Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
37
38
39
40
41
42
43
Copyright © 2021 Scarlett Salvage
Editora Chefe: Cecilia Mondadori
Editora Comercial: Simone Freire
Design de Capa: Alice Prince / LA Capas
Revisão: Cris Castro
Diagramação: Cris Spezzaferro
Esta obra segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.
Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais é mera coincidência.
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
É proibido o armazenameno e/ou reprodição de qualquer parte dessa obra
através de quaisquer meios sem o consentimento da autora.
A violação autoral é crime, previsto na lei nº 9.610/98, com aplicação legal pelo
artigo 184 do Código Penal.
www.pitanguseditorial.com.br
São Paulo, Brasil
1
Gustavo
Alice
Gustavo
Alice
Inês:
Passo pra te pegar em 5 minutos.
Alice:
Tô pronta.
Inês:
Gostaria que minha irmã fosse pontual como
você. Pra variar, a bonita está atrasada e vai
pedir um carro por aplicativo. Saí correndo
antes de cruzar com a minha mãe e ser
obrigada a esperar pela Ingrid.
Alice:
Sorte a nossa não ser ela com a carteira de
motorista, ou correríamos o risco de perder a
primeira aula.
Em poucos minutos, já que morava bem perto de mim, minha
amiga parou o carro e buzinou em um tipo de código que fazia com
que eu sempre soubesse quando ela chegava. O carro vermelho
que dirigia era uma herança da mãe. Como a faculdade era mais
distante de casa do que a confecção, Iolanda fez a “bondade” de
deixá-lo para elas.
Como Inês dizia, boa ação e Iolanda nunca ficavam na mesma
frase. E eu, melhor do que ninguém, sabia muito bem disso. O que
achava mesmo era que minha chefe amava chegar de motorista no
trabalho — e usar um carro de aplicativo, além de suprir seus
caprichos, ficaria mais barato do que comprar e manter um veículo
novo. O que fazia bastante sentido, já que aquela bruxa era uma
tremenda mão-de-vaca.
— Animada para o último primeiro dia de aula? — Inês mal
esperou que eu entrasse para começar a falar.
— Claro! Amo aquele lugar e tudo o que tenho aprendido, mas
não vejo a hora de pegar o diploma. — Por um momento, minha
mente viajou ao pensar em todas as mudanças que isso traria à
minha vida.
— Mesmo depois de tanto tempo, ainda não consigo acreditar que
você passa as férias enfiada naquela faculdade — Inês comentou
sem nenhum tom de julgamento.
— Em que outro momento eu conseguiria tempo e aquele valor
para os cursos de aperfeiçoamento?
Além de me dedicar muito como aluna, aproveitei cada
oportunidade que tive, substituindo minhas férias por aulas em
cursos de extensão. Por ser aluna matriculada na faculdade, o preço
com desconto ficava irresistível. É claro que eu precisava
economizar, mas foi isso o que me trouxe ao Rio de Janeiro e me
fez aguentar tudo o que vinha passando nos últimos anos. E quanto
mais eu soubesse, maiores seriam os leques de possibilidade.
O curso de férias, também o último que me faltava dentre as
opções oferecidas pela instituição, foi o módulo avançado de
croquis, o que tinha deixado meus desenhos — já muito elogiados
pelos professores — ainda mais precisos. Modelagem, peças
íntimase acessórios estavam entre os outros cursos que eu já havia
feito.
— Ainda bem que conseguimos manter nossa tradição de irmos
juntas no primeiro dia de aula. Não podíamos quebrá-la logo na
última vez — Inês falou com um sorriso no rosto. — É uma pena
que nossos horários não batam, adoraria te dar uma carona todas
as manhãs.
— Você já faz muito por mim. E não falo só das caronas, mas da
sua companhia também. — Encostei a cabeça em seu ombro, em
um gesto de carinho.
Minha amiga fez um som de “ own”e eu agradeci mentalmente por
tê-la ao meu lado. Tudo que já fez por mim… Sem Inês, além de
minha vida ser mais monótona e solitária, seria também mais
penosa. Eu sempre seria grata a ela.
— Ah, vai. Você adora minhas caronas — brincou.
— É verdade. Conseguir voltar com você quase todos os dias
sempre me garante um tempo a mais e um pouco menos de
cansaço antes de enfrentar as horas de trabalho — confessei.
— Chegamos. Melhor você descer, pode demorar até eu achar
um lugar pra estacionar. Te vejo depois. — Inês jogou um beijo no
ar.
Aceitei o conselho e desci do automóvel, passando pela fila de
carros até chegar ao portão de entrada. Andar por aqueles
corredores tinha se tornado algo automático depois de tanto tempo,
mas a sensação de felicidade e orgulho, assim como o frio na
barriga do primeiro dia de aula de cada período, nunca me
deixavam. Avistei muitos rostos conhecidos e troquei cumprimentos
com meia dúzia de colegas. Como eu era muito organizada, peguei
os horários na plataforma on-line da faculdade e estava com o papel
em mãos, mas achei melhor conferir com o que pregavam no mural.
Só por garantia, afinal, quase sempre aparecia uma mudança de
última hora.
— Sabia! — Acabei pensando em voz alta e algumas pessoas
que passavam por mim me olharam com uma cara esquisita.
A programação dessa vez era a mesma, mas a sala da primeira
aula tinha mudado. Como estava adiantada, achei melhor avisar no
grupo da turma para evitar que os desavisados se atrasassem.
Sabe-se lá qual era a aula na sala antiga, mas seria engraçado
pensar no choque de alguns colegas quando se deparassem com o
conteúdo de algo tipo Cálculo I. E foi pensando nisso que fiz o
trajeto até a sala de aula correta, ainda vazia, e tive a liberdade de
escolher onde gostaria de me sentar.
— Valeu, Alice! Nunca ia pensar em conferir. Você está sempre
salvando a gente — Luísa, uma das minhas colegas de classe e
representante da turma na comissão de formatura, falou em nome
de todos, pois foi a primeira a entrar na sala de aula depois de mim.
Em grupos ou solitários, os alunos foram chegando aos poucos e
preenchendo a sala. O burburinho das conversas crescia e detalhes
das férias eram comentados. Início de período, meus colegas
estavam com uma aparência leve, o que geralmente costumava
mudar ao longo do semestre e, por este ser o último, não era
preciso ter algum dom de adivinhação para imaginar as caras de
desespero nas últimas semanas. E eu me incluía nesse grupo.
— Bom dia, turma! — A professora também parecia estar de bom
humor, pelo tom de voz e expressão alegres. — Acredito que a
maioria de vocês esteja concluindo o curso neste semestre. Espero
que aproveitem ao máximo os próximos meses. — Ela foi mudando
a direção do rosto enquanto falava, como se quisesse olhar para
cada um dos presentes.
Como se fosse a pessoa mais pontual do mundo, Ingrid, que era
tão alta quanto a mãe, entrou na sala desfilando e foi procurar um
lugar no fundão. Infelizmente, ela não encontrou um e acabou
tomando o assento vago próximo a mim, que sempre gostei de ficar
nas primeiras fileiras.
— Para esquentar, que tal um trabalho em dupla? — a professora
sugeriu com empolgação, como se estivesse oferecendo ingressos
para o parque de diversões, mas só ela parecia estar achando
divertido.
Ingrid se virou para mim e usou seu melhor olhar de súplica, já tão
conhecido. De início, talvez por ser muito parecida com a irmã,
acabei me enganando. Mas agora, após quase quatro anos de
convivência, eu sabia que as gêmeas tinham pouco em comum.
O estilo de ambas era bastante distinto. Enquanto Inês usava
óculos de aros finos e redondos, quase nada de maquiagem e
roupas em sua maioria neutras, Ingrid sempre fazia mudanças no
cabelo — originalmente preto, mas que no momento estava com
luzes — e a maquiagem e o estilo de roupas eram mais
extravagantes. Essas diferenças também refletiam na
personalidade.
Logo nos primeiros dias de aula, no início da faculdade, Ingrid fez
um trabalho em grupo comigo e, depois disso, percebendo a minha
boa vontade, grudou como um carrapato e acabou virando a minha
dupla oficial em todas as tarefas solicitadas pelos professores. A
questão era que eu sempre acabava fazendo tudo sozinha, ou a
maior parte, e garantia notas boas para nós duas. Eu precisava
aprender a dizer não.
Ingrid era a irmã da pessoa que me ajudou quando mais precisei
e filha daquela que me pagava um salário. Por isso, no início, fiquei
feliz em ajudar a menina, tamanha a minha gratidão. Mas o tempo
passou e percebi que as ajudas foram ficando cada vez maiores, a
ponto de ser obrigada a salvá-la na maioria dos trabalhos. Pelo
visto, nada havia mudado no último semestre. Apenas respirei fundo
e me preparei para fazer o máximo que conseguisse ainda no tempo
de aula. A última coisa que queria era levar mais tarefas para casa,
já que teria que produzir por duas.
Assim, uma aula após a outra foi passando — sem mais nenhum
trabalho em dupla —, até que o último tempo terminou. A aula de
Projeto Final era colocada, de propósito, no primeiro dia do período
letivo, e a ideia era que cada aluno criasse uma roupa original para
usar na formatura, mesmo que ela fosse hipotética para o caso de
quem não fosse ao evento. A proposta da disciplina era construir o
projeto ao longo do semestre e as técnicas utilizadas seriam
avaliadas. Todos os quesitos valiam ponto, mas o resultado tinha um
peso grande na nota. Para os formandos, isso definia quem
concluiria o curso.
Fiquei empolgada de poder colocar em prática minhas ideias para
o look plus size que usaria. Assim que comecei a estudar aqui,
procurei por informações de como funcionavam as disciplinas do
curso de um modo geral e, desde então, vinha planejando os
detalhes para o meu projeto. Assim que aprendi a costurar, me
acostumei a fazer a maioria das roupas que usava. Eu faria meu
traje de qualquer jeito, não só por ser costureira e estudante de
moda, mas também pela dificuldade em encontrar roupas para
pessoas gordas que me agradassem — e complicava um pouco
mais quando se tratava de vestimentas para festas. Se isso
garantisse a nota na avaliação para concluir o curso, melhor ainda.
Nos primeiros meses após me mudar, em uma de minhas saídas
para explorar a região, descobri uma loja com ótimos preços no
calçadão de Campo Grande, que colocava tecidos em uma banca
de R$2,99 o metro. Não era sempre que dava sorte no garimpo pelo
tecido ideal, mas já conseguira diversas vezes, e o meu bolso
agradecia muito por isso.
l
Após ter um dia dos infernos no trabalho, quando entrei no quarto,
meu corpo dolorido agradeceu por finalmente poder relaxar. A
semana só estava começando e já me sentia cansada pelos dias
que viriam. Tomei um banho e saí do banheiro enrolada na toalha.
Ao passar em frente ao espelho de corpo inteiro, parei para me
olhar por uns minutos — algo que não fazia há um tempo. Apesar
de ouvir comentários gordofóbicos ao longo da vida, sempre admirei
minhas curvas e, naquele momento, não era diferente: eu gostava
do que via. Meus exames estavam ótimos, então ninguém precisava
despejar opiniões maldosas disfarçadas de preocupação com a
minha saúde. Por mais que eu não deixasse transparecer, isso me
machucava.
Além das curvas, também observei minha estatura mediana e
cabelo recém-lavado, que, quando seco, era de um loiro cor de
palha. Sorri de forma amorosa para a minha imagem refletida no
espelho e então avistei um hidratante esquecido entre minhas
coisas. Por que não?
Delicadamente, fui espalhando o creme aveludado, tentando
cobrir cada pedacinho sem pressa. Já fazia algum tempo que não
experimentava a sensação de ser tocada — e minha pele se
arrepiou.
Nos meus sonhos acordada, eu esperava encontrar alguém que
me respeitasse e não me julgasse pelo corpo — eu era muito mais
que só um corpo —, que explorasse cada centímetro de pele, todas
as curvas. É claro que se todo esse jeito de agir viesse
acompanhado de ombros largos, não iria me importar nadinha.
A mente viajou nesses pensamentos enquanto minhas mãos
começaram a passear pelo meu corpo — dessa vez, não tinha nada
a ver com o hidratante —, e logo foram em direção à virilha.
Ainda em pé, enquanto observava minha imagem no espelho,
acariciei lentamente a parte externa e comecei a sentir o clitóris
inchar na expectativa pelo toque, que fiz sem pressa alguma. A
sensação era tão gostosa que eu gostaria que esse momento
durasse mais. Uma noite inteira, talvez? Quando cansei de apenas
me atiçar, intensifiquei os movimentos e deixei o prazer aumentar.
Toda aquela energia começou se espalhar pelo meu corpo e
precisei colocar uma das mãos no espelho para manter o equilíbrio.
Encarei meus próprios olhos no reflexo e sorri satisfeita, apreciando
a imagem pós-orgasmo.
Ainda ofegante, vesti a roupa de dormir mais confortável que
tinha: não necessariamente um pijama, mas uma blusa velha e de
pano macio, que havia cedido depois de tantas lavagens e agora
parecia um vestido. Em seguida, peguei um dos potes com
refeições pré-prontas que montava quando sobrava um tempo,
geralmente aos domingos, e o coloquei no micro-ondas.
Enquanto comia, completamente relaxada enquanto apreciava o
sabor de cada garfada, aproveitei para checar as mensagens e
redes sociais. Eu até poderia não olhar as redes sociais, não era
uma obrigação, mas depois de perder uma oportunidade importante
por ficar off-line
, preferia estar sempre conectada.
O aplicativo de compartilhar fotos e vídeos era o que mais
gostava. Costumava seguir marcas e modelos plus size e sonhava
com o dia em que minhas criações chegariam até as pessoas que
precisavam delas, já que o meu projeto de vida principal era criar
peças bonitas e com preços populares.
Um anúncio de material de desenho se misturava às publicações.
Era impressionante como as redes sociais pareciam escutar ou ler
as conversas e sempre mostravam anúncios de coisas que havia
mencionado ou pesquisado. Eu não aguentava mais passar por
anúncios de lápis de cor. Eles podiam ao menos se atualizar quando
a pessoa já tivesse comprado, como era o caso. A última coisa que
queria ver era o mesmo produto por um preço mais barato, depois
de já ter efetuado a compra.
Assim que terminei de comer, coloquei o prato de lado e me
aconcheguei no sofá. Saciada duplamente, o cansaço começou a
tomar conta. Enquanto rolava o feed, algo capturou minha atenção:
uma publicação patrocinada sobre um aplicativo de enviar cartas.
“Nãofará mal dar uma conferida”,pensei. E foi o que fiz. A
proposta do aplicativo era enviar cartas digitais, mas com alguns
elementos que lembrassem um pouco o método tradicional, que tem
sido cada vez menos usado. O que mais chamava atenção era que
as cartas não chegavam imediatamente para o destinatário, como
acontecia com mensagens instantâneas. Era bem mais rápido do
que uma carta tradicional, mas ainda assim levava algumas horas
entre enviar e a pessoa do outro lado receber.
Ainda estava considerando se usaria o tal aplicativo quando me
deparei com os depoimentos de usuários contando sobre boas
amizades e até relacionamentos que começaram por causa das
cartas, e isso acabou me convencendo de que valia a tentativa. Não
pela parte do relacionamento, porque, com a rotina que levava, teria
que escolher entre dormir ou ter um encontro. Como os seres
humanos precisam dormir para repor as energias e continuar suas
atividades, nem me dava ao trabalho de cogitar o assunto até ao
menos ter terminado a graduação. Parecia um pouco radical, mas
cada um com suas escolhas e prioridades. A última coisa que
precisava era ter alguém reclamando que não recebia atenção o
suficiente.
Logo me veio à mente um clube de amizade por correspondência
que participei na adolescência, mesmo não sendo algo muito
comum na minha geração. As sensações gostosas de escrever para
alguém, a expectativa pela chegada do carteiro e de como a forma
das conversas ali eram bem diferentes de quando tudo é
instantâneo.
Em momentos como este, era impossível não me sentir um tanto
solitária. A nostalgia sempre faz isso.
“T alvez, apenas talvez, as cartas podem me ajudar. Quem sabe
me sentir um pouco menos sozinha”, refleti.
Ok, estava convencida.
Quando fui criar o perfil, percebi que, ao contrário de sites de
relacionamentos, você não podia colocar uma foto, mas tinha a
opção de criar um avatar — que poderia ou não corresponder com a
realidade da aparência e talvez refletir traços da personalidade.
Com o perfil finalizado, chegou a hora de escrever a primeira carta e
senti um leve frio na barriga pelo desconhecido. Dentre os vários
usuários disponíveis, um chamou minha atenção.
MeninoDoRio parecia interessante à primeira vista, e acabei me
identificando com o seu lado sonhador. Então, decidi que ele seria o
primeiro a receber uma correspondência minha. Empolgada pela
primeira vez em algum tempo, comecei a escrever, tentando fugir
das clássicas perguntas que todo mundo já estava cansado de
responder e que sempre surgiam em primeiros contatos. Substituí o
de praxe por algo que pudesse trazer muitas respostas peculiares
— ou então respostas que fossem um fiasco. Levei alguns minutos
para escrever tudo o que queria e, quando finalmente apertei o
botão de enviar, não consegui conter o sorriso que se formou em
meus lábios. Pronto! Agora, só restava esperar e cruzar os dedos
para não ter me enganado e o MeninoDoRio ser um completo idiota.
5
Gustavo
De: PlusStylistRJ
Olá, MeninoDoRio!
Nem lembro a última vez que escrevi uma carta, então posso
estar um pouco enferrujada. Encontrar este aplicativo foi uma
grata surpresa e estou empolgada em me corresponder sem
saber quem está do outro lado. Ou melhor, sem saber sua
aparência, já que gostos, opiniões e traços de personalidade
se mostram nas linhas escritas. Acredito que essa é uma boa
forma de conhecer a essência de alguém.
A ideia me encanta, então peço que, se a vontade de trocar
cartas for recíproca, não nos identifiquemos. Não quero
quebrar a magia. Sinto que, assim, conseguiremos revelar
traços mais profundos, sem medo de julgamentos. A pressão
social no “mundoexterno”já é grande demais para ser
importada para as cartas.
