas? Já estamos


chegando — disse como se eu fosse um anfitrião.

— Eu sei. Já me banhei várias vezes nesse riacho. Dizem que


existe uma sereia que gosta de enganar os homens e os leva para
as profundezas. — A menina andava de costas em direção ao rio,
sorrindo e empolgada com a história que contava. — Eu só devo
agradecer a ela, porque é graças a isso que tenho alguns momentos
de paz. Posso mergulhar à vontade sem nenhum homem por perto.
Eles têm medo. Você deveria ter também — continuava sorrindo.

Não consegui dizer nada, tudo o que ela narrava era uma
grande baboseira que inventaram. Contudo me divertia com a
história de uma antiga amiga, Iara. Então devolvi um sorriso.

— O seu sorriso é bonito — elogiou-me, tranquila. — Pode


deixar que eu pego a água sozinha.
Ela se debruçou às margens do rio. Juntava suas mãos para
segurar o líquido, que fugia tão rápido que mal chegava em seu
rosto. Então, me aproximei e ela fez um gesto para que eu parasse.

— Cuidado! Eu acho que tem mesmo uma sereia! — disse,


mais séria.

— Ela não é má. Não faria isso comigo. Só com quem é ruim
— expliquei.

— Então faremos um teste. Saberei se você é um homem


bom, assim poderá ser meu amigo. Venha, se aproxime da água.
Você está com medo? — falou a menina, mais uma vez, com aquele
sorriso que me fazia sentir algo inédito.

Foi quando TUDO começou. Abaixei-me e ao tocar na água,


enxerguei através da sereia, o que estava por vir. Tudo aconteceu
muito depressa. Depois Iara me repeliu. Fui arremessado para trás,
como se tomasse um choque. A menina estarrecida, se levantou e
se afastou ao máximo de mim. Pude notar o medo em seus olhos
azuis.

— Maíra, né? — indaguei ainda no chão, tentando me


levantar.

— Como sabe meu nome? Eu não te disse. Você é um


homem... um homem mau, não é?

— Não...não! — Já estava de pé. — Se eu fosse, ela teria me


arrastado — fiquei nervoso ao explicar.

— Como sabe meu nome? — estava agitada.


— Ela me disse. Mas não sei como contar o que me mostrou.
Ainda devo ser gentil e carinhoso, mesmo você tendo crescido?

— Era você naquele dia... sabia que te conhecia de algum


lugar — falou, parecendo com medo. — Me diga de qualquer jeito,
não sou mais uma criança.

— Seu nome será dito 3 vezes. Esse também será o número


de vezes que irão te apunhalar. O motivo será por amarem o que não
deveriam amar. E por mexerem com forças maiores — repeti a ela a
visão que tive.

—O que isso tudo significa? — Seus olhos estavam


arregalados.

— Que eu vou ter que te levar.


3 LIAM

Enquanto eu fugia galopando em um cavalo, abraçada por um


homem que eu nem sabia o nome, com os cabelos soltos, que
acariciavam o meu rosto, balançando ao vento, me lembrei de
quando entrei em casa no início da tarde para almoçar, depois que
minha mãe me chamou no quintal. E após comer um delicioso
carneiro, subi e separei as bisnagas de tinta, porque queria registrar
a imagem daquele moço da floresta. Todo dia minha mãe me
perguntava quem era o rapaz de armadura, parecendo selvagem
com cabelos cor de fogo. E eu respondia que era o homem com
quem me casaria.

Era um turbilhão de sentimentos naquele momento. Não sabia


se deveria pedir pra parar, pedir pra voltar ou simplesmente continuar
fugindo. A minha barriga embrulhava e foi quando eu implorei para
descer. Saltei do cavalo, me afastei uns passos e vomitei. Estava
nervosa, assustada. Não sabia se haviam verdades em suas
palavras. Ele era tão diferente, tinha um jeito misterioso, mas me
sentia segura apesar de tudo.

— Está tudo bem? — perguntou ele, segurando as rédeas do


cavalo e me olhando preocupado.

Confirmei com a cabeça, mas novamente um enorme enjoo


tomou conta de mim e acabei me esvaziando por completo. Fiquei
mais branca do que todos costumavam comentar quando me
conheciam.

— Está tudo bem? — indagou de novo.

— Acho que sim. Estou viva, então estou bem. — Dessa vez
consegui falar, porém debochada. Óbvio que não!, pensei. Ele
suspirou.

— "O motivo será por amarem o que não deveria". Você ama
alguma coisa que não deveria? Você ama alguém? — questionou
com um leve tom de ciúme.

— Meu noivo — afirmei no automático. Não o amava, mas


não tinha ideia do que poderia ser aquela premonição.

— Quem é Arlo ?
Eu fiquei assustada. Existia tanto mistério a respeito dele e a
minha vida parecia um livro aberto. Como ele sabe sobre Arlo? Não
comentei seu nome.

— Eu ouvi em seus pensamentos — respondeu sem ao


menos tê-lo perguntado oralmente. Aquilo me deixou ainda mais
curiosa. Estava na companhia de alguém que provavelmente não era
um simples humano.

— O que você é? Não diga que não pode me contar. Estou


aqui, no meio da floresta e à noite. Já percebeu que confio em você.
Não pode confiar em mim e se revelar?

— Vamos procurar um lugar pra dormir essa noite, já estamos


longe da cidade. Acho que não corre perigo imediato — ignorou-me.
Revirei os olhos.

Quando adentramos a floresta, encontramos uma área com


muitas árvores antigas caídas. Parecia que havia ocorrido uma
guerra. O solo estava desgastado. Não tinha mais grama, uma
região sem vida. Então ele olhou aquilo com um semblante
revoltado. Começou a analisar o entorno e depois de um tempo
abaixou a cabeça e suspirou.

— O que foi? — estava curiosa com sua reação.

—Isso não deveria acontecer. Alguém irritou os deuses.


Talvez os tenha desobedecido. Muitas vidas foram perdidas aqui —
murmurou.

— Pessoas morreram? Não vejo corpos. — preocupei-me.

— Animais, árvores, enfim... Talvez pessoas. Não é pra ser


assim... Todos devem viver e morrer no momento certo.

Nunca tinha visto alguém se importar tanto com outros seres.


O admirei naquele momento e vi que não parecia ser uma pessoa
ruim. Mas, e essa história de deuses? Isso também não era comum
no meio em que eu vivia.

— Esses deuses... você falou naquele dia, no jardim, que


mandaram me proteger. Foram eles? Não sei nada sobre eles. — A
história estava me interessando.

Apesar de não acreditar em vários deuses. Eu gostava muito


de ler sobre a cultura de outros povos. E o fato de ver alguém
submetendo sua vida de acordo com uma crença que não conhecia,
me instigava ainda mais.

— Sei o que está pensando... que isso não existe — falou, me


deixando constrangida. — Venha, vamos para o meio das árvores.

Ele saiu na frente puxando o cavalo e de rabo de olho


confirmava se eu o seguia.
— Não que eu não acredite, só é diferente do que eu creio —
expliquei-me. — Aqui já está bom? Meus pés estão doendo. Eu
quero tirar esses sapatos. — Eu usava uns sapatos como de
dançarina. Apertavam tanto o dedão e o mindinho, um estilo que eu
não gostava muito, mas era ideal para o evento do qual eu tinha
participado naquela noite.

— Tudo bem. Aqui já está bom — disse ele. Em seguida,


amarrou a rédea do cavalo à árvore e começou a procurar por
pedras para fazer fogo.

— Me desculpa se fui grosseira não acreditando em você.


Mas é difícil controlar os pensamentos. Você poderia não ouvi-los?
— sorri para ele, e me olhou com um olhar que não me dizia nada.
Senti que não o agradava muito.

— O que está procurando? Pedras? Não está frio. É


necessário fazer fogueira? A lua está iluminando bem aqui —
tagarelei.

— Não é só por causa do frio que irá chegar. É para evitar


alguns animais indesejados.

— Entendi — Sentei ao chão e fiquei o observando fazer uma


fogueira. Quem é ele?, não parava de me perguntar. Mas isso ele
não queria me responder. Na verdade, quase nada.
Então me deitei próxima à fogueira e desisti de tirar os
sapatos, pois começava a esfriar. Ele se estirou ao meu lado, mas
um pouco afastado. De repente se voltou pra mim. Quando senti que
perguntaria algo, me antecipei: — Qual é o seu nome?

— Eu não tenho nome — disse ele com a maior naturalidade


do mundo.

— Como assim não tem nome? Todo mundo tem nome.

— Minha mãe morreu quando eu nasci. Dizem que quando


deu à luz, estava sozinha. E só quem pode dar um nome ao filho é a
mãe ou o pai. Mas também não conheci meu pai. — Parecia não
querer continuar o assunto. Que triste!

— Como só os pais podem dar um nome ao filho? — Sua


história me intrigava cada vez mais. Não consigo estancar o meu
poço de curiosidade.

— Na minha espécie, só eles podem nomear — explicou o


homem sem identidade.

Quando ele disse a palavra espécie, fiquei boquiaberta. A


minha suspeita de que não era humano estava certa. Ou será que
ele é um doido que se acha especial?
— O que você é? Parece um homem normal, mas tem jeito
diferente, sabe ler pensamentos, se preocupa com animais, plantas e
até com uma menina que encontrou na floresta no meio da noite...
Por favor, me conta — perguntei mais uma vez, mas sem esperança
em ouvir uma resposta. Contudo, para minha surpresa, começou a
falar.

— Somos três tipos. Os Chullachaquis, Kuru'pirs e Caapora.


Todos temos o objetivo de proteger as florestas e manter a paz entre
os seres que vivem nela.

Enquanto o ouvia explicar, deitada ao seu lado, por alguns


segundos me perdi. Percebi o quanto aquilo era real para ele.
Comecei a lembrar do nosso encontro no jardim, dos seus desenhos
que eu fiz e como estava me sentindo atraída por ele naquele
momento. Então fiquei olhando para seus lábios se movendo
lentamente.

— Você está prestando atenção? — notou-me distraída.

— Sim! — respondi rapidamente para convencê-lo, como se


fosse possível enganá-lo. — E qual deles você é?

— Bom... Os chullachaquis são os únicos metamorfos.


Assumem a forma que quiserem. São astutos, enganam facilmente
as pessoas... mas voltam a forma original quando o chamam pelo
nome.
— E os outros? — Já não estava mais dispersa.

— Os Kuru'pirs são mais rápidos e mais fortes e os caaporas


são raros, são líderes da tribo.

— Ouvindo sua explicação, me pareceu que não tem nem


ideia de qual dos três você é. Acertei? — ironizei.

— Pois é... São os pais que ajudam os filhos a desenvolverem


suas habilidades. E outra... nem tenho nome para testar a primeira
opção. Devo ser Kuru'pir, sou bem forte — falou meio convencido. —
Não me sinto capaz de liderar, então não sou caapora. Sem contar
que é raro. Só conheci um há 96 anos.

— Novent... O quê? Você tem noventa e poucos anos? —


espantei-me.

— 202 anos — disse sorrindo, com seus olhos castanho e


verde me encarando.

Tudo o que me contou me deixou assustada e fascinada ao


mesmo tempo. Ele parecia não ter mais de 35 anos. Fiquei refletindo
sobre ele não ter tido uma experiência em família. Achava isso triste,
mesmo me dando a entender que não se importava com isso. Então
eu tive uma ideia e resolvi dividi-la.
— Eu posso dar um nome a você. O meu nome signif...

— Não pode! — interrompeu-me, rispidamente.

— Eu sei... Não sou sua mãe, até porque sou nova demais. —
Sorri, tentando deixar o clima mais leve. — Seria mais pra eu ter
como te chamar — expliquei ao ser desconhecido.

— Não preciso de nome, é só falar o que quiser ou pensar


que já estarei te ouvindo — disse ele.

— Os nomes são importantes, sabia? Eles têm significados. O


meu significa ....

— Branca, suave e estrangeira... Já sei! — cortou-me de


maneira rude. Sentei, revoltada, e me voltei para ele.

— Será que poderia fingir que não ouve os meus


pensamentos e me deixar concluir as frases? É muito chato
conversar assim.

O homem deitado, com a cabeça apoiada sobre seus braços,


me olhou sem graça e falou carinhosamente: — Me desculpa. Não
tive a intenção de te deixar magoada.
Então, me reclinei e decidi iniciar um novo assunto para
acabar com o constrangimento.

— Eu adoro olhar as estrelas. E você, Liam?

— Li...o quê?
4 O JANTAR

Deitados ali por alguns minutos nos olhando, eu só queria


permanecer naquela tranquilidade observando a mistura das cores
de seus lindos olhos. Até que de repente reparei em um leve sorriso.

— O que foi? — perguntei a ele.

— Nada — respondeu, fingindo não ter motivo para sorrir.

— Esqueci que não há nada que eu possa esconder de você


— debochei, para disfarçar o constrangimento que eu senti.

— É, eu acho que não — zombou.


— Não quero que você pense que eu fico me imaginando com
qualquer um — expliquei e me sentei um pouco afastada dele. Tentei
manter a aparência de uma dama, mas ao meu ver, já a tinha
perdido há tempos. Principalmente depois da minha crise de
náuseas em sua frente.

— Posso te falar uma coisa? Dessa vez não estava lendo sua
mente — achou graça.

Não consegui camuflar as minhas bochechas coradas.


Revelei-me, assim, de bandeja. Sabia que depois dessa confissão, a
minha cabeça sempre seria vigiada. Ele continuou a sorrir, mas seu
olhar estava diferente. Parecia se gabar e ao mesmo tempo flertar
comigo.

Encostei-me na árvore que estava próxima a mim. Peguei um


pequeno galho caído e comecei a riscar o chão. Enquanto remexia a
terra, o movimento me remeteu ao de pintar uma tela, acabei me
deparando com lembranças do dia em que fui apresentada a Arlo.

<<◇>>

Eu estava em meu jardim. Aquele, no qual brincava e corria


atrás de uma bola de pano. Usava um vestido marfim, com detalhes
bordados em carmesim e pequenas pinceladas de tinta nas bainhas.
Minha mãe odiava isso, mas eu não perdia essa mania de limpar o
pincel desse jeito.

— Maíra, larga logo esse quadro! Ele está chegando — disse


minha mãe, me tirando de cima do banco e me puxando em direção
à casa.
— Ele quem, mamãe?

— O comandante Coimbra, amigo de seu pai. Vamos, você


precisa trocar esse vestido, limpar essas suas unhas coloridas e dar
um trato no seu cabelo desgrenhado — ordenou ela.

— Quantas recomendações! O que tem ele? Não posso


simplesmente ficar escondida em meu quarto? — sugeri algo para
facilitar a minha vida e a de meus pais, que morreriam de vergonha
se todos soubessem que a filhinha do Conde Zander de Neiva
parecia mais uma campestre, sem modos e instruções.

Meu pai era um conde, tinha deixado Neiva porque a rainha


precisava de alguém de confiança, acompanhando o seu exército na
área de colonização. Já tinham se passado 18 anos desde a nossa
chegada. O acordo era para ficarmos por pouco tempo, porém não
foi o que ocorreu. As tribos que residiam aqui eram bem distintas.
Umas se aliaram e outras nem tanto. Meu pai sentia que poderia
estourar uma guerra a qualquer momento. Mas talvez fosse esse o
seu desejo. O grande número de soldados e as forças de nossas
armas acabariam com os nativos rapidamente, facilitando a nossa
volta para a terra, a qual só conhecia de ouvir falar.

Então subi e fui me lavar. Tudo era muito estranho. Porque eu


tenho que me arrumar às pressas só porque um comandante vai
aparecer? Meu vestido já estava separado, no cabide, do lado de
fora, preso ao armário. Era na cor azul celeste. Na cômoda, em cima
da caixinha de joias, o broche de família pérola com desenhos
dourados estava.

Eu não queria me casar, pelo menos não naquela época.


Ainda ia completar 19 anos. Mas segundo eles, já estava na hora.
Meu coração estava acelerado e meu rosto esquentava como se o
sol estivesse comigo dentro do quarto. Podia prever que era disso
que se tratava.

— Filha, desce aqui para conhecer o comandante Coimbra! —


chamou meu pai.

Ele nunca me gritava, era sempre minha mãe. Temia


escorregar e rolar escada abaixo, de tanto nervoso.

Rita, minha babá, havia me penteado. Colocou um arranjo de


flores preso na trança, feita na lateral de minha cabeça. Senti-me
como um presente com um embrulho bem enfeitado. Aquela não era
eu.

Então desci lentamente os degraus, analisando o homem


parado, próximo a porta. Vi que era mais velho, aparentava uns 40
anos, mas não sabia ao certo. Era bonito, com cabelos escuros, bem
cortado. Segurava seu chapéu contra o peito enquanto me
observava.

— Ela é linda. Precisa pegar um pouco de sol, mas é linda —


e sorriu para o Conde.

Era comum esses tipos de piadas. Realmente era muito


branca. Em seguida, ele tomou a frente e se apresentou por conta
própria: — Sou o comandante Coimbra, mas pode me chamar de
Arlo. Sou amigo de seu pai. — Então pegou a minha mão e a beijou,
mesmo eu não a tendo levantado para que fizesse isso. Olhei para
minha mãe e ela sorriu. Eu estava assustada. Tinham grandes
expectativas sobre aquela apresentação.

— Maíra, prazer. — Franzi a testa.


— Tão séria? — disse com um leve cinismo, o comandante.
Engoli em seco.

— Então vamos comer! — Meu pai atropelou o diálogo. Talvez


a incerteza de como eu reagiria o apressou.

Seguimos em direção ao salão principal. Nele tinha uma


grande mesa em madeira escura. Era festa pra eles, porque pediram
que colocasse toda a prataria para fora dos armários.

Fiquei calada todo o jantar, pensando se esse era o meu


destino. Até ouvir o meu pai interromper minha reflexão: — Vamos
deixar que eles conversem a sós, Carmen?

Então a curiosidade de tudo, que vivia agarrada em mim, me


instigou a conhecer Arlo. Por que não?

— O que você faz, comandante? Você também é responsável


por planejar guerras ou algo do tipo, como meu pai? — Mexia com a
colher, a sobremesa.

— Não milady — respondeu ele, me deixando surpresa, pois


ninguém se referia a mim dessa maneira.

Apesar de ser filha do Conde e da Condessa, não tinha muitos


contatos. Os empregados da casa me chamavam de menina. Os
convidados de meus pais, quase nunca se dirigiam a mim. E o conde
também nem fazia questão de tal respeito. Acho que não me via
como lady. Talvez por andar descabelada correndo atrás de pássaros
e sapos.

— Por que a surpresa? — indagou Arlo.


— Ninguém me chama assim.

— Como não? Esse é seu título. Não devo chamá-la assim?

— Pode chamar. Eu gostei — respondi, empolgada.

Então caminhamos pelo jardim e ele me contou sobre meu pai


oferecer minha mão a ele. Naquela altura, já estava assimilando a
ideia de me casar. Continuamos a conversa. Eu achei o comandante
interessante e inteligente.

— Você não me disse ainda o que faz — lembrei. Estava


muito curiosa com as possibilidades que existiam no meio do
exército e se eu poderia me encaixar em alguma, afinal eu não era
uma simples garota. Eu poderia mudar a tradição e trabalhar com os
soldados.

— Eu trabalho na construção da cidade, com escavações para


abertura de ruas e tento manter as coisas em ordem. Às vezes foge
do controle. Ocorriam diversas invasões e muitos de nós foram
mortos por canibais no início. Por isso seu pai foi convocado para cá
— explicou Coimbra.

Creio que ao contar toda aquela história, esperava ver o rosto


de uma menina assustada, mas não foi o que assistiu. Meu
semblante certamente era de mais curiosidade e entusiasmo.

— Canibais... Sério? Eles ainda existem? Você poderia me


mostrar um? — tagarelei como sempre.

— Eles fugiram cada vez mais para o interior das matas.


Talvez nem existam mais. O último que eu vi foi há cinco anos. — E
percebendo a minha frustração me propôs algo que jamais recusaria.
Uma aventura de verdade. — Quer vir comigo um dia, procurar por
nativos?

— É lógico! — sorri e suspirei. Acho que ele percebeu que


estava me conquistando.

Aquele encontro estabeleceu tamanha alegria entre meus pais


que jamais tinha visto antes. Como eles poderiam ficar tão felizes
com um casamento?

<<◇>>

De repente, uma forte luz acertou os meus olhos fazendo com


que os mesmos abrissem e se fechassem rapidamente. Já era dia.
Depois de esfregar minhas vistas, enxerguei Liam de pé acariciando
seu cavalo. Levantei-me e fui até eles.

— Bom dia! — disse a ele, arrumando o meu vestido.

Ele estava sem camisa e molhado. Deveria ter se banhado no


rio, que provavelmente passava ali perto. Era possível ouvir o
barulho das águas.

— Bom dia! Está muito quente, não quer se molhar? Se for à


esquerda vai encontrar o rio — informou-me enquanto terminava de
se vestir.

— Me molhar? — perguntei sem jeito.


— É. Qual problema? — falou como se fosse algo comum
para ele.

Eu não era um exemplo de dama refinada, mas me banhar na


frente dele fugiria dos meus princípios e, apesar de não humano, era
um ser do sexo masculino.

— Não estou com muito calor. Não preciso disso — disfarcei


muito mal. Onde eu morava era muito quente. Estava usando um
vestido com saia godê, espartilho e roupas de baixo. Eu não
costumava usar tudo isso em dias normais, mas como eu disse
antes, estava em um evento, tinha sido a festa de meu noivado.

— Sei... — disse, cínico. — Sei que está com calor, mas não
te obrigarei a entrar na água. Só te aviso que iremos em uma direção
oposta ao rio. Não sei quando terá outra oportunidade.

— Então entrarei com a roupa de baixo.

— Roupa de baixo? Você é quem sabe — resmungou ao


sentar em uma pedra e ficou me observando como se eu estivesse o
atrasando.

— Então vou! —revoltei-me. Achava que sua intenção era me


ver nua e saí andando. Depois de alguns segundos, voltei, pois ainda
não estava satisfeita. — Você promete que não irá me espiar?

Então me olhou e balançou a cabeça pensativo.

— É melhor você entrar com toda essa roupa então —


respondeu com deboche, me analisando de cima a baixo.
5 COGUMELOS E SA'SI

Eu não entendia o que estava acontecendo. Eram


sentimentos novos. Já havia estado com várias mulheres e nenhuma
me fez sentir assim. Estava totalmente entregue a ela. Não
conseguia parar de olhá-la, tudo me atraía. Seus cabelos, seu cheiro,
sua teimosia...

Então a vi, saindo do rio toda encharcada, o vestido pesava


tanto que fazia com que ela andasse cambaleando. Achei bem
engraçado. Acabei soltando um riso alto, mas me contive para que
não percebesse. Seu cabelo estava minguado, emoldurando o
queixo que não parava de bater. Eu não esperava que fosse
realmente entrar com roupa, ou pelo menos não com todas elas.

— Tire essa roupa. Você vai adoecer — disse a ela com um


pingo de maldade.
— Eu não tirei antes, porque tiraria agora? — Maíra
respondeu revoltada e se tremendo. Balancei a cabeça discordando
e me sentei.

— Eu tenho uma capa. Está embaixo da sela do cavalo. Pode


se cobrir com ela enquanto suas roupas secam. Eu fico de costas. Te
prometo. Não imaginei que realmente entraria vestida — sentia
culpa.

— Não podemos esperar. Provavelmente os soldados já estão


à minha procura — respondeu, preocupada.

Eu não tinha ideia de quem poderia feri-la. E para ela isso


também era um mistério, eu podia ver em sua mente. Era preciso
protegê-la de alguma forma, tinha isso comigo. Existia algum
propósito em eu ter visto seu futuro. Seria para tentar revertê-lo?

— De qualquer forma se cubra com a capa, pelo menos irá se


aquecer e evitar me deixar molhado — insisti. Ela me olhou
parecendo reprovar minha atitude. Pegou a capa e a colocou. Subiu
no cavalo esbravejando algo que não consegui identificar, então
decidi esperar sua raiva passar.

Seguimos cavalgando em direção oposta ao rio. O silêncio


estava me incomodando. Em pouco tempo junto a ela, já estava me
acostumando ao seu falatório.

— Está com muito frio? — perguntei enquanto caminhávamos,


tentando olhar sua face por cima de seu ombro. Não vi sua
expressão.

— Estou. Não vê que estou tremendo?


— Devia ter entrado só com a roupa de baixo pelo menos.

— Você falou que olharia — disse de forma seca e malcriada.

— Não disse isso! — retruquei.

— Como não? — perguntou afoita, virando o rosto para trás.

Logo parei o cavalo. Percebi que precisávamos nos acertar.


Eu não compreendia esses costumes que ela seguia, mas sabia que
eram importantes para ela. Não podíamos ficar brigados em meio a
uma fuga.

— Eu não afirmei que te olharia, mas sendo honesto, tive


medo de perder o controle — disse como se isso pudesse amenizar
a sua raiva. Em seus pensamentos vi que havia me comparado aos
outros homens e me ignorou.

Caminhamos por algumas horas sem nenhuma interação. Até


Maíra finalmente se pronunciar.

— Liam... Liam... Eu estou com muita fome. Não comemos


nada desde ontem. Eu preciso parar. Será que tem algo por aqui
para comermos?

Estávamos indo em direção a uma tribo amiga, mas faltava


um bom trecho. Então descemos e começamos a procurar por algo
comestível.

—Tem cogumelos aqui. — Quase os colocava na boca.


—Esses não servem. — Retirei rápido de suas mãos. — São
venenosos.

Em seguida, ouvimos uma risada. Alguém nos vigiava. Maíra


me olhou assustada e se aproximou de mim.

— Tem alguém aqui, Liam — falou baixinho.

— Eu sei. Está bem perto. Se você ignorar ele vai embora. Ele
quer atenção.

— Mas quem é? Você o conhece? Não vi ainda. — Segurava


meu braço.

— É um Sa'si. Não precisa ter medo — respondi, mas vi que


ainda estava estarrecida. — Você quer que eu fale com ele?

— Quero sim!

— Mas precisa soltar meu braço — sorri, carinhoso. — Ou


você quer vir junto?

Maíra se desprendeu rapidamente. Então eu fui até a pequena


criatura. Os sa'sis eram conhecidos por suas artimanhas e
travessuras. Ele certamente estava vislumbrado com a sua beleza.
Seria difícil nos deixar em paz.

— O que você quer? — iniciei o diálogo.


— Vocês estão juntos? Ela sabe que você não é humano? —
perguntou o sa'si.

— Por que você quer saber disso?

— Porque eu gostaria de conhecê-la também. Será que ela se


incomodaria? Parece não ter medo de você.

— Olha, eu gostaria de ficar a sós com ela... — Arqueei a


sobrancelha, afrontoso.

— Não sei se você sabe, mas eu moro nessa região —


insistiu.

— Entendi, você vai querer algo em troca. O quê?

— Eu só quero que ela me dê um beijo — falou convicto de


que ganharia essa disputa.

Voltei até Maíra e contei o que estava acontecendo. Já previa


o seu comportamento histérico.

— Eu o vi. Não vou beijar aquela... coisa — tentava controlar


o volume da voz —. Você disse que era só ignorá-lo.

—Ele mora aqui. Você sairia de sua casa se alguém


quisesse? — achava graça da situação. — Um beijo... Que mal tem?

— Beija você!
Continuamos a procurar por alimentos ao som de assobios,
risadas e às vezes umas cutucadas. Ele era bem ágil. Eu podia sentir
a paciência de Maíra se esgotando. Juntava a fome com a vontade
de esganar aquele pequeno ser zombador.

— Já chega! Eu vou beijá-lo — gritou e saiu na direção de


onde vinha os barulhos.

Queria ter visto a cena, mas fiquei aguardando seu retorno.


Depois de alguns segundos voltou segurando um arranjo de flores.
Olhou-me e sorriu. Não aguentei e comecei a rir sem parar.

— Para de rir. — Maíra me pediu gargalhando. — Ele falou


que tem algumas frutas mais à esquerda.

— Quem disse, seu novo namorado? — brinquei. Já me


sentia cada vez mais íntimo dela. Sua companhia me deixava bem,
apesar de o motivo de tê-la não ser bom. — Ele se foi?

— Sim — respondeu, tentando se recompor das risadas.

Quando encontramos as frutas, Maíra parecia uma criança


esfomeada se lambuzando, de modo que me fez lembrar do dia em
que a conheci no jardim de sua casa.

— O que foi? — perguntou enquanto caminhava querendo


algo mais. Sua fome parecia insaciável.

— Eu lembrei do dia em que te vi pela primeira vez.


— Hum... Eu almocei um carneiro delicioso naquele dia.
Queria tanto um agora... quer dizer... me desculpa... — ficou
constrangida.

— Te desculpar pelo quê?

— Porque você cuida dos animais. — Olhava bem dentro de


meus olhos.

— Não tem problema se alimentar de um animal. Só não pode


matá-los por prazer — expliquei.

— Olha, achei cogumelos... Esses eu tenho certeza que


podemos comer — Maíra disse empolgada com um sorriso tão largo,
novamente com aspecto de infância.

— Eu vou acender o fogo para cozinharmos eles — falei a


observando e a admirando por se importar com o que eu prezava. Já
estava fascinado.
6 REVELAÇÕES

Depois de nos alimentarmos, resolvemos descansar. As


sombras das árvores estavam nos atraindo, nos deixando com sono,
então recostamos cada um em troncos diferentes e começamos a
conversar.

— Ainda está com frio e irritada? — perguntei com sarcasmo.

— Pelo contrário, já estou com muito calor. Fiquei bem


próxima à fogueira enquanto comíamos.

— Que bom! Me desculpa dar a entender que te olharia. Eu


deveria ter considerado a sua pureza. Sei que isso faz parte da
crença do seu povo — disse a ela, me referindo às tradições de
casamento que eu não assimilava muito bem. Logo depois, percebi o
seu semblante mudar e quando desviou seu rosto da minha direção.

— Não sou mais pura — falou, cabisbaixa.

Reparei seus olhos molhados e a luta contra seus


pensamentos. Tentava imaginar outras coisas para não me revelar.
Eu sentia que estava envergonhada. Parecia ter se arrependido de
contar, mas ao mesmo tempo tinha a necessidade de desabafar.

— O que aconteceu? Você não queria? — indaguei já certo da


resposta, mas queria saber quem tinha feito esse mal a ela.

— Eu não queria... Meu noivo me forçou. Nós caminhávamos


na floresta e... aconteceu.

Maíra parou por instante de falar para controlar sua voz, que
mudava ao surgir a vontade de chorar. Ela queria se convencer de
que havia superado. Então engoliu o choro e continuou a falar: —
Está tudo bem. Já passou.

— Eu não entendo porque os humanos são tão maus. Como


podem fazer algo a sua própria espécie? — falei indignado, com
raiva.

— Nem todos são assim — defendeu enquanto pensava em


seu pai, o responsável por arquitetar guerras em prol da Coroa.
Maíra ainda não conseguia enxergar como isso era contraditório. —
Você acha que Arlo poderia tentar me matar?

— Já havia cogitado ser ele. Você disse que o ama. Como


pode amar alguém que te fez isso? — indaguei. Maíra não me
respondeu, entretanto, entendi que havia mentido para mim. —
Precisamos compreender a visão. Estamos fugindo, sem saber de
quem e para onde — disse reflexivo. — A sereia falou sobre amar o
que não deveria e mexer com forças maiores. Você mexe com
bruxaria?

— Você acha que sou uma bruxa? — ofendeu-se.

— Eu não sei. Não te conheço. Mas estou me arriscando por


você.

— Sabe de uma coisa? Não precisa! É meu destino, não é? —


tagarelou, irritada.

— Não vou deixar você sozinha... eu só acho tudo estranho.


Até o que aconteceu a você e seu noivo...

— Pois bem, para sua surpresa, isso é bem normal entre os


humanos.

Então ficamos nos encarando por alguns segundos.


Desconfiávamos um do outro.

— Por que não me mandaram fazer nada? Nós somos


responsáveis pela segurança na floresta. Não recebi ordem —
perguntei a mim mesmo, em voz alta.

Os deuses da floresta nos avisavam sobre tragédias que


poderíamos evitar. Estávamos ali a séculos cumprindo nosso papel
de guardiões. Muita coisa mudou com a chegada dos estrangeiros.
Eram numerosos, não se preocupavam em destruir tudo, não tinham
temor algum.
— Eu não sei. Mas sei que não sou uma bruxa.

— Me desculpa. Eu só queria desvendar esse enigma, para o


seu próprio bem — disse arrependido, mas sem me importar se de
fato era uma. Eu só queria saber a verdade.

— Talvez não fosse pra você me defender. Talvez outro


Kuru'pir ou... Qual o nome dos outros mesmo? — perguntou.

— Chullachaqui e caapora.

— É... isso. Talvez um outro de vocês devesse me defender,


mas estava ocupado. Sei lá... — falou, mais calma.

Maíra sem querer me fez pensar na possibilidade de alguém


ter descumprido algo. Havíamos encontrado uma área devastada na
noite anterior. Era um sinal de que alguma coisa grande estava
acontecendo. Eu não sabia se poderia ter alguma ligação a ela. Mas
era nítido que eu deveria me preparar para uma traição em meio ao
meu povo.

