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Sumário

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Copyright © 2021 Scarlett Salvage
Editora Chefe: Cecilia Mondadori
Editora Comercial: Simone Freire
Design de Capa: Alice Prince / LA Capas
Revisão: Cris Castro
Diagramação: Cris Spezzaferro
Esta obra segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.
Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais é mera coincidência.
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
É proibido o armazenameno e/ou reprodição de qualquer parte dessa obra
através de quaisquer meios sem o consentimento da autora.
A violação autoral é crime, previsto na lei nº 9.610/98, com aplicação legal pelo
artigo 184 do Código Penal.
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São Paulo, Brasil
1

Gustavo

O som de algo se partindo preencheu o ambiente.


Merda! Era outro vaso, dessa vez de menor valor sentimental, mas
isso não faria diferença na hora de reclamarem no meu ouvido. Não
era a primeira vez que eu falhava miseravelmente ao tentar entrar
em casa, cambaleando na madrugada, sem fazer barulho. Também
não seria a última.
— Gustavo? — Um clarão quase me cegou quando minha mãe
acendeu a luz. Ela parecia assustada em sua camisola de seda.
— O que é que está acontecendo por aqui? — Meu pai estava
com uma expressão de dar medo. Dona Helena sempre tentava me
acobertar, mas, dessa vez, não conseguiu evitar que seu marido
acordasse. — Ah, tinha que ser. Quer dar uma de vagabundo, que
nem respeita o sono de quem trabalha? — O desgosto era nítidoem
cada palavra proferida por ele, que revezava olhares de mim para
os mil cacos do vaso que estavam espalhados pelo chão.
— Ah, pai, não enche! — Tentei passar por ele, que me impediu,
segurando-me pelo braço com mais força do que o necessário.
— E esse cheiro de álcool? — Ele torceu o nariz. — Você não
estava dirigindo, estava?
— Claro que não. Eu não sou idiota. — As notas de sarcasmo na
minha voz embargada fizeram com que meu pai ficasse ainda mais
furioso. Não era tão difícil deixá-lo nesse estado, e eu sempre
conseguia o feito com mais frequência do que qualquer outra
pessoa.
Ninguém poderia dizer que eu não era o número um em alguma
coisa.
— Se você não aprendeu por bem até agora, então talvez
aprenda ao perder as regalias de que tanto gosta. — As mãos
fechadas em punho ao lado do corpo e o rosto vermelho de raiva
deixavam claro que meu pai estava tentando se controlar para não
explodir.
— Mas ele é só um garoto — minha mãe interveio.
— É justamente este o problema. Está na hora de ele virar um
homem, Helena.
— Muita gente acha que eu sou um homem e tanto… —
Perdendo a noção do perigo, eu ri.
— Pois o “homeme tanto”,a partir de agora, vai me entregar as
chaves do carro, o cartão e não vai mais receber um centavo. Se
quiser manter seus luxos, suas aulas de esgrima e tudo mais, vai ter
que trabalhar para pagar.
Eu deveria ter me assustado com as palavras dele, mas tinha
tomado tantas doses daquela bebida vermelha que serviram no bar
que nem dei importância à ameaça. Além do mais, não era a
primeira vez que bancava o durão para cima de mim, e já estava
mais do que acostumado a receber seus ultimatos.
Um sorriso debochado tomou meu rosto ao encarar meu pai —
mesmo que o estivesse vendo dobrado.
— Ainda bem que minhas aulas estão pagas por um ano. Com o
resto, eu me viro. — Pisquei.
Minha mãe, antevendo uma tragédia, me fez subir as escadas
para o quarto antes que meu pai perdesse a cabeça, enquanto
tentava acalmá-lo. O olhar que ela me lançou deu a entender que
estava cansada de mediar nossas brigas e que eu estava indo longe
demais. Apenas dei de ombros e continuei meu caminho.
— Venha, vou fazer um chá para você. — Foi a última coisa que
ouvi antes de chegar ao último degrau.
Entrei no quarto e encontrei Joca, meu cão idoso, repousando
tranquilamente no seu canto preferido. Ele parecia nem ter se
abalado com o barulho e apenas abanou o rabo, esperando pelo
afago que sempre recebia antes de dormir. Pelo menos, alguém
naquela casa me aceitava como eu era.
Joguei-me na cama do jeito que estava, nem os sapatos tirei. Só
queria que tudo parasse de girar. Um perfume doce de mulher,
impregnado na minha camisa, me inebriou por um momento. A noite
tinha sido tão agradável… até meu pai aparecer com suas
exigências.
Há anos, o velho vinha me dizendo que eu precisava focar no
trabalho, que a Vestindo Estilo era o meu legado. Há anos, dizia a
ele que não tinha o menor interesse em assumir os negócios da
família. E ficamos assim, nessa discussão infinita, nenhum dos dois
a fim de ceder.
Eu, CEO? Soltei uma gargalhada, o que se mostrou uma péssima
ideia, já que o chacoalhar do meu corpo me deixou enjoado. Tentei
focar minha atenção na lembrança da morena de tubinho vermelho.
Ela era gostosa demais.
Para os meus amigos, nunca era tempo ruim para uma noitada, e
não seria eu a negar a proposta. Era a inauguração de um novo bar
na cidade e somente pessoas com convites podiam entrar. Foi ótimo
não ter um amontoado de gente esbarrando em mim o tempo todo
e, com isso, meu campo de visão ficou livre para que eu avistasse a
moça. Ela exalava sex appeal pelos poros e, assim que percebeu
meu olhar em sua direção, não hesitou em vir até mim.
De perto, era ainda mais bonita, poderia facilmente ser uma
modelo, mas não tive a chance de perguntar. Antes que eu pudesse
dizer qualquer coisa, ela encurtou a distância entre nós e me beijou
com uma intensidade de tirar o fôlego. A surpresa não me impediu
de corresponder o beijo. E que beijo! Eu não sei quanto tempo
durou a pegação. Do mesmo jeito que chegou, ela partiu. Sem
adeus, sem deixar o telefone ou pelo menos dizer seu nome. Só
ficaram as lembranças, que me deixaram necessitado de um banho
frio.
2

Alice

— Alice! Alice, cadê você? — Iolanda se aproximou aos


berros do local que eu vinha chamando de casa pelos últimos três
anos e meio, não dando a mínima se, oficialmente, o meu
expediente ainda não havia iniciado.
Toda vez que escutava o som familiar do salto da minha chefe
contra o piso, meu estômago revirava, e dessa vez não foi diferente.
Ainda considerei abrir a porta que dava acesso para a confecção,
mas mudei de ideia ao lembrar que não fazia diferença: ela nunca
precisou de convite para entrar no pequeno espaço. Inclusive, fazia
questão de lembrar que era a dona de tudo ali. Esse pensamento
sempre me entristecia, mas já estava acostumada a ter que respirar
fundo e encarar a realidade, sem deixar que ela me abatesse tanto.
Assim que avistei a mulher, com sua altura intimidadora, cabelo
impecável e sem nem um fio fora do lugar, tentei fazer um esforço,
mas não consegui me lembrar quando foi a última vez em que a
presença de Iolanda ali havia sido um bom sinal. As roupas em tons
de vinho e preto, combinando com a maquiagem, deixavam-na
ainda mais intimidadora. Senti vontade de sair correndo, mas não
podia. Ainda não.
— Boa tarde para você também. — Por mais que eu tentasse não
deixar transparecer o efeito que a sua presença me causava, minha
voz saiu em um sussurro.
— O que disse? — As palavras da mulher carregavam uma
ameaça sutil, mas nem se comparavam à expressão que fazia,
fechando a cara e levantando apenas uma das sobrancelhas, como
se me desafiasse a continuar. Um arrepio percorreu minha espinha.
— Como posso ajudar? — Depois de alguns anos, sabia que não
valia a pena bater de frente com ela.
Eu sonhava com o dia em que poderia mandar Iolanda à merda,
provavelmente com palavras um pouco mais delicadas do que
essas. Poder dizer um simples “não” já seria um sonho.
— Melhor assim. — Minha chefe sorriu de forma maquiavélica, se
aproximando ainda mais para aproveitar a sensação de poder que
as interações comigo proporcionavam. — Quero saber se você já
terminou de costurar o pedido extra do cropped preto. Preciso
entregar ainda hoje.
— Qual pedido extra? Eu te entreguei todos ontem, no início da
tarde.
— O pedido chegou no fim do dia. Não te falei? — Iolanda
colocou as mãos na cintura, começando a parecer irritada com a
situação.
— Não… — Pisquei, mantendo os olhos fechados uns segundos
a mais do que o necessário para buscar forças.
Mesmo isso acontecendo com mais frequência do que o aceitável,
ainda me sentia mal toda vez. Quase cheguei ao ponto de perguntar
se tinha um “meexplore”tatuado em mim. A essa altura, já havia
desistido de entender o motivo de ela ser tão cruel.
— Que cabeça a minha. Então, agora você já sabe: preciso deles
com urgência para enviar junto com o restante do pedido. Se
atrasar, além de criar uma péssima imagem com o cliente, atrasará
também o pagamento, e aí já viu… Todo o cronograma vai para o
espaço, e o seu salário será a última coisa que irei pagar.
— Mas…
— Não quero saber de «mas». O que você está fazendo aí
parada? Vai já costurar! — Iolanda virou as costas e saiu andando
antes que eu pudesse usar qualquer argumento. Nem sei por que
tentei.
Eu mal tivera tempo de tirar os sapatos e colocar a bolsa na
cadeira quando Iolanda surgiu com um dos seus típicos rompantes.
Meu horário só começaria em quarenta minutos, e havia julgado ser
tempo suficiente para tomar um banho e fazer uma refeição antes
de tomar o posto de trabalho, porém, isso foi antes de minha chefe
aparecer do nada e me obrigar a rever os planos.
Procurei por algo que pudesse engolir rapidamente e, ao
encontrar duas bananas, decidi que o almoço teria que esperar. Eu
era muito grata por ter um trabalho e um local para morar, mas não
via a hora de me formar, arrumar outro emprego e poder sair do
quartinho nos fundos da confecção — e de perto de Iolanda.
Voltei do setor de corte com uma pilha de viscose nos braços e,
depois de colocar o tecido em minha bancada, fui em busca do
elástico e das linhas certas para realizar a cota extra de serviço que
fui obrigada a aceitar sem qualquer questionamento. Eu estava
cansada disso, mas sempre lembrava dos boletos me esperando e
abaixava a cabeça.
Suspirei, pensando que gostaria de estar usando roupas mais
confortáveis do que as que eu vestia, mas sabia que não podia
perder tempo me trocando. Na IolandaConfecções, os funcionários
não usavam nenhum tipo de uniforme, porque isso geraria custos
para a dona do negócio, sempre fazendo de tudo para economizar e
poder gastar com seus caprichos. Nós até preferíamos assim, pois
se um dia surgisse a ideia de implementar uma roupa padronizada,
não havia dúvida de que ela faria com que pagássemos pelo
uniforme.
Para a minha sorte, a peça encomendada era relativamente fácil
de fazer, e a quantidade extra era pequena. Se fosse algo mais
complexo, seria impossível terminar no prazo estabelecido.
De alguma forma, o barulho das máquinas costurando era
reconfortante. Além de me fazer lembrar de casa — e de tempos
mais tranquilos —, também me dava um senso de propósito. Ver o
resultado do meu trabalho, mesmo não sendo valorizado, me enchia
de orgulho.
Eu podia ter muitas dúvidas na cabeça, mas minha profissão não
era uma delas — e estava disposta a engolir todas as maldades que
Iolanda despejasse no meu caminho, só para poder chegar aonde
sempre sonhei.
Depois de horas, que pareciam durar uma eternidade, levei as
peças já costuradas para o setor que verificava os últimos detalhes
— como arrematar, passar, embalar e organizar o pedido para
entregar ao cliente. Por bem, achei melhor passar na sala de
Iolanda e avisar que tudo já estava pronto, antes que ela inventasse
algum motivo para descontar do meu salário, mas me arrependi
quando a mulher me passou mais uma lista de tarefas ainda para o
mesmo expediente. Eu não gostava de alimentar sentimentos ruins,
mas era inevitável quando se tratava de Iolanda.
Novamente, vi meus colegas batendo ponto enquanto tive que
ficar além do horário para dar conta do que me fora pedido.
Conforme o movimento diminuía,o barulho antes reconfortante fazia
eco pela construção e acabava sendo minha única companhia. No
início, tinha um pouco de medo de ficar ali sozinha. Mas agora
estava tão acostumada que até preferia. Uma mistura de inferno e
paraíso.
Quando consegui terminar, fechar tudo e voltar para o espaço que
usava como casa, fui surpreendida por Inês, que me aguardava na
cama, lendo a contracapa de um livro que estava na cabeceira,
esperando para ser lido há mais tempo do que eu gostaria.
— Minha mãe de novo? — Inês revirou os olhos.
Ela era uma das filhas gêmeas de Iolanda, mas o rosto era a
única coisa semelhante entre as irmãs de personalidades tão
diferentes.
— Sempre — resmunguei, esgotada por mais uma jornada de
trabalho intensa.
— Se eu tivesse a mínima ideia — Inês falou com pesar —,
jamais teria sugerido de você ter qualquer ligação com ela.
— Não se preocupe, sei que você teve a melhor das intenções. —
Peguei o último pacote de biscoitos para segurar a fome antes de
poder comer algo mais elaborado. Eles pareceram bem mais
deliciosos naquele momento do que realmente eram.
— Eu ia te chamar para sair, mas, pela sua cara, já sei que a
resposta vai ser “não”.
— Ainda bem que você sabe. Posso ficar te devendo para uma
próxima? — Usei meu melhor olhar de súplica.
— Vou cobrar! Como já estou aqui, se você quiser minha
companhia, fico para um filme. O que acha? — Ela sorriu como
forma de dizer que estava tudo bem e que não tinha ficado chateada
com a minha recusa.
— Ótimo. — Gostaria de ter demonstrado um pouco mais de
empolgação, mas a falta de energia não permitiu.
Entrei no banheiro, desejosa por sentir a água batendo em meu
corpo cansado. Geralmente, eu evitava banhos quentes, pois
qualquer aumento significativo na conta de luz era atribuído a mim
e, por consequência, cobrado. Mas, naquele momento, era uma
necessidade. A água quente na minha pele, apesar de ser por
pouco tempo, foi essencial para me ajudar a relaxar. Enquanto isso,
Inês pediu uma pizza para o jantar.
Mesmo que suas intenções tenham sido as melhores — e eu
saber disso —, ela ainda se sentia um pouco culpada por me trazer
para ser funcionária e inquilina de sua mãe. Ela dizia que gostaria
de ter se atentado ao fato de que boa ação e Iolandanão cabiam
dentro da mesma frase.
É claro que uma pizza, mesmo deliciosa, não compensaria tudo o
que eu tinha passado nos últimos anos, mas Inês, sempre que
podia, tentava deixar as coisas um pouco mais leves. Eu estava
cansada demais para preparar qualquer refeição e meu estômago
roncou quando senti o aroma delicioso de manjericão vindo da pizza
marguerita recém-chegada.
— Humm… — deixei escapar um gemido de satisfação quando
mordi a primeira fatia quentinha e senti o queijo derretido se
misturando aos outros ingredientes.
Levamos algum tempo tentando decidir a qual filme assistir,
mesmo sabendo que as chances eram enormes de eu dormir antes
de chegar ao final. Acabamos escolhendo um a que já havíamos
assistido inúmeras vezes. Nós adorávamos remakes de contos de
fadas, mesmo sabendo que eles jamais se tornariam realidade.
Mas bem que eu queria ter a chance de viver um.
3

Gustavo

Dois meses depois…


Durante a semana, eram raríssimas as ocasiões em que todos
podiam se reunir à mesa para um almoço em família, mas brigar
com meu pai estava se tornando um hábito cada vez mais
frequente. Minha mãe sempre tentava acalmar os ânimos e todos
acabavam comendo em silêncio, orgulhosos demais para pedirem
desculpas. Ele já estava mais calmo desde o último episódio da
madrugada e tinha evitado tocar nesses assuntos comigo.
Conhecendo o homem, esse silêncio não tinha como durar muito
tempo, mesmo que eu nutrisse a esperança.
— Gustavo, pode me passar uma daquelas batatas? Estão
especialmente apetitosas — comentou.
— Claro. — Suspendi a travessa e a levei em direção ao meu pai
para que ele pudesse se servir da quantidade desejada.
— Falando em passar… — Fez uma pausa para beber um gole
de suco. — Sei que você não quer, mas precisamos conversar
sobre eu passar meu cargo de CEO e a empresa da família para
você — continuou o assunto com ar de inocência, como se fosse
uma novidade e ele não tivesse falado sobre isso umas duzentas e
trinta e sete vezes.
— Pai, quantas vezes preciso dizer que, além de não querer, eu
tenho zero vocação para gerir um negócio? A única referência que
tenho disso são os milhares de livros que levam essa palavra no
título. Nem em sonho! — Não aguentava mais essas conversas e
acabei alterando a voz, a ponto de deixar minha mãe apreensiva.
— Vocação? Que nada! Você vai aprender tudo o que precisa
para administrar a Vestindo Estilo. ― Meu pai também se alterou e
elevou a voz, seu rosto ganhando uma coloração avermelhada. —
Sei que, hoje em dia, a moda é fazer milhares de cursos, mas na
minha época a gente aprendia na prática. Por isso, quero que você
venha trabalhar comigo o quanto antes. Se quiser ter as suas
regalias de volta… — Ele espetou uma batata e a levou à boca,
deixando claro que não estava aberto a negociações.
— Eu já concordei em acompanhar vocês nos eventos. Este é o
meu limite. — Usei um tom firme e seco enquanto tentava me
controlar para não dizer algo de que me arrependesse depois.
Apesar de ter pensado em uma lista. — Mas, se você faz tanta
questão de que eu trabalhe, prometo encontrar algo que tenha a ver
comigo. Só não me vejo sendo o responsável por não levar à
falência uma cadeia de lojas de roupas no Rio de Janeiro, nem pelo
emprego de tantas pessoas.
— Veja bem, estou tentando ser paciente, mas em breve eu quero
você no escritório da Vestindo Estilo. — Com esforço para não
perder o controle de vez, meu pai substituiu o tom de voz alto por
um mais brando, porém intimidador.
— Perdi a fome. — Levantei em um rompante e atirei o
guardanapo de pano sobre a mesa, deixando o aposento e subindo
as escadas o mais depressa que consegui.
Assim que cheguei ao quarto, me esparramei na cama e resolvi
prestar atenção nos detalhes inexistentes do teto pintado de branco
enquanto tentava, em vão, não pensar no motivo de estar ali — em
vez de comendo as deliciosas costelas ao molho barbecue, como
era o planejado.
Por que meu pai tinha que ser tão cabeça dura? Eu só queria que
ele me ouvisse de verdade. Ou ao menos tentasse. Eu não era
nenhum exemplo de pessoa que sabia o que quer, mas, em algum
momento, eu chegaria lá.
Meu estômago roncou em protesto. Depois de uma prática
intensa de esgrima, ficar com fome não era uma opção. Eu até
poderia ter feito um lanche na saída ou em algum drive thru pelo
caminho, mas preferi garantir que teria espaço no estômago para
um de meus pratos preferidos.
Ah, se eu tivesse previsto…
Eu sabia que meu pai tinha uma reunião importante ainda hoje,
então, esperei ouvir o barulho do motor sendo ligado, para ter
certeza de que ele havia deixado a casa, e saípara satisfazer minha
fome. Desci sorrateiramente até a cozinha e fui abrindo armários e
geladeiras em busca do que comer, torcendo para encontrar algum
pedaço da costela que eu mal havia tocado. Estava considerando
manter um estoque de alimentos não perecíveisescondidos no meu
quarto. O objetivo era de driblar a fome e não precisar mais fazer as
refeições quando meu pai estivesse à mesa. A que ponto cheguei?
Eu estava me tornando um covarde.
Encontrei um pedaço intacto da costela no fundo da geladeira,
escondido pela minha mãe. Enquanto esperava o micro-ondas
terminar de esquentar e sentia o aroma delicioso se espalhando
pela cozinha, meu telefone apitou:
João Lucas:
E aí, cara? Recebi um convite de última hora
para uma festa daqui a pouco. Topa?
Gustavo:
Claro, tô dentro!
João Lucas:
Beleza! Vou colocar seu nome na lista.
Gustavo:
Quem vai ser o motorista da rodada?
João Lucas:
O motorista do Armandinho. Passamos aí pra
te pegar às 17h.
Eu ainda tinha tempo, então comi a costela sem ter ninguém
falando no meu ouvido. Meus amigos nunca decepcionavam no
quesito programação, e eu topava todos os convites só para cruzar
o mínimo possível com meu velho. E, claro, para me divertir
também.
Ele queria um CEO? Que mandasse fazer! Tantos funcionários
esperando por uma oportunidade, por que raios ele não treinava
alguém do jeito que sempre quis?
Pensar sobre isso estragava até a melhor das refeições, por isso
deixei os pensamentos de lado e me concentrei na comida e em
todos os bons momentos que viveria mais tarde. Naqueles drinks
deliciosos que me aguardavam.
Como tinha tempo sobrando, sentei de frente para o PC ligado.
Uma competição de esgrima estava perto de começar e queria
analisar os candidatos. Eu e os caras sempre fazíamos apostas de
quem venceria, e óbvio que também queria aprender uns bons
movimentos para me ajudar a vencê-los quando fosse uma de
nossas disputas pessoais.
Quando horário combinado se aproximou, comecei a me arrumar.
Saí do banheiro apenas com a toalha enrolada na cintura e fui
escolher o que vestir. Optei por uma camisa branca, apesar de
saber das chances de ela voltar manchada, mas me caía tão bem
que valia o risco. Arrumei o cabelo, quase preto de tão escuro, com
um penteado levemente bagunçado de forma proposital e finalizei
passando meu perfume favorito.
Chaves? Ok. Carteira? Ok. A noite prometia.
4

Alice

Inês:
Passo pra te pegar em 5 minutos.
Alice:
Tô pronta.
Inês:
Gostaria que minha irmã fosse pontual como
você. Pra variar, a bonita está atrasada e vai
pedir um carro por aplicativo. Saí correndo
antes de cruzar com a minha mãe e ser
obrigada a esperar pela Ingrid.
Alice:
Sorte a nossa não ser ela com a carteira de
motorista, ou correríamos o risco de perder a
primeira aula.
Em poucos minutos, já que morava bem perto de mim, minha
amiga parou o carro e buzinou em um tipo de código que fazia com
que eu sempre soubesse quando ela chegava. O carro vermelho
que dirigia era uma herança da mãe. Como a faculdade era mais
distante de casa do que a confecção, Iolanda fez a “bondade” de
deixá-lo para elas.
Como Inês dizia, boa ação e Iolanda nunca ficavam na mesma
frase. E eu, melhor do que ninguém, sabia muito bem disso. O que
achava mesmo era que minha chefe amava chegar de motorista no
trabalho — e usar um carro de aplicativo, além de suprir seus
caprichos, ficaria mais barato do que comprar e manter um veículo
novo. O que fazia bastante sentido, já que aquela bruxa era uma
tremenda mão-de-vaca.
— Animada para o último primeiro dia de aula? — Inês mal
esperou que eu entrasse para começar a falar.
— Claro! Amo aquele lugar e tudo o que tenho aprendido, mas
não vejo a hora de pegar o diploma. — Por um momento, minha
mente viajou ao pensar em todas as mudanças que isso traria à
minha vida.
— Mesmo depois de tanto tempo, ainda não consigo acreditar que
você passa as férias enfiada naquela faculdade — Inês comentou
sem nenhum tom de julgamento.
— Em que outro momento eu conseguiria tempo e aquele valor
para os cursos de aperfeiçoamento?
Além de me dedicar muito como aluna, aproveitei cada
oportunidade que tive, substituindo minhas férias por aulas em
cursos de extensão. Por ser aluna matriculada na faculdade, o preço
com desconto ficava irresistível. É claro que eu precisava
economizar, mas foi isso o que me trouxe ao Rio de Janeiro e me
fez aguentar tudo o que vinha passando nos últimos anos. E quanto
mais eu soubesse, maiores seriam os leques de possibilidade.
O curso de férias, também o último que me faltava dentre as
opções oferecidas pela instituição, foi o módulo avançado de
croquis, o que tinha deixado meus desenhos — já muito elogiados
pelos professores — ainda mais precisos. Modelagem, peças
íntimase acessórios estavam entre os outros cursos que eu já havia
feito.
— Ainda bem que conseguimos manter nossa tradição de irmos
juntas no primeiro dia de aula. Não podíamos quebrá-la logo na
última vez — Inês falou com um sorriso no rosto. — É uma pena
que nossos horários não batam, adoraria te dar uma carona todas
as manhãs.
— Você já faz muito por mim. E não falo só das caronas, mas da
sua companhia também. — Encostei a cabeça em seu ombro, em
um gesto de carinho.
Minha amiga fez um som de “ own”e eu agradeci mentalmente por
tê-la ao meu lado. Tudo que já fez por mim… Sem Inês, além de
minha vida ser mais monótona e solitária, seria também mais
penosa. Eu sempre seria grata a ela.
— Ah, vai. Você adora minhas caronas — brincou.
— É verdade. Conseguir voltar com você quase todos os dias
sempre me garante um tempo a mais e um pouco menos de
cansaço antes de enfrentar as horas de trabalho — confessei.
— Chegamos. Melhor você descer, pode demorar até eu achar
um lugar pra estacionar. Te vejo depois. — Inês jogou um beijo no
ar.
Aceitei o conselho e desci do automóvel, passando pela fila de
carros até chegar ao portão de entrada. Andar por aqueles
corredores tinha se tornado algo automático depois de tanto tempo,
mas a sensação de felicidade e orgulho, assim como o frio na
barriga do primeiro dia de aula de cada período, nunca me
deixavam. Avistei muitos rostos conhecidos e troquei cumprimentos
com meia dúzia de colegas. Como eu era muito organizada, peguei
os horários na plataforma on-line da faculdade e estava com o papel
em mãos, mas achei melhor conferir com o que pregavam no mural.
Só por garantia, afinal, quase sempre aparecia uma mudança de
última hora.
— Sabia! — Acabei pensando em voz alta e algumas pessoas
que passavam por mim me olharam com uma cara esquisita.
A programação dessa vez era a mesma, mas a sala da primeira
aula tinha mudado. Como estava adiantada, achei melhor avisar no
grupo da turma para evitar que os desavisados se atrasassem.
Sabe-se lá qual era a aula na sala antiga, mas seria engraçado
pensar no choque de alguns colegas quando se deparassem com o
conteúdo de algo tipo Cálculo I. E foi pensando nisso que fiz o
trajeto até a sala de aula correta, ainda vazia, e tive a liberdade de
escolher onde gostaria de me sentar.
— Valeu, Alice! Nunca ia pensar em conferir. Você está sempre
salvando a gente — Luísa, uma das minhas colegas de classe e
representante da turma na comissão de formatura, falou em nome
de todos, pois foi a primeira a entrar na sala de aula depois de mim.
Em grupos ou solitários, os alunos foram chegando aos poucos e
preenchendo a sala. O burburinho das conversas crescia e detalhes
das férias eram comentados. Início de período, meus colegas
estavam com uma aparência leve, o que geralmente costumava
mudar ao longo do semestre e, por este ser o último, não era
preciso ter algum dom de adivinhação para imaginar as caras de
desespero nas últimas semanas. E eu me incluía nesse grupo.
— Bom dia, turma! — A professora também parecia estar de bom
humor, pelo tom de voz e expressão alegres. — Acredito que a
maioria de vocês esteja concluindo o curso neste semestre. Espero
que aproveitem ao máximo os próximos meses. — Ela foi mudando
a direção do rosto enquanto falava, como se quisesse olhar para
cada um dos presentes.
Como se fosse a pessoa mais pontual do mundo, Ingrid, que era
tão alta quanto a mãe, entrou na sala desfilando e foi procurar um
lugar no fundão. Infelizmente, ela não encontrou um e acabou
tomando o assento vago próximo a mim, que sempre gostei de ficar
nas primeiras fileiras.
— Para esquentar, que tal um trabalho em dupla? — a professora
sugeriu com empolgação, como se estivesse oferecendo ingressos
para o parque de diversões, mas só ela parecia estar achando
divertido.
Ingrid se virou para mim e usou seu melhor olhar de súplica, já tão
conhecido. De início, talvez por ser muito parecida com a irmã,
acabei me enganando. Mas agora, após quase quatro anos de
convivência, eu sabia que as gêmeas tinham pouco em comum.
O estilo de ambas era bastante distinto. Enquanto Inês usava
óculos de aros finos e redondos, quase nada de maquiagem e
roupas em sua maioria neutras, Ingrid sempre fazia mudanças no
cabelo — originalmente preto, mas que no momento estava com
luzes — e a maquiagem e o estilo de roupas eram mais
extravagantes. Essas diferenças também refletiam na
personalidade.
Logo nos primeiros dias de aula, no início da faculdade, Ingrid fez
um trabalho em grupo comigo e, depois disso, percebendo a minha
boa vontade, grudou como um carrapato e acabou virando a minha
dupla oficial em todas as tarefas solicitadas pelos professores. A
questão era que eu sempre acabava fazendo tudo sozinha, ou a
maior parte, e garantia notas boas para nós duas. Eu precisava
aprender a dizer não.
Ingrid era a irmã da pessoa que me ajudou quando mais precisei
e filha daquela que me pagava um salário. Por isso, no início, fiquei
feliz em ajudar a menina, tamanha a minha gratidão. Mas o tempo
passou e percebi que as ajudas foram ficando cada vez maiores, a
ponto de ser obrigada a salvá-la na maioria dos trabalhos. Pelo
visto, nada havia mudado no último semestre. Apenas respirei fundo
e me preparei para fazer o máximo que conseguisse ainda no tempo
de aula. A última coisa que queria era levar mais tarefas para casa,
já que teria que produzir por duas.
Assim, uma aula após a outra foi passando — sem mais nenhum
trabalho em dupla —, até que o último tempo terminou. A aula de
Projeto Final era colocada, de propósito, no primeiro dia do período
letivo, e a ideia era que cada aluno criasse uma roupa original para
usar na formatura, mesmo que ela fosse hipotética para o caso de
quem não fosse ao evento. A proposta da disciplina era construir o
projeto ao longo do semestre e as técnicas utilizadas seriam
avaliadas. Todos os quesitos valiam ponto, mas o resultado tinha um
peso grande na nota. Para os formandos, isso definia quem
concluiria o curso.
Fiquei empolgada de poder colocar em prática minhas ideias para
o look plus size que usaria. Assim que comecei a estudar aqui,
procurei por informações de como funcionavam as disciplinas do
curso de um modo geral e, desde então, vinha planejando os
detalhes para o meu projeto. Assim que aprendi a costurar, me
acostumei a fazer a maioria das roupas que usava. Eu faria meu
traje de qualquer jeito, não só por ser costureira e estudante de
moda, mas também pela dificuldade em encontrar roupas para
pessoas gordas que me agradassem — e complicava um pouco
mais quando se tratava de vestimentas para festas. Se isso
garantisse a nota na avaliação para concluir o curso, melhor ainda.
Nos primeiros meses após me mudar, em uma de minhas saídas
para explorar a região, descobri uma loja com ótimos preços no
calçadão de Campo Grande, que colocava tecidos em uma banca
de R$2,99 o metro. Não era sempre que dava sorte no garimpo pelo
tecido ideal, mas já conseguira diversas vezes, e o meu bolso
agradecia muito por isso.