Estou surpresa de a experiência me aproximar das
lembranças e sensações de escrever cartas no papel. Ao
contrário das mensagens instantâneas, você coloca mais
atenção e até muda a forma de construir as frases. Você
pensa bem no conteúdo e nas possíveis interpretações. Em
alguns casos, imagina a pessoa que vai receber lendo, as
reações dela e sabe que, uma vez enviada, não dá mais para
apagar. Mas não estamos aqui para falar sobre a parte técnica
de trocar cartas, não é mesmo?
Deu para perceber que eu estou nervosa, né? Então, vamos
começar com um quebra gelo. Me conta: o que anda
passando na sua mente?
Fiquei um tempo estático, olhando para a carta, pois
definitivamente não estava esperando nada parecido. A pessoa do
outro lado tinha conseguido minha atenção. Eu já havia me
acostumado com a dinâmica — um pouco desgastante — de
responder perguntas ou traçar um perfil sobre idade, profissão, onde
moro e outras coisas que me faziam sentir que estava preenchendo
formulários para entrevistas de emprego. Até tentava inovar nas
perguntas ou na forma de responder as mesmas coisas, mas sentia
que isso acabava deixando o processo mecânico demais. Só não
fazia ideia do quanto queria, e precisava, de conversas mais
profundas.
Me conta: o que anda passando na sua mente?
Aquela pergunta me deixou pensativo. Tantas coisas passavam
na minha cabeça, mas será que valia a pena compartilhar? Que
imagem ela faria de mim? Eu, que estava acostumado a guardar
meus pensamentos, me vi impelido a me abrir com uma estranha.
Mas por onde começar?
Se eu dissesse que ainda estou de ressaca, será que ela me
julgaria?
Se eu contasse que odeio ter que usar terno e gravata, será que
ela compartilharia do meu drama?
Se eu confessasse que prefiro água a refrigerante, será que ela
me xingaria?
Não sabia… E achava que isso era o melhor de tudo.
Olhei para o computador por vários minutos, tentando encontrar
alguma coisa que a fizesse se sentir da mesma forma que eu
quando li a sua carta. Tudo bem que não sabia explicar muito bem o
que estava sentindo, mas uma empolgação adormecida começou a
despertar.
“Ótimo, finalmente alguma coisa que me tire da apatia”,pensei
comigo mesmo. Por mais que olhar modelos fosse bem
interessante, ainda não era o que me motivava de verdade.
Nos últimos meses, tudo o que havia sentido era uma ausência,
uma sensação de nada. Mas ler a carta da PlusStylistRJfez com
que eu fosse tomado por uma animação atípica.
Depois de pensar bastante, esboçar algumas vezes e apagar
várias, finalmente apertei o botão de enviar.
6
Alice
De: MeninoDoRio
Olá, PlusStylistRJ!
Antes de qualquer coisa, preciso confessar que a sua carta
me deixou sem palavras. Foi uma surpresa positiva, que
despertou em mim a empolgação para escrever algo diferente
de mais uma versão de currículo que as conversas iniciais
geralmente têm. Eu entendo que isso é necessário no
processo de conhecer alguém, independente do objetivo. Mas,
sei lá… É um pouco exaustivo quando você faz isso com
frequência. Então, obrigado por me tirar da zona de conforto.
Entendo o seu pedido, mas preciso dizer que isso despertou
minha curiosidade. Pode deixar, não pedirei informações
pessoais nem revelarei as minhas, a menos que seja de
comum acordo.
Fiquei com a sua pergunta na cabeça por um tempo antes de
me arriscar a iniciar uma resposta. Que pergunta incrível e
difícil! Tantas coisas passam na minha cabeça, e pensar que
as minhas escolhas do que compartilhar vão acabar
influenciando na imagem que você vai criar de mim… Sim, eu
estou enrolando antes de revelar meus pensamentos.
Uma coisa recorrente é que ainda não sei o que eu realmente
quero fazer. Meu propósito ou algo assim. Sei o que esperam
de mim e não estou tentado a seguir por esse caminho, o que
me rende inúmeras discussões familiares. Também não sou
um anjo, mas não ter me encontrado, somado à pressão,
acabou me levando a comportamentos dos quais não me
orgulho muito.
Mas o que eu realmente quero? Não sei. Algumas frases
compartilhadas por aí dizem que sempre é tempo de
descobrir, que não tem idade certa para isso, que algumas
pessoas bem sucedidas começaram depois dos cinquenta,
mas gostaria de ter algumas pistas. Não saber me traz a
sensação de estar andando por aí vendado (como naquele
filme), apenas seguindo, mas sem saber a direção ou onde
quero chegar.
Posso devolver a pergunta, moça?
P.S.: Apesar de não mostrar muito nessa carta, eu sou
divertido, juro!
Foi uma excelente decisão ter lido aquela carta logo pela manhã,
pois isso elevou o meu bom humor e me deixou ainda mais
empolgada para encarar o dia. Uma pontinha de ansiedade queria
que o momento em que teria a oportunidade de parar e responder
chegasse logo. Até poderia rascunhar algumas linhas no trajeto de
ida e volta da faculdade ou em algum intervalo entre as aulas, mas
precisava de tempo, calma e concentração para escrever todas as
coisas que já rondavam minha mente. Por isso, me conformei em
esperar até o fim do dia.
Já que era pra trocar cartas, queria dar o melhor de mim.
Outro motivo que me fazia estar ansiosa pela noite era o fato de
que, segundo o rastreamento, uma encomenda de materiais de
desenho deveria chegar ainda naquele dia. Precisei repor alguns
itens, depois de ter usado o que ainda tinha no curso de extensão
das últimas férias. Queria muito testar as novas folhas com
gramaturas e texturas diferentes, também os lápis de cor — que
chamei de investimento pelo preço que paguei. Eu economizava em
tudo o que podia, mas era diferente quando se tratava do meu futuro
trabalho, se todos os planos dessem certo. Só esperava encontrar
um tempo para continuar praticando as novas técnicas que aprendi.
Quando vi a hora, fui obrigada a deixar os pensamentos de lado.
Já estava quase me atrasando e sabia que Iolanda não perdoaria
caso isso acontecesse.
l
Já no fim da tarde, quando o ritmo da confecção estava menos
acelerado, meu celular apitou. Olhei para os lados, a fim de garantir
que a bruxa não estava por perto, e chequei a mensagem.
Inês:
Oi, amiga! Eu sei que você já está com tarefas
para fazer até 2050, mas será que consegue
abrir uma exceção neste sábado? Garanto que
valerá a pena.
Alice:
Humm, se fazendo de misteriosa… O que você
está aprontando, dona Inês?
Perguntei, já com medo do que minha amiga estava planejando.
Inês era tão imprevisível que seria capaz de sugerir uma visita à
cafeteria ou então uma ida ao Maracanã. Da última vez, ela queria
passar o dia na Pedra do Sal.
Inês:
Esse é o juízo que você faz de mim? É por uma
boa causa! Uma amiga me falou de um abrigo
de animais aqui do bairro e fiquei muito
interessada em ajudar. Então, entrei em contato
e agendei uma visita. Você vem?
Ok… Não era o que estava esperando. Na verdade, estava pronta
para dizer não a qualquer convite, afinal, precisava de um diazinho
para descansar. Só que a proposta de Inês mexeu com um lado
meu que é incapaz de dizer não.
Alice:
Eu adoraria! Só não confirmo ainda, porque
tudo vai depender da sua mãe. Você sabe
como ela é. O único motivo para não
trabalharmos aos sábados e domingos é
porque Iolanda gosta de ter o fim de semana de
folga e não confia em ninguém para nos deixar
sem supervisão. Mas vou tentar dar um jeito.
Inês:
Ótimo, passo aí para te levar comigo, nem que
eu mesma tenha que costurar algumas roupas.
Alice:
Você não existe! <3
O restante do dia de trabalho correu como de costume: comigo
tão sobrecarregada de tarefas que era difícil encontrar tempo até
para ir ao banheiro. Porém, quando consegui, aproveitei para curtir
uns cinco minutos de descanso e paz. Durante todos estes anos
trabalhando na Iolanda Confecções, era em momentos como este
que me permitia parar e escutar o que gritava dentro de mim. Às
vezes, chorava escondida — como agora.
Não aguentava mais ser tratada daquela forma, sem ter feito nada
para merecer. Iolanda fazia questão de exigir tarefas difíceis com
prazos impossíveis.No fim, ainda tentava me humilhar na frente dos
outros funcionários, dizendo que o meu trabalho era básico demais.
Nunca escutei um elogio, nunca escutei um “obrigada”. E tudo isso,
somado às minhas outras obrigações, me deixava à beira da
loucura. Estava sobrecarregada, estafada e louca para jogar tudo
para o alto. Só que, antes de bater o desespero, meu lado racional
fez o alerta de sempre: “Faltapouco, Alice”.Então, sequei o rosto,
respirei fundo e voltei para encarar a minha realidade.
“Faltapouco”,repeti para mim mesma assim que retornei à
estação de trabalho. Aquilo se tornou quase um mantra, que
sussurrava quando estava prestes a desistir. Mas qual seria a minha
opção? Voltar para o interior e continuar ajudando minha avó?
Largar os estudos?
Eu tinha sonhos, e ninguém seria capaz de tirá-los de mim.
O péssimo humor de Iolanda não me ajudou em nada a relaxar. A
carga extra de trabalho distribuída entre todos os funcionários, e não
só para mim, deixou claro que ela não estava para brincadeiras.
Ninguém sabia dizer o motivo que a havia deixado naquele estado,
mas uma coisa era de conhecimento geral: quando ela estava
assim, manter distância era sempre a melhor opção. Ninguém
queria estar por perto para ser o saco de pancadas em que Iolanda
descontaria suas frustrações. Ela não hesitaria em arranjar um
motivo para despedir um funcionário, só para o seu bel prazer. O
silêncio reinava, exceto pelo barulho das máquinas trabalhando, e
era possível sentir a tensão pairando no ar.
Quando encerrei meu expediente, fui para meus aposentos com o
pacote que haviam entregado na confecção. Colocava o local de
trabalho como destinatário das compras, pois raramente estava
disponível em horário comercial.
Ao fechar a porta que separava o local de moradia do de trabalho,
tive que decidir se tomava banho, comia, respondia a carta ou abria
o pacote — que realmente chegou na data prevista. Mas eu iria
acabar dormindo sem banho e sem me alimentar, devido ao
cansaço, se começasse a fazer outras coisas. Por isso, me obriguei
a seguir com a rotina de sempre e, em seguida, tive o meu momento
de criança abrindo o presente de Natal que estava esperando
debaixo da árvore. Só que eu havia sido meu próprio Papai Noel.
Os desenhos e pinturas faziam parte da minha vida desde
pequena; era a forma que encontrava de me divertir, relaxar e
colocar para fora sentimentos. Meus traços e cores refletiam meus
sonhos, medos, alegrias e frustrações. Ainda acumulava uma
modesta coleção de livros de colorir e, por incrível que pareça,
alguns deles estavam completamente preenchidos. Quando estava
focada na tarefa de preencher aqueles desenhos com cores,
esquecia todo o resto. Perdida entre materiais de pintura, deixava-
me levar pela intuição e soltava a criatividade, mas também
aproveitava para praticar as diversas técnicas aprendidas ao longo
dos anos.
Usei o momento para rascunhar algumas ideias que andei tendo
sobre o projeto de vestido para a formatura. A folha em branco
ganhou traços que ajudaram a colocar pra fora os vislumbres que
faziam parte do primeiro esboço que vinha se formando em minha
mente. Ainda não estava satisfeita, mas era um bom começo. E,
com isso, o tempo acabou passando bem mais rápido do que o
previsto. Pelo horário avançado, não podia demorar muito para
dormir, porque a semana ainda estava no começo e demoraria a
poder ter a chance de tirar atrasos de sono. Mas como deixar de
responder à carta quando eu tinha tanto a dizer e a conhecer?
De: PlusStylistRJ
Olá, MeninoDoRio!
Estava com certo receio de como seria a troca de cartas por
aqui, especialmente sendo minha primeira tentativa, e a sua
resposta foi uma grata surpresa. Obrigada por ter sido tão
sincero e compartilhado comigo as suas vulnerabilidades.
Imagino que deva ser bem difícil se abrir dessa forma com
uma estranha, assim como essa espécie de “criseexistencial”
que está vivendo.
Não quero me gabar, mas, nesse aspecto, eu dei muita sorte,
pois sei o que quero fazer desde criança. Eu brincava de criar
roupas para as minhas bonecas e agora continuo minhas
criações, só que para mulheres gordas. Tenho muitos
desenhos guardados, esperando uma chance de ganhar o
mundo.
Torço para que encontre logo o que precisa. Até diria para
você relaxar, mas sei que não é fácil diante dessa situação,
principalmente quando sofremos pressões sociais e familiares.
Que tal tentar olhar as coisas à sua volta? De repente,
aparecem oportunidades onde você menos imagina. Só esteja
aberto a elas.
Gostaria de escrever muito mais, porém meu tempo anda um
pouco corrido. Prometo responder sua pergunta assim que
possível com toda atenção que merece.
De: MeninoDoRio
Ei, não precisa se preocupar, faça no seu tempo!
É bom receber notícias suas, fiquei com medo de que me
achasse um chato e não receber uma resposta, mas parece
que passei na fase eliminatória.
Não quero parecer reclamão, mas não tenho visto nada muito
útil nessa questão ao meu redor. Agora, deixando meus
problemas de lado, vamos falar um pouco de você? O que
pretende fazer no fim de semana? Estou ansioso para te
conhecer melhor através das palavras.
De: PlusStylistRJ
Eu não sabia que estava rolando uma seletiva por aqui, mas
o que será que nos aguarda na próxima fase?
Ainda sobre a sua questão, que tal tentar relaxar um pouco?
Cobranças em excesso talvez piorem mais do que ajudem.
Sabe aquele ditado “Sea vida te der limões, faça uma
limonada”?Ou seria “Espremae faça uma caipirinha.”?As
duas opções são deliciosas, se você gostar de limão. Às
vezes, conseguimos chegar mais perto dos nossos sonhos ou
descobertas através de coisas que nem imaginávamos. Mas
acho que uma boa forma de começar a procurar é usando
aquilo que você gosta, as causas e valores que acredita e
defende. Você nem pediu e aqui estou eu, opinando e dando
conselhos. Acho que me empolguei.
Falando em causas, recebi um convite para conhecer e
possivelmente ajudar um abrigo de animais. Estou ansiosa e
espero realmente conseguir ir. E você, o que anda
aprontando?
De: PlusStylistRJ
Nossa, você é tão engraçadinho. Espada, é?
Gostaria de lembrar que Lúcifer também era anjo. Nada mais
a declarar!
Alice
l
Depois de algumas horas no abrigo — revezando entre ajudar
Pâmela e acariciar os animais —, eu estava me sentindo renovada.
Era muito bom poder fazer algo altruísta. Olhando para Inês, sabia
que minha amiga se sentia da mesma forma.
Apesar cansadas e com as pernas doloridas, ambas sorrimos.
— Te avisamos assim que tivermos alguma ideia boa e viável.
Nós já vamos, mas com certeza voltaremos. Pode colocar nossos
nomes na lista de voluntários. Temos muito o que aprender ainda,
mas disposição e boa vontade está sobrando. ― Inês acariciou seu
mais novo amigo, Lino. — Obrigada por nos receber e pela atenção.
— Nós que agradecemos o interesse em ajudar. As portas
estarão sempre abertas. — Pâmela se despediu da gente,
parecendo bem mais leve do que quando chegamos.
Fomos embora com vontade de ficar no meio dos animais e muito
empolgadas com a possibilidade de contribuir de alguma forma. Eu
cresci vendo a minha avó fazer o que podia para ajudar o próximo,
então, poder seguir seus passos e ficar na companhia de tantos
animais cheios de amor para dar me ajudava com a falta que eu
sentia dela.
Crescer sem meus pais me deixava com a sensação de faltar
algo, que eu não sabia o que era e ainda não havia conseguido
preencher. Mas ainda bem que eu tive a minha avó para me acolher,
senão o vazio seria ainda maior.
— Obrigada por vir comigo e desculpe por te arrumar mais
atividades em potencial — Inês falou sem tirar os olhos da direção,
interrompendo meus pensamentos. — Sei que você já tem coisas
demais para fazer.
— Tá brincando? É claro que eu quero ajudar! — Por um
momento, deixei de lado toda a saudade e me foquei no presente. A
minha empolgação era equivalente à de Inês, e queria que minha
amiga soubesse disso. — Vou dar meu jeito, nem que seja usando
algum artefato para voltar no tempo. — Podia até ser brincadeira,
mas eu tinha o pressentimento de que eu realmente precisaria achar
um desses para mim.
— Valeu, Alice. Mas também não esperaria nada diferente de
você.
— E eu de ti, por isso somos amigas. — Ela sorriu com meu
comentário. — Obrigada por hoje. Aliás, você viu aquele gato?
Como eu queria poder levá-lo para casa.
— Eu já estava até imaginando você saindo de lá com ele
agarrado no seu pescoço. Também adotaria vários, se pudesse.
Mas você conhece minha mãe, então, só quando eu me mudar. —
Inês falava com frequência sobre a sua vontade de sair de casa e
torcia para que isso não demorasse a acontecer. Não que ela
desgostasse da mãe, mas os valores das duas eram bem diferentes
e isso tornava o convívio difícil. Nem consigo contar quantas vezes
ela me ligou para reclamar de alguma coisa que Iolanda havia feito.
— Então, o que acha de parar para comer alguma coisa? —
mudei de assunto quando escutei minha barriga roncar. — Não
quero cozinhar hoje, nem comer o macarrão instantâneo guardado
para emergências.
A triste verdade era que essas “emergências” eram mais
frequentes do que eu gostaria de admitir.
— Também estou morrendo de fome. Vamos até o shopping, lá
tem muitas opções.
— Já disse que você é uma gênia?
