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HISTÓRIAS
ETERNUMBRA

Corvo Cinzento
Escrito por Angelo Lucas.
(Versão beta, sujeita a modificações e erros, por favor
cite ao autor.)

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SUMÁRIO
PRÓLOGO - MÁGOAS DE UM PRESENTE
AMARGURADO.

UM
UMA VISITA MÓRBIDA, NOITE FRIA EM PALIDAR.

DOIS
A PRIMEIRA PROMESSA

TRÊS
COMECEI A TRABALHAR PARA SANGUESSUGAS
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PRÓLOGO - MÁGOAS DE
UM PRESENTE
AMARGURADO
Tempos Atuais

Começou a nevar, não havia pessoas nas ruas, e o bar que vim se
tornou quieto. Estou sentado num banco redondo, deitado sobre
ambos os braços, em uma mesa de madeira. Tinha algumas cartas
de baralho espalhadas por cima dela, mas pra falar a verdade eu
não lembro se estava ou não com alguém. Enquanto eu soluçava,
minha visão ia ficando turva, e dava pra ver duas ou eram três?
Garçonetes gêmeas se aproximando de mim. Que sorte, meu copo
já estava ficando vazio.
— Psiu, gatinhas, antes que meu charme conquiste vocês, me vê
mais uma dose por favor — Chamei enquanto arrotava.
— Quanto tempo vou ter que aturar esses vagabundos. —
Murmurou a moça. — Olha já está bem tarde, só tem você aqui,
então que tal ser um homem gentil, e ir embora?
— Eu? Eu sou gentil, sou um homem respeitado. Não pode me
mandar ir embora, eu estou pagando! — Reclamei
— Olha, com esse cabelo bagunçado, roupas aos trapos fica bem
difícil de acreditar. — Falou enquanto pegava meu braço e ia me
carregando pra fora. — Você é gelado, e pesado como um morto!
Bem, com esse cheiro, talvez esteja mesmo.

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Me preparava para dar uma resposta a altura, ela estava me
desrespeitando, tudo que fiz até agora, pra ser tratado com um
mendigo?
— Ei, olha pra cima, garanhão. — Uma voz doce me chamava.
Olhei pra cima e vi uma mulher, de cabelos castanhos amarrados,
orelhas pontudas e algumas cicatrizes de batalha no rosto. Vestia
malha, por cima uma armadura já desgastada. Ela era familiar mas
não conseguia lembrar nem distinguir direito por causa da bebida.
— Quanto tempo vai continuar assim? Se remoendo, passando a
mão na própria cabeça. — Parecia desapontada, por que?
— Do que está falando? Me deixa relaxar vai…
— Pense um pouco, sua irmã está te esperando. Eu sei que você
passou por maus bocados, mas há outras coisas a se proteger. O
que você prometeu quando tudo isso começou?
— Eu…
— Vamos lá, vai passar mais anos longe da sua irmãzinha? Você
não iria protegê-la? Não vejo como um alcoólatra fraco, caçador
fracassado, tomado por angústias, pode proteger alguém.
— Você não sabe de nada, nada da minha vida! — Cada palavra
que eu soltava, parecia que junto iria sair todas as doses que eu
tinha tomado.
— Eu sei sim, não sou mais a garota que te acompanhou na
infância, mas é engraçado. É desse jeito, que você me imagina?
Agora me recordo. É a garotinha que estava comigo quando eu
perdi o controle pela primeira vez, poderia ter sido ela. Por que ela
parece tão cansada? Da última vez que a vi, não se parecia nada
com isso.

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— Você não é desse jeito, não fique cego. Ela morreu porque você
buscou a morte, procurou o fim, tudo isso é culpa sua.
— E o que você queria que eu fizesse? Ele iria fazer isso de novo, e
vai continuar fazendo!
— Quero que se lembre. Será mesmo que a escuridão iria te
buscar, ou você a buscou? Queria fama, sucesso. Tudo de ruim
que te aconteceu , é culpa sua. Só se importa consigo mesmo.
— Eu fiz pela Cassy! Fiz pela Verzaci, fiz… fiz por você! — Gritei
para a moça. Mas ela não me respondeu, uma feição de desgosto
tomou conta do seu rosto, e enquanto caminhava virou de costas,
ignorando meus esforços, indo embora.
— Volta aqui!
— Com quem está falando? — Perguntou a moça. — Bem, não é
problema meu seu maluco! — a garçonete me pôs pra fora, e
bateu a porta que rangeu com o impacto.
A neve começou a se amontoar pelas calçadas, onde me sentei.
Com apenas meu copo na mão direita, olhando para os edifícios
reluzentes da parte alta, buscando uma resposta, um chamado,
uma razão. O frio já não me incomoda há anos. E se eu fechasse
meus olhos podia sentir o calor de sua mão, tocando meu rosto
gentilmente, olhando pra mim com amor e paixão. Talvez ela
tenha razão, é culpa minha toda essa dor, deixei-me tomar por
arrogância, orgulho. Com ela me esperando, acreditava poder
enfrentar tudo e todos, queria poder dizer a mim mesmo, o
quanto estava errado. E impedir a escolha burra que fiz. Meu olho
estava seco, e mesmo querendo chorar eu não podia, esses

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sentimentos foram roubados de mim a muito tempo. Essa parte
do meu ser, se foi.
Encolhi a minha cabeça entre meus joelhos e olhei para o chão
esbranquiçado. Queria poder ver minhas lágrimas caírem, elas têm
uma grande responsabilidade, deixar as emoções ruins partirem.
Tudo aqui dentro, guardado a tanto tempo e eu não consigo
deixar sair, tanta dor e arrependimento. Quando foi que tudo
começou a desandar? Onde na minha caminhada que eu errei? Eu
preciso me lembrar, tenho que voltar a Cassy, não posso deixar
mais ela sozinha. Não de novo.

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A Primeira Mentira.

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UMA VISITA MÓRBIDA,
NOITE FRIA EM PALIDAR
Ano 867 Quinta Era De Penumbra

Era mais um dia frio em Palidar, eu e minha irmãzinha


estávamos na porta de casa, esperando como de costume nosso pai
retornar de seu trabalho. Ele tinha algum tipo de negócio próprio,
nunca entendi bem do que se tratava. De qualquer maneira, o
fazia chegar tarde quase todos os dias, como se nossa casa fosse
apenas um bar, um lugar onde ele poderia dormir. Já estava
entardecendo quando, ao longe, meus olhos se forçaram a
enxergar um homem se aproximando, era alto, cabelo café,
desgrenhado como se fizessem questão de estarem bagunçados.
Era meu pai, e sua boca se curvou num sorriso, ele voltou. Nunca
fui muito apegado ao coroa, não me entenda mal, só não entendia
o por que ele tinha sempre de chegar tarde, deixar mamãe e Cassy
comigo. Vivia dizendo e disse também assim que chegou
— É o homem da casa, tem de proteger as garotas. — Suspirou
com a voz cansada. — Tudo bem enquanto eu estava fora?
Apenas assenti, minha irmã disparou e pulou em seu peito. Meu
pai a agarrou, e olhou amavelmente, e agradeceu por esperar
novamente ele estar de volta. Depois, a soltou no chão e se dirigiu
para nossa mãe, uma mulher com cabelo vermelho vinho liso,
olhos brilhantes como esmeraldas e traços finos e marcados, que
acompanham um olhar determinado. Ele enrolou seus braços
sobre sua cintura, inclinou o rosto e enfim a beijou.