l
Após ter um dia dos infernos no trabalho, quando entrei no quarto,
meu corpo dolorido agradeceu por finalmente poder relaxar. A
semana só estava começando e já me sentia cansada pelos dias
que viriam. Tomei um banho e saí do banheiro enrolada na toalha.
Ao passar em frente ao espelho de corpo inteiro, parei para me
olhar por uns minutos — algo que não fazia há um tempo. Apesar
de ouvir comentários gordofóbicos ao longo da vida, sempre admirei
minhas curvas e, naquele momento, não era diferente: eu gostava
do que via. Meus exames estavam ótimos, então ninguém precisava
despejar opiniões maldosas disfarçadas de preocupação com a
minha saúde. Por mais que eu não deixasse transparecer, isso me
machucava.
Além das curvas, também observei minha estatura mediana e
cabelo recém-lavado, que, quando seco, era de um loiro cor de
palha. Sorri de forma amorosa para a minha imagem refletida no
espelho e então avistei um hidratante esquecido entre minhas
coisas. Por que não?
Delicadamente, fui espalhando o creme aveludado, tentando
cobrir cada pedacinho sem pressa. Já fazia algum tempo que não
experimentava a sensação de ser tocada — e minha pele se
arrepiou.
Nos meus sonhos acordada, eu esperava encontrar alguém que
me respeitasse e não me julgasse pelo corpo — eu era muito mais
que só um corpo —, que explorasse cada centímetro de pele, todas
as curvas. É claro que se todo esse jeito de agir viesse
acompanhado de ombros largos, não iria me importar nadinha.
A mente viajou nesses pensamentos enquanto minhas mãos
começaram a passear pelo meu corpo — dessa vez, não tinha nada
a ver com o hidratante —, e logo foram em direção à virilha.
Ainda em pé, enquanto observava minha imagem no espelho,
acariciei lentamente a parte externa e comecei a sentir o clitóris
inchar na expectativa pelo toque, que fiz sem pressa alguma. A
sensação era tão gostosa que eu gostaria que esse momento
durasse mais. Uma noite inteira, talvez? Quando cansei de apenas
me atiçar, intensifiquei os movimentos e deixei o prazer aumentar.
Toda aquela energia começou se espalhar pelo meu corpo e
precisei colocar uma das mãos no espelho para manter o equilíbrio.
Encarei meus próprios olhos no reflexo e sorri satisfeita, apreciando
a imagem pós-orgasmo.
Ainda ofegante, vesti a roupa de dormir mais confortável que
tinha: não necessariamente um pijama, mas uma blusa velha e de
pano macio, que havia cedido depois de tantas lavagens e agora
parecia um vestido. Em seguida, peguei um dos potes com
refeições pré-prontas que montava quando sobrava um tempo,
geralmente aos domingos, e o coloquei no micro-ondas.
Enquanto comia, completamente relaxada enquanto apreciava o
sabor de cada garfada, aproveitei para checar as mensagens e
redes sociais. Eu até poderia não olhar as redes sociais, não era
uma obrigação, mas depois de perder uma oportunidade importante
por ficar off-line
, preferia estar sempre conectada.
O aplicativo de compartilhar fotos e vídeos era o que mais
gostava. Costumava seguir marcas e modelos plus size e sonhava
com o dia em que minhas criações chegariam até as pessoas que
precisavam delas, já que o meu projeto de vida principal era criar
peças bonitas e com preços populares.
Um anúncio de material de desenho se misturava às publicações.
Era impressionante como as redes sociais pareciam escutar ou ler
as conversas e sempre mostravam anúncios de coisas que havia
mencionado ou pesquisado. Eu não aguentava mais passar por
anúncios de lápis de cor. Eles podiam ao menos se atualizar quando
a pessoa já tivesse comprado, como era o caso. A última coisa que
queria ver era o mesmo produto por um preço mais barato, depois
de já ter efetuado a compra.
Assim que terminei de comer, coloquei o prato de lado e me
aconcheguei no sofá. Saciada duplamente, o cansaço começou a
tomar conta. Enquanto rolava o feed, algo capturou minha atenção:
uma publicação patrocinada sobre um aplicativo de enviar cartas.
“Nãofará mal dar uma conferida”,pensei. E foi o que fiz. A
proposta do aplicativo era enviar cartas digitais, mas com alguns
elementos que lembrassem um pouco o método tradicional, que tem
sido cada vez menos usado. O que mais chamava atenção era que
as cartas não chegavam imediatamente para o destinatário, como
acontecia com mensagens instantâneas. Era bem mais rápido do
que uma carta tradicional, mas ainda assim levava algumas horas
entre enviar e a pessoa do outro lado receber.
Ainda estava considerando se usaria o tal aplicativo quando me
deparei com os depoimentos de usuários contando sobre boas
amizades e até relacionamentos que começaram por causa das
cartas, e isso acabou me convencendo de que valia a tentativa. Não
pela parte do relacionamento, porque, com a rotina que levava, teria
que escolher entre dormir ou ter um encontro. Como os seres
humanos precisam dormir para repor as energias e continuar suas
atividades, nem me dava ao trabalho de cogitar o assunto até ao
menos ter terminado a graduação. Parecia um pouco radical, mas
cada um com suas escolhas e prioridades. A última coisa que
precisava era ter alguém reclamando que não recebia atenção o
suficiente.
Logo me veio à mente um clube de amizade por correspondência
que participei na adolescência, mesmo não sendo algo muito
comum na minha geração. As sensações gostosas de escrever para
alguém, a expectativa pela chegada do carteiro e de como a forma
das conversas ali eram bem diferentes de quando tudo é
instantâneo.
Em momentos como este, era impossível não me sentir um tanto
solitária. A nostalgia sempre faz isso.
“T alvez, apenas talvez, as cartas podem me ajudar. Quem sabe
me sentir um pouco menos sozinha”, refleti.
Ok, estava convencida.
Quando fui criar o perfil, percebi que, ao contrário de sites de
relacionamentos, você não podia colocar uma foto, mas tinha a
opção de criar um avatar — que poderia ou não corresponder com a
realidade da aparência e talvez refletir traços da personalidade.
Com o perfil finalizado, chegou a hora de escrever a primeira carta e
senti um leve frio na barriga pelo desconhecido. Dentre os vários
usuários disponíveis, um chamou minha atenção.
MeninoDoRio parecia interessante à primeira vista, e acabei me
identificando com o seu lado sonhador. Então, decidi que ele seria o
primeiro a receber uma correspondência minha. Empolgada pela
primeira vez em algum tempo, comecei a escrever, tentando fugir
das clássicas perguntas que todo mundo já estava cansado de
responder e que sempre surgiam em primeiros contatos. Substituí o
de praxe por algo que pudesse trazer muitas respostas peculiares
— ou então respostas que fossem um fiasco. Levei alguns minutos
para escrever tudo o que queria e, quando finalmente apertei o
botão de enviar, não consegui conter o sorriso que se formou em
meus lábios. Pronto! Agora, só restava esperar e cruzar os dedos
para não ter me enganado e o MeninoDoRio ser um completo idiota.
5

Gustavo

Quem me olhasse na frente do monitor acharia que eu só


estava vendo fotos de mulheres em diversos trajes, incluindo roupa
de banho. Tudo bem que isso não era mentira. Mas só estava
fazendo isso porque meu pai era o dono da famosa rede de lojas
Vestindo Estilo, o que me fazia cumprir a “árdua” tarefa.
Ele surgiu com a ideia de não mais exigir, e sim pedir ajuda —
que eu suspeitava ter bem mais do que um dedo da minha mãe. A
ajuda em questão era para selecionar as modelos das campanhas
publicitárias. Como recusar um pedido desses?
Na verdade, eu estava cansado de todas aquelas discussões que
não levavam a lugar algum, pois claramente nenhum de nós estava
disposto a ceder. Aceitar o convite foi a forma que eu achei de fazê-
lo parar de me pressionar. Essa cobrança toda me causava uma
angústia e a sensação de não me encaixar onde deveria ser o meu
lugar. Pelo menos, eu tinha a esgrima para extravasar e as saídas
com os meus amigos para esquecer a realidade.
O chefe da Vestindo Estilo nutria a esperança de que eu, seu
único filho, finalmente criaria interesse pelos negócios da família
após esse trabalho, mas não vinha surtindo o efeito esperado e o
diálogo entre nós estava novamente deixando de ser algo leve.
Eu só queria um pouco de paz, será que era pedir muito?
De tanto estar inserido nesse mundo da moda por conta do
trabalho, eu acabava trocando telefone e mantendo contato com as
modelos, o que obviamente meu pai desaprovava, mas fingia não
ver. Volta e meia, saía com alguma delas, ou com garotas de perfil
parecido com esse padrão. Inclusive, namorei uma das modelos
contratadas pela Vestindo Estilo por um curto período, mas as
especulações e comentários causaram sérios problemas na nossa
relação, comprometendo também a imagem da empresa e a carreira
da Flávia. O burburinho era de que ela só tinha conseguido a
campanha por causa do relacionamento, quando o que aconteceu
foi o oposto disso. Por sorte, sempre aparecia alguma nova fofoca
para chamar atenção e a nossa história acabou sendo esquecida.
Não pelo senhor Rui.
Ainda era cedo para dizer se o que Flávia e eu tínhamos era
promissor ou não, mas o que me deixou chateado foi não ter a
oportunidade de descobrir. E se ela fosse a mulher da minha vida?
Ainda não havia conhecido alguém que realmente abalasse minhas
estruturas, mas estava aberto às oportunidades que a vida tinha
para me oferecer.
Não descartava a chance de voltar a me relacionar com pessoas
que prestassem serviços para a empresa da família, até porque, não
se manda no coração — e eu também tinha sentimentos, mesmo
evitando esse tipo de envolvimento mais profundo. O plano era ter o
cuidado de fazer isso de maneira discreta e não deixar que
questões pessoais chegassem ao público, a fim de evitar
problemas. Pode até ser difícil de acreditar, especialmente quando
se trata da minha família, mas eu sempre fui muito profissional,
tanto nas escolhas quanto ao lidar com as meninas. Mas confesso
que gostava do trabalho não oficial de ter que olhar inúmeros
portfólios das modelos.
Você tem uma nova carta!
Enquanto passava de foto em foto, o telefone esquecido na mesa
apitou, mostrando uma notificação na tela. Em um dos eventos da
empresa, a filha de um dos funcionários mencionou um aplicativo
para troca de correspondências, que resolvi testar. Já fazia algumas
semanas que eu havia entrado no tal aplicativo, mas minhas
tentativas acabaram não criando uma conexão que me deixasse
ansioso para ler as cartas recebidas. Mesmo assim, sempre
respondia e continuava as conversas, porém a empolgação inicial já
havia passado.
Por um momento, ponderei entre continuar o que estava fazendo
e verificar o que tinha recebido, mas a curiosidade falou mais alto.
Então, tratei de abrir a versão web e as cartas substituíram as
modelos na tela.

De: PlusStylistRJ
Olá, MeninoDoRio!
Nem lembro a última vez que escrevi uma carta, então posso
estar um pouco enferrujada. Encontrar este aplicativo foi uma
grata surpresa e estou empolgada em me corresponder sem
saber quem está do outro lado. Ou melhor, sem saber sua
aparência, já que gostos, opiniões e traços de personalidade
se mostram nas linhas escritas. Acredito que essa é uma boa
forma de conhecer a essência de alguém.
A ideia me encanta, então peço que, se a vontade de trocar
cartas for recíproca, não nos identifiquemos. Não quero
quebrar a magia. Sinto que, assim, conseguiremos revelar
traços mais profundos, sem medo de julgamentos. A pressão
social no “mundoexterno”já é grande demais para ser
importada para as cartas.
Estou surpresa de a experiência me aproximar das
lembranças e sensações de escrever cartas no papel. Ao
contrário das mensagens instantâneas, você coloca mais
atenção e até muda a forma de construir as frases. Você
pensa bem no conteúdo e nas possíveis interpretações. Em
alguns casos, imagina a pessoa que vai receber lendo, as
reações dela e sabe que, uma vez enviada, não dá mais para
apagar. Mas não estamos aqui para falar sobre a parte técnica
de trocar cartas, não é mesmo?
Deu para perceber que eu estou nervosa, né? Então, vamos
começar com um quebra gelo. Me conta: o que anda
passando na sua mente?
Fiquei um tempo estático, olhando para a carta, pois
definitivamente não estava esperando nada parecido. A pessoa do
outro lado tinha conseguido minha atenção. Eu já havia me
acostumado com a dinâmica — um pouco desgastante — de
responder perguntas ou traçar um perfil sobre idade, profissão, onde
moro e outras coisas que me faziam sentir que estava preenchendo
formulários para entrevistas de emprego. Até tentava inovar nas
perguntas ou na forma de responder as mesmas coisas, mas sentia
que isso acabava deixando o processo mecânico demais. Só não
fazia ideia do quanto queria, e precisava, de conversas mais
profundas.
Me conta: o que anda passando na sua mente?
Aquela pergunta me deixou pensativo. Tantas coisas passavam
na minha cabeça, mas será que valia a pena compartilhar? Que
imagem ela faria de mim? Eu, que estava acostumado a guardar
meus pensamentos, me vi impelido a me abrir com uma estranha.
Mas por onde começar?
Se eu dissesse que ainda estou de ressaca, será que ela me
julgaria?
Se eu contasse que odeio ter que usar terno e gravata, será que
ela compartilharia do meu drama?
Se eu confessasse que prefiro água a refrigerante, será que ela
me xingaria?
Não sabia… E achava que isso era o melhor de tudo.
Olhei para o computador por vários minutos, tentando encontrar
alguma coisa que a fizesse se sentir da mesma forma que eu
quando li a sua carta. Tudo bem que não sabia explicar muito bem o
que estava sentindo, mas uma empolgação adormecida começou a
despertar.
“Ótimo, finalmente alguma coisa que me tire da apatia”,pensei
comigo mesmo. Por mais que olhar modelos fosse bem
interessante, ainda não era o que me motivava de verdade.
Nos últimos meses, tudo o que havia sentido era uma ausência,
uma sensação de nada. Mas ler a carta da PlusStylistRJfez com
que eu fosse tomado por uma animação atípica.
Depois de pensar bastante, esboçar algumas vezes e apagar
várias, finalmente apertei o botão de enviar.
6

Alice

Já tinha dormido quando a notificação da minha


primeira carta recebida apareceu na tela do aparelho, e só percebi
ao acordar — porque, assim como a maioria das pessoas, verificar o
telefone era uma das primeiras atividades quando abria os olhos.
Tímidos raios de sol adentravam o cômodo através da janela e,
depois de alguns dias nublados, eram mais do que bem-vindos.
Ainda deitada, me espreguicei e soltei um bocejo alto. Quando
estava me sentindo um pouco mais acordada, olhei de novo para a
tela do aparelho.
Minha primeira carta!
A empolgação pelo novo tomou conta de mim. Conferi o relógio e
vi que poderia tirar uns minutos para ler, sem que isso me deixasse
atrasada. Já a resposta teria que esperar um pouco mais.

De: MeninoDoRio
Olá, PlusStylistRJ!
Antes de qualquer coisa, preciso confessar que a sua carta
me deixou sem palavras. Foi uma surpresa positiva, que
despertou em mim a empolgação para escrever algo diferente
de mais uma versão de currículo que as conversas iniciais
geralmente têm. Eu entendo que isso é necessário no
processo de conhecer alguém, independente do objetivo. Mas,
sei lá… É um pouco exaustivo quando você faz isso com
frequência. Então, obrigado por me tirar da zona de conforto.
Entendo o seu pedido, mas preciso dizer que isso despertou
minha curiosidade. Pode deixar, não pedirei informações
pessoais nem revelarei as minhas, a menos que seja de
comum acordo.
Fiquei com a sua pergunta na cabeça por um tempo antes de
me arriscar a iniciar uma resposta. Que pergunta incrível e
difícil! Tantas coisas passam na minha cabeça, e pensar que
as minhas escolhas do que compartilhar vão acabar
influenciando na imagem que você vai criar de mim… Sim, eu
estou enrolando antes de revelar meus pensamentos.
Uma coisa recorrente é que ainda não sei o que eu realmente
quero fazer. Meu propósito ou algo assim. Sei o que esperam
de mim e não estou tentado a seguir por esse caminho, o que
me rende inúmeras discussões familiares. Também não sou
um anjo, mas não ter me encontrado, somado à pressão,
acabou me levando a comportamentos dos quais não me
orgulho muito.
Mas o que eu realmente quero? Não sei. Algumas frases
compartilhadas por aí dizem que sempre é tempo de
descobrir, que não tem idade certa para isso, que algumas
pessoas bem sucedidas começaram depois dos cinquenta,
mas gostaria de ter algumas pistas. Não saber me traz a
sensação de estar andando por aí vendado (como naquele
filme), apenas seguindo, mas sem saber a direção ou onde
quero chegar.
Posso devolver a pergunta, moça?
P.S.: Apesar de não mostrar muito nessa carta, eu sou
divertido, juro!

Foi uma excelente decisão ter lido aquela carta logo pela manhã,
pois isso elevou o meu bom humor e me deixou ainda mais
empolgada para encarar o dia. Uma pontinha de ansiedade queria
que o momento em que teria a oportunidade de parar e responder
chegasse logo. Até poderia rascunhar algumas linhas no trajeto de
ida e volta da faculdade ou em algum intervalo entre as aulas, mas
precisava de tempo, calma e concentração para escrever todas as
coisas que já rondavam minha mente. Por isso, me conformei em
esperar até o fim do dia.
Já que era pra trocar cartas, queria dar o melhor de mim.
Outro motivo que me fazia estar ansiosa pela noite era o fato de
que, segundo o rastreamento, uma encomenda de materiais de
desenho deveria chegar ainda naquele dia. Precisei repor alguns
itens, depois de ter usado o que ainda tinha no curso de extensão
das últimas férias. Queria muito testar as novas folhas com
gramaturas e texturas diferentes, também os lápis de cor — que
chamei de investimento pelo preço que paguei. Eu economizava em
tudo o que podia, mas era diferente quando se tratava do meu futuro
trabalho, se todos os planos dessem certo. Só esperava encontrar
um tempo para continuar praticando as novas técnicas que aprendi.
Quando vi a hora, fui obrigada a deixar os pensamentos de lado.
Já estava quase me atrasando e sabia que Iolanda não perdoaria
caso isso acontecesse.

l
Já no fim da tarde, quando o ritmo da confecção estava menos
acelerado, meu celular apitou. Olhei para os lados, a fim de garantir
que a bruxa não estava por perto, e chequei a mensagem.
Inês:
Oi, amiga! Eu sei que você já está com tarefas
para fazer até 2050, mas será que consegue
abrir uma exceção neste sábado? Garanto que
valerá a pena.
Alice:
Humm, se fazendo de misteriosa… O que você
está aprontando, dona Inês?
Perguntei, já com medo do que minha amiga estava planejando.
Inês era tão imprevisível que seria capaz de sugerir uma visita à
cafeteria ou então uma ida ao Maracanã. Da última vez, ela queria
passar o dia na Pedra do Sal.
Inês:
Esse é o juízo que você faz de mim? É por uma
boa causa! Uma amiga me falou de um abrigo
de animais aqui do bairro e fiquei muito
interessada em ajudar. Então, entrei em contato
e agendei uma visita. Você vem?
Ok… Não era o que estava esperando. Na verdade, estava pronta
para dizer não a qualquer convite, afinal, precisava de um diazinho
para descansar. Só que a proposta de Inês mexeu com um lado
meu que é incapaz de dizer não.
Alice:
Eu adoraria! Só não confirmo ainda, porque
tudo vai depender da sua mãe. Você sabe
como ela é. O único motivo para não
trabalharmos aos sábados e domingos é
porque Iolanda gosta de ter o fim de semana de
folga e não confia em ninguém para nos deixar
sem supervisão. Mas vou tentar dar um jeito.
Inês:
Ótimo, passo aí para te levar comigo, nem que
eu mesma tenha que costurar algumas roupas.
Alice:
Você não existe! <3
O restante do dia de trabalho correu como de costume: comigo
tão sobrecarregada de tarefas que era difícil encontrar tempo até
para ir ao banheiro. Porém, quando consegui, aproveitei para curtir
uns cinco minutos de descanso e paz. Durante todos estes anos
trabalhando na Iolanda Confecções, era em momentos como este
que me permitia parar e escutar o que gritava dentro de mim. Às
vezes, chorava escondida — como agora.
Não aguentava mais ser tratada daquela forma, sem ter feito nada
para merecer. Iolanda fazia questão de exigir tarefas difíceis com
prazos impossíveis.No fim, ainda tentava me humilhar na frente dos
outros funcionários, dizendo que o meu trabalho era básico demais.
Nunca escutei um elogio, nunca escutei um “obrigada”. E tudo isso,
somado às minhas outras obrigações, me deixava à beira da
loucura. Estava sobrecarregada, estafada e louca para jogar tudo
para o alto. Só que, antes de bater o desespero, meu lado racional
fez o alerta de sempre: “Faltapouco, Alice”.Então, sequei o rosto,
respirei fundo e voltei para encarar a minha realidade.
“Faltapouco”,repeti para mim mesma assim que retornei à
estação de trabalho. Aquilo se tornou quase um mantra, que
sussurrava quando estava prestes a desistir. Mas qual seria a minha
opção? Voltar para o interior e continuar ajudando minha avó?
Largar os estudos?
Eu tinha sonhos, e ninguém seria capaz de tirá-los de mim.
O péssimo humor de Iolanda não me ajudou em nada a relaxar. A
carga extra de trabalho distribuída entre todos os funcionários, e não
só para mim, deixou claro que ela não estava para brincadeiras.
Ninguém sabia dizer o motivo que a havia deixado naquele estado,
mas uma coisa era de conhecimento geral: quando ela estava
assim, manter distância era sempre a melhor opção. Ninguém
queria estar por perto para ser o saco de pancadas em que Iolanda
descontaria suas frustrações. Ela não hesitaria em arranjar um
motivo para despedir um funcionário, só para o seu bel prazer. O
silêncio reinava, exceto pelo barulho das máquinas trabalhando, e
era possível sentir a tensão pairando no ar.
Quando encerrei meu expediente, fui para meus aposentos com o
pacote que haviam entregado na confecção. Colocava o local de
trabalho como destinatário das compras, pois raramente estava
disponível em horário comercial.
Ao fechar a porta que separava o local de moradia do de trabalho,
tive que decidir se tomava banho, comia, respondia a carta ou abria
o pacote — que realmente chegou na data prevista. Mas eu iria
acabar dormindo sem banho e sem me alimentar, devido ao
cansaço, se começasse a fazer outras coisas. Por isso, me obriguei
a seguir com a rotina de sempre e, em seguida, tive o meu momento
de criança abrindo o presente de Natal que estava esperando
debaixo da árvore. Só que eu havia sido meu próprio Papai Noel.
Os desenhos e pinturas faziam parte da minha vida desde
pequena; era a forma que encontrava de me divertir, relaxar e
colocar para fora sentimentos. Meus traços e cores refletiam meus
sonhos, medos, alegrias e frustrações. Ainda acumulava uma
modesta coleção de livros de colorir e, por incrível que pareça,
alguns deles estavam completamente preenchidos. Quando estava
focada na tarefa de preencher aqueles desenhos com cores,
esquecia todo o resto. Perdida entre materiais de pintura, deixava-
me levar pela intuição e soltava a criatividade, mas também
aproveitava para praticar as diversas técnicas aprendidas ao longo
dos anos.
Usei o momento para rascunhar algumas ideias que andei tendo
sobre o projeto de vestido para a formatura. A folha em branco
ganhou traços que ajudaram a colocar pra fora os vislumbres que
faziam parte do primeiro esboço que vinha se formando em minha
mente. Ainda não estava satisfeita, mas era um bom começo. E,
com isso, o tempo acabou passando bem mais rápido do que o
previsto. Pelo horário avançado, não podia demorar muito para
dormir, porque a semana ainda estava no começo e demoraria a
poder ter a chance de tirar atrasos de sono. Mas como deixar de
responder à carta quando eu tinha tanto a dizer e a conhecer?

De: PlusStylistRJ
Olá, MeninoDoRio!
Estava com certo receio de como seria a troca de cartas por
aqui, especialmente sendo minha primeira tentativa, e a sua
resposta foi uma grata surpresa. Obrigada por ter sido tão
sincero e compartilhado comigo as suas vulnerabilidades.
Imagino que deva ser bem difícil se abrir dessa forma com
uma estranha, assim como essa espécie de “criseexistencial”
que está vivendo.
Não quero me gabar, mas, nesse aspecto, eu dei muita sorte,
pois sei o que quero fazer desde criança. Eu brincava de criar
roupas para as minhas bonecas e agora continuo minhas
criações, só que para mulheres gordas. Tenho muitos
desenhos guardados, esperando uma chance de ganhar o
mundo.
Torço para que encontre logo o que precisa. Até diria para
você relaxar, mas sei que não é fácil diante dessa situação,
principalmente quando sofremos pressões sociais e familiares.
Que tal tentar olhar as coisas à sua volta? De repente,
aparecem oportunidades onde você menos imagina. Só esteja
aberto a elas.
Gostaria de escrever muito mais, porém meu tempo anda um
pouco corrido. Prometo responder sua pergunta assim que
possível com toda atenção que merece.

Após enviar a mensagem — e, claro, sentir o friozinho na barriga


por conta da expectativa —, comecei a mexer no aplicativo. Eu
ainda não tinha tido tempo de explorar tudo o que ele oferecia,
então aproveitei a oportunidade.
Foi uma ótima ideia ter feito isso, porque descobri que podemos
selecionar as fontes, as cores e o tempo de envio das cartas. O
padrão era que elas chegassem na outra pessoa instantaneamente,
mas havia também a possibilidade de que elas levassem algumas
horas para serem enviadas. Mantive a primeira opção, pois estava
empolgada com a novidade.
Ainda bem, porque, logo em seguida, o alerta de recebimento
brilhou na tela.

De: MeninoDoRio
Ei, não precisa se preocupar, faça no seu tempo!
É bom receber notícias suas, fiquei com medo de que me
achasse um chato e não receber uma resposta, mas parece
que passei na fase eliminatória.
Não quero parecer reclamão, mas não tenho visto nada muito
útil nessa questão ao meu redor. Agora, deixando meus
problemas de lado, vamos falar um pouco de você? O que
pretende fazer no fim de semana? Estou ansioso para te
conhecer melhor através das palavras.

Sorri com a mensagem e meus dedos logo começaram a escrever


uma resposta.

De: PlusStylistRJ
Eu não sabia que estava rolando uma seletiva por aqui, mas
o que será que nos aguarda na próxima fase?
Ainda sobre a sua questão, que tal tentar relaxar um pouco?
Cobranças em excesso talvez piorem mais do que ajudem.
Sabe aquele ditado “Sea vida te der limões, faça uma
limonada”?Ou seria “Espremae faça uma caipirinha.”?As
duas opções são deliciosas, se você gostar de limão. Às
vezes, conseguimos chegar mais perto dos nossos sonhos ou
descobertas através de coisas que nem imaginávamos. Mas
acho que uma boa forma de começar a procurar é usando
aquilo que você gosta, as causas e valores que acredita e
defende. Você nem pediu e aqui estou eu, opinando e dando
conselhos. Acho que me empolguei.
Falando em causas, recebi um convite para conhecer e
possivelmente ajudar um abrigo de animais. Estou ansiosa e
espero realmente conseguir ir. E você, o que anda
aprontando?

Sua carta foi enviada!


O aplicativo alertou e fiquei sorrindo que nem uma boba na cama,
olhando para o celular. Como nada mais apareceu na tela, resolvi
escovar os dentes e me preparar para dormir. Já dizia o velho
ditado: panela vigiada não ferve. Foi só eu me afastar que ouvi o
barulhinho de mensagem e corri para ler o que ele tinha escrito.
De: MeninoDoRio
Aprontando? É esse o juízo que faz de mim? Eu sou um anjo!
Abrigo de animais? Depois me conte como foi.
Esse fim de semana tem tudo para ser a repetição do que
vem acontecendo nos últimos tempos, mas como você ainda
não sabe, vou te contar.
Meus amigos têm sempre alguma programação:
resumidamente, a gente sai para comer e beber algo, colocar
os assuntos em dia, viagens curtas, fazer alguma atividade
física, coisas assim. Essas saídas têm acontecido além dos
fins de semana, confesso, mas está insuportável ficar em casa
nos mesmos horários que meu pai, então eu faço de tudo para
estar o mais longe que posso.
Dessa lista, o que eu mais gosto são as viagens e os
esportes. Conhecer lugares novos me dá um gás. Já
movimentar meu corpo, sentir o suor escorrer e as endorfinas
pulsando, sempre faz com que eu me sinta bem. Pratico
esgrima e sou apaixonado por isso. Quem sabe um dia você
mude de ideia e eu possa mostrar a minha espada?

Foi impossível controlar o riso com esta última pergunta. Pelo


visto, MeninoDoRio tinha senso de humor, mesmo que fosse
recheado de safadezas.
Nem esperei um minuto e já digitei minha resposta.

De: PlusStylistRJ
Nossa, você é tão engraçadinho. Espada, é?
Gostaria de lembrar que Lúcifer também era anjo. Nada mais
a declarar!

Fiquei empolgada quando, pouco depois, a notificação da


resposta brilhou na tela.
De: MeninoDoRio
Apesar da minha brincadeira de duplo sentido, eu realmente
uso espada para praticar a esgrima, porém, acredito que o
mais conhecido seja o florete. Eu poderia ficar explicando toda
essa parte técnica, mas acho que seria entediante para você.
Mostrar seria bem melhor. Quem sabe um dia?

— Ai, MeninoDoRio… Vamos com calma, tá? — disse para mim


mesma.
Apesar de o relógio indicar que já era tarde, o sono me faltava.
Conversar com ele, mesmo sem falar nada demais, havia sido a
melhor parte do meu dia. Reli as brincadeiras e fiquei imaginando o
que ele pensaria sobre mim se me conhecesse.
Mas logo afastei os pensamentos e saí do aplicativo. Não sabia o
que responder. Por mais que eu quisesse continuar com a troca de
cartas, ainda não estava me sentindo confiante o suficiente para
aceitar um encontro ao vivo e a cores.
7

Alice

Quando o sábado chegou, Inês foi me buscar logo


cedo para o nosso compromisso. Por um milagre de algum ser
superior que devia gostar muito de animais, eu estava disponível
para a visita ao abrigo. Durante o trajeto, ela mencionou que ouviu
sua irmã mais velha — que sempre se vangloriava de ter nascido
três minutos antes dela — chegar da noitada nas primeiras horas da
manhã.
— A porta do quarto estava aberta e vi a Ingrid lá, jogada na
cama, ainda de sapatos — comentou.
— Me conta uma novidade — brinquei, mesmo sabendo que Inês
se preocupava bastante com a irmã. — Nos últimos meses, ela tem
saído mais do que o normal.
Por mais que sua postura em sala de aula me lembrasse a de
Iolanda, eu também sabia que Ingrid não era tão rebelde assim.
Bastava prestar um pouco de atenção nela para saber que, na
verdade, aquela postura toda era apenas uma forma de mascarar
sua infelicidade. Eu também seria infeliz se tivesse que fazer todas
as vontades de Iolanda.
“E não é isso que você faz?”, uma vozinha chata perguntou dentro
da minha mente, e resolvi ignorá-la.
— Minha irmã não está legal, Alice. E eu não sei o que posso
fazer para ajudar. — Olhei para Inês, que mantinha seu foco na
direção, e murmurei que a entendia.
De certa forma, conseguia me identificar com Ingrid.
— Sua mãe te viu saindo? — questionei, imaginando o que
Iolanda diria caso soubesse o que sua filha estava prestes a fazer.
— Claro que não! — Soltou uma gargalhada. — Você sabe que
minha mãe não se importa com essas coisas.
— Eu odeio falar isso, mas sua mãe só se importa com ela
mesma.
— Não vamos falar de dona Iolanda agora — minha amiga mudou
de assunto com um abanar de mão. — Você está tão ansiosa
quanto eu para conhecer o abrigo?
Quando concordei, Inês pegou a deixa e não parou de falar
durante todo o trajeto, de tão empolgada que estava.
Minutos depois, chegamos ao abrigo e ela estacionou o carro em
frente ao muro com o nome do local — Amor de Animal — e
patinhas pintadas. Mesmo se não tivesse identificação, era possível
ouvir muitos latidos, e isso só nos fez ter certeza de estar no lugar
que procurávamos. Tocamos a campainha e, logo em seguida, o
barulho de chave anunciou que a porta estava sendo aberta. Uma
moça alta, simpática e com uma quantidade considerável de pelos
na roupa apareceu à nossa frente.
— Bom dia, meninas. Que bom ver vocês! — Ela parecia feliz em
receber novos visitantes interessados em ajudar.
— Pâmela? — Inês confirmou.
— Sim, e você deve ser a Inês. Estou vendo que trouxe reforços.
— A moça sorriu de forma espontânea, mas era possível notar os
traços de cansaço em sua postura, por mais que ela tentasse não
demonstrar. Eu já estava familiarizada com isso e me solidarizei
com ela na mesma hora. — Entrem, vou mostrar tudo para vocês.
Vamos começar pelo canil.
Senti um frio na barriga, tanto pela ansiedade quanto pela
apreensão de não saber o que nos esperava. Pâmela indicou o
caminho para onde os cachorros ficavam. O local não era muito
grande, mas ela explicou que era necessário separar os cachorros
dos gatos. Seguimos enquanto tentávamos decidir para onde olhar
primeiro, pois os latidos e rabinhos abanando ganhavam rostos. Ou
será que deveria dizer focinhos? E eles eram muitos, a ponto de não
dar para contar, divididos em canis coletivos.
Apesar de o motivo de estarem ali ser o abandono e os maus-
tratos, pareciam muito bem cuidados, dentro das possibilidades. Os
animais tinham tamanhos, cores, pelagens e personalidades
diferentes. Uns mais agitados e outros um pouco mais tímidos, mas
todos resolveram latir ao mesmo tempo, como se quisessem dizer
“Meleve com você, tenho muito amor para oferecer!”.Amoleci no
mesmo instante. Qualquer pessoa com alma que estivesse no meu
lugar amoleceria também. Fui tomada por uma mistura de pena e
esperança; de solidão e companheirismo; de carinho e abandono.
Nunca pensei que entrar em um abrigo pudesse ser tão
impactante.
— Como vocês podem ver, a maioria dos animais que temos aqui
é adulta, uma parte deles é idosa, inclusive. Eles chegam até nós de
todas as formas imagináveis e inimagináveis. — Ela respirou fundo
antes de continuar o relato. Por mais que tivesse habituada a ver
esse tipo de situação, era visível a indignação no modo como falava.
— Abandonos na porta, pedidos de resgate, encontrados no lixo,
vítimas de maus-tratos. Alguns são deixados na rua para morrer,
tratados como objetos descartáveis.
— Não faz sentido para mim. Não entra na minha cabeça pegar
um animal desses, que depende de você, para depois abandoná-lo
— compartilhei meus pensamentos enquanto secava uma lágrima.
Dilacerava-me só de pensar por tudo que esses e tantos outros
animais passavam, além de toda a negligência.
Sempre tive um ponto fraco: animais em situação de abandono.
Se pudesse, adotaria uma dezena de cachorros e gatos. Porém,
morando na confecção, seria impossível ter bichinhos. Iolanda
jamais aceitaria. A mulher não tinha carinho por humanos, quem
dirá por animais! Mesmo assim, olhei ao redor, sentindo o peito
apertar mais um pouco, e respirei fundo algumas vezes.
— Alguns casos são tão críticos que, às vezes, temos dúvidas se
a recuperação é possível, mas sempre damos nosso melhor para
salvá-los. Mesmo não tendo mais espaço ou recursos, como eu
poderia deixá-los à própria sorte? — Pâmela fez carinho em um dos
cachorros que estavam apoiados nas grades, esperando a vez de
receber atenção.
— Deve ser desesperador acompanhar esses casos, ver os
animais sofrendo, muitas vezes por conta da maldade do ser
humano — Inês se manifestou, a tristeza nítida em sua voz.
Isso era outra coisa que nós tínhamos em comum. Sempre que
possível, andávamos com água e ração na bolsa para amenizar o
sofrimento dos bichos que cruzavam nosso caminho. Certa vez,
Inês comprou briga com um homem que tentava chutar um cachorro
e, para sua sorte, como muitas pessoas foram ver o que estava
acontecendo, ele se retirou.
— Por isso, contamos muito com a bondade das pessoas que nos
ajudam, seja com ração, remédios, dinheiro e com os nossos
maravilhosos voluntários que ajudam em todo tipo de tarefa. — Ela
parou de andar perto do local onde três peludinhos dormiam
enrolados uns nos outros. — Como vocês podem ver, no momento,
quase não temos filhotes por aqui. Eles conseguem ser adotados
com mais facilidade. Já o caso dos adultos é bem difícil, mas não
perdemos a esperança de que eles saibam como é ter um lar.
— Nossa, olha só pra eles. Eu não consigo acreditar que as
pessoas têm coragem de fazer mal para um bichinho desses — Inês
reforçou o pensamento compartilhado por todas.
— Se vocês soubessem as histórias… É cada caso que chega até
nós que, às vezes, parece milagre ver a recuperação deles. São
guerreiros.
— Que bom saber da existência de pessoas como vocês, que
lutam por eles. Renova a esperança na humanidade — minha amiga
disse.
— É uma luta diária, mas não podia ser diferente, eles precisam
de nós. — Pâmela olhou com doçura para os animais. — Agora,
vamos ver o gatil.
Mais uma vez, seguimos a mulher. Quando chegamos à parte
reservada aos bichanos, estancamos no lugar. Não estávamos
preparadas para o que vimos atrás daquela porta. A maioria dos
gatos estava solta. Alguns dormiam e outros brincavam. Apenas
poucos estavam presos em uma espécie de retângulo, com uma
porta de grade.
— Os gatos ficam soltos e convivem muito bem. Somente os que
estão em tratamento, os que ainda não foram castrados, as mães
com filhotes ou os que têm doenças contagiosas ficam separados.
Entre os animais presos, havia uma gata amamentando três
filhotes, dois gatos com etiqueta presa na grade dizendo de que tipo
de doença eles sofriam, e um muito peludo, com um machucado em
processo de cicatrização. Lino, como a etiqueta revelava — o que
me leva a pensar que seria algum tipo de abreviação para felino —,
batia com a patinha na parede de metal como forma de chamar
atenção. Inês prontamente foi até ele e começou a fazer carinho
através das grades. O gato ronronou, satisfeito.
O espaço dos gatos tinha camas, caixas de areia, comida,
brinquedos, prateleiras e, assim como os cachorros, eles pareciam
muito bem tratados. Isso me gerou uma sensação de alívio.Por não
conhecer muito a respeito e ser a primeira experiência presencial
em um local como este, esperava encontrar muitos animais em
situações críticas. Ver que estavam saudáveis e felizes, depois de
tudo o que passaram, era de aquecer o coração. Mas eu sabia que
nem sempre era assim.
Sem que eu percebesse, um gato de pelagem rajada e branca se
aproximou e começou a se esfregar em minhas pernas.
— Parece que o Nick veio se apresentar. — Pâmela observou a
cena, satisfeita.
— Oi, Nick! — Ouvir a minha voz foi o incentivo que ele precisava
para ficar em pé e apoiar as patas dianteiras na minha perna,
lembrando uma criança pedindo colo.
— Posso pegar? — Olhei para Pâmela, esperando a autorização.
— Claro! Ele é muito carinhoso.
Eu me abaixei e peguei Nick, que colocou uma pata em cada
ombro meu e começou a esfregar o focinho em minha bochecha
enquanto eu o acariciava. Que pelo macio! Era possível ouvir o
ronronar de longe, e ele praticamente estava massageando os meus
ombros enquanto fazia o famoso gesto de afofar com as patinhas e
unhas.
— Que amor! — Tive vontade de assinar os papéis de adoção
naquele minuto.
— Como podemos ajudar? — Inês perguntou e eu, que estava
distraída com Nick no colo, voltei minha atenção para as duas.
— Existem diversas formas. Algumas pessoas doam dinheiro ou
itens, como remédios, comida, jornal, tapetes higiênicos, produtos
de limpeza… Varia de acordo com a nossa necessidade ou se têm
algo sobrando.
— E vocês conseguem doações o suficiente para cobrir os
gastos? — Inês continuou perguntando, na tentativa de entender um
pouco melhor a dinâmica do lugar.
— Quem dera. Seria um sonho. Os custos são bem altos, ainda
mais nas condições que eles chegam. O saldo fica constantemente
negativo. Sempre estamos divulgando pedidos de ajuda nas redes
sociais e também mostramos os animais disponíveis para adoção
por lá. Muitas pessoas não têm condições de adotar ou contribuir,
mas ajudam muito compartilhando e fazendo a informação chegar
em outras pessoas.
— Vamos ficar de olho na página e divulgar para alguns amigos
que se interessam pela causa. — Dava para ver que minha amiga
estava mais do que ansiosa para poder ajudar.
— Agradecemos muito. — Pâmela sorriu para nós mais uma vez.
— Outras pessoas, geralmente os voluntários, ajudam nas feiras de
adoção e nos cuidados diários com os animais. Precisa alimentar,
trocar água, dar remédio, recolher as fezes, limpar urina e fazer um
carinho também.
— Parece que tem bastante trabalho por aqui — ainda com Nick
no colo, entrei na conversa.
— E como! Também estamos sempre abertos para sugestões de
novas formas de ajudar. Aliás, teremos um mutirão para dar banho
nos cachorros em breve, se o tempo tiver bom. Sintam-se à vontade
para se juntarem a nós.
— Claro, faremos o possívelpara vir. Você já tem meu número, só
me mandar uma mensagem com o dia e horário — Inês disse, lendo
meus pensamentos.
Eu não via a hora de entrar em ação. Só tinha visto um pouco,
mas foi o bastante para me deixar disposta a fazer minha parte.
— Vamos pensar em outras maneiras de ajudar, de repente com
alguma forma de arrecadar dinheiro, já que, pelos seus relatos,
parecem precisar com urgência. — Estava tão sensibilizada pela
causa que minha cabeça fervilhava com ideias que ainda
precisavam ser estruturadas.
— Você nem imagina. Algumas vezes, tem procedimentos
urgentes que não conseguimos fazer pela falta de recursos.
Dependendo da situação, o tempo é precioso e faz muita diferença
na recuperação. — Só de pensar nisso, fiquei com aperto no
coração.
— O que podemos fazer para te ajudar hoje? — perguntei e, em
troca, vi o olhar animado da mulher.