Chegamos ao Park Shopping Campo Grande em poucos minutos,
o que foi surpreendente, pois apesar de o trajeto ser curto, o trânsito
fazia o percurso durar uma eternidade. Dentre tantas opções de
comida, Inês foi para a fila daquele restaurante de massas que você
escolhe todos os ingredientes, enquanto eu optei por montar meu
prato em um buffetcom preço fixo, assim poderia escolher o que
queria comer sem me preocupar com o preço final. Sonhava com o
dia em que escolheria onde e o que comer pelo que tivesse
vontade, e não pelos números depois do cifrão.
— Eu tinha esquecido que esse lugar ficava tão cheio. Ainda bem
que conseguimos essa mesa — falei antes de colocar a primeira
garfada na boca.
— Nem me fala. Depois de já estarmos com as bandejas na mão,
só nos restaria fazer malabarismo para comer em pé ou aguardar
pacientemente um lugar aparecer enquanto a comida esfria. —
Começamos a rir ao imaginar a possibilidade.
— Na próxima vez, pode ser um bom plano acharmos a mesa e
uma de nós ir primeiro, enquanto a outra guarda o lugar.
— Podemos fazer isso com a sobremesa. Se bem que,
dependendo do que for, não precisaremos de mesa. — Inês nem
tinha acabado de comer o almoço e já estava pensando nas opções
deliciosas de doces. Típico.
— Algo em mente?
— Nada especial. Agora, aproveita para me contar as novidades.
— Ah, Inês, a minha vida é aquela rotina que você já conhece. A
única coisa que aconteceu de diferente foi eu ter começado a
desenhar meu vestido de formatura e a conversar com um
desconhecido por cartas. Aliás, você quer que eu faça um desenho
para o seu vestido de formatura também?
— Não precisa se preocupar com isso, eu não vou participar.
Aliás, vou comemorar na sua, então trate de providenciar o meu
convite. — Inês se aproximou de mim como se eu estivesse
contando algum tipo de segredo. — Agora, me fala mais sobre esse
lance de carta. Como assim, um desconhecido? E como conseguiu
o endereço dele? — Inês tinha uma expressão curiosa no rosto, e
não me surpreendi em nada que ela tenha escolhido focar nessa
parte. Pelo visto, minha tentativa de desviar do assunto não tinha
surtido o efeito esperado.
— Sem endereços, são cartas virtuais. — Achei graça da
situação, porque, se fosse pouco tempo atrás, jamais imaginaria
essa possibilidade. — Existe site para isso, sabia?
— Não sabia, mas não me surpreende. Existe aplicativo para tudo
que se possa imaginar. Quando não tem aplicativo para alguma
função, certeza que dá para achar algum vídeo tutorial ensinando
como fazer. — E lá estava Inês, tagarelando mais uma vez.
Característicaque eu sempre gostei nela. Eu não era de falar muito,
então isso trazia certo equilíbrio. — É tipo um site de
relacionamentos, só que de cartas?
— Não tinha olhado por esse ângulo, mas sim e não. Para quem
gosta de trocar cartas, é um espaço em que você encontra pessoas
disponíveis, sem precisar se identificar ou ir até os Correios. Mas, se
levar em conta que amizade é um tipo de relacionamento, então não
deixa de ser. Se bem que li depoimentos de casais que se formaram
por causa disso, mas casais se formam de muitas maneiras,
então… — Dei de ombros, na esperança de encerrar o assunto.
Não queria ter que compartilhar sobre como me sentia a respeito,
quando eu nem havia pensado sobre isso. Comecei sem pretensão
alguma e essa troca de cartas estava se tornando uma das
melhores partes do meu dia. Eu aguardava ansiosa para ler cada
linha, e algumas andavam me arrancando boas risadas. O senso de
humor dele dava um tempero a mais.
— Se você diz… Fico feliz em saber que está conhecendo
pessoas novas. Me mantenha atualizada. — Inês piscou.
— Claro, você sempre é a primeira a saber de tudo que acontece
na minha vida.
— Sorvete e cinema? Tem um com um chocolate derretido no
fundo do cascão que faz valer a pena cada centavo. — Inês me
olhou com uma expressão irrecusável. Nossos pratos já estavam
vazios.
— Só se você me deixar escolher o filme. — Não perdi a chance.
— Certo. Só gostaria de lembrar que o filme vai praticamente se
escolher sozinho, já que teremos que optar pelo horário disponível
mais próximo.
— Não sendo de terror, por mim tudo bem. Vamos descobrir qual
será o filme sortudo que nos terá como espectadoras.
Para a minha alegria, a opção era uma comédia romântica, meu
gênero preferido. Inês gostava mais de filmes com uma pegada de
suspense e ação, mas assistia a todos os estilos sem reclamar.
Horas depois, nós voltamos para casa discutindo o filme como se
fossem acontecimentos reais e o que faríamos no lugar dos
protagonistas em determinadas situações. Quando estávamos
dentro da sala de cinema, não abríamosa boca para comentar nada
depois que os trailers acabavam.
Já em casa, lembrei de uma certa carta esperando por resposta e
resolvi fazer isso antes de realizar as tarefas pendentes, para não
acabar esquecendo. Desse jeito, o MeninoDoRio iria até achar que
eu não queria mais conversar.
Escrever cartas e fazer compras on-line estavam na lista das
coisas que eu preferia fazer no computador, em vez de no celular.
Mas, naquele momento, não estava nem um pouco a fim de tirar o
aparelho do lugar em que estava guardado, esperar ligar, estar
pronto para ser utilizado, depois ter que desligar e guardar
novamente. O aplicativo era mais prático, tinha que admitir. Já vi um
amigo escrever um livro inteiro pelo celular, então eu poderia
escrever uma carta.
Sentei em uma posição confortável e comecei a refletir sobre
como responderia, já que eu o deixei esperando na noite passada.
Não esperava que ele fosse mandar a mesma pergunta que eu
havia feito na primeira carta, e tive que concordar com ele sobre ser
uma pergunta difícil de responder. Tanta coisa passava pela minha
cabeça que a carta se transformaria em uma sessão de terapia de
tão grande. Por hora, teria que selecionar algumas coisas, mas com
certeza falaria sobre a experiência no abrigo de animais. Aquilo
havia me marcado demais para passar em branco.
8
Gustavo
De: PlusStylistRJ
Olá, MeninoDoRio!
Desculpa a demora em responder. Já te disse que minha vida
é uma loucura? Os últimos dias foram infernais, para dizer o
mínimo, mas prometo que, daqui em diante, tentarei ser mais
pontual em nossas trocas de correspondência. Não desista de
mim!
Tenho uma novidade para te contar. Hoje, visitei aquele
abrigo de animais e… nossa! Estou apaixonada por eles e
sensibilizada pela causa. Quero muito ajudá-los de alguma
forma. Ainda não sei como, mas tenho certeza de que uma
boa ideia vai aparecer quando eu menos esperar.
Ah, sei que demorei, mas não esqueci de responder à sua
pergunta. Ou será que eu deveria dizer minha pergunta? O
que tem passado na minha cabeça é isso: fazer algo por
esses animais e a minha formatura, que está finalmente
chegando. Isso me deixa cada vez mais perto do meu grande
sonho. Pode anotar: ainda serei uma estilista reconhecida na
moda plus size. Confesso que a nossa troca de cartas
também tem roubado meus pensamentos.
E você, tem algum sonho? O que te dá prazer?
Alice
De: MeninoDoRio
Sonhos e prazer, uh?
Antes de tudo, preciso que me conte: que espécie de
poderes mágicos você tem? E não aceito uma negativa como
resposta, porque, com certeza, você tem algo de paranormal.
Se ainda não descobriu o que é, sugiro investigar. ;)
A essa altura, você deve estar pensando que eu enlouqueci,
mas irei explicar do que estou falando. Pois bem, você tem
algum dom com as palavras, e isso mexe comigo de uma
forma que não sei explicar. Sempre me deixa pensativo e
instigado.
Ainda não sei muito sobre meus sonhos, além de querer
fazer algo que dê sentido à minha existência. Espero que não
me julgue por isso, mas ainda não pensei muito além. Assim
que tiver mais informações, eu aviso.
O que me dá prazer? Ah, se eu te contasse… Consigo
resumir bem em uma frase: o que me dá prazer são coisas
que me fazem sentir vivo. Você já sabe que pratico esgrima e
isso com certeza está entre os principais itens, pois reúne dois
itens importantes que são o esporte, que eu amo, e boas
companhias, já que faço isso com meus amigos. Estar com
eles é sempre divertido. Outro dia, tive que postar a foto da
minha bunda no grupo por ter perdido uma aposta, mas eles
me deixaram apagar logo depois. Também acrescentaria à
lista novas experiências, ver a felicidade das pessoas que eu
gosto e dormir de conchinha, apesar de ter bastante tempo
desde a última vez que fiz isso.
Agora, posso confessar algo que não me dá o mínimo de
prazer? Passar o dia com meu pai. Só que amanhã é Dia dos
Pais, e vamos almoçar fora. Prometo que vou tentar me
comportar e não puxar briga. Quem sabe este não seja o
presente dele?
l
De: PlusStylistRJ
Oi, MeninoDoRio.
Eu estava costurando quando me lembrei de você. Sei que
esta carta vai fugir do assunto anterior, mas sinto que preciso
conversar com alguém. Não sei se já chegamos a este ponto
de intimidade, só que hoje está sendo um dia complicado e
pensei que, talvez, você pudesse apenas me “ouvir”. Pode ser
a nostalgia falando, ou então o cansaço, mas estou sendo
tomadas por lembranças e gostaria de compartilhá-las com
você.
Sempre fui uma menina sonhadora. Ainda pequena, morando
em uma cidadezinha do interior, já queria correr atrás dos
meus objetivos.
Aprendi a costurar com a minha avó. Acho que não te contei,
mas foi ela quem me criou, depois que meus pais morreram.
Eu ainda era um bebê e nem me lembro deles. Todas as
memórias que tenho vieram através das muitas fotos que vovó
sempre fez questão de me mostrar.
Ela era uma costureira de referência onde morávamos, e eu
vivia agarrada na saia dela, implorando para aprender alguma
coisa. Achava incrível como ela conseguia transformar um
pedaço de pano em algo tão lindo. Comecei pregando botões
e cortando linhas. Consigo me lembrar da primeira vez que
usei a máquina de costura. Minhas mãos tremiam de
empolgação. Não sei quem ficou mais emocionada: eu ou
minha avó.
Foi então que comecei a ajudar nas encomendas. Vovó já
estava sofrendo de fortes dores nas costas, afinal, ficar
sentada o dia inteiro não é fácil. Fora sua idade avançada.
Ainda bem que a saúde dela está em dia, senão seria
impossível morar tão longe.
Quando ela se aposentou, comecei a fazer planos de me
mudar. Não para ficar longe, porque, se eu pudesse, nunca
me afastaria dela. Mas, como eu te disse, sempre tive muitos
sonhos. Fazer faculdade de Moda era um deles.
E é por isso que estou aqui hoje.
Espero que minha carta não tenha sido triste demais.
Gustavo
De: MeninoDoRio
Olá, querida!
Fico lisonjeado que esteja à vontade para compartilhar coisas
tão pessoais e profundas comigo. O espaço sempre estará
aberto quando você precisar. Vou adorar te conhecer ainda
mais.
E desculpe mencionar o Dia dos Pais. Não sabia do seu
passado. Espero não ter deixado as coisas ainda mais tristes.
Mas, se for de algum consolo, o feriado não foi muito bom
para mim. É claro que meu pai e eu acabamos discutindo
durante o almoço, como sempre.
Não sei se tenho conselhos tão bons para te dar, ou palavras
de conforto. Parece que isso é um dom seu, mas estou
sempre disposto a te ouvir.
Espero muito que todos os seus sonhos se realizem.
Adoraria poder te ajudar, então, me deixe saber se eu puder
fazer qualquer coisa.
09 de agosto
De: PlusStylistRJ
O seu carinho e a disposição para ouvir significam muito para
mim e já são de grande ajuda. Pelo visto, depende de mim e
talvez um pouco de sorte para que eu esteja no lugar certo e
na hora certa quando alguma grande oportunidade surgir.
Saber que você está aí do outro lado já é um grande
incentivo e tem tornado meus dias mais alegres.
Já falamos muito de mim! Aguardo curiosa por mais
informações sobre suas descobertas relacionadas aos seus
sonhos.
Alice
De: MeninoDoRio
Olá, PlusStylistRJ!
Se eu te disser que, depois de sempre afirmar que jamais o
faria, aceitei trabalhar na empresa da família, você
acreditaria? Aceitei pensando no que me disse sobre
aproveitar oportunidades, mesmo que, aparentemente, não
sejam o que queremos, mas pela possibilidade de usá-las
para chegar até o nosso objetivo.
Seu depoimento sobre o abrigo também mexeu muito
comigo, aliás, se quiser divulgar qual o local, também gostaria
de ajudar. Amo animais e sempre quis fazer algo por eles. Vi
uma oportunidade para isso e foi o motivo que me levou a
trabalhar em um projeto da empresa. Tudo dando certo, vai
ser uma grande ajuda. Então, eu realmente preciso te dizer:
MUITO OBRIGADO por existir.
Conte-me mais sobre você, estou cada vez mais curioso e
interessado no que tem a dizer.
P.S.: Se eu soubesse que teria uma pessoa tão incrível aí do
outro lado, não tinha aceitado a sua condição de não
revelarmos quem somos. Eu adoraria poder te conhecer, mas
entendo e respeito a sua escolha.
Gustavo
De: PlusStylistRJ
Olá!
Fiquei feliz em saber que, de alguma forma, minhas palavras
te ajudaram. Já ouvi muito por aí do poder que as palavras
têm, mas essa é a primeira vez que “vejo” isso de forma
concreta. Estou ansiosa para saber no que resultaram seus
planos.
Por aqui, também acabei esbarrando em uma resposta para
o que eu precisava. Ou será que deveria dizer “quase
tropeçando”? Estou empolgada com a possibilidade de
transformar algo que iria para o lixo em uma forma de ajudar.
Porém, com isso, meu tempo vai ficar ainda mais escasso do
que já é, então não estranhe se as respostas demorarem a
chegar até você ou forem mais curtas do que o de costume. O
carinho ainda será o mesmo de sempre.
Fico lisonjeada com a sua observação de querer mesmo
marcar um encontro para me conhecer, mas, como citei
acima, o meu tempo está complicado de administrar e estou
aproveitando essa desculpa para evitar nosso encontro. Não é
pessoal, juro. Você parece ser alguém que eu adoraria ter por
perto, pela forma como escreve, mas tenho medo de que as
coisas estraguem se a gente se conhecer. Pode parecer bobo
da minha parte, mas tenho medo de um encontro quebrar a
magia que as palavras criaram. Um tempo atrás, eu conheci
alguém em um famoso aplicativo de relacionamento. E o
primeiro — e último — encontro foi um verdadeiro desastre.
Tenho pensado cada vez mais em você, mas não quero
perder o que estamos construindo por aqui. Não sei como
chamar, só sei que é bom. Não fique triste, nada é imutável,
por isso vou deixá-lo com um “Quemsabe um dia…”.Não é
exatamente o que você queria, mas ainda é melhor do que
uma negativa, eu acho. Quero que a minha presença em sua
vida, da forma que for, represente sempre coisas agradáveis.
Até!
Alice
De: MeninoDoRio
Olá, menina malvada!
“Quem sabe um dia?”
Estou contando os dias, riscando cada um no calendário
imaginário, mesmo sem saber até quando, na esperança de
ter a sorte de poder ver você bem na minha frente, ouvir sua
voz… Vou parar, antes que você fique assustada e
desapareça.
Brincadeiras (com um fundo de verdade) à parte, entendo
perfeitamente se precisar de mais tempo que o de costume
para responder. Por aqui, também estou bem atarefado, mas
confesso que já estaríamos trocando milhares de mensagens
pelo celular, se me fosse permitido.
Parece que estamos em uma maré de sorte. Eu adoraria te
contar todos os detalhes do que tenho feito, mas, por se tratar
de algo grande e importante, preciso manter sigilo. Pelo
menos, por enquanto. Quando for possível,quero compartilhar
com você e espero ter motivos para comemorar.
Meu pai está se aproveitando para me manter mais tempo na
empresa. Daqui a pouco, até vai ter uma placa de funcionário
do mês com a minha foto pendurada pelos corredores. Estou
vendo a hora que ele vai me pedir para sentar em sua cadeira
para eu ter o gostinho de ser CEO e, quem sabe, me
interessar em ocupar essa posição. Sei que o motivo de me
querer aqui é justamente fazer com que eu me interesse pela
função, mas eu continuo sem conseguir me ver no lugar dele.
Mesmo aqui, não me sinto bem com a ideia. É
responsabilidade demais!
Pode até parecer que tenho aversão a trabalho, mas é só ao
título de CEO mesmo. Se preciso trabalhar na empresa, que
seja com algo mais básico, apesar de não me sentir apto para
exercer os cargos sem ajuda. Se fosse para ficar aqui, eu iria
preferir atuar nos bastidores ou em um projeto específico,
como estou fazendo agora, e até mesmo ser a pessoa que vai
atrás de ideias inovadoras, mas não quem comanda tudo.
Voltando ao assunto, vou aceitar o seu “Quemsabe um
dia…”, com a esperança desse dia chegar logo.
Beijos.
De: PlusStylistRJ
Te agradeço muito por compreender os meus motivos.
Hoje o dia começou um pouco estranho. Minha chefe é uma
megera, e eu acabei protagonizando um momento digno de
filme de investigação, só que com muito menos glamour. Mas,
como uma luz no fim do túnel, algo apareceu para me deixar
empolgada. Estou pensando no que fazer. Se decidir seguir
em frente, vou agarrar essa oportunidade com unhas e
dentes. E parece que ambos temos segredos agora.
14
Gustavo
De: MeninoDoRio
Sinto muito que seu dia ontem tenha sido difícil.
Adoraria poder fazer algo para te animar, mas não faço ideia
do quê. Até pensei em contar umas piadas, mas sou péssimo
nisso, então ia ter o efeito contrário.
Segredos, hein? Isso é alguma estratégia sua para me deixar
ainda mais curioso? Mas se diz que é algo bom, ficarei na
torcida, mesmo sem saber do que se trata.
Estou empolgado, porque tenho prática de esgrima. Agora,
trabalhando na empresa, não tenho feito isso durante a
semana. Sabe quando você faz algo com tanta frequência, a
ponto de ser quase automático? Meu corpo sente falta.