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— Você demorou mais que o normal hoje — soltou aliviada. —
Na verdade, está demorando mais a cada dia. O que está
acontecendo? Por que não me conta?
— Eu preciso de mais tempo, não posso envolver você e as
crianças — confessou meu pai com a voz embargada.
— Estou quase lá, fiz um trato com os caçadores de sangue e eles
vão me ajudar.
Cessaram a conversa quando perceberam que eu estava prestando
atenção. Por fim, veio falar comigo, esperando que desta vez seria
diferente. Ele se abaixou para um
abraço, mas cruzei os braços e franzi o rosto, mais uma vez ele
desistiu, bagunçou o meu cabelo e sorriu olhando para mim
perseverante.
Não tinha percebido até eu reparar que meu pai parecia
apressado, suava e sua voz estava ofegante. Mas ele trouxe consigo
uma bolsa preta que tinha dificuldade de carregar. Cassy e minha
mãe não pareciam ter notado, ou se notaram não se preocuparam,
então eu acreditei que poderia ficar tranquilo.
Pouco tempo se passou desde de sua chegada, nós jantamos em
família em uma mesa redonda de madeira que eu sempre me
machucava com as farpas, e tinha a sensação de que iria quebrar a
qualquer momento. O cheiro amadeirado e reconfortante de
Porridge que minha mãe havia feito me acalmava. É um mingau
feito de aveia e cevada que eu simplesmente adorava, gostava
quente, era como um abraço caloroso em um dia congelante.
Terminamos de jantar e após algum tempo brincando de moldar
um pedaço de madeira, subi as escadas com a minha irmã. Nosso

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quarto era modesto, haviam duas camas de madeira com entalhes
e tons escurecidos, tínhamos desde de que me lembro por gente,
mas manteve a mesma sensação de acolhimento. Antes de ir ao
seu quarto minha mãe passava de rotina nas nossas camas e nos
dava um beijinho para dormir. Caminhou até nosso quarto,
iluminando nossas almas com o seu olhar, se acercou pra perto da
cama e cantarolou — Segue a lua que brilha no alto, ela mantém
seus segredos, conhece mel e fel se desobedece, chorará, e os lobos de
seus sonhos vão te buscar. Descansa, criança minha, em calma no
escuro, e fogem os maus sonhos se fechas os olhos. Mas se teu grau de
desobediência crescer os lobos hão-de te visitar. Durmam bem
pequenos. — Cessou enfim curvando os cantos de sua boca.
Tinha falado várias vezes que já estava grande demais pra isso, não
precisava de uma canção para dormir. Mas pra minha sorte eu
jamais ouvira ela cantar esta música, e nem sentiria o amargo frio
gélido do meu quarto.
Acordei com uma luz alaranjada invadindo meus olhos, era
manhã e minha irmã não estava dormindo ao meu lado. Comecei
a procurar pela casa e não a achava, meus pais também não
estavam. Subi as escadas novamente em direção ao meu quarto e
me arrumei prontamente para sair de casa. Minha mãe tinha a
rotina de quando acordar comprar o que tivesse de comer no
mercado, que ficava entre a parte baixa e alta da cidade, era uma
rua reta com diversas barraquinhas à beira da calçada, com pessoas
gritando para vender o máximo possível. Morávamos na parte
baixa então ela deve ter se levantado cedo para sair.

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Comecei a caminhar entre os becos, lá vi um grupo de anões
conversando com alguns humanos sobre algum assunto
metalúrgico, vi também um elfo quando eu me aproximava do
mercado, era o único bem vestido e estava acompanhado de dois
guardas, Sombras de Halla, temidos cavaleiros sem quaisquer
resquícios de emoções. Alguns eram arcanos, escravos, aqui, se
tiver um pingo de arcana você vira um hamster engaiolado. Os
que não viram escravos, vivem escondidos entre becos na cidade
baixa. Quanto mais eu me distanciava da minha casa, percebia a
sorte que tinha. Abaixei minha cabeça perante o elfo, queria evitar
problemas. Os nobres eram arrogantes e prepotentes, pareciam a
todo momento ansiosos para causar problemas para pessoas
pobres. Quando passei pela correnteza vi minha mãe comprando
alguns pães, um pouco mais embaixo segurando sua mão, minha
irmã, sorridente sem parecer se importar com a podridão à sua
volta. Me aproximei acenando.
— Você demorou pra acordar querido, fechou as portas antes de
sair? —
Perguntou-me olhando nos olhos.
— Claro. — Respondi coçando o nariz.
— Então já pode me ajudar com isso aqui — Dirigindo a mão até
mim, me mostrou uma sacola com alguns pães.
— Ahn.. — Vamos? O que está esperando? Um convite formal?
Após relutar um pouco segurei a sacola com a mão esquerda, e
acompanhei minha mãe pela manhã no mercado.
Passamos por algumas barracas, uma delas vendia “plantas
medicinais” mas era mentira, não existem plantas em palidar,

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quem dirá alguma com poderes curativos. Em outra tinha um
pequeno homem, orelhas grandes e nariz avantajado era um…
— Gnomo mamãe! — Interrompeu a pequena Cassy.
— Isso garota, vai querer levar alguma lembrancinha? — tinha a
voz puxada, parecia que estava com catarro na garganta. — Tenho
alguns totems que podem proteger sua família de mal olhado e
também más vibrações.
Sinceramente não me pareceu muito convincente, mas minha
irmãzinha esperneou para comprar um pequeno totem. Algum
tipo de animal, mas eu ainda não tinha visto nada como aquilo na
época. Redondo, felpudo e seus olhos estavam nos cantos de seu
rosto, só fui descobrir o que era anos mais tarde.
Nós terminamos as compras e fomos até nosso lar. Assim que
cheguei em casa me vi em uma encrenca. Esqueci que havia
deixado a porta aberta, e quando abrimos vimos a nossa mesa
jogada ao chão, gavetas reviradas, marcas de lama espelhadas em
zigue e zague pela cozinha e alguns pratos quebrados.
Apesar disso tudo, nenhum pertence foi roubado, sequer uma
moeda de ouro. Minha mãe me olhou de cima, e seus lindos olhos
pareciam se tornar esmeraldas derretidas em chamas, seu sorriso
escorregou.
Descobri nesse dia a aversão que tenho a tarefas domésticas, era
pra minha mãe ou Cassy estarem fazendo isso. Demoramos
algumas horas para terminar de limpar a casa, e tirar os entulhos
que estavam espalhados pelos cômodos.
— Você realmente trancou bem. — Brincou minha mãe ao
mostrar a porta sem quaisquer sinais de arrombamento.

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— Eu falei para você, troque a chave mas você não me ouve. —
Sugeri coçando a nuca.
Ela me olhou, parecia desapontada, mas abaixou sua mão para um
cafuné…
— Aí! — Soltei franzindo o rosto.
Minha mãe me deu um cascudo, quando olhei pra cima o canto
de sua boca elevou-se.
— O que eu faço com você, ein? — Perguntou-se encolhendo os
ombros. — Não sei a quem puxou.
— Não é você que vive esquecendo de comprar uma coisa ou
outra? — Murmurei.
— Oi?
— Nada!
— Tá… — Suspirou. — Vou banhar a sua irmã, vê se não faz
bagunça.
Assenti e fui em direção a fachada, me sentei num banquinho de
madeira que havia ali. Enquanto acompanhava a linda paisagem
cinza e sem vida, vi algumas pessoas passando pela porta, Gnomos
apressados com suas roupas justas, alguns nobres e também um
firbolg. Seres conectados com a natureza, possuem orelhas
grandes como de animais que a depender do tamanho eram
caidinhas. São conhecidos por serem naturalistas e normalmente
chegam de outro reino, um mais bonito que palidar pelo menos.
Aqui raramente são vistas plantas ou árvores. Sua presença
significava algum evento importante. Também observei uma
criança com roupa desbotada, parecia um meio-elfo com cabelos
louros correndo com um pedaço de pão na mão.