l
Depois de algumas horas no abrigo — revezando entre ajudar
Pâmela e acariciar os animais —, eu estava me sentindo renovada.
Era muito bom poder fazer algo altruísta. Olhando para Inês, sabia
que minha amiga se sentia da mesma forma.
Apesar cansadas e com as pernas doloridas, ambas sorrimos.
— Te avisamos assim que tivermos alguma ideia boa e viável.
Nós já vamos, mas com certeza voltaremos. Pode colocar nossos
nomes na lista de voluntários. Temos muito o que aprender ainda,
mas disposição e boa vontade está sobrando. ― Inês acariciou seu
mais novo amigo, Lino. — Obrigada por nos receber e pela atenção.
— Nós que agradecemos o interesse em ajudar. As portas
estarão sempre abertas. — Pâmela se despediu da gente,
parecendo bem mais leve do que quando chegamos.
Fomos embora com vontade de ficar no meio dos animais e muito
empolgadas com a possibilidade de contribuir de alguma forma. Eu
cresci vendo a minha avó fazer o que podia para ajudar o próximo,
então, poder seguir seus passos e ficar na companhia de tantos
animais cheios de amor para dar me ajudava com a falta que eu
sentia dela.
Crescer sem meus pais me deixava com a sensação de faltar
algo, que eu não sabia o que era e ainda não havia conseguido
preencher. Mas ainda bem que eu tive a minha avó para me acolher,
senão o vazio seria ainda maior.
— Obrigada por vir comigo e desculpe por te arrumar mais
atividades em potencial — Inês falou sem tirar os olhos da direção,
interrompendo meus pensamentos. — Sei que você já tem coisas
demais para fazer.
— Tá brincando? É claro que eu quero ajudar! — Por um
momento, deixei de lado toda a saudade e me foquei no presente. A
minha empolgação era equivalente à de Inês, e queria que minha
amiga soubesse disso. — Vou dar meu jeito, nem que seja usando
algum artefato para voltar no tempo. — Podia até ser brincadeira,
mas eu tinha o pressentimento de que eu realmente precisaria achar
um desses para mim.
— Valeu, Alice. Mas também não esperaria nada diferente de
você.
— E eu de ti, por isso somos amigas. — Ela sorriu com meu
comentário. — Obrigada por hoje. Aliás, você viu aquele gato?
Como eu queria poder levá-lo para casa.
— Eu já estava até imaginando você saindo de lá com ele
agarrado no seu pescoço. Também adotaria vários, se pudesse.
Mas você conhece minha mãe, então, só quando eu me mudar. —
Inês falava com frequência sobre a sua vontade de sair de casa e
torcia para que isso não demorasse a acontecer. Não que ela
desgostasse da mãe, mas os valores das duas eram bem diferentes
e isso tornava o convívio difícil. Nem consigo contar quantas vezes
ela me ligou para reclamar de alguma coisa que Iolanda havia feito.
— Então, o que acha de parar para comer alguma coisa? —
mudei de assunto quando escutei minha barriga roncar. — Não
quero cozinhar hoje, nem comer o macarrão instantâneo guardado
para emergências.
A triste verdade era que essas “emergências” eram mais
frequentes do que eu gostaria de admitir.
— Também estou morrendo de fome. Vamos até o shopping, lá
tem muitas opções.
— Já disse que você é uma gênia?
Chegamos ao Park Shopping Campo Grande em poucos minutos,
o que foi surpreendente, pois apesar de o trajeto ser curto, o trânsito
fazia o percurso durar uma eternidade. Dentre tantas opções de
comida, Inês foi para a fila daquele restaurante de massas que você
escolhe todos os ingredientes, enquanto eu optei por montar meu
prato em um buffetcom preço fixo, assim poderia escolher o que
queria comer sem me preocupar com o preço final. Sonhava com o
dia em que escolheria onde e o que comer pelo que tivesse
vontade, e não pelos números depois do cifrão.
— Eu tinha esquecido que esse lugar ficava tão cheio. Ainda bem
que conseguimos essa mesa — falei antes de colocar a primeira
garfada na boca.
— Nem me fala. Depois de já estarmos com as bandejas na mão,
só nos restaria fazer malabarismo para comer em pé ou aguardar
pacientemente um lugar aparecer enquanto a comida esfria. —
Começamos a rir ao imaginar a possibilidade.
— Na próxima vez, pode ser um bom plano acharmos a mesa e
uma de nós ir primeiro, enquanto a outra guarda o lugar.
— Podemos fazer isso com a sobremesa. Se bem que,
dependendo do que for, não precisaremos de mesa. — Inês nem
tinha acabado de comer o almoço e já estava pensando nas opções
deliciosas de doces. Típico.
— Algo em mente?
— Nada especial. Agora, aproveita para me contar as novidades.
— Ah, Inês, a minha vida é aquela rotina que você já conhece. A
única coisa que aconteceu de diferente foi eu ter começado a
desenhar meu vestido de formatura e a conversar com um
desconhecido por cartas. Aliás, você quer que eu faça um desenho
para o seu vestido de formatura também?
— Não precisa se preocupar com isso, eu não vou participar.
Aliás, vou comemorar na sua, então trate de providenciar o meu
convite. — Inês se aproximou de mim como se eu estivesse
contando algum tipo de segredo. — Agora, me fala mais sobre esse
lance de carta. Como assim, um desconhecido? E como conseguiu
o endereço dele? — Inês tinha uma expressão curiosa no rosto, e
não me surpreendi em nada que ela tenha escolhido focar nessa
parte. Pelo visto, minha tentativa de desviar do assunto não tinha
surtido o efeito esperado.
— Sem endereços, são cartas virtuais. — Achei graça da
situação, porque, se fosse pouco tempo atrás, jamais imaginaria
essa possibilidade. — Existe site para isso, sabia?
— Não sabia, mas não me surpreende. Existe aplicativo para tudo
que se possa imaginar. Quando não tem aplicativo para alguma
função, certeza que dá para achar algum vídeo tutorial ensinando
como fazer. — E lá estava Inês, tagarelando mais uma vez.
Característicaque eu sempre gostei nela. Eu não era de falar muito,
então isso trazia certo equilíbrio. — É tipo um site de
relacionamentos, só que de cartas?
— Não tinha olhado por esse ângulo, mas sim e não. Para quem
gosta de trocar cartas, é um espaço em que você encontra pessoas
disponíveis, sem precisar se identificar ou ir até os Correios. Mas, se
levar em conta que amizade é um tipo de relacionamento, então não
deixa de ser. Se bem que li depoimentos de casais que se formaram
por causa disso, mas casais se formam de muitas maneiras,
então… — Dei de ombros, na esperança de encerrar o assunto.
Não queria ter que compartilhar sobre como me sentia a respeito,
quando eu nem havia pensado sobre isso. Comecei sem pretensão
alguma e essa troca de cartas estava se tornando uma das
melhores partes do meu dia. Eu aguardava ansiosa para ler cada
linha, e algumas andavam me arrancando boas risadas. O senso de
humor dele dava um tempero a mais.
— Se você diz… Fico feliz em saber que está conhecendo
pessoas novas. Me mantenha atualizada. — Inês piscou.
— Claro, você sempre é a primeira a saber de tudo que acontece
na minha vida.
— Sorvete e cinema? Tem um com um chocolate derretido no
fundo do cascão que faz valer a pena cada centavo. — Inês me
olhou com uma expressão irrecusável. Nossos pratos já estavam
vazios.
— Só se você me deixar escolher o filme. — Não perdi a chance.
— Certo. Só gostaria de lembrar que o filme vai praticamente se
escolher sozinho, já que teremos que optar pelo horário disponível
mais próximo.
— Não sendo de terror, por mim tudo bem. Vamos descobrir qual
será o filme sortudo que nos terá como espectadoras.
Para a minha alegria, a opção era uma comédia romântica, meu
gênero preferido. Inês gostava mais de filmes com uma pegada de
suspense e ação, mas assistia a todos os estilos sem reclamar.
Horas depois, nós voltamos para casa discutindo o filme como se
fossem acontecimentos reais e o que faríamos no lugar dos
protagonistas em determinadas situações. Quando estávamos
dentro da sala de cinema, não abríamosa boca para comentar nada
depois que os trailers acabavam.
Já em casa, lembrei de uma certa carta esperando por resposta e
resolvi fazer isso antes de realizar as tarefas pendentes, para não
acabar esquecendo. Desse jeito, o MeninoDoRio iria até achar que
eu não queria mais conversar.
Escrever cartas e fazer compras on-line estavam na lista das
coisas que eu preferia fazer no computador, em vez de no celular.
Mas, naquele momento, não estava nem um pouco a fim de tirar o
aparelho do lugar em que estava guardado, esperar ligar, estar
pronto para ser utilizado, depois ter que desligar e guardar
novamente. O aplicativo era mais prático, tinha que admitir. Já vi um
amigo escrever um livro inteiro pelo celular, então eu poderia
escrever uma carta.
Sentei em uma posição confortável e comecei a refletir sobre
como responderia, já que eu o deixei esperando na noite passada.
Não esperava que ele fosse mandar a mesma pergunta que eu
havia feito na primeira carta, e tive que concordar com ele sobre ser
uma pergunta difícil de responder. Tanta coisa passava pela minha
cabeça que a carta se transformaria em uma sessão de terapia de
tão grande. Por hora, teria que selecionar algumas coisas, mas com
certeza falaria sobre a experiência no abrigo de animais. Aquilo
havia me marcado demais para passar em branco.
8

Gustavo

Talvez ela tenha me achado um chato. Esse foi o


pensamento recorrente enquanto esperava por uma resposta, que
parecia estar demorando mais do que o normal para chegar. Será
que a minha brincadeira sobre a espada foi pesada demais? Não
queria admitir, mas havia passado o dia ansioso por uma carta e
fiquei me perguntando se teria espantado a minha nova… será que
eu poderia chamá-la de “amiga”? Volta e meia abria o aplicativo
para conferir se poderia ter ocorrido algum tipo de bug e eu não ter
recebido a notificação. Apesar de existirem, as chances de isso
acontecer eram mínimas, mas um homem podia sonhar, não é
mesmo? O aparelho estava a postos e, assim que o aviso chegou,
corri para ler a resposta. Ela não havia desistido de se corresponder,
afinal.

De: PlusStylistRJ
Olá, MeninoDoRio!
Desculpa a demora em responder. Já te disse que minha vida
é uma loucura? Os últimos dias foram infernais, para dizer o
mínimo, mas prometo que, daqui em diante, tentarei ser mais
pontual em nossas trocas de correspondência. Não desista de
mim!
Tenho uma novidade para te contar. Hoje, visitei aquele
abrigo de animais e… nossa! Estou apaixonada por eles e
sensibilizada pela causa. Quero muito ajudá-los de alguma
forma. Ainda não sei como, mas tenho certeza de que uma
boa ideia vai aparecer quando eu menos esperar.
Ah, sei que demorei, mas não esqueci de responder à sua
pergunta. Ou será que eu deveria dizer minha pergunta? O
que tem passado na minha cabeça é isso: fazer algo por
esses animais e a minha formatura, que está finalmente
chegando. Isso me deixa cada vez mais perto do meu grande
sonho. Pode anotar: ainda serei uma estilista reconhecida na
moda plus size. Confesso que a nossa troca de cartas
também tem roubado meus pensamentos.
E você, tem algum sonho? O que te dá prazer?

Estava impressionado como, no meio das trocas de cartas dos


últimos dias, minha correspondente havia me colocado para pensar.
Algo no jeito de ela escrever mexia comigo. Cheguei a cogitar que
ela fosse um ser sobrenatural enviado para me salvar, só pela dose
de vitalidade que nossas conversas vinham trazendo para a minha
vida.
Balancei a cabeça e ri sozinho da imaginação fértil. Sim, tenho
sonhos, e um deles envolvia poder ajudar o próximo de alguma
forma. Talvez isso trouxesse um pouco de sentido à minha vida.
Eu sabia que era privilegiado. Nasci em uma família rica e cresci
com luxos que a maioria nunca nem sonhou em ter. Era fácil ser
rico. Muito fácil me entregar à opulência ao meu redor… Ao mesmo
tempo, sentia que me faltava algo. Talvez um propósito. Uma causa,
como a menina da carta disse.
A realidade da maioria era muito complicada, enquanto a minha
era simples. A única preocupação era a de não me tornar o CEO da
empresa da família. Às vezes, isso fazia com que eu me sentisse
tão… banal. Ter dinheiro na conta bancária era ótimo, mas, ao
mesmo tempo, não conseguia me sentir satisfeito. Principalmente
por eu nunca ter conquistado um centavo sequer daquela fortuna.
Meu avô havia trabalhado duro para criar a empresa que hoje é
tão bem-sucedida, e meu pai seguiu pelo mesmo caminho, dando
continuidade aos negócios da Vestindo Estilo. Enquanto isso, até
aquele momento, eu apenas usufruíado que o dinheiro podia pagar.
As melhores escolas, aulas caras de esgrima, viagens, nunca
precisar me preocupar com o valor de algo na hora de comprar…
Sentia que estava mais do que na hora de fazer algo pelo que
acreditava, só não fazia ideia de por onde começar. No fundo,
estava acomodado com meu estilo de vida confortável e com o fato
de não ter obrigações a cumprir. Então, acabei nunca procurando
alguma causa para me engajar ou uma carreira para seguir.
Ler a carta falando sobre os animais, e do quanto aquela moça
gostaria de ajudá-los, plantou uma sementinha em mim. Desde
criança, eu amava bichos. Ao longo da vida, convenci meus pais a
aceitarem em casa alguns dos que achei na rua, mas nunca tinha
pensado que poderia fazer algo por mais animais, além de uma
adoção ocasional. Os meus bichinhos foram morrendo com o passar
dos anos e agora só restava o Joca, que apesar de idoso, tinha uma
energia de dar inveja.
— Bom, talvez seja a hora de procurar uma forma de fazer algo.
Pelo menos, é um começo — sussurrei para mim mesmo.
Ainda tinha algo no fim da carta que me deixou intrigado.
O que te dá prazer?
Por que diabos essa mulher fazia perguntas tão intensas? Eu
conseguia pensar em mil e uma interpretações para “prazer”, mas
não pude evitar deixar minha mente viajar pensando em safadezas.
Essa pergunta tinha um duplo sentido, não tinha?
Será que foi intencional e ela pensava da mesma forma que eu?
Não consegui conter o sorriso. Será que valia o risco responder à
altura? Recostei na cabeceira da cama e comecei a criar dezenas
de possíveis comentários na minha cabeça.
Conhecer você me daria muito prazer.
Sei de várias formas que sinto prazer. Quer testá-las comigo?
Conto as minhas se você contar as suas.
Deixei minha mente viajar por um tempo, tentando imaginar como
a PlusStylistRJseria. Não consegui visualizar um rosto, mas pude
imaginar gemidos, aromas, desejos. Meu corpo endureceu com o
pensamento.
Uau! Com certeza, essa mulher despertou a minha atenção…
além de outras coisas. Levantei e fui tomar um banho frio.
9

Alice

De: MeninoDoRio
Sonhos e prazer, uh?
Antes de tudo, preciso que me conte: que espécie de
poderes mágicos você tem? E não aceito uma negativa como
resposta, porque, com certeza, você tem algo de paranormal.
Se ainda não descobriu o que é, sugiro investigar. ;)
A essa altura, você deve estar pensando que eu enlouqueci,
mas irei explicar do que estou falando. Pois bem, você tem
algum dom com as palavras, e isso mexe comigo de uma
forma que não sei explicar. Sempre me deixa pensativo e
instigado.
Ainda não sei muito sobre meus sonhos, além de querer
fazer algo que dê sentido à minha existência. Espero que não
me julgue por isso, mas ainda não pensei muito além. Assim
que tiver mais informações, eu aviso.
O que me dá prazer? Ah, se eu te contasse… Consigo
resumir bem em uma frase: o que me dá prazer são coisas
que me fazem sentir vivo. Você já sabe que pratico esgrima e
isso com certeza está entre os principais itens, pois reúne dois
itens importantes que são o esporte, que eu amo, e boas
companhias, já que faço isso com meus amigos. Estar com
eles é sempre divertido. Outro dia, tive que postar a foto da
minha bunda no grupo por ter perdido uma aposta, mas eles
me deixaram apagar logo depois. Também acrescentaria à
lista novas experiências, ver a felicidade das pessoas que eu
gosto e dormir de conchinha, apesar de ter bastante tempo
desde a última vez que fiz isso.
Agora, posso confessar algo que não me dá o mínimo de
prazer? Passar o dia com meu pai. Só que amanhã é Dia dos
Pais, e vamos almoçar fora. Prometo que vou tentar me
comportar e não puxar briga. Quem sabe este não seja o
presente dele?

Terminei de ler a carta que o MeninoDoRio havia me enviado no


dia anterior e estremeci. Tinha me esquecido de que era Dia dos
Pais. As lágrimas começaram a brotar, e fechei os olhos por um
momento. A saudade veio com tudo, e precisei respirar fundo
algumas vezes para me controlar. Não sei por quanto tempo fiquei
no sofá, apenas sentindo falta da família que me foi tirada cedo
demais, porém, quando me levantei, estava decidida a encarar o
dia, apesar da dor no coração.
Domingo é sinônimo de descanso para a maioria das pessoas,
mas essa era uma palavra que eu desconhecia nos últimos anos.
Esse dia significava colocar todas as tarefas pendentes em dia, para
garantir que a semana fosse um pouco menos corrida. Isso se a
minha chefe deixasse, o que nem sempre acontecia. Mas hoje
estava um pouco mais fácil de cumprir com as minhas tarefas,
porque a resposta do MeninoDoRio, como sempre, me deixou de
bom humor. Mesmo que tenha trazido à tona sentimentos de dor e
perda.
Iolanda tinha mania de me pedir para fazer alguma coisa
complexa, com a desculpa de que, como a confecção estava
fechada, eu teria mais sossego. Ela não se dava nem ao trabalho de
vir aqui me passar a encomenda pessoalmente, afinal, até as bruxas
querem descansar aos domingos. Só eu que não podia.
Toda essa situação era muito cansativa, pois parecia que a
semana não tinha fim. Às vezes, eu só queria poder passar o dia
todo deitada sem fazer nada, mas o desgaste que isso causaria
depois me obrigava a abortar essa ideia.
Após deixar todas as outras coisas encaminhadas, aproveitei para
fazer o molde do vestido que desenhei para a formatura, pensando
no que meus pais achariam dele. Acabei me empolgando, cortei
algumas partes no tecido e fui usar a minha velha máquina de
costura — que era, de longe, o bem mais precioso que eu tinha —
para ver se o vestido que estava na minha cabeça transformado em
realidade funcionava bem. Eu estava adiantada com relação ao
cronograma, mas como minha agenda era imprevisível, achei
melhor do que passar aperto na reta final do prazo. E poder fazer
algo por mim, sem cobranças externas, era a única forma que tinha
de recarregar as energias.

l
De: PlusStylistRJ
Oi, MeninoDoRio.
Eu estava costurando quando me lembrei de você. Sei que
esta carta vai fugir do assunto anterior, mas sinto que preciso
conversar com alguém. Não sei se já chegamos a este ponto
de intimidade, só que hoje está sendo um dia complicado e
pensei que, talvez, você pudesse apenas me “ouvir”. Pode ser
a nostalgia falando, ou então o cansaço, mas estou sendo
tomadas por lembranças e gostaria de compartilhá-las com
você.
Sempre fui uma menina sonhadora. Ainda pequena, morando
em uma cidadezinha do interior, já queria correr atrás dos
meus objetivos.
Aprendi a costurar com a minha avó. Acho que não te contei,
mas foi ela quem me criou, depois que meus pais morreram.
Eu ainda era um bebê e nem me lembro deles. Todas as
memórias que tenho vieram através das muitas fotos que vovó
sempre fez questão de me mostrar.
Ela era uma costureira de referência onde morávamos, e eu
vivia agarrada na saia dela, implorando para aprender alguma
coisa. Achava incrível como ela conseguia transformar um
pedaço de pano em algo tão lindo. Comecei pregando botões
e cortando linhas. Consigo me lembrar da primeira vez que
usei a máquina de costura. Minhas mãos tremiam de
empolgação. Não sei quem ficou mais emocionada: eu ou
minha avó.
Foi então que comecei a ajudar nas encomendas. Vovó já
estava sofrendo de fortes dores nas costas, afinal, ficar
sentada o dia inteiro não é fácil. Fora sua idade avançada.
Ainda bem que a saúde dela está em dia, senão seria
impossível morar tão longe.
Quando ela se aposentou, comecei a fazer planos de me
mudar. Não para ficar longe, porque, se eu pudesse, nunca
me afastaria dela. Mas, como eu te disse, sempre tive muitos
sonhos. Fazer faculdade de Moda era um deles.
E é por isso que estou aqui hoje.
Espero que minha carta não tenha sido triste demais.

Apertar o botão de “enviar” me deixou um pouco mais tranquila.


Mesmo assim, o dia continuava sendo de lembranças. Enquanto
separava os tecidos para fazer o inventário do que tinha, minha
mente voou para o meu primeiro encontro com Inês.
Eu estava indo me matricular na tão sonhada faculdade. Meu
amor por desenhar criar roupas desde os traços no papel até ver as
peças prontas me fez encarar o desconhecido. Eu enfrentaria o que
fosse preciso. Ainda não tinha a menor ideia do que faria da vida,
onde iria morar ou como começar a procurar um emprego. Isso tudo
me deixava bem ansiosa e um pouco preocupada, mas estava tão
confiante de que tudo se resolveria que a solução apareceu bem à
minha frente.
Ao me aproximar da sala indicada para a inscrição, parecia que
todas as pessoas tinham escolhido o mesmo horário para realizar a
matrícula, tão cheio que o local estava. Se tivesse passado pela
minha cabeça que enfrentaria uma fila tão grande, teria ao menos
colocado um segundo livro na bolsa para ajudar a passar o tempo
— o primeiro devorei na viagem de ida até ali. O livro, entretanto,
acabou se mostrando desnecessário, pois a menina que estava
antes de mim começou a puxar assunto.
— Oi, fico feliz em saber que eu não sou a única nessa fila lendo
um livro. — Ela mostrou o celular, que estava com um aplicativo de
leitura aberto.
— Você acabou de me dar uma ideia! Por um momento, tinha
esquecido dessa opção. — Agradeci mentalmente pela
desconhecida que, sem saber, estava me salvando de uma volta
entediante para casa.
— Qual é o seu curso? — Com a voz suave e o tom empolgado,
ela parecia daquelas pessoas que sempre estavam de bom humor,
não importa o que aconteça. Sem saber que nos tornaríamos
grandes amigas, gostei dela logo de cara.
— Moda, e o seu? — respondi com um tom de surpresa por ter
encontrado alguém tão simpática.
— Administração. Escolha da minha mãe. — A garota revirou os
olhos. — Minha irmã também vai fazer Moda, mas está atrasada,
como sempre. Por isso, não viemos juntas.
— Então, por pouco não conheci uma futura colega de curso. —
Sorri. — Para falar a verdade, ainda não conheço ninguém na
cidade.
— Jura? E como você veio parar aqui? Onde vai morar? — Ela
parecia chocada com a minha coragem.
Deixar o porto seguro rumo ao desconhecido dava medo, eu
sabia muito bem disso.
— Se eu te contar que não faço ideia, você acredita? Eu me
concentrei em conseguir a vaga e ainda não sei o que farei. Preciso
encontrar um lugar em conta para morar e um emprego com
urgência para conseguir pagar as despesas. — Era notável o tom de
preocupação na minha voz, mesmo que tentasse me manter
otimista.
— Nossa, me desculpe. Eu aqui, te enchendo de perguntas e nem
me apresentei. — A minha nova colega colocou a mão na testa e
sacudiu a cabeça em negativa. — Eu me chamo Inês.
— Tudo bem, é normal, eu acho. — Dei de ombros e ri. Nunca
liguei muito para formalidades. — Sou a Alice.
— Você costura?
— Sim. — Estranhei a pergunta, já que não era um pré-requisito
para cursar Moda.
— Então, talvez eu possa te ajudar. — Os olhos de Inês brilhavam
com o que pareciam ser ideias de como resolver meus problemas.
— Como assim? — Fiquei curiosa e espantada ao mesmo tempo.
— Minha mãe tem uma confecção aqui no bairro mesmo, se
chama Iolanda Confecções. Não foi muito criativo, admito. O
importante é que está com uma vaga aberta para costureira. O que
acha de vir comigo depois da matrícula? Podemos falar com ela.
Naquele momento, fiquei extasiada com a coincidência. Só podia
ser um sinal de que eu estava fazendo a coisa certa. Por isso, nem
hesitei em responder:
— Seria ótimo começar as aulas com uma preocupação a menos.
— Em um impulso, abracei Inês.
Era estranho esbarrar em pessoas que pareciam genuinamente
interessadas em ajudar o próximo, sem que isso fosse lhe trazer
algum benefício.
— Nem sei como te agradecer.
Continuamos conversando enquanto a fila infinita parecia andar a
passos de lesma. Quando finalmente conseguimos sair do prédio,
Inês me levou até sua mãe, que fez questão de aplicar um teste de
costura com nada menos do que algumas peças que estavam
atrasadas para a entrega. Eu devia ter desconfiado que aquilo era
bom demais para ser verdade, mas a possibilidade de um emprego
falou mais alto. Iolanda avaliou meu trabalho, prestando atenção em
cada acabamento. Sua expressão não revelou nada, e fiquei
bastante apreensiva, achando que ela não tinha gostado do que fiz.
Só depois fui entender que elogios não costumavam sair de sua
boca, a menos, é claro, que isso fosse lhe trazer algum benefício.
— Mãe, você ainda usa aquele quartinho nos fundos da
confecção? — Inês questionou, esperançosa.
— Não exatamente. Às vezes, guardo uns retalhos, rolos de
tecido e alguns outros objetos antes de dar destino a eles, mas só
quando não cabem no estoque. Por quê? — Iolanda tinha um olhar
desconfiado.
— Alice precisa de um lugar para morar. Se ela não tiver algo
muito grande ou específico em mente, poderia servir.
— Faço questão de pagar pelo aluguel. — Inocente, me senti
empolgada com a possibilidade de morar próximo à faculdade e,
mais ainda, do trabalho. Mal sabia o que me aguardava.
— Por mim, tudo bem. Pode mostrar o local a ela. Mas já aviso
que não vou pagar a passagem. — Iolanda deu as costas e partiu
sem se despedir, encerrando o assunto.
Inês foi me mostrar tudo, achando que tinha conseguido fazer a
sua boa ação do dia. Ela estava tão contente quanto eu.
O quartinho dos fundos poderia ser considerado uma quitinete,
pois tinha o básico que alguém precisaria para morar. Segundo me
contaram depois, foi uma das primeiras coisas que Iolanda
providenciou quando estava montando a confecção, já que passava
bastante tempo ali.
O espaço, apesar de toda a bagunça, tinha uma cama de solteiro
escondida sob objetos entulhados, um fogão sem forno, daqueles
de colocar em bancada, minigeladeira e pia, além de um pequeno
banheiro, que era o único pedaço que poderia ser considerado um
cômodo à parte. Nunca fiz questão de luxo, então pareceu um ótimo
negócio. Voltei para a minha cidade e fiquei mais uns dias por lá, a
fim de preparar tudo para a mudança, que se resumiu a uma mala
de roupas, poucos livros, documentos e a velha máquina de costura
de vovó.
Quase quatro anos já haviam passado desde então.
10

Gustavo

De: MeninoDoRio
Olá, querida!
Fico lisonjeado que esteja à vontade para compartilhar coisas
tão pessoais e profundas comigo. O espaço sempre estará
aberto quando você precisar. Vou adorar te conhecer ainda
mais.
E desculpe mencionar o Dia dos Pais. Não sabia do seu
passado. Espero não ter deixado as coisas ainda mais tristes.
Mas, se for de algum consolo, o feriado não foi muito bom
para mim. É claro que meu pai e eu acabamos discutindo
durante o almoço, como sempre.
Não sei se tenho conselhos tão bons para te dar, ou palavras
de conforto. Parece que isso é um dom seu, mas estou
sempre disposto a te ouvir.
Espero muito que todos os seus sonhos se realizem.
Adoraria poder te ajudar, então, me deixe saber se eu puder
fazer qualquer coisa.