Também é a forma saudável de descarregar minhas
frustrações. As festas andam escassas.
E você, quais os seus planos? Me conte tudo, quero saber
detalhes.
Estava ansioso para saber cada vez mais detalhes sobre ela,
desde aquelas coisas básicas, que tanto reclamei estar cansado de
abordar em conversas, até seus desejos mais profundos. Estava
pagando minha língua. Eu me pegava pensando no que ela estaria
fazendo, e até detalhes sobre o passo a passo dos seus dias
parecia muito interessante.
De: PlusStylistRJ
Olá, MeninoDoRio!
Obrigada por ser tão compreensivo, espero que, em algum
momento, isso não precise mais ser mantido em segredo e eu
possa compartilhar tudo com você.
Quer mesmo tantos detalhes?
Não sei se vai achar tão interessante assim, mas vamos lá:
Acredita que quase esqueci de enviar um trabalho
importante? Lembrei dele faltando poucos minutos para
acabar o prazo, ainda bem que já tinha um rascunho. Esse foi
o meu “sextou”.
Eu deveria estar dormindo, mas estou aqui te respondendo,
então sinta-se importante. Neste sábado, vou de novo ao
abrigo para ajudar nos cuidados dos animais. Estou ansiosa!
Aliás, lembra que comentei de ter encontrado uma forma de
ajudar? Pois bem, vou criar peças para vender e arrecadar
dinheiro para os animais. Como a loja vende de tudo um
pouco na área de vestuário e acessórios, tenho a liberdade de
criar peças diversas — e é quase como se eu tivesse minha
linha de peças exclusivas.
Aparentemente, eu não sou a única empolgada, pois a dona
do estabelecimento mandou até fazer um banner para colocar
em destaque na entrada da loja, fez posts nas redes sociais
com um “Embreve…”e prometeu até sorteio entre os clientes
que comprassem os itens ou quisessem deixar um valor de
doação em uma espécie de caixinha.
Vou pegar alguns moldes que tenho e adaptá-los. Você sabia
que fazer cada etapa de uma vez costuma ser mais rápido do
que todos os passos de cada peça individualmente? Quando
se faz muita coisa em pouco tempo, você arruma estratégias
para otimizar o tempo.
Agora, preciso ir, vou fazer isso bem cedo antes de sair.
Beijos!
Não esperava por uma resposta antes de dormir, mas fiquei tão
empolgado que respondi, mesmo sabendo que ela não veria até
acordar. Essa mulher realmente tinha levado a sério a parte de me
contar com detalhes, e eu amei ver esse lado dela.
De: MeninoDoRio
Uau! É bom te ver empolgada desse jeito.
Dá para notar que você gosta do que faz só pela forma que
escreve. Fico imaginando como seria sua voz e que
provavelmente seus olhos brilham quando fala disso. Até me
pergunto se surgem covinhas no seu rosto quando sorri.
Ainda bem que você não me falou de que abrigo se trata, e
acho que isso foi intencional, ou eu seria o primeiro a chegar
lá só pela chance de, por “coincidência”, te ver
. Eu não saberia
quem é você, mas reduziria bastante a lista de possibilidades.
Isso soou um pouco assustador, imagino, mas não foi minha
intenção. Pode ficar tranquila que eu não sou um stalker.
O que você está fazendo comigo, garota?
Alice
De: MeninoDoRio
Levei um susto quando vi que era uma foto e quase derrubei
o telefone com a empolgação. Nos segundos antes de abrir,
passaram mil e uma possibilidades na minha cabeça do que
estaria retratado nela.
Se era você naquela foto, me desculpe, mas foi impossível
não rir.
Eu amo cachorros, só que não me importaria se tivesse
alguém a mais nessa imagem. ;)
De: PlusStylistRJ
Desculpa pelo susto! Não foi dessa vez que você me viu em
uma situação embaraçosa.
Eu espero que seu dia esteja sendo tão incrível quanto o
meu. Poder sair da rotina e ainda ajudar aqueles animais
recarregaria as energias de qualquer um. Quero muito estar
apta para ser da equipe que dá banho neles em breve, e
também aguardo ansiosa por uma oportunidade de brincar
com os gatinhos.
Sabe aquele segredo que comentei? Eu realmente tomei
uma decisão muito importante e que pode mudar a minha
vida. Seria demais pedir que torça por mim, mesmo que eu
não possa te contar o que é?
De: MeninoDoRio
Um pedido seu nunca seria demais. É claro que vou torcer!
Bom saber que deu tudo certo hoje e que seu dia compensou
os momentos ruins dessa semana. Deveríamos comemorar.
Eu sugiro que pegue uma bebida imediatamente e brindemos!
Eu não sei que tipo de bebida você gosta, mas pode ser água,
suco, café ou até mesmo um copo vazio. Também vale o
imaginário, só pela intenção.
Espero que tudo continue indo por esse caminho e que
apareçam muitos outros motivos para celebrar.
Beijos!
De: PlusStylistRJ
Olá, MeninoDoRio!
Se eu te contar que estava com uma xícara de café na mão
quando li sua última carta, você acredita? Fiz nosso brinde
naquele momento. Eu concordo contigo: temos mesmo que
celebrar cada pequena vitória e lembrar de agradecer por
cada coisa. Estar vivo é o nosso bilhete dourado para
continuar tentando alcançar os objetivos e dar oportunidade
para coisas boas acontecerem.
Espero que tenha brindado aí também, e com algo tão
delicioso quanto o cappuccino de caramelo que eu estava
bebendo. Só de lembrar me dá vontade de voltar na
cafeteria…
Nunca pensei em chegar ao ponto de me abrir dessa forma,
mas aqui estou eu. Quem olha de fora deve achar que a
minha vida é um verdadeiro inferno e, mesmo a minha chefe
me explorando em um nível surreal, continuo na luta. Sabe por
quê? Eu tenho um sonho e ele é o meu combustível para
acordar todos os dias e enfrentar cada obstáculo. Quando eu
chegar lá, vai ter valido a pena. Seria bom se a estrada fosse
um pouco menos esburacada para a viagem ser mais suave.
Mas se esse é o caminho, continuo em frente.
Tenho sentido uma saudade enorme do colo da minha avó.
Ela mora em outra cidade e não posso visitá-la agora, mas
como eu gostaria de sentir aquele cheiro de café e bolo de
milho que só ela sabe fazer e de sentar no sofá para ver
aquela reprise de novela na televisão… Sinto falta do
cheirinho de talco na pele dela e das palavras de sabedoria
que sempre tem pra me dizer e que confortam meu coração.
Ela me criou, sempre foi minha referência e exemplo de
pessoa. É muito ruim estar morando esses anos todos longe.
Não vejo a hora de conseguir trazê-la para morar comigo, mas
ainda tenho algumas etapas antes disso.
Bom, me desculpe o desabafo, mas senti que podia confiar
em ti e precisava muito falar sobre isso com alguém.
Obrigada por estar aí do outro lado.
16
Alice
De: PlusStylistRJ
Boas notícias!
Quero muito compartilhar algo que aconteceu: parece que a
minha ideia para ajudar o abrigo deu muito certo. As peças
estão todas vendidas, acredita?
Sei que não é uma quantia enorme, mas sinto tanta alegria
em poder ajudar. Não vejo a hora de poder fazer mais!
De: MeninoDoRio
Oi!
Muito bom saber que seus projetos estão dando certo. Se eu
fiquei empolgado com a notícia, imagino você.
Sei que não está me cobrando, mas antes que esqueça,
quero dizer que não respondi àquela carta sobre a sua avó
porque queria refletir sobre o que me contou antes de
escrever. Sei que continuamos nos comunicando depois disso,
acho que trocamos mais de quinze cartas na última semana,
mas me sinto desconfortável de não ter respondido ainda,
justamente por você se abrir sobre algo importante para ti.
Prometo que farei isso em breve.
P.S.: Os animais do abrigo são muito sortudos de terem
cruzado o seu caminho e o de tantas pessoas que estão
dispostas a ajudar. Espero um dia ter essa sorte também.
Gustavo
De: MeninoDoRio
Olá!
Que bela manhã de sol, não? Fico me perguntando o que
você está fazendo por aí.
Sei que nossa semana foi corrida, e peço desculpas por não
ter te dado a atenção que merece. Mas juro que foi por uma
boa causa. Por isso, guardei essa resposta para hoje.
Eu me senti importante por ter compartilhado coisas tão
pessoais e significativas comigo. Fico feliz em saber que
confia em mim a esse ponto.
Inspirado em você, mestra em dar ótimos conselhos, vou te
contar o que eu acho e provavelmente faria nessa situação.
Fico feliz com a chance de retribuir e espero que meus
conselhos sejam tão úteis quanto os seus.
Às vezes, precisamos viver o momento, tomar umas decisões
por impulso, nos jogar, mergulhar de cabeça... Claro que
existem situações de risco, mas não me parece que visitar sua
avó seja uma delas. Então, se você tivesse me perguntado, eu
diria para ir.
Tem um feriado vindo por aí, é uma ótima oportunidade.
Corra para comprar as passagens, arrume as malas e leve o
que der pra adiantar das suas atividades. Tenho certeza de
que isso vai renovar suas energias para enfrentar o que vier, e
acredito plenamente na sua capacidade de dar conta das
pendências.
Eu mesmo compraria suas passagens, se tivesse seus
dados. Como não posso fazer isso, então espero boas
notícias na próxima carta.
Dê um beijo na sua avó por mim.
Boa viagem! ;)
P.S.: Odeio quando a minha semana é corrida e não posso
conversar com você o dia inteiro. Quem sabe um dia…
18
Alice
l
Quando chegou perto da hora do almoço, o movimento dispersou
um pouco, então aproveitei para ler a carta que chegara alguns
minutos antes. Na mesma hora, respondi.
De: PlusStylistRJ
Esse é o seu cachorro? Ele é lindo! Como se chama?
Que belo sábado de sol para adotar um animal, aposto que
seu amigo aí adoraria ter companhia. Se for do seu interesse,
me deixe saber e passarei o contato da responsável pelas
adoções do abrigo.
A vida de voluntária é bem gratificante, mas exige muito do
nosso físico algumas vezes. O que sei é que continuarei
nessa missão enquanto me for permitido. Neste momento,
estou exausta demais para ponderar sobre a sua sugestão,
mas prometo que o farei em breve.
E que carta mais profunda. Estou gostando de conhecer um
pouco mais esse seu lado. Por favor, não pare. Nem que leve
um pouco mais de tempo para responder. Eu, melhor do que
ninguém, entendo como a vida pode ser corrida.
Beijos
Não demorou muito e o alerta de mensagens apitou. Nem tive
tempo de terminar de comer o sanduíche,mas o deixei de lado sem
hesitar e comecei a ler a resposta do MeninoDoRio.
De: MeninoDoRio
Ah, quer dizer que o nome do meu cachorro você quer saber,
mas o meu não?
Ele se chama Joca e estaria mandando beijos molhados se
entendesse do que se trata a conversa.
Ah, adoraria adotar mais algum animal, mas meus pais me
matariam. O Joca é velhinho e isso demanda bastante
atenção e cuidados. Ele ainda está com a corda toda, diga-se
de passagem.
E você, pretende adotar algum?
Aguardo para receber notícias da viagem.☺
De: PlusStylistRJ
Interessante você perguntar. Estou completamente
apaixonada por um gato chamado Nick. Eu o conheci na
minha primeira visita ao abrigo e queria muito mesmo poder
levá-lo para casa comigo. Mas, neste momento, adotar um
animal é inviável. Quem sabe daqui a algum tempo, se meus
planos derem certo.
De: MeninoDoRio
Estou começando a ficar com inveja desse gato.
Se eu fizer “miau”, você me leva para sua casa também?
De: MeninoDoRio
Por favor, ignore minha última mensagem, acho que peguei
sol demais na cabeça. :p
Sei que foi horrível, mas espero ter feito você rir.
De: PlusStylistRJ
De que mensagem estamos falando? ;)
Gustavo
De: MeninoDoRio
Ah, minha doce correspondente, como eu gostaria que você
estivesse aqui para lhe envolver com meus braços, sentir seu
calor e te encher de beijos.
Sonho com o dia que você irá mudar de ideia e marcar o
nosso tão esperado encontro...
De: MeninoDoRio
Minha menina, eu não sabia que era possível sentir falta de
alguém que nunca vi.
Isso tudo é muito estranho e, ao mesmo tempo, faz todo
sentido. Pelo menos, para mim. Espero que não me ache um
lunático por falar essas coisas, mas será que só eu me sinto
assim?
Eu disse que não forçaria o nosso encontro, e falei sério. Mas
isso não quer dizer que eu não queira, e muito, te encontrar.
Estou louco para saber quem é a pessoa por trás das palavras
que me fascinam e enlouquecem. Fico pensando na sua boca,
no seu cheiro, no seu gosto… Isso está me consumindo.
Quase sempre, me pego pensando em você e nas várias
coisas que poderíamos fazer juntos.
O quê?
Vou deixar a sua imaginação completar.
Alice
De: MeninoDoRio
Ei, está tudo bem por aí?
Eu pretendia te dar espaço após a última carta. Não quis
parecer invasivo ou insistente, mas, depois de algum tempo
sem resposta, comecei a me preocupar.
Se bem que, caso tivesse acontecido algo grave que te
impedisse de me escrever, você não teria como responder,
não é mesmo?
Só gostaria de te pedir que, se eu tiver te assustado e você
decidir não falar mais comigo, me envie uma última carta
avisando e eu não voltarei a te procurar.
De: PlusStylistRJ
Olá!
Aqui estou eu para mostrar que nada de grave aconteceu.
Pode ficar despreocupado.
Eu não sei explicar exatamente como me senti, mas digamos
que fiquei um pouco assustada com tanta intensidade. Afinal,
foi bem diferente do que vinha acontecendo.
Sua última carta me deixou sem palavras. Literalmente.
Peço desculpas se causei algum tipo de angústia por conta
do meu “sumiço”. Não foi minha intenção. Prometo avisar da
próxima vez, caso eu precise de um pouco mais de tempo
para processar as informações.
A boa notícia é que decidi seguir seu conselho.
Até mais
De: MeninoDoRio
Ora, ora, bom receber notícias suas!
De que conselho exatamente estamos falando? Levando em
conta que sou uma fonte inesgotável de bons conselhos, fica
difícil lembrar.
Vamos lá, não me deixe curioso...
De:PlusStylistRJ
Tem certeza de que não confundiu de correspondente? Eu
não consigo lembrar de tantos assim.
Sobre o conselho: estou indo visitar vovó e pretendo
aproveitar alguns momentos tranquilos, que não tenho há
muito tempo.
Continuei ignorando a carta mais ousada que recebi por não
saber o que fazer a respeito dela. A verdade é que eu também me
sentia dessa forma e me assustou saber que era recíproco.Gostaria
de ter respondido à altura, mas tinha medo de onde isso nos levaria.
E se, ao invés de boas conversas, acabasse virando apenas uma
troca de mensagens mais quentes? É claro que a minha mente
voava, pensando em como seria tocar o corpo dele, se a pele seria
quente como labaredas, a textura do cabelo quando eu passasse as
mãos, se teria uma barba roçando quando ele fosse beijar meu
pescoço. Céus! Tive que me abanar discretamente para que a
pessoa do meu lado não percebesse o meu estado. Era impossível
alegar calor com aquele ar-condicionado trincando.
De: MeninoDoRio
Quem diria...
Torci mesmo pra que, de todos os meus ótimos conselhos,
você seguisse ao menos esse.
Então, me conte: planos para os dias de folga?
De: PlusStylistRJ
Já consigo até imaginar você abrindo vagas na sua agenda
lotada para “Os melhores conselhos do mundo” by
MeninoDoRio.
Gostaria de dizer que meu plano era não ter planos e deixar
a vida me levar por uns dias, mas tenho algo importante que
preciso terminar. Então, além de descansar e curtir muito a
minha avó, vou me dedicar a esse projeto.
Se eu pudesse escolher, um dia no Spa seria incrível. Daria
tudo por uma massagem completa e longa. Ainda mais depois
dessas muitas horas sentada no ônibus.
De: MeninoDoRio
Lá vem você de novo com esses mistérios. Às vezes, me
pergunto se faz de propósito para me manter interessado. Vou
te contar um segredo nada secreto: está funcionando. Quanto
tempo mais preciso esperar para ter essas informações na
minha mesa?
Massagem, é? Já te disse que sou ótimo nisso? Adoraria te
mostrar. ;)
Ao ler a última frase, pude sentir meu rosto quente. Com certeza,
eu estava muito vermelha, e o rubor era um misto de vergonha e
excitação. Só de imaginar aquelas mãos, que eu presumi serem
grandes, deslizando pelo meu corpo lentamente, o fluxo sanguíneo
do meu corpo estava se concentrando no meu ponto de prazer.
Cruzei as pernas, desejando ser tocada.
Fazia tanto tempo…
De: PlusStylistRJ
Na sua mesa?
É, meu caro, parece que essa vida CEO trainee contaminou
você.
Não vou recusar a massagem, pelo contrário, vou anotar no
meu caderninho na lista de coisas que você me deve caso um
dia nos encontremos.
De: MeninoDoRio
Pagarei com todo prazer...
l
Comecei o dia seguinte com um café da manhã maravilhoso. Nem
conseguia lembrar a última vez que havia comido tão bem. Decidi
sentar na varanda para trabalhar no croqui do concurso enquanto
minha avó estava relaxando na cadeira de balanço. Tentei esvaziar
a cabeça de preocupações, fixando minha atenção nos detalhes do
jardim, para dar espaço à criatividade. Comecei a rabiscar no papel,
mas não estava conseguindo evoluir. Parecia faltar algo, eu só não
sabia o quê. Foi impossível não me sentir frustrada, afinal, o prazo
estava terminando e eu depositava todas as minhas esperanças
naquele concurso.
Parei um pouco para respirar e decidi mandar uma carta. Sei que
ele não poderia fazer nada para me ajudar, mas já tinha se tornado
um hábito gostoso compartilhar coisas da minha vida.
De: PlusStylistRJ
Oi, como estão as coisas por aí?