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— Alguém segura esse ladrãozinho! — Gritou atrás dele um
homem robusto com a barba mal feita.
O garoto se virou, e sua língua escapou de sua boca enquanto
fazia uma careta sinistra, como ele conseguia fazer aquilo?
— Sai pra lá tiozão, não me pegou antes, por que acha que vai
agora…
O garoto foi interrompido por uma montanha que se
materializou em sua frente. Um homem alto, forte, cabelos negros
e uma cicatriz no olho esquerdo.
— É a última vez que você nos causa problemas. — Grunhiu o
homem, e com apenas uma mão levantou o garoto como quem
levanta uma sacola de pão. Pela gola, começou a caminhar na
direção oposta da que o garoto iria.
— Me solta! — Berrou se debatendo.
Mas o grandalhão continuou sem responder, ambos foram
sumindo da minha vista, para cada vez mais longe da parte alta.
Olhei com desdém para os homens até não enxergá-los mais.
Após algum tempo, me assustei com a figura de meu pai se
aproximando de casa, ele chegou bem mais cedo do que o
habitual, estava sem olheiras, mais aliviado.
— Hoje teve menos trabalho, onde estão as meninas? —
Perguntou limpando os cantos de sua vestimenta de couro batido,
deixando cair no chão, neve e pelos.
Olhei para o seu rosto e inclinei minha cabeça a direita em direção
a porta.
— E o garotão, o que faz sozinho na calçada? — Paquerando
alguma garota?

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— Tava esperando uma pessoa. — Respondi apático.
Era uma amiga, que conheci a alguns dias atrás, fazia tempo que
ela não aparecia. De vez em quando eu ficava na porta de casa,
esperando ver sua doce silhueta. Eu não estava apaixonado por
ela, mas não era muito comum poder brincar com outras crianças
por aqui, sem quem elas sejam de sua família.
— Bem, pelo visto sua visita não chegou. Vá se aprontar, levarei
você e Cassy para um lugar especial. — Animou meu pai —
Vamos vamos, levanta.
Ele foi me dando leves tapinhas nas costas, me levantei cético e fui
até meu quarto. No caminho me dei conta que não me lembrava
da última vez que saímos juntos. Digo, em família. Meu pai se
ocupa bastante e sempre acaba chegando tarde, não dando tempo
de fazer nada. Os nossos únicos momentos reunidos eram no
jantar. Então eu fiquei eletrizado com a ideia. Quando cheguei em
um piscar de olhos estava pronto. Vesti um casaco de couro
aconchegante que ganhei de aniversário a alguns anos, e uma bota
preta. Quando voltei à cozinha, Cassy já estava pronta, cabelos
penteados que se assemelhavam ao da mamãe e uma roupinha
azul-noturno. Com ternura minha mãe abaixou-se e beijou minha
testa primeiro e em seguida a de Cassy.

Nos despedimos, e em após algum tempo estávamos em uma área


esquisita da cidade.

Poucas pessoas podiam ser vistas ao longe, e a cada passo iam


surgindo…

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— Árvores crianças — Começou meu pai — Tinham bastante a
algumas eras, mas foram sumindo por conta do nosso egoísmo.
Costumava vir a este lugar com a mãe de vocês, e aqui pedi a mão
dela. — Estava com olhos gentis, parecia estar contando um
segredo que a sete chaves mantinha para si.
Minha irmã não entendia direito, porém os olhos brilhavam,
prestando atenção em tudo que ele dizia. Nunca o vi dessa
maneira, havia emoções em suas palavras e era a primeira vez que
compartilhava algo conosco.
Continuamos caminhando, passando por algumas árvores
retorcidas com poucas folhas. Estava escuro, e que não nos
deixava só na penumbra, era a luz laranja que emanava da
lamparina que meu pai carregava. Eu não sabia onde nem como
voltar, só sei que demoramos alguns minutos caminhando pelo
bosque, até que finalmente chegamos.
— É aqui. — Murmurou meu pai. — O segundo lugar mais
bonito de Palidar.
Agora além da luz calorosa que vinha da lamparina, estávamos
sendo iluminados por um brilho azul-safira que emanava do
fundo de um gigante lago em formato de O.
Nunca havia visto nada parecido, peixes dançavam na água
cristalina intocada, e nossos rostos distorcidos refletiam. Era
possível ver um caloroso sorriso e a Cassy franzindo o rosto
arregalando os olhos, e colocando sua língua pra fora.
— Que careta mais feia! — Brincou meu pai.
Eu deixei escapar uma risada. Estava fascinado com o lago, era tão
vivo, tão diferente de tudo que já tinha visto. Eu sorri.

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— Finalmente garoto. — Notou aliviado. — Desculpe por
demorar tanto para trazê-los aqui, eu não tive tempo.
Ele abaixou a mão e fez um cafuné em meu cabelo, um amável
cafuné.
— Tá tudo bem pai — Admiti com um aperto no peito. — Só
quero que passe mais tempo com Cassy e a mamãe.
Ele não me respondeu, mas o arrependimento nublou suas
feições. Ainda com Cassy em seus braços, abaixou-se e pôs sua
mão direita sobre meu ombro, nos deu um abraço caloroso de
urso. Não consegui ver, mas pude escutar baixos soluços. Apenas
fiquei paralisado, não sabia o que fazer.
— Amanhã prometo trazer vocês aqui novamente. — Prometeu
meu pai.
Começou a entardecer quando nos despedimos daquele belo lago,
na volta pra casa conversamos sobre como aquele lugar lindo
estava lá a tanto tempo, e ninguém parecia notar. Ou estavam
ocupados demais para perceber.
Seguimos ladeira a baixo quando as ruas principais foram
escurecendo, janelas se fecharam, e o silêncio ensurdecedor tomou
conta daquelas estradas feitas de pequenos tijolinhos. Apertamos
o passo e finalmente chegamos em casa. A porta da frente estava
aberta mas não tinha ninguém na fachada, movemo-nos até a
entrada, a casa estava escura e um nevoeiro tomava conta do
cômodo, invadindo minhas narinas e impedindo que eu
enxergasse melhor.
— Celine? — Chamou meu pai tossindo. — Onde você está?
As mãos do meu pai suavam, e sua testa estava franzida.

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— Papai eu estou com medo. — Sussurrou Cassy ao meu lado.
Ela olhava para todos lados, e sua respiração parecia ofegante.
— Pai? O que está acontecendo? — Perguntei receoso.
Ele não respondeu. Nossa casa parecia pior do que quando eu
deixei a porta destrancada hoje mais cedo. A mesa estava destruída
e tinha diversos entulhos, escombros e cacos de vidro espalhados
pela cozinha.
— Arthur atrás… — Ao longe uma voz doce e fraca chamava o
nome do homem que me acompanhava.
— Celine?! — Ele gritou acelerando para a direção da voz.
Encontramos alguns escombros de onde parecia ter vindo aqueles
murmúrios, meu pai começou a jogar todos para o lado
ferozmente, machucando-se ao atirar para longe cacos de vidro e
lascas de madeira. Quando parou, uma mulher se encontrava no
meio dos escombros, derramando um líquido carmesim do seu
peito. O gentil olhar esmeralda que tinha, foi substituído por um
rosto machucado e amedrontado. Suas mãos estavam geladas e sua
respiração pesada. Ela tentava sussurrar algo, mas parecia cada vez
mais difícil de dizer alguma coisa. Comecei a suar frio, com um
aperto enorme no peito coçava a minha pele, marcando meus
braços com o arranhar das minhas unhas. Cassy parecia assustada
demais para falar, tudo que fez foi apertar ainda mais minha
perna.
— Atrás… — Murmurou minha mãe.
— Celine?! — Exclamou meu pai angustiado. — O que
aconteceu Celine? Me diz! Precisamos te tirar daqui rápido. Eu
conheço alguém que pode ajudar e ele…

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— Atrás Arthur… — A última coisa que ela sussurrou antes de
desmaiar.
— Atrás? Do que está falan-
Um vulto passou diante dos meus olhos, e quando eu pisquei não
tinha ninguém à minha frente. Inclinei minha cabeça para direita
e pude ver uma sombra alta, usava capuz e um manto negro a
única coisa visível era seu braço direito, que segurava meu pai pelo
pescoço. Veias marcavam no seu rosto, sua pele estava ficando
pálida e sua narina alargada. Começou a se debater, tentou forçar
seu braço contra a figura colocando sua mão sobre seu rosto, mas
nada adiantava.
— P-papai?! — Cassy começou a derramar lágrimas de seus olhos,
estava desesperada, suas pernas fraquejaram e soltaram meu
joelho.
— R-rove… esconda sua irmã. — Implorou para mim.
— Eu… E-eu — Eu não consigo. Era o que eu queria dizer. Minha
boca estava seca e minha língua se amargou. Eu não sabia o que
fazer e provavelmente daqui a algum tempo estaria na mesma
situação de Cassy.
— Corvinore — Trovejou a sombra que estava em minha frente.
— Vou dar uma chance de salvar seus pretendentes e sua
inescrupulosa esposa. Pela última vez, onde está o metal?
— E-eu não sei… — As palavras lutavam para sair de sua boca, e
seu rosto estava vermelho vivo.
— Eu vivi em paz até você aparecer e roubar o que demoramos
eras para suprimir. — Queixou. — Você tem ideia do que fez? Da
guerra que comprou?