— Está tudo bem. Não precisa ficar com essa cara de bravo
— disse ao se levantar e sentar ao meu lado. Depois disso, me
surpreendeu ao acariciar meu rosto enquanto olhava em meus olhos.
Parecia tentar fazer comigo o que eu estava fazendo a ela, lendo sua
mente.

— Acho melhor não — interferi, retirando sua mão.

— Por quê? — sussurrou, se aproximando cada vez mais.


Ela não tinha o controle de seus desejos por mim. Eu
implantava automaticamente um encanto, um tipo de sedução. Era
algo que alguns da espécie possuíam. Eu não podia correspondê-la,
seria desrespeitoso com ela. Então desviei o meu rosto e levantei.

— Vou dar uma volta.

— Vai me deixar sozinha? — ela retrucou.

— Eu acho que aqui não tem perigo — desconversei.

— Você acha? — indagou ela, se levantando e batendo o


vestido. — Cadê aquele herói que me raptou no meio da noite a fim
de me proteger? — ironizou. — Não se preocupe, não irei te atacar.
De qualquer forma, eu acho que podemos ir. Já descansei o
suficiente. — Maíra subiu no cavalo antes mesmo que eu pudesse
concordar com o que disse.

—Tudo bem, eu vou a pé, estou cansado de cavalgar —


respondi. Ela sacudiu os ombros.
7 O MAL QUE TE HABITA

Mais um pouco à frente chegamos em uma clareira, onde vivia


uma pequena tribo. Estava certo de que poderíamos ficar lá por uma
noite. Há uns anos eu tinha salvado o filho do pajé, quando foi
atacado por um lobo. E sabia o quanto era grato por esse ato.

Quando os nativos me viram se alegraram. As crianças vieram


e me abraçaram, os guerreiros me cumprimentaram e as mulheres
da tribo começaram a me pintar, me colocar colares. Maíra estava
com o semblante confuso e curioso.

Ao nos aproximarmos da oca, onde se encontrava o líder,


desceu do cavalo.
— Liam, por que eles estão tão felizes com a sua presença?
— perguntou ela.

Mas antes que eu a respondesse, Aiwá, o pajé, nos chamou


para dentro de sua casa. Ele veio me cumprimentar sorridente e
quando a viu, deu um passo para trás.

— Por que ela está aqui? — perguntou ele.

Eu não tinha entendido sua reação. Maíra, assustada, logo me


deu a mão.

— É seu? — continuou apavorado.

— Do que está falando? — indaguei intrigado, pois não


conseguia ler sua mente. Estava bloqueada por magia.

— Ela gera o mal — Apontava para sua barriga. Maíra e eu


nos olhamos. E logo me voltei novamente para o Aiwá.

— Não é meu — respondi, preocupado. — Eu posso falar o


que me contou? — dirigi a ela.

Maíra confirmou com a cabeça, aflita. Seus pensamentos


eram diversos.

— O noivo a forçou. O filho é dele.

Sua mão suava, me apertando cada vez mais. Ela foi se


aproximando até encostar seu braço no meu. Pude perceber sua
respiração rápida. Sentia o seu medo.

— Eles vão fazer alguma coisa comigo? — falou baixinho,


como os olhos arregalados e marejados. — Você não vai deixar, não
é?

Naquele momento seu rosto estava tão perto do meu. Eu senti


a quentura do seu hálito e pensei no que poderia ter acontecido na
floresta entre mim e ela, se eu não a tivesse rejeitado. Estava
apaixonado. Não deixaria que a pegassem.

— Não vou deixar. Não se preocupe — sussurrei.

O líder da tribo interrompeu o nosso cochicho: — Vocês


precisam se livrar disso. Vou preparar algumas ervas e matá-lo.

— O quê? É só uma criança! —Maíra se indignou. — Não


posso deixar que faça isso. Ela não tem culpa de como foi gerada —
implorou me olhando, esperando que eu interferisse na decisão do
nativo.

Em seguida, pressionei sua mão e falei diretamente com o


Aiwá: — Eu só te peço pra ficar essa noite. Depois daremos um jeito
na criança.

— Não é uma criança. — O líder nativo parecia em transe. —


Fiquem essa noite — disse, fazendo um gesto duvidoso aos seus
guerreiros. Então saímos da oca.

— Não vamos ficar, não é? — perguntou, ainda segurando


minha mão.
— Não. Só vou pegar o meu cavalo e logo fugiremos. Coloque
o capuz de volta. Eles não vão te enxergar.

— O quê? Então... é só isso e eu fico invisível? —


surpreendeu-se.

— Sim. Sempre que precisar cubra a cabeça. — expliquei, e a


vi maravilhada.

— Mas e você?

— Espero não ter que lutar. — Observava o entorno. — Fique


aqui. Irei pegar o cavalo.

O animal estava amarrado à árvore, próximo a oca do chefe


da tribo, e presos na sela, o meu arco e minha aljava. Eu não podia
passar pelo meio da aldeia sem ser notado. Fiquei analisando e
esperando o momento ideal, até que uma menininha bateu em minha
perna.

— Uma moça mandou te entregar — disse a pequena nativa.


A menina me entregou a capa. Achei estranho e logo olhei pra trás,
procurando por Maíra.

— Onde está ela? — indaguei ansioso. Vai se meter em


encrenca, cogitava. Abaixei-me, ficando na altura da indiazinha.

— Eu não posso falar pra ninguém. A moça disse que vai até
você quando chegar com o cavalo — respondeu.
— E realmente não irá contar, né? — instiguei a fim de
analisar sua mente.

— Não, moço. Ela fez essa trança em mim e me deu esse


laço em troca — falou, sorridente. Suas intenções eram boas.

Vesti a capa e retirei o cavalo da árvore. Contornei a aldeia,


para que não fosse facilmente notado. Afinal, aquela tribo já me
conhecia e sabia das minhas artimanhas.

Logo quando cheguei ao lugar combinado, senti algo caindo


em mim. Eram algumas pedrinhas vindas de cima da árvore. Maíra
não me via, por isso a maioria delas caiu no animal. Ela se
encontrava apenas com as famosas roupas de baixo no alto de uma
árvore. Tirei o capuz e sorri para ela.

— Ué? E o vestido? — perguntei em um tom de deboche.

— Estava difícil subir — respondeu ao descer. — Por que


esse sorrisinho? Era ele ou nossas vidas. — justificou-se. — Deixei
ele aqui perto. Vamos, antes que nos encontrem! — Saiu andando
como se há pouco tempo, usar somente as poucas roupas, não
fosse um problema.
8 O VISITANTE INDESEJÁVEL

— Aqui deve ser seguro — falei ao avistar uma gruta.

— Será que eles virão atrás de mim?

— Espero que não. Não sei porque sua gravidez afetaria a


eles... Mas de qualquer forma, estamos bem longe da aldeia — disse
otimista, porém dessa vez carreguei comigo minhas armas.

Descemos do cavalo e o prendi na jabuticabeira que crescia


em meio às pedras. Embora ficasse um pouco distante da gruta, era
possível enxergá-lo e ver se estava bem, sempre que eu quisesse.
Um pouco depois de entrarmos na pequena caverna, o sol já
tinha se posto e estávamos cansados, com sono. Deitamos próximo
ao outro e resolvemos ficar apenas com a claridade da lua que
entrava no local, pois não queríamos chamar atenção, caso alguém
estivesse atrás de nós. De repente, um intenso frio inundou o espaço
e logo, um grande veado branco apareceu na entrada, nos
observando.

Maíra se encolheu junto a mim, parecia estar com bastante


medo, assim como eu.

— Vai embora... — disse, descrente de que meu pedido


mudaria algo. Nada aconteceu. O animal permaneceu imóvel, nos
encarando. — Não faça nada! Ela está grávida — intercedi pela vida
de Maíra.

— O que está acontecendo? — perguntou ela, me puxando.

Não a respondi. Não tinha tempo, precisava convencê-lo


urgentemente. Então retirei a mão de Maíra de meu braço e me
agachei junto ao veado, tentando manter um contato visual. Percebi
que seus olhos não estavam acesos, do contrário eu teria
enlouquecido.

— Ela está grávida. Eu sei que você protege as grávidas.

Então o animal se virou e desceu a gruta. O segui até a


entrada e vi quando ele voltou a ter o aspecto de um homem. Ele
tinha a pele acobreada, era alto e forte. Estava praticamente nu, mas
coberto por tatuagens.
Maíra estava aterrorizada. Se levantou e me chamando para
dentro.

— Me diz o que foi isso. Não era um animal? Ele queria me


matar? Eu achei que aquela história de morte seria através de Arlo
— falou quase que incessantemente, andando de um lado para o
outro.

— Não era um animal — respondi, sentindo uma grande


exaustão. Aquele pequeno diálogo tinha me sobrecarregado
espiritualmente. — Eu continuo achando que pode ser Arlo. Ele é o
responsável por tudo isso — tinha certeza.

— A essa altura ele seria só mais um. Eu não sei o que


devemos fazer. — Parou a caminhada intensa e fitou sua barriga,
tristonha. — Por que o nascimento dessa criança seria tão ruim
assim?

Então se aproximou, olhou profundamente em meus olhos e


não disse nada, apenas pensou. “Você vai me proteger ou vai
desistir? Está correndo risco por minha causa.”

Eu sabia que estava em risco e que talvez estivesse


escolhendo o caminho errado. Com certeza o que ela carregava não
era normal. O Deus do submundo não teria aparecido simplesmente
por uma criança comum.

— Aquele era Anhangá. Ele é um deus — expliquei a ela,


encostando na parede de pedra.

— Anhan-gá? — franziu a testa, tentando pronunciar seu


nome. Assenti. — Mas por que você falou sobre a minha gravidez?
Os nativos queriam que eu abortasse. Por que ele iria querer o
contrário?

— Ele vive no submundo, mas protege os animais da floresta.


Principalmente as fêmeas grávidas. Imaginei que dizer sobre sua
gravidez talvez acharia graça aos olhos dele — contava sobre a
minha suposição.

— Me comparou a um animal? — Fez uma cara brava,


parecendo tentar me intimidar, entretanto, achei ela ainda mais linda.

— Eu precisava tentar... — sorri, gentil.

— Então ele não é mal? — ela estava aliviada. Uma pena ter
que dar a má notícia.

— Ele é responsável pelo mundo dos mortos. Isso já não é


boa coisa. Temos que tomar cuidado. Ele pode se transformar em
qualquer animal, talvez até pessoa... Mas acho que não veio te matar
e sim, vigiar. Eu não teria o poder de fazê-lo mudar de opinião.

— E se o meu bebê fizer algo de ruim? Se um dia ele se


tornar um caçador ou algo do tipo? — cogitava com a inocência de
quem não tinha noção nenhuma do verdadeiro mundo que existia.

— Existem milhões de caçadores. Nós somos responsáveis


por proteger os animais. Mas nunca tivemos que evitar o nascimento
de algum deles. Não acho que uma criança venha ao mundo
predestinada a matar. E ele veio pessoalmente... isso é muito
estranho. — falei, refletindo sobre tudo. — Mas se fosse um
metamorfo? Talvez um chullachaqui fingindo ser Anhangá... Lembra
que conversamos sobre você não ter sido defendida quando seu
noivo... — hesitei, quis poupar sua dor, porém não tinha uma forma
de amenizá-la. — Quando te machucou? Acho que alguém queria
que você engravidasse e veio conferir.

Maíra me ouvia, mas parecia não entender nada. Pensava em


muitas coisas ao mesmo tempo.

— E nos encontrou facilmente... — disse desanimada, com


olhar distante.

— Eu sei, isso é pavoroso — admiti, sentindo-me fraco. —


Não sei se consigo te proteger sozinho — continuei a falar e vi a sua
feição mudar. A esperança que enxergava em seus olhos
desapareceu em segundos.

— Eu sinto que vai acontecer a qualquer momento — Maíra


falou e se sentou, curvando sua cabeça, não me permitindo olhá-la.

— Eu não vou desistir de você... Olha pra mim. — disse, me


abaixando e levantando seu rosto pelo queixo. — Não importa se eu
estarei em risco. Eu vou proteger você.

— Por quê? Os deuses não te pediram nada. — Sua voz


embargava e eu já notava as primeiras lágrimas surgindo.

— Me sinto ligado a você. Eu não sei por qual motivo, mas


existe algo maior. — Segurei uma de suas mãos.

Maíra acariciou meu rosto e falou emotiva: — Você sabia que


eu comecei a pintar por sua causa? Desde aquela tarde que eu te vi,
você aparecia em todos os meus quadros. Minha mãe me achava
louca porque eu dizia que o homem das telas estava em nosso
jardim — contou, sorrindo. — Você sempre esteve lá, não esteve?
Uma vez, quando eu tinha uns 15 anos, eu briguei com minha mãe e
fugi para a floresta. Ela foi atrás de mim, mas eu subi na árvore e me
escondi. Eu lembro que apareceu uma onça e eu não podia descer.
E ficou tarde...

Enquanto ela falava, me recordava do dia e a interrompi com


uma suave gargalhada. — Fui eu sim... Você desceu e correu, meio
louca por sinal — zombei. — A onça estava dormindo, mas o barulho
do seu pulo no chão acabou acordando ela.

— Isso. Eu só vi um vulto e ela sumiu. — disse com os olhos


fixos aos meus.

— Eu saltei sobre ela e capotamos ladeira abaixo.

Então começamos a rir da situação. Rimos tanto e de repente


um silêncio tomou conta da gruta. Ficamos ali nos encarando por
alguns segundos. Até Maíra segurar meu rosto com suas mãos
macias e me beijar. Não pude resistir. Passei meus dedos pelos seus
cabelos, chegando à nuca e fomos nos deitando devagar. Ela sorriu
com um sorriso tão suave, o qual me fez esquecer do que
passávamos. Eu sondava seus pensamentos e sabia o que queria.
Contudo, não podia tê-la naquele momento. Então aos poucos fui me
perdendo em seu olhar, que me acalmou tanto e me fez descansar.

— Liam... — chamou baixinho.

— Hum... — respondi de olhos fechados, sonolento.

— Você não me quer? — Senti seu nariz encostando em


meus lábios.
Não consegui respondê-la. Já estava entrando em um sono
profundo.
9 ALGUÉM NÃO FALOU A VERDADE

Algumas horas depois, Maíra me acordou aos prantos. Disse


que estava sentindo um incômodo na barriga. Que havia algo de
errado.

— Eu ouvi minha coluna estalar. Eles devem estar certo. Senti


mexer, não era para acontecer isso agora — gemia, se contraindo e
suava muito. — Parece que está me rasgando por dentro.

— Calma, respira fundo. Tenta se deitar. — Eu estava


preocupado, sem saber o que fazer.

— Não... não... deitada estava pior. — Apertou meu


antebraço, mordendo seu lábio. Sentia-me um inútil.
De repente reparei um movimento ondular em sua barriga.
Assustei-me e analisei seu rosto, quis confirmar se ela havia
percebido e não só sentido.

— Você viu? — perguntei, intrigado. Era praticamente óbvio.

— Sim, já é a quarta vez que acontece — chorava.

Então toquei sua barriga. Na mesma hora, aquilo que estava


dentro dela, me empurrou. Seu abdômen se dilatava rapidamente.
Nunca tinha presenciado algo assim.

— Me desculpa. Eu coloquei eles contra você — disse,


soluçando.

— Você não tem culpa — suspirei, compreensivo. — Arlo... o


que ele é? Notou algo estranho nele? — desconfiei que seu noivo
não fosse humano, pois certamente o bebê não era.

— Você está perguntando se ele é diferente de mim? —


ofegava. Confirmei com um gesto. — Apesar de ter me ferido, ele
parece ser normal. Minha mãe me disse que isso acontece... Que eu
tive sorte em ter sido com quem eu me casaria — Maíra falou com
um ar de revolta em sua voz.

— Isso acontece? — Respirei fundo. Refleti sobre os


pensamentos de sua mãe. Era provável que já tivesse passado por
algo parecido. Humanos... — Então isso não deveria acontecer, a
não ser que...

— Você acha que eu não sou humana? — indagou, ofendida.


Sua dor já parecia ter diminuído.
— Muitas vezes não percebemos o que somos — expliquei,
tentando evitar briga.

— Como você, né? — falou, agressiva. Tarde demais, pensei.


— Se é possível eu não saber o que sou, como teria certeza se Arlo
de fato é humano? — Olhou para mim, com sangue nos olhos.

— Tem razão. Me desculpa! Mas saiba que pra mim não teria
problema você não ser humana. Também não sou.

Depois do nosso diálogo, me levantei e fui até a entrada da


gruta. Eu estava ouvindo alguns pensamentos, acreditei que teriam
pessoas próximas de lá.

— O que foi? — perguntou Maíra, se levantando.

— Alguns soldados estão passando aqui perto.

De repente eu ouvi alguns chamarem pelo seu nome. Era o


exército de seu pai. Já haviam se passado 28 horas do seu sumiço.
Maíra colocou a minha capa e se aproximou da entrada, cobrindo-se
com o capuz.

— Ai meu Deus, é o Arlo! — disse apavorada.

— Qual deles? — indaguei, sentindo toda minha carne


começar a aquecer.

— É o que está na frente com uma tocha na mão, no cavalo


preto. — Sua voz estava trêmula. Ela retirou o capuz, se afastando
para que eu a enxergasse. Sua postura encurvada, me mostrava o
quão frágil era. Mas eu a defenderia.

— Coloque o capuz e não saia daqui! Eu vou matá-lo! —


ordenei, obcecado.

— Você não pode fazer isso — repreendeu-me com seus


olhos azuis arregalados.

— Ele te machucou! — Meu rosto fervia.

— Seus olhos... tem fogo neles — avisou, parecendo


hipnotizada. — Eles vão te matar, Liam. São muitos... — disse ao
segurar meu braço e logo o soltou. — Minha mão! A sua pele me
queimou!

Eu nunca havia feito aquilo ou pelo menos, não que eu tivesse


percebido.

— Se cubra agora! — mandei.

Peguei o meu arco e minha aljava e desci obstinado a fazer


justiça. Não me importava de fazer a todos, o mesmo que faria a
Arlo, caso fosse necessário. Mas o meu objetivo era ludibriá-lo e
deixá-lo sozinho. Então me aproximei deles o suficiente para acessar
a mente de seu noivo.

—"Arlo..." — manipulava seus pensamentos, tentando atraí-lo


a um local íngreme com muitas rochas. Eu podia ouvir e fazer com
que os seres ouvissem a minha mente. Quis que minha voz
parecesse, para ele, uma intuição. — "Ela está aqui. Escorregou e
está presa nas pedras" — continuei a enganá-lo.
Pude vê-lo de longe, se afastando do exército e se achegando
a árvore em que eu me escondia, onde eu realmente precisava que
estivesse. Ele esticou a tocha, analisando o entorno antes de descer.
Simplesmente assoprei e sem esforço algum, o fogo se apagou.

Foi quando saltei da mesma e por trás o segurei, fazendo-o se


inclinar para frente. Antes de jogá-lo, quis me certificar o que ele era.
Poderia descobrir a solução. Saber o tipo de ser que ela gerava.
Então o girei e ainda o deixando pendurado, cobri sua boca, com a
outra mão.

— Se você gritar, sua morte vai ser ainda mais dolorosa.


Entendeu? — falei irado, com repulsa pelos seus atos. Arlo afirmou
com a cabeça.

— O que você é? E por que violou Maíra? — perguntei e


destapei sua boca.

— O quê? — surpreendeu-se.

Eu estava consumido por ódio, nessa hora o tirei do chão e o


posicionei totalmente sobre o penhasco. Aquele homem grande
começou a chorar e a me implorar.

— Eu... eu... eu não sei do que você está falando. Eu juro...


Por favor... não me mate, eu não fiz nada! Nem conheço você.

Eu não entendia o que estava acontecendo. Lia o seu


pensamento e via que o que ele dizia parecia ser verdade.

— Quem é você? É namorado dela? Eu juro, eu não sabia... o


pai dela quis que ficássemos noivo. Eu vou deixá-la. Só me coloque
no chão, por favor! — continuava a sua petição.

O que aconteceu a Maíra? Isso não saía da minha cabeça.


Será que a menina mentiu?

— Maíra falou sobre isso no jantar de noivado... Que eu a


violei. Ela está mentindo, não sei porquê. Acabei me descontrolando,
dei um tapa em seu rosto. Me senti muito mal com isso. Mas eu
juro... juro que eu não toquei nela de outra forma — contou, ainda
chorando. Engoli em seco.

Eu acreditei nele e o coloquei no chão. Não disse uma palavra


enquanto ele explicava. Estava estarrecido por não entender o que
tinha ocorrido. Por não saber se podia confiar em Maíra. E se
realmente ela não for humana? E se eu chegar na gruta e ela tiver
desaparecido? Será que desde o início sabia que não gerava uma
criança e só quis me usar?

— Muito obrigado! —Arlo falou, se afastando. E em questão


de segundos não o vi mais.

Corri. Corri o mais depressa que conseguia até a gruta.


Quando cheguei, gritei seu nome. Estava nervoso, ofegante. Não
havia sinal nenhum dela. Mas lentamente, eu fui a enxergando.
Ainda usava o capuz. Aproximou-se rapidamente e me abraçou.
Mesmo não sabendo a verdade, uma paz tomou conta de mim.

— Você o matou? — perguntou, parecendo incerta da


resposta que queria ouvir, com as mãos envolvendo o meu pescoço.

— Não! — Pensava se eu deveria falar que acreditava em


Arlo. Hesitei, porém o “não” foi o suficiente para se desencostar de
mim.

Maíra suspirou reflexiva e olhou para baixo. Logo entendi que


queria me mostrar algo. Sua barriga havia crescido um pouco mais.

— Você sentiu muita dor? — preocupei-me.

— Sim, foi horrível! Não pude gritar, eles estavam aqui nessa
hora. — disse e expôs seu braço. Possuía uma mordida muito
profunda. — Eu precisei me conter dessa forma — falou, se
aninhando novamente em meu peito. Meu coração ficou dividido. —
Que bom que está bem!

— Que bom que está bem, também! — Acariciei seu rosto,


mas duvidando se a minha confiança ainda deveria pertencer a ela.
10 QUEM SOMOS

Depois que os soldados se afastaram, decidimos continuar a


nossa jornada. Fomos até o cavalo e não o encontramos. Eles o
levaram.

— Droga! Droga! — disse ele, revoltado. Caminhava de um


lado ao outro, esbaforido, com sua aljava e arco presos no braço. Em
determinados momentos chegou a socar alguns troncos de árvore.

— A gente... a gente vai dar um jeito. — Tentei acalmá-lo.


Estava assustada com sua mudança brusca de humor. Não
imaginava que ele era tão ligado ao animal.
— Não é só isso... Era o meu cavalo. Poxa! Encontrei ele há
pouco tempo... Nem cheguei a dar um nome a ele — resmungou
com a respiração descompassada, devido a performance raivosa.

— Isso deve ser de família — falei para descontrair, porém


Liam me olhou sério, com o mesmo brilho nos olhos que eu avistara
na gruta. Não sabia o que ele podia fazer. Tinha certeza que possuía
poderes, contudo, temia que acabasse os usando contra mim. Eu
havia notado algo diferente em seu comportamento. Estava menos
atencioso, não falou muito desde que se encontrou com Arlo. Talvez
ele o tivesse matado, mas não quis me contar por algum motivo.

— Vai me matar? — perguntei a ele. Infelizmente não podia


ver o que pensava, precisei apelar para sua expressão corporal.

— O quê? — respondeu com um certo espanto, desconfiado.


Será que a minha pergunta foi coerente ou sem lógica?, refletia. Mas
algo me dizia que meu tempo junto a Liam estava terminando.

— Por que não matou Arlo? — fiquei receosa.

— Não me pareceu certo fazer isso — disse depois de uma


pequena pausa entre nossos olhares.

— E por que não?

Ele simplesmente me fitou e permaneceu calado. Estava


começando a suspeitar dele. E se não for o Liam de verdade? Tudo
que me contou sobre deuses e outros seres da floresta estava me
deixando confusa. Comecei a cogitar uma fuga. Me sentia em perigo,
ainda mais pela desvantagem que eu tinha, minha mente estava
exposta. Precisei pensar em coisas aleatórias para despistá-lo.
— Estou com fome. — Foi a primeira ideia que me ocorreu.
Liam não disse nada, mas percebi que estava procurando alguma
coisa. Deveria ser para eu comer.

— Ali... um pouco a frente acho que tem um pé de goiaba —


mostrou o local, se afastando. — Você pega ou eu pego?

— Sério que vai me fazer subir com essa barriga? — sorri. Eu


estava lutando com meus pensamentos. Torcia para que não
estivesse me analisando. Queria parecer o mais natural possível,
mas senti que exibia o sorriso mais falso do mundo.

Liam subiu na árvore e começou a retirar algumas frutas. O


meu objetivo era distraí-lo, para que eu pudesse correr. Desconhecia
para onde, entretanto, imaginei que já soubesse da minha
desconfiança, logo era fundamental fugir. Cobri-me com o capuz e
caminhei bem devagar no sentido oposto. Nessa hora alguma coisa
me dizia que uma canção me concentraria, camuflando meus
sentimentos e sensações. Decidi entoar um cântico de ninar, um que
a minha babá havia me ensinado quando pequena. Ouvi o som de
sua voz, mas não pude compreender o que falava, já estava longe.
Então corri como eu corria quando criança. Não existia destino ao
certo, mas sabia que para ter um, deveria ir o mais distante possível.

Em pouco tempo de corrida já não conseguia manter o ritmo.


Meu corpo estava pesado e eu tropeçava toda hora por olhar para
trás, a fim de conferir se ele me seguia. E de repente, pisei em uma
enorme poça de lama, que em segundos começou a me tragar. Era
pior do que pensava, uma areia movediça. Passei a enxergar coisas
estranhas. Algumas mãos pareciam sair do chão. Fiquei observando
tudo sem ação. Pensei estar alucinando, mas como as coisas menos
prováveis na floresta eram tão reais, não duvidaria também dessas.
Quando pensei em gritar, percebi que já me encontrava com a
boca abaixo do nível do solo. Brevemente eu perderia o fôlego. Em
seguida, fechei os meus olhos e tentei a única coisa que poderia,
chamar Liam através do meu pensamento e torcer para que
estivesse por perto, já que não sabia a que alcance chegaria o meu
pedido de socorro. Meus braços ainda estavam para fora, meu rosto
já estava praticamente coberto, não conseguia respirar, estava
completamente paralisada. Foi quando alguém me retirou da morte.
Ao abrir os olhos me deparei com um homem de cabelos vermelhos,
mas não era ele. Parecia bem mais velho.

— Você está bem? — perguntou o ruivo desconhecido.

— Estou sim. Obrigada. — respondi, tentando esconder a


barriga o máximo possível. — Você é um Kuru'pir? — indaguei,
intrigada.

— Sim. E Você é humana? — falou com um ar surpreso.


Suspeitei que teria sido melhor fingir não saber de nada.

— Sou sim — disse, meio insegura.

— Venha comigo. Tem alguém que gostaria de conhecer uma


humana. — Ele me puxou pelo braço e não houve tempo para
colocar o capuz.

Depois de andar por alguns minutos, atravessamos uma rocha


que tinha sua entrada encoberta por trepadeiras, a qual dava acesso
ao outro lado da floresta. Mas não era a mesma.

Então eu vi uma enorme árvore, que se movimentava. Não


estava presa ao chão. Tinha uma abertura em seu tronco e, quando
me aproximei, vi que havia um ser no interior dela. Era uma mulher,
entretanto não era normal. Sua pele tinha um tom esverdeado. Seus
cabelos eram lisos, longos e mais vermelhos. Era nítido que suas
orelhas eram pontudas. A mulher parecia alguma autoridade. Será
que é ela quem dá as ordens na floresta? Depois de um tempo a
admirando e analisando toda beleza daquele lugar, ela interrompeu
os meus pensamentos.

— Sim, sou eu quem dá as ordens por aqui, mas não sou


quem sempre fala com eles. Uso animais, plantas, outros deuses...
— gabava-se, até que percebi a sua indignação. — O que é isso?! O
que é isso! — manifestou-se em uma altura ensurdecedora.

Não suportei aquele som, reparei que escorria algo do meu


ouvido esquerdo. Coloquei minhas mãos e vislumbrei meu sangue.
Fiquei tão assustada, me sentindo enjoada. Mas logo alguém
segurou o meu braço, se colocando entre mim e ela. Era Liam...

— Yáci? — questionou a mulher ao se aproximar, tocando seu


rosto. Liam parecia confuso.

— Não sou essa pessoa — disse apressado. — Quem é


você? É uma Caapora?

— Sou sim. Não estou acreditando... — continuou a


autoridade. — É o filho dele. Eu achei que tivesse morrido com sua
mãe.

— Você conhecia minha mãe e meu pai? Quem é você? —


Liam ainda estava espantado.
Eu me afastei um pouco, pois o medo me assolava, assim
como a tontura.

— Eu sou a líder da floresta e mais do que isso para você.


Conheci o seu lindo pai. E você é tão lindo quanto. — disse,
acariciando seus ombros e o rodeando. — Você sabe o que você é?
— a caapora sorria, parecendo tentar seduzi-lo.

Liam permaneceu em silêncio, intrigado. Então vi a líder


arregalar os olhos e falar uma língua que eu não entendia, em seu
ouvido. Ele se afastou atordoado.

— Eu não sou não! — rebateu com a voz firme.

Meu ouvido zunia, fazendo minha cabeça doer intensamente,


de modo que me desequilibrei e desmaiei.

Quando acordei, estava em um lugar que parecia o interior da


grande árvore. Suas paredes eram arredondadas, com tons
dourados. Liam estava sentado à beira da cama em que me
repousaram, debruçado sobre mim. Dizia alguma coisa que não
conseguia entender, pois ainda estava meio zonza. Eu podia ouvir
mais alguém falando com ele.

— Você está me escutando? — perguntou. —Está tudo bem?

— Está sim — respondi. Eu não sentia mais dor nenhuma e


estava feliz em vê-lo. Naquele momento percebi que havia tido uma
impressão errada a seu respeito. — Você conhecia esse lugar?
Como me achou?
— Não conhecia — acariciava o meu rosto. — Eu ouvi quando
me chamou e quando ia te salvar, um Kuru'pir se antecipou. Ainda
bem, porque acho que não chegaria a tempo. Tive medo de te
perder. — sorriu levemente. Como gosto do seu sorriso, suspirei. —
Depois segui vocês.

— O que você é? Ela te perguntou se você sabia o que era. —


Estava muito curiosa. Tentei me levantar, porém me impediu
docemente.

— Sou um deus, filho de Yáci com uma caapora — contava.


Fiquei boquiaberta instantaneamente. Provavelmente com cara de
boba. — O nome da minha mãe era Keiná. Descobri que caaporas
também são deuses, por isso são raros. Ainda estou tentando
assimilar isso. — sorriu, desconcertado.

— Uau! Um Deus? — admirei-lhe. — Você realmente parece


um — disse alisando seu rosto. Ele segurou minha mão e a beijou.

Então, por trás de Liam, falou a Caapora: — Eu preciso


entregar uma coisa que seu pai deixou comigo.

— Ah... Ela é Kouka. É irmã da minha mãe. Eram gêmeas —


explicava, mas foi interrompido.

— Como você, não é mesmo, Maíra? — a caapora


questionou, como se eu escondesse algo. Liam olhou para ela,
depois para mim e respirou fundo. Sentei-me com dificuldade, sendo
auxiliada pelo novo deus.

— Isso. Eu tinha uma irmã que morreu em um acidente... —


Qual problema?, pensei inquieta.
— Não foi um acidente. O homem que te criou a matou —
acusou a Caapora.

— Do que você está falando? — exigia ser esclarecida, com


raiva. Como ela pode falar da minha vida assim? Não me conhece.
Eu me sinto enganada. O homem que eu tinha como pai não é meu
pai. E ainda por cima, não é um bom homem. Ela pode estar
tentando me manipular de alguma forma, supunha. — Você está
mentindo! — afirmei, mesmo incrédula, ao me levantar da cama.

Liam, ainda sentado, me olhou com pena. Era notório que


acreditava naquela mulher. Eu queria que pedisse para sua tia parar
de me injuriar, mas isso ele não faria. Além de ser da família, era sua
líder.

— Você é uma feiticeira. Diferente de sua irmã, você pegou o


dom de seu pai verdadeiro — a caapora falou com maior
naturalidade. Fiquei parada indignada. E Liam, sentado, segurou
minha mão.

— Você acredita nela? — perguntei, olhando fixamente em


seus olhos.

— Acredito — disse com tristeza em sua voz.

Puxei minha mão, pois me senti sozinha. E ela continuou a


falar com frieza.

— Seu pai era um condenado que veio no navio para


trabalhar, junto com ladrões e assassinos. Ele teve relações com sua
mãe antes da viagem.
Nessa hora entendi o que minha mãe havia dito em relação a
Arlo. Comecei a chorar. Tudo que eu tinha vivido era uma grande
mentira. Eu não era a filha do conde. Meu coração apertava
suprimindo o ar que eu inspirava. Achei que desmaiaria novamente.
Que agonia!

Liam se levantou e me abraçou. Não disse absolutamente


nada, apenas encostou sua testa na minha e ficamos assim por uns
segundos. Consegui controlar a ansiedade que me invadia.