Estou com um bloqueio criativo terrível e não sei o que fazer
para me livrar dele, mas preciso que vá embora antes de eu
voltar para a minha rotina.
No mais, está uma delícia poder passar um tempo em um
ambiente tão familiar e aconchegante.
De: MeninoDoRio
Por aqui está tudo bem, exceto que a cidade fica triste sem a
sua presença.
Bloqueios criativos são uma merda! E geralmente acontecem
quando mais precisamos de criatividade. Como se não
bastasse toda a pressão que já temos…
Posso dar uma pesquisada em técnicas para ajudar e te
envio uma lista. Espero que dê tempo.
De: PlusStylistRJ
Ei, acho que não vou precisar mais daquela lista, vovó
acabou de me salvar!
Preciso voltar a trabalhar imediatamente para não perder a
inspiração.
Beijos
Gustavo
De:MeninoDoRio
Uau! Essa foi rápida!
Ainda não tinha acabado de levantar a lista de sugestões,
mas vou deixar salva caso um dia precise, torcendo para ela
nunca ser usada.
Você sabe que sou curioso, então, me conta: como
conseguiu?
De: PlusStylistRJ
Um pouco de mistério cai bem, sabia?
É claro que vou te contar!
Vovó apareceu com uma foto antiga dos meus pais, não
podia ser mais inspirador. E também me deixou muito
saudosa. Crescer sem eles foi difícil, mesmo que a minha avó
tenha feito de tudo por mim. Mesmo assim, queria ter ouvido a
risada de mamãe, ter pegado no sono no colo de papai. Pode
parecer pouco, mas nunca tive nada disso.
É engraçado como nossa conversa parece ter atingido um
nívelde intimidade a ponto de parecer estranho não te chamar
pelo nome, mas, por favor, não me diga. Eu não quero saber,
pelo menos não ainda, informação alguma para ajudar a te
identificar. Sei que já disse isso, mas é bom reforçar. E, sem
querer, comecei a rimar. De novo.
Preciso muito te agradecer, de verdade, pelo seu incentivo
para essa viagem acontecer. Foi de longe a melhor decisão
que eu poderia ter tomado nesse momento.
Beijos.
De: MeninoDoRio
Nem conheço a sua avó, mas já sou fã!
Só não mando beijos porque imagino você tentando explicar
de onde eu saí. Por aqui, não tenho nada muito novo, além do
fato que ando trabalhando bastante.
Contrariando as minhas expectativas, e para deleite do meu
velho, até que eu estou gostando. A causa que me fez aceitar
o trabalho me motiva.
Concordo sobre a intimidade que estamos criando aqui, sinto
como se pudesse te contar qualquer coisa a meu respeito.
Gostaria de poder te dizer o meu nome tanto quanto gostaria
de saber o seu, mas entendo perfeitamente as suas
condições. Ainda tenho esperanças no seu “Quemsabe um
dia”.Pois é, eu não vou esquecer. Mas, mesmo que nunca
cheguemos a nos conhecer, aprecio cada linha, palavra e letra
trocadas até agora. Eu não mudaria nada, nenhuma vírgula.
Sabia que ela estava dividindo seu tempo, empenhada em algum
tipo de projeto enquanto tentava descansar e curtir a companhia da
avó ao mesmo tempo, então por mais que quisesse falar com ela o
dia todo, essa estava bem longe de ser a realidade. Só me restava
aguardar pacientemente pelas respostas. Não queria ser aquele tipo
de pessoa que manda ٣٥٧ notificações para chamar atenção, até a
pessoa responder.
Na real, eu daria tudo para trocar algumas de nossas cartas por
longas ligações e finalmente poder ouvir a voz dela. Eu amava
nossas correspondências. Ao mesmo tempo, queria mais, precisava
de mais.
“Acho que vou enlouquecer!”
l
De: PlusStylistRJ
Estou voltando para a Cidade Maravilhosa…
Gostaria de poder falar isso com um pouco mais de
empolgação, mas, devido ao histórico que você já conhece,
fica impossível afirmar esse tipo de coisa. Agora, vamos à
parte boa!
Depois daquela injeção de incentivo e motivação vinda da
minha avó, e indiretamente dos mais pais, consegui terminar
um projeto muito importante. Eu até te contaria do que se
trata, mas precisaria te matar depois. Brincadeira clichê, eu
sei. Só prefiro não falar, pelo menos não até tudo estar
concretizado. Pode chamar de superstição, mas precaução
nunca me fez mal.
É claro que eu passei um bom tempo revirando álbuns de
fotografia antigos e relembrando momentos gostosos da
minha infância. Ponderei muito se deveria te enviar ou não,
mas segue uma foto minha de quando era bebê. Uma fofura,
eu sei!
Confesso que estou feliz por ter esbarrado contigo nesse
aplicativo. E saber que tem alguém aído outro lado disposto a
me ouvir, torcer por mim e a trocar ideias e experiências, até
mesmo bons conselhos, aquece meu coração.
Eu te daria um abraço nesse exato momento, se eu pudesse.
Então, usarei a sua técnica: ao ler isso, me imagine te
abraçando e sinta o meu carinho por ti.
Até!
Alice
De: MeninoDoRio
Oi!
Que bebê mais lindo você foi! Aposto que a mulher que se
tornou também é.
Nem consigo descrever o quanto foi bom receber a sua
última carta. Você é tão doce, esforçada, preocupada com o
próximo — a ponto de colocar outras pessoas à frente das
suas prioridades — e tem os melhores conselhos do mundo.
Sim, vou deixar você levar esse título.E sabe o mais doido de
tudo? Você ainda está aí do outro lado, depois de todo esse
tempo.
O seu abraço virtual foi o melhor dos recebidos nos últimos
tempos, inclusive superando muitos presenciais. Fico
imaginando como deve ser seu cheiro, a textura do seu
cabelo, a cor dos seus olhos e o seu sorriso. Tento não criar
uma imagem, para ser surpreendido caso um dia nos
vejamos, mas a sua essência é tão pura e bonita que é
impossível eu não te achar linda, não importa como você
aparente.
Apesar de tentar evitar, provavelmente falei até mais do que
deveria. Por favor, não fuja!
Beijos, querida!
“Ah,MeninoDoRio… Você nem imagina o quanto eu estava
precisando de uma carta como essa.”
Eu me apoiei na bancada do banheiro e, mesmo correndo o risco
de me atrasar para a próxima aula, comecei a digitar uma resposta.
De: PlusStylistRJ
Olha, parece que temos um cara fofo aí do outro lado!
Fiquei um pouco chocada que você tenha observado tudo
isso sobre mim e feliz por ter causado uma boa impressão.
Você é um cara divertido e parece que está se encontrando.
Nas últimas trocas de mensagens, consigo te sentir mais leve
do que quando nos conhecemos.
Falando em diversão, preciso te contar algo que me
aconteceu hoje. Não foi engraçado para mim, mas acho que
você vai rir. Acredita que eu praticamente dormi na aula? Mas
não termina por aí! Não sei se meus colegas viram, mas fui
chamada para conversar com o professor depois da aula.
Nunca passei por isso em todo o meu histórico escolar.
Parece que estou acabando com a minha reputação de aluna
exemplar.
Agora, preciso ir. Minha próxima aula já vai começar e, dessa
vez, vou ficar acordada.
De: MeninoDoRio
Quem nunca dormiu na aula que atire a primeira pedra!
Acredite em mim: daqui a pouco, todo mundo já esqueceu. É
só acontecer algo que vire o novo assunto mais comentado.
Você deve ser uma graça dormindo, queria ter visto isso.
Quando finalmente as aulas do dia acabaram, já estava me
arrastando. Agradeci mentalmente por esse ser um dos dias
premiados pela carona com Inês de volta para casa. Eu estava
sonhando com o final do dia, ou melhor, do expediente. Deixaria
todas as tarefas pendentes de lado para depois e me jogaria na
cama.
— Amiga, você precisa dormir com urgência. Quando for assim,
pede uma folga. Você deve ter banco de horas suficiente para tirar
um ano de férias, se quiser. — Ou Inês era muito observadora ou eu
estava mesmo com a aparência terrível.
— Se eu não precisasse tanto poupar a pouca energia restante,
daria uma gargalhada com potencial para ser ouvida a quilômetros
de distância. Pedir folga para a sua mãe? — Dei uma risada fraca,
já que era o máximo que conseguia naquele momento. — Caso
acontecesse o milagre de ela liberar, eu seria cobrada por isso pelo
resto da vida. Prefiro evitar o estresse. Na verdade, tenho que
levantar as mãos para o céu se ela não me colocar para trabalhar
no feriado. — Eu me acomodei no banco e coloquei o cinto,
pensando em como seria bom tirar um cochilo restaurador caso o
trajeto não fosse tão curto.
Antes que eu pudesse sequer fechar os olhos, muitas notificações
pipocaram na tela. No meio delas, uma me chamou a atenção.
— Que cara é essa, Alice? — Inês percebeu a mudança no meu
semblante. — Tá pior do que minutos atrás, se é que isso é
possível. Viu algum fantasma? — soou preocupada.
— Eu não acredito! — Arregalei os olhos por puro choque e
segurei o celular com uma mão enquanto a outra cobria a boca.
— Alguém morreu? Pelo amor de Deus, fala logo! Eu tô dirigindo,
não posso passar nervoso. — Inês, que costumava ser até
estranhamente calma na maioria das situações, estava começando
a ficar em pânico.
— Não, desculpa. É que eu acabei de saber que fui uma das
quinze pessoas selecionadas para a segunda etapa do concurso —
compartilhei a boa notíciaainda sem acreditar, os olhos fixos na tela
do celular.
— O concurso da Vestindo Estilo?
— Sim!
— Aaah, eu sabia! — ela soltou em um grito. — Eu te disse! Eu te
disse! Que notíciaincrível!— Sem tirar as mãos do volante, Inês fez
uma espécie de dancinha, mexendo os ombros. — Amiga, eu tô
toda arrepiada, isso só pode ser um ótimo sinal.
— Vamos com calma, ainda tem muita água para rolar. — Ri com
a empolgação dela. — Mas estou tão feliz só por estar entre os
quinze, depois de competir com tantos inscritos. A sensação é de ter
valido a pena tudo o que passei nesses últimos anos, só para estar
vivendo isso. — Fechei os olhos por alguns segundos e a
visualização dos meus sonhos se realizando ficou mais nítida do
que nunca. — Isso merece uma comemoração. — Acabei me
empolgando.
— Concordo. Vou parar em algum lugar no caminho, acho que dá
tempo para uma bebida rápida.
Inês estacionou próximo a uma cafeteria do bairro e fomos
recebidas por um atendente simpático.
— O que você recomenda? — perguntei.
— Com esse calor, o que está saindo muito são os cappuccinos
gelados.
— Infelizmente, não consigo beber nada que tenha café e gelo na
mesma composição — Inês declarou. — O que mais você tem aí?
— A especialidade da casa são as bebidas red velvet. Temos
milkshake e soda italiana.
— Ótimo, vou querer uma soda de red velvet. Chocada que isso
existe.
— E eu vou querer o milkshake. — Salivei só de pensar.
As bebidas ficaram prontas bem rápido e eu não fazia ideia do
quanto estava precisando disso. Antes de beber, lembrei de
fotografar e achei que seria ótimo poder compartilhar com um certo
alguém. Afinal, além de uma delícia, a bebida era muito bonita e eu
tinha motivos para celebrar.
De: PlusStylistRJ
Recebi uma ótima notícia!
Brinda comigo?
De: MeninoDoRio
Sempre!
Coisa boa, é?
Não se preocupe, é uma pergunta retórica. Sei que você
ainda não pode falar do que se trata. Ansioso para chegar o
dia em que tudo vai ser revelado.
l
A minha tarde estava parecendo calma demais para os padrões,
mas logo isso mudou de figura.
Inês:
Amiga, tá sabendo de algo que minha mãe
anda aprontando?
Alice:
Além do de sempre? Não que eu tenha notado.
Inês:
Ah, alguma coisa deve ter. Tem uma
funcionária da confecção montando
acampamento aqui. Eu tentei ver se descobria
algo, mas minha mãe parece um cão farejador
e se materializa perto da porta toda vez que eu
me aproximo.
Alice:
Isso só pode significar uma coisa: sua irmã
deve ter recebido o mesmo e-mail que eu.
Inês:
Mas que merda! Desculpe ser o presságio de
más notícias.
Alice:
Tudo bem, pelo menos agora posso preparar
meu psicológico para esbarrar com ela no
evento. Obrigada por me avisar.
l
Não foi nenhuma surpresa quando Iolanda me deixou tarefas para
o feriado no pior momento possível. Quando me inscrevi no
concurso e li o regulamento, a ficha não havia caído sobre ter que,
sozinha, produzir a roupa para o evento no meio da minha agenda
já tão cheia de tarefas. Mas eu usaria todo e qualquer tempo
disponível, mesmo significando abrir mão de coisas importantes,
como algumas horas de sono e escrever certas cartas. Mas era por
pouco tempo e eu esperava que valesse a pena.
De: PlusStylistRJ
Olá, meu querido, e já íntimo, desconhecido. Falta menos do
que faltava! O prazo vai depender dos resultados. Enquanto
isso, tenho duas notícias:uma boa e uma nem tão boa assim.
Eu perguntaria qual você quer primeiro, porém, como
demoraria um pouco para a resposta chegar, eu mesma tomei
a liberdade de escolher começar com a boa.
Estou muito, muito, muito empolgada sobre algo importante
ter dado certo. Essa pode ser a chance da minha vida e
pretendo agarrá-la com unhas e dentes. Ou será que eu
deveria dizer agulhas e linhas? Provavelmente, despertei sua
curiosidade e sinto não poder dar mais informações a respeito
no momento, mas é por um bom motivo. Só peço: torça muito
por mim.
Por conta dessa boa notícia, vem a nem tão boa: pode ser
que eu demore um pouco mais para responder. Já peço
desculpas de antemão, e não pense que estou fugindo de
novo ou te deixando de lado, não é o caso, de verdade. Você
se tornou uma parte muito importante da minha vida para ser
esquecido dessa forma.
O tempo tem passado rápido, você percebeu ou fui só eu?
Então, logo estarei de volta na frequência de costume ou até
com um upgrade.
Beijos e abraços afetuosos!
23
Gustavo
De: MeninoDoRio
Parece que estamos sincronizados.
Nem venha falar de correria para mim, provavelmente as
coisas por aqui vão ficar insanas também. Um grande
momento se aproxima e já estou sentindo o frio na barriga.
Espero ver coisas boas surgindo disso.
Até!
De: PlusStylistRJ
Boa sorte para nós!
l
Como eu havia imaginado, os dias que se seguiram foram mesmo
de muita correria. Leandro merecia um certificado de anjo da
guarda, já que estava me ajudando com cada detalhe da
organização. Parece que quanto mais coisas você tem para fazer e
maior a importância delas, o tempo resolve acelerar de forma
proporcional.
Eu andava trabalhando até tarde e estava tão cansado que a
troca de cartas andava se resumindo a básicos “Oi,tudo bem?”,
para checar se o outro ainda estava vivo, e a comentários de coisas
aleatórias que aconteciam no dia. Não via a hora de poder voltar
para os textos longos e profundos.
E foi essa saudade que me fez pensar na importância crescente
que a PlusStylistRJestava ganhando na minha vida. Era impossível
passar o dia sem sonhar com o momento que poderia voltar a
conversar com ela. Se eu pudesse, largava tudo e me concentrava
na mulher do outro lado das cartas, porque ela merecia cada
segundo da minha atenção.
“Oque você está fazendo comigo?”,pensei sozinho enquanto
tirava dois minutos do dia para respirar. Olhando a vista que a
enorme janela de vidro proporcionava, não conseguia parar de
pensar nela. O que estaria fazendo agora?
Assim como eu, PlusStylistRJtambém estava muito ocupada com
algo bom que estava para acontecer. É claro que minha mente logo
me levou a desejar que esse “algobom”estivesse relacionado ao
concurso da Vestindo Estilo. Afinal, ela me deu a notícia no mesmo
dia que os resultados saíram.
Poderia ser apenas a esperança de um tolo, mas lá estava eu,
sonhando em encontrá-la na festa. É claro que não nos
reconheceríamos, mas meu coração acelerou só de imaginar que
estaríamos no mesmo lugar.
Quem sabe um dia…
l
Finalmente tinha chegado o dia mais importante para mim desde
que comecei a trabalhar no concurso da Vestindo Estilo. Esse
evento iria definir se minha atuação estava sendo um sucesso ou
fracasso total.
Eu não tinha influência alguma sobre as decisões dos juízes e
ficava sabendo dos resultados junto com a equipe que publicava no
site. Cheguei a procurar o nome dela no meio dos selecionados, ou
mesmo o pseudônimo, só que apenas os números de inscrição
foram revelados — para o meu desespero.
Naquele dia, acordei muito cedo e fui para o local do evento junto
com Leandro. Diferente do estagiário, que estava tranquilo até
demais, eu não parava de andar de um lado para o outro, conferindo
cada detalhe. Cheguei até a arrumar alguns arranjos, que pareciam
milímetros fora do centro.
Estava longe de ser um cara perfeccionista, mas apesar de não
pretender assumir a responsabilidade de gerir a empresa da família,
não queria prejudicar todas as pessoas envolvidas nesse concurso
— nem decepcionar o meu pai. Ele apostava tanto as suas
expectativas em mim… Sem contar o fato de que, se algo desse
errado, acabaria causando danos à imagem da Vestindo Estilo, e
todo mundo sabe que imagem é algo muito importante.
Eu podia não querer ser o CEO da empresa, mas ela havia sido
fundada pelo meu avô, estava na família há anos e era a nossa
fonte de renda. Impossível não ter uma ligação emocional. Eu tinha
carinho por esse legado.
Apesar das preocupações — um pouco exageradas da minha
parte, admito —, tudo parecia estar correndo perfeitamente como o
planejado, e Leandro até estava achando graça do meu
comportamento. Em algumas horas, tudo estaria pronto e belos
trajes desfilariam pelo salão.
24
Alice
Alice
Gustavo
“
Uau!”