Quando a segunda-feira chegou, enquanto tomávamos o café da


manhã, meu pai solicitou a minha ilustre presença na empresa.
Disse que estaria me esperando ainda naquele dia para uma
conversa que, segundo ele, seria do meu interesse. Isso não podia
ser bom, e eu já previa mais uma discussão.
Mesmo assim, me arrastei até lá como se estivesse indo para a
forca, mas o mínimoque podia fazer, como um adulto, era escutar o
que meu pai tinha a dizer e continuar tentando mostrar o meu ponto
de vista. Ele sempre fora mente aberta, mas não abria mão do
desejo de passar o seu cargo de CEO nos negócios da família para
o seu único filho. No caso, eu. A desculpa era de que não queria ver
anos de trabalho duro entregues de bandeja para qualquer pessoa.
“Porque eu não tinha irmãos? Teria facilitado muito as coisas”,
pensei comigo mesmo enquanto me encaminhava para a sala dele.
— Pai, posso entrar? — Dei leves batidas na porta semiaberta.
Ele tirou os olhos de uma pilha de papéis e sorriu ao me ver.
— Sim, sente-se. — Indicou a cadeira à sua frente. — Tenho uma
proposta para você.
— Eu concordei em ajudar em um detalhe ou outro, mas estou
certo de que ser empresário não é a minha vocação, principalmente
em um cargo como esse — eu me adiantei, na tentativa de lembrar
ao meu pai o que vivia afirmando.
— Só me escuta, filho. Vou te pedir pra tentar uma coisa. Há
tempos, venho pensando em fazer algo diferente para promover a
nossa empresa e acho que chegou a hora. Já estou ficando velho e
preciso de um pouco de ajuda por aqui. — Meu pai, provavelmente
aconselhado por minha mãe, tentou demonstrar o máximo de
tranquilidade e optou por um tom amigável, que ele não costumava
usar quando se tratava de negociações.
— Tentar? Hum. Qual é a sua proposta? — Era nítida a
desconfiança na minha voz e meu corpo estava tenso.
Só de pensar no terno e na gravata, nas horas em frente a uma
mesa, nas decisões que caberiam apenas a mim… Balancei a
cabeça, tentando afastar as preocupações, e voltei meu olhar para
ele.
— Vamos lançar uma nova coleção inspirada em contos de fadas
modernos e organizar um concurso para escolher o estilista
responsável por assinar a coleção. Gostaria que você ficasse
responsável pelo concurso. — Ergui uma sobrancelha em
desconfiança.
Parecia fácil demais para ser verdade. Conseguia sentir o cheiro
de treta no ar, só não sabia bem o que estava por trás disso.
— Eu teria liberdade e poder de decisão? — Inspirado em certa
carta, uma ideia estava se formando na mente e as chances de
colocar meus sonhos em prática estava bem ali, diante de mim.
— O que quer dizer? Você montará a proposta e passará por um
conselho. Claro que o concurso contará com jurados de fora da
empresa para não acusarem conflito de interesses. Já basta aquele
episódio do seu namoro com a modelo.
“Elenunca vai me deixar esquecer isso”,pensei, mas achei
melhor não tecer comentários.
Recostei-me na cadeira e encarei meu pai por alguns minutos.
Não tinha dúvidas de que ele estava usando o concurso para me
aproximar dos negócios. Por outro lado, esta poderia ser a chance
perfeita de fazer algo para mim, sem que eu precisasse brigar com
meu velho.
Eu estava cansado de tantas discussões que não levavam a lugar
nenhum. Mas também estava determinado a não ceder. Só que
esse concurso parecia uma boa ideia, principalmente se eu tivesse
a liberdade de escolher tudo a seu respeito.
Em um ato de coragem — ou então por culpa da ressaca —,
disse:
— Eu aceito. — A cara de surpresa de meu pai era notável. —
Mas tenho uma condição: vamos lançar uma linha de acessórios
pet, combinando com a nova coleção, e reverter parte da renda para
a causa animal. — Estava impressionado de ter conseguido pensar
em algo tão rápido, mas sabia que a vontade do meu pai de me ter
na empresa faria com que aceitasse quase qualquer proposta. Essa
era a minha grande oportunidade.
— Feito! — Ele não conseguiu esconder o quanto se sentiu
orgulhoso ao ouvir aquilo de mim.
— Por onde eu começo? — Mesmo empolgado com a ideia, ainda
estava um pouco apreensivo sobre os desafios que me
aguardavam.
— Vou disponibilizar uma sala e um funcionário para te ajudar.
Monte uma equipe, se quiser. Podemos começar agora mesmo, só
preciso dar um telefonema. — Meu pai decidiu tomar as
providências antes que eu mudasse de ideia.
— Agora?
— Claro, para que perder tempo? — Ele pegou o telefone e
chamou a secretária. — Amanda, preciso que você providencie uma
sala e peça para Leandro vir até aqui, por favor. — Eu mal tive
tempo de argumentar ou expor minhas inseguranças. Meu pai não
parava de falar, animado com a chance de me ter atuando na
empresa.
A eficiência da secretária geral do setor ficou nítida quando,
menos de dois minutos depois, o tal Leandro bateu à porta. Soltei
um suspiro de alívio ao ver um rapaz de idade próxima à minha, em
vez de um dos colegas sem imaginação de meu pai. Leandro vestia
calça jeans, blusa social e tinha um crachá pendurado no pescoço,
identificando-o como estagiário, mas foi a empolgação em seu rosto
que me fez ter simpatia por ele.
— Chamou, senhor Rui? — Enquanto a maioria das pessoas
morria de medo de serem chamadas na sala do chefe, Leandro
parecia bem empolgado com a convocação.
— Sim. Meu filho Gustavo irá trabalhar conosco em um novo
projeto. Preciso que você o acompanhe em todas as etapas, já que
está por dentro da maioria dos processos e informações da
empresa. Já pedi a Amanda que providenciasse a sala, então veja
com ela e podem começar a trabalhar. Esse concurso precisa ser
um sucesso.
— Sem pressão, pai. — Desviei o olhar dele para o estagiário. —
Já vou te agradecendo de antemão, Leandro, porque realmente vou
precisar de toda a ajuda que você puder me dar. E nada de me
chamar de senhor.
— Está bem, Gustavo. Nossa, soa estranho ser informal. —
Leandro coçou a cabeça. — Peço que me acompanhe e vamos
descobrir onde será a sua sala.
— Esperem! Eu já ia me esquecendo. — Meu pai pegou um papel
sobre a mesa e o estendeu para mim. — Aqui tem o cronograma.
— Mas isso é em alguns dias. — Eu olhava incrédulo para ele. —
É uma pegadinha de iniciação?
— Sei que o prazo é mais do que apertado, mas confio em vocês.
— Com um gesto, fomos dispensados, deixando claro que não
havia espaço para negociação.
Leandro saiu da sala e eu o acompanhei. Ele andava com os
passos apressados de quem conhecia muito bem a empresa. Ao se
deparar com uma moça, que acreditei ser a tal Amanda, ela
entregou uma chave a Leandro e continuamos andando. O rapaz
parecia ligado no 220v, e eu ainda não conseguia dizer se isso era
bom ou ruim.
Chegamos até uma porta e, assim que ela foi aberta, pude ver um
espaço com duas mesas, computadores, telefones e o material
básico de escritório. A decoração era tão neutra que quase não
existia. Eu, que recusei trabalhar aqui durante tanto tempo, mal
conseguia acreditar que tinha acabado de aceitar entrar no mundo
corporativo por livre e espontânea vontade. Era provável que, a esta
altura, minha mãe já havia sido informada e estava preparando
todos os meus ternos, que ficavam guardados apenas para eventos
em que eles eram indispensáveis.
— Parece que temos um concurso para organizar — declarei
enquanto me jogava na cadeira. — Nem faço ideia de por onde
começar.
— Compartilhe comigo as informações que tem e podemos fazer
um brainstorming. — Leandro já aguardava com caneta e um bloco
de anotações em mãos.
— Meu pai não falou muito, além de que será um concurso e que
temos pouquíssimo tempo para deixar tudo pronto. O objetivo é
escolher um estilista que criará uma coleção inspirada em contos de
fadas. Parece que teremos que pensar em tudo.
— Para começar, um concurso precisa de regras bem claras e
que não possibilitem brechas. Então, recomendo passar pelo
jurídico para análise depois que o regulamento estiver pronto.
Também devemos definir quem poderá se inscrever e quais tarefas
os competidores terão que realizar. Temos que estipular prazos e
escolher os avaliadores. Fora o prêmio do vencedor.
— Eu não fazia ideia de nada disso. É um alívio ter você para me
ajudar. — Assustado, eu tentava me recuperar diante de tanta
informação.
— Conte comigo!
— O que acha de fazermos duas etapas? Primeiro, uma espécie
de triagem, e aí os selecionamos os melhores para a final. —
Levando em conta que Leandro estava mil vezes mais por dentro da
empresa do que eu, a opinião do meu novo colega de trabalho era
bem importante para mim.
— Podemos aproveitar e fazer uma festa para os selecionados
participarem, vestindo suas criações, e isso criaria uma terceira
etapa, pois os finalistas seriam escolhidos nesse evento.
— Nossa, uma festa! Que ideia incrível. Isso com certeza vai
atrair a mídia. E dar bastante trabalho também. Parece que temos
muita coisa para fazer.
— Eu vou organizar um checklist de tarefas por ordem de
prioridade para facilitar. Enquanto isso, sugiro que vá pensando em
alguns detalhes, como datas, nomes e pode dar uma olhada em
modelos de regulamentos também, para saber o que precisamos
colocar. — Por mais que Leandro estivesse cada vez mais
empolgado com o projeto, também parecia apreensivo. O modo
como me olhava, com um quê de desconfiança, me fez acreditar
que ele devia estar preocupado em trabalhar comigo. Afinal, e eu
era filho do chefe. Também podia imaginar minha fama entre os
corredores da Vestindo Estilo.
— Não sei por que você não foi efetivado ainda, mas vou
recomendar isso ao meu pai assim que possível — disse, a fim de
tranquilizá-lo. — Eu estaria completamente perdido, olhando para a
tela do computador até agora e sem saber por onde começar, se
não fosse por você.
— Agradeço. — O rapaz sorriu timidamente e começou a
trabalhar na sua lista de tarefas.
Você tem uma carta!
A notificação apareceu na tela do meu celular. Deixei minha
curiosidade falar mais alto do que meu senso de responsabilidade e
fui ler o que ela tinha a dizer.

09 de agosto
De: PlusStylistRJ
O seu carinho e a disposição para ouvir significam muito para
mim e já são de grande ajuda. Pelo visto, depende de mim e
talvez um pouco de sorte para que eu esteja no lugar certo e
na hora certa quando alguma grande oportunidade surgir.
Saber que você está aí do outro lado já é um grande
incentivo e tem tornado meus dias mais alegres.
Já falamos muito de mim! Aguardo curiosa por mais
informações sobre suas descobertas relacionadas aos seus
sonhos.

Essa mulher… Era impossíveller suas cartas e não ficar abalado.


Ela queria saber de mim, de minhas descobertas e sonhos. Era
revigorante.
A vontade era de largar tudo o que estava fazendo para
respondê-la. Estava empolgado demais para contar as novidades e
com uma vontade crescente de falar com ela. Será que Leandro iria
perceber se eu escrevesse uma carta em vez de fazer as pesquisas
para o concurso? A ideia era tentadora, mas não achei justo com o
rapaz — que praticamente nem piscava, olhando para o monitor
enquanto digitava freneticamente.
Abri um site de pesquisas no navegador e comecei a procurar por
regulamentos de todos os tipos de concurso. Fui abrindo os links em
várias abas, mas minha cabeça estava em certa carta e o quanto
ela tinha feito parte daquela reviravolta na minha vida.
11

Alice

De: MeninoDoRio
Olá, PlusStylistRJ!
Se eu te disser que, depois de sempre afirmar que jamais o
faria, aceitei trabalhar na empresa da família, você
acreditaria? Aceitei pensando no que me disse sobre
aproveitar oportunidades, mesmo que, aparentemente, não
sejam o que queremos, mas pela possibilidade de usá-las
para chegar até o nosso objetivo.
Seu depoimento sobre o abrigo também mexeu muito
comigo, aliás, se quiser divulgar qual o local, também gostaria
de ajudar. Amo animais e sempre quis fazer algo por eles. Vi
uma oportunidade para isso e foi o motivo que me levou a
trabalhar em um projeto da empresa. Tudo dando certo, vai
ser uma grande ajuda. Então, eu realmente preciso te dizer:
MUITO OBRIGADO por existir.
Conte-me mais sobre você, estou cada vez mais curioso e
interessado no que tem a dizer.
P.S.: Se eu soubesse que teria uma pessoa tão incrível aí do
outro lado, não tinha aceitado a sua condição de não
revelarmos quem somos. Eu adoraria poder te conhecer, mas
entendo e respeito a sua escolha.

Eu não conseguia parar de pensar na carta que havia lido uns


minutos antes de começar o expediente. Nunca me passou pela
cabeça que algo dito por mim poderia ter tanto impacto na vida de
alguém, mas me tocou saber disso. Será que, sem querer, eu havia
encontrado a forma de ajudar aqueles animais através do
MeninoDoRio? Meu coração se encheu de alegria só de pensar na
possibilidade. Seria um sonho! De qualquer forma, ajuda extra era
sempre bem-vinda. A necessidade de recursos do abrigo era
vitalícia.
Além dessa compatibilidade na vontade de ajudar, eu me sentia
mais ligada a ele a cada carta que trocávamos. Quando decidi usar
o aplicativo, a ideia era passar o tempo, me distrair um pouco, não
esperava algo assim.
Naquele dia, deixei o meu habitual posto de trabalho na máquina
de costura, pois tinha que verificar algumas informações com os
cortadores a pedido de Iolanda. Minha chefe precisava contratar um
novo assistente com urgência, mas não fez nenhum movimento em
relação a isso desde que Marisa pediu demissão. Ela já não
aguentava mais o comportamento da bruxa, por isso saiu sem nem
cumprir o aviso prévio.
É claro que me explorar era mais fácil — e com certeza mais
barato —, então ela sempre adiava a contratação, inventando
desculpas esfarrapadas que ninguém acreditava. Minha vontade era
de colocar um anúncio, fazer a entrevista e levar a pessoa até o
escritório de Iolanda, já com a carteira de trabalho em mãos. Mas,
conhecendo a minha chefe, sabia que ela arrumaria um defeito para
não contratar alguém, então nem me dei o trabalho.
— Boa tarde, seu Alberto. Iolanda me pediu para trazer esse
checklist com as encomendas da semana. Ela quer saber se está
tudo certo com a quantidade de tecidos ou se precisa fazer algum
pedido ao fornecedor. — Entreguei a prancheta a ele. — Ah, quase
me esqueço: parece que teve um pedido extra.
— Deixa eu ver. — Seu Alberto conferiu a lista, preencheu tudo,
assinou e me devolveu. — Se não aparecer outro pedido extra,
temos tudo aqui. Que fique só entre nós, mas ela tem essa mania
de aceitar as coisas sem conferir a capacidade de produção. —
Usou um tom bem abaixo do normal e um pouco contrariado para
essa última frase.
— Nem me fale, já perdi a conta das vezes.
— Até agora, por um milagre, ainda não deu problema, mas
sempre sobra para a gente, que se vira nos trinta pra dar conta.
Você então, nem se fala.
— E como… — Meu olhar se fixou nas sacolas transparentes com
retalhos, encostadas na parede, e remexi superficialmente para ver
o conteúdo. ― Vocês ainda jogam fora ou elas têm outro destino
agora?
— As sobras de tecido? Vão para o lixo.
— Nossa, que desperdício… — Balancei a cabeça em
reprovação.
— Em teoria, eles são descartados, mas nós colocamos ali na
frente e, geralmente, algumas pessoas passam para recolher. Tem
gente que sempre arruma uma forma de transformar as coisas, que
para umas seriam lixo, em algo útil e até rentável. — Pude notar a
satisfação na fala de seu Alberto enquanto ele comentava sobre o
destino das sobras de material.
— O senhor se importaria de separar uns retalhos pra mim, se
não tiver problema? — Um fio de esperança surgiu quando algumas
ideias começaram a se formar.
— Claro. Acho que a chefe não vai se importar, contanto que não
fique espalhado por aqui nem ocupando espaço.
— Vou guardar em casa e depois farei uma triagem. Ah, também
vou avisar à Iolanda, para não ter problemas nem pra mim, nem pra
você.
— Você está certa, mas não duvido que ela resolva te cobrar por
isso.
— Pelo que ia para o lixo? Ela não seria tão mesquinha assim,
seria?
— Você ainda tem dúvidas? — Ele ergueu as sobrancelhas,
incrédulo. — Olha o que ela faz com você.
— É, tem razão… — Um breve silêncio se instalou. Diante desse
fato, eu não tinha como argumentar. — Mas, se eu não avisar e ela
descobrir, será ainda pior. Caso resolva mesmo me cobrar, eu
desisto da ideia.
— Boa sorte, menina. — Seu Alberto retornou para suas tarefas,
que tinham acabado de aumentar graças ao pedido de última hora.
No momento que vi as sobras de tecido com mais atenção, minha
mente começou a imaginar a produção de várias peças únicas,
feitas com retalhos. Poderia fazer desde estojos até peças de roupa
— e, com isso, arrecadar algum dinheiro da venda para os animais.
Eu não tinha a intenção de cobrar pela mão de obra, apenas o
custo do material que fosse utilizado, como linhas, zíper e botões.
Não fazia ideia de como venderia, mas o fato de o custo sair
praticamente zero faria as peças terem um preço acessívele o valor
seria revertido quase integralmente para os animais. Com isso, eu
só podia esperar que conseguisse vender uma quantidade
expressiva para doar o dinheiro ao abrigo.
Enquanto caminhava de volta à sala de Iolanda, sorri ao me
lembrar do conselho que tinha dado ao MeninoDoRio — que, pelo
visto, tinha caído como uma luva para mim também, pois o que
precisava surgiu bem diante dos meus olhos.
Como assim eu nunca tinha reparado no que acontecia com
esses retalhos? Ainda mais com as infinitas possibilidades que tinha
para fazer com eles. A rotina louca não estava me permitindo
observar as coisas ao meu redor como antes, mas eu tinha que
arrumar tempo para idealizar e costurar as peças. Também
precisava falar com Inês. Ela, com certeza, teria algumas boas
ideias para vender as peças.
Quando estava prestes a bater na porta, a conversa do outro lado
me fez congelar no lugar. Só que algumas palavras me chamaram a
atenção. Olhei para os dois lados, a fim de ter certeza de que
ninguém estava por perto, e deixei que a curiosidade falasse mais
alto do que o medo de ser descoberta.
— Abriu o que te mandei por mensagem? Essa é a sua chance!
Vamos dar um jeito e você vai ganhar. Eu tenho grandes planos e
você é a peça-chave para isso. Vá se preparando e não me venha
com “mas”, conversaremos pessoalmente.
Do que será que ela estava falando? Quem vai ganhar o quê?
Mas que conversa estranha… Eu não tinha uma sensação boa a
respeito do que acabara de ouvir, mas, vindo de Iolanda, não dava
para esperar algo bom. Para evitar problemas, achei melhor esperar
um pouco mais antes de entrar na sala. Clarisse passou e me olhou
curiosa, mas antes que pudesse perguntar o motivo de eu estar
tentando me fundir com a parede, fiz um sinal para que não falasse
nada e ela continuou andando. Quando pareceu já ter passado
tempo suficiente, resolvi encarar a fera.
— Aqui está o relatório, como pediu. — Depositei os papéis sobre
a mesa abarrotada de itens e respirei fundo enquanto reunia
coragem para falar sobre os tecidos.
— Já não era sem tempo. — Iolanda mal direcionou seu olhar
para mim, mas, notando que eu ainda estava lá parada, questionou:
— O que ainda está fazendo aí parada? Volte já ao trabalho!
— Bom, queria saber se posso usar os retalhos que são
descartados.
— Aquele lixo? — Ela me olhou com uma cara estranha. — No
que está pensando? Ah, não me interessa. — Iolanda começou a
analisar os relatórios enquanto parecia pensar. — Eu devia cobrar
por eles, mas estou de bom humor. Agora, vá logo, antes que eu
mude de ideia.
— Obrigada! — Fiquei tão feliz por ter a autorização para usar as
sobras, que nem pensei que pudesse ter algo por trás dessa
bondade repentina.
Assim que deixei a sala da minha chefe, comecei a tomar as
providências para colocar o projeto em ação. Eu evitava ao máximo
usar o telefone durante o expediente, só que precisava falar com
Inês o mais rápido possível.
Alice:
Amiga, preciso da sua ajuda.
Inês:
É só dizer!
Alice:
Tive uma ideia para ajudar o abrigo. Sempre
sobram retalhos aqui na confecção e sua mãe
me deixou usá-los. Vou fazer peças diversas
com eles para arrecadar dinheiro para os
animais. Eu só não faço ideia de como vender.
Inês:
Deixa comigo, vou dar um jeito.
Alice:
Obrigada <3 Mudando completamente o tópico,
por acaso você sabe se sua mãe está
aprontando alguma coisa?
Inês:
Não fiquei sabendo de nada até agora, mas não
seria nenhuma surpresa. Suspeita de algo?
Alice:
Ainda não, mas vou ficar de olhos abertos.
— Boa tarde, pessoal! — com meu típico bom humor,
cumprimentei meus colegas quando retornei ao meu posto oficial de
trabalho, depois de acabar as tarefas como secretária.
A graduação em Moda só funcionava pela manhã, então eu
precisava trabalhar com horário reduzido — e salário também. Não
dava para esperar algo diferente de Iolanda depois que você a
conhecia, aliás, ela adorou a oportunidade de diminuir os custos.
Pagar menos para ter a mesma produção ou mais? Era a cara dela.
Já havia perdido as contas das minhas horas extras não
remuneradas.
— Oi, filha. — Dona Bernadete tinha uma expressão apreensiva.
— Aconteceu alguma coi…? — Quando meu olhar caiu sobre
meu posto de trabalho, nem precisei terminar a pergunta.
Um bilhete feito à mão, em letras vermelhas e garrafais com os
dizeres “P ARA HOJE!”,estava preso a uma gigantesca pilha de
peças. Respirei fundo e me joguei desanimada na cadeira. Tudo o
que eu menos precisava naquele dia era trabalhar até altas horas.
— Eu não sei como você aceita essas coisas — Jorge externou e
todos menearam a cabeça, concordando.
— Não posso me dar ao luxo de ficar desempregada, ainda mais
agora. Falta tão pouco… — Não consegui esconder minha angústia
só de pensar nessa possibilidade.
— Tá explicado por que essa mal-amada está sempre sozinha.
Ninguém aguenta — falou Sandra, com uma expressão amarga.
— É aquilo, né? Sempre tem alguém disposto, por mais difícilque
a pessoa seja. Se Iolanda tivesse um namorado, não duvido nada
que aparecesse de braços dados com ele. Ela não perderia essa
oportunidade de se exibir — comentei enquanto organizava o
material. Não tinha tempo a perder.
— Você é boa demais, Alice, e ela se aproveita disso — Jorge
tentou me alertar.
— É, todo mundo fica revoltado ao ver o que ela faz com você.
Vamos tentar adiantar as coisas aqui para te ajudar. Se todo mundo
pegar um pouquinho, acaba mais rápido — Clarisse se prontificou.
Ela tentava me ajudar sempre que podia, mesmo que fosse com
uma palavra de conforto.
— Sim, vamos ajudar. Só não entregue a ela tão cedo ou a pilha
vai aumentar cada vez mais — sussurrou Luciana, com medo de
Iolanda acabar ouvindo.
— Obrigada, vocês são incríveis!
Todo mundo ficou tão empenhado em me ajudar que dava para
ouvir um alfinete caindo no chão, tamanho era o silêncio que reinava
naquela parte da confecção. Até as conversas foram deixadas para
depois, na intenção de aumentar a produtividade. Sempre ajudei
todo mundo sem esperar nada em troca, e aquecia meu coração
saber que eles se importavam comigo a ponto de ter uma carga
extra de trabalho. Torci mentalmente para Iolanda não achar que eu
tinha adquirido poderes e aumentasse cada vez mais a quantidade
— já absurda — de peças que eu costurava diariamente.
Todos os meus colegas tinham o horário certo de entrada e saída
e realizavam apenas as tarefas para as quais foram contratados.
Eles só faziam algo a mais em casos extraordinários e, mesmo
assim, eram pagos por isso e pelas horas extras.
Iolanda sabia que, se tentasse fazer com eles o mesmo que fazia
comigo, iria perder muitos empregados ou sofrer processos
trabalhistas — e isso não seria nada produtivo para os planos de
grandeza dela. Quem conhecia Iolanda sabia que ela aceitaria
qualquer atalho para alcançar seus objetivos mais rápido.
— Última peça! — quebrei o silêncio. Foi um milagre que a nossa
força-tarefa tenha dado conta de terminar tudo sem estourar o
horário do expediente.
— Se eu fosse você, entregaria tudo no setor de acabamentos e
correria para casa antes que Iolanda invente mais coisa — Clarisse
aconselhou.
Agradeci mais uma vez por toda a ajuda e tratei de seguir o
conselho que recebi, mas não sem antes pegar o pesado saco de
retalhos. Nessas horas, adorava morar tão perto do trabalho e não
ter que encarar o transporte público, que sempre ia lotado e levava
uma eternidade por conta do trânsito.
Quando cheguei no quarto, minha mente e corpo disputavam uma
batalha: colocar todas as minhas ideias em prática ou descansar.
Enquanto abri a geladeira para pensar, me deparei com a metade
de um sanduíche e o devorei em poucas mordidas. Logo em
seguida, tomei um bom banho e me joguei na cama. Pouco antes de
pegar no sono, ouvi o telefone apitar e dei uma espiadinha por
curiosidade. Teria ignorado e deixado para ver no dia seguinte, se
fosse qualquer outra pessoa além de Inês… E o MeninoDoRio.
Inês:
Seu problema está resolvido. Falei com uma
amiga que tem uma loja e ela aceitou vender as
peças lá sem cobrar. Eu contei do abrigo e ela
simpatizou coma causa. Disse que também
quer ajudar.
Alice:
Que notícia incrível! Agora, só preciso colocar a
mão na massa. Não exatamente agora, porque
preciso dormir com urgência, mas você
entendeu.
Inês:
Eu achei a ideia maravilhosa, mas não deixo de
pensar em que momento você vai arrumar
tempo para isso. Virou algum vampiro que
brilha no sol e não precisa dormir?
Alice:
Eu me empolguei com a possibilidade de ajudar
e não pensei muito nisso, mas vou dar um jeito
de organizar minhas tarefas para fazer tudo aos
poucos, ou sempre que tiver um tempo.
Inês:
Gostaria de poder ajudar, mas, como você sabe
bem, costurar não é meu forte.
Alice:
Confesso que uma ajuda cairia bem, mas você
já foi incrível conseguindo um lugar para
vender. A faculdade está quase no fim e, em
breve, terei um pouco mais de tempo. Assim
que eu tiver uma quantidade mínima de itens,
te aviso e você leva lá.
Inês:
Combinado!
Bom, se abri uma exceção para Inês e já estava com o telefone
na mão, não me custaria nada responder uma carta. Na verdade, eu
queria muito entrar em contato com ele de novo. Passei boa parte
do dia pensando na troca de cartas e nesse momento só nosso.
Apesar da quantidade louca de trabalho, o MeninoDoRio não saiu
da minha mente. Por isso, dei o melhor de mim para ficar acordada
e escrever alguns parágrafos que fizessem sentido. Acabei me
empolgando e, no fim, a carta tinha ficado bem maior do que o
planejado. Assim que apertei o botão de enviar, mal deu tempo de
colocar o telefone em algum lugar seguro antes de pegar no sono.
12

Gustavo

De: PlusStylistRJ
Olá!
Fiquei feliz em saber que, de alguma forma, minhas palavras
te ajudaram. Já ouvi muito por aí do poder que as palavras
têm, mas essa é a primeira vez que “vejo” isso de forma
concreta. Estou ansiosa para saber no que resultaram seus
planos.
Por aqui, também acabei esbarrando em uma resposta para
o que eu precisava. Ou será que deveria dizer “quase
tropeçando”? Estou empolgada com a possibilidade de
transformar algo que iria para o lixo em uma forma de ajudar.
Porém, com isso, meu tempo vai ficar ainda mais escasso do
que já é, então não estranhe se as respostas demorarem a
chegar até você ou forem mais curtas do que o de costume. O
carinho ainda será o mesmo de sempre.
Fico lisonjeada com a sua observação de querer mesmo
marcar um encontro para me conhecer, mas, como citei
acima, o meu tempo está complicado de administrar e estou
aproveitando essa desculpa para evitar nosso encontro. Não é
pessoal, juro. Você parece ser alguém que eu adoraria ter por
perto, pela forma como escreve, mas tenho medo de que as
coisas estraguem se a gente se conhecer. Pode parecer bobo
da minha parte, mas tenho medo de um encontro quebrar a
magia que as palavras criaram. Um tempo atrás, eu conheci
alguém em um famoso aplicativo de relacionamento. E o
primeiro — e último — encontro foi um verdadeiro desastre.
Tenho pensado cada vez mais em você, mas não quero
perder o que estamos construindo por aqui. Não sei como
chamar, só sei que é bom. Não fique triste, nada é imutável,
por isso vou deixá-lo com um “Quemsabe um dia…”.Não é
exatamente o que você queria, mas ainda é melhor do que
uma negativa, eu acho. Quero que a minha presença em sua
vida, da forma que for, represente sempre coisas agradáveis.
Até!

Depois das últimas quarenta e oito horas de muito trabalho, em


que eu me vi enfiado na empresa muito além do que seria normal
até para o senhor Rui, o concurso finalmente seria anunciado. O
medo de falhar, de decepcionar meu pai e de não poder ajudar os
animais me deixava inquieto. Sonhos de muita gente estavam
envolvidos, precisava dar certo. Sem pressão…
A ajuda de Leandro estava sendo fundamental em todo o
processo, e a organização do rapaz era impressionante. Por minha
causa, ele estava fazendo muitas horas extras, mas não pareceu
chateado. Eu não sei como conseguia, mas tinha minha admiração.
Não fazia ideia de que precisaria participar de tantas reuniões
apenas para lançar um concurso.
Com todos os detalhes acertados e o regulamento definido após
muita análise, tivemos longas conversas com as pessoas que
seriam responsáveis pelo design, desenvolvimento do site,
marketing, organização do evento presencial e possíveis membros
para a comissão julgadora.
A essa altura, já estava me acostumando com a planta da
empresa e encontrava os locais com mais facilidade.
— Mandou me chamar, pai? — Entrei na sala sem bater.
— Sim. Gostaria de falar sobre a sua condição para organizar o
concurso.
— Os acessórios pet? — Comecei a me preocupar. Só me faltava
ele dizer que não seria viável.
— Exatamente. É sua responsabilidade participar ativamente de
tudo que envolva esse projeto. Desde as pesquisas preliminares até
a produção. — Tentei ler sua expressão para saber se era algum
tipo de brincadeira, mas parecia bem sério.
— Por que eu?
— A ideia foi sua. Você não quer ver isso acontecer? Então,
coloque a mão na massa.
Sabia que ele não tinha concordado de forma tão fácil se não
tivesse algo por trás. Por ser uma causa nobre e a razão pela qual
aceitei trabalhar de verdade na empresa, mesmo que de forma
temporária, me vi sem alternativa senão aceitar as tarefas extras,
que não estavam nos planos.
“Eunão faço questão de lucros com esses acessórios, mas
descubra uma forma de isso não dar prejuízos.”Foi o único
conselho do meu pai, que queria testar como o eu iria me virar
sozinho, ou quase isso.
Começar um projeto sem estar tudo analisado e definido não era
costume da empresa, mas, como tínhamos uma agenda a cumprir,
minhas pesquisas sobre os acessórios aconteceriam durante a
realização do concurso. E isso garantiria a minha permanência
trabalhando na empresa. Óbvio que o senhor Rui Almeida não iria
desperdiçar essa oportunidade.
Voltei para a minha sala. Puta que pariu, eu tinha uma sala! Minha
ficha custava a cair do quanto as coisas estavam avançando na
velocidade da luz a favor dos planos do meu pai. E, em teoria, eu
tinha concordado de livre e espontânea vontade.
Ainda preocupado com tudo relacionado ao concurso, achei
melhor dar uma última conferida no regulamento, que já havia sido
ajustado umas três vezes. Só por garantia.
Concurso para a coleção Contos de Fadas Modernos
1. Regulamento
1.1. A empresa Vestindo Estilo apresenta o concurso “Contosde
Fadas Modernos”.O intuito é selecionar o(a) estilista que assinará
a nova coleção a ser lançada. O objetivo da coleção é a criação de
peças inspiradas em contos de fadas para compor looks atuais,
que serão usados em diversas ocasiões. Como exemplo, mas não
se limitando a isso, roupas para festas, casuais, de dormir, entre
outros de acordo com as necessidades e demandas.
1.2. A Vestindo Estilo, pela primeira vez, lançará acessórios pet,
que serão disponibilizados para a venda em conjunto com algumas
peças ou de forma avulsa. O objetivo é arrecadar fundos que serão
doados para a causa animal. Esses acessórios também serão
criados pelo(a) estilista selecionado no concurso.
2. Inscrições
2.1. As inscrições serão recebidas até as 23h59min do dia 22 de
agosto (horário de Brasília).
2.2. Poderá participar do concurso qualquer estilista maior de 18
anos.
2.3. Não é obrigatório ter diploma ou certificado na área de
Moda.
2.4. O candidato pode ser de qualquer localidade, porém, caso
haja a necessidade de deslocamento e estadia para participar das
etapas do concurso, que serão realizadas na cidade do Rio de
Janeiro, os custos deverão ser arcados integralmente pelo inscrito.
2.5. O participante deverá escolher um pseudônimo que não o
identifique e que será usado para assinar os croquis enviados para
avaliação.
2.6. Ao enviar os croquis, o participante declara que o material é
de totalmente de sua autoria e que se responsabilizará por todas
as questões legais cabíveis, caso seja provado o contrário,
isentando a Vestindo Estilo de qualquer ligação com o ocorrido.
3. Participação
3.1. Primeira etapa
3.1.1. Após o final do prazo, os inscritos receberão por e-mail um
login e senha de acesso, assim como as devidas instruções de
como proceder em cada etapa e resultados.
3.1.2. Na primeira etapa, que é classificatória, os inscritos
deverão criar um traje (podendo ser composto por mais de uma
peça) para uma festa noturna e enviar o croqui assinado com o
pseudônimo pela plataforma. O envio poderá ser feito até as
23h59min de 04 de setembro (horário de Brasília).
3.1.3. Uma comissão julgadora, composta por três pessoas que
não fazem parte da empresa Vestindo Estilo, selecionará 15
(quinze) candidatos(as).
3.2. Segunda etapa
3.2.1. Os selecionados na etapa anterior deverão comparecer ao
evento no 18 de setembro, vestindo o traje criado por eles. Os
participantes poderão levar um acompanhante no dia do evento e
optar que essa pessoa esteja usando sua criação.
3.2.2. No dia do evento, serão feitas fotografias, de forma que
não identifiquem os candidatos, para posterior avaliação da
comissão julgadora que selecionará os 3(três) finalistas.
3.2.3. O não comparecimento ao evento implica na
desclassificação automática do candidato.
3.3. Terceira etapa
3.3.1. Os 3 (três) finalistas terão até às 23h59min do dia 24 de
setembro (horário de Brasília) para enviar na plataforma uma
criação sua para acessório pet, mantendo o tema “Contosde fadas
modernos”.
3.3.2. Seguindo o mesmo modelo da primeira etapa, o croqui
deverá estar assinado com o pseudônimo indicado na inscrição.
3.3.3. O não envio dentro do prazo implicará na desclassificação
do candidato.
4. Resultado
4.1. O resultado será divulgado no site do concurso, no dia 01 de
outubro.
5. Premiação
5.1. Contrato de 1 (um) ano com a Vestindo Estilo, podendo ser
renovado se for de comum acordo entre as partes.
5.2. Pagamento mensal de R$5.000,00, totalizando
R$60.000,00.
5.3. Participação de 2% nos lucros das peças desenvolvidas por
ele(a).
Ufa! Com todas as coisas do concurso aprovadas e prontas para
o pontapé inicial, eu finalmente podia respirar e, quem sabe, dormir.
Era só aguardar o horário do anúncio nas redes para ter certeza de
que tudo havia saído como o planejado. Eu estava ansioso para
saber a repercussão assim que o concurso fosse divulgado, mas a
festa era a minha parte favorita e mais aguardada. Nem nos meus
melhores palpites eu poderia adivinhar que seria um momento tão
revelador.
O que será que PlusStylistRJestava fazendo? Eu adoraria ser o
primeiro a dar as boas novas para ela sobre o concurso e enviar o
link de inscrição, mas isso quebraria nosso acordo de não revelar
nada que pudesse nos identificar. Só me restava torcer para a
informação chegar até ela. Imagina se ela desiste de participar por
saber da minha ligação com a Vestindo Estilo?
Eu estava tão curioso para saber como ela era, que seria até
capaz de burlar a ética profissional e invadir os registros se tivesse a
certeza de que ela participaria. Quem sabe um encontro “ acidental”?
Nunca imaginei que uma desconhecida ocuparia boa parte dos
meus pensamentos. Se bem que estávamos compartilhando
confidências, então não éramos mais estranhos.
Tinha algo de convidativo naquela mulher. Como se uma corda
invisível me puxasse para mais perto — nem que fosse em
pensamentos. Por várias vezes, me peguei sonhando acordado com
ela, apesar de estar em reuniões importantes. O fato é que queria
conhecê-la. Queria ouvir as palavras da carta saindo de sua boca.
Só de pensar em sua boca, a curiosidade começou a falar mais alto.
Como seria poder beijá-la? Será que seus lábios eram finos ou
carnudos? Será que ela responderia ao meu desejo?
— Senhor Gustavo? — Uma mulher ruiva se materializou na
minha sala e fechou a porta. Leandro estava circulando pela
empresa, então isso significava que estávamos só eu e ela.
— Pois não? — A minha vontade mesmo era de perguntar quem
era ela e o que estava fazendo ali, interrompendo minhas fantasias
com a menina das cartas.
— Queria saber se o senhor precisa de algo. — Ela se aproximou
o suficiente para que eu conseguisse ver a borda da renda do sutiã
aparecendo, já que o primeiro botão da blusa estava aberto. —
Estou inteiramente à disposição. — Ela completou com uma voz
provocante, um sorriso malicioso estampado em seu rosto.
Senti vontade de rir. Situações como essa eram bastante comuns,
principalmente quando a pessoa sabia que eu era o herdeiro da
empresa.
— Preciso, sim. — Ela se empolgou e deu mais alguns passos na
minha direção, apoiando ambas as mãos na mesa e me dando uma
bela vista de seu decote. — Preciso ficar sozinho para terminar meu
trabalho, mas agradeço a sua boa vontade.
“Issotinha mesmo saído da minha boca? Eu estava mesmo
dispensando uma mulher?”
Normalmente, aproveitava a oportunidade para… me divertir um
pouco. Mas não hoje. Não quando a PlusStylistRJestava ocupando
tanto espaço na minha mente. Fora que eu estava dentro da
empresa.
Ela pareceu furiosa e saiu da sala feito um furacão, fazendo
questão de bater a porta com força. Não pude deixar de rir da
situação. Aquilo tinha mesmo acontecido? Não gastei muito tempo
pensando nisso, afinal, tinha prioridades. Eu menti sobre o trabalho,
mas tinha mesmo algo importante para fazer. Abri o site das cartas e
comecei a escrever antes que surgisse uma tarefa inesperada.
13