Logo depois sua tia o chamou e lhe entregou um cajado, havia


sido de seu pai. Vi que começaram a falar em outra língua, bem
baixo. Depois o colocou preso às costas, junto ao arco e aljava.

— Você precisa fazer alguma coisa — disse a ele,


complementando a fala anterior.

— Quando chegar a hora eu faço — Liam respondeu a ela. —


Vamos? — chamou-me, estendendo sua mão.

Sua tia me fitou, parecendo me achar repugnante. Desviei o


olhar e segurei a mão de Liam. Não sabia o que significava "fazer
algo". O que eles tinham conversado? Tentei ignorar o medo de tudo
e de todos e seguir em frente.
11 ESTE É O SANGUE QUE EU TENHO

Andando para a saída da Floresta Secreta, eu reparava no


rosto de Maíra. Parecia reflexiva, estava calada. Era compreensível,
fomos bombardeados de assuntos familiares mal resolvidos. Mas
logo se voltou para mim e perguntou: — Se você é um Deus, deve
ter mais poderes do que imagina.

— Não sei, acho que não. Apenas sou forte — respondi.

— E lê os pensamentos... — completou. — Deve fazer mais


coisas. Só não treinou suas habilidades... Liam, o poder começa na
nossa mente quando achamos que conseguimos fazer algo. É assim
com tudo — Maíra se expressava de forma segura. Chegou a
colocar a ponta do dedo em minha testa, dando três batidinhas.
— Não me diga... — achei graça de sua atitude. — Isso serve
para você — disse referente a nova descoberta. Ela desviou o olhar.

Depois disso, quando passamos pela rocha que escondia a


floresta, voltou a ficar silenciosa. Talvez o meu comentário a fez
lembrar que o motivo dela ser uma feiticeira, não era bom. Então,
mais a frente ela parou e ficou me encarando. Antes que falasse
algo, a questionei: — Por que você fugiu de mim?

— Você estava agindo estranho —respondeu.

Esperei por seus pensamentos. Queria saber se havia algo a


mais.

— E por que você não matou Arlo? — Cruzou os braços,


furiosa.

— Ele me disse que não tinha te machucado. Eu vi, não era


mentira — disse e notei sua indignação. — Me desculpa! —
acrescentei imediatamente.

— Eu estava certa sobre você. Estava diferente desde que


encontrou ele. — Seus olhos marejavam. — Por que está aqui
comigo? Está se colocando em risco por alguém que nem acredita?
— disse, decepcionada.

Não consegui responder suas perguntas, o que a deixou ainda


mais chateada. Maíra resolveu sair andando na frente, mas acabou
voltando para concluir o diálogo.

— Eu já sei... já entendi. Você precisará fazer algo quando


chegar a hora. O que será? Matar o que eu estou gerando? Me
matar? — ironizou aos berros.

— Não te mataria. — Tentei me aproximar.

— Liam, você não precisa me proteger. Afinal, não sou uma


bruxa? — chorava. — Vou voltar para casa. — Enxugava os olhos,
trêmula.

— Não, é perigoso. — A puxei pelo braço. — E você é uma


feiticeira, não bruxa.

— Não toca em mim! — gritou, me empurrou e não conseguiu


me mover. Maíra me olhou com raiva. — Vou ficar segura com o
exército do meu pai — disse para me provocar.

— O pai que matou sua irmã? — pressionei. Ao ouvir o meu


cinismo, não se conteve e me deu um tapa no rosto. Pude sentir
meus olhos se acendendo instantaneamente. Ela começou a andar
para trás, se afastando de mim, mas não por medo.

— Eu vou embora. Não me siga... — soluçava. — Eu vou


cuidar de mim mesma — acrescentou, cabisbaixa.

— Você ainda não sabe usar suas magias — alertei e fui


ignorado.

Então a vi sumindo por entre as árvores, entretanto,


conseguia ouvir sua mente, ainda podia segui-la.

Estava escurecendo e de repente me senti perdido. Uma


sensação de tontura me preenchia. Minha visão embaçava, precisei
me apoiar nas árvores para permanecer de pé. Os meus sentidos
estavam agindo contra mim. Ouvia barulhos de todos os tipos ao
mesmo tempo. Depois de alguns minutos desorientado, o silêncio
surgiu e em sequência, uma voz bizarra a me chamar.

— Liam! Liam... Esse foi o nome que a feiticeira te deu?

Olhei a minha volta e não enxerguei ninguém. Não sabia de


quem se tratava. A intuição não era boa, me vi encurralado. A
circunstância me fez lembrar do que foi me dito quando recebi o
cajado de meu pai, "era fundamental que eu me entregasse e o
deixasse me guiar". Então o retirei das costas. Contudo não tinha
ideia do que deveria fazer, mas como já estava sem forças e quase
caindo, para me sustentar o apoiei no chão, me levando a sentir um
tremor instantâneo. O cajado se iluminou por completo. Parecia estar
em brasas. Fiquei assustado, porém revigorado. Então ao levantar
meu rosto, enxerguei duas pessoas me observando. Sabia que não
eram comuns e, apesar de não os conhecer, suas energias eram
ruins.

— Quem são vocês? — perguntei, apavorado. Tinha certeza


que meu mal estar vinha da aparição deles.

— Meu neto, vejo que está com o cajado de seu pai — falou o
homem com um sorriso estranho no rosto. Ele, apesar de dizer ser
meu avô, não possuía um aspecto de idoso.

— Neto? E você? — indaguei à mulher ao seu lado, morena


de cabelos escuros como laca, aparentemente mais jovem que ele.

— Sou apenas uma amiga. Vejo que está descobrindo seu


passado e suas habilidades — disse Jurará, com ar de deboche.
— O que vocês querem? — desconfiava de que não era bom
aquele encontro. Tentei ler suas mentes, mas os dois, sendo deuses,
as bloqueavam.

— Quero o meu filho — respondeu Tau, meu avô.

— Do que você está falando? Minha tia disse que meu pai
morreu.

— Não estou falando de seu pai, nem dos outros seis. Estou
falando do caçula que ainda está na barriga — sorria, olhando para a
deusa.

Então entendi o que acontecia. Conhecia sua história, mesmo


não sabendo que pertencia a sua linhagem. Ele era famoso por sua
maldade e a maldição que carregava consigo. Havia tido 7 filhos com
Kerana, minha avó. Somente um não era um monstro, meu pai. Tau
era um metamorfo. Foi dessa forma que enganou minha avó e agora
Maíra, se passando por Arlo.

Fiquei em choque, meu coração começou a acelerar enquanto


eu raciocinava. Minha respiração estava atrapalhada, perdia o
controle da tal. Sentia-me sufocar pela revelação. Ele havia tirado
sua inocência. Eu ainda não tinha ideia do motivo, porém tudo fazia
sentido. O porquê de ninguém tê-la protegido, era certo de que tinha
cúmplices. Meus olhos estavam cheios de ódio e de lágrimas, as
quais não contive e ao permitir que caíssem, percebi o sorriso
medonho no rosto do espírito do mal. Queria matá-lo, mas não
conseguiria. Creio que essa era a razão dele ter a deusa como
companhia.

— Por quê? Ela era virgem — disse com a voz embargada.


— Foi necessário dessa forma. Eu tinha um acordo. —
respondeu e de novo olhou Jurará.

— Um acordo? Com quem? — questionei, indignado com o


alto preço que ofertaram.

— Não vou dizer, sou ético — debochou ele.

— Ela é uma feiticeira. Você sabia? Não é tão inocente quanto


você pensa — falou a divindade ao seu lado. — Liam, haverá uma
guerra e você precisa estar conosco. Os humanos irão destruir tudo
se não fizermos nada — explicava como se fosse possível eu
concordar, em algum momento, com o que fizeram.

— Ela vai morrer, não vai? — Já sabia a resposta.

— Três vezes será apunhalada. É o destino. Todos temos um


— Tau zombou.

Depois de ouvi-los falando sobre a morte de Maíra como algo


banal, senti uma grande ira e gritei: — Não vou deixar! — Minha voz
soou diferente. E por instinto, levantei o cajado e o bati contra o
chão. No mesmo instante o solo começou a ser rasgado por várias
rochas que iam se erguendo e nos separando, formou uma enorme
barreira. Em seguida, desapareceram.

Eu tremia, meus nervos estavam à flor da pele. Sentia-me


enojado por ter seu sangue. Queria acreditar que existia a
possibilidade da criança nascer com a mesma sorte de meu pai, mas
pela forma e o tempo que crescia, sua gravidez não parecia de um
bebê normal. Que alívio não ter matado Arlo, pensava. Precisava
contar a Maíra, contudo, necessitava encontrá-la antes de todos que
a procuravam.
12 APRENDIZES

Próximo àquela região da floresta tinha uma pequena cidade.


Vários comerciantes passavam em uma taberna para beberem e se
satisfazerem com as mulheres do local. Era um ponto de “descanso”.

Estava exausto e faminto, entretanto, o meu objetivo era


encontrar informações sobre Maíra e certamente, o lugar onde mais
aglomerava gente, era lá.

Chegando na taberna, vi o ambiente cheio com muito falatório,


gritos e risadas. Eu tinha acabado de sair de uma situação
estressante e somada a preocupação com Maíra, que me consumia,
tudo me incomodava. Logo que entrei, um bêbado estúpido esbarrou
em mim, deixando cair um pouco de vinho em meu braço e, não sei
o que viu em meu rosto, mas ele foi lúcido o suficiente para se
desculpar e se afastar para o mais longe possível.

Meu mau humor me fez demorar a perceber que estava tão


perto do que eu queria. Aproximei-me do balcão, ia pedir uma
bebida, porém de repente, ouvi uma voz em minha mente, um
pensamento esfomeado como sempre.

Olhei na direção de onde vinha. Era ela, sentada em uma


pequena mesa, sozinha. Enxerguei Maíra pelas frestas entre os
beberrões que não paravam de gritar, chamando pelas meninas.
Tinha uma expressão assustada, confusa sobre o que acontecia ali,
entretanto, permanecia porque se sentia segura. Foi tão fácil achá-la.
Teve sorte de ter sido eu. Então fui me achegando lentamente,
contudo, ela me viu e se cobriu com o capuz.

Iniciaria uma nova busca, no entanto, quis tentar algo


diferente, já que estava descobrindo meus poderes. Concentrei-me
e senti meu rosto esquentar, minhas mãos suavam por causa do
calor do meu corpo. Sabia que os meus olhos acenderiam. E se eles
pudessem enxergar o que estava invisível?, cogitava. Sondando em
várias direções, achei Maíra encostada em uma pilastra me
encarando, logo sorri para ela. Ficou ainda mais chateada, não me
ouviria, nem me deixaria chegar perto, nesse estado. Então quis
saber o que pensava e induzir seus pensamentos a meu favor. Para
minha surpresa, sua mente bloqueou. Não sei se havia reparado a
minha decepção, mas parecia estar orgulhosa de si. Com um leve
sorriso de lado e a sobrancelha arqueada, ela retirou o capuz e, ao
contrário do que eu imaginava, veio em minha direção.

— Estamos brincando de testar poderes? — disse-me


tranquilamente, devia ter me perdoado. Estava exercendo feitiçaria e
se agradava.
Depois de nos cumprimentarmos de modo nada tradicional,
ela tirou a capa que cobria sua barriga, para me mostrar o quanto ela
havia crescido. Era ainda mais assustador saber de quem era o filho.

— Vai ser pai, foguinho? — perguntou-me umas das mulheres


da taberna, enquanto passava com canecas de bebida na bandeja e
mexia em meus cabelos.

— Não, não é meu — respondi. Maíra me fitou como se


quisesse arrancar minha cabeça fora.

— O que foi? — indaguei a ela. — As meninas me chamam


assim, porque eu sou ruivo — expliquei-me, desconcertado.

— Sei... — Foi sarcástica. Sentia ciúmes?

— Você está com fome, comeu alguma coisa? —


desconversei, apressado.

— Me ofereceram pão e cerveja na mesa ao lado da minha.


— Virou-se, voltando para onde se assentava.

— Cuidado para não aceitar coisas de estranhos,


principalmente em locais assim — provoquei, queria ela por perto.

— Eu não estou mais sobre sua proteção, lembra? —


ironizou. Definitivamente estava com ciúmes.

Vivíamos brigando. A nossa paz durava poucos minutos. Não


concordávamos com nada. Bastava um detalhe ser diferente do que
ela queria para passar a me odiar e se afastar novamente. Deveria
ser algo comum entre os humanos. Para mim, não me importava o
que fizesse, a minha lealdade era dela. Estava cansado de pedir
desculpas por algo que nem entendia direito. Então resolvi agir de
forma diferente. Fui até a bancada e me sentei. Deixei que voltasse à
mesa e ficasse sozinha. Não era o que queria? Algumas vezes a
olhava através do espelho, por trás do atendente. Pedi uma bebida,
sopa e pão. Eu tinha certeza que ainda estava com fome. Quis atraí-
la dessa forma. Não demorou nem cinco minutos até que se
sentasse no banco ao meu lado.

— Você tem alguma moeda? Eu posso te pagar depois —


perguntou, sem jeito. Tive vontade de rir, devido ao sucesso do meu
plano, entretanto, eu a afugentaria.

— Não tenho.

— Tudo bem — disse, se retirando.

— Venha, coma comigo! — Segurei-a pelo braço. — Tem


muita comida. Não vai encontrar cogumelos aqui perto — sorri,
gentil.

— Obrigada — Ela me encarava, enquanto, rapidamente,


levava várias colheradas de sopa de legumes à boca.

— Eu vou pedir um quarto para ficarmos hoje. Não é lá


grandes coisas, mas acho que você precisa de um lugar mais
confortável — falei, achando engraçada a habilidade em fazer os
pães sumirem em questão de segundos.

— Aham... — balbuciou, lambendo os beiços.


Em seguida, Pâmela, uma outra mulher que trabalhava no
local, me cumprimentou: — Oi meu amor, tudo bem? É sua
namorada?

— Não, uma amiga. — respondi, já prevendo nossa


separação. Como poderia chamá-la? Minha protegida? Talvez...
Acho que teria sido melhor... Droga!

— Vai querer algo de mim hoje? — perguntou, passando seus


braços por cima de meus ombros. Respirei fundo.

— Hoje não, obrigado. — Fiquei extremamente sem graça


com toda aquela demonstração de afeto.

Maíra não disse nada, apenas continuou comendo. Partia o


pão e mergulhava na sopa, em um movimento automático, com um
olhar perdido e reflexivo.

— Eu vou pedir a chave do quarto. Não saia daqui! — Andei


por uns dois metros e voltei. — Acho melhor eu esperar...

— Não vou sair daqui! — interrompeu-me, bem séria. Decidi


acreditar.

Em seguida, fui até o dono da taberna, que se encontrava do


lado oposto à Maíra. Enquanto aguardava pela chave, a vi
conversando com uma das meretrizes que me cumprimentara
anteriormente. Bufei, nervoso.

Não éramos nada um para o outro, mas ela sentia ciúme e eu


gostava dela, apesar de suas birras, não queria que se chateasse.
<<◇>>

— Terminou? Já estou com a chave do quarto. — Debrucei-


me no balcão e vislumbrei o seu semblante enraivecido.

— Sim — respondeu-me, ríspida, com a testa franzida e um


bico enorme, que a deixou ainda mais linda.

— Está tudo bem? — Óbvio que não. Nem sei o porquê do


questionamento.

— Por que não estaria? — perguntou, cínica. Cruzou os


braços, enquanto se levantava, parando de frente a mim, com seus
olhos semicerrados julgadores.

— Venha!

Então subimos as escadas e eu fui analisando o local até


chegarmos ao nosso quarto, tentando evitar sermos pegos
desprevenidos. Parecíamos seguros. O lugar tinha cheiro de mofo,
dava para enxergar o céu em alguns pontos pelo mal estado das
telhas. O chão de madeira rangia tanto, contudo, seu som era quase
encoberto pelas vozes no andar abaixo. Os lençóis na cama até
pareciam limpos, apesar da cor encardida. Percebi no momento em
que eu fechava a porta, o olhar de Maíra, não havia se agradado.

— É sério que isso é pago? —debochou com os olhos


arregalados.

— É o melhor da taberna. — Abria as janelas. O quarto


precisava ser ventilado urgentemente.
— Você conhece todos, né? —complementou, me
reprovando. Coloquei as minhas armas dentro do armário, peguei um
travesseiro e, calado, logo me deitei no chão.

— Vai dormir aí? A cama é grande — reclamou ela, indignada.

— Vou, prefiro desse jeito — respondi sem paciência. Queria


pôr um fim naquela situação.

— Nossa! Sou tão asquerosa assim? — Estava sentida.

— Temo pela minha vida. Afinal você está tão irritada e eu não
sei o quanto sabe controlar seus feitiços. Acho que, talvez, eu
devesse dormir armado — ironizei.

Maíra ficou em pé, me olhando com os olhos lagrimados.

— Por quê? — disse ela com a voz alterada. Ela vai chorar?

— Por quê, o quê?

— Você ficou com todas essas mulheres e está sempre me


rejeitando... Eu sei que estou grávida, mas antes de sabermos disso,
já não me quis. Eu só queria que gostasse de mim pelo menos dez
por cento do que gosto de você — reclamou, esbaforida. Em
seguida, se sentou à cama, esperando a minha posição sobre o que
havia falado. Permaneci em silêncio por um tempo. Continuou,
chorosa. — Não vai dizer nada? Não mereço nem isso?

Eu me levantei, peguei uma cadeira de madeira bem gasta


que estava junto à mesa. Coloquei o assento de frente a ela e me
sentei. Maíra parecia ansiosa pela minha consideração.

— Não é real — comecei, tentando ser cuidadoso.

— O que não é real? — Estava apreensiva.

— O que a gente sente um pelo outro... Eu tenho uma espécie


de encanto, atraio as mulheres facilmente. Não preciso fazer nada,
só estar no lugar. Eu tenho isso comigo. Os Kuru'pirs e Caaporas
também são assim — explicava. Maíra parecia duvidar. — Você
também deve ter isso... É comum em feiticeiros. São sempre muito
belos. Acabam se aproveitando da aparência para a proteção ou
conseguir algo em troca. Então, não acho que seja real.

— Não acredito que seja isso! — insistia, após sua reflexão


um pouco demorada. — Eu sei o que estou sentindo. Acho que é
nosso destino. Era para nos encontrarmos novamente. Eu... eu dizia
pra minha mãe que me casaria com o homem que apareceu no
jardim. O engraçado que ao conhecer Arlo, me esqueci disso. Estava
realmente cogitando me casar com ele, mas todas essas coisas ruins
aconteceram e eu reencontrei você. Temos uma ligação, Liam. Você
gosta de mim ... Eu sei! Não é só uma atração, só não quer aceitar.

Fiquei surpreso quando disse sobre se casar comigo, e o que


comentou depois, a respeito de Arlo, me gerou um desconforto. Eu
deveria contar o que descobri na floresta, não poderia deixar culpá-lo
por algo que não fez. Mas e se ela voltasse a se interessar por ele?
Acho que a incerteza que eu sentia causava a sensação de ciúme.
Nunca havia experimentado isso por ninguém.

— O que você está pensando? — indagou-me, inocente. Ela


merecia saber de tudo que acontecia.
— Preciso te contar uma coisa — falei rapidamente, antes que
eu voltasse atrás em minha decisão. Esfregava minha testa, nervoso.

— Fala. Seu silêncio está me matando. — Ajeitou-se na cama,


que se encontrava em uma das extremidades do quarto, encostando
suas costas na parede.

— Enquanto andava pela floresta, tentando te seguir... —


hesitei. Maíra assentiu, compreensiva. — Eu me perdi, mas foi por
causa de uma manipulação mental — bufei. A menina estava com o
olhar atento e curioso. Não sabia qual seria sua reação. Tinha medo.
— Encontrei dois deuses, um era meu avô Tau e a outra, a deusa da
chuva Jururá — disse relutante.

— Nossa! Você descobriu hoje sobre seus pais e já conheceu


seu avô, tudo tão rápido — sorria, docemente. —Isso não foi bom?
— Ficou intrigada, reparando minha expressão séria.

— Ele é um deus ruim... Não sei ao certo qual é o propósito


do seu reaparecimento... Eles falaram sobre uma guerra entre
homens e deuses e me queriam ao lado deles — Encarei ela. Maíra
estava calada, com um aspecto de preocupação.

— Você se aliou a eles? Você é deus e... E eu? E todos os


outros humanos? — Mordeu o lábio, segurando o choro. Ainda não
havia mostrado a pior parte da história. Seria difícil.

— Eu quero que você fique calma... Não é só isso. Eu nunca


ficaria contra você — suspirei. Era fundamental encontrar a melhor
forma de contar. Engoli em seco. — Ele tem 6 filhos. Não sei o
porquê, mas precisava de mais um. Talvez meu pai soubesse de
seus planos e não aceitou... Maíra, minha tia disse que ele foi
assassinado.
— Você acha que foi seu avô? — perguntou, assustada.

— Não sei. — Deixei escorrer umas lágrimas.

— Você está chorando. O que aconteceu? — Aproximou-se,


buscando me consolar. Então me levantei, sentei ao seu lado na
cama. Ela acariciou meu rosto e me abraçou.

— Me desculpa! — sussurrei em seu ouvido. — Meu


desculpa, eu não te protegi!

— Do que você está falando? Você está aqui comigo, está


fazendo de tudo pra me manter segura, apesar das minhas fugas
incessantes... Você sempre me acha... Sempre me salva de algum
jeito — disse ao enxugar meus olhos.

— Tau... — soluçava — Meu avô foi amaldiçoado, seus filhos


são todos monstros, só meu pai nasceu normal... Ele cobrou um
acordo, Maíra. Ele precisa do sétimo monstro... Você foi o
pagamento de alguém — Senti-me envergonhado de pertencer
àquela família, porém certamente ela tinha um problema semelhante
ao meu.

— Mas... mas como? — Estava ofegante.

— Não foi Arlo, foi ele. Eu sinto muito!

Maíra se levantou da cama, atordoada. Andava de um lado


para o outro, com as mãos no rosto. Em seus pensamentos vi que
ainda não acreditava.
— Não pode ser... Quem faria isso comigo? — Olhava-me
como se eu soubesse a resposta. Apesar das suspeitas, não podia
afirmar nada. — Você não sabe?

— Não sei, ele não quis me dizer.

— Você disse que seu pai nasceu normal... Então tem chance
de ser uma criança como as outras... — Tentava se confortar.

— Não, Maíra! A sua gravidez não está sendo normal. Eu


queria poder dizer que sim.

— O que eu faço? Não tem mais jeito? O pajé da tribo disse


que podia preparar ervas para matá-lo. Talvez ...

— Não, melhor não. Já soube de pessoas que morreram


nesses rituais com ervas. Não vou deixar que façam isso a você. Eu
vou te ajudar, vai ficar tudo bem — disse, me achegando a ela.

— Liam, eu estou gerando um monstro, que destruirá tudo e


ele será seu tio. Como ficará bem? — Se virou de costas,
pranteando. — Eu provavelmente vou morrer.

— Eu não vou deixar. — Estendi minha mão e a segurou.


Logo me abraçou.
13 MATE-A

Eram três da manhã. Eu me sentia acordado, contudo, não


conseguia me mexer. Várias sensações tomaram conta do meu
corpo. Tentava levantar minhas mãos para encostar nos vultos que
eu via de relance, pelas frestas em minhas pálpebras. Fazia um
esforço enorme e nada acontecia, estava paralisado. Parecia um
sonho, porém sabia que era real. De repente ouvi uma voz
conhecida: — Liam! Filho de Yáci, meu sobrinho.

Consegui abrir os olhos e me deparei com minha tia flutuando,


deitada sobre mim. Seus cabelos permaneciam na horizontal,
pareciam grandes ondas de sangue.
— Você precisa matá-la agora! Não terá mais tempo. Ele está
chegando! — repetia incessantemente. Sua voz me aterrorizava. Eu
queria falar, mas não conseguia. — Mate-a, mate-a! — gritou.

Então vi seu corpo começar a secar, a vida parecia estar se


esvaindo, até ficar em pele e osso. Depois disso ela gritou tão alto,
que fez o meu corpo estremecer a ponto de finalmente despertar.
Sentei-me na cama e fiquei observando Maíra. Aquela visão tinha
me deixado perturbado. Já estava chegando a hora e eu não tinha
um plano para salvá-la. Havia prometido a ela uma solução e nem
sabia como proceder. Levantei-me, sentia muita sede, estava
completamente suado. Andei pelo corredor da taberna e quando
descia as escadas, ouvi duas mulheres comentando sobre o que
acontecia na cidade.

— O que houve? — Eu tinha escutado a palavra "nativos".

— Oi meu amor, alguns nativos e animais invadiram a cidade,


mas os homens que estavam aqui os afastaram. Quase todos os
animais foram mortos. Agora estão retirando as peles, para leiloarem
amanhã.

—Mataram? — perguntei assustado.

— Sim. Alguns lobos, eu acho.

— Acho que tinha uma onça também — complementou a


outra, arrumando as mesas.

Fiquei intrigado, imaginando que eles vieram por Maíra.


Enquanto permanecêssemos na taberna, estaríamos a salvo.
Embora não soubessem, os beberrões nos defenderam.
Quando voltei ao quarto, Maíra, ainda deitada, chorava.

— O que foi? — indaguei. Em seguida, constatei que sua


barriga estava maior e seu rosto pálido.

— Estou me sentindo muito mal —disse, soluçando. Toquei


sua testa, notei que estava extremamente quente.

— Você está com febre. Eu vou pegar água fria, vai fazer
baixar a temperatura.

— Não... não me deixa! — pediu, segurando o meu braço. —


Por favor, não quero ficar sozinha — falou baixinho.

— Eu não vou a lugar algum. Está bem? Vou pedir para


trazerem até nós. — Acariciei seu rosto. Maíra tremia.

Depois que a bacia de água chegou comecei a molhar o pano


e colocá-lo em sua testa. Maíra logo voltou a dormir. Enquanto
repetia esse processo, várias vezes, refleti sobre o motivo dos
nativos irem à cidade. Será que realmente já estava perto do
nascimento? E os animais, será que estavam sentindo algo
estranho? Passei o resto da noite em claro. Não tinha motivo para
dormir. Por mais que eu estivesse exausto, minha cabeça não
parava de tentar arranjar uma solução, entretanto, mesmo com todo
esforço, não tive êxito. Só me restou a vigília. Fiquei sentado em
frente a porta com o arco na mão. E, nas primeiras horas do dia, ela
acordou.

— O que está fazendo, Liam? — indagou, sorrindo ao me


cutucar.
— Você está melhor? — bocejei.

— Sim — disse ela, se levantando com bastante dificuldade


por causa do peso da barriga. — Me sinto horrível! Queria tomar um
banho pelo menos. — continuava a falar. — Para onde iremos
agora?

— Eu não sei, Maíra.

— Ontem, quando vim pra cá, percebi algumas embarcações.


Será que eles nos levariam para algum outro lugar? — Referia-se à
Neiva.

— Maíra, você sente que já está perto? Qual é a sua intuição?

— Eu sinto que não há mais jeito pra mim. — Desviou seu


olhar. — Mas eu quero continuar tentando... — suspirou. Meu
coração apertou.

— Fique aqui então. Eu vou sondar se sairá algum


carregamento e para onde. Vamos tentar ir para algum lugar longe
das florestas, talvez tenhamos mais chance.

<<◇>>

Então fui ao porto. Analisei a região, estava cheia de


soldados. Alguns eu reconheci do dia que ataquei Arlo. Escondi-me
atrás de uma grande caixa de madeira e fiquei observando.

— O que você quer aqui? —surpreendeu-me um tripulante.


— Eu quero ajudar na embarcação, sou forte. Preciso
começar minha vida em outro lugar — respondi incerto de como
deveria falar.

— Você não é um bandido não, né? — Arqueou a


sobrancelha.

— Não, senhor. — Observava a quantidade de gente


envolvida na atividade portuária.

— Tudo bem. Parece forte o suficiente. Então vamos começar


agora. Já pode carregar essas caixas. Tão fácil?, pensei.

— Quando sairá a embarcação? — Quis saber se valeria a


pena esperar ou procuraríamos um outro meio de fugir.

— Amanhã de manhã — respondeu o homem alto barbudo.

— E vamos para onde?

— Viana. É longe. É o que você quer, não é?

— Isso mesmo. Eu só preciso resolver uma coisa e já volto.

— Tudo bem. Me procura quando voltar... Me chamo César.

— Meu nome é Liam, obrigado!


<<◇>>

Fui à taberna avisar Maíra. Ao entrar no quarto, não a


encontrei, mas vi que minhas coisas ainda estavam lá. Fiquei
extremamente nervoso, tudo de ruim me passou na cabeça. Quem a
teria levado? Saí com o arco e algumas flechas pelo corredor e de
repente notei umas vozes femininas na direção oposta a que eu
estava indo. Então, imediatamente voltei e abri a porta de onde vinha
o som. Havia uma grande banheira e as meninas da taberna
ajudavam no banho de Maíra, limpavam suas costas quando
cheguei. Eu a vi seminua pela primeira vez e ela não me percebeu.
Encostei a porta e fiquei ouvindo elas conversarem.

— Qual será o nome dele? —perguntou uma delas sobre o


bebê.

— Eu não escolhi.

— Você e o Foguinho estão juntos agora?

— Não sei... — Maíra respondeu.

— Se não ficar com ele, eu fico hein... — disse Pâmela,


gargalhando.

Maíra riu e disse: — Não depende de mim.

Eu fui para o quarto, deixando a minha curiosidade de lado.


Sentei na cama e esperei que retornasse. Depois de poucos minutos
ela entrou com outras roupas e a minha capa na mão.
— Já está se garantindo sem capa? — sorri, e ela sorriu de
volta com uma cara de quem aprontava.

— Consegui tomar banho, estou renovada agora. E você? —


falou.

— Não... não tomei banho.

— Não... Estou falando sobre as embarcações — zombou.

— Ah... claro! Tem uma embarcação que sairá amanhã pela


manhã, indo para Viana. Me disseram que é longe, mas o porto está
cheio de homens do seu pai. Você terá que ficar invisível —expliquei.
— Vou precisar trabalhar hoje no carregamento e pela manhã
sairemos.

— E o que eu faço? — perguntou ela.

— Vou ver o que combino com o dono da taberna. Ele é um


amigo antigo.

— Sei... Já frequentou muito esse lugar — insinuou com um


sorriso cínico.

— Mas não frequentarei mais. — Eu me levantei e me


aproximei de Maíra. Segurei suas mãos, ainda estavam úmidas e a
vi fechando seus lindos olhos azuis. Sabia o que queria, mas me
perdi por uns segundos, admirando sua beleza, ela possuía um sinal
no lábio inferior. Sentia-me hipnotizado, até perceber quando me
olhou abismada com a minha demora. Logo sorri e a beijei.
— Pensei que não fosse me beijar. Já ia reclamar...

— Eu sei — disse e a beijei novamente. — Eu vou resolver as


coisas e te aviso.

Fui até Bartolomeu, o dono do estabelecimento. Acordamos


que Maíra teria direito a alimentação durante o dia e dormiríamos
mais uma noite em troca da proteção da taberna durante a fase da
lua cheia. Houve um tempo em que apareciam lobisomens e o medo
ainda assolava a região, mesmo depois de alguns anos sem
nenhuma novidade.

Voltei ao quarto e me deparei com ela acariciando sua barriga.


Depois que me viu tentou se justificar.

— Eu sei o que está pensando... Que eu não deveria estar


fazendo isso porque é um monstro... Mas é que... não deixa de ser...

— Não, você não sabe. — Suspirei, me sentando ao seu lado.


— Penso em como você consegue ser doce e forte ao mesmo
tempo. Independente do que é e como foi gerado... Você está tendo
uma ligação. Eu só quero que entenda o que eu precisarei fazer. —
disse, me sentindo previamente culpado.

— Eu sei — sussurrou.

— Eu já vou carregar a embarcação. Você vai poder ficar aqui.


Vai poder almoçar, jantar... É só falar com uma das meninas. —
Segurei suas mãos e continuei às recomendações. — Qualquer
coisa se cubra com a capa...
— É sobre isso que eu queria falar — interrompeu-me. —
Você não vai acreditar no que eu consegui fazer — contava animada.

— Imaginei que tivesse mesmo acontecido alguma coisa. Mas


você agora vive bloqueando sua mente.

— Então... Eu não gosto de usar a sua capa, ela me deixa


com muito calor...

— Mas precisa usar — disse a ela.

— Liam, eu estava em frente ao espelho pensando sobre isso


e simplesmente não me enxerguei mais.

— Como assim? Você ficou invisível?

— Eu acho que sim. Uma das meninas entrou no quarto para


me buscar, não me viu e saiu.

— Faz de novo. — Estava ansioso para vê-la usando seus


truques.

— Eu tentei agora, quando você desceu, mas não consegui.


Acho que preciso de treino. — Parecia bem confortável por ser uma
feiticeira.

— Provavelmente... Você aprenderá. Talvez se torne mais


forte que eu. — Sorri.
— Ah... Não sei como ser mais poderosa que um deus —
disse ao me abraçar.

— Agora eu irei, se precisar de mim, peça que me chame. —


Beijei sua testa.