, foi a primeira coisa que pensei assim que a avistei
do outro lado do salão. Não sei se era a iluminação do local ou se
ela tinha alguma espécie de brilho próprio, o fato é que eu não
consegui desviar o olhar. Já nem lembrava o que estava fazendo,
mas de uma coisa eu tinha certeza: precisava saber quem ela era.
— Gustavo, venha, quero te apresentar a um dos nossos maiores
fornecedores. — Meu pai apareceu no momento que ela
interrompeu o contato visual e me arrastou, sem que eu tivesse
tempo de reagir.
“Teve a festa toda para me apresentar a metade dos convidados,
precisava ser agora?”
Continuei andando a contragosto, tentando observar o caminho
para não esbarrar em ninguém e, ao mesmo tempo, verificar se ela
ainda se encontrava no mesmo lugar, mas foi impossível não a
perder de vista, tamanha a circulação de pessoas.
— Borges, esse é meu filho Gustavo. — Paramos em frente a um
homem que parecia bons anos mais novo que meu pai.
— Ah, então esse é o famoso Gustavo. Não param de falar de
você e desse concurso, meu jovem. — O homem sorriu de forma
amigável.
— Espero que coisas boas — tentei interagir.
— Até o momento, sim. — Borges levantou o copo de uísque,
como se fizesse um brinde.
— É ótimo saber disso. Agora, se me derem licença, preciso
verificar algumas coisas do evento. Foi um prazer! — Fiz um
cumprimento de cabeça e saí dali o mais rápido que consegui.
Eu não havia mentido, afinal, procurar aquela convidada era um
assunto do evento.
Fiz o caminho inverso, mas óbvio que ela não estaria parada no
mesmo lugar. Comecei a andar pelo salão, meus olhos
desesperados para encontrá-la, enquanto fingia ser apenas um bom
anfitrião.
Foi então que eu a vi e parei de respirar por alguns segundos.
Ok, era uma mulher de costas, mas aquelas belas curvas e o
vestido eram inconfundíveis, até para quem viu com uns bons
metros de distância. Eu me aproximei, com medo de perdê-la de
vista novamente, e encerrei os passos quando estávamos a apenas
um metro de distância, pensando em como abordá-la. Não foi
preciso. Como se tivesse sentido minha presença, ela se virou e eu
falei a primeira coisa que me veio à cabeça assim que escutei a
música lenta:
— Dança comigo?
Por sorte, ela aceitou meu convite ou eu teria ficado sem jeito,
com a mão estendida no meio da pista.
Quando sua mão tocou a minha e ficamos ainda mais próximos
por conta da música, me senti mais vivo do que há muito tempo não
vinha sentindo. Algumas pessoas olhavam curiosas para nós, mas,
depois de um tempo, outros pares se juntaram nessa dança lenta.
Torci mentalmente para que a música se estendesse bem além dos
seus três minutos e quarenta e dois segundos. Sabendo que não
era possível, aproveitei cada instante em que nossos corpos
estavam colados, embalados na canção.
A proximidade me permitiu sentir o perfume floral que ela
emanava e a moça mexeu comigo de uma forma que eu não sabia
explicar. Eu estava inebriado, hipnotizado, e apenas me deixei levar
pelo momento. Por alguns instantes, até esqueci da minha
correspondente, a mulher que vinha ocupando meus pensamentos.
“Nãoé como se eu estivesse traindo alguém. E eu nem sei se ela
um dia vai querer me encontrar. Não posso deixar de viver,
esperando que ela se decida”,tentei argumentar comigo mesmo,
mas a verdade era que eu me sentia confuso.
Optei por não pensar muito — ao menos só aquela noite. Estava
nítidoque eu me sentia atraído pela minha parceira de dança. Tinha
algo nela que chamava a minha atenção. Uma estranha sensação
de conhecer uma pessoa que eu nunca vi me dominou. Quando
chegou aos momentos finais da transição de uma música para a
outra, eu não queria me separar dela, que também parecia inebriada
pelo momento. “É agora ou nunca!”
— Seria estranho se eu te convidasse para conversar em um local
com menos observadores? — Fiquei com medo de perguntar e
causar uma situação desagradável, mas algo me dizia para não
perder a oportunidade.
— Bem provável que sim, mas considerando a ocasião, vamos
apenas fingir que não. — No primeiro momento, ela pareceu
surpresa com minha ousadia, mas fiquei empolgado com a resposta
positiva.
— Então, vem comigo…
Para onde, eu não sabia. Só queria poder me livrar de toda essa
gente e barulho e me concentrar apenas nela.
— Alice. — Ela estendeu a mão direita.
— Gustavo. — Segurei a mão oferecida e, como um cavalheiro à
moda antiga, depositei um beijo.
Sem pensar muito a respeito, continuei segurando a mão dela e a
conduzi pelo salão. Fizemos o pequeno trajeto em silêncio até uma
área parcialmente oculta em que foi colocado um dos bancos para
duas pessoas.
“Preciso agradecer a quem teve essa brilhante ideia.”.
— Eu teria entendido se dissesse não, mas obrigado por aceitar
meu convite — disse enquanto nos sentávamos, bastante próximos
devido ao espaço disponível.
— Na minha visão, esse evento pode ser considerado como local
público. Então devo estar segura. — Ela parecia se divertir com a
situação.
— Tem razão. Muitas testemunhas, além dos seguranças. —
Embarquei na ideia.
— Tudo friamente calculado. — Rimos juntos. Ela ficava ainda
mais linda quando sorria. — Brincadeiras à parte, por que me trouxe
aqui? — Uma Alice curiosa me olhava.
— Bem… — hesitei um pouco antes de prosseguir. Eu não tinha
pensado sobre isso, então achei melhor ser o mais sincero que
consegui sem assustá-la:— Pode parecer estranha a minha falta de
explicação, mas a verdade é que eu não sei. Não estava pronto
para te deixar ir, sem saber nada sobre você.
— Agora eu fiquei sem palavras. — Ela desviou o olhar. — Não
sei se colocaria dessa forma, mas senti algo parecido. — Tive
dúvidas se ela ruborizou ou se a iluminação deu essa impressão.
Senti a empolgação crescer dentro de mim com as últimas
palavras de Alice. A ideia original era conversar e conhecê-la um
pouco melhor, mas parecia que nenhum de nós estava conseguindo
encontrar as palavras. Cogitei observar os detalhes da mulher à
minha frente, mas quando meus olhos se depararam com aquela
boca, ficou difícil pensar em qualquer outra coisa a não ser beijá-la.
Era como se um imã nos atraísse, e vê-la entreabrir os lábios
enquanto mantinha o contato visual foi a deixa que me levou a
chegar ainda perto. Nos últimos centímetros que nos separavam,
dei espaço para a moça se afastar, caso eu estivesse sendo
invasivo demais.
Estava me sentindo de volta à adolescência, meu coração
acelerando em expectativa. E quando ela começou a vir em minha
direção, ao invés de se afastar, meu corpo inteiro gritou em alívio.O
espaço que nos separava era quase inexistente. Fechamos os olhos
e o calor emanado entre nós foi o que nos guiou. Faltavam apenas
alguns milímetros para nossos lábios se tocarem e eu não
conseguia pensar em nada além do beijo que estava prestes a dar,
até ouvir passos se aproximando. Como se o encanto tivesse sido
quebrado, nos afastamos.
Um silêncio constrangedor se instalou por alguns instantes. Algum
desconhecido passou pelo local sem notar a nossa presença, e só
então percebi que estávamos prendendo a respiração. Trocamos
um olhar de cumplicidade.
— Seu vestido está incrível! — Tentei descontrair. Mesmo ainda
não entendendo tanto de moda, era impossível não notar a beleza
daquela peça.
— Feito por mim. — Seus olhos brilharam e um lindo sorriso
preencheu seu rosto.
— Sério? Você deveria estar participando do con… Espera, você
é uma semifinalista? — Eu não sabia se estava surpreso ou
empolgado, como uma criança que acaba de descobrir o brinquedo
que vem no ovo de chocolate.
— Sim! Eu ainda nem acredito nessa oportunidade. E parece que
me saí bem, já que você achou meu vestido bom o suficiente para
ser considerado uma das peças do concurso, mesmo sem eu ter
contado.
— Que incrível! Ainda não conheci nenhum dos outros
selecionados.
— Eu também não, pelo menos não que eu percebesse. Os
convidados capricharam no visual.
— Olhando por esse ângulo, então eu posso ter conhecido algum
deles sem saber. — Estávamos nos divertindo com a coincidência.
Parecia que a conversa planejada inicialmente aconteceu, afinal. —
A propósito, belo trabalho. Você se importaria de me mostrar mais
peças?
— Bom, até tenho, mas não estou com as fotos aqui.
— Uma pena, confesso que estou curioso.
— Ah! Não me pergunte o motivo, mas eu trouxe o croqui desse
aqui, posso lhe mostrar. — Ela abriu a pequena bolsa, retirou um
papel dobrado, que em algum momento devia estar em melhores
condições, e me entregou. — Essa é a minha assinatura especial.
— Apontou para um broche de tulipa que estava no vestido e no
croqui.
Antes que eu tivesse a chance de olhar muito além do detalhe
apontado, barulhos que pareciam tiros foram ouvidos e tudo ficou
escuro. Gritos seguiram a falta de iluminação e senti quando Alice
se levantou, também assustada.
“Estava tudo indo bem demais…”
— Eu preciso ver o que aconteceu. Me espera? — A escuridão
era tanta que não consegui ver onde ela estava. Antes que Alice
tivesse a chance de responder, os convidados começaram a se
agitar e pareciam desesperados para tentar encontrar a saída.
Sons se passos acelerados se juntaram aos gritos, e foi então que
meu celular começou a chamar.
“Nãoentrem em pânico.”,é o que sempre dizem, mas na prática
ninguém escuta.
— Leandro, já sabe o que aconteceu? — quis saber. Ele parecia
tão calmo que eu cheguei a duvidar que estávamos no mesmo local
e me explicou que havia sido um problema com o transformador. —
Menos mal. Já estou a caminho.
Encerrei a ligação e apontei a tela na direção de onde Alice
estava, usando a luz fraca para tentar encontrá-la. Mas não tinha
ninguém ao meu lado.
— Alice?! — chamei, o som da minha voz sendo abafado pelo
barulho feito por todo aquele tumulto.
Sem ter resposta de Alice, tive que deixar o local, pois era um dos
principais responsáveis por tudo que acontecia e precisava ajudar a
conter os danos. Liguei a luz da lanterna, que não era de muita
serventia, mas ainda era melhor que nada, e com muito custo
consegui atravessar o salão. Enquanto andava, também procurava
por ela. Antes que eu encontrasse Leandro, as luzes se acenderam
e precisei fechar os olhos por um momento para depois abri-los
lentamente, me acostumando à claridade. A luz forte substituiu a
iluminação fraca, que estava sendo usada para criar um clima mais
intimista, e me dei conta de ainda estar segurando o papel que
pertencia a Alice.
Primeiro, foquei direto no detalhe especial, mencionado pela
moça como algo criado para identificá-la, depois admirei os traços e
particularidades da peça criada por ela. Por último, meus olhos
caíram sobre a assinatura com o pseudônimo utilizado para a
inscrição no concurso.
— Não posso acreditar! — Perplexo, li mais algumas vezes para
ter certeza de que não tinha algo de diferente, uma letra ao menos,
mas era exatamente igual. PlusStylistRJestava escrito naquele
papel.
É ela!
A euforia tomou conta. Finalmente pude conhecer a mulher que
vinha roubando cada vez mais espaço em meus pensamentos e que
havia deixado bem claro não querer se identificar. E pensar que, por
um momento, tive um certo peso na consciência por estar
interessado em “outra”. Mas agora eu sabia quem ela era, apesar de
Alice não fazer ideia de ter me conhecido, ou melhor, conhecido o
MeninoDoRio.
A alegria desapareceu quando percebi não ter trocado telefone ou
meio de contato e comecei a me questionar se foi sorte ou azar.
Uma sensação de impotência tomou conta de mim.
“Elaestava tão perto… O que eu faço agora?”,pensei sozinho,
ainda olhando embasbacado para o papel nas minhas mãos.
Eu podia mencionar o acontecido em uma das cartas, mas tinha
medo de que ela parasse de me escrever quando soubesse a
verdade.
Alice estava inscrita no concurso, mas eu não podia burlar o sigilo
dos candidatos nem mexer os pauzinhos para encontrá-la. Isso
acabaria com a imagem da empresa e com as chances da garota. O
fato de eu saber quem era ela, por si só, já não seria bem-visto, mas
como o júri não fazia parte do quadro de funcionários da Vestindo
Estilo, eu não teria acesso a nada, muito menos sobre a decisão do
vencedor. Só me restava torcer para eles verem o mesmo talento
que eu vi.
Apesar do imenso desejo de revê-la, não era como se eu
soubesse a melhor forma de agir quando a encontrasse de novo,
porque, no fundo, tinha esperanças de que isso acontecesse. Um
cara podia sonhar, não é?
O meu pensamento caiu sobre as cartas trocadas até aquele
momento. Como ia continuar me correspondendo sem acabar
entregando que já nos conhecíamos? Todo cuidado era pouco.
27
Alice
Gustavo
De: PlusStylistRJ
Olá!
Acho que agora já consigo me comunicar com mais
frequência, como nos “velhos tempos”. Senti falta de
conversar contigo.
Acredita que minha chefe destruiu o projeto mais importante
da minha vida? Eu achei que tudo estava acabado, mas tive
uma ajuda muito especial e uma das noites mais incríveis de
todos os tempos.
Sei que isso vai soar contraditório, mas queria que você
tivesse me visto usando o vestido que criei em homenagem à
minha mãe.
De: MeninoDoRio
Olá, minha doce e querida PlusStylistRJ!
Que bom que voltamos à programação normal.
Mesmo que a nossa comunicação esteja um pouco fora do
comum, quero dizer que estive pensando em você a cada dia
que se passou, sem exceção. E, se eu não lhe escrevi muitas
coisas, estive te escrevendo na minha mente. Quase posso
formar diálogos na minha cabeça e é uma boa forma de me
sentir perto, mesmo longe. Quer dizer, será que estamos tão
longe assim?
Sinto muito que tenha que aturar uma bruxa como chefe, e
você nem faz ideia do quanto sou grato por essa alma
bondosa que ajudou você.
Não precisaria ver seu vestido para saber que você era a
mais linda, onde quer que estivesse.
Gosto demais de você.
Até!
De: PlusStylistRJ
Olá, meu caro!
É impressão minha ou tem algo estranho acontecendo aqui?
Não sei dizer, mas tinha um tom diferente na sua última carta.
Caso queira compartilhar, coloco meus ouvidos — ou, no
caso, os olhos — à disposição. E os dedos também, para
responder sobre qualquer assunto.
Depois de tanta correria, espero ter uns momentos de
refresco pelos próximos dias, mas nem gosto de comemorar
antes da hora, porque se eu te contasse… Nossa, acontece
de um tudo.
Fui eu a propor não nos revelarmos um ao outro, mas talvez
pequenas migalhas de informação poderiam ser bem
interessantes. Aqui vão algumas sobre mim, pois mesmo não
tendo perguntado, acho que gostaria de saber:
Acredito em astrologia você deveria me passar sua data e
hora de nascimento para eu poder ver seu mapa astral em
algum site gratuito e analisar se podemos continuar sendo
amigos. Talvez fosse uma boa ideia ter feito isso no início.
Tarde demais… Brincadeira! Não vou fazer seu mapa astral,
nem precisa dizer seu signo, eu também não vou dizer o meu.
Eu amo morangos, desenhar (especialmente roupas, mas
isso você já deve ter percebido) e uma boa leitura. Acho que
nem preciso dizer o quanto amo animais, especialmente
gatos, mas é sempre bom reforçar. E o restante você vai
descobrindo aos poucos, se continuar aí do outro lado.
Espero ansiosa para saber as suas também. Fique à vontade
para mandar uma lista enorme. ;)
Beijinhos!
De: MeninoDoRio
Estranho, eu? Deve ser impressão sua. Ando trabalhando
demais, talvez seja isso. Sinto até vergonha de confessar uma
coisa dessas para alguém como você, tão batalhadora, mas
não estava muito acostumado.
Adorei as curiosidades, devíamos ter feito isso há mais
tempo. Não sei se terá tantos itens quanto esperava, mas aqui
vão as minhas:
* Também amo animais;
* Assistir séries;
* Tenho zero habilidade em esportes com bola, mas posso
dizer que sou um esgrimista acima da média;
* Adoro locais com água;
* Sou filho único;
* Ainda moro com meus pais.
Até mais!
29
Alice
De: PlusStylistRJ
Oi...
Você acredita que o meu gato favorito do abrigo está doente?
Não sabemos ainda o que ele tem, mas parece grave. Estou
tão preocupada. Não entendo o motivo de animais ficarem
doentes e sofrerem, eles são tão bondosos, não mereciam
passar por isso.
Sei que não estou falando coisas com muito sentido, mas me
sinto tão impotente nesse momento. Se eu o tivesse adotado,
será que estaria bem agora?
Espero que ele fique bem.
De: MeninoDoRio
Sinto muito que você e ele estejam passando por esse
momento terrível. Queria poder segurar sua mão e dizer que
vai ficar tudo bem, mas eu não posso prometer nada sobre a
segunda parte, apenas torcer.
Me enlouquece não poder estar perto nesses momentos.
l
Quando chegou a manhã seguinte, eu tentei me concentrar nas
aulas, mas minha cabeça estava no gatinho internado. A última
atualização, recebida na noite anterior, ainda não tinha informações
de um diagnóstico do animal. Senti o celular vibrar no bolso traseiro
da calça e ignorei o que o professor falava, mesmo sem ter o
costume de mexer no aparelho durante as aulas.
Pâmela:
Alice, não vou ficar te enrolando. As notícias
não são boas.
Alice:
Ele morreu? :’(
Pâmela:
Não! Porém, está bem mal. As despesas dele
estão bem altas e vão precisar fazer alguns
procedimentos com urgência, mas precisam de
pagamento adiantado. Não vou entrar em
detalhe sobre os motivos. Eles concordaram
em segurar um pouco mais por conta da nossa
parceria. O problema é a falta de caixa no
momento. Não sei o que fazer.
Alice:
De quanto estamos falando?