Alice

De: MeninoDoRio
Olá, menina malvada!
“Quem sabe um dia?”
Estou contando os dias, riscando cada um no calendário
imaginário, mesmo sem saber até quando, na esperança de
ter a sorte de poder ver você bem na minha frente, ouvir sua
voz… Vou parar, antes que você fique assustada e
desapareça.
Brincadeiras (com um fundo de verdade) à parte, entendo
perfeitamente se precisar de mais tempo que o de costume
para responder. Por aqui, também estou bem atarefado, mas
confesso que já estaríamos trocando milhares de mensagens
pelo celular, se me fosse permitido.
Parece que estamos em uma maré de sorte. Eu adoraria te
contar todos os detalhes do que tenho feito, mas, por se tratar
de algo grande e importante, preciso manter sigilo. Pelo
menos, por enquanto. Quando for possível,quero compartilhar
com você e espero ter motivos para comemorar.
Meu pai está se aproveitando para me manter mais tempo na
empresa. Daqui a pouco, até vai ter uma placa de funcionário
do mês com a minha foto pendurada pelos corredores. Estou
vendo a hora que ele vai me pedir para sentar em sua cadeira
para eu ter o gostinho de ser CEO e, quem sabe, me
interessar em ocupar essa posição. Sei que o motivo de me
querer aqui é justamente fazer com que eu me interesse pela
função, mas eu continuo sem conseguir me ver no lugar dele.
Mesmo aqui, não me sinto bem com a ideia. É
responsabilidade demais!
Pode até parecer que tenho aversão a trabalho, mas é só ao
título de CEO mesmo. Se preciso trabalhar na empresa, que
seja com algo mais básico, apesar de não me sentir apto para
exercer os cargos sem ajuda. Se fosse para ficar aqui, eu iria
preferir atuar nos bastidores ou em um projeto específico,
como estou fazendo agora, e até mesmo ser a pessoa que vai
atrás de ideias inovadoras, mas não quem comanda tudo.
Voltando ao assunto, vou aceitar o seu “Quemsabe um
dia…”, com a esperança desse dia chegar logo.
Beijos.

Como Inês havia me pedido para encontrá-la em sua casa,


acordei mais cedo do que gostaria e fui até ela. Só aceitei o convite
por conta da curiosidade, já que minha amiga disse que precisava
de ajuda, mas não disse para o quê. Quando cheguei lá, Suzana, a
diarista que já me conhecia, estava colocando o lixo para fora e
deixou a porta aberta para que eu entrasse.
Ouvi vozes e comecei a me aproximar da cozinha. As três
estavam tomando café da manhã, mas, quando escutei parte da
conversa, fui lentamente até os primeiros degraus da escada, que
terminava perto da área de refeições, separada apenas por uma
parede. A cozinha era quase no estilo americano, com a mesa bem
perto da divisão, e isso me permitiu ouvir melhor. Céus! Quando foi
que escutar conversas escondida tinha se tornado um hábito?
— O que a senhora está aprontando? — Inês indagou de forma
nada sutil.
— É essa a visão que você tem de mim? — Iolanda fez uma
pausa, mas, como Inês não se pronunciou, voltou a falar: — Já que
perguntou, vou contar logo a grande ideia que tive. A confecção está
indo muito bem, não tenho do que reclamar. Então, acho que
chegou a hora de expandir os negócios e conto com você, Ingrid.
— Eu?! — A voz de Ingrid saiu esganiçada e ela pareceu
engasgar com alguma coisa.
— Claro, é para isso que você estuda Moda, meu bem. Vamos
criar uma coleção, ou melhor, você vai criar. Começaremos com
uma loja on-line ― Iolanda disse em um tom empolgado.
Será que era sobre isso que ela falava no outro dia?
— Então, vai contratar mais gente? Isso é ótimo, tem muitas
pessoas precisando de trabalho. — Inês, como eu, também buscava
o lado bom das pessoas. Torci para que estivesse certa sobre as
novas contratações.
— Mas é claro que não. Encaixarei na produção da própria
confecção e ajustarei o setor de separação e entrega para cuidar
dos envios — Iolanda reagiu como se estivesse explicando o óbvio.
Mas que vaca! Com certeza ia acabar sobrando pra mim. Por um
momento, imaginei que ela se afogaria no próprio veneno, mas logo
dissipei essa ideia da mente. Eu ainda precisava do meu emprego.
Só percebi que Inês tinha saído da mesa quando deu de cara
comigo assim que chegou às escadas. Ela abriu a boca para falar
algo, mas mudou de ideia quando percebeu a mesma oportunidade
que eu. Então, se posicionou ao meu lado e eu não era mais a única
esperando para escutar a conversa escondida.
— É… Mãe, eu preciso te falar uma coisa… Não sou muito boa
com os desenhos e não sei se tenho talento para isso. Me desculpa
— Ingrid soou apreensiva, hesitando entre as frases. Olhei para
Inês, que também parecia surpresa.
— Como assim? Não faz sentido. Você está quase concluindo o
curso e suas notas são boas. — Com a curiosidade falando mais
alto, me estiquei para dar uma espiada. A expressão de Iolanda
poderia ser comparada a tela de “Error404”enquanto olhava para a
filha.
— Então, mãe, a Alice tem me ajudado todo esse tempo. Se não
fosse por ela… — Congelei, chocada com a coragem de Ingrid em
contar a verdade para a mãe. Eu não sabia se sentia alívioou medo
por essa informação ser jogada na mesa, e adoraria ter uma bola de
cristal nesse momento.
Voltei a me esconder e encarei minha amiga. Assim como eu,
Inês tinha os olhos arregalados de surpresa.
— Não posso acreditar! Isso arruinará todos os planos que fiz
para nós. Já me basta sua irmã, que não se interessa por nada
disso. Que decepção! — O jeito como a voz de Iolanda se
transformou de empolgada para raivosa foi de deixar qualquer um
apavorado.
— Ah, mas que filha da mãe — Inês sussurrou e tive que segurá-
la para impedir que entrasse na cozinha e dissesse poucas e boas,
apesar da minha vontade de fazer o mesmo.
— Me-me desculpe não ter falado antes, eu não queria te
decepcionar. — Foi impossível não sentir pena de Ingrid. Pela forma
como falava, não me iria me espantar se ela começasse a chorar a
qualquer momento.
— Eu gostaria de ter sido informada desde o início. Talvez
pudesse fazer algo a respeito, te colocar em cursos extras… Você,
pelo menos, consegue desenhar algo? — Iolanda indagou, mas
nem esperou pela resposta antes de continuar: — Quero que a
coleção seja assinada por você. Ingrid Braga. Minha filha.
— Sim, sei desenhar, mas só no nível bonecos de palitos. —
Precisei segurar o riso para não me denunciar quando Ingrid soltou
essa.
— E disse que Alice te ajudou esse tempo todo?
— Sim, mas…
Ouvi um arrastar de cadeiras e Inês prontamente me puxou para
subir as escadas até o segundo piso. Mesmo com muita vontade de
saber para onde aquela conversa iria levar, não podia arriscar.
— Eu não acredito nas coisas que acabei de ouvir! — Inês soltou
assim que fechou a porta do seu quarto.
— Você conhece a sua mãe, não foi nada muito diferente do que
ela costuma fazer no dia a dia. — Depois de tantos absurdos, a
vergonha por ouvir escondida já havia até passado.
— Eu sei, mas será que ela não cansa? Sério, a minha vontade
foi de voltar lá e tirar a Ingrid de perto dela. — Inês bufou.
— Estou surpresa com a coragem repentina da sua irmã. Espero
que isso seja só o início do processo. — Andei de um lado para o
outro dentro do quarto, enquanto tentava organizar as ideias.
— Não entendo ela querer lançar uma marca de roupas neste
momento. Com a estrutura que tem e o fato de não querer gastar,
valeria mais a pena investir em novos contratos naquilo que ela já
faz. — A análise de Inês fazia sentido.
— Apesar dos sonhos de grandeza — comentei —, não consigo
imaginar o que Iolanda poderia aprontar, além de aumentar a carga
de trabalho dos funcionários.
— Eu não sei, mas vamos descobrir em algum momento — Inês
disse aquilo que me deixava apreensiva.
— Agora, me diga: em que posso te ajudar? — Sentei na cama,
cruzei as pernas e olhei para a minha amiga. Depois de tudo o que
ouvi desde que cheguei, quase tinha esquecido o porquê de estar
ali.
— Ah, verdade. — Inês riu. — Precisava de uma ajuda sua com
umas roupas e achei mais fácil você vir aqui do que eu levar todo
meu guarda-roupa até lá, mas também não era nada urgente
Durante vários minutos, conversamos sobre as opções que Inês
tinha no armário, até que me chamou atenção uma edição especial
de um dos meus livros favoritos, no meio de centenas dispostos em
uma estante que ia até o teto. Qualquer um que entrasse naquele
quarto perceberia o amor de Inês pela literatura. Apesar de ter
acordado cedo para vir até aqui, foi muito bom passar um tempo
com ela. Só que, infelizmente, ainda precisávamos ir para a aula.
Dessa vez, quem não havia esperado por nós foi Ingrid, que já
estava a caminho da faculdade. Nada como querer ficar longe de
Iolanda para motivá-la a ser pontual. Então, mais uma vez, éramos
só eu e Inês no carro. Enquanto minha amiga falava sem parar,
minha mente focava no que tinha ouvido de Iolanda. Eu precisava
ficar alerta para notar mais atitudes suspeitas da bruxa.
— Amiga, você ficou sabendo do concurso da Vestindo Estilo? —
Inês interrompeu meus pensamentos enquanto cruzava os portões
da faculdade. — Eu vi assim que acordei, mas foram tantos
acontecimentos que esqueci de falar.
— Tem alguma promoção no estilo “compretantos produtos e
concorra a prêmios incríveis” por lá? Isso é algo que me motivaria a
fazer compras, mesmo não podendo.
— Não! Viajou bonito. Eles estão procurando estilista para uma
nova coleção. Essa é a sua chance! — Inês estacionou na vaga e
desligou o motor, mas não fez menção de sair do carro. Apenas se
virou no banco e me encarou.
— Jura? Nem verifiquei as notificações hoje. Preciso ver isso
agora!
Nem tive que procurar muito para achar a informação que
precisava. Parecia que todos estavam falando sobre o tal concurso.
Propagandas apareciam na tela, reportagens no feed e algumas
mensagens de amigos e colegas de curso, dizendo que eu não
podia perder essa oportunidade. Cliquei no link da última conversa e
o site bonito e criativo logo capturou minha atenção.

Procura-se estilista para assinar a nova


coleção
da Vestindo Estilo.
Em breve, mais informações.
— Eu adoraria! — deixei escapar tamanha minha empolgação.
Apenas os requisitos básicos estavam disponíveis, e percebi que
estava apta a participar. Ao mesmo tempo que estava empolgada,
dúvidas surgiram. Precisava pensar um pouco mais antes de
finalizar a inscrição.
Eu e Inês nos despedimos e segui para a minha aula. Por sorte, o
professor ainda não tinha chegado.
Quando sentei na cadeira, meu coração palpitava com a nova
oportunidade que tinha aparecido. Por alguns minutos, fiquei me
perguntando se seria capaz de participar do concurso — e, quem
sabe, vencer.
Com o celular na mão, a vontade de compartilhar o que tinha
acontecido com o MeninoDoRio começou a falar mais alto.
Aproveitei que a aula ainda não havia começado e digitei algumas
coisinhas.

De: PlusStylistRJ
Te agradeço muito por compreender os meus motivos.
Hoje o dia começou um pouco estranho. Minha chefe é uma
megera, e eu acabei protagonizando um momento digno de
filme de investigação, só que com muito menos glamour. Mas,
como uma luz no fim do túnel, algo apareceu para me deixar
empolgada. Estou pensando no que fazer. Se decidir seguir
em frente, vou agarrar essa oportunidade com unhas e
dentes. E parece que ambos temos segredos agora.
14

Gustavo

De: MeninoDoRio
Sinto muito que seu dia ontem tenha sido difícil.
Adoraria poder fazer algo para te animar, mas não faço ideia
do quê. Até pensei em contar umas piadas, mas sou péssimo
nisso, então ia ter o efeito contrário.
Segredos, hein? Isso é alguma estratégia sua para me deixar
ainda mais curioso? Mas se diz que é algo bom, ficarei na
torcida, mesmo sem saber do que se trata.
Estou empolgado, porque tenho prática de esgrima. Agora,
trabalhando na empresa, não tenho feito isso durante a
semana. Sabe quando você faz algo com tanta frequência, a
ponto de ser quase automático? Meu corpo sente falta.
Também é a forma saudável de descarregar minhas
frustrações. As festas andam escassas.
E você, quais os seus planos? Me conte tudo, quero saber
detalhes.

Estava ansioso para saber cada vez mais detalhes sobre ela,
desde aquelas coisas básicas, que tanto reclamei estar cansado de
abordar em conversas, até seus desejos mais profundos. Estava
pagando minha língua. Eu me pegava pensando no que ela estaria
fazendo, e até detalhes sobre o passo a passo dos seus dias
parecia muito interessante.

De: PlusStylistRJ
Olá, MeninoDoRio!
Obrigada por ser tão compreensivo, espero que, em algum
momento, isso não precise mais ser mantido em segredo e eu
possa compartilhar tudo com você.
Quer mesmo tantos detalhes?
Não sei se vai achar tão interessante assim, mas vamos lá:
Acredita que quase esqueci de enviar um trabalho
importante? Lembrei dele faltando poucos minutos para
acabar o prazo, ainda bem que já tinha um rascunho. Esse foi
o meu “sextou”.
Eu deveria estar dormindo, mas estou aqui te respondendo,
então sinta-se importante. Neste sábado, vou de novo ao
abrigo para ajudar nos cuidados dos animais. Estou ansiosa!
Aliás, lembra que comentei de ter encontrado uma forma de
ajudar? Pois bem, vou criar peças para vender e arrecadar
dinheiro para os animais. Como a loja vende de tudo um
pouco na área de vestuário e acessórios, tenho a liberdade de
criar peças diversas — e é quase como se eu tivesse minha
linha de peças exclusivas.
Aparentemente, eu não sou a única empolgada, pois a dona
do estabelecimento mandou até fazer um banner para colocar
em destaque na entrada da loja, fez posts nas redes sociais
com um “Embreve…”e prometeu até sorteio entre os clientes
que comprassem os itens ou quisessem deixar um valor de
doação em uma espécie de caixinha.
Vou pegar alguns moldes que tenho e adaptá-los. Você sabia
que fazer cada etapa de uma vez costuma ser mais rápido do
que todos os passos de cada peça individualmente? Quando
se faz muita coisa em pouco tempo, você arruma estratégias
para otimizar o tempo.
Agora, preciso ir, vou fazer isso bem cedo antes de sair.
Beijos!

Não esperava por uma resposta antes de dormir, mas fiquei tão
empolgado que respondi, mesmo sabendo que ela não veria até
acordar. Essa mulher realmente tinha levado a sério a parte de me
contar com detalhes, e eu amei ver esse lado dela.

De: MeninoDoRio
Uau! É bom te ver empolgada desse jeito.
Dá para notar que você gosta do que faz só pela forma que
escreve. Fico imaginando como seria sua voz e que
provavelmente seus olhos brilham quando fala disso. Até me
pergunto se surgem covinhas no seu rosto quando sorri.
Ainda bem que você não me falou de que abrigo se trata, e
acho que isso foi intencional, ou eu seria o primeiro a chegar
lá só pela chance de, por “coincidência”, te ver
. Eu não saberia
quem é você, mas reduziria bastante a lista de possibilidades.
Isso soou um pouco assustador, imagino, mas não foi minha
intenção. Pode ficar tranquila que eu não sou um stalker.
O que você está fazendo comigo, garota?

Precisei me segurar para não falar, de forma nada sutil, sobre o


concurso. Eu queria tanto saber se ela iria participar… Tinha noção
de que seriam muitos competidores e pouquíssimos selecionados
para a festa, mas não conseguia deixar de ter esperanças de que
ela fosse muito boa e garantisse uma vaga. Só que, mesmo que
fosse à festa ou até uma das finalistas, como eu iria saber que era
ela? Só com muita ajuda do Universo.
Quanto mais conversávamos, mais minha vontade de vê-la
aumentava. Era tão frustrante não poder fazer nada a respeito, além
de torcer para que ela mudasse de ideia. Isso poderia levar muito
tempo, ou nunca acontecer — e pensar nessa última possibilidade
não me agradava nem um pouco.
Só notei que estava resmungando quando percebi que Joca
estava me olhando com curiosidade. Dei um tapinha na cama e meu
cachorro logo entendeu o recado: com um pulo, estava ao meu lado.
Ele se aconchegou perto das minhas pernas e fiz carinho atrás das
orelhas. Não demorou muito para que Joca entrasse em sono
profundo. Pelo menos um de nós não tinha uma garota misteriosa
roubando o sono.
15

Alice

Acordei cedo e fiz as peças que seriam vendidas na


loja antes do horário de ir para o abrigo. Nessa leva, saíram
máscaras de dormir, blusas com modelos rápidos de costurar e,
com as tiras menores, aproveitei para fazer umas xuxinhas de
cabelo — com e sem aquele laço que estava sendo bastante usado.
Não consegui fazer tantos itens quanto gostaria, mas já era um bom
começo. Deixei tudo embalado e pronto para entregar a Inês.
Conferi o relógio e percebi que teria que abandonar os planos de
fazer patchwork por hora. Se não corresse para tomar banho e
comer alguma coisa, teria que deixar Inês esperando. Aliás, fazer
tudo correndo tinha se tornado minha especialidade, pena que eu
não ganhava medalhas por isso. Na minha cabeça, sempre dava
para fazer mais coisas do que o relógio permitia.
Apesar da correria, quando Inês avisou que estava saindo de
casa, eu já tinha terminado de me arrumar. Aproveitei os minutinhos
de sobra para fazer algo que há muito tempo não fazia. Não me
lembrava quando foi a última vez que falei com vovó, muito menos
quando a vi pessoalmente. Aquele seria um ótimo momento para
colocar a conversa em dia e matar um pouco da saudade.
Eu até tentei convencê-la de usar um celular desses modernos,
pois o que dona Josefina tinha era daqueles que só faziam ligação
mesmo. Inclusive, só aceitou ter o modelo básico para me acalmar.
Não tinha como ficar tranquila, sabendo que ela estava sozinha e
sem nenhuma forma de comunicação. Se tivesse concordado com
um desses aparelhos que fazem videochamadas, pelo menos
poderíamos ver o rosto uma da outra, mas ela alegou que não
saberia mexer e que era informação demais para a sua cabeça do
século passado. Então, não insisti mais.
O telefone chamou diversas vezes e eu estava quase desistindo
quando minha avó atendeu:
— Alô?
— Oi, vó! — A emoção me pegou quando ouvi a voz que era
sinônimo de lar para mim. — Como a senhora está? — Eu queria
tanto ir até lá verificar, mas precisava me contentar com os relatos
dela.
— Vou bem, minha filha.Entreiem um grupo de senhoras aqui da
vizinhança, que organizam oficinaspara ensinar o que sabem para
a comunidade. Tem culinária, costura,redação, pequenos consertos
e muitas outras coisas. Cada uma ensina um pouco e alguns dos
alunos acabam até transformandoo que aprendem em fontede
renda. Estou muito animada em poder fazer parte de algo tão
significativo.— Do jeito que falava, parecia mesmo que estava feliz.
— Vê se não vai exagerar, dona Josefina. — Sabia da capacidade
dela de ficar até tarde e se exceder nas tarefas. Não foi à toa que eu
aprendi a ser assim.
— Que nada. É muito entediante ficar sem trabalhar. — Ouvir
aquela risada gostosa do outro lado do telefone me deixou com
ainda mais saudade de casa.
— E eu querendo uma folga… — pensei em voz alta.
— Falando em folga, quando vem me ver? Vou preparar seus
pratos favoritos. — Vovó Josefina soou esperançosa.
— Eu tinha pensado em dar uma passada aí no próximo feriado,
mas, do jeito que as coisas estão por aqui, acho difícil conseguir
uma brecha antes do fim do ano. Sinto falta da sua comida, vó. —
Minha boa encheu de água só de lembrar do sabor das delíciasque
ela preparava. Mil vezes melhor do que meu cardápio frequente,
que só mudava o sabor do macarrão instantâneo.
— Poxa, uma pena. Estou morrendo de saudades, mas entendo
perfeitamente.Faz tempo que não consigo mais te carregar, e
adoraria te dar uns abraços bem quentinhos aos montes. — Ela
tentou não transparecer a tristeza por eu passar tanto tempo longe,
só que eu a conhecia bem.
— Ah, vozinha... — Meu coração apertou e me segurei para não
chorar, não queria deixá-la preocupada. — Acho que só vamos nos
encontrar na minha formatura. Mas, depois disso, vou dar um jeito
de trazer a senhora para morar comigo.
Minha avó já tinha se oferecido para vir me ver, mas seria
desgastante demais para ela ir e voltar no mesmo dia. Eu não tinha
como hospedá-la sem que Iolanda tornasse minha vida um inferno e
também não conseguiria dar a atenção que ela merecia. Porém, a
formatura era um evento importante demais para ser ignorado.
— Nunca pensei que eu iria mesmo morar na cidade grande, mas,
para ficar perto de você, meu amor , eu vou pra qualquer lugar.
— E eu agradeço por isso, imagino que não deva ser fácil sair do
lugar em que morou a vida toda. Mas eu morreria de preocupação,
mais do que já fico, se senhora ficasse sozinha por aí.Se acontecer
alguma coisa, eu estou longe demais pra chegar a tempo de tomar
providências.
— Fica tranquila que os vizinhos estão sempre de olho em mim,
como você recomendou. Pensa que eu não sei? — minha avó falou
orgulhosa, como se tivesse feito uma grande descoberta digna de
Sherlock Holmes.
— Claro, todo mundo sabe que a senhora apronta. — Eu ri.
— Não sei de nada disso. Agora, me diga: como você está?
— Doida para o ano terminar — confessei.
— Não foi isso o que perguntei, mocinha— ela afirmou séria, mas
com doçura.
— Ah, vó, não quero preocupar a senhora. Estou bem, só
cansada pelo excesso de atividades. — Minha tentativa de não
entrar nesse assunto havia falhado, então, fiz de tudo para dizer a
verdade sem entrar em detalhes.
— Ah, minha menina, sempre querendo abraçar o mundo com as
pernas. Não sei exatamenteo que está fazendo por aí, mas agora
preciso retornar o conselho que me deu: não exagere. Não deixe de
me avisar se tiver algo que eu possa fazer para ajudar.
— É por pouco tempo, eu prometo. Falta tão pouco… — A última
frase saiu em um sussurro, como uma forma de me encorajar. Já
tinha se tornado um mantra.
— Eu sinto que você vai chegar longe e rezo por isso todos os
dias. Agora, preciso ir, porque hoje aprenderemos com a Clotilde
como pintar paredes, e eu estou ansiosa por isso. Estava
terminando de me arrumar quando ligou, por isso demorei para
atender.
— Tá bem, vovó. Amo você.
— Eu também te amo, querida.
Como se tivesse sido combinado, ouvi a buzina assim que
encerrei a ligação. Já estava na porta quando lembrei da sacola e
voltei correndo para buscá-la.
— Bom dia, Alice. Nem vou perguntar se você dormiu bem, mas
sim se você dormiu — Inês brincou, pois me conhecia bem.
— Algumas horas. Não tanto quanto eu gostaria, mas o suficiente
para continuar viva. — Fiz uma careta.
— Que sacola é essa? Não me lembro de termos combinado de
levar nada para o abrigo.
— Aqui estão as primeiras peças que serão vendidas na loja da
sua amiga. Fiz hoje de manhã.
— Ah, agora está explicado, você realmente não dormiu. Vou
levar hoje mesmo. Tati vai ficar bem feliz de começar as vendas. Ela
disse que os clientes parecem interessados.
— Tomara que venda tudo. Farei mais assim que puder.
Não demorou muito e já estávamos estacionando no mesmo lugar
da outra vez. Encontramos Pâmela à porta, conversando com
algumas pessoas que, aparentemente, estavam interessadas em
adoção.
— Meninas, que bom ver vocês aqui!
— É um prazer poder ajudar esses peludinhos — eu disse.
— Pessoal, essas são Inês e Alice, as novas voluntárias — ela
gritou na direção da entrada. — Podem ir entrando, eles vão
explicar o que precisarem.
— Bem-vindas! — Um homem alto apareceu no portão. — É bom
ter reforços. Eu sou o Luiz.
— Como podemos ajudar? — Inês se prontificou.
— Vamos tentar dar banho em pelo menos um terço deles. Com
sorte, chegaremos à metade. Como vocês são novas e ainda não
estão familiarizadas com os animais, acho que pode ser uma boa
ideia lavarem os canis vazios enquanto os bichinhos estão no
banho. Recolher as fezes, trocar água, essas coisas.
— Claro! Só dizer onde está o material de limpeza que
começaremos agora mesmo.
No início, nós nos enrolamos um pouco. Começamos devagar,
mas logo pegamos o ritmo e, com isso, a hora foi passando sem
que percebêssemos. Assumimos toda uma ala que estava vazia e
enquanto Inês segurava a lixeira, eu ia recolhendo as fezes. Não era
a tarefa mais agradável do mundo (quem gosta de recolher cocô?),
ainda mais se considerasse o cheiro, mas o propósito dela fazia
valer a pena.
Mexer com água era a parte que eu considerava mais divertida,
então lavar os canis e ver tudo limpinho trouxe uma sensação de
dever cumprido. Estávamos na última etapa, que consistia em repor
água e comida, e nos preparávamos para a próxima ala quando
ouvimos alguém, de voz desconhecida, gritar em um misto de
desespero e divertimento.
— Thor, volta aqui!
Antes que Inês tivesse tempo de reagir, um cachorro enorme e
molhado pulou em seu peito, derrubando-a no chão e enchendo seu
rosto de lambeijos. Eu fiquei sem reação e só me restou rir quando
percebi que estava tudo bem. Rapidamente, peguei o celular do
bolso e fotografei a cena. Não tinha tempo de enviar uma carta
como de costume, mas anexei a imagem (que mostrava o cachorro
molhado em cima de uma pessoa não identificável) e escrevi
“Parece que alguém está se divertindo!”
— Thor, para já com isso! — Luiz falou com firmeza, mas em um
tom de diversão. — Inês, me desculpa, ele ainda é um bebê.
Acabou de fazer seis meses e não tem noção de seu tamanho e
força.
— Sem problemas. Depois que o susto passou, foi até engraçado.
Ele é enorme! Nunca diria que é novinho assim. — Thor abanava o
rabo freneticamente enquanto cheirava Inês.
— A Pâmela já deve ter mencionado que filhotes são adotados
com um pouco mais de facilidade, mas o tamanho dele não favorece
a situação. A maioria prefere os animais menores ou não tem
espaço para um cachorro desse porte.
— Oi, meu amigo! — Ela começou a fazer carinho perto das
orelhas de Thor, que ficou um pouco menos agitado. — Vamos
achar um dono para você. Alguém que dê conta dessa energia toda.
— Ele latiu como se tivesse entendido e concordado com o que foi
dito. Aposto que já tinha conquistado o coração de Inês a ponto de
ela querer levá-lo para casa. Se não fosse Iolanda…
— Parece que ele gostou mesmo de você. Quer aproveitar e
secá-lo? O banho já tinha acabado, mas ele se assusta com o
barulho do soprador.
— Soprador? — Inês fez uma cara engraçada, e por eu saber da
sua imaginação fértil, apostaria que visualizou algo como uma
pessoa assoprando os cachorros.
— Sim. Como eu posso explicar? É uma espécie de secador, só
que mais potente. Ele deixa o pelo quase seco, ajuda bastante.
Recebemos um de doação há pouco tempo.
— Então, acho que também vou precisar de um — Inês brincou.
— Nossa, eu nem me liguei que você está toda molhada. Acho
que tenho uma blusa guardada em algum lugar.
— Tudo certo, está calor. Provavelmente, ainda vou me molhar
mais, então melhor deixar a roupa seca para quando eu for embora.
Obrigada!
— Ah, antes que eu me esqueça, deixem seus números e comigo
— Luiz revezou olhares entre mim e Inês —, vou pedir para
colocarem vocês no grupo dos voluntários, que é onde
compartilhamos as informações, escalas e pedidos de ajuda. Vocês
podem vir quando quiserem e se juntarem aos outros voluntários em
algumas tarefas para irem se familiarizando com os procedimentos.
— Claro, vai ser um prazer! — Eu concordei com um movimento
de cabeça. Estávamos mesmo empolgadas com as novas
atividades.
Quando acabamos a parte que nos cabia, a vontade era de me
jogar em uma poltrona fofinha e deixar meu corpo moído repousar,
mas o cansaço não diminuía a sensação gostosa de ver tudo limpo
e os bichinhos cheirosos e contentes, abanando os rabinhos. O
trabalho constante daquelas pessoas, que se dedicavam a cuidar de
tantos animais, era admirável. Eu podia ver nos olhos da minha
amiga que estava tão orgulhosa quanto eu por fazer parte do
projeto. Nós nos despedimos de todos, incluindo os bichinhos, e
prometemos voltar em breve.
— Me diz que você trouxe uma blusa reserva — Inês
praticamente implorou quando entramos no carro. Só naquele
momento lembrei da oferta que fizeram, e acho que ela também.
— Trouxe uma pra mim, mas tem umas três entre os itens que
vão para a loja. Alguma deve caber em você. — Peguei a sacola
que estava no banco de trás e a entreguei para Inês.
— Ah, que delícia! — Inês começou a vasculhar em busca das
peças, enquanto eu trocava de blusa rapidamente, aproveitando o
vidro escuro. — Vou ser a primeira cliente a contribuir com a causa
e, de quebra, ainda desfilarei com um modelo exclusivo by Alice
Barreto.
Inês também trocou de roupa bem rápido. O modelo de alças
finas e de caimento evasê assimétrico, com a ponta do lado direito
um pouco maior que a do esquerdo, trazia leveza e movimento.
Como forma de aproveitar os tecidos, a parte das costas era de um
tom neutro, que combinava com as estampas da frente.
— Ficou ótima em você! — Não consegui esconder a alegria de
ver alguém vestindo uma de minhas criações.
— Sabe que eu também achei? — Inês sorriu. — Agora, estamos
prontas. Há tempos quero conhecer um café que inaugurou e vou te
levar lá. Nem me venha com “mas”, porque, se não for de surpresa,
não consigo te tirar de casa. — Ela tinha um olhar travesso.
— Vamos nessa! O restante pode esperar. Quer dizer, poder não
pode, mas vai. — Eu andava mesmo precisando de um pouco de
descanso e lazer. Conhecer novos lugares sempre me pareceu uma
boa opção para isso.
— Gostei de ver! Mas me diz, e aquele concurso? Já se
inscreveu?
— Ainda não.
— Como assim? O que está esperando?
— Você viu como a minha vida está uma loucura? Estou me
perguntando em que momento irei arrumar tempo para isso. Além
disso, as inscrições só começam na semana que vem — revelei.
Hoje de manhã, dei uma olhada melhor na postagem e descobri
que as inscrições ainda não haviam começado. Mesmo assim, ainda
não estava decidida a participar.
— Amiga, presta atenção, essa é a oportunidade que pode te tirar
dessa vida de gata borralheira. Deve ter um jeito. Não tem nenhum
projeto que você já esteja trabalhando que dê para, sei lá, adaptar?
— Nossa, Inês, você é genial! Meu projeto final da faculdade é um
vestido de formatura. Posso fazer inspirado no tema do concurso e
usar nas duas coisas, eu acho. Tinha feito um primeiro modelo, mas
não me agradou o suficiente e estava pensando em refazer. —
Fiquei pensativa. — Até lá, o resultado já vai ter saído e aí não terá
problema se eu o entregar como trabalho de faculdade. Caso eu
ganhe e não seja permitido, dou um jeito de usar a primeira versão.
— “Caso” não, você vai ganhar. Seria burrice deles desperdiçar a
chance de trabalhar com um talento como você. Todo mundo vê
isso, inclusive minha mãe, por isso ela faz questão de te manter por
perto, para sugar tudo o que pode.
— Agradeço a sua fé em mim. É, ela está fazendo isso com
maestria. ― Revirei os olhos.
— Eu não entendo como ela pode ser assim. Não entendo. Meu
pai é uma pessoa tão boa, e ela o espantou com esse
temperamento. — Inês suspirou de frustração. — Ele tentou, e como
tentou, mas estava inviável. Pelo menos ela não conseguiu tirá-lo da
minha vida, apesar de vê-lo menos do que gostaria por causa da
distância.
— Você já pensou em ir morar com ele?
— Ele se muda com frequência e, para quem está tentando cursar
uma faculdade presencial, isso não é o ideal. Mas ei, essa conversa
não é sobre mim. Acho mesmo que você deveria tentar o concurso.
— Vou fazer a inscrição assim que liberarem. — O incentivo da
minha amiga era o que faltava para me convencer. — Prometo.
— Só quero ver!
Eu não fazia ideia do quanto queria isso até aquele momento. Era
a minha oportunidade para mudar de vida, como eu pude duvidar se
participaria ou não? Fiquei um pouco aérea, imaginando minhas
roupas espalhadas pelas unidades da Vestindo Estilo, pessoas
falando sobre elas nas redes sociais e em qual seria a minha reação
se passasse por alguém na rua vestindo uma das peças.
Todas essas emoções tomando conta me encheram de vontade
de compartilhar a novidade com o MeninoDoRio. Eu não sabia onde
ficava o tal café, mas torci que o trajeto demorasse tempo suficiente
para que eu pudesse escrever uma carta.
Quando abri o aplicativo e vi que ele havia respondido à minha
mensagem anterior, borboletas começaram a bater asas no meu
estômago. Era impressionante o efeito que ele tinha em mim.