<<◇>>

Ao chegar no porto encontrei César próximo ao comandante.

— Esse é o cara que eu te falei. Ele quer viajar com a gente


— disse o tripulante.

— Qual seu nome? — perguntou o comandante.

— Liam.

— Pegue as caixas, Liam. Temos muito o que fazer.


Precisamos de gente mesmo. Sabe lutar? Existem muitos piratas em
alto mar — explicava o comandante.

— Sei sim.

Passei o dia todo fazendo o carregamento da Nau. Estava


preocupado com Maíra. Queria ter certeza de que estava tudo bem.

Quando terminou o serviço, corri à taberna e ao chegar na


entrada encontrei uma das meretrizes.
— Oi meu amor, demorou a voltar. A sua menina está ansiosa.

— Está tudo bem com ela? — indaguei.

— Está sim. Arrumamos ela pra você.

Subi as escadas correndo, estava com muita saudade.


Quando adentrei o quarto, a encontrei dormindo serenamente. Em
seu cabelo, uma trança que formava um arco e nela presas
pequenas flores. Seus lábios pintados com um tom de vermelho, que
a deixava ainda mais linda. Mas de repente o medo se fez presente.
Sua respiração era imperceptível. Na verdade, não tinha certeza se
ainda tinha uma. Precisava verificar seu pulso, não conseguia ver o
movimento feito pelo tórax. Então cheguei mais perto para encostá-
la. E logo Maíra abriu os olhos. Na mesma hora me assustei e no
impulso me joguei para trás. Ela se sentou e me olhou enquanto eu
tentava me recompor.

— O que foi? — espantou-se.

— A sua respiração... não dava pra ver que estava respirando.


Tive medo... — ofegava, encurvado com as mãos na cintura.

— Medo de que eu tivesse morrido? — Mordeu o lábio.

— Sim — respondi. Depois de vê-la feliz com a minha


preocupação, achei graça. — Você está linda!

— Obrigada! As meninas me arrumaram. — Colocava as


madeixas loiras para o lado.
— Ficaram amigas agora? — provoquei.

— Melhor tê-las por perto, assim garanto que não ficarão em


cima de você. — Sorriu.

— Vou tomar um banho, estou imundo — bufei, analisando a


sujeira. — Não tenho como me deitar ao seu lado desse jeito. Me
espere para dormir.

— Claro! Vou querer o beijo de boa noite! — disse dengosa.

— Pois eu também! — admiti, apaixonado. Retirei-me do


aposento.
14 A GRANDE VIAGEM

Passei a noite em claro, pois tinha quase certeza de que não


conseguiríamos fugir de lá, me sentia preso àquela floresta. Era uma
sensação muito forte, por isso me comprometi com Bart. Quem sabe
poderíamos ficar mais uns dias na taberna?

Não sabia como seria para Maíra, se era seguro viajar


sozinha, mesmo invisível. Uma outra coisa que me intrigava era a
hora em que entrasse em trabalho de parto. Não tinha ideia do
tempo que levaríamos até chegar em Viana, e eu nunca havia
atravessado o oceano. A viagem poderia levar dias, semanas,
meses... Mas de qualquer forma, tentaria ir com ela.

Chamei Maíra, ainda estava escuro. A embarcação sairia


antes do sol nascer.
— Bom dia! Tudo bem? — Acariciava seu rosto.

— Bom dia? Ainda está escuro, Liam! Estou com muito sono.

— Vamos, Maíra! Coloque a capa. Iremos nos atrasar.

— Não preciso mais da capa — murmurou ela com olhos


fechados.

— Você está louca? Esqueceu que ainda precisa treinar? —


perguntei.

— Eu treinei ontem enquanto você trabalhava. Fiquei invisível


três vezes — respondeu com a voz preguiçosa.

— Ei... Ei! Levanta! Coloque a capa, vamos viajar durante


muito tempo. Vai exigir muito de você e está fraca por causa da
gravidez — insisti.

Então ela abriu os olhos, mas ainda parecia estar dormindo.


Eram bocejos atrás de bocejos, continuava agarrada à cama e
emaranhada aos lençóis.

— Bom dia, Liam! — disse mexendo em meus cabelos.

— Finalmente acordou? — Segurei sua mão e a beijei. Ela


sorriu e foi se esticando na cama. Sua barriga havia aumentado.
Maíra olhou para si, mas não se assustou. Acho que já esperava por
isso. —Vamos! — apressei.
Logo que saímos da taberna, a menina se cobriu com capuz.
Prendi minha aljava e cajado às costas e levei o arco na mão. Então
chegamos no porto, o local estava repleto de militares, eles fariam a
guarda da Caravela até que entrássemos em alto mar, mas um deles
me chamou a atenção e a de Maíra também.

— É Arlo! — sussurrou, pois mesmo invisível ainda podia ser


ouvida.

— Ainda quer ir embora? — perguntei, temendo que tê-lo


visto, depois de saber toda a verdade, voltasse a sentir algo por ele.

— Claro! — Parecia segura do que falava. — Ele não pode te


ver. Temos que subir rapidamente na embarcação.

Maíra estava certa, provavelmente Arlo me reconheceria.


Diferente da outra vez, estava cercado de amigos. Eu acabaria
morto, preso ou os mataria na frente de todos, nunca mais poderia
voltar nesse lugar.

No porto, a atividade de comércio começava cedo e já estava


bem movimentado, e foi dessa forma, atrás de pessoas em pessoas
que eu consegui alcançar o píer, sem ser notado. Entretanto faltando
poucos metros para embarcarmos, aquela sensação sobre a floresta
aumentou dentro de mim. Meus pés pareciam travados, sentia um
peso muito grande ao me mover. Virei-me na direção de Maíra e
disse baixinho: — Acho que eu não conseguirei partir.

— O quê?

Apesar de não vê-la, percebi seu nervosismo pelo tom da sua


voz.
— Estou preso à floresta. Talvez eu possa trazer mal a vocês
— complementei, triste.

— Eu preciso de você... Precisamos tentar, Liam — disse,


iniciando um choro.

Então, tentei encostar em suas mãos, queria acalmá-la


mesmo estarrecido. Não podia fazer gestos que chamassem
atenção, afinal eu estava sozinho aos olhos humanos.

— Como é? Não vai subir? Está com medo de água, rapaz?


— brincou César, o tripulante que me arrumou trabalho na
embarcação.

— Já vou subir — respondi a ele. Depois falei baixinho a


Maíra: — Vamos tentar então. Sabe nadar?

— Sei, por quê? — Apavorou-se.

— Porque talvez seja necessário.

Dentro da Nau, comecei a ajudar a levantar as velas. Era


nítida a tensão dos tripulantes, que estavam com receio de um
ataque pirata. Havia explicado ao comandante, no dia anterior, que
eu era muito bom no uso do arco e flecha. Ele imediatamente
concordou que os levasse a bordo.

Não sabia onde Maíra se encontrava, nem poderia usar a


minha outra visão para achá-la. Contudo a certeza de que ninguém a
enxergava, me deixava mais tranquilo. A inquietação de não poder
sair da floresta já havia amenizado, mas tudo ainda era incerto, não
sabíamos sobre o lugar onde viveríamos e se chegaríamos bem.
Nunca tinha estado em uma embarcação, o enjoo me tomava com o
balançar das ondas.

Depois que entramos em alto mar, os barcos dos militares


fizeram o retorno, pois aparentemente não viram nenhum navio
pirata, pelo menos não até aquele momento. No entanto, percebi
alguns tripulantes murmurando e olhando em outro sentido. Tinha
algo de errado.

Então eu vi o céu escurecer em questão de segundos. O que


eu temia parecia começar a acontecer, não era normal uma
tempestade surgir tão depressa. Eu tinha que encontrar Maíra. Ela
poderia se machucar, porque todos corriam, tentando se proteger. O
vento estava muito forte e ainda longe, vislumbrei algo semelhante a
um corredor de nuvens ligado à água do mar. Há muito tempo não
presenciava alguma coisa assim, era muito rápido, vindo em nossa
direção. Chuva, trovões e gritos de pavor, sabia quem estava por trás
desse evento. O chão da caravela se encontrava cheio de granizo.
Onde ela está?

— Isso não é normal! O furacão está chegando! — alguém


gritou.

— Deve ter alguém na embarcação que não deveria estar


aqui! — outro homem falou.

Vi quando César me olhou. Tive medo que ele suspeitasse de


mim, mas antes que isso acontecesse, Maíra se tornou visível
quando o vento retirou seu capuz e a derrubou no chão.

— Tem uma bruxa! O motivo é ela! Joguem-na ao mar! —


Vários gritavam incessantemente.
Os tripulantes a seguravam, e Maíra implorava que a
soltassem. Logo corri até eles, peguei meu arco e flecha e os
ameacei.

— Soltem-na, se não eu mato vocês! — gritei!

Os outros tripulantes apontaram suas armas para mim, mas


antes que o ataque começasse, o furacão arrastou alguns deles.
Aqueles homens que a prendiam, vendo isso, a lançaram ao mar.
Entrei em desespero ao ver o imenso buraco onde cairíamos. Não
era possível enxergá-la naquela imensidão. Em seguida me
seguraram, e em questão de segundos a tempestade começou a se
dissipar. Ela era o motivo, não eu.

— Por favor... Eu preciso salvá-la! — pedi apavorado, me


debatendo.

— Joguem ele também! — gritou César com olhar


compreensivo.

Assim que eu caí e encostei na água, o cajado que estava


preso a minha armadura acendeu. Comecei a nadar o mais rápido
possível, porém as ondas ainda estavam fortes, não conseguia
manter um ritmo. Eu gritava por Maíra, mas sabia que provavelmente
não me ouviria. Sentia meus músculos adormecerem, estava
extremamente cansado, perdendo minhas forças. Tentava ao
máximo me manter na superfície, contudo não conseguia mais.
Fiquei imaginando como ocorria a ela. Não queria aceitar que talvez
não tivesse sobrevivido. E em meio aos meus pensamentos de
desesperança, me afundei.

Algo grande vinha para cima de mim, parecia um lagarto


gigante. Tentei fugir, no entanto, me sentia sendo sugado pelo
empuxo de sua boca. Sua cauda se enrolou em meu corpo, me
imobilizando, me colocando face a face com ele. Seus dentes eram
entrelaçados e suas escamas amareladas. Possuía quatro
nadadeiras que mais se assemelhavam a asas. Depois de usar o
resquício de força que ainda tinha, tentando me soltar, me entreguei
a triste realidade do meu fim. Foi quando observei que em seus
enormes olhos eram refletidas várias imagens, contava uma história,
que de alguma forma eu compreendia até mesmo sem falas. Ele não
era um simples monstro marinho, mas sim Caramuru, o deus das
águas.

Ele estava adormecido há mais de 100 anos, mas acordou


quando percebeu a presença de um outro deus em seu mar. Viu
quando o metamorfo subiu na caravela e assumiu a aparência de um
dos tripulantes. Sua intenção não era boa, mas entendeu que estava
buscando o que era seu por direito, a primogênita. Ele ouviu os gritos
de uma mulher e o choro do homem, o qual tomou sua forma.
Entretanto, foi no dia seguinte, quando Jurará encontrou o caixão da
criança na praia, que pôde compreender o que havia acontecido. A
deusa da chuva tinha o costume de se banhar todos os dias nas
águas do mar e se surpreendeu com o grande deus Caramuru
acordado. Contou a ele sobre o acordo que a mãe da criança tinha
com seu amigo. Ela havia oferecido o primeiro fruto de seu ventre em
troca de anos de beleza. A mulher sofreu queimaduras quando
trabalhava na cozinha da corte e para ela, ter aquela deformidade, a
deixava cada vez mais longe de realizar seu sonho de fazer parte da
nobreza. O Deus Tau, meu avô, a transformou da mesma forma em
que se transformava, mas deu um prazo de validade de 25 anos.
Depois de chegar no castelo, como uma nova dama, atraiu o olhar
do Conde, mas o pagamento não conseguiria através de um homem
estéril, desse modo seduziu seu antigo namorado feiticeiro e
finalmente engravidou. Para o conde a gravidez era providência
divina.

<<◇>>
Abri os olhos, o sol brilhava muito forte, sentia dores pelo
corpo e um grande peso nas minhas pálpebras. Minha vista
escurecia, já me entregava ao sono, mas logo em seguida tudo fez
sentido. Apesar da sensação do que eu vi ter sido fantasiosa, eu
tinha a total convicção de que o meu encontro com o deus do mar
havia sido real, conseguia ver ainda as marcas de suas escamas em
meus braços.

De repente me lembrei de Maíra. Levantei em um salto, porém


imediatamente me vi no chão. Estava muito tonto e fraco, não podia
me entregar àquela situação. Se ela estivesse viva, era certo de que
estaria precisando de ajuda. Então coloquei a mão nas costas,
peguei o cajado e fui andando a sua procura.

Estava apavorado. Já caminhava na praia desconhecida por


muito tempo e minha visão embaçada me deixava ainda mais
agoniado. Depois de mais alguns minutos, enxerguei uma nuvem de
urubus circundando algo bem longe. Corri até eles, para me certificar
se era ela. Chegando perto, tive muito medo, mas percebi que
estava intacta. Debrucei-me e mexi em seu rosto, posicionei sua
cabeça em meu colo, tentando acordá-la.

— Por favor não me deixe, meu amor! — falei próximo ao seu


ouvido. — Acorda!

Depois de alguns segundos ela começou a tossir. E logo tocou


meu rosto com os olhos arregalados.

— Achei que eu tinha morrido! Eu vi alguma coisa, Liam... Era


enorme... Um monstro horrível. — disse ao se sentar ajoelhada de
frente pra mim, Maíra chorava. Puxei-a para os meus braços e nos
beijamos. Como era bom tê-la comigo.
— Eu também vi... — contava ainda abraçados. — Eu vi
muitas coisas, mas não quero falar disso agora. Tudo bem? — Alisei
o seus lábios, voltando a beijá-la.

— Onde estamos? — perguntou ela.

— Não tenho a mínima ideia.

Passamos a tarde na praia. Estávamos sem rumo, sem saber


o que fazer. Permitimo-nos ter apenas a campainha um do outro,
sem estarmos fugindo de tudo.

— Você me chamou de amor — lembrava com um lindo


sorriso se gabando. — Foi a primeira vez… A primeira vez de muitas.
— Tocou meu nariz como um gesto gentil, olhava-me apaixonada.
Suspirei.

— Você gostou?

— Sim, muito! — respondeu, empolgada, enquanto me


abraçava e beijava meu pescoço.
15 CASULO DO INIMIGO

Deitado na areia embaixo das estrelas com Maíra dormindo


em meus braços, parecia estar tudo perfeito, tirando o fato dela estar
gerando um monstro, que por um momento eu esqueci da existência.
Seu cheiro, seu sorriso... Eu já estava completamente entregue a
ela, não me importava se era feitiço ou não.

Acariciava seus cabelos quando comecei a sentir algo pinicar


meu braço. Havia um caranguejo me beliscando com suas pequenas
garras, então o retirei e o joguei longe, mas em poucos segundos,
alguma coisa me incomodava novamente. Achei estranho a sua
agilidade, não era possível que fosse o mesmo. Virei-me para
descartá-lo e nos vi rodeados por um mar de caranguejos. Alguns já
haviam subido o vestido de Maíra.
— Maíra, acorda! — chamei-a bem rápido. Ela despertou, mas
ficou sem ação.

— Tira isso de mim, Liam... — pediu, nervosa.

Eram muitos, vinham sem parar. Comecei arrancando os que


estavam presos ao seu vestido, a segurei em meu colo e tentei
procurar um local seguro. Eu não entendia o que acontecia. Como
surgiram tão depressa?

Chegamos a uma área que aparentemente não tinha aqueles


animais, logo a coloquei no chão e retirei os caranguejos que ficaram
presos a minha calça. Notei uns cortes em minhas pernas.

— Eles te feriram — preocupou-se ela. — O que foi isso? Não


é normal, não é? — ofegava, esfregando o seu rosto.

— Eu não sei… Preciso ver se ainda tem algum em você.


Tenho que levantar um pouco seu vestido. Tudo bem? — indaguei
receoso, temendo que me achasse pervertido.

— Sim.

Em seguida ergui a saia até os seus joelhos. Vi que não havia


nenhum no tecido. Depois que ajeitei seu vestido, reparei que me
olhava fixamente.

— Não olhei com maldade, eu juro. Só estava preocupado.


Eles me machucaram... — explicava ao me levantar.
— Eu não me importo mais com isso, Liam. Eu quero ser
sua… — interrompeu-me. — Eu só preciso tirar logo ele de mim —
finalizou sem drama algum, acariciando meus lábios. Assenti com
um sorriso gentil.

Estávamos em uma área de plantação de cana, a vegetação


era alta e densa, necessitei de utilizar o cajado para abrir passagem
pela mata. Maíra segurava a minha mão enquanto atravessamos,
mas bruscamente caiu ao chão e começou a se contorcer. Meu
coração se angustiou, pois cria que era chegada a hora do
nascimento do indesejado.

— Estou sentindo que está me rasgando por dentro! — arfava,


chorando, apertando fortemente meus dedos. Eu não sabia o que
fazer, me abaixei para acalmá-la e tentei segurá-la em meu colo.
Seria a única forma de sairmos de lá, e procurar um lugar melhor
para ela. — Não, vai doer... Ai meu Deus! — gemeu mais alto do que
antes. Respirei fundo, tentando encontrar uma solução. O que eu
faço? O que eu faço? A agitação no meu íntimo me roubava o
raciocínio.

Em seguida ouvi vozes e me suspendi para certificar de quem


se tratava. O lugar estava cheio de nativos. Eles vinham de dentro da
floresta, com tochas nas mãos e lanças, o que me fez cogitar que
poderia se concretizar aquela visão sobre a morte de Maíra. Eu havia
perdido meu arco e flechas quando me jogaram ao mar, precisaria
usar o cajado, mesmo sem ter o domínio sobre ele. Apesar de
estarmos dentro da plantação, certamente não ficaríamos seguros
por muito tempo.

— Maíra, eu sei que está doendo, mas eles estão aqui... os


nativos. — Minha voz embargava, era difícil disfarçar a minha
agonia. Ela me olhou apavorada, trêmula.
— Eles vão me matar, Liam… Eu sei disso... Ele vai nascer
hoje, por isso estão aqui… — falava com dificuldade, com os olhos
aflitos.

— Não vou deixar — respondi, firmemente. Ajeitei o capuz


sobre sua cabeça e peguei o cajado. Senti que meu corpo
esquentava, precisava conseguir fazer aquela barreira de pedras
novamente.

Eles ainda não tinham nos visto, entretanto, faltavam poucos


metros até nós. Enquanto me concentrava para bater o cajado contra
o chão um deles gritou: —Ali, Obajara’ oka. — Que na língua da
tribo significa " Ali, Casulo do inimigo".

Então imediatamente executei a ação e o solo se abriu,


dividindo onde estávamos, de onde eles estavam.

— Não era bem isso, mas serve perfeitamente — murmurei.


Peguei Maíra e a levei em meus braços. Ao olhar para trás, vi que
tentavam saltar o grande vão. Ganhamos um bom tempo de
vantagem sobre eles.

Chegamos em um antigo vilarejo. Estava tudo abandonado,


suas construções em ruínas. Era nítido que havia acontecido uma
guerra naquele local.

— Maíra, está tudo bem? — perguntei, pois estava muito


silenciosa. Coloquei-a no chão, com cautela, para verificar o seu
estado, e ouvi um ruído bem baixinho. Fiquei tão preocupado,
parecia estar sofrendo.
Mais a direita eu vi uma casa que tinha sua estrutura melhor
do que as outras e decidi que nos esconderíamos nela. Maíra tremia,
estava febril. Tinha certeza que chegava a hora do parto. Seria um
momento delicado para nós dois, pois ainda não sabia como matar a
criatura sem que a matasse também e se era possível que nascesse
de maneira tradicional como uma criança normal.

Ao entrarmos na residência abandonada, tentei analisar tudo


imediatamente. Deixei-a sentada encostada em um aparador e
fechei a porta com o reforço de alguns móveis velhos, mas pesados.
Eu fui à procura de um lugar que ela pudesse estar confortável. Subi
as escadas e me deparei com os quartos, entretanto não encontrei
camas. Da janela do segundo andar avistei vários pontos de fogos se
aproximando, eram eles com suas tochas. Desci rapidamente e ao
passar pelo banheiro, vi uma banheira, o que parecia ser um bom
local para deitá-la e escondê-la. Corri até ela e a vi ainda mais pálida
e fria. Estou perdendo Maíra, já sinto meu luto perto demais.

— Eu não vou conseguir... — disse inesperadamente, sem


força em sua voz. Mal abria os olhos. Engoli em seco, tapando minha
boca, para evitar que ouvisse o meu pranto que se iniciava. Respirei
fundo e me abaixei.

— Eu vou te ajudar… Vai ficar tudo bem... — Tentei acalmá-


la, acreditar no que eu dizia. Bufei, agitado. Ela assentiu de olhos
fechados. Então a levei ao cômodo gelado e a coloquei na banheira,
empoeirada, coberta com lodo. Como ela reclamaria dessa sujeira se
estivesse bem...

— Liam... — balbuciou ao puxar minha blusa, olhando bem


nos meus olhos. — Se for preciso me mate... Não quero que isso
destrua tudo... — disse pausadamente com seus lábios ressecados
sem cor.
— Não será preciso. Eu vou cuidar de você. Te prometo! — A
minha voz soluçada dizia o contrário, era inevitável esconder o meu
choro.

Eu precisava encontrar algo para matar o monstro, entretanto,


não disse a Maíra o que faria ao deixar o banheiro. Fui à cozinha,
porém não achei nada. Voltando pela sala, me deparei com uma
lareira e apoiado nela, um atiçador. De repente ouvi o grito de Maíra.
Então peguei o objeto de ferro e corri até o banheiro. Tive pavor de
encontrá-la morta, por causa do silêncio imediato que se instalou.

Do lado de fora era possível escutar os nativos chegando.


Algumas aves noturnas se atiravam contra as janelas da casa,
pareciam tentar romper os vidros que já estavam em péssimo
estado. Conseguia notar outros animais também inquietos, todos
sentiam o que estava por vir. Quando entrei no cômodo, Maíra se
encontrava no chão com a mão cheia de sangue.

— Por que saiu da banheira? — indaguei ao me abaixar para


ajudá-la.

— Tive medo... Tentei ir até você. Estou vendo coisas


estranhas — respondeu com um som quase que imperceptível.
Deveria estar delirando.

— O que foi isso? De onde é esse sangue? — Acariciava o


seu rosto, receando não vê-lo mais. Logo a peguei e coloquei de
volta na banheira.

— Está acontecendo… — falou mais fraca.


As vozes juntamente com as pancadas nas portas e janelas
estavam intensas. Os pensamentos dos nativos também me
deixavam atordoado, não conseguia manter o controle da minha
mente por causa da tensão que vivenciava.

Depois de ajeitá-la, percebi que na lateral de seu vestido havia


um furo e sangue, então o rasguei na altura de sua barriga. Assim
que terminei o ato, constatei uma abertura em seu ventre, era um
pequeno corte irregular, mas a fazia ter hemorragia.

— Maíra, você fez isso? — perguntei, procurando por algum


objeto cortante por perto. Acreditei que ela tivesse tentado matá-lo.

— Foi ele... Está tentando sair.. — respondeu em prantos,


segurando as bordas da banheira com força. E novamente gritou.

Em seguida uma enorme onda se formou e a pequena fissura


se rasgava ainda mais. Eu não podia deixá-la sofrendo assim.
Minhas mãos não me obedeciam, oscilavam incessantemente com o
desespero.

— Eu não sei o que fazer... Não sei — disse a ela, acariciando


sua cabeça, sujando-a com seu próprio sangue. Esfreguei minha
testa como se fosse possível extrair alguma coisa boa que pudesse
salvá-la de seu destino cruel, contudo, aqueles barulhos malditos me
tornavam o ser mais estúpido.

— Tira ele, Liam... Faz o que tem que fazer — implorava em


constante agonia.

— Se eu te cortar, você não vai resistir... — Chorava.


Enquanto eu falava, a lateral oposta de sua barriga começou a se
romper, e logo Maíra convulsionou. Foi quando percebi que não
podia fazer mais nada. Segurei sua cabeça para que não se
machucasse ao se debater, mas tudo que eu fazia era em vão, pois o
filho de Tau estava nascendo, eu iria perdê-la. Então fechei meus
olhos e ouvi a voz de minha tia Kouka, “Mate-a!”

Ajoelhado ao lado da banheira, levantei o atiçador e a


apunhalei. Eu não podia acreditar no que estava acontecendo. Olhei
para seu abdômen e seu filho, dentro dele, permanecia imóvel. Era
tanto sangue esvaindo pelo ralo. Três foi o número de vezes que a
perfurei até que a criatura morresse e junto com ela, meu amor.

— Minha Maíra... — sussurrei, a puxando para fora da


banheira. Debrucei-me e a abracei. Fiquei refletindo se seria essa
ligação que eu tinha com ela. Eu a protegi para esse fim? Era sobre
mim aquela visão, sobre amar o que não deveria. Talvez por amar
alguém que não pertencia a sua natureza. Nada fazia sentido,
mesmo depois de sua morte. — Meu amor, me desculpa! Me
desculpa! — Estava inconsolável.

As pancadas na porta continuavam e já dava pra perceber


que eles atearam fogo no local. No entanto, de tudo o que acontecia,
um único ruído me chamou atenção, era bem sutil como o de uma
serpente rastejando ao chão, pronta para atacar. Imediatamente
olhei em sua direção, mas nada encontrei. Estava certo de que o
som havia deslizado pela parede e sumido pelo basculante
quebrado, porém me deparei apenas com a lua, que iluminava
aquela cena trágica. Embora meus pensamentos embaralhados,
meu instinto me fez olhar novamente para a barriga de Maíra. Não
havia mais nada ali. Ele tinha conseguido sobreviver e escapar. Era
astuto apesar de recém-nascido e mesmo ferido, ágil. As
apunhaladas só serviram para ajudá-lo a sair com mais facilidade. Eu
o perdi e perdi sua mãe.
16 TICÊ

Em meio ao fogo e fumaça, fui à porta levando Maíra em


meus braços.

— Ela morreu! — gritei para que todos ouvissem.

— Onde está o monstro? — o pajé Aiwá perguntou.

— Achei que o tivesse matado, mas fugiu — respondi


apático.

Todos começaram a murmurar, alguns se alarmavam


indignados. De longe era possível ouvir os lobos uivando. Suspirei,
tristonho.

— Entregue-a para gente! — Um guerreiro da tribo dos


canibais pediu, audacioso. Naquele momento senti um grande ódio.

— Não entregarei! — berrei com fogo nos olhos e o tom de


voz alterado. Percebi que minhas mãos começaram a queimar a pele
de Maíra, então a coloquei no chão. Ainda abaixado a observava
dormir eternamente, esperando me acalmar, pois queria evitar uma
guerra entre mim e eles. Eu não queria aceitar, precisava fazer algo.

Existia uma história que circulava na região sobre um animal


que havia ressuscitado através de um ritual indígena. Não sabia o
quanto era real e o quanto era lenda, todavia, me ocorreu que talvez
fosse a solução para trazê-la de volta a mim.

— Aiwá, meu amigo! — chamei em alto som enquanto ele se


afastava. Parecia sentir o que eu iria pedi-lo, pois antes havia me
analisado, desviando seu olhar rapidamente. Ele parou e
permaneceu de costas por alguns segundos, depois se virou. Logo
peguei Maíra no colo e fui até ele. Nessa hora, as tribos já
começavam a se dispersar apavoradas, mas procurando a criatura
pela mata. Poucos nativos estavam presentes durante o meu pedido
ao pajé. — Ouvi dizer que algum indígena fez um animal tornar a
vida. Você sabe de algo?

— Você não pode mexer com as coisas do submundo e supor


que tudo vai ficar em paz. É ingenuidade, coisa de menino e você
não é um menino. Esquece! Ela está descansando. Não mexerão
com sua alma, era boa. — sugeriu ele. Fácil para quem não está
padecendo.

— Então não é lenda! — retruquei, impaciente.


— Você não escutou o que eu te disse? — perguntou,
injurioso.

— Eu quero ela de volta e eu preciso da sua ajuda — falei,


firme, com os olhos marejados.

Aiwá a olhou em meus braços e ficou reflexivo, depois mirou


seu filho, o qual se encontrava com sua lança apontada para mim e
suspirou.

— Sei que te devo a vida do meu filho. Não sei como seria
perdê-lo. Mas saiba que estou arriscando muitas vidas por essa. Não
temos conhecimento de como voltará. Ela não era uma simples
menina, apesar de ter sido boa até sua morte. Tudo pode mudar!

— Eu serei responsável por tudo — prometi, decidido.

— Eu te levarei a quem pode fazer algo por ela, porque o


poder não é meu. — Apontou para o chão com cachimbo na mão .

Adentramos a floresta, Aiwá, alguns de sua tribo e eu,


segurando o corpo de Maíra. Fomos em uma direção oposta ao
grupo dos nativos que procuravam o recém-nascido. O líder da tribo
nos guiava ao templo de Ticê, a deusa do submundo, esposa de
Anhangá. Estava quase amanhecendo e já era possível
enxergarmos a trilha sem as tochas. Depois de mais alguns minutos
caminhando, chegamos em uma cachoeira. Aiwá havia dito que o
local do ritual era do outro lado e seria necessário passar por baixo
da queda d'água. O espaço era bem apertado e perigoso. Na
tentativa de atravessar, dois nativos escorregaram e desapareceram
imediatamente na correnteza. Tive medo, pois a carregava e isso
poderia dificultar minha destreza, entretanto, como parecia ser
destino, mesmo sem me apoiar nas rochas, tudo funcionou
perfeitamente.

Ao entrar, senti uma presença se aproximando, um ar gelado


subindo pelas minhas pernas que de repente se dissipou. Eu olhei à
minha volta e não vi nada. Percebi uma grande rocha no centro do
templo e uma abertura no interior da mesma. No instinto, sabia que
era ali que eu deveria pôr Maíra. Logo que a coloquei, uma mão fria
passou pelo meu cabelo e acariciou meu pescoço. Olhei para trás e
vi uma linda mulher. Tinha os cabelos negros longos que chegavam
ao chão, eram ondulados e permaneciam em movimento, como se
tivessem em meio ao vento. Seus olhos vermelhos pareciam tentar
me seduzir, mas seu feitiço não tinha efeito sobre mim.

— Não vai me oferecer nada para me ter? — questionou,


surpresa. — Normalmente é o que costumo ouvir.

— Na verdade eu preciso que me faça algo. — Fui ousado.


Ela passeava pelo templo, nos rodeando.

— Entendi. —Sorriu, sedutora. — Você a quer de volta. —


Alisou os cabelos de Maíra.

— Sim. E o que você quer em troca? — perguntei, obstinado.


Ticê ergueu seu olhar apressadamente.

— Hum... Nada — respondeu ela.

— Nada? — Semicerrei os olhos, desconfiado.

— Eu só acho a história de vocês parecida com a minha e de


meu amor, uma feiticeira e um Deus — disse, dengosa.
— Você não é uma deusa? — perguntei, intrigado.

— Já fui feiticeira há muito tempo. É isso... — explicou,


observando a barriga de Maíra. — Tem uma coisa... Eu não quero
que se alie a Tau e Jurará. Me aliar a eles era algo impossível e
queria Maíra viva, esse era o preço mais baixo que tinha ouvido uma
divindade pedir a alguém. Estava estranho, mas aceitei na mesma
hora. — Se você tentar me enganar, a alma dela vou resgatar. Farei
essa menina sofrer eternamente no submundo. — Ameaçou-me com
um sorriso maligno.

— Não irei. — Estava certo disso.

Ticê abaixou a cabeça e quando levantou o rosto, seus olhos


estavam completamente brancos, sua face estava desconfigurada e
seus enormes cabelos, formavam uma teia gigantesca. No momento
em que estendeu seus braços, um terremoto tomou conta do lugar,
algumas pedras começaram a cair da parte superior do templo. E ao
juntar suas mãos concentrou uma grande força, que imobilizou tudo
ao nosso redor. Senti quando o suor do meu rosto parou de escorrer.
Logo o corpo de Maíra começou a flutuar e subir. Embora eu
quisesse continuar a observar, não conseguia me mexer. E de
repente, a deusa feiticeira lançou algo sobre ela, era como uma
sombra negra que saía das pontas de seus dedos. Na mesma hora,
a menina começou a descer, repousando novamente sobre a rocha,
e eu voltei a ter o controle dos meus movimentos. Vi seu corpo se
regenerando enquanto as pedras, que estavam paralisadas no ar,
caíam ao seu redor. Em seguida ela inspirou tão fortemente, que
pude ouvir o sopro da vida entrando em seus pulmões. Então Maíra
abriu os olhos. Ainda estava longe, assustado, mas me aproximei.
Seus olhos haviam mudado de cor, estavam negros. Ela parecia
hipnotizada olhando em direção a uma abertura que tinha na parte
superior da caverna. Porém rapidamente virou o rosto e
surpreendentemente me empurrou contra a parede. Algumas pedras
despencaram por causa do impacto. Foi até mim e me levantou com
uma só mão, me segurando pelo pescoço, encostou seu rosto ao
meu, fechou os olhos e começou a fazer um gesto como se
estivesse sugando algo. Então a empurrei e vi Ticê gargalhando.