Pâmela:
Ainda não sei o valor exato, mas não é muito
barato. Qualquer quantia ajuda muito.
Alice:
Vou dar um jeito.
A pessoa mais próxima que eu conhecia com dinheiro era
Iolanda, e nem precisaria ter bola de cristal para adivinhar que ela
torceria a cara para um pedido como esse. Infelizmente, a mãe
controlava as movimentações financeiras das filhas, então Inês não
era uma opção. Também não pediria dinheiro ao MeninoDoRio
quando nem o nome dele sabia.
“Onde eu vou conseguir doações tão rápido?”
Por sorte, estava sentada justamente do lado da aluna
representante da turma na comissão da formatura e, ao avistá-la,
tive uma ideia:
— Oi, Luísa. Será que pode me dar uma informação? —
Consegui a atenção da moça. — Se eu desistir de participar da
formatura, tem como pegar o dinheiro de volta? Em quanto tempo
ele ficaria disponível? — falei quase sussurrando para não
atrapalhar a aula.
— Sim, tem a possibilidade de desistência. De cabeça, eu não
lembro, mas tem uma multa. O valor está no contrato. Mas você tem
certeza de que vai desistir? — Luísa pareceu estranhar a conversa.
— Preciso do dinheiro com urgência. É literalmente uma questão
de vida ou morte. Vou ajudar um animalzinho doente.
— Tadinho! Eu vou mandar uma mensagem agora, que a
professora não veja, e ver como consigo ajudar.
— Obrigada.
Notei a Luísa digitar freneticamente no celular enquanto tentava
prestar atenção na aula e torci para a solução vir o mais rápido
possível. Quando terminou a aula, ela me procurou com a resposta:
— Tenho boas notícias. Eu expliquei a situação e eles enviaram
os papéis da rescisão do contrato para o seu e-mail preenchido no
cadastro. Você só precisa assinar e enviar de volta. Eles vão abrir
uma exceção e depositar o dinheiro, já com o desconto, assim que
receberem o documento.
— Nem sei como te agradecer. — Respirei com certo alívio. —
Vou correndo no setor de cópias imprimir isso e darei um jeito de
enviar agora mesmo.
— Espero que ele melhore.
— Eu também.
— Só tem um problema — ela voltou a falar. — Se desistir agora,
não vai ter como participar da formatura. O prazo para o último
pagamento é amanhã. — Luísa me ofereceu um sorriso triste, e o
peso do que estava prestes a fazer começou a bater com força.
— Não tem problema — respondi, resignada. — Nick só precisa
ficar bem.
Luísa me deu um abraço e, em um sussurro, repetiu que estava
torcendo para que ele ficasse logo bem.
A empresa realmente cumpriu com o prometido e o dinheiro ficou
disponível ainda naquele dia. Assim que recebi a notificação de
depósito no aplicativo do celular, fiz a transferência para Pâmela.
Eu estava tão preocupada com o estado de saúde de Nick que
um e-mail importante passou despercebido na minha caixa de
entrada. Só depois que resolvi a situação financeira do Nick é que
olhei meu telefone com mais atenção e reparei em uma notificação
não visualizada. “Comoeu pude esquecer que o resultado era
hoje?” Então, corri para abrir o e-mail.
Daria tudo para saber quem escrevia aqueles e-mails tão
divertidos e fora do convencional. Mas, caramba, eu estava na final!
Resolvi entrar no site só para admirar meu nome e minha peça entre
os finalistas, mesmo ninguém sabendo que era eu.
Quase cai para trás quando percebi o traje enviado por Ingrid
entre os três.
“Algo me diz que isso não é bom.”
Pâmela:
Oi, Alice. Eu de novo. Passando aqui para
avisar que o Nick está bem. Obrigada mesmo
pela ajuda. <3
Alice:
Ótima notícia! Descobriram qual era o problema
de saúde dele?
Pâmela:
Ele engoliu um objeto não identificado, que
acabou ficando preso no intestino, obstruindo a
passagem. Foi necessário fazer uma cirurgia
de emergência, mas disseram que ele tem tudo
para ficar bem.
Alice:
Ah, meu menino… Irei visitá-lo quando for
possível. <3
De: PlusStylistRJ
Trago boas notícias! O gatinho está se recuperando bem!
De: MeninoDoRio
Que ótima notícia, fico feliz por vocês dois!
30
Gustavo
De: MeninoDoRio
Estou vivendo um dia de CEO. Acho que preferia estar em
um daqueles programas de transformação, as chances de dar
merda são menores.
Agora sou eu que digo: torça por mim!
De: PlusStylistRJ
Está usando terno, sentado em uma cadeira e fazendo pose
de “quem manda aqui sou eu”?
De: MeninoDoRio
Claro, o chefe mais gato que já passou por aqui. ;)
De: PlusStylistRJ
Hummm... Parece interessante.
Vou ficar imaginando.
De: MeninoDoRio
Nem se eu tentasse com vontade, conseguiria imaginar o
caos que foi o dia de hoje.
Experimentei a parte ruim de ser CEO, mas me saímelhor do
que pensei. Estou orgulhoso.
Talvez a ideia de que isso não era para mim tenha caído por
terra. Tenho muito no que pensar, mas posso ter encontrado
uma direção.
31
Alice
l
Após dias muito corridos, finalmente consegui tempo para sentar
e trabalhar nos últimos detalhes da peça final para o concurso. O
prazo estava muito perto de vencer. Na verdade, só me restavam
algumas horas para subir o arquivo.
Quando me senti realmente satisfeita, coloquei o detalhe especial
— aquele com a minha marca — e estava pronta para assinar com
o pseudônimo quando Iolanda, mais uma vez, entrou nos
aposentos. Uma mania muito feia, diga-se de passagem.
— Olá, querida. Parabéns pela classificação na final — Iolanda
começou a falar toda simpática, como se não tivesse destruído o
meu vestido, e foi chegando cada vez mais perto de forma
sorrateira. — Mas parece que você não escutou o meu conselho de
amiga. Uma pena. — Ah, essa sim é a Iolanda cínica que eu
conheço.
Desde o acontecido, tentei ao máximo evitar a minha chefe. Como
tinha muito trabalho a fazer, não foi tão difícil assim. Passei todo o
meu tempo na frente da máquina de costura ou então na faculdade.
— Eu não podia desistir do meu sonho — respondi cansada.
— Mas vai. — Iolanda estava perto demais e com uma postura
ameaçadora. — Veja bem, eu tenho planos e um objetivo. Não
pretendo deixar nada nem ninguém atrapalhar. Confesso que,
inicialmente, fiquei com raiva, mas pensando bem, também me senti
feliz de ver seu desenho entre os finalistas. Uma concorrente a
menos.
— Se você está pensando que vai me convencer a desistir dessa
vez, está muito enganada! — Finalmente decidi me impor.
— Tem certeza? Pretende arriscar tudo por uma possibilidade,
mesmo sem saber se vai ter o resultado esperado? Vai arriscar ficar
sem emprego, sem onde morar e sem pagar a faculdade? No seu
lugar, pensaria bem. — Iolanda tinha um olhar de quem havia
encurralado sua presa.
— Você está me ameaçando? — A incredulidade estava
estampada no meu rosto.
— Claro que não. Só estou apresentando os fatos. Não sou
obrigada a ter por perto uma concorrente que pode destruir meus
planos.
— É sério? Já não basta tudo o que fez esse tempo todo? —
Indignada era uma boa palavra para resumir como eu me sentia
naquele momento.
— O quê? Te dar emprego, lugar para morar?
Meu Deus, como ela era sonsa!
— Não, me refiro ao quanto você se aproveitou da minha
ingenuidade e da situação para me explorar. Eu tenho feito
absolutamente tudo o que me foi pedido nesses últimos quatro
anos, sem receber nada a mais por isso. Até o “muitoobrigada”foi
bem escasso. — Depois de anos engolindo tantos sapos, não
consegui me conter e deixei sair boa parte do que estava entalado.
Como alguém podia ser tão mesquinha e com um senso de
superioridade tão grande? Em que mundo ela vivia? As pessoas
falam tanto em carma, por que raios ela não estava pagando por
tudo que fez? Naquele momento, eu daria tudo para conhecer o
ponto fraco da megera e poder fazer o mesmo jogo de palavras que
ela vinha fazendo comigo. Por um momento, eu queria ver esse
olhar de triunfo derreter.
— Você que sabe — Iolanda respondeu com toda a calma do
mundo.
“Issonão pode estar acontecendo. Deve ser um pesadelo e eu
vou acordar a qualquer momento.”
Iolanda não era a melhor pessoa do mundo e eu sabia disso, mas
também não a considerei capaz de fazer algo pior do que destruir
meu vestido. Santa ingenuidade!
— Não vai dizer nada? — Ela se aproximou da minha mesa de
trabalho. — Olha só! — Levantou o rosto e sorriu para mim. —
Parece que você tem algo do meu interesse aqui. Ia mesmo te pedir
um desenho para Ingrid enviar, assim como fez da outra vez, mas já
está pronto. Você é mesmo muito eficiente.
A mulher, que mais parecia vilã desses contos que lemos por aí,
segurou a borda do papel e tentou puxá-lo, mas eu fui rápida o
suficiente para segurá-lo do outro lado.
— Esse desenho é meu. É o meu trabalho. Eu estou cansada
desse seu comportamento invasivo. Você não pode entrar aqui,
destruir meu vestido e agora vir roubar isso aqui. — Um misto de
desespero e revolta era perceptível em cada palavra que saiu da
minha boca aos berros.
— Tem certeza? Tudo bem, eu me ofereceria para ajudar a
arrumar suas coisas, mas você consegue. Quero você e todos os
seus pertences fora daqui até a noite ou irá tudo para o lixo. Quanto
à sua rescisão, pagarei com gosto, porém ainda não sei quando.
Pode demorar um pouco… ou muito. Sabe como são essas coisas
burocráticas. Inclusive, eu deveria descontar os retalhos que você
usou, mas não sou uma pessoa má.
Perplexa com o discurso que acabara de ouvir, mais uma vez o
desespero tomou conta de mim. Mil e uma coisas passaram pela
minha cabeça:o fato de eu não ter reserva alguma de dinheiro, nem
ao menos um cartão de crédito com limite; a única pessoa que eu
era íntima o suficiente nessa cidade para pedir abrigo morava no
mesmo teto da víbora que destilava veneno na minha frente; quase
quatro anos de faculdade seriam pausados por tempo indefinido; e
as esperanças que eu voltei a ter quando pisei naquela festa
descendo ralo abaixo. Eu não tinha garantia alguma naquele
concurso — era tudo ou nada.
Tinha muito a perder.
Soltei a folha.
— Foi o que pensei. — Iolanda soltou uma gargalhada maléfica.
— Você fez uma boa escolha. Vou te dar um bônus por isso. E não
se preocupe, seu sonho vai se realizar, sim. Você poderá desenhar
toda a coleção que Ingrid vai assinar para a Vestindo Estilo quando
vencer. Obrigada, querida. Até mais.
Iolanda foi embora levando não só o desenho, como também
todos os meus sonhos e esperanças depositados naquela peça. Eu
não tinha forças nem para sair do lugar onde estava parada como
uma estátua pelo choque do ocorrido. Grossas lágrimas foram
caindo no papel de desenho em branco a minha frente. “O que será
que eu fiz para merecer isso?”
l
Passei não só o restante daquele dia como também o sábado e
metade do domingo deitada na cama. Tudo tinha perdido a graça.
— Alguém aí? Estou entrando. — Inês tinha uma chave reserva
para emergências. — Te mandei mensagem o fim de semana todo e
você não me respondeu. — Encolhida na cama e muito abalada,
voltei a chorar quando vi a minha amiga. — Meu Deus, o que houve
com você?
— Sua mãe… — foi só o que consegui dizer entre soluços. Algo
muito precioso havia sido arrancado de mim sem piedade.
— O que aquela bruxa fez dessa vez? — Mesmo sendo a filha de
Iolanda, Inês nunca compactuou com o comportamento da mãe.
— Ela me obrigou a desistir do concurso e vai enviar meu croqui
como se fosse o da sua irmã. — A desesperança tomou conta.
— Mas ela não pode fazer isso! — Inês correu para me abraçar o
mais forte que pôde.
— Era isso ou ir parar na rua, com uma mão na frente e outra
atrás. — O choro se intensificou só de lembrar dessa terrível
possibilidade.
— Minha mãe foi capaz de chegar a esse ponto?
— Pareceu bem convincente para mim. — Respirei fundo.
— Eu não posso acreditar… Vou falar com ela agora! — Inês
pegou o telefone e procurou o contato para ligar.
— Aí seremos duas com problemas. — Mesmo com tudo que
havia me acontecido, eu não podia deixar Inês se prejudicar
também.
— Ai, amiga. Eu me sinto tão culpada. — Inês desistiu de fazer a
ligação e começou a acariciar meu braço, em uma tentativa de
amenizar a dor. — Vou começar a procurar um trabalho para sair de
casa e vou te levar embora daqui para morar comigo. Não posso
deixar que ela continue abusando de você dessa forma e também
não aguento mais viver sob o mesmo teto dessa tirana.
— Não é sua responsabilidade, Inês — proferi com doçura.
— Descansa. Tudo vai ficar bem, prometo. — Eu estava encolhida
em posição fetal, então ela arrumou espaço na cama e deitou ao
meu lado, me abraçando ainda mais forte.
32
Gustavo
De: PlusStylistRJ
Se me fosse pedido para escolher o pior momento da minha
vida, com certeza seria esse fim de semana. É inacreditável
como as pessoas conseguem ser gananciosas e cruéis,
chegando ao ponto de passar por cima dos outros. Esse
“outros”, no caso, sou eu, e a pessoa gananciosa e cruel é a
minha chefe. Nossa, eu fui mais do que uma funcionária
exemplar nos últimos quatro anos e nem o mínimode respeito
recebo de volta. É pedir muito?
Não sei se deveria dizer, mas moro na confecção onde
trabalho e esse é um dos tantos motivos que me fazem
precisar desse emprego. Detesto depender de alguém, em
outra situação já teria ido embora sem nem olhar para trás,
mas não posso dar esse passo no escuro. Eu passei a confiar
em ti e gostaria de poder desabafar por completo, mas isso é
tudo o que me permito contar agora.
Dói desistir de um sonho, dói estar tão perto de alcançá-lo e
ver tudo escorrer pelos meus dedos. Mas eu vou superar,
assim como superei todas as outras adversidades até hoje. No
momento, vou me permitir viver essa espécie de “luto” e logo
encontrarei outro objetivo que traga novamente sentido aos
meus dias.
Obrigada por estar aí do outro lado...
De: MeninoDoRio
Minha querida, foi angustiante ler essas palavras de
sofrimento e não poder fazer nada para amenizar a sua dor.
Gostaria de poder ao menos te abraçar.
Eu sei, a última coisa desejada e talvez a pior de ouvir
nessas horas é a que vou dizer agora. Mas tenho certeza de
que, de alguma forma, tudo vai ficar bem. Você se mostrou tão
lutadora e está cheia de conquistas, então erga a cabeça para
poder voltar a enxergar novas oportunidades, como você me
ensinou a fazer.
Posso afirmar, sem sombra de dúvidas: você foi uma das
melhores coisas a me acontecer nos últimos tempos e
adoraria poder retribuir de alguma forma. Se tiver qualquer
coisa, qualquer coisa mesmo, dentro das minhas
possibilidades, não hesite em pedir.
Eu acredito em você!
Sonho acordado com o dia em que lerei no meio dessas
linhas o convite para um encontro. Como eu quero te abraçar,
minha menina….
Alice
De: PlusStylistRJ
Obrigada pelas suas palavras de incentivo. É muito bom ter
com quem contar em todos os momentos. Você fala dos meus
conselhos, mas os seus têm sido acalentadores e a lanterna
em um túnel escuro. Sou grata por estar aí.
Fui visitar uma amiga hoje e ela me disse que as coisas
encontram o caminho até nós, se acreditarmos e deixarmos o
universo trabalhar. Estou tentando manter isso em mente, em
especial a parte de acreditar.
Peço desculpas, eu andei tão focada nos meus problemas e
acabei nem perguntando como estão as coisas por aí.
Melhores que por aqui, eu espero. Também, se tiver pior, já
seria algo próximo do fim dos tempos. Ok, eu estou
exagerando, mas você entendeu.
Também te quero muito bem. Você tem se tornado essencial
para a minha vida... Mais do que gosto de admitir.
De: MeninoDoRio
Depois de ler os seus relatos, eu ficaria até com vergonha de
reclamar sobre algo.
Por aqui está tudo sob controle. Eu ainda não sei muito bem
o que me aguarda, mas estou tentando focar nos desafios
atuais enquanto começo a considerar o cargo de CEO no
futuro.
Se isso fosse um concurso de Miss, meu pai estaria correndo
atrás de mim com a faixa e a coroa.
34
Gustavo
Alice
Gustavo
Alice
“
O que ele está fazendo aqui?”
Distraída por Gustavo e pelas lembranças do sonho que tive com
ele, eu ainda não tinha percebido a presença da minha chefe e de
Ingrid na sala. Fiquei feliz por estar sentada.
— Agora que estão todos aqui, podemos começar. — O homem
que parecia uma versão mais velha de Gustavo se pronunciou —
Gustavo?
Estava dividida entre manter meus olhos presos no homem que
fez meu coração bater mais forte na noite da festa ou então prestar
atenção no teor da reunião. Respirei fundo algumas vezes e decidi
que a segunda opção era mais segura.
— Vocês foram chamadas porque precisamos de alguns
esclarecimentos. Leandro, pode colocar a imagem, por gentileza?
Quando vi surgir na tela o croqui do vestido assinado com o meu
pseudônimo, meu coração pulou uma batida. Ao lado dele, estava a
peça considerada vencedora da terceira etapa e do concurso. “Eles
descobriram.”Iolanda e Ingrid pareciam não entender o que estava
acontecendo e mantiveram a pose.
— Ingrid, você afirma que esse croqui com o acessório pet foi
realmente feito por você?
— Mas é claro que ela afirma — Iolanda se meteu. — Você está
duvidando da minha filha? — Sua indignação era digna de um
Oscar.