De: MeninoDoRio
Levei um susto quando vi que era uma foto e quase derrubei
o telefone com a empolgação. Nos segundos antes de abrir,
passaram mil e uma possibilidades na minha cabeça do que
estaria retratado nela.
Se era você naquela foto, me desculpe, mas foi impossível
não rir.
Eu amo cachorros, só que não me importaria se tivesse
alguém a mais nessa imagem. ;)
De: PlusStylistRJ
Desculpa pelo susto! Não foi dessa vez que você me viu em
uma situação embaraçosa.
Eu espero que seu dia esteja sendo tão incrível quanto o
meu. Poder sair da rotina e ainda ajudar aqueles animais
recarregaria as energias de qualquer um. Quero muito estar
apta para ser da equipe que dá banho neles em breve, e
também aguardo ansiosa por uma oportunidade de brincar
com os gatinhos.
Sabe aquele segredo que comentei? Eu realmente tomei
uma decisão muito importante e que pode mudar a minha
vida. Seria demais pedir que torça por mim, mesmo que eu
não possa te contar o que é?

Quando dei por mim, já estávamos chegando ao café, que estava


bastante movimentado, mas isso não nos impediu de conseguir uma
pequena mesa alta, de dois lugares. Pedimos cappuccino de
caramelo, mal sabendo que se tornaria um pequeno vício, e alguns
cookies da vitrine. Ao sentir os sabores deliciosos, concordamos
que a ida até lá tinha valido muito a pena.
Diferente do normal, o meu telefone não estava no silencioso,
então ouviu o bip avisando a chegada da nova correspondência
virtual. Ponderei se abria ou não, já que estava passando um tempo
com minha amiga, mas a curiosidade acabou vencendo e peguei o
telefone da bolsa. Isso fez Inês levantar as sobrancelhas e lançar
seu olhar de quem sabia que algo diferente estava rolando.

De: MeninoDoRio
Um pedido seu nunca seria demais. É claro que vou torcer!
Bom saber que deu tudo certo hoje e que seu dia compensou
os momentos ruins dessa semana. Deveríamos comemorar.
Eu sugiro que pegue uma bebida imediatamente e brindemos!
Eu não sei que tipo de bebida você gosta, mas pode ser água,
suco, café ou até mesmo um copo vazio. Também vale o
imaginário, só pela intenção.
Espero que tudo continue indo por esse caminho e que
apareçam muitos outros motivos para celebrar.
Beijos!

Balancei a cabeça e sorri pela ironia de estar justamente com


uma xícaraenorme de cappuccino em uma mão enquanto segurava
o celular com a outra. Fiz o gesto de brinde de forma quase
imperceptível e bebi um longo gole. Enquanto a bebida esquentava
meu corpo, a carta aquecia meu coração.
Apesar da vontade, não respondi na hora. Estava curtindo a
companhia de Inês e não achei justo, pois não daria a atenção
necessária para nenhum dos dois. Porém, assim que cheguei em
casa, corri para o computador. Muitas coisas estavam passando
pela minha cabeça e eu me via cada vez mais querendo dividir
meus pensamentos com o MeninoDoRio.
Ele não era o único querendo um encontro. Depois de tantas
conversas e da conexão que estávamos criando, a minha vontade
de saber como ele era e como agia pessoalmente só aumentava.
Também queria saber se a nossa conexão se manteria ao vivo,
como era no modo on-line, mas eu ainda não estava pronta para
correr esse risco de estragar tudo, então teria que me contentar
apenas com o virtual.

De: PlusStylistRJ
Olá, MeninoDoRio!
Se eu te contar que estava com uma xícara de café na mão
quando li sua última carta, você acredita? Fiz nosso brinde
naquele momento. Eu concordo contigo: temos mesmo que
celebrar cada pequena vitória e lembrar de agradecer por
cada coisa. Estar vivo é o nosso bilhete dourado para
continuar tentando alcançar os objetivos e dar oportunidade
para coisas boas acontecerem.
Espero que tenha brindado aí também, e com algo tão
delicioso quanto o cappuccino de caramelo que eu estava
bebendo. Só de lembrar me dá vontade de voltar na
cafeteria…
Nunca pensei em chegar ao ponto de me abrir dessa forma,
mas aqui estou eu. Quem olha de fora deve achar que a
minha vida é um verdadeiro inferno e, mesmo a minha chefe
me explorando em um nível surreal, continuo na luta. Sabe por
quê? Eu tenho um sonho e ele é o meu combustível para
acordar todos os dias e enfrentar cada obstáculo. Quando eu
chegar lá, vai ter valido a pena. Seria bom se a estrada fosse
um pouco menos esburacada para a viagem ser mais suave.
Mas se esse é o caminho, continuo em frente.
Tenho sentido uma saudade enorme do colo da minha avó.
Ela mora em outra cidade e não posso visitá-la agora, mas
como eu gostaria de sentir aquele cheiro de café e bolo de
milho que só ela sabe fazer e de sentar no sofá para ver
aquela reprise de novela na televisão… Sinto falta do
cheirinho de talco na pele dela e das palavras de sabedoria
que sempre tem pra me dizer e que confortam meu coração.
Ela me criou, sempre foi minha referência e exemplo de
pessoa. É muito ruim estar morando esses anos todos longe.
Não vejo a hora de conseguir trazê-la para morar comigo, mas
ainda tenho algumas etapas antes disso.
Bom, me desculpe o desabafo, mas senti que podia confiar
em ti e precisava muito falar sobre isso com alguém.
Obrigada por estar aí do outro lado.
16

Alice

Uma coisa que raramente acontecia, ou pelo menos eu


vi pouco nos quase quatro anos de faculdade, era dois professores
desmarcando aula no mesmo dia. Não me lembro da última vez que
fiquei tão empolgada ao ser acordada pelo despertador. Isso
significou algumas horas deliciosas a mais de sono. E, se pudesse,
provavelmente teria dormido até a hora limite, antes de ir trabalhar.
Só que eu não podia perder a oportunidade de usar parte desse
tempo para adiantar alguma — ou, com sorte, algumas — das
milhares de atividades pendentes, na esperança de ter alguns dias
um pouco mais tranquilos.
Assim que acordei, dei a tão conhecida conferida básica no
telefone e o tour rotineiro pelos aplicativos. No nosso dia a dia, isso
se tornou uma ação quase automática e tão vital quanto beber água
ou respirar. Estava verificando a caixa de entrada quando um e-mail
específico me chamou atenção.
Parece que eu tinha recebido um sinal sobre o que fazer com as
horas livres. Como não era algo que desse para ser feito de
qualquer jeito — pelo contrário, teria que dar o meu melhor —, era
tudo ou nada. A responsabilidade de fazer algo que definiria meu
futuro me fez sentir um frio na barriga, mas não iria deixar o
nervosismo me impedir de criar a peça perfeita, que poderia me
levar adiante no concurso.
Decidi começar o quanto antes a trabalhar para transformar as
ideias que vinham passando na minha mente em algo concreto. Em
que conto de fadas eu deveria me inspirar? Ou será que deveria
fazeruma mistura de vários elementos? Levei um tempo pensando
e olhando para o papel, até que minha mão, quase como se
estivesse sendo guiada por forças invisíveis, começou a rabiscar
uns traços aqui e outros ali.
O rascunho, ainda cru, estava tomando forma na minha frente e
eu estava tão absorvida pelo momento que só percebi a presença
de Iolanda quando ela já estava na porta. Nessas horas, eu adoraria
ter uma capa da invisibilidade. Como isso não era possível, apenas
tentei esconder o desenho sem levantar suspeitas, misturando-o a
alguns papéis, que o cobriram a ponto de não ser identificado. Todo
cuidado era pouco.
— Olá, querida, como está o seu dia? — Ela se esgueirou pelo
local como uma serpente se preparando para dar o bote. — Soube
pela Ingrid que não tiveram aula hoje. — O tom amigável demais
usado por Iolanda me deixou em alerta.
— Está bem, mas não posso ir para a confecção antes do meu
horário, ainda tenho umas tarefas pendentes. — Eu precisava me
certificar com mais frequência de que a porta estava trancada.
Mesmo Iolanda tendo a chave e cara de pau o suficiente para usá-
la, isso me daria alguns segundos a mais para me preparar.
— Nossa, mas que monstro pensa que eu sou? — Iolanda levou a
mão ao peito de forma teatral. — Não vim aqui te pedir isso. É sua
manhã livre, afinal.
— Não? — Estranhei. — O que aconteceu, então? — Uma ponta
de curiosidade surgiu. Tinha algo muito errado nisso.
— Na verdade, eu queria te pedir um favor. — O jeito gentil e
incomum que Iolanda continuava usando, somado ao pedido, me
deixou preocupada com o que estava por vir.
— Diga… — O medo anulou a curiosidade anterior, e eu só queria
que ela acabasse o mais rápido possível.
— Ingrid me contou que você a ajudou com algumas tarefinhasda
faculdade, mas ficou com vergonha de pedir mais essa. Ela estava
trabalhando em um projeto e queria a sua ajuda para fazer uns
pequenos ajustes, só para aperfeiçoar. Soube que você é um talento
nos desenhos, então achei que não se importaria de ajudar mais
essa vez. — O sorriso fechou o momento com chave de ouro. Era
possível contar nos dedos de uma mão as vezes que Iolanda sorriu
para mim.
— Posso tentar dar uma olhada, mas que projeto seria esse? Não
estou lembrada de nenhuma tarefa. — Estranhei o pedido.
— Ah, ela estava indo mal em uma disciplina e se ofereceu para
fazer um trabalho extra, como forma de ganhar uns pontos a mais.
— Sei. Então, deixa aí, vejo o que consigo fazer. Só não sei
quando poderei mexer. — Eu estava contando os segundos para me
ver livre da presença de Iolanda e poder continuar o que fazia antes
de ser interrompida.
— Será que não poderia fazer agora? É coisa boba. Eu aguardo,
sem problemas. — Ela nem esperou a resposta, já foi me
entregando o papel e desocupou uma cadeira para sentar, sem se
importar ou ter o mínimo cuidado com os itens que jogou no chão.
Como a última coisa que queria era perder paz logo cedo, achei
melhor atender logo o pedido dela. Faria um detalhe ou outro e
torceria para que ela se desse por satisfeita.
— E o que preciso fazer aqui? Qual o tema? — Apesar de o papel
estar em minhas mãos, ainda não havia verificado o rascunho de
Ingrid. Preferi manter os olhos em Iolanda, por via das dúvidas.
— Uma coisa meio princesa, sabe? — Iolanda tentou parecer
desinteressada.
— Ah, sim. — Achei melhor me fazer de desentendida.
Princesa? Sério mesmo que ela veio me pedir pra ajustar o croqui
do concurso? Mas que cara de pau! Agora tá explicado.
Respirei fundo, pensando em uma forma de atender ao pedido de
maneira que Iolanda considerasse bom o suficiente, mas não a
ponto de continuar no concurso. Não estava torcendo contra Ingrid,
claro que não, mas achava que não só a filha da minha chefe, mas
qualquer outro inscrito, deveria participar com seu próprio mérito, e
não com ajuda externa. Isso era praticamente fraudar o concurso, e
ainda teria dedo meu nisso. Eu mal tivera tempo de fazer o meu e
tinha que gastar o raro tempo livre para burlar as regras e fazer o de
outra pessoa. Só esperava que isso não me trouxesse
complicações.
Apenas percebi que tinha ficado um tempo parada enquanto
pensava quando Iolanda começou a avaliar meu rosto com
curiosidade. Então, achei melhor conferir o que Ingrid havia feito e
— céus! — aquilo não precisaria de pequenos ajustes, mas
praticamente ser refeito. Parece que as horas extras que consegui
naquela amanhã tinham ido ralo abaixo.
Tentei trabalhar o melhor que pude sob os olhares de impaciência
de Iolanda. Ela devia pensar que, em três segundos, o desenho
aparecia magicamente no papel, e não que dava um trabalho
enorme, misturando técnica, criatividade e estilo — que costumava
ser algo muito individual. Ainda tinha mais essa. Era bom ter o
cuidado de não deixar muito parecido com o meu estilo, a ponto de
os jurados perceberem e desclassificarem as duas. Ingrid iria
sobreviver, apesar da ira da mãe, mas eu estava me agarrando a
essa oportunidade como a Rose se agarrou àquele pedaço de
madeira no meio do oceano gelado.
Por sorte, ou talvez tenha sido proposital, Ingrid havia feito o
rascunho a lápis e de grafite claro, assim pude apagar as linhas que
precisava sem deixar marcas, ou teria que refazer do zero em outro
papel.
— Aqui está. — Entreguei a folha na mão de Iolanda. — Acredito
que ela saiba colorir. — Fiz o possível para não deixar transparecer
a ironia na minha fala.
— Claro que sabe, mas, se quiser fazer esse favor, já que
estamos aqui… — Será que alguém podia falar para essa mulher
tomar um chá de noção?
— Eu adoraria, mas escolha das cores é algo muito pessoal. Tem
a ver com muitos fatores e acho que ela gostaria de escolher, até
mesmo pensando nas possibilidades de tecido e os efeitos
desejados para a peça — falei de forma gentil. A minha vontade era
de pegar Iolanda pelo braço e encaminhá-la até a saída.
— Está bem — Iolanda respondeu, contrariada. — Transmito os
agradecimentos de Ingrid, esses pontos extras vão ajudar muito —
completou, na tentativa de manter seu disfarce, e eu engoli as
verdades que gostaria de despejar nela.
— De nada. Agora, se me der licença, eu preciso terminar umas
coisas antes de começar meu turno.
— Claro, claro, eu já estava de saída.
Assim que ela deixou o recinto, tratei de esconder bem o meu
desenho. Levando em consideração o adiantado da hora, não daria
mais tempo de continuar e tinha perdido a concentração necessária
para dar sequência ao que estava fazendo. Só esperava ter tempo
para continuar fazendo o croqui nos próximos dias, ou minhas
chances estariam arruinadas. Naquele momento, decidi que este
seria o meu melhor trabalho entre todos já feitos, mesmo que
precisasse ficar sem dormir algumas noites para conseguir.
Inês:
Amiga, tenho ótimas notícias!
Alice:
Pois trate de falar logo! Aliás, já era para ter
começado falando. HAHAHAHA
Inês:
Ok, ok. Só queria fazer um suspense
dramático. Isso existe?
Alice:
Não sei se existe, mas pare de me enrolar!
Inês:
Mas que sem graça…
Alice:
Inês!
Inês:
A boa notícia é que todos os itens que você fez
para a doação foram vendidos e já tem lista de
espera pelos próximos.
Alice:
O QUÊ?!
Inês:
Isso mesmo que você leu. Sempre digo que
você é um sucesso e não sou levada a sério.
Alice:
Essa notícia é mais do que boa, é incrível. E
desesperadora ao mesmo tempo. Incrível pela
doação e desesperadora porque não sei como
vou arrumar tempo para produzir essa
demanda.
Inês:
Amiga, faça o que puder, o quanto puder e
quando puder. Todo mundo vai entender. Se
não entender, paciência.
Alice:
Sim, vou tentar fazer uma etapa por dia e em
breve teremos uma nova leva de peças.
Inês:
Isso! Depois pensamos na possibilidade de
arrumar mais alguns voluntários para te ajudar.
Eu ajudaria, se soubesse pelo menos pregar
um botão. Mas não é o caso, para desgosto de
mamãe.
Alice:
Você já ajudou muito arrumando um lugar para
vender. Se dependesse de mim, teria um monte
de peças acumuladas no meu quarto e eu
continuaria sem saber como resolver.
Inês:
Sempre soube que formamos uma equipe
incrível. Beijos, gata!
Nada como uma boa notíciadessas para dar um gás em qualquer
ser humano. Parecia que o Universo sempre me enviava algo bom
depois de levar uma porrada, como se fosse um recado de “Não
desista!”.Saber que algo feito por mim, com amor e carinho, havia
dado certo e poderia ajudar os bichinhos não tinha preço. Com um
sorriso no rosto, resolvi compartilhar o sucesso com o MeninoDoRio,
antes de encarar meu turno na confecção.

De: PlusStylistRJ
Boas notícias!
Quero muito compartilhar algo que aconteceu: parece que a
minha ideia para ajudar o abrigo deu muito certo. As peças
estão todas vendidas, acredita?
Sei que não é uma quantia enorme, mas sinto tanta alegria
em poder ajudar. Não vejo a hora de poder fazer mais!

De: MeninoDoRio
Oi!
Muito bom saber que seus projetos estão dando certo. Se eu
fiquei empolgado com a notícia, imagino você.
Sei que não está me cobrando, mas antes que esqueça,
quero dizer que não respondi àquela carta sobre a sua avó
porque queria refletir sobre o que me contou antes de
escrever. Sei que continuamos nos comunicando depois disso,
acho que trocamos mais de quinze cartas na última semana,
mas me sinto desconfortável de não ter respondido ainda,
justamente por você se abrir sobre algo importante para ti.
Prometo que farei isso em breve.
P.S.: Os animais do abrigo são muito sortudos de terem
cruzado o seu caminho e o de tantas pessoas que estão
dispostas a ajudar. Espero um dia ter essa sorte também.

— Humm, que sorriso bobo é esse? — Dona Bernadete logo


notou e não perdeu a oportunidade de comentar.
— Aposto que tem homem nessa história — Sandra
complementou.
— Que homem, o quê? Eles só dão dor de cabeça, isso sim — foi
a vez de Luciana se pronunciar.
— Deixem a menina em paz, suas futriqueiras— Jorge cortou o
barato das colegas.
— Ah, a gente tá precisando de umas novidades para animar as
conversas — Sandra respondeu.
— Vocês são demais. — Achei graça da situação. — Não foi
homem nenhum. Apenas uma ideia que tive e acabou dando mais
certo do que imaginei. — Sorri para os meus amigos, omitindo um
pouco da verdade. Afinal, parte do motivo de eu estar me sentindo
tão alegre era o MeninoDoRio. Conversar com ele sempre me
deixava um pouco mais leve. Como ele mesmo havia dito,
conseguimos conversar bastante na última semana. Foram
conversas simples, sobre coisas corriqueiras, mas que me deram
uma sensação de… não sabia ao certo. Talvez completude. Era
difícil explicar como me sinto em relação a ele. Só sabia que não
estava disposta a abrir mão do MeninoDoRio. A cada conversa, ele
se tornava mais essencial na minha vida.
— Uma pena… — Sandra deixou escapar e todos riram. — Não
por sua ideia ter dado certo, é claro, mas pela fofoca perdida — ela
fez questão de completar.
Todos voltaram a atenção para o trabalho, mas logo surgiram
assuntos diversos para serem comentados, desde coisas básicas —
como a última promoção de uma loja —, até a vida pessoal de
artistas, que sempre ia parar nos sites de fofocas. Parecia que
algum cantor famoso tinha voltado com a esposa depois da
promessa de um divórcio nada amigável.
Nossa chefe, mais conhecida como bruxa, não aprovava.
Segundo ela, “conversinhas durante o expediente” eram
desnecessárias, mas, depois de perceber o quanto isso impactava
positivamente no nosso rendimento, parou de reclamar. Todos os
funcionários se davam muito bem, o que deixava o clima no
ambiente de trabalho bem mais leve e descontraído. Já bastavam
as longas horas que passávamos na confecção trabalhando para
aumentar o saldo na conta bancária de Iolanda.
O telefone vibrando no meu bolso me distraiu dos pensamentos.
Olhei ao redor e, como estava seguro, decidi que uma espiadinha
não faria mal.
Voluntários - Amor de Animal
Pâmela:
Feira de Adoção no sábado, 28/08, às 9h!
Quem vai?
Juliana:
Eu o/
Roberto:
Dessa vez não vou poder :/
Inês:
Posso?
Pâmela:
Claro, Inês! Te espero no abrigo. Vamos
organizar as coisas e preparar os bichinhos.
Inês:
Vamos @Alice?
Alice:
Não posso prometer, mas vou fazer o possível.
Cláudia:
Eu vou ficar no abrigo cuidando da limpeza
junto com o Luiz.
Inês:
Vou estar com o carro, se for útil.
Pâmela:
Vai ajudar bastante.
17

Gustavo

Naquela manhã, entre provocações e os sons das


espadas batendo uma na outra, entre avanços e recuos tentando
atingir sem sermos tocados primeiro, João Lucas, o meu adversário
da vez, notou que eu estava aéreo e aproveitou a oportunidade para
me atingir algumas vezes mais do que teria conseguido em dias
normais. Com isso, ele alcançou a pontuação necessária para sair
vencedor da disputa, sendo o primeiro dos finalistas na nossa
competição.
— O que aconteceu com você, cara? É sempre o mais focado do
grupo. — João Lucas tinha um sorriso de orelha a orelha pela
partida fácil que acabara de vencer.
— Lembrei de algo e o pensamento voou. — Não quis entrar em
detalhes. Não é que não confiasse em meus amigos, pelo contrário,
mas aquela era uma informação que queria guardar só para mim
por mais um tempo.
Afinal, como eles reagiriam se soubessem que, nas últimas
semanas, vinha pensado com frequência em uma pessoa que nem
conhecia?
— Iiih, aposto que tem mulher no meio — Armando Filho, também
conhecido como Armandinho, se meteu. Ele havia assistido a tudo e
se aproximava para disputar com Bernardo a outra vaga na final.
— Não sei de onde vocês tiram isso. Mas se tiver, também, qual o
problema? — Dei de ombros, tentando disfarçar. Não queria, mas
acabei demonstrando estar na defensiva.
— Nem precisa dizer nada. — Armandinho riu. — Só de olhar pra
sua cara dá pra ver que tá perdido, irmão. — Ele deu três tapinhas
no meu ombro e foi terminar de colocar o equipamento para dar
início à disputa.
Costumávamos praticar durante a semana, mas com a minha
nova agenda de trabalho, só me restava a opção de treinar no fim
de semana. Eles não ficaram muito animados em ter que acordar
cedo no sábado, ainda mais depois de ficar até tarde em alguma
festa, só que era isso ou não ter a minha presença. Parece que a
nossa amizade era mesmo importante.
Eu não estava conseguindo prestar muita atenção na disputa,
mesmo assim, fiquei até o fim para assistir aos meus amigos. E
Bernardo, o mais focado do dia, foi quem saiu vencedor. Assim que
o parabenizei, fui logo me despedindo e parti em direção à minha
casa. Queria passar um tempo em silêncio, e nada melhor do que
uma espreguiçadeira e a companhia de Joca para isso.
Os últimos dias foram cansativos demais, e ainda não tinha me
acostumado à rotina corrida da Vestindo Estilo. Acordar com o sol
raiando, participar de várias reuniões, sair do escritório já tarde da
noite… tudo isso estava me consumindo. Mas o que realmente me
incomodava era o fato de eu não estar infeliz. Exausto, precisando
de longas noites de sono e já com vontade de tirar férias? Com
certeza. Só que as coisas relacionadas ao concurso estavam indo
tão bem, que era impossível não ter aquele senso de satisfação ao
fim do dia.
Assim que me viu chegar, Joca correu na minha direção. Ele
estava muito empolgado em me ver, pulando na minha perna, e não
ia sossegar até que eu lhe desse a devida atenção. Desisti de entrar
em casa primeiro e apostei corrida com ele até a piscina. Mesmo
idoso, e já há treze anos na família, ele ainda continuava ganhando
de mim.
Aquela água estava chamando o meu corpo suado e fui logo
tirando a camisa, que usei para enxugar o rosto. Quando fui tirar a
calça, lembrei que não estava com a sunga de banho, mas, como
não tinha ninguém à vista, não teria problema em ficar de boxer,
mesmo ela sendo branca.
Quando cansei de nadar, achei que seria uma boa pegar sol
deitado na espreguiçadeira à beira da piscina. Nada como um pouco
de repouso depois de toda aquela atividade física. Pode não parecer
cansativo, mas praticar esgrima exige muito treinamento e muita
concentração, assim como todos os outros esportes. A cada
movimento do adversário, precisamos de rapidez nas decisões.
Tanto eu quanto meus amigos éramos apaixonados por isso, tanto
que gostávamos de fazer apostas e até participávamos de algumas
competições amadoras.
Eu não fazia ideia de quanto tempo estava ali, o corpo já seco e
sentindo a pele queimar com o sol, mas meu estômago já começava
a emitir sinais de fome. Por usar óculos escuros e estar de olhos
fechados, pensando em certas cartas, não percebi quando meu pai
se aproximou.
— E aí, filhão? — Ele parecia estar de excelente humor.
— Bom dia, pai. Em casa hoje? Que milagre é esse? — Abri os
olhos e me deparei com ele vestindo apenas o calção de banho.
— Um homem merece um dia de folga, não?
Ele começou a passar filtro solar onde alcançava, incluindo a
barriga, que tinha começado a ficar proeminente nos últimos meses,
desde que parou de fazer sua caminhada matinal. Assim como eu,
meu pai era um homem alto e por mais que estivesse em idade um
pouco avançada, ainda exibia sua cabeleira negra, sem nenhum fio
branco.
— Claro, só não te vejo fazer muito isso.
— Soube que as coisas estão indo de vento em popa no concurso
— comentou com um sorriso orgulhoso.
— Sim! Ainda estou impressionado com o número de inscrições.
Eu esperava muitas, mas não tantas assim.
— Então, significa que vocês fizeram um bom trabalho de
divulgação. — Entrou na piscina e voltou seu corpo na minha
direção para continuar a conversa.
— Só acho que os jurados não vão ficar tão contentes quanto nós
em selecionar apenas os quinze candidatos mais promissores
dentro desse volume todo. — Eu estava dividido entre me sentir feliz
e preocupado com essa situação.
— Se precisar, chame reforços, ofereça um bônus. O importante é
fazer tudo funcionar como o prometido. A nossa empresa valoriza
compromisso com acordos e prazos — atestou.
Por mais que fosse nítidoo seu esforço em não tentar interferir no
que eu estava fazendo, ele sempre arrumava um jeito de me dar
uma mãozinha através de conselhos inocentes. E o uso nada sutil
do “nossa empresa”para se referir à Vestindo Estilo deixou claro
que já estava imaginando um futuro brilhante para mim no escritório.
Por ora, resolvi ignorar.
— Pode deixar. Aliás, o Leandro é um funcionário excelente. Eu
estava completamente perdido no início, e ele tem me ajudado
muito. Se eu fosse o senhor, consideraria efetivá-lo, talvez uma
promoção. Algo que o mantenha na empresa. Posso não entender
muito, mas tenho certeza de que ele agregaria bastante ao quadro
de funcionários. — Senti certo alívio por poder finalmente conversar
com meu pai sobre isso. Era o mínimo que podia fazer, depois de
tudo que o rapaz havia feito por mim.
— Eu já tinha percebido, por isso o coloquei para trabalhar com
você. Mas vou manter o seu conselho em mente e talvez efetivá-lo
quando concluir a faculdade. Fico feliz em te ver prestando atenção
nesses detalhes da nossa empresa. — Ele deu uma piscadela e
nem tentou esconder a felicidade ao ver que as coisas estavam
acontecendo da forma como queria.
— Nem considero um mérito meu. Só um cego não notaria todo o
potencial daquele rapaz.
— Já entendi o recado. Agora, vou nadar um pouco. Nem lembro
quando foi a última vez que entrei nessa piscina.
— O almoço será servido às 13h. — Minha mãe surgiu na porta
dos fundos, falando um pouco mais alto do que de costume para ser
ouvida a essa distância. —Teremos um prato especial. Não é todo
dia que meus dois meninos estão em casa para as refeições. —
Fizemos um sinal de positivo com a mão ao mesmo tempo.
Como o silêncio voltara a reinar, peguei meu telefone, que havia
deixado na mesinha, e resolvi aproveitar o momento para responder
à última carta recebida. Dona Helena não aprovaria o uso de celular
durante a refeição, e os fins de semana tinham o hábito de passar
rápido demais, especialmente quando eu estava trabalhando de
segunda a sexta. Não queria deixar minha correspondente
esperando. A gente tinha trocado mensagens simples desde o fim
de semana passado, só que a correria não nos permitia falar de
assuntos mais profundos. Para isso, eu gostava de ter concentração
e calma — e sabia que a PlusStylistRJpensava do mesmo jeito.
Joca estava com a cabeça repousando na minha perna e aproveitei
a oportunidade para retribuir a foto que ela havia me mandado na
semana anterior.

De: MeninoDoRio
Olá!
Que bela manhã de sol, não? Fico me perguntando o que
você está fazendo por aí.
Sei que nossa semana foi corrida, e peço desculpas por não
ter te dado a atenção que merece. Mas juro que foi por uma
boa causa. Por isso, guardei essa resposta para hoje.
Eu me senti importante por ter compartilhado coisas tão
pessoais e significativas comigo. Fico feliz em saber que
confia em mim a esse ponto.
Inspirado em você, mestra em dar ótimos conselhos, vou te
contar o que eu acho e provavelmente faria nessa situação.
Fico feliz com a chance de retribuir e espero que meus
conselhos sejam tão úteis quanto os seus.
Às vezes, precisamos viver o momento, tomar umas decisões
por impulso, nos jogar, mergulhar de cabeça... Claro que
existem situações de risco, mas não me parece que visitar sua
avó seja uma delas. Então, se você tivesse me perguntado, eu
diria para ir.
Tem um feriado vindo por aí, é uma ótima oportunidade.
Corra para comprar as passagens, arrume as malas e leve o
que der pra adiantar das suas atividades. Tenho certeza de
que isso vai renovar suas energias para enfrentar o que vier, e
acredito plenamente na sua capacidade de dar conta das
pendências.
Eu mesmo compraria suas passagens, se tivesse seus
dados. Como não posso fazer isso, então espero boas
notícias na próxima carta.
Dê um beijo na sua avó por mim.
Boa viagem! ;)
P.S.: Odeio quando a minha semana é corrida e não posso
conversar com você o dia inteiro. Quem sabe um dia…
18

Alice

— Bom dia, Alice! — Inês era toda sorrisos.