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— Saiam… — Soltou meu pai parecendo desistir de contrariar
aquele homem. — Saiam agora!
Eu não aguentava ver aquela expressão em seu rosto, estava com as
sobrancelhas levantadas, e seu rosto se distorcia quando o aperto
ficava mais forte.
— Cassy temos de ir. — Soltei com as mãos tremendo.
Quando me virei para ela a vi chorando.
— Vamos Cassy por favor…
Desisti de tentar fazer ela se mexer. Peguei uma de suas mãos para
disparar em direção a rua fora, mas não consegui. Minhas pernas
estavam estáticas, eu não conseguia andar. Vamos se movam
droga! Foi o que pensei. Mas não consegui fazer nada.
— Muito bem… vou começar pela garota — Falou amargamente
ao ouvir os choros de Cassy.
A figura se revelou ao caminhar em nossa direção. Era um homem
de pele negra e longos cabelos castanhos retos. Era bonito porém
o seu rosto era ímpio e mostrava um sorriso diabólico com as suas
presas destacadas.
— Deixe eles em paz… — Tossiu meu pai. — Eu o levo até o
metal, não toque neles!
Ele estava implorando, sua voz trêmula e seu rosto franzido
suando frio. Eu nunca o vi daquele jeito.
— Você indevidamente tomou algo que me pertence, irei fazer o
mesmo com você.
Ele se aproximou de Cassy parecendo ignorar a minha presença.
Segurou o seu rosto com tanta força que pensei que iria quebrar

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como uma maçã. Eu tentei me mexer, mas meu corpo não
respondia.
Minha irmã começou a berrar, ela trovejava por ajuda. Minha mãe
não levantava e meu pai estava no chão, se arrastando para perto
de nós.
— Vamos deixar uma marca no seu lindo rosto criança. —
Provocou a criatura.
Cruelmente ele infligiu um ferimento profundo que deixaria uma
cicatriz no rosto de minha irmãzinha.
— PAPAI! MAMÃE! — berrou, se debateu, e o choro se tornou
estridente. O choque foi tamanho, que quando soltou Cassy no
chão, ela desmaiou após ter convulsões.
— Seu… MALDITO! — Meu pai vociferou contra aquela
sombra.
Em um pico de adrenalina se levantou e começou a desferir
diversos socos no rosto daquela figura cruel. O homem não se
mexia, nem tentava se defender. Esperou calmamente e revidou
com um golpe na caixa torácica do seu oponente. De joelhos meu
pai estava tossindo, incapaz, amedrontado.
— Eu te dei uma chance Arthur. — Suspirou contra meu pai. —
Mas você não me deixou opções. Agora você vai…
— Nos deixe em paz! — Gritei e corri em direção àquele monstro.
Com uma lasca de madeira na mão, pressionei contra seu joelho
até perfurar, e ver seu sangue pingar em minhas mãos. Ele não
reagiu.

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— Se fosse no coração, talvez eu estivesse esticado no chão agora.
— Zombou com o olhar frívolo. — Não se sinta de fora da
reunião.
Segurou meus cabelos com suas unhas e no mesmo instante senti
algo quente escorrendo de lá, a dor era excruciante.
— Me solta seu rato! — Proferi contra o homem.
— Olha, parece até mais ousado que esse covardinho aqui. —
Brincou olhando para meu pai amargamente.
Eu estava pagando pelos pecados de meu pai. Como uma boneca
ele me jogou na parede, eu bati e caí com a cara no chão. Senti o
sangue escorrendo sobre meu rosto, ofuscando a minha visão.
Enxerguei pouco antes de desmaiar. “Eu amaldiçoou você
Arthur…” foram as últimas coisas que ouvi antes de apagar.
Em algum lugar, nas profundezas da minha mente. Eu me via
perdido, existindo em uma escuridão eterna e ambígua. Às vezes
escutava uma meiga voz me chamando. Contando algo para mim,
mas tudo era distorcido. E outra voz se sobrepôs a essa, era como
naquela noite, uma voz tempestuosa.
— Acorde e me sirva, você é meu servo de sangue. — Protestou e
perpetuou contra mim diversas vezes.
— Me deixe em paz! — Respondi mas não obtive resposta.
“Levante e me sirva, você é meu servo de sangue.”
Era tudo que eu conseguia ouvir, como se tivessem diversas vozes
em várias direções com o mesmo tom repetindo essa frase a todo
momento.
— Levante e me sirva você é meu-

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A voz foi interrompida com um estridente chamado. Ouvi
diversas pessoas conversando, tudo parecia mais alto e cada
palavra era como uma faca em meu ouvido. Quando abri os
olhos, eu me encontrei deitado, em algum lugar bem iluminado.
As paredes eram de tijolos vermelhos, e tinham lamparinas
penduradas nos cantos, a luz que emanava invadia e fazia meus
olhos lacrimejarem. Tentei me levantar, mas fraquejei, bati o
joelho no chão e consegui com dificuldade me segurar com as
duas mãos, para não dar de cara no chão. Uma mulher com uma
roupa branca me percebeu e se espantou ao me olhar. Pegou uma
prancheta com sua mão e virou algumas folhas.
— R-rove…
— Rovert! — Interrompeu em tom alto uma voz ao longe.
— R-Rovert Corvinore despertou! — Terminou trêmula.
Eu acordava de um melancólico pesadelo.

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A PRIMEIRA PROMESSA
Quando acordei escutei passos se aproximando, uma mulher de
cabelo vermelho vinho, veio até mim, era a mesma voz doce que
percorria minha mente em meus sonhos. Minha visão estava
turva, não pude enxergar quem era, mas enquanto sua mão
quente deslizava sobre meu rosto, eu podia escutar seus baixos
soluços, quase como sussurros. Me recordei do calor e ternura, o
toque de minha mãe. Era ela ali comigo? Suas mãos tremiam e
lágrimas se acumulavam em seus olhos, deixando escapar algumas
que deslizavam sobre suas bochechas. Meu corpo fraquejava em
qualquer tentativa de movimento, queria poder abraçá-la e
acalmar suas emoções. Mas não consegui quando tentava, mais
fundo parecia ser a cama que me colocaram.
— Rove… Por que demorou tanto? — Soluçava a mulher diante
de mim.
— Mamãe… onde estamos? Por que você está chorando?.. —
Murmurei com dificuldade.
— Mamãe Rove? Do que está falando?
Comecei a me sentir enjoado e minha visão estava escurecendo.
— Rove!? Não se atreva a apagar de novo! — Ela implorava
enquanto me balançava para me manter desperto.
— Alguém por favor me ajuda aqui!
Foi a última coisa que ouvi antes de desacordar novamente.