— Calma feiticeira, ele é nosso amigo — disse a deusa com


um enorme sorriso.

Maíra me olhou com um semblante de morte, sua respiração


estava ofegante.

—Vai lá. Tem vários pra você — continuou Ticê.

Logo vi o quanto ela era rápida e forte.

— O que foi isso? — indaguei, abismado. Antes que eu


tivesse a resposta, ouvi vários gritos. Corri para a entrada e
vislumbrei vários corpos pelo chão. Eram dos guerreiros que haviam
me levado com o pajé Aiwá. Maíra estava segurando duas pessoas,
uma em cada mão e imediatamente seus corpos iam ressecando
conforme os sugava. Olhei para trás querendo explicação, mas como
imaginei, Ticê havia sumido. E ao me virar, reparei o líder da tribo me
olhando, revelava seus pensamentos, ”A dívida já está paga, agora
precisa dar um fim no monstro que você é o responsável pela
criação.” Bufei, desnorteado.

Maíra estava descontrolada. Alguns indígenas tentaram


afastá-la com lanças, contudo, nada a parava. Então me apressei e a
agarrei por trás.

— Maíra, me ouça... — falei em seu ouvido enquanto ela se


debatia tentando sair. O ruído que fazia era estranho, parecia rosnar
como um animal. — Maíra! — gritei tentando chamar sua atenção e
a girei para mim. Olhamos um nos olhos do outro.

— Quem é você? — perguntou ela.

Fiquei ali parado a imobilizando, no entanto, não por muito


tempo, pois alguns homens preparavam o arco e flecha para tentar
matá-la. Eu não sabia se isso era possível, mas não me arriscaria
perdê-la novamente.

— Vamos! Eles vão tentar te matar! — Puxei-a pelo braço.


Nós corremos até a queda da cachoeira, paramos por um momento
e ficamos nos olhando. Os nativos estavam vindo logo atrás, não
tínhamos como pensar se era a melhor decisão. Então segurei sua
mão e saltamos.
17 RENASCIDA

A correnteza estava muito forte, a natureza estava agitada.


Havia amanhecido e os raios de sol atrapalhavam a minha visão.
Maíra não conseguia se segurar em nada, a minha capa, que ainda
usava, a dificultava a se mexer. Parecia estar cada vez mais se
afastando de mim. Já era a quarta tentativa, dessa vez eu tinha me
agarrado em um tronco de árvore e estendido minha mão a ela, mas
novamente sem sucesso, e continuou a ser levada pela água. Até
que finalmente a vi subir em uma pedra, ficando do lado oposto ao
meu.

— O que faremos? — perguntou gritando, pois o barulho das


águas estava muito alto.
— Você consegue ir até a margem do seu lado? — indaguei,
preocupado.

— Sim — respondeu, analisando possíveis trajetos. Maíra


saltou poucas pedras, pois já se encontrava próximo à beira. Quando
chegou na superfície segura, ficou me aguardando. Ao olhá-la
parada, com aquela expressão assustada, não conseguia acreditar
que estava viva novamente. Eu sabia que estava diferente, porém
me sentia completo.

Investiguei a área que estávamos e percebi que seria difícil


chegar até o lado dela, então eu fui até a margem próxima de mim.

— Vamos seguir o rio cada um em sua margem. Quando


parecer mais calmo, nos encontramos — sugeri. Ela concordou.

— Quem é você? — perguntou depois de um tempo de


caminhada.

— Liam... Você não lembra de nada? — Estava curioso,


chateado.

— O quê? Não entendi... — Era difícil compreender o que


falávamos com ruído estrondoso da correnteza.

Andamos por cerca de duas horas. Via que Maíra parecia não
entender o que ocorria. Observava tudo, todo som chamava sua
atenção assim como cada animal que passava. Então chegamos em
uma área onde o rio parecia raso e tranquilo.

— Você vem até mim ou irei até você? — ela me perguntou.


— Eu vou. — Peguei o meu cajado, que acendeu no instante
em que encostou na água, e fui testando se havia algum declive. O
rio tinha água escura, não era possível enxergar com clareza.
Cheguei até ela e queria beijá-la, entretanto, tinha certeza de que
não seria o melhor momento.

— Me diz quem é você? — Sorria, docemente. Nem parecia


ter matado um monte de índios horas atrás. — Não deu para te
ouvir, tinha muito...

— Muito barulho. — completei. Maíra pareceu surpresa pelo


fato de eu ter continuado sua frase. — Sou um amigo...

— Hum... Um amigo — interrompeu-me. Ela começou a andar


em minha volta, me fitando de cima a baixo. — Você é humano?

— Não... Você não se lembra mesmo de mim? — Estava


indignado. Ela fez um olhar intrigante, arqueando sua sobrancelha.

— Eu deveria? Você é importante? — falou, provocadora. Não


soube o que responder.

— Venha, vamos procurar um lugar pra ficar. Estou cheio de


fome e cansado, o dia foi longo. — murmurei, saindo andando.
Àquela altura eu já sabia em que parte da floresta estávamos. —
Vamos parar um pouco aqui. — Sentei-me ao chão, embaixo de uma
árvore.

Maíra parecia não estar cansada, mas também tinha pouco


tempo que renascera. Ela continuava olhando para todos os lados.

— Tem alguém por aqui — afirmou, se escondendo.


Era um casal de namorados, que estava se aproximando de
nós. A mulher pegou um tecido em sua bolsa e forrou o chão.
Sentaram-se, retiraram frutas e pães de dentro do cesto que o rapaz
carregava. Maíra parecia uma onça, agachada atrás do arbusto.
Antes que eu pudesse notar a sua intenção, ela os atacou. Tudo
aconteceu extremamente rápido. Fiquei estarrecido, sem ação
enquanto a observava os arrumando no chão.

— Você não está com fome? — falou como se assassinar


pessoas fosse a coisa mais natural do mundo. Ela se abaixou e
começou a retirar a roupa da mulher. Eu não entendia o que queria
com aquilo até ficar nua em minha frente. — Me ajude a prender o
vestido — pediu enquanto se trocava sem constrangimento algum.
Engoli em seco.

Estava assustado, porém foi a primeira vez que desfrutei de


sua nudez, não conseguia deixar de desejá-la. Acheguei-me, e ela
se virou, colocando seu cabelo de lado, para frente. Fiquei
observando seu pescoço, queria beijá-lo. Mordi o lábio.

— Não vai prender para mim? — indagou, me olhando de


esguelha. Franzi minha testa, encabulado. Estava agindo como um
inexperiente. Ridículo!

— Vou… vou... — gaguejei ao ouvir um risinho.

Depois que terminei de amarrar o vestido, o qual tinha sido


conquistado de forma violenta, ela olhou profundamente em meus
olhos com um semblante que esbanjava sensualidade.

— O que éramos um para o outro? Só amigos? — indagou


Maíra.
— Por que está perguntando?

— Senti seu coração agitado quando me vislumbrava sem


roupa — respondeu, colocando uma das mãos em meu peito e
sorriu. — Seus olhos são diferentes um do outro. Eu gostei —
finalizou ela.

Em seguida, retirei sua mão e desconversei: — Você não


pode sair matando as pessoas...

— Nossa! Estou aqui te elogiando, e você reclamando... —


falou de um jeito cínico.

— Você está tentando me lançar enfeitiçar! — rebati, tentando


me conter.

Então ela sorriu por um tempo e continuou: — Eu não preciso,


já senti que meu feitiço está sobre você.

Depois de ouvi-la, não consegui parar de encarar seus lábios.


Aproximei-me e a beijei intensamente.

— Tivemos mais do que isso? — perguntou, olhando


profundamente em meus olhos.

— Não, mas podemos ter — respondi, eufórico.

E assim, em meio a beijos e carícias, ao lado de espectadores


mortos, nós tivemos a nossa primeira vez.
Estava, de certa forma, tranquilo em relação a sua proteção.
Ela parecia finalmente saber usar seus antigos poderes e mais
outros que havia acabado de receber. Por algum tempo me esqueci
de tudo e só fiquei ali, com ela em meus braços.

— O meu amigo tem algum nome? — indagou, zombeteira, ao


acariciar o meu rosto.

— Liam. Significa proteção.

— Tem alguma coisa a ver com o fato de me proteger? —


falou, dramática, arqueando a sobrancelha.

— Você me deu esse nome. Eu não tinha um. — Sorri. — Vi o


significado em seus pensamentos, quando conseguia lê-los.

— Sério? E agora como vai ser? — debochou ao se sentar. —


Eu já sei me defender. Devo mudar seu nome? — Sorriu de forma
encantadora.

A luz do sol, atrás Maíra, ofuscava minha vista, fazendo


sombra em seu rosto, eu enxergava apenas sua bela silhueta. Seus
cabelos se derramavam sobre mim enquanto se debruçava
novamente ao meu encontro. Suspirei.

— Já me acostumei com esse nome. Não é tão ruim —


brinquei, alisando suas madeixas loiras.

E fizemos amor mais algumas vezes.


18 QUEM É ELE?

Quem era ele? Por que se importava comigo? Teria sido um


desperdício tê-lo matado naquela caverna.

Tudo era novo pra mim, o cheiro da floresta, o barulho dos


pássaros, o brilho do sol parecia diferente. Eu não me recordava de
nada, contudo, tinha sensações que provavelmente eram antigas.
Durante o tempo que caminhamos às margens do rio eu o
observava. Apesar de eu me achar poderosa, ele fazia eu me sentir
indefesa e frágil, estava sempre alerta a tudo. Não sabia como faria
para me defender de algo, mas tinha certeza que estava protegida.

Quando chegou até a mim, me encarava incessantemente,


sentia que era um enorme esforço desviar seu olhar. Acho que fomos
mais que amigos, cogitava. Queria conhecer mais sobre o nosso
passado, porém sempre que eu perguntava alguma coisa, ele
desconversava. Era nítido que estava chateado por eu não lembrar
dele. Não era comigo, entretanto, com algo que aconteceu, o qual
tirou minha memória.

Depois de algumas tentativas sem muito sucesso em entender


melhor nossa relação, escutei algumas vozes, pareciam duas
pessoas, talvez três e estavam bem perto. Era um casal de
namorados. Seus batimentos cardíacos, altos, me fizeram sentir
bastante agonia. Tinha uma intensa vontade de pará-los. Eu não os
queria porque estava com fome, mas alguma força dentro de mim
me instigava a acreditar que era necessário fazer algo para um bem
maior. Então me escondi, a fim de que não me percebessem.

Quando a mulher se inclinou para arrumar a toalha no chão,


notei o rapaz distraído olhando seu busto, logo os ataquei. A
sensação que eu tinha era de um imenso prazer que se dissipava
muito rápido e só aumentava o anseio de desfrutá-lo cada vez mais.
Eu saboreava o gosto das suas últimas lembranças. Era
interessante, mas também cansativo, pois eu vivenciava os seus
sentimentos finais. Apesar de tudo isso, o que mais me atraiu
naquele momento foi o visual daquela mulher, ela parecia super
desejada. Tive inveja, queria receber essa atenção. Havia gostado
de seu vestido na cor vinho, o pegaria para mim. O meu estava
desgastado e rasgado, tinha sangue por toda parte, o que me fazia
acreditar que eu tinha participado de uma batalha. Em seguida,
retirei toda minha roupa e o vi me querendo, estava paralisado com
os olhos fixos em meu corpo. Também o queria e sabia o que deveria
fazer.

— Me ajude a prender o vestido — pedi com segundas


intenções. Ele se aproximou, sua respiração esquentou o meu
pescoço. Mordi o lábio, excitada. O homem misterioso estava
desconcertado, me respondeu gaguejando. Achei engraçada e fofa a
sua tentativa de me fazer achar que não se sentia atraído por mim.
Então ele começou a puxar as cordas do vestido para amarrá-
lo. Estava tão perto, me sentia enfeitiçada por ele. Quis saber mais
uma vez o que éramos um para o outro. Entretanto todas as
perguntas que eu fazia ele não me respondia com clareza, parecia
tentar me enrolar. Eu não compreendia, pois sabia que me desejava
por completo.

— Você não pode sair por aí matando as pessoas —


resmungou novamente, mudando o rumo da conversa.

— Nossa! Estou aqui te elogiando e você reclamando...

— Você não está simplesmente me elogiando. Está tentando


me enfeitiçar — respondeu.

Quando o homem dos cabelos vermelhos me disse aquilo,


percebi que já me pertencia, no entanto, tinha medo de se entregar.
Não conhecia o porquê, mas tinha. Achei que nada aconteceria entre
a gente, porém de repente o senti me puxando, colocando sua mão
firme em minha cintura, e seu coração batia forte. Eu só torcia para
que não desistisse. Então ele acariciou meu rosto, deslizando seus
dedos até a minha nuca e puxou levemente o meu cabelo. Olhou-me
por alguns segundos e começou a beijar lentamente o meu queixo.
Arfei. Meu corpo estava quente e trêmulo.

— Tivemos mais do que isso? — sussurrei.

— Não, mas podemos ter — disse baixinho em meu ouvido e


chupou o lóbulo da minha orelha. Gemi.

Então me deitei e ele se debruçou sobre mim. Eu tinha que


ser dele e ele, meu. Continuava sem ter ideia de quem era aquele
homem, contudo, possuía a certeza de que sempre o quis.

Não precisava de mais nada, tudo estava perfeito. O som da


floresta, o som das águas e a única batida de coração que não me
incomodava, e sim me acalmava, eu podia ficar horas ali ouvindo.
Logo apoiei minha cabeça em seu peito, me fazia sentir tão bem. E
finalmente descobri seu nome, Liam... Eu havia dado esse nome a
ele. Era estranho não me recordar de nada. Como isso teria
acontecido?

Ficamos ali, nos divertindo por mais um tempo até começar a


anoitecer, a lua já havia aparecido timidamente. Nós tínhamos
acabado de nos vestir, nos olhávamos e sorríamos constantemente,
estávamos apaixonados. E de repente tudo parou, o tempo parecia
congelado, Liam também não se mexia. As copas das árvores não
se balançavam com o vento, afinal de conta, não havia vento.
Nenhum som era ouvido, era um enorme nada. Meu corpo parecia
flutuar, não enxergava mais onde me encontrava. Em seguida
comecei a ver uma luz, brilhava bem no fundo de um corredor
escuro. Eu ouvia apenas uma voz: — Maíra, Maíra, Maíra...

E em um impulso, minha matéria foi lançada rapidamente para


frente, próximo de onde vinha a luz. A sensação era de estar presa
embaixo d'água como se a superfície, para onde eu olhava, fosse de
puro gelo. Então eu pude enxergar três pessoas.

— É ela! É a Maíra.

Eu não entendia o que me procedia, me via em perigo e,


diante disto, eu simplesmente puxei uma delas para junto de mim,
sugando sua alma. Da mesma forma que entrei nesse transe, saí
inesperadamente.
— Maíra, acorda meu amor! — Liam me sacudia, nervoso,
abaixado ao meu lado.

— O que aconteceu? — Mesmo parecendo um sonho, tinha


convicção de que era verdade, pois ainda possuía comigo as
lembranças da vítima.

— Você desmaiou. — disse, assustado. — Está sentindo


alguma coisa? Alguma dor? — Segurava minha mão.

— Não estou sentindo nada, mas aconteceu algo estranho


comigo… Eu vi algumas pessoas que me chamavam. Tudo estava
muito escuro, mas tinha uma luz bem longe.

— Será que isso foi um sonho, uma alucinação?

— Não, Liam... Eu tenho certeza que matei alguém. — Minha


voz embargou, fiquei aflita com o episódio. Ele me olhava assustado
ao me levantar do chão.

— Vamos procurar um lugar para passarmos a noite — disse


ele.

Liam acreditava que deveríamos sair do centro da floresta,


que o ideal era irmos para a cidade; apesar de colocarmos todos em
risco, eles nos defenderiam contra os nativos.
19 CALMARIA

Chegamos na pensão, a qual Liam mencionou enquanto


estávamos na floresta. O local estava em péssimo estado, nos
quartos não havia nenhuma cortina e o amontoado de teias de
aranha e poeira adornavam o terrível lugar. O público era bem pobre,
em cada aposento dormiam mais de três pessoas, mas ainda assim
os usuários daquele estabelecimento eram em menor quantidade do
que na taberna que ele costumava ficar. Para Liam dessa forma seria
mais fácil me conter.

— Não sou tão perigosa assim! — falei, tentando convencê-lo


de nos hospedar em um lugar mais agradável. Liam franziu a testa,
me olhava como se realmente eu pudesse surtar e atacar a todos.
Não o culpo, na verdade eu não sabia me controlar, contudo, não
enxergava isso como um problema na época.
Então entramos no quarto, a primeira coisa que eu me deparei
foi um rato passando em cima da mesa. Encarei Liam e ele me
olhou, debochado.

— Não é tão ruim assim... — falou, se ajeitando na cama. — A


gente ia dormir na floresta...

Ignorei seu comentário, que de certo modo era coerente,


porém não daria o braço a torcer. Logo comecei a analisar o resto do
quarto. A janela dava para uma igreja onde acontecia uma missa. Eu
vi algumas pessoas com velas nas mãos, choravam alto. Fiquei
observando por um tempo. Liam estava caçando o rato, mas para
minha surpresa, ouvi quando conversava com o animal após pegá-lo.
Ele não o mataria, é claro, tinha um cuidado estranho com tudo e
isso me atraía ainda mais.

De repente os fiéis começaram a sair da igreja. Um padre ia


na frente rezando em uma língua que eu não entendia, parecia um
ritual fúnebre. Todos estavam de branco. Achei tão curioso.

— Vem cá, deita aqui comigo. — chamou-me, depois de


colocar o rato para fora do recinto, ainda vivo.

— Estou assistindo uma procissão. Já vou… — Apoiava-me


com os cotovelos no beiral da esquadria. Liam fez uma cara confusa,
veio até mim e me abraçou por trás, colocando o seu rosto sobre
meu ombro.

— Que procissão, meu amor? — perguntou ele. Então me


virei, olhando para ele, surpresa. — Não está vendo? — Sorri. Achei
que estivesse brincando, no entanto, percebi pelo seu semblante
sério que não era mentira. — Tem uma procissão acontecendo
aqui... Aquela senhora na casa da frente que está com uma vela na
mão, também está assistindo.

— Estou vendo a velha, mas a cidade está até vazia, tem


poucas pessoas na rua, Maíra — explicou. Fiquei abismada com
tudo. Por que será que eu via e ele não? Parecia tão real.

— Você não está acreditando em mim, não é? — disse


revoltada, tirando seus braços de minha cintura. Em seguida me
direcionei para a cama.

— Eu acredito, só não vejo... — continuava o assunto com um


olhar angustiado. —Ei... você faz coisas diferentes de mim, deve ver
coisas diferentes também, talvez por ser algo sobrenatural. Sei lá...

— Liam, você é sobrenatural. Esqueceu? — Revirei os olhos.


Ele se achegou e se sentou em uma cadeira.

— Tudo bem... Pode ser um poder que você tem e eu não.

— O poder de ver gente estranha andando pela rua? — Fui


irônica. Por alguns segundos ficamos em silêncio e achamos graça
do meu comentário. Ele era lindo, estava feliz de estar com ele. Seria
difícil vivenciar tudo novo, sem ter ninguém por perto. Contudo Liam
não era apenas uma companhia, ele também me tranquilizava. O
jeito que me olhava era maravilhoso e constrangedor ao mesmo
tempo, porque não conseguia ler seus pensamentos, porém era fácil
deduzir suas intenções. Já estava muito apaixonada. Como isso era
possível? Que ligação tínhamos? Queria saber mais.

— Me conta tudo o que aconteceu comigo? — indaguei de


supetão.
Ele estava sentado com seus cotovelos apoiados em suas
pernas, me olhando. Quando pedi que me falasse sobre mim, se
esticou, se jogando lentamente para trás até encostar no arrimo do
móvel. Então suspirou e desviou seu olhar. Com toda sua
performance, percebi que não queria dizer nada a respeito, mas era
a minha vida e eu não deixaria de desvendá-la. Ele se voltou para a
mesa e bebeu um pouco de água que havia em uma garrafa, a qual
parecia ter sido esquecida pelo hóspede anterior e depois me
encarou.

— Eu vou contar — falou meio hesitante. — Não é muito boa


a sua história.

— Eu só quero saber quem eu sou e entender porque eu sou


assim — pedi, cabisbaixa.

Liam me revelou o que parecia realmente ser tudo. Começou


pelo meu primeiro contato com ele, em meu jardim. Falou sobre o
meu noivado e como eu estava desolada quando nos reencontramos
na floresta, na noite em que a sereia deu a ele uma visão. Contou-
me sobre o metamorfo, seu avô, que fingiu ser Arlo. Como e quando
descobriu ser um Deus e eu, uma feiticeira. E por último sobre a
minha mãe.

— Nossa! Minha mãe foi responsável pela morte da minha


irmã... Não é boa mesmo a minha história. E o que aconteceu
comigo? Você disse que a sereia te deu uma visão e que eu não era
assim… — Sentia-me perdida nos fatos. Ele respirou fundo.

— Você morreu durante o parto, Maíra — respondeu com os


olhos lacrimejados.
— Morri? — Bufei, assustada. Imaginava como teria ocorrido
o momento. — E onde está meu filho? — perguntei, intrigada.

— Não era uma criança, era algo amaldiçoado... Uma criatura


— disse pausadamente, cauteloso. Engoli em seco.

— E como eu voltei a vida? A gente estava em um templo,


não era? Foi lá que meu filho nasceu? — A cada resposta dele, mais
dúvidas surgiam.

— Estávamos no templo da deusa Ticê, a rainha do


submundo — explicava sem me olhar. — Ela te trouxe de volta. —
Liam outra vez não me respondeu com clareza. Existia algo a mais,
porém não queria suspeitar dele. Éramos só nós dois.

— Mas por quê? — insisti. Ele emudeceu. — Então


simplesmente ela quis que eu vivesse? — Havia lacunas nos
acontecimentos. Semicerrei os olhos, analisando os seus trejeitos.

— Ela disse que nós, como casal, tínhamos coisas


semelhantes a ela e Anhangá. — Ele parecia inquieto, se ajeitando
toda hora no assento. Suspirei, incrédula.

— Não foi por isso… — fui enfática.

— Foi — afirmou Liam. — De alguma forma você matar essas


pessoas é bom para os dois. — Ele omitia algo, contudo, seu
comentário final fazia sentido. Eles controlavam o submundo, cada
morte que acontecia agregava mais almas a eles. Entretanto, para
quê?
Então me obriguei a aceitar apenas o que me contou, porque
eu sentia medo do novo e precisava dele perto de mim.
20 ALMAS E MAIS ALMAS

Acordei no meio da noite. Virei-me na cama para abraçá-la e


percebi que não estava lá. Levantei sonolento e tropecei nas minhas
roupas espalhadas pelo chão. Ainda meio tonto coloquei minha calça
e fui atrás de Maíra.

A pensão estava escura e silenciosa, todos dormiam. As


portas dos quartos estavam fechadas ou pelo menos encostadas.

Desci as escadas e fui procurá-la no andar debaixo, talvez


estivesse com fome ou sede, mas a cozinha estava ainda mais
silenciosa que os outros ambientes. Quando me retirava do local, vi
um rato morto no meio do lugar. Aquele animal não teve a mesma
sorte que antes, porém certamente não era o que estava em nosso
quarto, ali deveriam ter vários e ao andar pela pensão, percebi mais
uns três agonizando pelos cantos.
—Maíra... — murmurei, apreensivo.

Aquilo estava estranho, logo fui seguindo meu instinto. Vi uma


porta entreaberta no fim do corredor, parecia ter um lampião aceso, a
luz estava fraca. Eu tinha dúvidas se deveria entrar e olhar, porém
algo me impulsionou a fazer isso. Empurrei mais a porta, o que a fez
ranger drasticamente lhe assustando.

Maíra sugava a vida de um adolescente. Ela me fitou com os


olhos esbugalhados e deixou que seu corpo caísse ao chão. O
menino ainda estava vivo, começou a rastejar até a mim, pedindo por
ajuda. Então levantei meu rosto e a encarei.

— Foi só ele? — perguntei já sabendo que teria que matá-lo.


Estava bem fraco, mas talvez sobrasse fôlego apenas para delatar
quem o feriu. Ela demorou a me responder, estava constrangida.
Vestia uma camisola que não era dela, o que me fazia acreditar, que
pelo menos uma mulher, ela também teria assassinado.

— Todos — sussurrou, iniciando um choro.

— O quê?! — indaguei, estarrecido.

Então ela repetiu, soluçando: — Todos. Não consegui...

Na mesma hora em que me respondia, olhei para o rapaz que


gemia, me abaixei e quebrei seu pescoço.

— Vamos embora agora! — disse a puxando pelo braço,


apressado.
Enquanto voltávamos para nosso quarto comecei a reparar o
que não tinha visto, porque o sono vendou meus olhos. Pelas portas
entreabertas, corpos espalhados pelos quartos. Nada me assustava
mais que Maíra.

— Coloque a sua roupa! — gritei, querendo que ela retirasse


rapidamente o que havia conseguido através da morte de uma
inocente, porém logo notei que o vestido, o qual me referia, também
pertencia a uma outra vítima.

— Me desculpa… Me desculpa... — balbuciava, chorando.


Não conseguia olhá-la. A culpa era totalmente minha e não podia
revelar isso a ela. Sentia-me horrível em deixá-la cogitar ser a
responsável daquela tragédia, mas temia perdê-la. — Me desculpa,
Liam. Por favor, olha pra mim... — Tocou o meu rosto. — Olha pra
mim. Não quero que me veja como um monstro.

— Eu tive que matar uma pessoa hoje. — falei, atordoado,


balançando a cabeça sem acreditar. Maíra me observava, tristonha.
— Antes eu… Eu não quis matar um rato… — Esfreguei meu rosto,
enxugando as lágrimas que precipitaram. Depois de ficarmos alguns
segundos nos olhando, abracei-a. — Vão vir atrás da gente. Temos
que ir. — Beijei sua testa. Ela assentiu.

O que eu tinha feito?, essa era uma pergunta que eu não


parava de me refazer. Eu deveria saber que não seria algo simples, a
sua volta. Na verdade, fui avisado, mas ignorei os fatos por ter me
apaixonado por ela. Estava indo contra tudo o que eu defendia,
deixando rastro de mortes. A que ponto eu cheguei?

Saímos da pensão e as ruas estavam vazias.


— Eu matei aqueles ratos também — disse, culposa, parecia
estar em constante luta interior. A nova Maíra não era má, era uma
menina ingênua com um poder destruidor.

— Eu sei — respondi, gentilmente. Queria tranquilizá-la. —


Precisamos de um cavalo para sairmos depressa daqui.

— Liam, aquela senhora, que eu te mostrei, ainda está na


janela — alertou, puxando meu braço.

— Não olhe pra ela — ordenei, evitando que Maíra parasse


para analisá-la. — Ela pode contar que nos viu saindo da pensão, e
todos saberiam como somos.

— Entendi — concordou, reflexiva. — Não precisamos de


cavalo, podemos desaparecer. — Maíra disse ao se tornar invisível.
Eu havia esquecido desse seu truque. Logo depois, coloquei a capa
que ainda estava em minhas mãos, ajeitei o capuz e escapamos dali.

<<◇>>

Voltamos novamente para a floresta, pois não podíamos


continuar expondo os moradores ao nosso problema. Tínhamos que
encarar aquilo sozinhos.

— Maíra, Maíra! Vamos por aqui — indiquei um caminho


conhecido. Ela parecia me enxergar facilmente, estava cada vez
mais poderosa.

— Você ainda está chateado comigo? — indagou ao mesmo


tempo em que voltava a visibilidade. Decidi acompanhá-la me
tornando aparente, tirando o capuz.
— Você vai precisar se controlar de alguma forma, meu amor.

— Eu sei, mas eu não consigo — disse, desesperançosa.


Maíra parou de andar e ficou reflexiva. — Pode me abraçar? O meu
coração está apertado… — Aproximei-me e a envolvi com afago,
logo desprendeu o seu choro. — Está tudo aqui em mim... as
emoções delas, as lembranças. Dói muito, demora a passar.

— Vai passar logo, vai ficar tudo bem. — Tentava acalmá-la,


enxugando suas lágrimas. — Ainda é muito cedo, você tem pouco
tempo de renascida.

— Teria sido melhor que eu não tivesse voltado à vida. Pelo


menos essas coisas não aconteceriam — falou, soluçadamente.

Fiquei analisando seu desespero, vi que sofria. Não sabia se a


minha escolha teria sido diferente se eu pudesse voltar atrás. Não
suportaria perdê-la. Talvez fosse egoísmo meu, contudo, também
tinha prometido a ela que não a deixaria morrer.

— Será que é possível reverter isso? — perguntou ao se


sentar em uma pedra, de frente para mim, e ajustar o novo vestido
que conseguiu na pensão.

— Eu não sei — respondi, desiludido.

— Talvez se nós nos encontrássemos com Ticê ou com


Anhangá, eles…

— Não... Não vamos fazer isso — interrompi, impaciente,


estava desestruturado. Ela me fitou com um olhar inocente. Ninguém
poderia imaginar o que ela era capaz de fazer só pela sua aparência.
Parecia uma menina frágil, doce, com uma voz meiga, levemente
rouca e um sorriso super atraente. Isso era uma vantagem que a
feiticeira tinha.

Ficamos ali na floresta, porém ainda próximo da cidade,


esperando clarear um pouco mais, já estava amanhecendo.
Tínhamos receio de adentrar a mata por causa das tribos, não
sabíamos para onde ir.

Nos olhávamos e desviávamos nossos olhares


constantemente. Queria saber o que estava pensando, mas isso não
conseguia há um tempo.

— Qual é o seu plano? — Maíra quebrou o silêncio.

— Eu não sei… — Respirei fundo. — Eu tenho uma tia, ela é


uma caapora, você a conheceu... talvez ela saiba o que devemos
fazer. O problema é conseguirmos chegar até a Floresta Secreta a
salvo.

Ela abaixou a cabeça e começou a falar baixinho enquanto


mexia na terra com as pontas do dedo: — Você está me olhando
estranho. Não quero que me veja como uma assassina.

— Eu não te vejo assim, meu amor — Verdadeiramente não a


via. Logo ela se aproximou, sentou ao meu lado e deitou sua cabeça
em meu ombro. Na mesma hora levantei seu rosto e a beijei.
Enquanto nos acarinhávamos, ouvi passos. Maíra também percebeu
e me encarou afoita. De repente cinco homens chegaram até nós.

— Hum... olha o que temos aqui — falou um homem


repugnante, com um dente de ouro, que brilhava mais do que o
nascimento do sol, ao sacar seu machado. No mesmo instante nos
levantamos.

— Vai dividir seu lanchinho com a gente, ruivinho? — Outro


indivíduo debochou. Fiquei calado observando seus movimentos.
Reparei que Maíra não esboçava medo algum.

— Deita aí, garota! — ordenou o terceiro apontando a arma


para mim. Olhei para ela de esguelha e vi que também me olhava.
Eu não podia ler seus pensamentos, mas compreendia tudo o que
perguntava apenas com sua expressão facial. Aguardava só a minha
confirmação para os atacar. Com gosto, assenti com a cabeça e
peguei o meu cajado.

Logo vi o espanto dos homens quando meus olhos se


acenderam. Dois deles tentaram me arremessar o machado e o
punhal, entretanto, foram os primeiros que Maíra atacou.

Apesar da minha preferência por arco e flecha, os golpes e


poderes que aprendia cada vez que era necessário usar o cajado,
me surpreendia. Fiz um deles queimar por completo em questão de
segundos. Eles tentaram correr, mas éramos rápidos e fortes. Maíra
jogou um contra pedra e antes que sugasse sua alma, já havia
morrido. Vi seu olhar de decepção, confesso que me peguei atraído
por sua maldade. O último me implorou para deixá-lo ir, contudo,
conheci seus pensamentos, sabia que não podia permitir que
sobrevivesse, então o matei. De repente notei que Maíra parecia
atordoada.

— O que foi? — perguntei, preocupado, segurando o seu


rosto pálido.
— A moça da janela… Eles… Eles invadiram sua casa,
roubaram e a deixaram presa em uma dispensa. — ofegava com um
certo pânico. Entendia o que cogitava, todavia, era arriscado.

— A gente não pode fazer nada, Maíra.

— Como não? Ela está machucada e ninguém saberá onde


ela está — insistia, indignada comigo. — Eu vi nas lembranças de
um deles que ela desmaiou. Liam, precisamos fazer algo —
continuou agitada, se afastava de mim.

— Maíra, ela sabe que foi a gente, lá na pensão, nos viu na


rua. — Puxei-a pelo braço, querendo que se atentasse à
insegurança.

— E nós simplesmente vamos deixá-la? Ela vai morrer! —


gritou, se soltando da minha mão. Bufei.

— E daí? Não podemos interferir em tudo! — respondi,


conformado.

— Você já interferiu várias vezes. Me protege mesmo eu


sendo uma aberração! — acrescentou aos berros. — Liam, eu
preciso ajudá-la. Preciso sentir que não sou uma pessoa ruim.