— Gostei de ver a empolgação, chega a ser contagiante!
— Nada como uma manhã sem ouvir comentários sobre as
pontas duplas do meu cabelo ou poder lamber o pote de iogurte
com os dedos sem que minha mãe vire uma fera — ela foi falando
enquanto dirigia rumo ao abrigo.
— Acho que hoje é seu dia de sorte, melhor aproveitar. Àsvezes,
eu custo a acreditar que você é mesmo filha da Iolanda, mas admiro
muito a sua “ rebeldia”.— Fiz o sinal de aspas com os dedos,
arrancando uma risada da minha amiga.
— Já basta Ingrid, que mamãe tenta transformar em sua cópia. —
Inês revirou os olhos. — Falando em sorte, estou com uma
sensação estranha.
— Ué… você ficando supersticiosa? — Estranhei.
— Não, mas espero que seja algo bom.
Chegando ao Amor de Animal, a movimentação acelerada era
notável. Cães e gatos estavam sendo acomodados em caixas de
transporte, que eram colocadas em um carro.
— Bom dia! — Pâmela se manifestou assim que estávamos perto
o suficiente para ouvi-la. — O carro vai ser uma mão na roda. Vai
nos poupar algumas viagens a mais. Obrigada.
— Fico feliz em poder contribuir de alguma forma, já que ainda
não aprendi o bastante para ajudar com mais coisas. — A
expressão corporal de Inês não escondia o quanto aquilo a deixava
realizada.
— Vocês vão aprender rapidinho, não se preocupem. A boa
vontade e o amor pelos animais são o mais importante, e eu vejo
isso nas suas ações. Vamos explicando os procedimentos conforme
as coisas forem acontecendo e, se tiverem qualquer dúvida, fiquem
à vontade para perguntar.
— Pode deixar! — Inês bateu continência e isso fez Pâmela rir. O
lado divertido da minha amiga ia aparecendo cada vez mais,
conforme se sentia à vontade com todos ali.
— O evento de hoje é um pouco diferente dos que costumamos
fazer. Um espaço foi cedido para nós de forma gratuita, em uma
feira pet com diversas lojas em vários segmentos voltados para os
animais. Ajuda muito, ainda mais pelo ambiente ser climatizado,
assim os animais ficam mais confortáveis. Além da visibilidade, é
claro. — Pâmela tinha um semblante cansado, mas nem por isso
parecia menos disposta para as tarefas do dia. Ela falava sobre
cada detalhe com alegria.
— Ah, eu fiquei sabendo desse evento! É a primeira edição aqui
no bairro, né? — Lembrei de ter visto propaganda dele em algum
lugar.
— Isso mesmo. E o público esperado é significativo, então,
estamos confiantes de que boa parte deles encontre uma família.—
Pâmela sorriu com a possibilidade.
Ajudamos a colocar algumas das caixas de transporte no carro e
seguimos o veículo de um outro voluntário. Estava ansiosa para
colocar a mão na massa e ajudar aqueles pequenos seres a
encontrarem um lar. Já no estacionamento, paramos ao lado do
outro carro e, como prometido, Pâmela surgiu com algumas
informações.
— Nós não costumamos trazer tantos animais assim, mas como é
um evento grande e tem bastante espaço, até o Thor veio. Aliás,
vamos precisar de alguém pra tomar conta dele. Você pode fazer
isso, se quiser — sugeriu a Inês, sabendo que ambos ficariam
contentes. Luiz havia contado a ela do episódio no dia do banho.
— Adoraria, ficamos muito amigos depois que ele me derrubou e
me deixou toda molhada. Amor à primeira lambida — Inês disse e
nós duas começamos a rir, lembrando do momento. — Vou ficar
muito feliz se ele encontrar um bom tutor.
— Queremos muito ver todos eles sendo adotados, mas, de
qualquer forma, já ajuda muito todas essas pessoas saberem da
existência do abrigo. Assim, podem indicar para algum conhecido
interessado em adotar ou até mesmo nos ajudar de alguma forma.
— Era impressionante como Pâmela parecia sempre tentar ver o
melhor lado de casa situação. Eu a conhecia há pouco tempo, mas
já a admirava bastante.
— Parece mesmo uma boa forma de divulgação gratuita — Inês
concordou.
— A equipe da organização até fez uma campanha para doarem
ração durante o evento. A pessoa pode comprar em algum dos
expositores e eles vão colocar no espaço próximo a nós. Até se
comprometeram a entregar lá no abrigo depois que o evento acabar.
Eu estava cada vez mais impressionada e tentava fazer
anotações mentais de tudo o que Pâmela contava. A moça falava
bastante, o que era ótimo, pois quase nem precisávamos perguntar.
Enquanto um dos voluntários ficou tomando conta dos carros, nós
fomos pegando as caixas de transporte e levando para dentro.
O local ainda não estava oficialmente aberto para visitações, mas
o movimento de pessoas trabalhando era grande. Dava para notar
expositores ajustando os últimos detalhes enquanto caminhávamos
pelos corredores amplos e iluminados. Realmente, tinha de tudo que
se pudesse imaginar, menos a venda de animais, já que um dos
propósitos do evento era divulgar a campanha de “Nãocompre,
adote” que vinha sendo tão falada.
Quando chegamos com os últimos bichinhos ao espaço reservado
para o Amor de Animal, alguns cachorros já estavam nos
cercadinhos móveis e os gatos em gaiolas. Thor era o único que
estava sendo segurado pela guia, devido ao seu tamanho e
comportamento. Ele estava sentado, com as grandes orelhas em
pé, observando tudo e, quando avistou Inês, avançou na direção
dela, dando um puxão e levando junto a voluntária que o estava
segurando. Ele ficou em pé, apoiando as patas dianteiras gigantes
em Inês, e seu rabo balançava freneticamente, tamanho era o
contentamento do animal. Sua pelagem branca perolada brilhava e
sua pele era levemente rosada com algumas pequenas manchas.
— Oi, garoto! Eu também sentia sua falta, mas você não pode
ficar puxando as pessoas por aí — Inês falou de forma doce e fez
carinho na cabeça dele, que tentava lamber seu rosto. — Pode
deixar comigo, vou cuidar dele — ela garantiu e Juliana apenas fez
que sim com a cabeça, parecendo aliviada de passar a tarefa, e foi
logo ajudar em outra coisa.

l
Quando chegou perto da hora do almoço, o movimento dispersou
um pouco, então aproveitei para ler a carta que chegara alguns
minutos antes. Na mesma hora, respondi.

De: PlusStylistRJ
Esse é o seu cachorro? Ele é lindo! Como se chama?
Que belo sábado de sol para adotar um animal, aposto que
seu amigo aí adoraria ter companhia. Se for do seu interesse,
me deixe saber e passarei o contato da responsável pelas
adoções do abrigo.
A vida de voluntária é bem gratificante, mas exige muito do
nosso físico algumas vezes. O que sei é que continuarei
nessa missão enquanto me for permitido. Neste momento,
estou exausta demais para ponderar sobre a sua sugestão,
mas prometo que o farei em breve.
E que carta mais profunda. Estou gostando de conhecer um
pouco mais esse seu lado. Por favor, não pare. Nem que leve
um pouco mais de tempo para responder. Eu, melhor do que
ninguém, entendo como a vida pode ser corrida.
Beijos
Não demorou muito e o alerta de mensagens apitou. Nem tive
tempo de terminar de comer o sanduíche,mas o deixei de lado sem
hesitar e comecei a ler a resposta do MeninoDoRio.

De: MeninoDoRio
Ah, quer dizer que o nome do meu cachorro você quer saber,
mas o meu não?
Ele se chama Joca e estaria mandando beijos molhados se
entendesse do que se trata a conversa.
Ah, adoraria adotar mais algum animal, mas meus pais me
matariam. O Joca é velhinho e isso demanda bastante
atenção e cuidados. Ele ainda está com a corda toda, diga-se
de passagem.
E você, pretende adotar algum?
Aguardo para receber notícias da viagem.☺

Olhei para os lados e vi Inês fazendo carinho em Thor. Lucas


estava ocupado falando com uma mulher e Pâmela conversava com
a responsável pelo estande ao lado do nosso. Pelo visto, ninguém
precisava da minha ajuda, então resolvi continuar conversando com
aquele que dominava os meus pensamentos.

De: PlusStylistRJ
Interessante você perguntar. Estou completamente
apaixonada por um gato chamado Nick. Eu o conheci na
minha primeira visita ao abrigo e queria muito mesmo poder
levá-lo para casa comigo. Mas, neste momento, adotar um
animal é inviável. Quem sabe daqui a algum tempo, se meus
planos derem certo.

Vi que o movimento estava voltando a aumentar, então guardei o


telefone. Eu estava ajudando na parte dos gatos, e dois filhotes
haviam sido adotados nas primeiras horas. Como nunca tinha
participado de feiras de adoção, não sabia se era bom ou ruim.
Claro que era ótimo qualquer um deles achar um lar, mas eu não
deixava de pensar na quantidade de animais esperando por essa
chance, sem contar todos os que estavam na rua à própria sorte.
Por um momento, fechei os olhos e mentalizei uma espécie de
oração por esses animais. E, quando abri, havia um homem parado
em frente à Inês, com um olhar curioso. Ela, que parecia distraída,
levou um susto quando percebeu a presença do rapaz. Por mais
que não quisesse espiar o que minha amiga estava fazendo, essa
minha nova fase de Sherlock Holmes parecia não me abandonar.
Inês começou a conversar com ele, mas dava para ver que tinha
algo mais acontecendo ali. Ela colocava o cabelo para trás das
orelhas, em um gesto que eu sabia indicar timidez. Por outro lado,
ele sorria e gesticulava na direção de Thor, que revezava o olhar
entre os dois, tão curioso quanto eu.
O rapaz se abaixou para acariciar o filhote, enquanto Inês apenas
o encarava. Mesmo de longe, consegui ver um rubor em suas
bochechas. E o modo como ele retribuía o olhar da minha amiga
indicava que também estava interessado em mais do que apenas o
cachorro, que lambia sua mão.
Os dois continuaram conversando por mais alguns minutos, até
que Inês chamou por Pâmela.
— Que maravilha! — A voz empolgada da dona do abrigo veio até
mim, e então entendi que ele estava prestes a levar Thor para casa.
O homem passou uns bons minutos em uma conversa com a
diretora do abrigo e, quando vi, já estava preenchendo uma ficha de
adoção. Enquanto isso, Inês havia sentado no chão e fazia carinho
no amigo canino. Pude notar a tristeza da despedida estampada em
seu rosto.
Por um momento, acabei me distraindo com um pequeno grupo
de crianças, que vieram brincar com os gatinhos. Uma menina, de
no máximo oito anos, se apaixonou tanto por um deles, que saiu
chorando de tristeza quando a mãe avisou que não poderiam adotar
o gato, pois já tinham três cachorros e pouco espaço. Assim que o
grupo se afastou, voltei meu olhar para Inês, que, com lágrimas nos
olhos, acenava para Thor. O enorme filhote seguia o homem que o
adotara.
Chamei uma das voluntárias para ficar no meu lugar e fui até a
minha amiga.
— Você está bem? — perguntei a ela, que apenas fez que sim.
Pâmela, que sorria de orelha a orelha, veio até a gente.
— O evento está um sucesso — comentou, olhando ao redor para
o movimento que só aumentava.
— Ah, quase ia me esquecendo, que cabeça a minha — Inês
falou enquanto tateava os bolsos a procura de algo. — Não falamos
antes para não criar falsas expectativas, mas a Alice teve uma ideia
de aproveitar retalhos de tecido e criou algumas peças, que estão
sendo vendidas na loja de uma amiga minha. A renda vai ser
revertida para ajudar a Amor de Animal. Aqui está a doação da
primeira leva.
— Uau! Vocês conseguiram me deixar sem palavras. — Pâmela
parecia emocionada. — São esses gestos que renovam a minha
esperança na humanidade. Agradeço em nome de todos os
animais.
O restante do dia acabou passando bem rápido em meio a todo o
movimento de cuidar dos animais, dar atenção para as pessoas
interessadas, explicar os detalhes, averiguar se os novos donos
seriam responsáveis e se tinham a intenção de cuidar e dar amor ao
animal. O resultado havia sido bem positivo e uma boa quantidade
de animais — um pouco maior do que o de costume para feiras
como esta — havia sido adotada, para alegria de todos.
A cada animalzinho que encontrava um novo lar, meus olhos
enchiam de água. Era uma mistura de felicidade e a sensação de
dever cumprido, torcendo para que eles nunca mais precisassem
sofrer. Nick não havia sido adotado e apesar de querer muito que
ele encontrasse um lar, também queria poder ter a sua companhia
um pouco mais. Com sorte, adotá-lo assim que me mudasse.
Apesar de cansada, teria provocado Inês sobre o novo tutor de
Thor no trajeto de volta para casa, se não tivesse notado o aviso de
duas novas cartas.

De: MeninoDoRio
Estou começando a ficar com inveja desse gato.
Se eu fizer “miau”, você me leva para sua casa também?

De: MeninoDoRio
Por favor, ignore minha última mensagem, acho que peguei
sol demais na cabeça. :p
Sei que foi horrível, mas espero ter feito você rir.

De: PlusStylistRJ
De que mensagem estamos falando? ;)

O que eu mais gostava nas minhas interações com ele é que


nossas conversas passavam de coisas divertidas para piadas ruins
e iam até assuntos mais profundos. Era muito bom ter alguém que
se encaixasse em todos os momentos, e ele me fazia sentir
confortável para ser eu mesma. Um sorriso bobo ficava estampado
no meu rosto toda vez que lia algo enviado pelo MeninoDoRio.
19

Gustavo

Agora que eu estava trabalhando, o fim de semana


passava voando. Apesar de não estar muito na vibe, resolvi aceitar
o convite dos caras para uma noitada. Com as minhas novas
responsabilidades, eu não andava muito animado para festas. Ah, a
quem eu estava tentando enganar? Era difícil admitir, mas a mulher
desconhecida por trás daquelas cartas mexia com as minhas
emoções de forma inusitada.
Depois das minhas paixonites de adolescente, nenhuma mulher
chegou perto de roubar meu coração. Não foi por falta de tentativas
da minha parte, mas, depois de um tempo, relacionamentos
pareciam cada vez mais cansativos e preferi encontros casuais.
Não lembro exatamente o nome do local onde estávamos, era
club alguma coisa, mas que diferença fazia? Parecia com a maior
parte de todos os outros que frequentei nos últimos meses. Pouca
iluminação, bebidas, mulheres e muitos homens desesperados para
manter a fama de garanhão perante os amigos. Só faltava anotar
em um caderninho o nome de cada uma que beijavam.
Meu esforço era quase inexistente, já que as mulheres apareciam
do nada, principalmente quando ficavam sabendo que eu era o
herdeiro da Vestindo Estilo — fato que eu evitava ao máximo que
vazasse. Parece que a palavra “CEO” despertava algo nelas. Eu
não podia reclamar, não mesmo, mas facilidade demais acabava
tirando um pouco a graça.
— Cara, a loira ali no canto do bar não tira os olhos de você —
Bernardo fez questão de me avisar.
— Que loira? — Olhei sem muito interesse para a direção que ele
indicou.
— Jura que não percebeu? Que desperdício! O que tem de errado
com você? — Ele me analisou, como se esperasse ver algum sinal
de que eu não estava passando bem.
— Nada, só não me interessou. Fique à vontade para ir lá, quem
sabe ela não nota todo o seu charme mais de perto.
— Vou mesmo. — Ele piscou, ignorando meu tom sarcástico.
Fiquei um tempo observando Bernardo se aproximar da tal loira e,
como suspeitei, a expressão corporal dela mudou ao perceber o
interesse do meu amigo. Eles não trocaram muitas palavras antes
de suas bocas estarem coladas. E, para onde olhasse no salão,
dava para encontrar casais se pegando sem se preocupar com todo
mundo em volta.
Não consegui deixar de lembrar da minha correspondente e,
antes que pudesse pensar muito a respeito, terminei de beber o
líquido no copo. Talvez tenha feito isso rápido demais ou então já
estava chegando ao meu limite de álcool. Era possível que eu
estivesse ficando bêbado, mas isso não me impediu de pegar o
telefone e abrir o aplicativo de cartas.

De: MeninoDoRio
Ah, minha doce correspondente, como eu gostaria que você
estivesse aqui para lhe envolver com meus braços, sentir seu
calor e te encher de beijos.
Sonho com o dia que você irá mudar de ideia e marcar o
nosso tão esperado encontro...

— O que você pensa que está fazendo? — Armandinho tirou o


telefone da minha mão antes que eu pudesse terminar a carta.
— Nada que seja do seu interesse — resmunguei de volta.
— “Ah,minha doce correspondente…”,não conhecia esse seu
lado romântico, meu caro. — Ele parecia estar se divertindo às
minhas custas.
— Não enche! — Tentei, em vão, recuperar meu telefone.
— Não vou, mas o seu telefone vai ficar confiscado. —
Armandinho sacudiu o aparelho antes de guardá-lo no bolso. —
Acredite, estou te fazendo um favor. Não quero que você acorde
amanhã e se arrependa de escrever palavras tão melosas.
Deixei que falasse sozinho e fui para o bar, na outra ponta do
salão.
— Uma dose dupla do que tiver de mais forte — pedi ao barman.
— Tá na mão, meu chefe. — Ele me estendeu um copo de
tamanho médio, com uma boa quantidade de um líquido dourado,
que não fiz questão de perguntar o que era.
Enquanto a bebida descia rasgando pela minha garganta, e
apesar de não estar no melhor momento para isso, refleti sobre a
fala de Armandinho. Não queria admitir, mas ele não estava errado.
Só quando o ouvi dizer em voz alta, percebi que, provavelmente, iria
me arrepender de enviar algo assim. A última coisa que precisava
era assustá-la, não agora que estávamos ficando tão próximos. Ele
não iria me devolver o telefone até o fim da noite, então torci para
que ele não resolvesse ler as outras cartas ou enviar alguma
besteira.
Terminei o conteúdo do copo em mais um gole e pedi outra dose.
Em seguida, mais uma. Foram várias até me dar por satisfeito. A
cada copo, mais pensamentos surgiam. Todos eles sobre ela — e
tudo o que faria caso pudesse.
Só quando me deixaram em casa é que pude pegar meu telefone
de volta, e agradeci mentalmente por ele ser protegido por senha.
Eu gostava do Armandinho, mas às vezes ele podia ser um pé no
saco. Agora, eu teria paz para escrever a minha carta. Eu não ia
enviar aquele rascunho, mas o álcool me deixou motivado a revelar
mais do que faria se estivesse sóbrio e com ela.

De: MeninoDoRio
Minha menina, eu não sabia que era possível sentir falta de
alguém que nunca vi.
Isso tudo é muito estranho e, ao mesmo tempo, faz todo
sentido. Pelo menos, para mim. Espero que não me ache um
lunático por falar essas coisas, mas será que só eu me sinto
assim?
Eu disse que não forçaria o nosso encontro, e falei sério. Mas
isso não quer dizer que eu não queira, e muito, te encontrar.
Estou louco para saber quem é a pessoa por trás das palavras
que me fascinam e enlouquecem. Fico pensando na sua boca,
no seu cheiro, no seu gosto… Isso está me consumindo.
Quase sempre, me pego pensando em você e nas várias
coisas que poderíamos fazer juntos.
O quê?
Vou deixar a sua imaginação completar.

De fato, a imaginação falou mais alto. Quando me deitei na cama,


foi pensando nela que dormi. E sonhei. Com uma mulher sem rosto,
sem forma, mas que me excitava como nenhuma outra tinha feito.
20

Alice

De: MeninoDoRio
Ei, está tudo bem por aí?
Eu pretendia te dar espaço após a última carta. Não quis
parecer invasivo ou insistente, mas, depois de algum tempo
sem resposta, comecei a me preocupar.
Se bem que, caso tivesse acontecido algo grave que te
impedisse de me escrever, você não teria como responder,
não é mesmo?
Só gostaria de te pedir que, se eu tiver te assustado e você
decidir não falar mais comigo, me envie uma última carta
avisando e eu não voltarei a te procurar.

De: PlusStylistRJ
Olá!
Aqui estou eu para mostrar que nada de grave aconteceu.
Pode ficar despreocupado.
Eu não sei explicar exatamente como me senti, mas digamos
que fiquei um pouco assustada com tanta intensidade. Afinal,
foi bem diferente do que vinha acontecendo.
Sua última carta me deixou sem palavras. Literalmente.
Peço desculpas se causei algum tipo de angústia por conta
do meu “sumiço”. Não foi minha intenção. Prometo avisar da
próxima vez, caso eu precise de um pouco mais de tempo
para processar as informações.
A boa notícia é que decidi seguir seu conselho.
Até mais

Provavelmente, uma lista enorme de garotas sonhadoras adoraria


ouvir algo parecido com o que li na fatídica carta. E sim, foi muito
interessante e com certeza chamou minha atenção, mas eu não
estava esperando por aquilo. Esse tipo de declaração foi novidade
para mim e eu meio que… fugi. É claro que, se estivesse no lugar
do MeninoDoRio, também gostaria de ter sido avisada sobre a
necessidade de um suposto tempo, mas eu vinha lidando com
coisas demais e levei bem mais do que pretendia, se contar a média
de espaço entre as nossas interações.
Mesmo assim, passar esses dias sem trocar cartas com ele foi
estranho. Por um lado, não sabia o que falar. Por outro, sentia uma
necessidade crescente de contar banalidades, que nem havíamos
feito nas últimas semanas. Ele tinha se tornado mais do que um
mero correspondente: tinha se tornado essencial. Era com ele que
eu desabafava sempre que Iolanda mostrava suas garras — o que
era bem frequente — e com quem eu compartilhava meus sonhos e
expectativas, apesar de não contar em detalhes sobre a minha
participação no concurso da Vestindo Estilo.
Parar de falar com ele, nem que fosse por alguns dias, deixou
claro que nossas interações haviam se tornado essenciais para a
minha vida. MeninoDoRio ocupou um espaço que nem sabia que
estava vazio. Quanto mais pensava a respeito dele, mais certeza
tinha de que não podia abrir mão do que havíamos construído.
Por causa dele, eu estava com as passagens em mãos rumo à
minha cidade natal e me preparava para a primeira viagem do dia.
“Eu mal posso acreditar que levei a sério o conselho do
MeninoDoRio!”,pensei comigo mesma enquanto fazia o caminho de
Campo Grande para a rodoviária principal da cidade. A distância era
longa — com trânsito então, nem se fala — e esse era um dos
principais motivos, depois da falta de tempo e excesso de tarefas
acumuladas, que me faziam sempre adiar a visita à minha avó.
Contrariando o comportamento da minha chefe, todo dia três de
setembro a IolandaConfecçõesficava fechada e ninguém até hoje
sabia o motivo. A carta que recebi, somada à folga que caiu em uma
sexta, acabou pesando para que eu tomasse a decisão de ir. Uma
pena que Iolanda não era o tipo de chefe que enforcaria a segunda
com um feriado na terça. Vovó ficou muito empolgada quando
recebeu a notícia.Até pensei em fazer uma surpresa, mas como ela
andava passando bastante tempo fora, não pareceu uma boa ideia.
Eu ainda tinha algumas mudas de roupa na minha antiga casa,
então deixei a maior parte do espaço na mala para o meu material
de desenho e o croqui inacabado, muito bem protegido.
Depois de chegar ao terminal, achar a plataforma de onde sairia o
ônibus e me acomodar na poltrona escolhida estrategicamente na
janela, aproveitei a chance de não precisar me levantar para dormir.
Porém, a ansiedade e uma certa troca de cartas não me deixaram
pregar o olho durante a longa viagem.

De: MeninoDoRio
Ora, ora, bom receber notícias suas!
De que conselho exatamente estamos falando? Levando em
conta que sou uma fonte inesgotável de bons conselhos, fica
difícil lembrar.
Vamos lá, não me deixe curioso...

O bom humor dele estava de volta, e confesso que me senti um


tanto aliviada ao perceber que minha ausência nos últimos dias não
tinha causado tantos estragos assim.

De:PlusStylistRJ
Tem certeza de que não confundiu de correspondente? Eu
não consigo lembrar de tantos assim.
Sobre o conselho: estou indo visitar vovó e pretendo
aproveitar alguns momentos tranquilos, que não tenho há
muito tempo.
Continuei ignorando a carta mais ousada que recebi por não
saber o que fazer a respeito dela. A verdade é que eu também me
sentia dessa forma e me assustou saber que era recíproco.Gostaria
de ter respondido à altura, mas tinha medo de onde isso nos levaria.
E se, ao invés de boas conversas, acabasse virando apenas uma
troca de mensagens mais quentes? É claro que a minha mente
voava, pensando em como seria tocar o corpo dele, se a pele seria
quente como labaredas, a textura do cabelo quando eu passasse as
mãos, se teria uma barba roçando quando ele fosse beijar meu
pescoço. Céus! Tive que me abanar discretamente para que a
pessoa do meu lado não percebesse o meu estado. Era impossível
alegar calor com aquele ar-condicionado trincando.

De: MeninoDoRio
Quem diria...
Torci mesmo pra que, de todos os meus ótimos conselhos,
você seguisse ao menos esse.
Então, me conte: planos para os dias de folga?

De: PlusStylistRJ
Já consigo até imaginar você abrindo vagas na sua agenda
lotada para “Os melhores conselhos do mundo” by
MeninoDoRio.
Gostaria de dizer que meu plano era não ter planos e deixar
a vida me levar por uns dias, mas tenho algo importante que
preciso terminar. Então, além de descansar e curtir muito a
minha avó, vou me dedicar a esse projeto.
Se eu pudesse escolher, um dia no Spa seria incrível. Daria
tudo por uma massagem completa e longa. Ainda mais depois
dessas muitas horas sentada no ônibus.

De: MeninoDoRio
Lá vem você de novo com esses mistérios. Às vezes, me
pergunto se faz de propósito para me manter interessado. Vou
te contar um segredo nada secreto: está funcionando. Quanto
tempo mais preciso esperar para ter essas informações na
minha mesa?
Massagem, é? Já te disse que sou ótimo nisso? Adoraria te
mostrar. ;)

Ao ler a última frase, pude sentir meu rosto quente. Com certeza,
eu estava muito vermelha, e o rubor era um misto de vergonha e
excitação. Só de imaginar aquelas mãos, que eu presumi serem
grandes, deslizando pelo meu corpo lentamente, o fluxo sanguíneo
do meu corpo estava se concentrando no meu ponto de prazer.
Cruzei as pernas, desejando ser tocada.
Fazia tanto tempo…

De: PlusStylistRJ
Na sua mesa?
É, meu caro, parece que essa vida CEO trainee contaminou
você.
Não vou recusar a massagem, pelo contrário, vou anotar no
meu caderninho na lista de coisas que você me deve caso um
dia nos encontremos.

De: MeninoDoRio
Pagarei com todo prazer...

Ao pisar em minha cidade de origem, uma das primeiras coisas


que eu sempre notava de diferença era a qualidade do ar, bem mais
limpo que o de onde morava. Meus pulmões agradeciam. Como
minha casa não era tão longe assim da rodoviária, vantagens de
morar em cidade pequena, resolvi fazer o trajeto a pé. Uma
caminhada nostálgica era uma boa pedida. Levei um pouco mais de
tempo do que o normal, pois acabei parando para falar com diversos
conhecidos que não via há um bom tempo. Também fui observando
as pequenas mudanças que ocorreram por ali desde que me
mudara para a capital.
Quando finalmente consegui chegar ao número 84 da Rua das
Flores, parei por alguns segundos para admirar o local que era meu
verdadeiro lar, onde vivi quase a vida toda. Como era gostoso estar
de volta e quantas lembranças boas invadiram minha mente.
A cerca baixa dava vista para um jardim muito bem cuidado,
porém, para minha surpresa, as paredes antes descascadas e
encardidas pelo tempo agora estavam ostentando uma linda pintura
creme.
“Achoque vóinha andou colocando em prática as tais aulas de
pintura que mencionou”,pensei sozinha, com um sorriso de orgulho
no rosto.
Ao entrar em casa, fui envolvida por um cheiro muito familiar.
Dona Josefina me esperava com a mesa posta para o almoço e as
panelas em fogo baixo, para manter a comida quente, exalavam um
perfume de comida de vó.
— Oh, minha querida, que bom te ver! — Ela me abraçou sem
cerimônia, antes mesmo de eu ter a chance de depositar a bolsa em
alguma cadeira.
— Também estava com saudade, vovó! — Retribuí o abraço de
forma calorosa.
Não conseguia parar de sorrir e, enquanto vovó emoldurava meu
rosto com suas pequenas mãos, notei que seus olhos estavam tão
marejados quanto os meus. Era a saudade transbordando. Pela
primeira vez em muito tempo, pude respirar aliviada: eu estava em
casa.
Mesmo sem querer me afastar, pedi licença a ela e fui ao
banheiro. Assim que voltei, depois de ter lavado cuidadosamente o
rosto e as mãos, uma macarronada com molho de tomate caseiro e
almôndegas foi servida.
— Gostaria de ter preparado todos os seus pratos preferidos, mas
como fui pega de surpresa, não deu tempo de comprar os
ingredientes que precisava — vovó afirmou enquanto colocava
porções generosa em ambos os pratos.
— Não precisa se preocupar com isso, o mais importante pra mim
é estar perto da senhora. — Olhei para ela com ternura. — Além do
mais, com essas mãos divinas na cozinha, todos os seus pratos são
meus favoritos.
Enquanto comemos, conversamos sobre tudo e nada. Quando
meu prato ficou vazio, ela fez questão de me servir uma segunda
vez, alegando que eu estava magrinha demais para o seu gosto.
Talvez este não fosse o caso, mas era verdade que estava
precisando de uma comida caseira, com gosto de amor. Os
sanduíches e macarrões instantâneos não traziam felicidade.
Com a longa viagem e a comida gostosa de vó, o sono resolveu
dar as caras, e fiquei feliz em poder tirar um cochilo sem me
preocupar com o horário. Aproveitei o primeiro dia para relaxar e
ficar na companhia da minha pessoa preferida no mundo, sem
tarefas ou obrigações.

l
Comecei o dia seguinte com um café da manhã maravilhoso. Nem
conseguia lembrar a última vez que havia comido tão bem. Decidi
sentar na varanda para trabalhar no croqui do concurso enquanto
minha avó estava relaxando na cadeira de balanço. Tentei esvaziar
a cabeça de preocupações, fixando minha atenção nos detalhes do
jardim, para dar espaço à criatividade. Comecei a rabiscar no papel,
mas não estava conseguindo evoluir. Parecia faltar algo, eu só não
sabia o quê. Foi impossível não me sentir frustrada, afinal, o prazo
estava terminando e eu depositava todas as minhas esperanças
naquele concurso.
Parei um pouco para respirar e decidi mandar uma carta. Sei que
ele não poderia fazer nada para me ajudar, mas já tinha se tornado
um hábito gostoso compartilhar coisas da minha vida.

De: PlusStylistRJ
Oi, como estão as coisas por aí?
Estou com um bloqueio criativo terrível e não sei o que fazer
para me livrar dele, mas preciso que vá embora antes de eu
voltar para a minha rotina.
No mais, está uma delícia poder passar um tempo em um
ambiente tão familiar e aconchegante.

Estava tão distraída com o telefone na mão que mal percebi


minha vó se aproximando.
— Minha nossa, parece que vai sair coisa boa aí! — Ela apontou
para o meu rascunho. — Você escolheu mesmo a carreira certa.
— Obrigada, vovó! Eu nem contei, né? É para um concurso em
que me inscrevi. Uma oportunidade incrível! Quero muito ser a
escolhida. — Acabei me empolgando e, por um momento, esqueci
das dificuldades.
— Concurso, é? — Uma mistura de curiosidade e animação
tomou conta do semblante dela.
— Sim, das lojas Vestindo Estilo. Estão fazendo uma seleção para
estilista. Isso me deixaria muito mais perto de alcançar meus
objetivos. — Respirei fundo antes de confessar: — Mas acontece
que estou travada, não sai mais nada além disso que a senhora viu.
— Deixaria não, deixará. Eu acredito em você, querida. Faça com
o seu coração e coisas boas vão acontecer. — Um beijo foi
depositado no topo da minha cabeça.
— Agradeço as palavras de incentivo. A senhora sempre foi a
minha fortaleza e exemplo. Saber que acredita em mim é um
combustível e tanto. — Fiz questão de abraçá-la. Minha avó era
baixinha, mas o tamanho do seu coração era gigante. Apesar da
estatura de vóinha, minha mãe era mais alta e eu ficaria no meio da
escadinha se ficássemos lado a lado por ordem de tamanho.
— Só estou dizendo a verdade sobre o talento que eu vejo.
Espere um momento que eu já volto. — A expressão de vovó se
transformou em pura empolgação e ela disparou para dentro da
casa sem me dar tempo de perguntar do que se tratava. Pensei em
ir atrás dela, mas mudei de planos quando vi a notificação de uma
nova carta.

De: MeninoDoRio
Por aqui está tudo bem, exceto que a cidade fica triste sem a
sua presença.
Bloqueios criativos são uma merda! E geralmente acontecem
quando mais precisamos de criatividade. Como se não
bastasse toda a pressão que já temos…
Posso dar uma pesquisada em técnicas para ajudar e te
envio uma lista. Espero que dê tempo.

— Aqui está! — Minha avó sacudiu um pedaço de papel na minha


frente. Só quando ele estava em minhas mãos que consegui ver
bem do que se tratava: a foto de casamento dos meus pais.
Eu amava ficar olhando o álbum quando era pequena, e essa era
a minha favorita. Os dois se olhavam com um ar tão apaixonado,
que faria qualquer um desejar aquele amor. Senti um aperto no
coração e, por um momento, desejei poder voltar no tempo e poder
abraçá-los, dizer o quanto eu os amava. Nem que fosse uma única
vez.
— Que saudade! — Não consegui conter as lágrimas que
começaram a rolar discretamente pelo meu rosto, até eu estar
soluçando.
— Oh, minha querida, venha aqui. — Vovó me abraçou e
acariciou meu cabelo.
— Eu sinto tanto a falta deles. — Enxuguei as lágrimas, tentando
me recompor.
— Eu sei, meu amor. E aposto que estão orgulhosos pela mulher
que você se tornou. — Ela segura a minha mão com carinho. —
Mas não foi para isso que trouxe a fotografia. Era para você ver o
vestido.
Olho a foto com mais atenção nos detalhes. Mamãe adorava
contos de fadas e, não à toa, seu vestido era digno de uma
princesa. As mangas bufantes não estavam mais na moda, nem
todo o frufruusado na época, mas não conseguia deixar de achá-la
maravilhosa naquele modelo.
— Tão lindo… Foi a senhora que fez, não é?
— Cortei um dobrado para chegar nesse resultado. Sua mãe me
fez desmanchar e ajustar até estar do jeitinho que ela queria. Se
tem uma coisa que as mulheres dessa família têm em comum é
saberem o que querem e não desistirem até conseguir. — Dona
Josefina me olhou de forma profunda.
— Lembra que eu vivia dizendo que, um dia, usaria uma versão
moderna dele? — Levei as mãos a boca quando um arrepio
percorreu o meu corpo. — Era isso, não era? Vovó, a senhora é
uma gênia! — Segurei as mãos dela e comecei a rodopiá-la,
tamanha a minha felicidade. Nada seria mais significativo para mim
do que ter algo que representasse a minha mãe em um momento
tão importante.
— Agora, vou deixar você trabalhar enquanto vejo minhas coisas
lá dentro. — Dona Josefina depositou mais um beijo, dessa vez na
minha testa, e entrou.