25
Dessa vez em meu sonho, ao contrário daquele chamado
estridente e monstruoso. Eu conseguia ouvir uma voz doce, mas
ela fraquejou.
— Rov?... O que está f-fazendo…
Meus olhos se encheram d’água que por algum motivo, não
conseguiam escapar. Meus batimentos acelerava, tudo ao meu
redor parecia esquentar, e eu estava com uma sede insaciável.
Senti o cheiro de enxofre e alguma coisa me ordenava a continuar,
um líquido quente começou a percorrer pelas minhas presas,
saciando meus mais íntimos desejos. Minha visão foi escurecendo,
e as únicas coisas que eu consegui escutar, e o que me fez despertar
foi aquele choro, de medo, de horror.
Eu abri meus olhos e pude enxergar perfeitamente. Uma mulher
de pé em minha frente. Seu cabelo escuro como a noite, a pele
pálida, orelhas levemente pontudas e seus olhos eram vermelho
rubi. Senti algo ou alguma coisa segurando meu queixo, quando
reparei lá estava sua mão, abrindo minha boca. Um líquido
carmesim escorria do alto, escorria de sua mão. O que essa maluca
tá fazendo?
Imediatamente dei um tapa em seu braço com minha mão direita,
enquanto recuava na cama. Arregalei os olhos e limpei minha
boca. Aquilo era sangue, sangue de verdade. Havia um ferimento
estampado na palma daquela enfermeira, um corte.
— Você finalmente acordou mestr-
— O que estava fazendo sua doente?! — Interrompi enquanto
me levantava da cama.

26
— Apenas o despertei mestre, está dormindo a muito tempo.
Demorei para te encontrar.
— Mestre? Dormindo? Do que está falando? — Continuei a
perguntar
— Será que teve algum derrame? — Perguntou a mulher com a
mão no queixo
— Pode me responder? — Gritei impaciente.
— Você não sabe?
— Não sei do que? — Se perguntei, é porque não sei idiota.
Pensei
— Ah… fazem três anos que você começou seu descanso. Fiquei
em dúvida quando te vi sendo trazido para cá, mas é você. Tem de
ser, possui a mesma aura.
Quanto mais aquela mulher falava, ainda mais dúvidas surgiam na
minha cabeça.
Quem ela acha que eu sou? Eu estou em coma há 3 anos? Onde
está minha família? Minha irmãzinha?..
— Você está mentindo. — Declarei receoso.
— Se bem que eu esperava que você fosse um tiquinho maior —
Ela se inclinou e me mediu com as duas mãos.
— Você está mentindo pra mim! — Insisti esperando uma
resposta.
— E por que? Eu sei quem você é.
— Eu vou chamar os guardas. — Ameacei e comecei a correr em
direção a alguma saída.
Reparei na sala dessa vez, e não me lembro de já ter visto algo
parecido. Paredes de tijolos escuros, duas lamparinas em cada

27
quina e o lugar cheirava a doença. Tinha outras diversas macas,
com cortinas e outras pessoas deitadas. Todas doentes,
machucadas, poucas com visitas. Eu preciso sair desse lugar.
Disparei em direção a entrada que vi e escorreguei ao alcançá-la.
Virei rapidamente e me deparei com um corredor, e no fim dele
alguns degraus.
— Tem de ser ali. — Murmurei e continuei correndo.
Ouvia passos atrás de mim, rápidos, pesados. Ela me perseguia, e o
que quer que fosse “ela”, quando descobrisse que não sou seu
mestre, viraria banquete de nobre. Me aproximei das escadas, mas
senti algo me envolvendo, mãos geladas com unhas afiadas
seguravam minha cintura.
— Você vem comigo — Declarou a voz atrás de mim.
— Vou pra onde?...
Fui interrompido por uma sensação horrorosa, na qual mal
consigo descrever. Após ser segurado, senti o chão desaparecer,
meu corpo começou a cair, e o solo não ofereceu resistência,
permitindo-me atravessar. Me vi na mais densa escuridão. Não
pude enxergar nada, mas aquelas mesmas mãos ainda estavam me
segurando, dessa vez mais forte.
— A gente vai por aqui. — Instruiu.
— Ei, ei onde a gente tá…
Fui interrompido novamente. De repente disparamos contra
aquela imensidão escura e não sei dizer em qual direção. Minhas
bochechas se encheram de ar e em algum momento simplesmente
fechei os meus olhos, torcendo para que aquilo acabasse.

28
— Que merda tá acontecendo! — Gritei soltando um pouco de
baba. —AH!!
O vento começou a se acalmar, e pude ouvir pessoas conversando
embaixo de mim.
— Tem como você parar de gritar como meninha? — Reclamou
quem estava na minha frente.
Abri meus olhos e era a mesma mulher de antes. Agora que
reparei ela estava usando a mesma roupa da moça que chamou
meu nome mais cedo, um vestido branco e um chapéu da mesma
cor.
— Acho que me confundi — Sussurrou tentando enxergar algo
em mim — Mas são tão parecidas.
— Se confundiu? Você me sequestrou, e diz que se confundiu? —
Reclamei.
— Tenho que ir embora.
— Ei, não antes de me responder o que estava fazendo!
Ela olhou pra mim como quem olha para um bife.
— S-se bem que você já deve estar cansada de tanto trabalhar né.
— Comecei gaguejando. — Ter que cuidar de tantas pessoas,
inclusive perdão a falta de educação.
Ela se atirou contra mim, e minha única reação foi fechar os meus
olhos.
— Eu tomaria cuidado com a sua irmã. — Comentou a mulher.
— Você é frágil, não resistirá, vai machucá-la. Nós nos veremos
de novo.
— Eu espero que não. — Brinquei em resposta. Consegui ouvir
um suspiro.

29
Quando abri os olhos novamente, eu estava sozinho.
Me dei conta que estava a alguns metros do chão, no topo de
algum edifício de Palidar. Daqui de cima consigo ver tudo. Os
prédios curvos com seus telhados pontudos, casarões de nobres, e
até o mercado. O mercado? É isso, eu tenho que reencontrar
minha mãe, eu estava falando com ela quando despertei pela
primeira vez. Mas, como vou descer?...
Fui até a sacada e comecei a gritar para as pessoas lá embaixo e
depois de alguns minutos, uma porta se abriu atrás de mim. Um
homem robusto, com cabelo ruivo que faziam ondas me olhou
de cima a baixo. Forcei um sorriso ao vê-lo, mas ele não parecia
tão alegre quanto.
Ele me levou, segurando pela minha blusa enquanto falava
sermões, caminhou até a porta do estabelecimento, uma loja de
penhores. Jogou-me a rua e gritou, dizendo que eu estava banido
por período indefinido. E eu lá tenho cara de quem compra coisa
velha? Agora eu me vi sozinho e perdido, depois de dormir por 3
anos.
O caminho de volta até aquele campo médico foi complicado. Me
perdi diversas vezes, e tive que parar e pedir informações para as
mais variadas pessoas. A maioria me tratou com desdém, afinal eu
não estava lá bem vestido. Usava camisa branca longa e nada por
baixo, parecia um louco. Mas uma dessas pessoas foi até que
gentil. Um homem, usava um chapéu, cabelo negro curto, orelhas
levemente pontudas, tinha a pele pálida e uma cicatriz de garras
no olho esquerdo que acompanhava um olhar esbranquiçado e
sem cor, seu outro olho era vermelho.