Eu compreendia seu pensamento e queria o mesmo também.


Não conseguia me ver da mesma forma que antes, alguém que
defendia a natureza, que livrava as pessoas do perigo. Agora só me
importava com o bem estar de Maíra.

— Tudo bem, mas precisamos tomar muito cuidado.


<<◇>>

Nós voltamos à cidade, e o exército em peso estava na


pensão. Havia um grande número de caixões espalhados pela
calçada, mas a maioria já estava sendo levado pelas carroças. Com
todo aquele alvoroço na região, passamos por todos sem que nos
notassem. Ao entrarmos na casa da velha senhora, encontramos
tudo revirado, era nítido que havia ocorrido um crime. Maíra sabia
exatamente onde ela estava, devido às últimas lembranças do
delinquente.

— Ela está aqui, Liam — disse, retirando a cômoda escura de


frente a uma porta toda descascada. Abrimos a dispensa e vimos a
idosa caída com um grande ferimento na cabeça. Eu a carreguei no
colo e a coloquei na cama, e em seguida ela acordou.

— Onde eles estão? — indagou a senhora, assustada.

— Eles não estão mais aqui. Pode ficar tranquila. —


respondeu, gentilmente, Maíra enquanto ajeitava o travesseiro para
ela.

— Vocês? Eu vi vocês… — A mulher começou a ficar


inquieta. Maíra imediatamente me olhou com os olhos negros
saltados. Esfreguei a minha testa.

— Não! A senhora está delirando, bateram muito forte em sua


cabeça — afirmei a velha, buscando evitar algo ruim.

— Não... eu sei o que vi. Vocês são bruxos! Mataram todos


eles! Me deixem em paz! — iniciava seus gritos, trêmula. Maíra
segurou a minha mão. Eu pude sentir a sua aflição, estava ofegante.
E de repente a senhora começou a se alterar ainda mais. — Saiam
daqui, seus malditos bruxos! — Tentava se erguer. — Saiam, seus
assassinos!

Vi Maíra começar a chorar. Tapava a boca da senhora com


uma mão e com a outra segurava seus braços. O seus olhos
angustiados pedindo por ajuda, partiu o meu coração. Era necessário
o pior. Depois ela sussurrou: — Me desculpa… Me desculpa... — E
sugou o resto de vida que a mulher quase já não tinha.

Minha Maíra se jogou ao chão em prantos. Eu me abaixei e a


abracei, buscando amenizar sua dor, se é que era possível.
Compreendia ela querer ser útil por tudo que havia feito às outras
vítimas, mas a sua escolha de salvar essa vida, destruiu a esperança
de não se enxergar como um monstro.

— Vamos, Maíra! A gente precisa ir. — Minha voz embargou.


Ela não se mexia, então a levantei, limpei suas lágrimas, no entanto,
se renovavam rapidamente. — Vem. Vai ficar tudo bem. — Tentei
tranquilizá-la.

Maíra ficou sem falar por muitas horas.


21 TRISTE VERDADE

Anoitecia e eu precisava encontrar um lugar seguro para


Maíra, no qual ao mesmo tempo fosse para todos. E nada melhor do
que a floresta onde seus habitantes eram seres sobrenaturais,
contudo, não me recordava onde era sua entrada, afinal de contas,
só havia estado no local uma única vez.

Não sabia se minha tia nos aceitaria. Mas confiaria em quem?


O fato dela ser da família não era o que me tranquilizava, e sim por
ela ser tão fria a ponto de revelar suas intenções sem se importar
com o que achávamos. Nunca me trairia. Família, na minha pouca
vivência, significava ausência e decepção, porém apesar da triste
experiência depois de todas as descobertas, tinha o desejo de formar
uma com Maíra.
— Eu sou um monstro. — Maíra cortou a minha reflexão.

— Não , você não é!

— Está difícil conviver com essa culpa me consumindo —


acrescentou com olhos molhados. — Liam, eu vejo suas
lembranças... Às vezes são pessoas tão boas e eu não tenho como
desfazer suas mortes.

— Eu sei. Mas você pode aprender a se controlar — sugeri


descrente, puxando sua mão, para que se aproximasse de mim.
Depois passei meu braço por cima de seus ombros, enquanto ainda
caminhávamos.

— Eu acho que é impossível — bufou.

Em meio ao desabafo de Maíra percebi que éramos


observados, entretanto, aparentemente não havia perigo, era um
chullachaqui.

— Tem alguém aqui, Liam — alertou baixinho.

— Não vai nos fazer mal — respondi, e continuamos andando.

— Ei! Onde estão indo? — perguntou o chullachaqui.

— Por que quer saber? — Direcionei-me à voz que vinha de


trás.
— Eu moro na floresta que vocês estão procurando. Vocês já
passaram pelo portal algumas vezes — informou o ser sobrenatural.

— A líder da floresta é minha tia, Kouka. — disse, intrigado. —


Pode nos levar até ela?

— Você é o filho do...

— Sim, de Yáci. Você o conheceu? — completei sua fala.

— Ah… sim, o único que não era monstro da família. —


Sorriu. Maíra não falava nada, só nos observava com um aspecto
desconfiado. — Vamos, eu levo vocês. — ofereceu-se o
chullachaqui, se adiantando e ultrapassando nossos passos.

— Devemos acreditar nele? — Maíra sussurrou ao segurar


meu braço.

— Não vejo problema — respondi a ela. — Qual é seu nome?


— indaguei ao ser da Floresta Secreta.

— Wenia — falou, se virando para nós e caminhando de


costa. — É aqui!

Então eu vi a enorme pedra revestida por trepadeiras.


Provavelmente havia algum feitiço que a deixava imperceptível. Logo
passamos pela entrada escura e úmida, era necessário atravessar a
rocha que servia de disfarce para a floresta. De longe eu avistei
minha tia caapora. Ela estava na árvore flutuante. À noite, o lugar era
ainda mais bonito, as folhas das vegetações ficavam reluzentes e
iluminavam toda a floresta.
Quando Kouka me viu se aproximou, estarrecida, olhou
diretamente para a barriga da Maíra. Pelo visto ela não sabia de
todas as coisas que se passavam na floresta. Há dias já tinha
constatado esse fato. Ela nos revelou coisas sobre o passado de
Maíra que não estavam tão corretas. Certamente suas visões não
eram tão precisas e nem instantâneas.

— Estranho, você sobreviveu... Onde está o monstro? —


questionou, afrontosa.

— Podemos conversar em particular? — perguntei a ela,


porque ainda não havia revelado todos os acontecimentos a Maíra.
Eu não pretendia esconder por muito tempo, mas pensava na melhor
maneira de contar.

Ela estava encantada com as coisas que via na floresta e não


se importou que eu saísse para dialogar com a caapora.

— O que houve, Liam? — Sua voz era acusadora. Respirei


fundo.

— Eu não consegui matar a criatura. Tentei, mas ela fugiu —


disse o mais baixo que consegui.

— E essa menina? Ela era pra estar morta. Como sobreviveu?


— Em sua face havia espanto. Hesitei por alguns segundos.

— Não consegui vê-la morta. — Foi impossível encarar minha


tia.

— O quê? E o que você fez? — ofegava, aterrorizada,


parecendo ter medo da resposta.
— Me aliei a Ticê e Anhangá. Eles trouxeram minha Maíra de
volta.

Na mesma hora a cor de seus olhos mudaram e Kouka,


paralisada, começou a falar a língua antiga dos seres da mata.
Estava narrando tudo que havia acontecido. Tentei chamá-la de
volta, porém estava em transe, não tive êxito. De repente ouvi um
barulho atrás de mim, era Maíra. Ela olhava estática para a caapora,
parecendo entender tudo o que estava sendo narrado. A sua
expressão de decepção me corroeu por dentro.

— O que você fez comigo? — indagou, se afastando de mim.


Balançava sua cabeça em reprovação. Que desespero!

— Calma, deixa eu te explicar, Maíra! — Aproximava-me dela.


Sua respiração atrapalhada estava alta.

— O que você fez a mim? — gritou, me lançando contra uma


árvore. Choquei de frente, senti uma intensa dor nas costelas.
Levantei-me rapidamente, mesmo com dificuldade, pois ela vinha em
minha direção. Tentei segurá-la, mas sua raiva a deixava
extremamente forte.

— Eu queria conseguir sugar sua alma — disse com um


semblante diabólico enquanto apertava meu pescoço. As pupilas de
seus olhos negros estavam enormes e vermelhas.

Tentava tirar suas mãos, no entanto, era impossível, então


desisti. E com muito esforço, depois de algumas tentativas, puxei
meu cajado e o bati no chão com muita força.
Em seguida o solo começou a se dividir fazendo com que
Maíra me soltasse. Olhei para minha tia, percebi que ainda estava
em transe, dessa forma cairia no abismo que eu acabava de criar,
logo a empurrei para longe, buscando salvá-la. Quando mirei na
direção de Maíra, não a encontrei.

Corri para a saída da Floresta Secreta, mas ao olhar para trás


notei que a estrutura do lugar estava sendo afetada pelo tremor
produzido por mim, e eu não sabia como consertar. As árvores
começaram a tombar uma após uma. Não me atentei ao poder que
tinha por ser um Deus. Nessa hora, eu vi a líder saindo do transe,
chorando ajoelhada ao chão. Alguns Kuru'pirs e chullachaquis
começaram a retirar partes da vegetação e guardá-las em cestos,
para futuros plantios. Eu havia arruinado o reino de Kouka. Então me
aproximei dela, precisava ajudá-la de algum jeito, contudo, ouvi seu
forte grito que me fez desmaiar.

Assim que acordei tudo estava silencioso e muito escuro, não


havia nenhum sinal de ter existido ali uma floresta deslumbrante.
Todos tinham ido embora, menos Maíra que me observava distante,
por trás dos troncos caídos de árvores. Estava invisível, mas a
enxergava com os meus olhos de fogo.

De repente, mais uma vez, veio em minha direção para me


atacar. Decidi permanecer imóvel, fingindo estar ferido para ganhar
uma vantagem sobre ela. Logo que me encostou, me virei e a
derrubei no chão, a prendi com o cajado, colocando nele o peso do
meu corpo. Ela não parava de se debater e berrar. Eu podia sentir
seu ódio.

— Para! Para! — exaltei-me com ela. — Eu não consegui...


Foi horrível te perder! — Tentei acalmá-la.
— Eu te odeio! Você me tornou assim... — disse, se
tremendo. — Eu quero que você morra!

— Não quer não! Já teria me matado enquanto eu dormia —


rebati.

— Eu tentei, mas não consegui! Você deve ser imortal.

— Você tentou? — indaguei, surpreso e desolado. — Você…


Você sempre disse que me amava.

— Eu não sei o que eu sentia por você antes, mas não te amo
agora. Você me enfeitiçou... Foi só isso! — Ela chorava.

Depois de ouvi-la falando sobre seus sentimentos, não podia


negar que talvez fosse verdade. Sempre foi nisso em que acreditei,
que estávamos sob o efeito de encantamentos. Eu apenas havia
esquecido.

— Eu não sabia o que estava fazendo, fui enganado —


continuei a me explicar com a voz embargada.

— Não sabia? Eles são deuses do submundo... Não mente


pra mim e me solta!

— Fica calma! — Então a soltei devagar. Ela se ergueu e me


encarou, soluçando.

— Você foi egoísta... Omitiu isso de mim. — Andava de um


lado para o outro sem parar, esfregando a cabeça. Ela tinha razão.
— Me viu sofrendo com todas aquelas mortes... Ouviu quando eu
disse que me sentia um monstro... Você que é o monstro! — gritou,
apontando o dedo para mim.

— Me desculpa… — sussurrei, cabisbaixo.

— Te desculpar? Isso vai me fazer normal, por acaso? Não vai


trazer ninguém de volta. Você destruiu minha vida.

— Você não tinha mais vida! — esbravejei, revoltado com a


situação.

— Teria sido melhor desse jeito. Nunca mais precisaria ver


seu rosto! — Logo nos calamos. Eu sabia que havia errado, não
consegui argumentar. — Eu vou embora! — disse ela sem me olhar.

— Não é seguro — falei baixinho, preocupado.

— Não é seguro para quem? Para as pessoas que irei matar


pelo caminho, graças a você? — Foi sarcástica e saiu andando.

Fiquei ali parado, em meio aos destroços da Floresta Secreta.


Tudo que ela disse não parava de ecoar em minha mente. Estava
sozinho como estive durante toda minha vida, mas em poucos dias
ao seu lado, já havia me desacostumado. Não sabia o que fazer,
para onde ir, me sentia sem objetivo.
22 TABERNA DOCE LAR

Era época de lua cheia e como de costume, ajudava meu


amigo, dono da taberna. Já fazia tempo que não passava por ali um
lobisomem, mas era um acordo que nós tínhamos, por me deixar
ficar quando precisava de um lugar.

A cidade estava diferente, mais habitada. E a floresta? Mal


sabia sobre a floresta. Quase não a visitava, me sentia rejeitado
desde que os meus objetivos mudaram e foram expostos aos seres
de lá. Quando me encontrava com algum nativo, em seus
pensamentos, podia perceber o estrago que o novo membro estava
fazendo. Às vezes os homens da tribo saíam para procurar por
alimentos e quando voltavam suas famílias tinham sido dizimadas,
por esse motivo houve escassez no meio deles. A criatura não se
mostrava muito, se satisfazia por um bom tempo e em outro, eram
dias sangrentos.

Depois de três anos, já havia tentado muitas coisas para


matá-la, entretanto, descobri que não estava sozinha. Meus outros
tios monstros trabalhavam juntos.

Caramuru havia se unido a Tau e Jurará contra os deuses do


submundo. Queriam tomar seus poderes para destruir os humanos.
Na verdade, isso tudo começou por causa de uma crise de ciúmes
de Ticê que expulsou Jurará do inferno. Ela percebeu seus desejos
por Anhangá. Não sei dizer se eram correspondidos, no entanto, foi o
suficiente para a deusa da chuva ter a ideia e se aliar a outros
deuses perversos.

Por sua vez, Tau queria aproveitar e resgatar minha avó,


Kerana. E para recuperar seus poderes precisava estar com a família
completa, sete filhos, a quantia da perfeição. Tupã, o deus do trovão,
estava quieto. Não tinha visto sua intervenção ainda, o que me
incomodava um pouco, pois parecia ter abandonado a todos.

Àquela altura, eu havia me encontrado algumas vezes com


Ticê e descobri o motivo de Maíra ter se tornado uma sugadora de
vidas. Eles queriam formar um exército de mortos para a guerra que
estava se estabelecendo. Não concordava com aquilo, no entanto,
não podia fazer nada, a não ser me culpar de tudo. Eu nem sabia
onde ela estava. Ouvi dizer que vivia em Neiva, entretanto, podia ser
apenas boato. De qualquer forma, eu torcia para que estivesse bem.

Anhangá estranhava o silêncio dos adversários, cogitava que


estivessem tramando algo. Eu concordava, porém não queria tomar
partido. Fiz porque foi necessário para trazê-la de volta à vida.
A líder caapora, minha tia, depois do primeiro ano passando
dificuldades por estar exposta a toda aquela briga de deuses,
resolveu me perdoar. Contou-me que alguns Kuru'pirs e
chullachaquis se uniram ao meu avô, depois da queda da Floresta
Secreta. Desejava que eu fosse viver com ela, porque sentia que os
seres da mata estavam mais desprotegidos. E de fato estavam. Os
animais também eram alvos das criaturas, e para Anhangá aquilo era
o fim.

Tinha aumentado o número de caçadores na região. As


lendas de monstros atraíam ainda mais visitantes, era perceptível
pela quantidade de gente na taberna. O dono chegou a comprar o
estabelecimento ao lado de tanto lucro que teve.

Eu me aborrecia com aquela situação, mas me via cada vez


mais humano. A sensação de impotência foi se transformando em
acomodação. Mal usava meu cajado, o qual passava mais tempo
embaixo da cama empoeirado do que preso às minhas costas.

De repente, sentado à bancada enquanto bebia cauim, avistei


pela janela Maíra. Pensei ser o efeito do álcool, mas me levantei e fui
me certificar. Antes que eu chegasse à porta, ela entrou na taberna.
Estava com uma roupa diferente da que se usava na região. Era
nítido que tinha vindo de outro lugar. E ao lado, de mão dada a ela,
um menino. Ela me encarou e eu a encarei, contudo, não consegui
desviar o olhar do garoto.

— É nosso? — perguntei espantado, pois o menino era ruivo


e sardento.

— Oi, tudo bem, como vai? Não se usa mais essas


expressões quando se encontra com alguém que não vê há anos? —
indagou extremamente irônica. Maíra passou por mim com o garoto
e se sentou no banco perto do balcão, justamente onde eu estava
anteriormente. Então fui até ela e me sentei ao seu lado.

— Oi, você está bem? — Tentei um novo contato enquanto ela


olhava para frente, me ignorando.

Maíra se virou e me respondeu: — Não, não é nosso.

— Tem certeza? — Estava incerto.

— Você acha que eu não saberia se ele é nosso filho? —


falou, ríspida. Ficamos calados nos olhando. — A mãe dele estava o
procurando. — completou mais calma.

— E onde ela está? — Franzi a testa, intrigado.

— Morta — respondeu baixinho, encabulada. — Foi assim


que descobri que ele estava perdido.

— Sei... — ironizei. Por mais trágico que fosse, me esforcei


para não rir. — Essa roupa é dela? — perguntei com um ar de
deboche.

— Não. Essa eu mesma fiz. Está bem nova ainda. — Olhava


para si, orgulhosa. Fiquei a observando, emotivo. Que saudade!

— Gostei, combinou com você — disse, apaixonado, e ela


sorriu. Maíra vestia um vestido escuro, com bordados em alguns
trechos na frente. O azul marinho tirava a sensação de menina
mimada e indefesa, a qual ela não era faz tempo.
— Vai querer alguma coisa, não está com fome? — indagou
ao menino.

— Não... — resmungou o sardento. Percebi que o tratava com


carinho.

— Vai cuidar dele agora? — Estava curioso.

— Eu não sei onde deixá-lo ainda. Só sei que não seria uma
boa mãe, estaria em perigo constante. Talvez eu o deixe na igreja
com as freiras.

— Você vai ficar por muito tempo? Fiquei sabendo que estava
em Neiva. É verdade?

— Eu ainda não sei por quanto tempo. E sobre Neiva… é


verdade — Fez um drama, brincalhona. — E já estive também em
muitos outros lugares.

— Sério? — Arqueei a sobrancelha, pasmo. — Como


conseguiu sair daqui?

— Depois eu te conto. Acho que já vou levá-lo à igreja.

— Posso ir com vocês? — pedi, apressado.

— Eu vou voltar — respondeu, olhando profundamente em


meus olhos. Bufei.

— Agora consegue ler meus pensamentos?


Maíra sorriu e saiu da taberna. Não me contive, me levantei e
fui até a janela, pois queria ter certeza de que saberia onde estaria.
Eram tantas perguntas girando em minha cabeça, que eu não tinha
noção da qual faria primeiro a ela. Meu coração estava acelerado, eu
a queria tanto. Estava difícil ficar ali esperando, torcendo para que a
sua volta fosse realmente concretizada.

Depois de alguns minutos, a vi saindo da igreja, colocando a


mão sobre os olhos, tentando protegê-los do sol. Parecia sem pressa
alguma, pois parou e esperou toda cavalaria passar. Quando se
aproximou da taberna, notou que eu a observava e caminhou até a
entrada do estabelecimento me seguindo com seus olhos negros. Eu
fui à porta e a recepcionei como se ali fosse o meu lar, e na verdade
poderia considerar que sim, visto que vivia no local por dois anos
consecutivos.

— Você tem um quarto? — perguntou Maíra. Não consegui


disfarçar a minha expressão de espanto, ela estava sendo muito
direta. Então tentou se explicar: — As minhas botas estão me
matando... Eu preciso tirá-las o mais rápido possível e me deitar um
pouco.

— Ah...Entendi. Eu tenho um quarto sim. É no fim do corredor.


Aqui está a chave. — Retirei-a do bolso e a estendi para que
pegasse.

— Você não vem? — Tomava o objeto de minha mão.

— Você me quer no quarto? — Semicerrei os olhos.

— Não vai querer ouvir minhas histórias? — falou com


cinismo. Maíra conseguia me seduzir e me fazer duvidar se era
sedução ao mesmo tempo.
— Eu vou com você — respondi incerto de suas intenções e
sobre como deveria me comportar.

Assim que chegamos no quarto, Maíra sentou na beira da


cama e começou a tirar as botas mencionadas. Era notório o seu
desconforto, a ponta de seus dedos estavam bem avermelhadas. Ela
suspirou aliviada enquanto eu me sentava na cadeira de frente a
ela.

— Conta os seus segredos. — Sorri tentando


descontrair. Então ela se ajeitou no colchão, de modo que apoiou os
pés em meu colo.

— Pode massageá-los? — pediu com um sorrisinho de lado.


— Sinto eles travados...

Não respondi sua pergunta, simplesmente comecei a acariciar


seus pés. Ela ficou me analisando e foi escorregando na cama, até
quase se deitar, mas apoiou seus cotovelos e continuou a me
encarar.

— Eu não usei barcos, nem nada parecido — interrompeu o


silêncio constrangedor.

— Não? — Fiquei ainda mais intrigado.

— Eu testei uma coisa, que pra mim nunca daria certo —


falava olhando para minhas mãos. — Você lembra daquela visão
sobre me chamarem? — continuou a explicar.

— É claro! Não esqueceria mesmo se eu quisesse.


— E de quando eu desmaiei na floresta?

— Sim. — respondi, inquieto. Cheguei a me distrair e parar de


massageá-la.

— Então, eu percebi que aparecia nos lugares onde as


pessoas que me chamavam estavam. No começo não sabia como,
mas era sempre através de algo que tinha reflexo… em um espelho
ou… na água, por exemplo — gesticulava bastante, mesmo com os
braços servindo de apoio.

— Estou confuso — admiti.

— Eu sei — Maíra respondeu e mexeu seus dedos do pé,


para que eu voltasse ao trabalho, depois sorriu. — Era confuso pra
mim também, mas uma vez eu consegui puxar uma pessoa para
onde eu estava. E claro, a matei.

— Você puxou? Isso é mesmo possível?

— Sim, elas estão em diversas partes do mundo… Eu não sei


como, mas elas sabem o meu nome e sabem que precisam chamá-
lo três vezes. Aí, eu apareço… — Fez bico. — Acho que para eles eu
sou uma lenda, por isso insistem nisso. — Pausou sua fala por uns
instantes, reflexiva. — Um tempo depois, alguém me chamou
novamente e eu consegui atravessar um espelho...

Eu ouvia Maíra falar e não compreendia muito o que estava


insinuando. Parecia algo surreal. O poder dela diferia de tudo que eu
já havia visto. Ela estava diferente, segura de si. Logo ela tirou seus
pés de cima de mim e se arrumou na cama. Estava empolgada,
narrava sua história: — Eu conheci vários reinos, pessoas
importantes, outros feiticeiros...

— Você matou muitas pessoas? — Preocupei-me. Ela fechou


a cara.

— Ai… Estou aqui feliz contando o que eu vivi e você


estragando o momento — disse, chateada, desviando seu rosto.

— Ei... — Cocei a cabeça, arrependido do questionamento. —


Eu não me importo se matou várias pessoas. Eu não sou mais o
mesmo. Só quis saber se havia aprendido a se controlar.

— Já está matando ratos? — indagou, debochada.

— Ainda não — gargalhei. Em seguida, ela se levantou e


parou em minha frente. Fiquei a observando, não sabia o que queria
ou o que iria fazer. Ela andou para trás de mim e foi à janela.

— Sabe Liam... Eu conheci Neiva e achei o lugar muito bonito.


Eu nem matei ninguém por lá, tive vontade de ficar. — Ela se virou,
ainda na janela, me olhava. — Às vezes eu torcia pra que fosse
você, a pessoa no espelho — disse ao deixar rolar uma lágrima,
sorrindo sem graça ao mesmo tempo que enxugava seu rosto.

Eu não sabia o que falar, só fiquei sentado a olhando. Então


ela veio andando em minha direção, mexeu em meus cabelos
suavemente e apoiou sua mão em meu ombro.

— Por que nunca me chamou? — perguntou, cabisbaixa.


— Tive medo de ver novamente aquele olhar de decepção em
você — sussurrei, emotivo.

Eu sentia sua falta. A queria para mim. Fechei meus olhos e


repousei meus lábios sobre sua mão que tocava meu ombro.
Quando a encarei novamente, percebi um semblante sereno. Ela
também estava feliz. Abracei sua cintura e a puxei lentamente para o
meu colo.

— Você quer? — falei baixinho em seu ouvido enquanto ela


envolvia meu pescoço com seus braços.

— Mais do que tudo... — disse e me beijou.

Imediatamente a levantei, caminhei em direção à cama e a


deitei. Ela já estava ofegante apenas com o desamarrar das cordas
de seu vestido. Sorria com cada ilhós que eu libertava do maldito
cadarço infinito.

— É só isso? Ou ainda tem o espartilho? — provoquei. Ela


gargalhou sem me dar uma resposta. Provavelmente queria manter o
suspense.

Após tirar sua roupa, deslizava pelo seu corpo e notei algo
novo, as cicatrizes em sua barriga. Minhas memórias vieram à tona,
tirando o foco do nosso momento de prazer.

— Está tudo bem... Está tudo bem... — disse, alisando meu


rosto. Queria me tranquilizar, entretanto, a culpa era mais forte que
as suas doces palavras. — Elas apareceram assim que atravessei o
espelho... — Seus olhos estavam marejados, como os meus. —
Liam, está tudo bem. — Sorriu, carinhosa.
Maíra se sentou e beijou meu pescoço. Seus dedos desciam o
meu peito, reconhecendo cada parte do meu corpo que a desejava.
Ajeitei-me na cama, constatando o rumo que as carícias tomavam.

Ela subiu sobre mim, coordenando a intensidade dos


movimentos. Estava totalmente no controle, debruçada com os seios
próximos ao meu rosto. Depois de tanto tempo longe um do outro,
tudo ficou ainda mais caloroso.

— Eu tive tanta saudade — Alisava suas costas.

— Eu também — respondeu, delicada.

— Me diz por que você voltou. Foi por causa de mim? —


Precisava ouvir.

— Digamos que Neiva estava vazia demais. — Sorriu.

— Vazia ou faltava uma pessoa para preencher seu vazio? —


instiguei uma resposta sincera.

— Faltava o meu fazendeiro preferido — brincou, e logo ficou


séria. — Eu me recordei de tudo... Não era feitiço o que sentia por
você. — hesitou, tentando conter o choro. — Eu quis voltar na
mesma hora que eu entendi o que sentíamos um pelo outro, mas foi
difícil chegar até aqui, Liam... Eu te amo… Te amo de verdade!

— Eu também te amo, minha Maíra! — Toquei seus lábios e a


beijei.

De repente ouvimos uma batida na porta.


— Vamos ficar em silêncio para irem embora — sussurrei.

— Quem é? — Quis saber Maíra.

— Deve ser o dono. Ele me pede alguns favores em troca do


quarto, mas não quero perder esse momento contigo — falava sobre
Bartolomeu. Segundos depois, o nosso cochicho foi interrompido por
uma voz feminina. Engoli em seco.

— Liam, está aí? Você vai querer alguma coisa da gente


agora? Já estamos disponíveis… — perguntou uma meretriz.
Arregalei os olhos.

— Não, eu estou ocupado! - gritei antes que a mulher


continuasse a me comprometer. Eu não queria olhar Maíra naquele
momento, sabia que não veria sua melhor expressão.

— Você está ficando com elas, novamente? — Seu tom de


voz era furioso. Ergueu-se, indo à porta. Confesso que nesse
instante, pela raiva e agilidade que ela se moveu, visualizei ela
tirando a vida de kira.

— Ei! Avisa as outras que ele vai estar ocupado por bastante
tempo! — berrou, revoltada, enrolada em um lençol.

Era possível ouvir do quarto, os rapazes do primeiro andar


rindo e assobiando para Maíra, que os ignorou ao entrar e bater a
porta com força.

Eu ainda me encontrava deitado. Ela veio andando em minha


direção e me tocou com o pé para que eu a desse lugar na ponta da
cama. Então se sentou à beira e de braços cruzados me olhou com
reprovação. Contudo, antes que me falasse alguma coisa, a
perguntei certo de que a resposta seria sim: — E você não ficou com
mais ninguém nesses três anos?

— Não — respondeu ela.

— Não? Eu vou entender se tiver ficado. — Cogitei que


mentia.

— Porque te convém… — Resmungou, sacudindo a cabeça.


Estava linda brava.

— Por que não ficou? Foram três anos.

— Eu sei contar, Liam... Eu não confiei em ninguém. Foi isso!


— Levantou-se e foi até à cadeira. — Eu achava que todos eram
metamorfos.

— Ficou traumatizada… — compreendia.

— Traumatizada? Fiquei com fama de enganável. Muitos


deles apareceram pra mim. Não sabia que existiam tantos.

— Sério? — indaguei, surpreso.

— Conheci vários tipos. Nem todos eram maus, mas queriam


se aproveitar de qualquer forma. — Explicava ainda nua, enrolada no
lençol.
— E como sabe que eu não sou um metamorfo aproveitador?
— zombei com um sorriso sensual.

— Além de não ter esquecido o seu cheiro, eu vi seu cajado


embaixo da cama quando fui à janela.

— Você parecia emotiva enquanto estava na janela, deu


tempo de analisar o quarto e achar meu cajado? — Bufei, indignado.

— Hum.. Eu chorei de verdade, Liam… Só aproveitei a sua


distração. — disse ao se levantar da cadeira e deitar ao meu lado
novamente. Então sorriu e tentou me beijar, mas me sentei chateado.
— Não fica bravo, foguinho! — Maíra se sentou e beijou meu ombro.
— Eu quero você de novo. — Sorria, sabendo que eu não a
rejeitaria.
23 A JOIA DE LATÃO

— Oi, você viu o Liam? — Cutuquei a mulher de costas, que


limpava o balcão.

— Maíra? Nossa! Não achei que fosse você a mulher que elas
falaram — disse Pâmela.

— Falaram de mim? — perguntei, andando pelo local,


escolhendo uma cadeira para me sentar. Pâmela simplesmente
afirmou com a cabeça e um sorriso cínico.

— Tudo bem?

— Tudo bem sim. Eu não te vi ontem. As outras meninas que


eu conheci ainda trabalham aqui? — Queria saber se eram elas, as
cuidadoras de Liam.

— Não, duas se casaram e a outra resolveu voltar para casa


dos pais... Não acredito que você está aqui! — Pâmela estava
diferente, agia como se fosse a dona do local. Suspeitei que ela e
Bart estivessem juntos. — Quem bom que você voltou! Quer dizer,
bom se você não for mais embora, porque dava dó ver o Foguinho
do jeito que ele ficou...

— Como... Como ele ficou? — indaguei, curiosa.

— Ah... Ele quase não falava, estava sempre de mau humor,


ficava isolado, bebendo e não queria saber de ninguém... —
Suspirou. — Ele ficou bem triste, Maíra. — Enquanto a mulher
contava, me recordei dos últimos momentos com ele na noite em que
o ataquei. Ao deixá-lo, me senti perdida, entretanto, pensei que fosse
por causa do medo que crescia a cada passo que eu dava. Eu
sonhava com Liam e sentia raiva de mim, não entendia que era a
ligação intensa que não podia ser corrompida pela distância.

— As meninas te odiaram. — debochou, interrompendo meus


pensamentos.

— Não me importo. Só não quero que fiquem em cima dele —


finalizava quando vi Liam do lado de fora, ajudando no
descarregamento dos barris de vinho. Em poucos minutos, entrou.
Então me dirigi a ele, sorridente.

— Oi, meu amor! — cumprimentou-me, tentando não me


encostar, pois estava sujo. — Eu vou me lavar e a gente come
alguma coisa, estou cheio de fome.
— Está bem. Quando for sair, me avisa... Fiquei preocupada.

— Preocupada? — Sorriu, brincalhão. — Me desculpa... É que


você dormia tão lindamente que eu tive pena de te chamar. — Beijou
minha testa e caminhou para a escada.

<<◇>>

Alguns dias se passaram e por incrível que pareça, estávamos


morando em uma taberna cheia de mulheres que o cobiçava a todo
tempo. Eu não as culpava, sabia que Liam tinha aquele
encantamento, difícil de resistir.

Às vezes, cogitávamos andar pelas redondezas, procurando


por algum lugar abandonado, a fim de torná-lo nosso, porque
comprar seria impossível, não tínhamos dinheiro suficiente. Porém
Bart ocupava cada vez mais Liam com tarefas, talvez pelo fato de ter
outra pessoa vivendo de favor em seu estabelecimento.

Eu não queria que fosse tão afastado, pois independente de


tudo estar calmo, os monstros poderiam atacar a qualquer momento.
Mas também nem tão movimento, visto que em menos de um mês já
havia observado Arlo, pela janela, passando ali perto umas três
vezes. Ele não entrava na taberna, não era do seu feitio, diferente
de Liam. Contudo não podia ser reconhecida por ninguém que
conhecesse a minha família.