— Acalme-se, senhora. Foi apenas uma pergunta. — Gustavo
tentou ser educado, mas era nítida a sua irritação. — Aconteceu o
seguinte: identificamos algo em comum nos dois desenhos. Esse
símbolo, uma espécie de assinatura, se eu não estou enganado. —
Ele apontou o laser para a tulipa. — Nós temos uma teoria, já que o
seu croqui da primeira etapa não tinha isso, mas estamos dando a
vocês a oportunidade de falar.
— Só pode ser uma coincidência. Elas estudam na mesma turma,
devem ter aprendido algo do tipo em uma aula e resolveram usar —
Iolanda não conseguia ficar calada e, mais uma vez, se meteu onde
não era chamada.
— Senhora, só vou pedir uma vez: a partir de agora, não se
manifeste mais. Nem deveria estar aqui, para início de conversa. —
A versão mais velha de Gustavo perdeu paciência. — Queremos
ouvir as candidatas. Alice, tem algo a dizer? Por que desistiu?
Revezei o olhar entre o interlocutor e minha chefe. Ela me
encarava de uma forma assustadora.
“Nãoposso correr o risco. Vou perder tudo de uma vez. Preciso
garantir meu salário, moradia e a ajuda para os bichinhos.”
— Não… — a voz saiu quase como um sussurro. Usar poucas
palavras era a melhor saída. Se começasse a explicar,
provavelmente teria me embolado.
— Os desenhos são da Alice — Ingrid se manifestou, para minha
surpresa.
— O que você pensa que está fazendo? — Iolanda tentou conter
a filha, porém era tarde demais.
— Chega, mãe, não aguento mais! Eu sou péssima desenhando.
Até consigo elaborar bem outras coisas relacionadas à moda. Eu sei
o que gosto, só não consegui pensar em uma forma concreta de
tornar real. Desde pequena, sempre amei coisas relacionadas à
moda, o que deixou a minha mãe cheia de orgulho, óbvio. Só que,
ao contrário do que ela quer, eu sonho em ser modelo. Amo montar
looks, mas com peças criadas por outras pessoas. Faço moldes e
até costuro. Agora, criar modelos bons o suficiente para uma
coleção? Eu nunca conseguiria fazer algo assim. E nem quero… —
Como um lobo enjaulado que via a chance de liberdade pela
primeira vez, Ingrid nem sequer mediu as palavras.
— Cale a boca! — Iolanda estava desesperada.
Eu também. Ao mesmo tempo, estava sem reação, apenas
olhando a garota desabafar, quase aos gritos, enquanto sua mãe
tentava impedi-la de destruir seus planos.
— Não! Eu cansei de fazer suas vontades. Alice me ajuda
fazendo muito além de consertar os meus desenhos desde o início
da faculdade. Ela praticamente me carrega nas costas nos trabalhos
em grupo. — Ingrid desviou o olhar de Iolanda e se virou para
Gustavo, que tinha uma expressão de pura raiva no rosto. — Minha
mãe não achou nada demais cobrar esse favorzinho, já que deu
emprego e lugar para Alice morar. Ela melhorou meu desenho para
a primeira fase — apontou o dedo na minha direção —, e esse
segundo é totalmente dela. Minha mãe a obrigou a entregá-lo e
desistir de participar. Eu nem queria fazer isso! — Após ter
começado, Ingrid foi vomitando uma informação atrás da outra e
deixou todos os presentes chocados, inclusive eu, pois essa era a
última coisa que imaginaria vê-la fazendo.
Fui tomada por um misto de alívio pela verdade ser revelada e de
apreensão pelo que viria a seguir, tanto de Iolanda quanto da
Vestindo Estilo.
— Isso é verdade? — Gustavo questionou.
Assenti, envergonhada. Eu sabia que podia me limitar a um “sim”
como resposta, mas resolvi que estava na hora de deixar minha
história ser ouvida. Por isso, assim como Ingrid, não contive minhas
palavras:
— Desde que comecei a trabalhar para ela, Iolanda aproveita que
alugo um quartinho na sua confecção e me explora de todas as
formas possíveis. Algumas vezes sob ameaças… Eu aguentei,
porque preciso do dinheiro, de lugar para ficar e por ter um sonho.
Falta tão pouco para terminar a faculdade… — Enxuguei uma
lágrima solitária e teimosa que caiu do meu olho. — Eu tinha
acabado o desenho no instante em que ela entrou no meu quarto,
só faltava assinar. Se ela tivesse chegado lá um pouco antes, não
teria a minha marca e vocês nunca saberiam. Mas eu me pergunto:
como notaram esse detalhe?
— Você me contou. — Gustavo colocou o papel com meu
desenho sobre a mesa.
— Nossa, achei que tinha conhecido um convidado e não um
funcionário da Vestindo Estilo.
Apesar de toda aquela situação ser muito tensa, era a presença
de Gustavo que mais me desnorteava. Eu ficava pensando que
nunca mais o veria e ali estava ele, em carne, osso e pura sedução.
E o pior de tudo era que ele estava ouvindo as minhas desgraças.
Ainda bem que eu estava sentada, porque não teria forças para me
manter de pé.
“Foco, Alice!”
— Não posso acreditar que tiveram a coragem de roubar o
trabalho de alguém. Ainda mais depois de saber o quanto ela ajudou
vocês. Eu, Rui Almeida, não compactuo com esse tipo de
comportamento. Não preciso, mas vou dizer com muito gosto: está
desclassificada, Ingrid. — Ele fez uma pausa e ninguém ousou
emitir sons. — Além disso, entrarei em contato com outros
empresários do ramo para notificá-los de suas práticas, dona
Iolanda. Se eu fosse a senhora, começaria a pensar em outra forma
de ganhar dinheiro, honestamente de preferência. Ao receberem
essa informação, acho improvável alguém ainda fazer negócios com
a sua empresa.
— Não façam isso, por favor! — Sem conseguir me controlar, me
vi falando em um rompante: — Os funcionários são honestos e não
têm culpa. Não é justo deixá-los desamparados da noite para o dia.
— Não se preocupe, vou dar um jeito de recolocar o pessoal em
empresas parceiras. Ninguém ficará desamparado, dou minha
palavra — senhor Rui disse em um tom firme, que não dava espaço
para dúvidas.
A tensão ainda percorria meu corpo quando Iolanda explodiu:
— Garota insolente. Você vai me pagar! Quero você fora do meu
estabelecimento ainda hoje, nem que eu mesma jogue todas as
suas coisas na rua!
— Leandro, consiga uma reserva para a moça em um hotel e, por
favor, auxilie na busca por um lugar para ela morar. Podemos
adiantar parte do pagamento pela coleção também. Veja como
consegue ajudá-la. Confio no seu discernimento — senhor Rui
decretou.
— Como assim? Que pagamento? — Eu não estava entendo
mais nada.
— Ainda não percebeu? Seu croqui foi o vencedor. Parabéns,
você é a mais nova estilista da Vestindo Estilo! — foi Gustavo quem
disse, sem nem tentar esconder a felicidade por trás das palavras.
Eu pretendia dizer algo, mas estava em choque. As lágrimas,
dessa vez de alegria, desciam pelo meu rosto sem qualquer
controle.
O sonho estava se tornando real.
— Não chore, menina. Com um talento desses, eles seriam
idiotas, com o perdão da palavra, se perdessem essa oportunidade.
— A mulher sentada ao meu lado, que imaginei ser um dos jurados,
colocou a mão no meu ombro. — Os outros candidatos eram muito
bons, mas tem um toque especial nos seus traços e nas roupas
criadas por você que encantou a todos nós. A decisão foi unânime.
— Obrigada, prometo dar o meu melhor! — Estava quase pedindo
que alguém me beliscasse para ter certeza de que não estava
vivendo um sonho.
Enquanto todos me parabenizavam, Iolanda continuava
reclamando, dizendo que era um absurdo e que tudo aquilo não
passava de um complô contra ela. Porém, foi ignorada. Pelo menos
até três seguranças enormes entrarem na sala e a removerem do
prédio. Ingrid foi atrás, parecendo bastante aliviada, e me deu uma
piscadela antes de sair.
Gustavo foi o último a falar comigo, mas não teve tempo de dizer
qualquer outra coisa a não ser um tímido “parabéns”, acompanhado
de um sorriso, antes que um homem o chamasse para resolver uma
questão.
Gostaria muito de poder falar com ele, apesar de não ter ideia do
que eu diria. Mesmo assim, tive que me contentar com um aceno
enquanto ele desaparecia pelos corredores da Vestindo Estilo.
Quando fiquei sozinha na sala e pude digerir um pouco do que
tinha acabado de acontecer, meus pensamentos me levaram a uma
certa fada madrinha senhora. Parece que a profecia feita por dona
Marina tinha começado a se cumprir.
38
Gustavo
De: PlusStylistRJ
Você acredita em magia?
Pois eu não consigo usar outra palavra para explicar o que
me aconteceu hoje. Você sabe como eu andava
desacreditada, mas minha história teve uma reviravolta
impressionante.
Por enquanto, não posso dar muitos detalhes, mas posso te
dizer que eu consegui! Vou realizar meu sonho e me livrar da
minha chefe em uma tacada só.
Eu podia ter esperado um pouco mais para dar a notícia
completa, mas você foi a primeira pessoa com quem eu quis
compartilhar minha felicidade.
De: MeninoDoRio
Olá, querida!
Parece que os bons ventos sopraram por aí. Então, se você
tiver de bom humor, consideraria me encontrar pessoalmente?
Caso não esteja, apenas ignore a minha pergunta anterior e
finja que nada aconteceu. ;P
Falando sério, eu quero muito te ver, olhar nos seus olhos e
te abraçar. Além disso, tem uma coisa que preciso muito te
contar e não pode ser por carta. É algo importante. Eu não te
pediria esse encontro se não fosse.
Para melhorar um pouco as coisas, assim espero, fica a seu
critério o dia, local e horário.
Espero ansioso pela sua resposta.
De: PlusStylistRJ
Olá, querido!
Achei ter lido em uma das cartas algo do tipo “Nãovou mais
te pressionar quanto a isso.”. :P
Pensei que tivesse esquecido. Era um campo de
possibilidades, eu nunca prometi nada.
Mas posso confessar uma coisa? Eu tenho nutrido uma
vontade de te conhecer e estava criando coragem. Passei os
últimos tempos dividida entre “Melhordeixar as coisas como
estão. Em time que está ganhando não se mexe”,e “M elhor
me jogar de cabeça e arriscar”.Algumas pessoas afirmam ser
melhor fazer algo e se arrepender do que ficar eternamente se
perguntando “E se?”.
Você tem demonstrado merecer um voto de confiança depois
de todos esses meses. E, sim, você estava certo: parece que
o vento está favorável no momento e, por eu estar de ótimo
humor, vou aceitar sua proposta.
Estranhei o tom da sua carta. Devo me preocupar?
Me encontre no Café Delícia hoje, às 18h.
Te espero lá!
P.S.: Ah, como sou tola, não sabemos como o outro é.
Estarei vestindo calça e uma blusa com estampa de gatinhos.
Não deve ser difícil de me achar.
P.P.S.:O local não é tão perto, eu sei, mas eu estava mesmo
querendo uma desculpa para ir até lá e comer um dos cookies
deliciosos do cardápio.
Alice
l
Consegui sobreviver à primeira semana na Vestindo Estilo e,
como minha carga de trabalho se tornou bem menor, pude contar
com o sábado livre para ajudar no abrigo. Eu e Inês, não por
coincidência, éramos as voluntárias que cuidariam dos gatos
naquele dia.
Eu não era a única de emprego novo. Inês, decidida a sair de
casa o quanto antes, começou a trabalhar na loja da sua amiga Tati.
Ter o próprio dinheiro enquanto não descobria a carreira que
pretendia seguir parecia um bom plano.
Dessa vez, era a vida dela que estava mais atarefada, então
aproveitamos o dia de folga para colocar os assuntos em dia.
— Lembra que você me disse para deixar o tempo fazer o seu
trabalho? Acho que ele andou aborrecido, porque só complicou a
situação.
— A situação complicou ou você que está colocando mais
empecilhos que o necessário? — Ela arqueou a sobrancelha.
— Amiga, ele mentiu pra mim.
— Por motivos bem convincentes.
— Virou advogada do diabo agora?
— Se for o Lúcifer da série, com certeza. E o tal Gustavo não
perde muito para ele. — Inês piscou.
— Só você mesmo! — Eu ri. Tinha que admitir, Inês sempre vinha
com as melhores referências. — A questão é:quem me garante que
ele não está mentindo agora? Que não está tentando me enganar?
— É por que mesmo ele faria isso?
— O cara é rico, está cercado de modelos e pode ter a mulher
que quiser. Agora, olha para mim! Você sabe que eu não tenho
vergonha de ser quem eu sou ou do meu peso, mas não posso me
enganar achando que as pessoas não se importam. A internetestá
cheia de provas — desabafei o que vinha me incomodando.
— A resposta está na sua afirmação. Olha para você! Ele seria
um completo idiota se não valorizasse a pessoa incrível que você é.
Por que não dá uma chance para ele? Melhor, por que não dá uma
chance para vocês?
— Prometo pensar a respeito. — Inês me olhou com cara de
“acho bom”.
Nick se aproximou e eu o peguei no colo.
— Ver você com Nick me faz lembrar tanto do Thor. Estou
morrendo de saudades — ela falou com tristeza.
— Tem notícias dele?
— Pâmela disse que a adaptação está indo bem.
— E o Téo?
— Nunca mais o vi desde o evento. — Minha amiga tentou
parecer indiferente.
— Mas gostaria, né?
— Talvez… Pelo cachorro, é claro.
l
Apesar de mudar de ambiente, a minha rotina continuava
parecida. Pela manhã, assistia às aulas e, à tarde, ficava na
Vestindo Estilo. O clima entre mim e Gustavo foi melhorando pouco
a pouco, conforme eu processava melhor tudo que havia acontecido
entre nós. Olhares e sorrisos eram trocados, e Leandro fingia não
perceber.
A conversa com Inês me fez refletir bastante e decidi que valia a
pena tentar resolver as coisas, eu só precisava criar coragem.
Então, naquela segunda, véspera de feriado, Leandro havia sido
liberado e nós dois ficamos sozinhos na sala.
“É agora ou nunca!”
— Gustavo? — Parei em frente à mesa dele. Minha voz saiu mais
fraca do que o esperado.
— Sim? — Ele parecia tão apreensivo quanto eu.
— Aquele dia no café, eu te escutei. Agora gostaria de pedir que
fizesse o mesmo. — Um sorriso tímido, porém encorajador, surgiu
em meus lábios.
— Tudo bem, vá em frente. — Ele se levantou e veio até mim, não
havia mais nenhum móvel nos separando.
— Eu estaria mentindo se dissesse que aquela revelação não foi
um choque pra mim. De todas as pessoas na face da Terra, você
seria o último da lista, caso eu tivesse feito uma. Não digo isso de
forma negativa, mas olha as probabilidades. — Acabamos rindo da
situação. — Eu passei esses últimos dias em conflito, tentando
entender o que eu estava sentindo sobre tudo isso e,
principalmente, sobre o que eu deveria fazer. Fiquei, sim, muito
frustrada por ter sido enganada, mesmo entendendo seus motivos.
Mas depois de muito pensar, preciso te dizer — respirei fundo e
continuei: — eu consigo te perdoar pela omissão. Talvez possamos
começar do zero, ou quase.
Agora, meu sorriso estampado era largo e refletiu no rosto de
Gustavo. Foi como se o peso das mágoas que eu andava
carregando me deixasse e desse lugar a uma pontinha de
ansiedade pelo que estava por vir.
— Você não faz ideia de como é bom ouvir isso. Sabe como é ver
a pessoa que se tornou a sua favorita no mundo magoada e
perceber que foi por sua causa? De vê-la todos os dias e querer
abraçá-la, como prometi nas cartas? São tantas coisas passando
pela minha cabeça…, mas deixarei para compartilhar em outro
momento. Não quero que você fique constrangida e estamos em
ambiente de trabalho. — Era nítidoo quanto ele estava radiante. Só
faltou rodopiar comigo pelo escritório.
— Tem razão. Nossa, eu nem sei explicar o quanto senti a sua
falta. — Soltei um suspiro de alívio ao saber que tudo estava
finalmente resolvido. — Posso pedir aquele abraço? Já perdi tempo
demais.
— Nem precisa falar duas vezes.
40
Gustavo
Alice
Gustavo
Alice
De: PlusStylistRJ
Olá, Gustavo! Ou eu deveria dizer “meu amor”?
Sim, amor. Foi esse sentimento que você despertou em mim
aos poucos, e isso foi crescendo até não caber mais aqui
dentro. Ok, estou romântica até demais para o meu gosto. Tá
vendo o que você faz comigo?
Nem preciso dizer o quanto eu adoraria continuar me
correspondendo com você. Amo escrever cartas, ainda mais
se forem para alguém tão especial. Podemos tentar umas no
papel também, se quiser, mas não garanto que a minha letra
será tão legível como essa daqui. Como você já notou, meu
talento para desenho não se ampliou para a caligrafia.
Obrigada por ser esse parceiro incrível na vida e por ter
chegado para somar. Ver você crescendo e aprendendo a
cada dia me enche de orgulho. Sonhe e voe cada vez mais
alto. Eu estarei aqui para aplaudir, assim como você faz
comigo desde que nos conhecemos, antes mesmo de saber
quem eu era.
Falando em sucesso, as suas ideias na empresa têm sido
muito bem recebidas e já consigo ver a Vestindo Estilo com
uma cara diferente, com o seu toque, meu CEO favorito. E
veja só o que você possibilitou àquele abrigo e a outras
instituições empenhadas na causa animal!
Nem se eu costurasse dia e noite, as peças para arrecadar
dinheiro chegariam a essa quantia, muito menos com essa
velocidade. Saber que pelo menos aqueles animais nunca
mais vão passar por aperto e sofrimento enche meu coração
de alegria. Eu espero ver essa corrente do bem se
multiplicando, alcançando cada vez mais e mais causas.
E, assim, vamos mudando o mundo. Um passo de cada vez.
Te amo!
Alice
De: MeninoDoRio
Minha princesa, estou louco para viver o nosso “felizespara
sempre”!