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— Se perdeu, garoto? — Perguntou-me confuso.
— Eu quero achar o campo médico. — Respondi
— Com essas vestimentas, só poderia ter vindo de lá. — Brincou.
— Bem você vai reto aqui toda vida, e depois vira a esquerda e
segue sem rumo.
Não respondi e fui correndo por onde ele me instruiu.
Alguns minutos depois, lá estava o campo médico. Adentrei
procurando minha mãe, e um pouco distante a vi, aqueles cabelos
vermelhos tão característicos. Parecia estar chorando, ela sentia
minha falta.
— Mamãe! — Gritei ansiosamente. — Desculpa por está fora. Fui
em direção a ela.
— Rove?! Onde você estava seu imbecil? — Disse a figura
derramando lágrimas de seus olhos.
Quando se virou para mim, eu vi uma garota um pouco mais alta
do que eu, seus cabelos eram idênticos aos de minha mãe, olhos
esmeraldas brilhantes, porém havia uma grande cicatriz no seu
olho direito.
As enfermeiras me deram alta depois de alguns minutos da minha
chegada, já Cassy um cascudo por eu ter “fugido” após acordar.
Deixamos o campo médico e fomos até a nossa casa.
No caminho, seguindo uma estrada de pequenas pedras com neve
nas suas aberturas, ambos tentavam puxar alguma conversa,
porém era mais complicado do que parecia. Eu fiquei longe por
muito tempo, agora Cassy era da minha idade, ou quase isso.
“Você está bem? Como foi depois daquela noite? Tem sido muito
difícil?” Perguntas que eram recorrentes na minha mente, mas eu

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não consegui fazer-las, a garota que agora caminha ao meu lado,
não é mais minha pequena irmãzinha.
— Como foi? — Perguntou Cassy rompendo o silêncio entre nós.
— O que?
— Você sabe, o coma. Você conseguia ver alguma coisa? Tinha
sonhos?
— Ah, isso. Bom, eu tive alguns pesadelos, mas eu sempre era
salvo por uma garotinha de armadura reluzente, que me contava
tudo. — Disse-a tentando sorrir ao olhar para ela. Em resposta
Cassy corou
— Eu só fiz isso, porque ouvi falar que se nós conversamos com
alguém em coma, a pessoa escuta tudo.
— Que bom que funcionou, não teria conseguido sem tua ajuda,
obrigado. — Estendi minha mão até sua cabeça e baguncei seus
cabelos.
— Senti falta disso. — Murmurou após abaixar a cabeça.
Eu também senti, mas não queria admitir. Você era minha única
família agora, única e preciosa.
— Você está bem? Não foi difícil ficar só?
— Alguns amigos do papai vieram falar comigo depois de tudo.
Me ajudaram com o que eu precisei, não se preocupa.
— Não, não digo em relação à casa, comida, digo em relação a
você. Teve que gastar todo esse tempo, se preocupando comigo
— Ainda me preocupo, sempre vou. Não é porque voltou a
caminhar e falar idiotices, que isso vai deixar de ocorrer.
— É, foi mal
— Eu fiquei só, principalmente quando estava em casa.

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— Cassy…
— Doeu bastante, sabe? Não ouvir as broncas da mamãe, ou não
ver o papai chegar no fim da tarde. Principalmente não saber se
você ia ou não acordar. — Pude ver lágrimas caindo de seu rosto e
se perdendo sobre a neve gelada. Ela estava chorando de novo,
guardando tanta tristeza, sentindo tamanha ansiedade. Pus minha
mão sobre seu queixo e o levantei, olhandoi para os seus olhos.
— Eu não vou te deixar, não de novo. Eu prometo, certo? Tudo
vai ficar bem. — Acalmei Cassy e coloquei minha testa contra sua,
depois nos abraçamos por alguns segundos e seguimos caminho.
Pelo jeito algum acidente resumiu o nosso lar a escombros, e não
podíamos retornar para lá. Nosso nova casa, por incrível que
pareça, ficava perto de onde papai nos levou da última vez, o
pequeno bosque. Não lembro de existir qualquer comunidade
por aqui, mas pelo que Cassy disse os moradores da cidade baixa
se comoveram com o desaparecimento dos meus pais e junto com
a ajuda da minha dela construíram uma pequena cabana de
madeira, do tipo daquelas que você passa as férias mas nunca
moraria por muito tempo. Aquilo agora era meu novo lar, um
lugar apertado com apenas um quarto e uma cozinha que ficava
junto da “sala de estar” se é que dá de colocar assim.
— Rove, você precisa ver isso. — Preocupou minha irmã, me
dando um pedaço de espelho que estava quebrado, como se
tivesse pequenas estradinhas sendo feitas por ele. Mas, quem era
aquele no reflexo? Meu rosto fragmentado refletia, o cabelo que
outra vez foi vermelho agora foi tomado por fios brancos, que

33
pareciam banhados por uma chuva de cinzas, os olhos ainda
verdes, porém menos vivos. Isso sou eu?...
— O que aconteceu comigo? — Perguntei preocupado. —
Esqueceram de lavar meu cabelo nesses três anos?
— Nos primeiros dias, quando te acharam, você teve convulsões,
febre alta. As enfermeiras lutavam para te manter vivo. Depois de
alguns dias que te deixaram só, descansando, quando voltaram tu
estava…
— Assim? — Fiquei receoso.
— Sim, disseram que talvez tenha sido a falta de vitaminas, ou até
mesmo o estresse nos primeiros dias.
De alguma maneira eu me sentia estranho, como se tivesse
perdido parte de mim. Alguma coisa dentro de mim se perdeu,
para sempre.
— Você está bem, Rove? — Preocupada ao perguntar. Ela tem o
mesmo olhar gentil da mamãe.
— Acho que sim. — Respondi deixando o espelho de lado —
Tem algo pra comer?
— Claro! Eu fiz a sua comida favorita — Animou.
Eu fiquei animado, minha boca estava com um gosto muito
estranho, estava na hora de tirar isso. Me sentei no banco de
madeira, não tínhamos uma mesa de centro ainda, mas Cassy
comentou que estava providenciando. Ela preparou um Porridge,
como o da mamãe, o mesmo cheiro reconfortante, e a mesma
aparência acolhedora. Dei a primeira colherada com vontade, não
podia esperar para relembrar o gosto…

34
— Bleh! — Senti um gosto exatamente salgado, que me fez recuar
para trás e engasgar com uma parte do mingau. — O que diabos
você colocou aqui?
— Aveia e cevada… — Murmurou, parecia chateada.
Ai droga, o que fiz, que dó.
— Porquê está incrível! — Tentei disfarçar — Onde aprendeu a
cozinhar assim?
Ela não conseguiu conter o sorriso, mas senti que alimentei seu
ego.
— Você sabe, um pouco de estudo aqui, outro ali — Estufou o
peito pra falar. Nada muito complicado, claro. —
Definitivamente orgulhosa de si mesma.
Dei algumas risadas e na primeira oportunidade que ela se
distraiu, corri para fora, sujei minha boca com um pouco do
mingau, e joguei o restante no lixo. Voltei e me sentei novamente
no banco.
— O que? Já terminou? Alguém quer repetir! — Falou
entusiasmada.
— Não! — Berrei.
Ela levantou as sobrancelhas e me olhou indiferente.
— Quer dizer… não. — Continuei — Já estou de barriga cheia, e
vou ficar com azia.
— Tudo bem — Assentiu —
Ficamos em silêncio por um tempo, até que ela resolveu puxar
assunto.
— Tinha uma pessoa, que estava indo te visitar.
— Mentirosa

35
— É sério, toda semana aparecia, eu nunca a vi.
— E como era ela? - Perguntei curioso.
— Cabelo castanho, olhos grandes azuis e a orelha destacada,
comprida e pontuda.
— É ela!
— Ela quem? — Perguntou a mim.
— Obrigado! - Repeti a abraçando Cassy fortemente.
Ela pareceu confusa. Me despedi dela e fui vestir alguma roupa.
Percebi que as blusas e calças tinham ficado pequenas para meu
corpo, mas eu estava mais magro do que o normal, coube, apenas
ficou um tanto apertado.
Sai do quarto já pronto, passei pela sala enquanto Cassy me
perguntava para que lugar eu estava indo. É verdade, para onde eu
estava indo?
Só tinha uma coisa que eu realmente lembrava, algo que ela
gostava de fazer. E era ler. Não sei se manteve o costume, mas me
recordo sutilmente, dela comentando que queria trabalhar em
uma biblioteca, como sua mãe. Com apenas essa pista, parti rua a
fora, caminhando pelos becos escuros e as calçadas de tijolos, da
gélida Palidar.
Horas se passaram, e nada! Jajá vai começar a escurecer e não
consegui encontrar onde ela trabalha. Eu estou cansado!
Procurei por algumas bibliotecas na cidade baixa e nada, nenhum
sinal de minha amiga de infância. Eu sabia que ela estava de volta,
e também me visitou. Não conheço nenhuma outra garota com
essas descrições, que se importaria o mínimo comigo. Nunca fiz
sucesso com elas.