Em uma noite fria, voltando do banho, enxugava os meus


cabelos que não paravam de pingar, e ao entrar no quarto me
deparei com Liam sentado na cama limpando algo. Quando ele ouviu
o barulho da porta, me olhou rapidamente e se levantou.
— Está com frio? — perguntou ele, parecendo fazer algo
suspeito.

— Sim, voltou a ler minha mente? — brinquei, avançando o


recinto. — Eu esqueci e lavei minha cabeça agora... E com esse
tempo vai demorar a secar. — Revirei os olhos e bufei de mentirinha.
Então ele se aproximou de mim, bem sério. Estranho.

— Eu posso esquentar você — sussurrou, acendendo seus


olhos. Já era possível sentir o calor do seu corpo me aquecendo, em
questão de segundos.

— Você é perfeito. — Sorri, apaixonada. Como era lindo.


Suspirei.

Ele ficou bem perto, me olhando fixamente nos olhos, mas


não encostava para não me queimar. E de repente me fez a
pergunta: — Você quer se casar comigo?

— O quê?! — Assustei-me. Ele estava com um anel antigo


prateado na mão. Olhei o objeto e tremi.

— É assim que se pede, não é? Isso não é importante para


você? Não é o que sempre quis? — tagarelou, parecendo
desconfortável, coçando a cabeça. Ai, meu Deus! Ele está me
pedindo em casamento! Ofegava, nervosa, pois não achei que fosse
algo que ele quisesse.

— Eu não me importo mais com isso. Eu só quero ficar


contigo... Para mim isso é o suficiente, Liam… — disse, após
segundos paralisada pelo choque.
— Ah... Entendi... Tudo bem então. Fica com o anel mesmo
assim. — Voltava à cama, sem jeito, depois de esfregar a testa
incessantemente. Estava na cara que era o que ele queria, e eu
também, no entanto, me pegou desprevenida.

Que demora é essa, Maíra?, perguntava a mim mesma


quando, sem perceber, eu soltei uma frase: — Liam, eu quero! —
gritei com um enorme sorriso. Seus olhos brilharam, ganhei mais
força ainda em minhas palavras. — Eu quero ser sua esposa! —
Corri para ele, que se levantou e me agarrou. — Eu te amo muito…
muito! — findei, o enchendo de beijinhos por todo o rosto.

— Eu pensei que tinha te assustado com o pedido. — falava


ao se sentar, segurando minhas mãos, enquanto ainda eu estava em
pé.

— Me assustou sim. Mas de um jeito bom — gargalhei,


alisando os seus cabelos ruivos. Liam fez uma expressão de quem
não tinha compreendido.

— Como você quer que seja? Em uma igreja? — Fez uma


careta.

— Não! — respondi bem de pressa.

— Que bom, porque eu não saberia como agir em uma —


zombou e beijou minha mão.

— Como vocês fazem? Os seres da floresta? Vocês se


casam? — Sentei ao seu lado.
— Temos um ritual de união de sangue. Minha tia me disse
que meus pais fizeram.

— E esse anel foi de sua mãe? — perguntei, empolgada.

— O anel? Não, eu comprei com um mercador que passou


hoje por aqui. Bartolomeu me disse que eu precisaria de um para
fazer o pedido.

— Hum... — Achei graça, mas tentei prender o riso.

— O que foi? Não gostou? — Olhou-me, preocupado. Fofo.

— Eu amei, meu amor! — Novamente o abracei e deitei minha


cabeça em seu ombro.

Apesar de não ser um anel de família ou algo do tipo, eu achei


tão especial quanto. Era maravilhoso saber que ele me queria
daquela forma.

Ficamos deitados conversando, e toda hora eu me pegava


olhando para a aliança. Eu sorria feito boba, e Liam sempre sorria de
volta para mim. Sentia-me a mulher mais sortuda do mundo.

— Onde iremos morar? — indaguei ao apoiar minha cabeça


em seu peito. — Não quero viver aqui para sempre... — Então o fitei,
aguardando a sua resposta.

— E se formos para a floresta reconstruída?


— Com a sua tia? — Espantei-me, negava desesperadamente
com a cabeça. — Não… Não dá, Liam. Ela não me suporta... Vamos
pensar em outro lugar depois com calma.

— A floresta é gigantesca. E no fundo ela gosta de você —


falou, irônico.

— Ah... gosta. Bem lá no fundo. — disse, dramática, esticando


as mãos para o alto. Então ele sorriu, me fazendo coceguinhas.
Logo, tentei fugir, mas me puxou para seus braços, os quais nunca
mais deixaria, e me beijou.

— Tudo bem. Vamos decidir depois — concordou, carinhoso.


24 UNIÃO DE SANGUE

— É sério isso, Liam? Não posso dormir com você? —


ironizei, entretanto, preocupada. Segurava o meu travesseiro.

— Eu quero que seja da forma correta... Precisamos nos


purificar por sete dias. Só isso! — Liam falava como se fosse
plausível, o motivo. Dobrou o lençol e o colocou, também, sobre
minhas mãos.

— Eu não acredito que vai fazer diferença. A gente já... A


gente já dorme junto há muito tempo. E você está falando que sexo é
a segunda parte do ritual? Se fosse assim, já estaria casado com
todo mundo — bufei revoltada, porque não queria ficar em outro
quarto, com as mulheres que me odiavam. — A gente não precisa se
purificar... Eu juro que não vou te assediar! Juro!

— Maíra, você sabe que não vai dar certo. São só sete dias —
explicava com um leve sorrisinho contido. Que raiva!

— Mas eu vou ter que dormir com alguém que eu não gosto?
— indaguei, dengosa.

— Melhor você do que eu, não acha? — debochou,


escancarando. Lancei as roupas de cama, que eu carregava, contra
ele e saí do quarto batendo a porta.

Sua tia havia explicado a importância do processo de limpeza


para o ritual, alguns dias atrás. Apesar de alguns Kuru'pirs, caaporas
e chullachaquis terem um grande apelo sexual, para eles esse
momento era algo sério após a união de sangue, era o que de fato
consumava o casamento. A purificação desvinculava os seres, que
estariam para se unir, de qualquer criatura que tivesse tido o contato
antes desse período. Mas para mim não tinha sentido, já nos
pertencíamos um ao outro.

Durante a semana que antecedeu a cerimônia, Bartolomeu


combinou com Liam de nos ceder sua casa para a noite de Núpcias.
A residência de Bart era ao lado da taberna, possuía uma passagem
entre as duas. Ele aproveitou parte do estabelecimento que comprou
durante a expansão de seu comércio, pois gostava de privacidade,
de modo que só era possível, porque Liam fazia a segurança do
local.

O dia do ritual havia chegado, àquela altura, eu já me


considerava amiga daquelas mulheres. Todas elas juntaram suas
joias, tecidos e alguns outros presentes que ganharam de
pretendentes apaixonados, porque queriam me arrumar da melhor
maneira para o grande evento.

Liam estava com Bartolomeu, não nos vimos por dois dias. Eu
estava agoniada com a falta que ele fazia.

O ritual seria na nova Floresta Secreta. Sua tia permitiu que


levássemos, com muita insistência de Liam, o pessoal que era
praticamente a sua verdadeira família. Eu já conseguia imaginar o
encontro daquelas mulheres com todos os outros seres encantados.
Luxúria...

Estava tão nervosa, parada de frente ao espelho, pensando


em como tudo estava extremamente perfeito. O objeto me fez
lembrar que eu não o atravessava há alguns meses. O que estava
acontecendo? Será que tudo ficaria bem?

Então Bart bateu na porta do quarto, que se achava


entreaberta, e me avisou que os cavalos estavam prontos. Liam já
estava com sua tia desde cedo no local. Foi ao seu encontro antes
que o sol nascesse.

<<◇>>

Chegamos na entrada da floresta no meio da tarde e fomos


levados por dois Kuru'pirs. Para descer do cavalo foi ainda mais
difícil do que subir. Meu vestido era branco como na tradição do meu
povo, possuía uma cauda comprida, a qual precisei segurar com
afinco, pois insistia em querer escorregar enquanto eu cavalgava.

Quando adentramos o lugar, percebi o espanto de todos por


causa de sua beleza, mas vi Liam bem longe, só ele me chamava
atenção. Estava de costas conversando com a caapora, próximo a
um grande lago.

— Fica aqui, Maíra! Acho que ele não conseguirá te ver —


falou Pâmela.

Eu estava ansiosa, com tanta saudade. Queria correr para os


seus braços e dizer “ sim" o mais rápido possível.

Fiquei ali esperando por uns dois minutos que me pareceram


a eternidade. Quem iria me buscar? Eu andava de um lado para o
outro, pensando no quanto imaginei entrar na igreja com meu pai.
Tudo começou a vir à tona. Eu mordia meus lábios desesperada, já
começava, também, a roer minhas unhas. E de repente, nessas idas
e vindas descontroladas, dei de cara com Liam me observando.

— Você? — perguntei, assustada.

— Seus pensamentos estavam totalmente expostos por causa


do seu nervosismo. — disse com o sorriso mais lindo do mundo. —
Venha! — Então estendeu sua mão. Ele me olhava com tanta
ternura, que me acalmou imediatamente.

Nós caminhamos juntos até o local do ritual, eu tremia. Todos


nos aguardavam. Para minha surpresa, Kouka parecia estar feliz
com tudo aquilo. A caapora, dentro da água, tinha um pergaminho
em suas mãos. E o me aproximar do lago eu parei para esperá-la,
pois achei que ela viria até nós.

— Vamos — Liam falou baixinho em meu ouvido. Não


compreendi de imediato.
— Para onde? É para entrar na água? — Olhei para ele de
esguelha.

— É. O ritual é na água — respondeu mais baixo do que


antes.

— Droga, eu vim de branco — sussurrei, e ele sorriu.

A cerimônia começou e o primeiro ato foi a concretização da


purificação.

— O manancial, hoje traz aqui, a água que limpa, renova e


vivifica o espírito de vocês dois como um casal — Kouka falava
enquanto estávamos de mãos dadas, um de frente para o outro. Ela
derramava uma porção do líquido em nossas cabeças.

Naquela hora, eu me lembrei de quando o conheci em meu


jardim. De todas as tardes que eu passei pintando sua imagem e
falando que me casaria com ele. O que acontecia era tão surreal. Eu
estava completamente feliz.

— A troca do sangue unirá vocês com força e proteção. Os


dois serão só um, pelo amor e respeito eternamente. — Kouka
colocou em nossas cabeças uma guirlanda feita com fios de ouro. A
minha possuía uma linda flor de vitória-régia. Logo em seguida,
retirou uma pequena haste que estava presa ao pergaminho e pediu
que eu entregasse minha mão a ela. De repente, ela cortou o meu
indicador.

— Ai! — reclamei, puxando minha mão. Não esperava que o


nome do ritual tivesse tradução literal. Liam não se conteve e
gargalhou, contudo, parou rapidamente pela seriedade do momento,
mostrado através do olhar da caapora.

Depois de fazer o mesmo a ele, estampamos o pergaminho


com nosso sangue e tocamos a ponta de nossos dedos na boca um
do outro. Reparei os olhos de Liam cheios de lágrimas. Ele é o amor
da minha vida, pensava a todo momento.

— Vocês estarão unidos durante a vida e durante a morte —


disse a líder da floresta.

E finalmente pude beijá-lo como meu marido.

A cerimônia terminou, todos ainda estavam empolgados e


festavam, mas Liam, ansioso, saiu para preparar o cavalo que iria
nos levar de volta à cidade.

Logo sua tia se aproximou de mim e comentou com ar de


reprovação: — Eu sei o que você tem feito... Eu só não quero que
isso prejudique meu sobrinho.

Fiquei estática, não soube o que responder.


25 ERA PARA SER PERFEITA

Anoiteceu, eu estava deitado na cama esperando Maíra sair


do banheiro. Ela me disse que gostaria de se arrumar
apropriadamente para o segundo ritual. Depois de alguns minutos de
espera, em meio a uma luz difusa amarelada, ela surgiu usando uma
camisola em um tom rosado e se aproximou de mim, com um
semblante de como se fosse a primeira vez que eu a veria daquele
jeito.

— O que foi? — Ajeitei-me na cama. Esperava que alegasse


um constrangimento, contudo, ela apenas balançou a cabeça
dizendo ser nada. Ficou séria. — Está assim por causa de Kouka? O
que ela te disse? — perguntei com medo de cortar o clima. Maíra
ainda estava de pé, mexia na cabeceira de madeira da cama,
reflexiva.
— Não foi nada… Eu só estou tímida, acho que colocamos
muitas expectativas nesse momento — respondeu, e eu sorri.

— Você não está parecendo aquela menina na floresta que


implorava para ficar comigo a todo tempo — brinquei para
descontrair, sentando à beira da cama. Segurei sua cintura. Maíra
sorriu e começou a acariciar meus cabelos. Depois deslizou sua mão
para o meu rosto e me deu um beijo.

— Você me quer? — indagou mais confiante.

— Mais do que tudo no mundo! — sussurrei. Logo notei que a


fita, a qual prendia a parte frontal de sua camisola, era a própria alça
que sustentava a mesma. Em seguida, a puxei, fazendo com que o
tecido escorregasse pelo seu corpo suavemente. Suspirei.

— Não tem novidades… — Ela disse baixinho.

— Eu não quero novidades, eu quero você.

Olhando fixamente um para o outro, me ajeitei na cama e


arrumei o lençol para que ela se deitasse.

Maíra se tornaria oficialmente minha esposa, entretanto,


fomos surpreendidos com as badaladas incessantes do sino da
igreja, que estremecia os vidros das janelas.

— Por que isso agora? — Fiquei curioso.

— Esquece o barulho, Liam. — Sorriu, mordiscando meu


pescoço.
Então, depois da décima badalada, Bartolomeu socou a porta
e me chamou esbaforido: — Liam! Liam!

Maíra e eu nos olhamos.

— Ele disse que não ia nos incomodar... — reclamou ela.

— Eu vou ver o que está acontecendo. Não está normal! —


Enrolei-me no lençol e fui falar com Bart. — O que foi? — falei ao
abrir a porta, o suficiente para enxergá-lo, mas esconder Maíra, que
ainda se encontrava deitada na cama.

— Eles voltaram! Estão próximos da cidade. A filha do padeiro


estava na floresta com seu noivo e foi despedaçada! — gritava
apavorado o dono da casa.

— Despedaçada? Quem disse isso? — desconfiei, pois se


contavam muitas histórias, que na maioria das vezes, só serviam
para desperdiçar meu tempo.

— Ela foi despedaçada? — Maíra perguntou intrigada. —


Vamos até lá, Liam!

— É melhor você não ir, moça! Pode ser perigoso para uma
dama. Você não quer acabar igual a filha do padeiro, né? —
Bartolomeu falou por trás da porta.

— Meu amor, eu vou sozinho. Me espera acordada, tenho


certeza de que não é verdade e já volto logo — falei, descrente.
— Você só pode estar brincando, Liam! Você acha que eu vou
deixar você lutar sozinho? Eu treinei muito para estar pronta nesse
momento.

Não sabia do que estava falando. Maíra não me contou muito


sobre o que aprendeu durante esses anos, mas pela forma que
falou, acreditei que estava preparada para enfrentar os monstros,
caso não fosse um simples boato.

Bart havia saído enquanto nos arrumávamos.

— O que você sabe fazer além de sugar vidas? — indaguei


enquanto vestia a minha roupa. Maíra me olhou chateada. — Não foi
cinismo, estou curioso realmente... Você sabe que isso não
funcionará com eles, já que não funcionou comigo.

— Eu sei disso, Liam. Eu estou mais forte, estudei vários


feitiços com meu pai.

— Com… com seu pai? — gaguejei, perplexo. Quem era o


seu pai? Antes que Maíra me explicasse sobre o seu encontro
familiar, os gritos na cidade capturaram a nossa atenção.

— Liam, não deve ser mentira. — Ela correu para a janela, e a


vi boquiaberta. — Tem dois monstros gigantescos na praça. Temos
que descer logo.

Então eu peguei meu cajado e fui conferir. As pessoas já


haviam se escondido nas casas e estabelecimentos da redondeza.

— Maíra, a gente não pode usar nossos poderes em público.


Temos que levá-los para a floresta.
— Mas por quê? Como faremos isso sem os poderes?

— Certamente depois de salvá-los nos prenderiam e


queimariam por bruxaria. Se não quiser, não precisa ir — alertei,
torcendo para que mudasse de ideia.

— Eu não vou te deixar sozinho. Somos um agora, lembra?


Devemos nos proteger. Vamos logo! — falou, me puxando para fora
do quarto, mas quando chegou na porta hesitou. — Espere! Eu tenho
uma coisa para você... — Ela foi até ao pequeno baú, o qual tinha
levado para guardar suas roupas e pegou uma caixinha. Dentro dela,
retirou uma aliança. — Eu sei que… Eu sei que não faz parte do seu
ritual, mas simboliza algo para mim. — Sua voz embargava. Em
seguida o colocou em meu dedo enquanto seus olhos enchiam de
lágrimas.

— Vem cá — disse, emotivo, a puxando para um abraço,


alisando os seus cabelos. — Eu amei! — Minha fala foi cortada pelos
novos gritos dos moradores. — Temos que ir, meu amor!

Atravessamos a passagem da casa para a taberna, descemos


as escadas correndo e nos deparamos com um grande número de
pessoas que aguardavam a nossa caçada.

— Tranque as portas depois que sairmos! — ordenei a


Bartolomeu. Meu coração estava agitado, com mau presságio.

Nas casas e comércios apesar de estarem com as luzes


apagadas, era nítido a presença dos moradores nos assistindo.
Quando chegamos próximo às criaturas, percebi o quão horríveis
eram. Nunca tinha estado cara a cara com os monstros. Um deles
possuía sete cabeças semelhantes a de lobos, com enormes dentes
que saltavam para fora afiados. Certamente tinha condições de
despedaçar alguém. Seu corpo também parecia humano, porém
coberto por escamas e com uma estatura sobrenatural. O outro
parecia uma grande ave, no entanto, somente da cintura para cima,
pois tinha uma cauda e pés de lagarto e quando abria a boca para
soltar altos grunhidos, sua língua, como de serpente, se apresentava
a todos.

Olhei para Maíra, e ela me olhou nervosa.

— Vamos correr para a floresta, eles já nos viram! —


sussurrei.

Por um momento acreditei que eles não viriam atrás de nós,


mas notei que nosso plano estava dando certo. Enquanto avançava
para o mais distante possível da cidade, reparei que perdi Maíra de
vista, porém ouvia sua voz, me chamava bem longe.

Tentei voltar pelo mesmo caminho. Eu pensava


constantemente arrependido, que deveria ter seguido o meu instinto
e não aceitado que lutasse ao meu lado. Estava muito silencioso,
temia que já tivessem feito algum mal a ela. Todavia, quando a
encontrei, vi a criatura com sua cauda de lagarto a imobilizando.
Maíra a olhava nos olhos e como que a hipnotizando, fez com que a
soltasse. Na mesma hora, preparei o cajado para atacá-la, mas
quando me aproximava, Maíra me lançou para trás apenas com um
gesto de mãos.

— Não! — gritou, ofegante. — É meu filho! — explicou ao


acariciar seu bico asqueroso. O monstro parecia também tê-la
reconhecido. Abaixava a cabeça para facilitar o contato entre os dois.
Tudo era estranho para mim. Ela subiu em uma raiz sobressalente e
começou a falar com ele baixinho. Não conseguia escutar. Eu me
levantei, ficando à espreita, pois não sabia onde estava o meu outro
tio.
— Maíra, temos que encontrar o outro. Ele pode ter voltado à
cidade — disse a ela, mas fui ignorado. Não tinha ideia do que fazer,
porque suspeitava que sua ingenuidade a levasse para uma
emboscada. — Maíra! — berrei, tirando ela do transe, e logo me
fitou.

— Me desculpa, Liam!

Então a vi subir na criatura que levantou voo


instantaneamente. Estarrecido corri e me lancei em um de seus pés
de lagarto, me pendurando, porém logo ele arrumou um jeito de me
dispersar, arranhando meu braço com as enormes garras do outro
pé, o que me causou uma grande dor, resultando em minha queda.

Caí pelas copas das árvores, quebrando galhos após galhos.


Tive o tombo amortecido, entretanto, ao tocar o chão pude ouvir o
alto estalo da minha coluna. Fiquei inerte por uns minutos, até
desmaiar. Acordei horas depois com o movimento de ratos em cima
do meu braço ferido e no susto, a fim de retirá-los, os soquei com a
outra mão. Depois de vê-los tão imóveis quanto eu, lembrei-me que
Maíra vivia me perguntando se eu já matava ratos. Para onde ele a
tinha levado? Será que estava viva?
26 MEUS PÊSAMES

Levantei, segui mancando em direção à cidade, me sentia


completamente impotente. O meu braço estava cicatrizando, ainda
sentia muita dor, mas a sensação física era a que menos me
importava. O aperto no peito me fazia caminhar sem rumo,
descomunal. Eu não tinha esperança e achava que nada poderia ser
pior do que aquela angústia, em não saber que fim ela teve, em não
saber onde estava a minha Maíra. Eu perdi aquela batalha por causa
dela.

Mesmo com as vistas embaçadas, enxerguei que algumas


casas estavam com suas portas arrancadas. Da igreja saíam os sons
de ladainhas e prantos. Pelo jeito que os moradores me olhavam,
notei que os tinha decepcionado de alguma forma.
Então fui à taberna esclarecer o que havia ocorrido. Chegando
na entrada, observei suas portas quebradas, com marca de garras.
Já era possível analisar a destruição interna. Entrei às pressas e me
deparei com as mulheres chorando.

— O que aconteceu? — perguntei, ansioso.

— Onde você estava, Liam? Ele matou muitas pessoas. Por


que vocês fugiram? — indagou Kira, uma das meretrizes.

— Não fugimos, só tentamos atraí-los para a floresta. Onde


está Bart?

— Ele está lá em cima, desolado. Quatro de nós morreram.

— Quatro? — repeti, não conseguindo acreditar. — Eu vou


falar com ele.

— Não, Liam! — insistiu a outra meretriz. — Disse que não


quer ser incomodado, pois está de luto e não quer te ver. Ele acha
que a culpa é sua e da Maíra.

De certa forma, me sentia culpado. Sempre que estávamos


juntos as coisas iam mal. Eu a amava, faria tudo por ela, mas
começava a acreditar que não podíamos ter uma vida um ao lado do
outro. Todas as nossas decisões, além de nunca agradarem aos
dois, traziam drásticas consequências. Eu cogitava, caso ainda
estivesse viva, abrir mão de nosso amor. Porém só em refletir sobre
isso, já me visualizava sendo a pessoa mais infeliz do mundo.
Contudo, não colocaria mais ninguém em risco. Havia muito sangue
em minhas mãos.
Depois que me retirei do estabelecimento, avistei Maíra
intacta, saindo do meio das árvores. Então andei, com dificuldade, o
mais rápido que conseguia até ela.

— O que aconteceu aqui? — perguntou ela. — E por que está


mancando, Liam?

— Precisamos ir embora! — falei preocupado, achando que


todos concordavam com Bartolomeu. — Você conseguiu puxar
alguém pelo espelho uma vez, talvez você consiga me transportar
junto contigo. A gente pode tentar sair daqui. Ir para Neiva, talvez...

— Do que está falando? Eu cheguei aqui agora. Não quero ir


embora!

— Maíra, nós temos escolhas... — Aproximei, segurando seu


rosto. — Podemos mudar tudo isso. — Mesmo tendo pensado
minutos antes em deixá-la, não tive coragem quando a encontrei. —
Talvez se deixarmos todo esse nosso lado sobrenatural, nós
possamos viver como pessoas normais em algum lugar, só você e
eu... Eu posso trabalhar, teremos uma casa com um quintal do jeito
que você gosta. De repente a gente pode ter um filho... — Propus,
não aceitando o que já havia constatado.

— Eu já tenho um filho! — resmungou, arrancando minhas


mãos de seu rosto.

— Eu não posso aceitar esse seu filho! — gritei. Em seguida


olhei o nosso entorno, verificando a situação.

— Não pode? Mas diz que me ama... — Seus olhos enchiam


de lágrimas. — Fica comigo, aqui. Assim eu posso ter contato com
ele...

Enquanto Maíra falava, percebi que pessoas começaram a


nos olhar, se achegavam.

— Temos que sair agora. Eles nos culpam pelas mortes na


cidade — ordenei, firme. Maíra assentiu. E não se importando com o
que achariam dela, tornou-se invisível na frente de todos. Não tive
tempo para refletir sobre como agir, então coloquei rapidamente o
meu capuz e desapareci como ela.

Ela corria levemente sobre a mata, parecia flutuar. Seus


cabelos esvoaçantes loiros se destacavam na paisagem. Olhava
para trás, a fim de certificar se eu estava junto dela. De repente eu
pude ouvir seus pensamentos. Era certo de que estava permitindo
que eu os acessasse. "Eu não quero te perder, Liam… Mas eu
preciso fazer o que é certo. O meu filho foi amaldiçoado. Ele tem
uma boa alma… Preciso ajudá-lo. Você me ama mesmo eu sendo
um monstro. Também o amo… Por favor, fique do nosso lado..." Em
seguida, bloqueou a sua mente e parou de correr. Fiz o mesmo.

— Você não é um monstro — disse ofegante ao me aproximar


dela. Já me sentia revigorado, meu braço também estava restaurado.
Existiam muitas vantagens em ser sobrenatural, contudo, abriria mão
de todas elas se pudesse, por algo que me faria feliz.

— Eu sou sim. Já te disse milhões de vezes — falou,


encostando suas mãos em meu peito, se recompondo. Sua voz
embargada, fazia doer o meu coração.

— Então é o monstro mais lindo que já vi na vida — sussurrei


e a beijei. — Não podemos fugir pra sempre e agora você ainda quer
dificultar as coisas, Maíra. Quer agregar mais um integrante a nossa
família?

— Ele é bom... Talvez exista algum jeito de tirar a nossa


maldição — argumentava com uma aparência inocente. Franzi a
testa, incrédulo. — Por que você fez essa cara?

— É sério que você acredita nisso? Então por que os meus


outros tios ainda são monstros? Acha que eles não tentariam algo?
Acha que eles gostam de ser horríveis? Maíra, eles mataram meu
pai por inveja. Mataram a minha mãe e iam me matar... Ela teve que
me esconder nas raízes de uma ficus, assim que me deu à luz... —
Balancei a cabeça, indignado. Maíra ficou em silêncio. — Minha mãe
sabia que iria morrer… Ainda agiu friamente, enchendo o vestido
dela com folhas secas, para se passar por grávida... Se ela não
tivesse feito isso, eu não estaria aqui com você. Então não me diga
que ele é bom. Eu não acredito. — Virei-me de costas.

— Quem te contou isso? — perguntou, iniciando um choro.

— Ticê e Anhangá.

— E neles você acredita? Eles te enganaram e me


transformaram nessa aberração.

— E você saiu voando em uma criatura achando que ela era


seu filho. Quem garante que era ele realmente? Você é sempre
ingênua — falei revoltado. — Ainda teve a capacidade de me
perguntar por que eu estava mancando — gritei, ficando face a face
com ela. — Você foi incapaz de se importar com o que eu pensava.
Eu tentei ir atrás de você. Não viu que eu caí de uma altura de uns
30 metros por querer te salvar? — Maíra permaneceu calada,
boquiaberta. — O que aconteceu com "iremos nos proteger"? Você
sempre me coloca em risco. Na verdade, todos em risco... — Não
conseguia parar de esbravejar. Esses pensamentos ficaram muito
tempo guardados. Eu andava de um lado para o outro, com um tom
agressivo. — Eu já percebi que nunca ficaremos juntos, você insiste
em ser estúpida! — Depois disso a olhei rapidamente, arrependido
do que tinha falado.

— Me desculpa! — disse sentida sem me encarar. — Eu não


vou mais... Eu não vou mais te colocar em perigo.

— Me desculpa, não quis dizer isso. Eu só estou nervoso... Eu


fiquei muito preocupado. — Tentei me aproximar, mas ela se afastou,
enxugando suas lágrimas. Fiquei péssimo. Apenas queria cuidar de
Maíra, ter a certeza de que tudo ficaria bem.

De repente ela começou a falar algo que me assustou: — Eu


encontrei seu avô ontem.

— O meu avô?

— É. O meu fi... aquele monstro me levou em uma montanha


bem alta. Ficamos um tempo conversando. E quando amanhecia, eu
vi Tau. Estava atrás de mim.

— Ele te fez alguma coisa? — Preocupei-me.

— Me pediu desculpas… Do jeito dele, é claro… Contou-me


tudo sobre minha mãe, aquilo que já sabíamos e outras coisas mais.

— Mais? O quê?
— O prazo dela estava terminando. E adivinha? — Arqueou
os ombros, se indicando. — Ela me entregou para que sua beleza
fosse renovada.

— Eu sinto muito, meu amor... — Tentei um contato, porém


novamente ela recuou.

— Está tudo bem... — Encarava o chão. — Ele também me


pediu que falasse uma coisa para você…

— O quê? — Fiquei intrigado. Semicerrei os olhos, cruzando


os braços. Aguardava o pior.

— Ele quer o cajado dele de volta, quer recuperar Kerana e


destruir Ticê. — Maíra contou às pressas. Parecia querer se livrar
daquela informação sem sentido.

— Ele está louco! Eu não vou entregar — exaltei-me.

— Tau disse que você não precisa dele, porque tem o seu
próprio poder. Eu sei que pareço estúpida e ingênua, mas acho que
dessa vez isso é verdade, Liam… Você tem algo dentro de você,
mesmo sem essa arma. O fogo que aparece nos seus olhos… Ele é
o seu poder.

— Maíra, estou lutando contra eles durante esses anos pelo


que o meu avô fez a você. E em segundos você o perdoa e passa a
confiar nele?

— Eu não confio, mas acredito que seja o único jeito de


acabar com a minha maldição — falava com firmeza. Esfreguei meu
rosto, indignado.
— Ah… Um jeito de acabar com a maldição… — debochei,
sorrindo.

— Se ele matar Ticê, o feitiço sobre mim deixa de existir.


Liam, é assim que as coisas funcionam. Eu vivi entre os grandes
feiticeiros por esses anos, sei do que estou falando. Todos eles me
concordam que a maldição só se extinguirá se Ticê a desfizer ou se
ela morrer. Pensa nisso!

— Você quer que eu dê algo poderoso nas mãos de um deus


perverso? Ele vai destruir a humanidade, é disso que se trata. —
Revirei os olhos.

— A humanidade não precisa dele para ser destruída. Ela já


faz isso sozinha há séculos… Foi o que me disse. Ele só quer ajudar
Jurará a se vingar e ter Kerana de volta. — Chegou mais perto de
mim, tocando meu rosto. Respirei fundo.

— Maíra, você não precisa disso. Já consegue se controlar.


Desde que chegou... — Enquanto eu falava, ela balançava a cabeça
começando a chorar, negando o que eu dizia. — Não o quê?

— Eu não parei. Eu ainda mato as pessoas, Liam —


pranteava, encabulada.

— Como assim? Eu não te vejo fazendo nada. Você mata


através do espelho? — questionei, apreensivo.

— Eu saio todas as noites logo que você dorme — respondeu,


cabisbaixa. Engoli em seco. Conforme ela contava, me lembrava das
vezes que me disse ter voltado do banheiro e outras que estava com
sede, durante à madrugada.
— Minha tia sabe disso? Ela te ameaçou?

— Não me ameaçou, mas sabe sim. Alguém deve ter me


visto. Eu tento ser discreta... Eu não consigo parar — finalizou,
trêmula. Então abracei-a. Queria ajudá-la. Era assustador se sentir
responsável pela morte de alguém. Havia experimentado horas
atrás, devido à chacina na cidade.

— E se não funcionar? — indaguei, cogitando barganhar com


Tau. — O feitiço dela não te transformou somente em assassina,
mas te trouxe à vida.

— Então esse será o meu fim. — Afastou-se e segurou minha


mão, tristonha.

— Maíra, eu não vou te perder. Não posso!

— Você disse que já percebeu que nunca ficaremos juntos.


Talvez esse seja o nosso destino — completou ela.

— Eu não suportaria... — Senti minha garganta apertando,


minha voz alterando. Em seguida ela encostou sua cabeça em meu
peito. Beijei sua testa, desolado.
27 MEU PONTO FRACO

Caminhávamos pela floresta. Maíra não falava nada. Eu não


sabia se o silêncio se dava pelo o que acreditava estar por vir, por
ainda estar magoada comigo ou pelas duas coisas. Ela suspirava
fortemente, seu semblante era de desesperança, não parecia confiar
no que tentava me convencer, pois apostava alto demais. Andava
como se fosse um cordeiro sendo levado ao matadouro. Já
estávamos em clima de luto. Eu a olhava de relance e notava que
fazia o mesmo.

— Maíra... — Não me contive, insisti mais uma vez, ao puxar


sua mão. — Vamos embora daqui, podemos ir para qualquer lugar.
Eu prometo te ajudar a se controlar.
— Não tem como, Liam. Eu quero acabar com essa maldição
e ajudar o meu filho.

— Do que adianta querer ficar se o que fará provavelmente irá


nos matar? Por favor... — Acariciei seu rosto, me aproximando de
seus lábios e falei ao encostar minha testa na sua. — Você é a coisa
mais importante que me aconteceu em todos esses séculos. — Ela
me olhava fixamente. — Eu nunca me importei em estar sozinho,
mas agora nada tem sentido sem você.

— Eu só fiz mal a você — soluçava, desanimada. — Por favor,


não vá a esse encontro comigo.

— Eu não vou deixar você!

— Não pode... Anhangá e Ticê vão achar que os traiu —


argumentou ela. Certamente isso aconteceria, entretanto, não se
arranjássemos uma forma de enganá-los.

— Você também pertence a eles, Maíra. O que acha que irão


fazer?

— Eu não fiz pacto nenhum, você fez. Eu te imploro, me deixe


ir sozinha. Teremos mais chance desse jeito.

Maíra sabia que eu jamais aceitaria o que me pediu. Então


passamos a fingir concordar um com o outro, apenas para ficarmos
juntos naquele momento. Estava claro que na reta final nos
trairíamos.
O meu plano era impedir, quando chegasse a hora, que ela
levasse o cajado. Tau provavelmente se apresentaria a mim e
começaríamos uma luta. Era arriscado, mas para Anhangá, eu não
teria o entregado, e sim o perdido durante uma batalha. Talvez
quando meu avô destruísse Ticê, e o feitiço sobre Maíra fosse
desfeito. Torceria com afinco por isso.

Andamos mais um tempo e encontramos uma pequena


caverna que nos serviu de abrigo naquele dia.

— Onde você encontrará ele? — perguntei a ela.

— Ele disse que me achará. — Ela me escondia o que


tramava, porém além disso, parecia não ter me contado algo a mais.

— Ele te chantageou, não foi? — suspeitei.

— Não, Liam!

Passei a tarde inteira pensando que talvez fosse possível ser


verdade o que Tau falou sobre os meus poderes. Recordei-me de um
evento enquanto criança, onde eu estava vivendo uns dias em uma
tribo, e os nativos me puniram por causa de um incêndio que eu criei
apenas com as mãos. Eu tinha apagado aquele acontecimento da
minha mente, por causa da forma traumática que me trataram.

A noite foi chegando, eu estava ansioso por precisar me


permitir ser abatido. Eu não sabia por quanto tempo Tau estaria
disposto a me atacar para conseguir o que queria. Não podia me
render facilmente, pois julgariam armação. Temia, também, que não
estivesse sozinho, não teria nenhum controle. E se Maíra acabasse
interferindo? Poderia se ferir e eu nunca me perdoaria. Aquela
indecisão estava me deixando agitado. Meu avô podia aparecer a
qualquer instante e ainda não tinha uma estratégia definida.

— O que foi? — indagou ela. — Você está muito sério.

— Estou nervoso — admiti, chateado com o que


vivenciávamos.

— Vai ficar tudo bem. — Maíra falou, esfregando sua mão em


meu braço. Percebi que suava. Também estava tensa.

Conforme iam se passando as horas, a friagem foi tomando


conta da floresta. Era época de inverno, então acendemos uma
fogueira e nos deitamos próximo a ela. Àquela altura, não nos
importávamos que a claridade chamasse a atenção de alguém,
apenas ficamos ali nos olhando por um bom tempo.

— Chegue mais perto de mim, você ainda está tremendo. —


Maíra usava minha capa e estava bem próxima à fogueira, o que me
fazia crer que o seu tremor era decorrente do apavoramento, mas
mesmo assim acendi meus olhos para que o meu corpo pudesse
aquecê-la.

— Amo seus olhos. — Sorriu levemente, alisando meu rosto.


— Eu consigo te ver por completo dessa forma. — Estava sonolenta,
o que era estranho devido à situação. Já em mim, previa uma terrível
insônia. — Liam, eu quero fazer amor com você agora.

— Você está cansada, Maíra. E não há clima para isso.

— Mas pode ser a última vez — sussurrou em meu ouvido.


— Não diga isso. Eu não vou deixar nada acontecer a você.
Irei contigo até Tau.

— Não, não vai — rebateu.

— Eu vo..

Maíra me interrompeu com um beijo e disse: — Não


consumamos o nosso casamento. Me deixa ser sua esposa. Quero
estar unida a você mesmo na morte. — falou, logo subiu em cima de
mim. — Você está tão quente! — completou, baixinho, ao se inclinar.

— Eu posso te queimar desse jeito — falei, retribuindo suas


carícias.

— Eu não me importo... Eu quero que permaneça com esses


olhos. — Encostou seus lábios em minha orelha. Gemi, cedendo a
suas vontades. Em seguida Maíra começou a falar algo em meu
ouvido, mas não conseguia discernir. Eu podia senti-la, porém
predominava uma sensação de que nada daquilo era real. Estava
confuso, sentia o balançar de seus cabelos sobre meu rosto, mas
minhas pálpebras pesavam tanto, de modo que eu fazia um enorme
esforço e nada acontecia. Eu só queria enxergá-la. E quando
consegui vencer toda aquela tensão, me deparei com raios de sol,
atravessando o tecido escuro que cobria meu rosto. Imediatamente o
retirei e constatei que era minha capa. Eu tentava me levantar e
sentia meu corpo exausto. Estava tonto e minha cabeça doía. Logo,
ao perceber um silêncio absoluto, olhei rapidamente a minha volta e
não encontrei Maíra, nem meu cajado. De repente toda a distração
da noite anterior fez sentido. Ela agiu de forma fria e calculista, me
enfeitiçou durante o sexo, para ir sozinha, ao encontro de Tau.
28 OS SETE

No início da noite avistei Tau entre as árvores. Sabia que Liam


faria de tudo para me livrar de qualquer mal, mas não podia deixá-lo
ser pego por traição. Eu havia confiado em seu avô, e ele parecia
concordar, no entanto, era óbvio que tentaria algo em cima da hora.

Jurará havia me mostrado, quando estive na montanha, uma


visão de como seriam os poderes de Liam. Ele produziria um tipo de
fogo que correria em forma de lama acesa por quilômetros de
distância. A terra se romperia e das rachaduras, mais fogo
expandiria. Suas habilidades eram cobiçadas por eles. Queriam Liam
a todo custo na guerra dos deuses, entretanto, eu tinha certeza que
isso não conseguiriam.

Precisei entorpecer meu marido ao oferecer meus prazeres.


Eu o queria demais, queria realmente concretizar nossa união,
contudo, o motivo principal daquele momento romântico foi protegê-
lo das consequências de minhas escolhas.

Havia aprendido com meu verdadeiro pai a fazer previsões a


curto prazo. Dessa forma, era possível alterar o destino de uma
pessoa imediatamente. Isso não deveria ser feito com frequência,
pois diminuiria a força do feiticeiro e em alguns casos, poderia ser
permanente. Por Liam me arrisquei, porém nada do que eu fizesse
era garantido.

Em minha visão me deparei com ele sendo levado, como


prisioneiro ao submundo, por Anhangá. Não me arrependo de tê-lo
abandonado naquela caverna. Faria tudo novamente.

<<◇>>

— Oi criança! — disse Tau.

— Não sou criança! — respondi, revoltada.

— Tá certo. Provou-me que não é. Trouxe-me o cajado.

— Você vai cumprir com o prometido?

— Se eu conseguir vencê-los, é claro que sim — afirmou


como se fosse o óbvio. — Não sou ruim como muitos pensam,
Maíra. — Sorriu. — Eu só quero a minha paixão de volta. Vocês
deveriam compreender as loucuras que eu tenho feito por amor.

— Eu só quero ter certeza de que isso tudo é verdade —


rebati, afrontosa.

— Você quer ter certeza? — perguntou de forma áspera. Logo


em seguida, com seu sinal, começaram a aparecer seus 6 filhos.
Surgiram em meio às árvores, e um deles por debaixo do chão, o
qual foi rasgado facilmente com seu chifre. — Agora me dê o cajado!
— ordenou aos berros.
Eu olhei para o meu filho, mas ele não tinha o mesmo
semblante daquele dia em que o conheci, seu olhar era assustador.

— O que você está esperando, Maíra? Ele não vai fazer nada
por você. — Tau se aproximou e arrancou o cajado de minhas mãos.
— Não se sinta ofendida, ele não é quem você pensa ser.

Na mesma hora meus olhos se encheram de lágrimas, me


lembrei das palavras de Liam sobre eu ser ingênua e estúpida. Tive
muito medo que seus poderes, mostrados a mim, fossem uma
manipulação mental.

— Jurará! Traga-o aqui! — Tau gritou. Senti o movimento


vindo por trás e me virei. De repente, vi ao lado da deusa uma
criança morena de cabelos cacheados castanhos, era linda.

— Este é seu filho, Maíra — informou Jurará.

— Filho? — Por alguns segundos eu cogitei acreditar que ele


poderia ter tido a mesma sorte que o pai de Liam, afinal, eu estava
morta quando ele saiu de mim, não o vi.

— Mostre a ela sua verdadeira forma — falou o deus


perverso. Então vi a criatura na fisionomia real. Tinha o corpo
parecido com o de um homem, porém coberto por muitos pelos.
Seus braços e mãos eram desproporcionais e seu rosto era
completamente enrugado.

— Fique tranquila. Se preferir, ele pode ficar daquele jeitinho


para você — zombou a deusa da chuva.

— Nosso filho é um metamorfo como eu, Mah. Posso te


chamar assim? — gargalhou, parecendo se divertir com o meu
espanto.

— Não! — respondi, indignada, com a voz embargada. — Eu


vou embora e espero que cumpra com o acordo.
— Se conseguir convencê-lo de se unir a gente, tudo será
mais rápido, Maíra — incitou a deusa. Ao ouvir seu pedido o alívio
me veio, pois sua fala confirmava que os poderes de Liam eram
verídicos.

Virei-me, caminhando em direção à caverna, estava reflexiva


sobre como meu marido agiria comigo. Provavelmente discutiríamos,
todavia, tudo ficaria bem. Decidida estava a ir embora e esperar, bem
longe daquela batalha, que eles derrotassem Ticê.

Conforme eu andava meus pés ficavam pesados, logo não


conseguia me mexer. Olhei para baixo e vi duas mãos que se
protuberavam da terra, segurando meus tornozelos.

— Ai meu Deus, o que é isso? — Suspeitei que fosse mais


alguma coisa vinda de Tau, contudo, ao olhar para trás notei que eles
já haviam sumido.

A força que os dedos faziam era tão intensa, que ao tentar me


soltar, tombei e bati a minha testa contra o chão. Comecei a rastejar
rapidamente, me deparando com uma pilha de corpos. Ainda
deitada, estarrecida, percebi que conhecia um deles, era o de uma
mulher, eu a matei enquanto estava no piquenique com seu
namorado.

— Devolva a minha roupa, feiticeira tola! — falou ela ao


mesmo tempo em que seu corpo deteriorava.

Eu estava perdida, para todos os lados que eu olhava, via


coisas estranhas. Corria sem rumo, sentindo insetos andando por
todo meu corpo. Então parei, comecei a me debater e a me coçar.
Aquilo pinicava tanto, a ponto de eu não me importar em me ferir
com as unhas para tirar aquela sensação horripilante. Eu só
conseguia gritar e chorar. Precisava de Liam. E de repente, o vi
correndo para mim.

— Liam! Ainda bem que me encontrou! Eu estou com medo...


Tem insetos em mim... — pranteava, mas ao me analisar, enxerguei
apenas arranhões, não tinha nada além disso. Comecei a achar que
era delírio.

— Não tenha medo, minha Maíra! Tudo vai passar rápido —


disse, contraindo fortemente os meus pulsos, levando o meu corpo a
esquentar. Analisei-me, constatei que estava tomada por fogo da
cintura pra baixo. Liam sorria imobilizado, me prendendo. Seus olhos
estavam vermelhos, diferentes de como eu os conhecia.

— Maíra, Maíra! Feche os olhos! — Uma voz bem longe me


chamava, porém meus gritos tiravam a clareza de tudo ao meu redor.
Não consegui discernir quem era. — Maíra, me ouve... — Cobriu
meus olhos com as mãos. E logo risos se fizeram presentes em
várias direções. Apavorei-me. — Eu estou aqui com você, mas ele
também. Não pode abrir os olhos, meu amor, senão irá enlouquecer.

— Liam, é você? É você mesmo? — Estava trêmula, insegura.


Temia que continuasse aquele terror.

Antes que ele me respondesse, o deus do submundo exigiu:


— Me entregue ela, filho de Yáci.

— Não! — Liam respondeu. Eu percebia seu medo, estava


ofegante.

— Você não pode fazer nada. Ela é minha! — Anhangá falou


com uma voz ainda mais grossa e assustadora.

A floresta estava congelante, a sua manifestação trazia um


imenso peso de morte. Sentia a sua respiração próximo ao meu
rosto. Inesperadamente, o rei do submundo sugou o ar que saía pela
minha boca, o que fez com que meus joelhos fraquejarem no mesmo
instante. Liam tentou me segurar, entretanto, não conseguiu a tempo,
então bati minha cabeça em algo muito duro.

As copas das árvores pareciam cada vez mais distantes. Eu


estava com dificuldade para respirar, não conseguia mais falar. Sabia
que a minha vida estava findando.
— O que você fez a ela? Está gelada! — Liam se debruçou
sobre mim. Com os olhos acesos, tentava me aquecer. Ele parecia
inquieto, inconformado, e eu já não me importava se enlouqueceria,
só queria vê-lo pela última vez.

— Ela está morrendo, vai voltar para onde deveria estar há


três anos.

— Por favor, não! Deve existir algo que você queira em troca...
— Liam falava, e ao escutá-lo percebi que a minha visão iria se
cumprir. Eu não tinha conseguido alterá-la. — Se você deixá-la viver
irei com você.

Queria intervir, entretanto não havia força em mim. Minhas


lágrimas rolando pelo meu rosto, embaçando minhas vistas cada vez
mais.

— Eu vou com você! — insistia Liam. — Eu serei seu escravo.


Eu sou um deus, sou mais forte do que seu exército de mortos.

Embora me encontrasse imóvel, permanecia consciente.

— Tudo bem, Liam. Realmente será mais útil como escravo


do que como aliado. Notei o quanto seu avô e Jurará o querem, e
você se recusa a pertencer àquela família. Seus poderes serão
espetaculares ao nosso lado.

— Eu só quero que ela volte a ter uma vida normal... — A sua


voz embargou enquanto apoiava minha cabeça em seu colo. — E
não quero que ela se lembre de mim.

— Vocês são entediantes! — resmungou Anhangá.

Simplesmente ouvia o acordo que ele fazia novamente com o


submundo. Meu coração se apertava, pois iria perdê-lo para sempre
e não saberia da sua existência.

Liam permitiu que o ouvisse através de seus pensamentos.


Não quis que eu sofresse, nem que eu tentasse buscá-lo, para me
manter em segurança. "Meu amor, eu sempre te amarei,
independente de quão longe estaremos um do outro". Enxugava
minhas lágrimas.

Então fiz o mesmo, deixei que acessasse minha mente,


tentando fazê-lo mudar de ideia. Eu não me importava mais com a
morte, só queria vê-lo fora daquela batalha, cuidando da floresta, dos
animais e dos outros seres que ele sempre se preocupou, mas
estranhamente eu só pensava no azul do céu e em como as estrelas
já reluziam para aquele horário.
29 NOSTALGIA

Era fim de tarde, estava deitada em meu quintal. Vislumbrava


os lençóis na corda balançando, sentindo alguns mosquitos picarem
as minhas pernas. Fiquei ali reflexiva por um momento, depois me
sentei na tentativa de espantar os sugadores de sangue. Logo ouvi a
minha babá chamando por minha mãe. Rapidamente as duas vieram
até mim, chorando e rindo ao mesmo tempo. Não compreendia o
espanto delas.

— O que está acontecendo? — perguntei, confusa.

— Minha filha, onde você esteve?

— Que felicidade, menina! Você voltou — disse dona Rita ao


me abraçar.
Então me levaram para dentro da casa. Cobriram-me com
uma manta. Tinha um pouco de lama em meu vestido. Eu não sabia
onde o tinha conseguido, mas aquela roupa certamente não era
minha. Uma cor tão escura não me representa.

— Onde está meu pai?

— Eu já mandei chamá-lo. O médico também está vindo te ver


— informou minha mãe.

— Médico? - Assustei-me, porque o profissional me remetia à


vacina.

Quando meu pai chegou, o vi pela primeira vez emocionado.


Não se cansava de me abraçar.

— Seus olhos mudaram. — Ele me disse.

— Eu vou perguntar ao Doutor Renato porque isso aconteceu.


— Minha mãe continuou.

Eu olhava tudo ao meu redor. Algumas coisas na casa eram


diferentes. Tínhamos novos empregados.

— Posso ir para o meu quarto? Quero tomar um banho. —


Estava me sentindo vigiada por todos, precisava de privacidade.

— É claro, filha. Quando o médico chegar você desce. — O


conde respondeu. Corri para o meu quarto para me banhar. Dona
Rita me ajudava como de costume.

— Você possui algumas cicatrizes agora... — falou minha


babá, intrigada. Eu olhei para ela, parecia querer ouvir alguma
história, entretanto, não tinha nenhuma, permaneci quieta.

Vesti-me e sentei na cama, aguardando o doutor, que se


atrasara. Pouco tempo depois a minha consulta começou.

— É normal mudar a cor dos olhos depois de adulta, doutor?


— Eu nunca vi mudar tanto assim, mas vou procurar saber
sobre esse assunto — respondeu o médico que parecia mais novo
que eu. Não me passava segurança a respeito de conhecimento. Mal
tinha um fio de barba no rosto.

— O senhor tem quantos anos? — perguntei, desaforada, não


me importando em ser mal-educada.

O doutor novo gaguejou e desconversou. Meus pais


reprovaram o meu comportamento, fazendo gestos de indignação às
escondidas. Eu detestava a ideia de ter mais atenção, pois estava
bem apesar da cor de meus olhos. Eu só desejava fazer as coisas de
sempre, pintar uns quadros em meu jardim, comer um bolo de fubá
cheio de canela... Essa vontade não saía da minha cabeça. Não
queria que o homem desconhecido voltasse com uma teoria que
pudesse afetar o meu dia a dia. Tudo para meus pais era doença ou
maldição. Não tinha interesse em nada disso.

Depois de toda exposição, fui para meu quarto dormir.


Ninguém comentou sobre eu ter desaparecido por três anos e sobre
o meu reaparecimento. Tudo era estranho. Nem eu mesma sabia
onde estive.

No dia seguinte acordei quase no horário do almoço, fui ao


quintal, colhi algumas flores e as coloquei em um vaso, no entanto,
quando o apoiei na mesa, caiu e espalhou vários cacos pelo
gramado. Precisava catá-los imediatamente, pois poderia me cortar,
visto que eu possuía o costume de andar sempre descalça, por não
suportar sapatos.

Quando me abaixei, achei uma bola de retalhos junto ao


canteiro. Lembrei que gostava de correr atrás dela quando pequena.
Uma sensação de alegria me embriagava, não sabia o porquê,
contudo, surgiu um sorriso em meu rosto.

— Filha! — chamou minha mãe. Ao ouvi-la, me virei e me


deparei com o Comandante Coimbra parado no jardim, maravilhado.
— Arlo veio te visitar - informou ela como se eu não tivesse o
notado. Fiquei admirada, tinha esquecido o quanto era bonito. Ele
andou até a mim com um olhar sedutor, usava sua farda, estava no
meio do horário de trabalho. Apenas tinha parado para almoçar e
decidiu aproveitar e constatar a minha volta. Presenteou-me com
lindas margaridas.

— Oi, tudo bem? — cumprimentou-me um pouco sem jeito.

— Tudo bem sim. E... e com você? — gaguejei, encabulada.

— Estou bem. Você se lembra de mim? Lembra de alguma


coisa?

— Lembro do jantar que nos conhecemos e de você me


prometendo aventuras atrás de nativos. — Sorri, e ele sorriu de volta.
Logo entramos em casa. Vi que a mesa estava posta. Minha mãe
havia o convidado para almoçar e não me contou. Ainda bem que
tive tempo de me arrumar, apesar da hora em que acordei.

— Seu pai falou que você deve ter sofrido algum trauma e que
isso pode ter causado o esquecimento — disse ele, puxando
assunto. Nos encontrávamos sozinhos no recinto.

— É tão estranho... Eles estão achando que eu vivi em uma


tribo durante todo esse tempo.

— Bem provável, você parece bem... Acho que não


sobreviveria três anos solitária no meio da mata.

— Engano seu, Comandante. Sou muito valente. — Sorri


docemente.

— Eles te disseram que não me casei?

— Por que não? — questionei, analisando o seu charme.

— Acha que é esquecível? Te procurei durante um ano todo.


Achei que quisesse fugir de mim.
— Não sei porquê iria querer fugir de você — falei, intrigada,
esperando uma explicação.

— Não lembra de nada realmente?

— Tem alguma coisa importante para lembrar? — Semicerrei


os olhos.

— Não. — Foi, enérgico. Eu sabia que algo tinha acontecido,


todavia, talvez não fosse o momento para vasculhar o passado.
30 CINCO PRIMAVERAS

Passaram alguns meses, a primavera chegou. Estava bem


ensolarado, havia festa na minha cidade, era o dia do meu
casamento.

Eu ainda me encontrava em casa. A costureira fez um vestido


exclusivo para mim, pois o que minha mãe usara ficou em Neiva. Ele
era lindo, todo bordado, em alguns trechos possuía fios dourados e
pérolas. Achei um pouco extravagante para mim, mas era notória a
influência do gosto da Condessa sobre ele.

Estava nervosa, minha mãe quis explicar tudo sobre a noite


de núpcias um pouco antes da cerimônia. Aquilo estava roubando o
meu ar, junto com o espartilho extremamente apertado que insistiam
que eu usasse para deixar minha silhueta ainda mais adorável.
Aguardava ansiosamente o fim daquele dia para ganhar
autonomia sobre meu guarda-roupa.

— Você está linda, minha menina! — disse Rita, gentil.

— Obrigada. — Sorri.

Eu não entendia porque me sentia incomodada, me faltava


algo. Talvez eu devesse ter esperado mais para me casar, o meu
retorno estava tão recente, eu nem conhecia direito o meu noivo.

— Não fique nervosa, vai dar tudo certo. — Minha mãe tentou
me tranquilizar. Bufei, agitada.

— Não é nervosismo — murmurei.

— Não? Não consegue parar de bater o pé — argumentou


ela. — Eu estou muito feliz, Maíra. Vai se casar com um ótimo rapaz.
— Conforme ia falando, fui refletindo e me acalmando. — Ah... Seu
pai e eu estávamos rindo ontem... A gente lembrou de quando você
era pequena e dizia que se casaria com o homem cabeludo do
jardim.

— Eu dizia isso? — perguntei, encucada.

— Você não se recorda? Ah, claro... Por causa da amnésia.


Tinha um monte de desenhos dele que você fazia espalhados por aí.
Eu guardei tudo no baú, junto com suas outras coisas quando
achamos que você... — Minha mãe pausou a sua fala e acariciou
meu rosto. — Ainda bem que você voltou — desabafou com lágrimas
nos olhos.

— Eu queria ver algum desenho, seria engraçado, me


distrairia.

— Agora? Você já é a noiva mais atrasada que eu conheci.


Depois eu envio o baú pra sua casa.
— Tudo bem... Vamos! O coitado já me esperou por três anos
— brinquei, me fitando no espelho.

— É verdade, meu amor.

Foi um longo e lindo dia. Embora a incerteza me assolasse de


hora em hora, estava radiante por ter me casado com Arlo. Confesso
que por um segundo cogitei avançar em direção à floresta, porque
um erro parecia existir. O que me manteve sã foi o fato de saber que
ter estado desaparecida poderia causar essa sensação eternamente.
Deveria ser normal. Então controlei a insegurança infantil.

Fomos para nossa casa. Era grande, também tinha um quintal


com um lindo gazebo ao fundo. Arlo disse que pediu que
construíssem para mim, seria um bom lugar para eu pintar meus
quadros ao ar livre.

Logo a temida noite de núpcias chegou. Tudo aconteceu tão


naturalmente. Não se assemelhava com o que minha mãe e babá
descreveram. Cheguei a supor que não era mais virgem e por um
breve momento, pensei que Arlo também tivesse.

<<◇>>

Cinco anos se passaram. Antes tudo era tão calmo, e na


cidade havia sempre motivos para se festejar. Hoje as pessoas
viviam com medo, desconfiados de todos. As crenças que deveriam
ajudar ao povo, pareciam estar os enlouquecendo e disseminando o
caos.

Eu tentei continuar o trabalho que eu fazia quando era mais


nova, ajudar os nativos a ler e escrever, mas depois do meu sumiço
eles não me aceitavam mais no meio deles. Mesmo nas tribos que
eu acabava de conhecer, eu parecia ter um histórico ruim, o que me
fazia acreditar que vaguei durante os três anos na floresta sozinha
ou aos cuidados de animais, como em um dos contos que ouvi
quando criança.
Os moradores da cidade diziam que às vezes apareciam
indígenas desnorteados na redondeza. Eles não se davam muito
bem, porém nesses casos até os acudiam. Chegavam vagando e
dizendo que os deuses estavam zangados, que mandaram seus
monstros para nos devorarem. Tudo era muito surreal, entretanto,
Arlo acreditava que de alguma forma existia verdade em suas
palavras. Achava que era um tipo de analogia e deveriam estar em
guerra, porque as tribos se encontravam em extinção.

Em alguns vilarejos também se falavam sobre criaturas. Não


era só a antiga lenda do homem lobo que circulava entre eles.
Contavam sobre pessoas que se transformavam em outras,
quimeras e vários tipos de monstros. Diziam também que havia um
matador de lobisomem, contudo, havia morrido, por isso as caçadas
aos humanos eram mais frequentes.

Eu vivia a maior parte do tempo em casa, quase não ia à


cidade e quando eu saía, percebia um enorme peso. Algo estava
realmente incorreto. Não tinha como dizer o que era. Não parecia
existir vida entre eles. A função do exército passou a ser a de conter
os lunáticos que causavam confusões no centro da sociedade com
suas histórias loucas.

Um dia, lendo em meu jardim, já era quase a hora do chá da


tarde, eu esperava meu marido voltar do trabalho. Em seguida,
percebi um homem me observando. Era alto, barbudo e vestia uma
roupa escura. Fiquei paralisada, não conseguia parar de encará-lo. E
de repente notei que eu entendia o que ele falava, lia sua mente.

Como eu era capaz de tamanha coisa? Será que tudo era


mesmo real? Ele dizia que precisava de mim para uma missão
grandiosa. Repetia isso incessantemente como se quisesse ter
certeza que era compreendido. Depois de ouvi-lo, fez um gesto com
as mãos, voltei a ter o controle de meus movimentos. Levantei-me
rapidamente e corri, mas novamente me vi imobilizada.

— Não corra! Não tenha medo de mim, sou seu verdadeiro


pai!
Olhava-o assustada, aquilo não fazia sentido.

— Maíra, sou seu pai... Já nos conhecemos antes. Preciso da


sua ajuda. Temos que sequestrar uma pessoa e só pode ser hoje.

— Isso é loucura! Eu devo ter pegado no sono — balbuciei.

— Maíra, sou o César... Sou um feiticeiro e sou seu pai. O


conde não é seu pai. Já tivemos essa conversa, mas você se
esqueceu. Eu só preciso que vá até seu baú e folhei os seus
desenhos.

— O quê?

— Você tem que olhar de verdade. Há mais do que pinturas


ali. Necessitamos ser rápidos — continuou César.

Apesar de não entender do que se tratava, de alguma forma


aquilo parecia ser a chave de tudo. A minha sensação de
incompletude podia acabar.

Em todos os anos de casada eu ainda não havia aberto


aquilo. Estava em meu porão esquecido. O feiticeiro novamente fez o
gesto com as mãos e eu pude me mexer. Em seguida corri para
dentro da minha casa e desci ansiosamente as escadas. Olhava
para trás, e ele havia desaparecido, entretanto, mesmo acreditando
ser uma alucinação, achava que aquele baú deveria ser desvendado.
Repentinamente César apareceu ao meu lado.

— Como fez isso? — perguntei, assustada. — Você tinha


sumido...

— Você também sabe fazer isso e faz muito mais —


respondeu, apressado. Fiquei estarrecida, porém curiosa. Não
possuía o conhecimento do quão importante meus desenhos eram.
Respirei fundo e abri o móvel empoeirado.

Fui retirando várias bonecas de porcelana, alguns diários e


uma caixinha de música quebrada. Havia algumas roupinhas de
celebrações de aniversários e a roupa que eu usava quando eu
reapareci no jardim. Lá no fundo encontrei várias lonas. Algumas
enroladas e outras dobradas. Também achei alguns papéis bastante
encardidos.

— É isso. Abra! — ordenou ele. — Aí está dizendo como


vamos salvá-lo.

— O quê? — questionei ao mesmo tempo em que posicionava


as pinturas no chão.

— Isso é um plano, Maíra. Consegue ver?

— Sim! E também consigo ver Liam.


EPÍLOGO
Meu amor,

Foi assustador te ver definhando novamente. Eu tive que pensar


rápido, não tive muitas opções.

Fui feito para te amar, te proteger, te aquecer. Esse é o meu


maior objetivo de vida. Você é a minha vida!

Espero que um dia você entenda o que eu pedi que ele fizesse.
Não cogitava que passasse toda sua vida me esperando, não foi
para isso que eu te salvei. Sempre quis o seu melhor, por isso,
definitivamente foi necessário que me esquecesse. Porque eu sei,
Maíra, o quanto você é teimosa e impulsiva. Iria me buscar.

Meu amor, mesmo querendo que fosse feliz, te ver ao lado dele,
logo ele, a dor que eu senti me fez enlouquecer.

Me desculpa, não foi a minha intenção destruir tudo. Ainda não


sei me controlar. Eu lembro de pedir para que você aprendesse.
Realmente, só quem passa por algo desse nível sabe como é terrível
se tornar um assassino, ainda mais quando o seu verdadeiro eu se
importa com tudo e com todos.

Espero que essa carta chegue até você. Espero que você e Arlo
me perdoem. Espero que pelo menos você seja feliz.

Te amo mais que tudo no mundo.

De seu marido,

Liam.
Assista o BOOKTRAILER da continuação AQUI.
OI, LEITORES!
Meu nome é Chasanna. Sou uma escritora que começou
no Wattpad em 2021. Esse é o meu primeiro livro. Ele surgiu a partir
de uma ideia de escrever roteiros para cinema, um sonho que ainda
desejo realizar.

Se você curtiu, não esqueça de avaliar com as estrelinhas e


comentários. Isso ajuda no crescimento da trilogia Deuses da
floresta. Ficarei muito feliz.❤

Caso queira acompanhar o meu trabalho, tenho um perfil no


Instagram: @autorachasanna. Pode me enviar mensagens por lá.
Responderei com muito carinho. Obrigada!
SOBRE A TRILOGIA
O segundo e terceiro livro da trilogia encontram-se, por
enquanto, gratuitos no Wattpad. Em breve passarão por revisão e
estarão somente na Amazon.

Se você é uma pessoa ansiosa e não quer esperar para


descobrir o que acontece com o casal Liam e Maíra, corre e entra no
meu perfil: @chasanna. Lá vocês também descobrirão outros livros
meus que estão bombando de graça.
MEUS LIVROS
MEU CAÇADOR E EU

Rei misterioso, Lobisomens, Vampiros, Híbridos e muito mais…

SINOPSE

Contam as más línguas que uma criança nasceria e se


tornaria uma grande força obscura, acabando com a humanidade.

Laysla foi oferecida por acaso, ainda no ventre, a serviço do


mal.

Sua mãe, descobrindo mais tarde a gravidez, a escondeu de


todas as formas. Deixou sua bebê sob cuidados alheios, para
protegê-la da Igreja, a qual deveria matar todas as crianças nascidas
durante o ano da oferta pagã.

Ela era uma menina aparentemente normal, vivendo com sua


família adotiva. Mas Laysla, híbrida, não era a única predestinada. O
seu irmão de consideração, Kairon, deveria caçá-la.
NEM NOS MELHORES SONHOS

ROMANCE com MUITO HOT, de um jeito que VOCÊ NUNCA


LEU!

❤Ator Hollywoodiano,

❤Cheio de boatos envolvendo seu nome,

❤ Fama de mulherengo,

❤Quer pegar a estudante de cinema, Carol,

❤Ídolo de Carol, que vive um namoro à distância.

Carol é uma brasileira de 19 anos que deixa a família, a


faculdade de engenharia, mas mantém o seu namoro à distância
com Edu, para se aventurar no Exterior, estudando cinema.

A bolsista, tímida, ao chegar nos Estados Unidos se vê


perdida, pois para realizar o seu sonho de dirigir filmes é preciso cair
de cara em várias áreas da indústria cinematográfica, inclusive a
atuação.

Quase desistindo de tudo, tendo que estudar e trabalhar para


se sustentar em Los Angeles, o acaso leva Carol a se esbarrar com
o seu ídolo Andrew Mc Conie, o ator mulherengo de 34 anos.

O galã hollywoodiano é bem diferente de como a mídia o


retrata. Ele desejava viver um grande romance, porém a sua falta de
tempo e boatos antigos, envolvendo o seu nome, o deixa cético
quanto ao relacionamento.
Será que o acaso continuará a favor dos dois ou os seus
medos e inseguranças os dominarão?

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