36
Bem, a última biblioteca da cidade baixa se chamava “Cidadela
Literária” tinha de ser aqui, eu não tinha mais outras opções e
seria impossível subir a parte alta, principalmente com os trapos
que estou usando. Entrei e vi um pequeno velho, cabelos
grisalhos, usava um óculos redondo que se prendia a suas orelhas.
O gnomo estava arrumando algumas coisas embaixo do balcão
que se encontrava diante de mim. A recepção era amadeirada,
detalhes de bronze nas quinas do cômodo, e algumas prateleiras
espalhadas com produtos, canetas, livros, coisas do tipo. Não
pareceu me perceber, cocei a garganta e ele se levantou, pareceu
procurar algo, mas não encontrou.
— Ei? — Chamei — Tem um cliente aqui. O gnomo subiu em
cima do balcão para ver e respondeu.
— Um pequeno cliente. — Brincou — Se bem que também sou
modesto em relação a minha altura.
— Eu vim ver uma pessoa.
— Aqui só temos livros, não pessoas.
— Qual é, deve ter alguém que mantém o lugar limpo. Uma meia
elfa talvez?
— É, talvez
— Talvez?
— Talvez.
— Hum.
— Hum.
Estávamos nos encarando, e eu esperei pela proposta.
— Pelo preço certo, talvez tenha uma meia elfa trabalhando aqui.
— Quanto você quer?

37
— O preço normal é trinta moedas de prata, cem moedas de
bronze, ou três de ouro. O que seu pequeno bolso puder pagar.
— Que caro! Isso aqui nem é da parte alta.
— Imagine quando chegar lá tampinha, é muito pior do que aqui.
Sem dinheiro, sem visitas, nem livros, muito menos meias elfas.
Eu era mais alto que aquele toco de madeira. Dei meia volta, e
temos outro problema.
Fui até em casa, e pedi conselhos a Cassy, afinal ela estava a mais
tempo aqui do que eu.
— Como diabos vou arrumar tanto dinheiro? — Exclamei. —
Aquele gnomo, estava tirando uma com a minha cara.
— Calma Rove, você pode tentar vender algumas roupas que não
lhe cabem mais. — E você sabe que estudar não é barato..
— É, eu sei.
— Olha, tem algumas coisas do papai que eu consegui recuperar,
a gente pode vender
— Sério?
Nós fomos até a parte de trás da casa, lá havia algumas tralhas, um
pequeno carrinho de madeira e um baú fechado. Juntos com as
duas mãos, forçamos a abertura, era velho, tinha poeira, quando
abrimos saiu algumas aranhas de dentro. Lá dentro Cassy me
mostrou: duas espadas curtas, um pouco de metal que facilmente
conseguiríamos vender para anões, cordas, malha e outros objetos
inúteis.
— Isso aqui deve bastar não é? — Ela perguntou.
— É vai servir, eu não vou pra guerra
— O que diabos ele fazia? Você chegou a descobrir?

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— Não, nunca, ele evitava falar sobre o assunto. — Respondi
cabisbaixo.
— Bem, vamos juntar isso e fazer uma barraquinha para vender lá
no mercado, o que acha? — Ela suspirou
Cassy estava cansada, provavelmente não descansou direito desde
que começou a cuidar de mim. Mesmo assim eu ainda a dei
trabalho, mas sinceramente, eu não sabia o que fazer. Precisava
das moedas.
— Nós não temos que ter uma licença ou algo assim? —
Perguntei a ela.
— Bem, agora que falou me lembro de algum vendedor ter
mencionado isso. — Sentou-se de apoio no baú e começou a
pensar.
Uma ideia invadiu minha mente, era arriscada, mas daria certo.
— Cassy, podemos vender para bandidos, não podemos?
— Você ficou em coma por alguns anos, não virou retardado.
— Pense um pouco, com certeza comprariam, estão ótimas as
espadas.
— Meu punho tá começando a coçar.
— Tá, deixa pra lá.
— Já está ficando tarde, a falta de sono deve ter afetado seu
cérebro. Amanhã veremos como vamos resolver isso.
Assenti com ela, fechamos o baú e entramos em casa. Tiramos os
casacos e os deixamos largados, nossa casa em si é uma grande
bagunça, Tudo era bem mais fácil antes. Caminhamos até o
quarto, nossas camas estavam em paralelo e cada um tinha uma
pequena mesinha. A de Cassy tinha aquele pequeno totem, a

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minha, bem… não tinha nada. Deitamos, ela me deu boa noite e
eu retribui. Apesar de estar com sono, eu tinha planos melhores
para aquela noite.
Algumas horas se passaram, era madrugada, quando acordei algo
me assustou. Meus olhos que antes eram cegados pela escuridão,
agora podiam enxergar pequenos contornos, a penumbra se
revelou para mim. Transformando sombras profundas em formas
definidas. Eu podia enxergar como se fosse um fim de tarde. Sabia
onde se encontrava cada coisa no meu quarto, até mesmo minha
irmã que dormia de boca aberta e deixava escorregar de sua boca,
baba que caia em seu fino e babado lençol. Em passos lentos sai do
quarto, evitando qualquer móvel barulhento. Coloquei meu
casaco e fui novamente até a parte de trás. Pus minhas mãos sobre
o baú, ele lutou e rangeu, mas cedeu e finalmente se abriu. Peguei
o pouco metal que tinha, as duas espadas e coloquei no carrinho.
Tive dificuldade para levar aquilo pela parte baixa, tinha poucos
movimentos nas ruas, mas era nos becos que a magia acontecia.
Encontrei alguns anões, vendi o metal por 80 moedas de bronze,
carreguei o carrinho, agora menos pesado, por mais tempo até que
encontrei um grupo de homens. Estavam vestindo roupas escuras,
de couro batido, conversavam em tom baixo. Me aproximei
chamando a atenção com um aceno, ao me ver pareciam ariscos,
mas apontei para as lâminas que levava em meu carrinho. Me
aproximei e tentei vender.
— O que temos aqui, um pequeno empreendedor. — Comentou
um dos homens. Era alto e tinha algumas cicatrizes pelo braço.
Sua pele era avermelhada e o capuz que estava sobre seu rosto não

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me permitiu enxergar direito, porém seus olhos me perfuravam
com um amargo brilho dourado.
— Empreendedor, apenas. — Gaguejei. — V-vão querer as
lâminas?
— Bem — falou se aproximando de mim, e segurando uma delas
na mão. — São de bronze, o fio parece ótimo, onde você arranjou
isso homenzinho?
Não consegui falar muita coisa, eu apenas queria o dinheiro e
principalmente ir embora.
— Faço tudo por vinte moedas de prata e vinte de bronze.
— Coitadinho, ele tá tremendo, olha só. — Não gosto do jeito
que ela me olhava, não gosto dessa gente. — Vamos levar as
espadas.
Por fim eles me deram dois sacos de dinheiro, com pesos
diferentes. Coloquei no carrinho junto com o outro que tinha, e
retornei rapidamente a minha casa. Agora tinha o que precisava
para ver ela.
Cassy sempre foi muito inocente, disse a ela que levantei logo
cedo, arrumei as coisas e vendi as tralhas para um mercador
viajante. Apesar que minhas olheiras diziam o contrário. Bem, ela
acreditou, me arrumei prontamente e me despedi.
Já na frente da biblioteca, entrei na recepção e vi aquele mesmo
gnomo. Peguei os sacos de dinheiro e os pus sobre o balcão que
rangeu com o encontro.
Ele olhou para mim confuso e pareceu surpreso ao me ver.
— Quem diria, você arrumou as moedas, sinceramente achei que
nunca iria te ver de novo. — Brincou.

41
— Arranjei sim gnomo…
— Sr Ezequiel.
— O que?
— Sr Ezequiel para você. — Tem uma meia elfa que trabalha aqui
junto da mãe, ela está no primeiro andar, na sessão guia de fauna.
— Obrigado. — Murmurei e segui em frente.
Passei por muitas sessões inúteis, é uma grande biblioteca, as
paredes altas tinham livros que iam até o teto, o primeiro andar
era mais ao fundo, separado da parte principal que continha
algumas mesas e cadeiras. Algumas pessoas liam, me distrai com a
imensidão do lugar, bati em uma ou duas prateleiras que
derrubaram um ou dois livros. Mas finalmente achei as escadas.
Subi os degraus até o primeiro andar, e encontrei um
bibliotecário, um firbolg, orelhas realmente grandes, pelos faciais
exuberantes e bem feitos. Alto, provavelmente nem precisava dos
banquinhos para alcançar os livros mais distantes.
— Olá? — Continuei chamando mas ele não escutava, até que
gritei — Olá!
Ele se virou pra mim lentamente, olhou para frente e quando não
enxergou nada começou a voltar, cutuquei sua canela e ele olhou
para mim.
— Posso…. Ajudar? — Sua voz era pesada, ele falava devagar e
parecia extremamente calmo.
— Eu tô procurando uma garota, meia elfa, cabelo castanho, mais
ou menos da minha altura, você a viu em algum lugar?

42
— Ali….. — Apontou para algumas prateleiras enfileiradas e eu
fui até lá, procurei na primeira fileira e não achei nada, na segunda
e adivinha? Nada. Na terceira finalmente, ela estava lá.
— Você!
— Shh! — Pude ouvir ao longe quando quebrei a tranquilidade
do local.
Virei de costas para responder.
— Foi mal… — Murmurei.
Virei-me para onde estava indo, e a garota já estava na minha
frente. Me assustei, soltei um grito.
— Shh!!! — Repetiu. Que saco viu.
— Rovert? Desde quando você acordou? Como chegou aqui?
— Passos fantasmas? Quer me botar pra dormir de novo?
— Me perdoe. — Fungou.
— Por que não avisou que tinha voltado?
— Quando voltei você já estava dodói.
Parecia chateada, seus cabelos castanhos estavam amarrados, e
seus lindos olhos azuis brilhavam e quase deixaram escapar
pequenas lágrimas.
— Tudo bem, tudo bem. Eu senti sua falta, você pode sair? Pra
quem sabe, brincar? Comigo e Cassy. Eu te apresento ela
— Eu tô trabalhando, e já estamos grandes pra isso.
— Grandes? Nós temos 9 anos
— 12 anos, Rovert, você passou um bom tempo dormindo.
— Cara…
Ela se aproximou de mim, colocou os braços por cima dos meus
ombros, e me abraçou. Um abraço gentil.

43
Mas infelizmente isso foi interrompido, por aquele maldito
gnomo. Lá de baixo eu ouvi aquela voz aguda e irritante dizer
“encontre aquele delinquente, ele me entregou duas bolsas cheias
de pedras!” Os bibliotecários começaram a me procurar. Parece
que me enganaram.
— Vem por aqui — Sussurrou agarrando minha mão e me
levando, aos fundos, passando escondido pelas prateleiras nós
descemos e saímos em uns dos becos que dão na rua principal.
— O que você fez pra eles?
— Digamos que passei um cheque sem fundo.
Nos encaramos por alguns segundos e começamos a rir. Eu sentia
falta desses momentos que passávamos juntos na infância.
— Obrigado ama… — Puta merda, eu esqueci o nome dela.
— Amaya, Rovert. Eu vou perdoar porque você está a um bom
tempo sem me ver. Mas não vou me esquecer disso não viu?
— Bem, acho que agora você tem que voltar né?
— É, até mais…
— Que fofo o casal. — Uma voz rouca e catarrenta nos
interrompeu.
Um grupo de homens mascarados sinistros se aproximavam de
nós, seus olhares denunciavam sua intenção. Eram 3, os dois que
estavam mais atrás, tinham a altura parecida, carregavam duas
adagas cada um. O da frente era o mais alto, escondia sua pele
inteira com a vestimenta e não parecia estar armado.
Apesar de estarmos em uma manhã, quanto mais passos eles
davam em direção a nós, mais escuro, amargo, e sujo aquele beco
se tornava.

44
O que parecia ser o líder deles se aproximou de nós, e pegou
Amaya em seus braços, pois uma lâmina de bronze em seu
pescoço, e a ameaçou diante de mim.
— Agora, você vai arrumar mais daquelas espadas de bronze
garotinho.
Eu não podia ver sua boca, mas sabia o nojento sorriso que a mim
ele direcionava.
Minha cabeça começou a doer, estava suando frio, tremendo.. Era
a mesma situação de antes, e novamente não vou conseguir
proteger.
— Me solta seu rabugento
Assim que a Amaya disse isso, ela bicou as bolas do bandido,
novamente segurou na minha mão e disparamos para longe dali.
Paramos alguns metros longe, ofegantes e algumas pessoas
passavam por nós, encarando e julgando. Eu ainda estava
paralisado, não sabia o que falar.
— Rovert? — Me chamou balançando os meus ombros. —
Rovert?!
Reuni forças para poder responder, me inclinei para olhar em seu
rosto e algo tirou completamente minha atenção, antes que
pudesse terminar minha frase.
— Desculpe, eu não sabia o que fazer…
Tinha um pequeno corte em seu pescoço, e estava escorrendo um
pouco de sangue.
— Tá tudo bem — Acalmou ela.
Mas pouco a pouco, a sua voz começou a se perder, tomar
distância, cada vez mais longe de mim. Na minha frente, apenas o

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seu sangue escorrendo parecia importar, meu coração acelerou
como nunca antes, eu senti o odor metálico e acre que saia do seu
pescoço. Sutilmente me chamando, provocando. Minhas presas
começaram a arder, doer. Minhas mãos se contorcem, e quando
voltei a mim eu já estava por cima da Amaya, pronta para devorá-
la. O seu rosto horrorizado, uma expressão que ela não fez nem
mesmo para os bandidos naquele beco, me falava. Eu sou um
monstro.
A partir dali o caos já havia sido instaurado, mulheres e crianças
gritando de maneira generalizada, gritando e apontando para
mim, repetindo diversas vezes. “Monstro!”
“Não chegue perto de mim, criatura!” Alguns homens partiram
pra cima de mim, a fim de defender Amaya, eu estava confuso, o
que eu estava fazendo? Minhas pernas fraquejaram, eu iria ser
capturado e executado em algumas horas. Na melhor das
hipóteses iriam me usar como cachorro. Enquanto eu me perdia
em minha melancolia, um vulto preto passou por mim, me
segurando pelos cabelos e me arrastando para longe da multidão.
Pulando pelos muros dos becos, levando a algum lugar, talvez seja
uma Sombra De Halla ou um Caçador De Sangue. Eu queria ver
Cassy mais uma vez.
— Tem como você parar de choramingar? Meu deus, que drama.
— Perguntou o vulto. — Você fez uma bagunça e tanto não foi?
Vocês são todos assim.
Depois de algum tempo, com minhas roupas sujas, rasgadas,
sentindo que alguns dos meus fios foram arrancados nesse

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percurso. O vulto me soltou. Eu não sabia onde estava, tinha um
cheiro estranho.
— Vem, não fica tanto tempo aí fora não. — Ordenou.
— O que é esse lugar? Por que me ajudou?
— Isso? — Falou retirando seu capuz. Era um homem bonito, de
cabelos castanhos lisos jogados pro lado, pele pálida, e uma
cicatriz no olho esquerdo que acompanhava um olhar
esbranquiçado e sem vida. — É o meu bar, A Última Gota. Pode
me chamar de Emanuel.

COMECEI A TRABALHAR
PARA SANGUESSUGAS

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