De: PlusStylistRJ
Ei, acho que não vou precisar mais daquela lista, vovó
acabou de me salvar!
Preciso voltar a trabalhar imediatamente para não perder a
inspiração.
Beijos

Com as palavras de dona Josefina em mente e a foto dos meus


pais ao lado, comecei a imaginar como poderia fazer uma versão
moderna e que tivesse a ver com o tema do concurso. Levei um
tempo pensando e as ideias começaram a surgir, então voltei a
trabalhar no desenho, sem me dar conta do tempo passando.
Traços transformavam o rascunho, cada vez com mais firmeza,
como se a mulher que me deu à luz estivesse ao meu lado, guiando
o grafite, me ajudando… A peça foi ganhando vida e depois cores
se misturaram até ele estar pronto. Passei uns bons minutos
olhando para minha criação e, apesar de estar linda, não fiquei
completamente satisfeita: sentia que ainda faltava alguma coisa.
Como esse concurso estava abrindo portas para o iníciode minha
carreira profissional, decidi criar uma marca — uma espécie de
assinatura —, mas o que poderia ser? Continuei nesse processo de
observação do desenho por mais alguns instantes, até que voltei a
observar a foto e a ideia surgiu. No paletó de papai, ao invés de
uma flor tradicional, havia uma tulipa no bolso. A flor favorita da
minha mãe.
“Éisso!”Decidi que a minha assinatura seria uma tulipa estilizada,
e a colocaria em todas as peças que desenvolvesse para qualquer
coleção a partir daquele dia. No vestido em questão, resolvi colocar
em forma de broche e, pensando no concurso, faria até referência a
um dos contos de fadas. Só precisaria dar um jeito de mandar fazer
o broche, mas isso não seria problema. Pelo menos eu esperava
que não, já que era possível encontrar de tudo nainternet.
Só me dei conta de que as horas haviam passado quando minha
avó chamou para almoçar. Guardei o croqui como quem guarda um
tesouro, mas não sem antes tirar uma foto de boa qualidade e
enviar o arquivo para o concurso. Aquele era o último dia e não
podia arriscar perder o prazo de inscrição. As regras eram bem
claras sobre a desclassificação, caso a pessoa não cumprisse
algum dos requisitos.
21

Gustavo

Não tinha como negar: eu estava cada vez mais


interessado em tudo o que acontecia na vida dela, por mais
insignificante que pudesse ser. Talvez fosse esse lado misterioso
que me mantinha instigado, mas eu sentia que não era só isso.
Claro que assim que ela falou sobre estar em apuros, mesmo que
fosse no sentido figurado da palavra, eu quis ser o príncipe no
cavalo branco que a resgataria da torre. Só que sem cavalo, sem
torre e, o principal, eu estava mais perto de ser CEO do que
príncipe.Mas é claro que eu já havia notado que ela não era do tipo
“donzelaindefesa”,que esperava ser salva, e a resposta não
demorou muito a vir.

De:MeninoDoRio
Uau! Essa foi rápida!
Ainda não tinha acabado de levantar a lista de sugestões,
mas vou deixar salva caso um dia precise, torcendo para ela
nunca ser usada.
Você sabe que sou curioso, então, me conta: como
conseguiu?

De: PlusStylistRJ
Um pouco de mistério cai bem, sabia?
É claro que vou te contar!
Vovó apareceu com uma foto antiga dos meus pais, não
podia ser mais inspirador. E também me deixou muito
saudosa. Crescer sem eles foi difícil, mesmo que a minha avó
tenha feito de tudo por mim. Mesmo assim, queria ter ouvido a
risada de mamãe, ter pegado no sono no colo de papai. Pode
parecer pouco, mas nunca tive nada disso.
É engraçado como nossa conversa parece ter atingido um
nívelde intimidade a ponto de parecer estranho não te chamar
pelo nome, mas, por favor, não me diga. Eu não quero saber,
pelo menos não ainda, informação alguma para ajudar a te
identificar. Sei que já disse isso, mas é bom reforçar. E, sem
querer, comecei a rimar. De novo.
Preciso muito te agradecer, de verdade, pelo seu incentivo
para essa viagem acontecer. Foi de longe a melhor decisão
que eu poderia ter tomado nesse momento.
Beijos.

Nunca pensei que ia admitir algo assim, mas eu seria daquelas


pessoas que riscaria um X no calendário a cada dia, como uma
espécie de contagem regressiva, se eu tivesse uma data para esse
encontro que eu nem sabia se um dia aconteceria.
Meus pensamentos sobre uma moça ainda sem rosto foram
interrompidos pelo toque do telefone. Na tela, piscou um nome que
eu nem imaginava ver de novo:
Vanessa Modelo
Por um instante, considerei ignorar a chamada, mas não podia
correr o risco de ser algo importante relacionado à empresa e
acabar me metendo em problemas. Por isso, mesmo contrariado,
atendi:
— Alô? — falei sem muito interesse.
— Oi, gato! Lembra de mim? Fiquei esperando a sua ligação…
“E podia ter continuado”, pensei.
— Sério? Não me lembro. No momento, não estamos com
nenhuma seleção aberta, mas peço para entrarem em contato com
a sua agência caso apareça alguma oportunidade no seu perfil.
Estava pronto para encerrar a ligação e voltar para a troca de
cartas, mas ela continuou:
— Eita! Por que o mau humor, G? Precisa de uma massagem
especial? — Vanessa usou uma voz sexy.
— Agradeço a oferta, mas estou muito ocupado no momento. —
Tentei ser o mais educado possível.
— Certo. — A ligação foi encerrada.
Se ela achou que ia me atingir com isso, não podia estar mais
enganada. A verdade é que me fez um favor, pois eu não sabia mais
como dispensá-la sem parecer grosso. Querendo ou não, ainda
mais com pessoas do meio da Moda, eu representava a Vestindo
Estilo, então era sempre bom evitar problemas. Provavelmente, ela
passaria um bom tempo sem entrar em contato, e eu não duvidava
nada se a conversa vazasse de forma bem aumentada entre as
modelos, mas isso não era um problema meu. Tinha algo bem mais
importante para fazer.

De: MeninoDoRio
Nem conheço a sua avó, mas já sou fã!
Só não mando beijos porque imagino você tentando explicar
de onde eu saí. Por aqui, não tenho nada muito novo, além do
fato que ando trabalhando bastante.
Contrariando as minhas expectativas, e para deleite do meu
velho, até que eu estou gostando. A causa que me fez aceitar
o trabalho me motiva.
Concordo sobre a intimidade que estamos criando aqui, sinto
como se pudesse te contar qualquer coisa a meu respeito.
Gostaria de poder te dizer o meu nome tanto quanto gostaria
de saber o seu, mas entendo perfeitamente as suas
condições. Ainda tenho esperanças no seu “Quemsabe um
dia”.Pois é, eu não vou esquecer. Mas, mesmo que nunca
cheguemos a nos conhecer, aprecio cada linha, palavra e letra
trocadas até agora. Eu não mudaria nada, nenhuma vírgula.
Sabia que ela estava dividindo seu tempo, empenhada em algum
tipo de projeto enquanto tentava descansar e curtir a companhia da
avó ao mesmo tempo, então por mais que quisesse falar com ela o
dia todo, essa estava bem longe de ser a realidade. Só me restava
aguardar pacientemente pelas respostas. Não queria ser aquele tipo
de pessoa que manda ٣٥٧ notificações para chamar atenção, até a
pessoa responder.
Na real, eu daria tudo para trocar algumas de nossas cartas por
longas ligações e finalmente poder ouvir a voz dela. Eu amava
nossas correspondências. Ao mesmo tempo, queria mais, precisava
de mais.
“Acho que vou enlouquecer!”

l
De: PlusStylistRJ
Estou voltando para a Cidade Maravilhosa…
Gostaria de poder falar isso com um pouco mais de
empolgação, mas, devido ao histórico que você já conhece,
fica impossível afirmar esse tipo de coisa. Agora, vamos à
parte boa!
Depois daquela injeção de incentivo e motivação vinda da
minha avó, e indiretamente dos mais pais, consegui terminar
um projeto muito importante. Eu até te contaria do que se
trata, mas precisaria te matar depois. Brincadeira clichê, eu
sei. Só prefiro não falar, pelo menos não até tudo estar
concretizado. Pode chamar de superstição, mas precaução
nunca me fez mal.
É claro que eu passei um bom tempo revirando álbuns de
fotografia antigos e relembrando momentos gostosos da
minha infância. Ponderei muito se deveria te enviar ou não,
mas segue uma foto minha de quando era bebê. Uma fofura,
eu sei!
Confesso que estou feliz por ter esbarrado contigo nesse
aplicativo. E saber que tem alguém aído outro lado disposto a
me ouvir, torcer por mim e a trocar ideias e experiências, até
mesmo bons conselhos, aquece meu coração.
Eu te daria um abraço nesse exato momento, se eu pudesse.
Então, usarei a sua técnica: ao ler isso, me imagine te
abraçando e sinta o meu carinho por ti.
Até!

Fiquei em êxtase quando li a última carta, a ponto de fechar os


olhos e imaginar esse abraço. Eu poderia jurar tê-lo sentido,
tamanha foi a intensidade da sensação.
“O que essa garota misteriosa está fazendo comigo?”
Eu não tinha grandes expectativas quando entrei nesse aplicativo
de cartas, não é como se eu tivesse entrado em um de
relacionamentos. Só queria sair um pouco da rotina e acabei me
deparando com tudo isso que eu não sabia nomear. Queria tanto
achar um jeito que a fizesse concordar com um encontro, mas
depois que a assustei com algumas palavras, tinha que tomar
cuidado com o que escrevia.
“Será que existe alguma simpatia para isso?”
Pelo visto, eu estava disposto a apelar.
22

Alice

Depois de momentos tão calorosos com a minha avó,


quando cheguei ao quartinho da confecção, tudo ali dentro estava
ainda mais frio e vazio. Não era como se eu não estivesse
acostumada, mas o contraste era impossível de não ser notado. A
notificação de uma nova carta pipocou na tela. Quase ao mesmo
tempo, uma chamada de Inês também apareceu no visor.
— Hey, gata! — Ouvir a voz da minha amiga me trouxe o primeiro
sorriso desde que cheguei.
— Acabei de pisar em casa.
— Eu sei, você compartilhou a localização comigo, lembra?
— Ah, sim. Que cabeça a minha. — Rimos juntas.
— Como você tá?
— Exausta! Mas, dessa vez, é apenas por conta da viagem.
Consegui descansar bastante a minha mente.
— Era isso o que eu queria ouvir, além de todos os outros
detalhes, é claro. Então, pode me contar tudo.
Óbvio que Inês não ia querer esperar para ser atualizada, por isso
contei tudo que consegui lembrar. Em seguida, fiquei sabendo das
aventuras literárias que ela andou vivendo.
Por mais que eu sentisse muita falta da vovó, a minha vida no Rio
de Janeiro não era de todo ruim, principalmente se eu levasse em
conta as pessoas maravilhosas que me rodeavam — e Inês tinha
seu destaque. Ela e um certo Menino… que, a cada dia, se tornava
mais importante para mim.
Com as energias recarregadas, passei um tempinho no telefone
com a minha melhor amiga e fiz questão de ouvir tudo o que tinha
para me contar. Depois de desligar, corri para tomar um banho e,
quando meus olhos passaram pelo calendário, percebi que faltava
terminar uma encomenda importante que Iolanda havia jogado em
cima de mim. A vontade de começar a semana sendo infernizada
era zero, por isso, ignorei o chamado da minha cama e fui costurar.
A carta também teria que esperar.
Depois de ficar acordada até tarde terminando o trabalho
pendente, quase perdi a hora da primeira aula na manhã seguinte.
Entrei na sala e só tive tempo de me jogar em uma carteira ao fundo
antes de o professor chegar.
“Ainda bem que essa aula é teórica.”
Provavelmente, a aula prática teria sido a melhor opção nas
condições que eu me encontrava, porque pelo menos me manteria
acordada, mesmo em modo zumbi, e me pouparia da vergonha de
ficar batendo cabeça.
Claro que eu não era inocente a ponto de achar que o professor
não iria perceber, mas torci para que ele estivesse focado demais
em outras coisas e resolvesse ignorar. Perdi as esperanças quando
me pediu para esperar depois que todos já tinham saído.
— A minha aula parece estar servindo de sonífero, pelo menos,
levando em conta que você nem tentou disfarçar — o professor
comentou de forma ácida, e eu me esforcei ao máximo para tentar
me manter alerta.
— Precisei trabalhar até tarde — tentei justificar. — Acabei
acumulando bem mais funções do que o costume nesse semestre.
Eu gostaria muito de poder me dedicar exclusivamente à faculdade,
mas é impossível. Sei que não é desculpa e que eu deveria me
esforçar mais, só que preciso do emprego, professor. Preciso muito.
Por alguns segundos, o homem de meia idade e cabelos grisalhos
apenas me encarou. Minhas bochechas coraram com a vergonha de
ter que passar por isso no meu último semestre.
— Sei muito bem que não é fácil estudar e trabalhar ao mesmo
tempo — ele rompeu o silêncio. — Quando eu estava na faculdade,
as coisas também não eram um mar de rosas. Em algum momento,
você precisa dormir, certo? — perguntou e me limitei a manear a
cabeça em afirmativa. — Contanto que você não atrapalhe a
explicação e garanta notas boas, tudo bem. Tente pegar as
anotações com algum de seus colegas.
O comentário dele me espantou, porém saí da sala bem mais
aliviada. Ainda encabulada, aproveitei os minutos que tinha até a
próxima aula e fui ao banheiro: a carta da noite anterior estava me
esperando.

De: MeninoDoRio
Oi!
Que bebê mais lindo você foi! Aposto que a mulher que se
tornou também é.
Nem consigo descrever o quanto foi bom receber a sua
última carta. Você é tão doce, esforçada, preocupada com o
próximo — a ponto de colocar outras pessoas à frente das
suas prioridades — e tem os melhores conselhos do mundo.
Sim, vou deixar você levar esse título.E sabe o mais doido de
tudo? Você ainda está aí do outro lado, depois de todo esse
tempo.
O seu abraço virtual foi o melhor dos recebidos nos últimos
tempos, inclusive superando muitos presenciais. Fico
imaginando como deve ser seu cheiro, a textura do seu
cabelo, a cor dos seus olhos e o seu sorriso. Tento não criar
uma imagem, para ser surpreendido caso um dia nos
vejamos, mas a sua essência é tão pura e bonita que é
impossível eu não te achar linda, não importa como você
aparente.
Apesar de tentar evitar, provavelmente falei até mais do que
deveria. Por favor, não fuja!
Beijos, querida!
“Ah,MeninoDoRio… Você nem imagina o quanto eu estava
precisando de uma carta como essa.”
Eu me apoiei na bancada do banheiro e, mesmo correndo o risco
de me atrasar para a próxima aula, comecei a digitar uma resposta.

De: PlusStylistRJ
Olha, parece que temos um cara fofo aí do outro lado!
Fiquei um pouco chocada que você tenha observado tudo
isso sobre mim e feliz por ter causado uma boa impressão.
Você é um cara divertido e parece que está se encontrando.
Nas últimas trocas de mensagens, consigo te sentir mais leve
do que quando nos conhecemos.
Falando em diversão, preciso te contar algo que me
aconteceu hoje. Não foi engraçado para mim, mas acho que
você vai rir. Acredita que eu praticamente dormi na aula? Mas
não termina por aí! Não sei se meus colegas viram, mas fui
chamada para conversar com o professor depois da aula.
Nunca passei por isso em todo o meu histórico escolar.
Parece que estou acabando com a minha reputação de aluna
exemplar.
Agora, preciso ir. Minha próxima aula já vai começar e, dessa
vez, vou ficar acordada.

Saí do banheiro e comecei a caminhar pelos corredores, até


chegar à sala correta. Porém, antes de cruzar a porta, ouvi o
barulhinho familiar do alerta de cartas. Aproveitei que meus colegas
ainda estavam chegando e dei uma olhada no que ele tinha escrito.

De: MeninoDoRio
Quem nunca dormiu na aula que atire a primeira pedra!
Acredite em mim: daqui a pouco, todo mundo já esqueceu. É
só acontecer algo que vire o novo assunto mais comentado.
Você deve ser uma graça dormindo, queria ter visto isso.
Quando finalmente as aulas do dia acabaram, já estava me
arrastando. Agradeci mentalmente por esse ser um dos dias
premiados pela carona com Inês de volta para casa. Eu estava
sonhando com o final do dia, ou melhor, do expediente. Deixaria
todas as tarefas pendentes de lado para depois e me jogaria na
cama.
— Amiga, você precisa dormir com urgência. Quando for assim,
pede uma folga. Você deve ter banco de horas suficiente para tirar
um ano de férias, se quiser. — Ou Inês era muito observadora ou eu
estava mesmo com a aparência terrível.
— Se eu não precisasse tanto poupar a pouca energia restante,
daria uma gargalhada com potencial para ser ouvida a quilômetros
de distância. Pedir folga para a sua mãe? — Dei uma risada fraca,
já que era o máximo que conseguia naquele momento. — Caso
acontecesse o milagre de ela liberar, eu seria cobrada por isso pelo
resto da vida. Prefiro evitar o estresse. Na verdade, tenho que
levantar as mãos para o céu se ela não me colocar para trabalhar
no feriado. — Eu me acomodei no banco e coloquei o cinto,
pensando em como seria bom tirar um cochilo restaurador caso o
trajeto não fosse tão curto.
Antes que eu pudesse sequer fechar os olhos, muitas notificações
pipocaram na tela. No meio delas, uma me chamou a atenção.
— Que cara é essa, Alice? — Inês percebeu a mudança no meu
semblante. — Tá pior do que minutos atrás, se é que isso é
possível. Viu algum fantasma? — soou preocupada.
— Eu não acredito! — Arregalei os olhos por puro choque e
segurei o celular com uma mão enquanto a outra cobria a boca.
— Alguém morreu? Pelo amor de Deus, fala logo! Eu tô dirigindo,
não posso passar nervoso. — Inês, que costumava ser até
estranhamente calma na maioria das situações, estava começando
a ficar em pânico.
— Não, desculpa. É que eu acabei de saber que fui uma das
quinze pessoas selecionadas para a segunda etapa do concurso —
compartilhei a boa notíciaainda sem acreditar, os olhos fixos na tela
do celular.
— O concurso da Vestindo Estilo?
— Sim!
— Aaah, eu sabia! — ela soltou em um grito. — Eu te disse! Eu te
disse! Que notíciaincrível!— Sem tirar as mãos do volante, Inês fez
uma espécie de dancinha, mexendo os ombros. — Amiga, eu tô
toda arrepiada, isso só pode ser um ótimo sinal.
— Vamos com calma, ainda tem muita água para rolar. — Ri com
a empolgação dela. — Mas estou tão feliz só por estar entre os
quinze, depois de competir com tantos inscritos. A sensação é de ter
valido a pena tudo o que passei nesses últimos anos, só para estar
vivendo isso. — Fechei os olhos por alguns segundos e a
visualização dos meus sonhos se realizando ficou mais nítida do
que nunca. — Isso merece uma comemoração. — Acabei me
empolgando.
— Concordo. Vou parar em algum lugar no caminho, acho que dá
tempo para uma bebida rápida.
Inês estacionou próximo a uma cafeteria do bairro e fomos
recebidas por um atendente simpático.
— O que você recomenda? — perguntei.
— Com esse calor, o que está saindo muito são os cappuccinos
gelados.
— Infelizmente, não consigo beber nada que tenha café e gelo na
mesma composição — Inês declarou. — O que mais você tem aí?
— A especialidade da casa são as bebidas red velvet. Temos
milkshake e soda italiana.
— Ótimo, vou querer uma soda de red velvet. Chocada que isso
existe.
— E eu vou querer o milkshake. — Salivei só de pensar.
As bebidas ficaram prontas bem rápido e eu não fazia ideia do
quanto estava precisando disso. Antes de beber, lembrei de
fotografar e achei que seria ótimo poder compartilhar com um certo
alguém. Afinal, além de uma delícia, a bebida era muito bonita e eu
tinha motivos para celebrar.

De: PlusStylistRJ
Recebi uma ótima notícia!
Brinda comigo?

De: MeninoDoRio
Sempre!
Coisa boa, é?
Não se preocupe, é uma pergunta retórica. Sei que você
ainda não pode falar do que se trata. Ansioso para chegar o
dia em que tudo vai ser revelado.

l
A minha tarde estava parecendo calma demais para os padrões,
mas logo isso mudou de figura.
Inês:
Amiga, tá sabendo de algo que minha mãe
anda aprontando?
Alice:
Além do de sempre? Não que eu tenha notado.
Inês:
Ah, alguma coisa deve ter. Tem uma
funcionária da confecção montando
acampamento aqui. Eu tentei ver se descobria
algo, mas minha mãe parece um cão farejador
e se materializa perto da porta toda vez que eu
me aproximo.
Alice:
Isso só pode significar uma coisa: sua irmã
deve ter recebido o mesmo e-mail que eu.
Inês:
Mas que merda! Desculpe ser o presságio de
más notícias.
Alice:
Tudo bem, pelo menos agora posso preparar
meu psicológico para esbarrar com ela no
evento. Obrigada por me avisar.

l
Não foi nenhuma surpresa quando Iolanda me deixou tarefas para
o feriado no pior momento possível. Quando me inscrevi no
concurso e li o regulamento, a ficha não havia caído sobre ter que,
sozinha, produzir a roupa para o evento no meio da minha agenda
já tão cheia de tarefas. Mas eu usaria todo e qualquer tempo
disponível, mesmo significando abrir mão de coisas importantes,
como algumas horas de sono e escrever certas cartas. Mas era por
pouco tempo e eu esperava que valesse a pena.
De: PlusStylistRJ
Olá, meu querido, e já íntimo, desconhecido. Falta menos do
que faltava! O prazo vai depender dos resultados. Enquanto
isso, tenho duas notícias:uma boa e uma nem tão boa assim.
Eu perguntaria qual você quer primeiro, porém, como
demoraria um pouco para a resposta chegar, eu mesma tomei
a liberdade de escolher começar com a boa.
Estou muito, muito, muito empolgada sobre algo importante
ter dado certo. Essa pode ser a chance da minha vida e
pretendo agarrá-la com unhas e dentes. Ou será que eu
deveria dizer agulhas e linhas? Provavelmente, despertei sua
curiosidade e sinto não poder dar mais informações a respeito
no momento, mas é por um bom motivo. Só peço: torça muito
por mim.
Por conta dessa boa notícia, vem a nem tão boa: pode ser
que eu demore um pouco mais para responder. Já peço
desculpas de antemão, e não pense que estou fugindo de
novo ou te deixando de lado, não é o caso, de verdade. Você
se tornou uma parte muito importante da minha vida para ser
esquecido dessa forma.
O tempo tem passado rápido, você percebeu ou fui só eu?
Então, logo estarei de volta na frequência de costume ou até
com um upgrade.
Beijos e abraços afetuosos!
23

Gustavo

De: MeninoDoRio
Parece que estamos sincronizados.
Nem venha falar de correria para mim, provavelmente as
coisas por aqui vão ficar insanas também. Um grande
momento se aproxima e já estou sentindo o frio na barriga.
Espero ver coisas boas surgindo disso.
Até!

De: PlusStylistRJ
Boa sorte para nós!

Eu nunca tinha entendido o motivo de empresas fazerem tantas


reuniões até de fato trabalhar em uma. Diferente do meu imaginário,
nem sempre era possível tomar decisões por conta própria, ainda
mais com tanta coisa em jogo. Era estranho tantos rostos, de
pessoas que pareciam saber o que estavam fazendo, me olhando e
esperando coisas extraordinárias por eu ser o prometido para o
maior cargo da empresa.
Passei a escolher camisas mais escuras quando manchas de
suor ficaram evidentes nas primeiras reuniões. Perdi as contas das
vezes que engoli em seco ou que a minha voz falhou. A parte
divertida era que Leandro sempre tentava me encorajar com um
sorriso e até mesmo com um joinha, quando achava que ninguém
mais estava olhando.
— Me diz que essas reuniões acabaram, por favor? — implorei.
— Por hoje, sim.
— Então, nem me fale da agenda, prefiro manter a ilusão. Nunca
pensei que fosse sentir falta da sala que dividimos.
— Não é sempre assim. Esse concurso é de caráter
extraordinário e tem muitas coisas envolvidas, por isso precisa que
todos esses membros estejam cientes e participem das reuniões.
— Tudo bem — disse, resignado. — Vamos logo conversar com
aqueles fornecedores. Estou louco para me livrar desse terno. Não
vejo a hora de chegar logo essa festa, preciso de um pouco de
diversão.
Armandinho:
E aí, cara?
Gustavo:
O que manda?
Armandinho:
Faz tempo que não te vejo fora da esgrima.
Tem uma festa mais tarde, vamos?
Gustavo:
Bem que eu precisava, mas nem tenho hora
para encerrar aqui hoje.
Armandinho:
Certeza? Quem é você e o que fez com o meu
amigo?
Gustavo:
Infelizmente sim. Fica para a próxima. Divirta-
se!

l
Como eu havia imaginado, os dias que se seguiram foram mesmo
de muita correria. Leandro merecia um certificado de anjo da
guarda, já que estava me ajudando com cada detalhe da
organização. Parece que quanto mais coisas você tem para fazer e
maior a importância delas, o tempo resolve acelerar de forma
proporcional.
Eu andava trabalhando até tarde e estava tão cansado que a
troca de cartas andava se resumindo a básicos “Oi,tudo bem?”,
para checar se o outro ainda estava vivo, e a comentários de coisas
aleatórias que aconteciam no dia. Não via a hora de poder voltar
para os textos longos e profundos.
E foi essa saudade que me fez pensar na importância crescente
que a PlusStylistRJestava ganhando na minha vida. Era impossível
passar o dia sem sonhar com o momento que poderia voltar a
conversar com ela. Se eu pudesse, largava tudo e me concentrava
na mulher do outro lado das cartas, porque ela merecia cada
segundo da minha atenção.
“Oque você está fazendo comigo?”,pensei sozinho enquanto
tirava dois minutos do dia para respirar. Olhando a vista que a
enorme janela de vidro proporcionava, não conseguia parar de
pensar nela. O que estaria fazendo agora?
Assim como eu, PlusStylistRJtambém estava muito ocupada com
algo bom que estava para acontecer. É claro que minha mente logo
me levou a desejar que esse “algobom”estivesse relacionado ao
concurso da Vestindo Estilo. Afinal, ela me deu a notícia no mesmo
dia que os resultados saíram.
Poderia ser apenas a esperança de um tolo, mas lá estava eu,
sonhando em encontrá-la na festa. É claro que não nos
reconheceríamos, mas meu coração acelerou só de imaginar que
estaríamos no mesmo lugar.
Quem sabe um dia…

l
Finalmente tinha chegado o dia mais importante para mim desde
que comecei a trabalhar no concurso da Vestindo Estilo. Esse
evento iria definir se minha atuação estava sendo um sucesso ou
fracasso total.
Eu não tinha influência alguma sobre as decisões dos juízes e
ficava sabendo dos resultados junto com a equipe que publicava no
site. Cheguei a procurar o nome dela no meio dos selecionados, ou
mesmo o pseudônimo, só que apenas os números de inscrição
foram revelados — para o meu desespero.
Naquele dia, acordei muito cedo e fui para o local do evento junto
com Leandro. Diferente do estagiário, que estava tranquilo até
demais, eu não parava de andar de um lado para o outro, conferindo
cada detalhe. Cheguei até a arrumar alguns arranjos, que pareciam
milímetros fora do centro.
Estava longe de ser um cara perfeccionista, mas apesar de não
pretender assumir a responsabilidade de gerir a empresa da família,
não queria prejudicar todas as pessoas envolvidas nesse concurso
— nem decepcionar o meu pai. Ele apostava tanto as suas
expectativas em mim… Sem contar o fato de que, se algo desse
errado, acabaria causando danos à imagem da Vestindo Estilo, e
todo mundo sabe que imagem é algo muito importante.
Eu podia não querer ser o CEO da empresa, mas ela havia sido
fundada pelo meu avô, estava na família há anos e era a nossa
fonte de renda. Impossível não ter uma ligação emocional. Eu tinha
carinho por esse legado.
Apesar das preocupações — um pouco exageradas da minha
parte, admito —, tudo parecia estar correndo perfeitamente como o
planejado, e Leandro até estava achando graça do meu
comportamento. Em algumas horas, tudo estaria pronto e belos
trajes desfilariam pelo salão.
24

Alice

Eu estava certa sobre o tempo passar em uma


velocidade assustadora. O dia da segunda etapa do concurso havia
chegado e, depois de trabalhar na confecção do vestido de forma
parcelada por dias, estava nos últimos ajustes da peça que usaria
naquela noite. O vestido estava disposto em um busto improvisado,
feito por mim depois de assistir alguns tutoriais em um canal de
vídeos sobre itens úteis para ter no ateliê. Após concluir o último
ajuste, levei algum tempo admirando aquela beleza. Independente
de passar para a próxima etapa do concurso ou não, sentia muito
orgulho do meu feito. Estava me preparando para colocar o broche
no centro da faixa, localizada na cintura da peça, quando passos se
aproximando me sobressaltaram.
— Alice? — Iolanda entrou, fazendo cena, com Ingrid logo atrás.
“Será que ela poderia ao menos bater?”
— Eu já finalizei todas as solicitações hoje cedo — fui logo
adiantando a explicação enquanto tentava ocultar meu vestido, pelo
menos parcialmente, na esperança de ela não notar.
— Mas veja só isso, Ingrid! — Iolanda se aproximou
perigosamente da peça e eu parei de respirar. — Por que não nos
contou sobre a sua participação no concurso da Vestindo Estilo? Até
quando pretendia tentar esconder, querida? — O tom falsamente
compreensivo era, na verdade, assustador. — Eu sempre sei de
tudo que diz respeito aos meus interesses. O vestido é até
bonitinho… — Iolanda parou de falar e virou o rosto para mim. O
sorriso em seus lábios fez com que calafrios subissem por minha
coluna.
Eu não sabia se falava ou fazia alguma coisa, mas a apreensão
latente me manteve parada no lugar, apenas observando os
movimentos dela.
Mas a mulher não disse nada.
Por vários segundos — que mais pareciam horas — ela circulou o
manequim, tocando com leveza os detalhes que eu havia inserido
com tanto cuidado.
Um toque. Um sorriso. E meu coração parecia prestes a bater
para fora do peito. O silêncio era tão ensurdecedor, que conseguia
ouvir meu próprio sangue correndo pelas veias, cada vez mais
gelado com o medo.
Então, ela parou de andar e meu coração quase parou junto.
— Olha só para você, doce Alice. Tão iludida, achando que tem
talento… achando que é alguém. — A mão pálida e ossuda de
Iolanda alcançou a tesoura de costura, que eu havia deixado sobre
a mesa. — Mas você não passa de uma costureirazinha de quinta
categoria, que trabalha para mim! — A última frase saiu em um
berro, que me fez estremecer.
Antes que eu conseguisse reagir, os barulhos de cortes já podiam
ser ouvidos. A fúria de Iolanda se manifestava através da tesoura,
que picotava o tecido e os meus sonhos.
— O que você está fazendo? Pare! Por favor, pare! — O grito
desesperado que soltei vinha acompanhado de lágrimas quentes,
que escorriam pelo meu rosto enquanto eu tentava impedi-la de
continuar destruindo o vestido que criei em homenagem à minha
mãe.
“Não,não, não, isso não pode estar acontecendo”,meu cérebro
dizia, ao mesmo tempo que minhas mãos seguravam o braço
magro. Mas a raiva de Iolanda a deixava mais forte do que eu. Tão
forte que, com um empurrão, acabei sendo arremessada para cima
da mesinha.
Quando finalmente consegui me recolocar de pé, era tarde
demais.
— Acredite, querida: acabei de te fazer um grande favor. —
Iolanda jogou a tesoura no chão, passou a mão pelo cabelo,
recolocando-o no lugar após o surto, e sorriu para mim. — É para o
seu próprio bem.
Como a víbora peçonhenta que era, Iolanda serpenteou para fora
do quarto. O cleque-cleque insuportável de seus saltos levando
embora todas as esperanças que me restavam de conseguir vencer
o concurso.
Até Ingrid, que havia ficado calada o tempo todo, revezava
olhares piedosos entre mim e os pedaços de pano espalhados pelo
chão. Mesmo assim, ela seguiu a mãe, me deixando sozinha com
meus retalhos.
Enquanto analisava o estrago, minhas mãos tremiam — talvez em
uma mistura de medo, raiva e tristeza profunda. O vestido estava
irreconhecível, e nem com mágica ele ficaria pronto a tempo do
evento.
Eu vinha aguentando Iolanda durante todo aquele tempo e,
mesmo sabendo de se tratar de uma megera, nunca esperaria algo
assim. Os pedaços do tecido estavam irreconhecíveis: seria
impossível fazer qualquer coisa com eles.
“Talvez ainda dê tempo de fazer outra peça. Tem que dar tempo”,
pensei.
Eu nunca fui de desistir e não seria isso a me tirar desse
concurso.
Antes de ter a chance de recomeçar o trabalho, os passos que eu
havia aprendido a identificar se aproximaram novamente.
— Alice, apareceu uma entrega urgente e preciso que você vá
nesse minuto. — Iolanda fez questão de frisar o “urgente” e tinha
uma cara de poucos amigos. — Anda, menina, se mexa!
— Depois do que fez, ainda tem coragem de me pedir favor?
Sua…
— Não é favor, querida. É trabalho. E a não ser que você prefira
ser demitida e despejada, trate de me obedecer. Aqui está a sacola.
— Ela nem me esperou terminar de falar.
Era meu suposto dia de folga, mesmo assim, colocou a sacola
com o endereço anotado em um papel nas minhas mãos e saiu.
Pelo visto, não dar tempo para o outro argumentar era a sua grande
estratégia para ganhar possíveis discussões.
Agora, sim, as minhas chances estavam acabadas. Com o
trânsito dessa cidade, eu nunca conseguiria ir e voltar a tempo, mas
não podia pagar para ver as consequências de desobedecer às
ordens da minha chefe, não quando faltava tão pouco para me
formar.
Com o coração destroçado, reuni forças, sequei o rosto com as
costas da mão e peguei a sacola da entrega. Por garantia, enfiei o
broche, o croqui e os moldes na bolsa, com medo de que Iolanda os
encontrasse e fizesse picadinho deles também. Depois pensaria em
um local seguro para escondê-los. Não participaria do concurso,
mas aquele podia muito bem ser o projeto final e o vestido de
formatura ou até mesmo uma peça da minha coleção, quando
realizasse meu sonho. Era esse sonho que me mantinha
aguentando tudo isso.
Os sentimentos gritavam dentro de mim, em uma mistura de ódio,
medo e força. Mas era a desesperança que destacava. Entorpecida,
precisei me forçar a dar um passo atrás do outro.
Iolanda costumava pagar uma pessoa para fazer as entregas, por
isso tive a certeza de que essa tarefa urgente de última hora surgiu
apenas para me prejudicar ainda mais. Durante o trajeto, a minha
mente reviveu diversas vezes aquela cena horrível. O barulho da
tesoura destruindo minha chance, os olhos cruéis matando minha
esperança…
“Como alguém pode ser tão má?”
Considerei ligar para Inês ou enviar uma carta para o
MeninoDoRio em uma tentativa de dividir a minha dor, mas eles não
poderiam fazer nada a não ser sofrer junto comigo, então optei por
poupá-los dessa vez. Eu ainda precisava digerir o ocorrido e nem
sei se conseguiria colocar em palavras, faladas ou escritas, o que
aconteceu. Apenas enviei uma mensagem para Inês, avisando que
não iria mais à festa. Em seguida, desliguei o celular. Sabia que ela
me bombardearia de perguntas e não estava disposta a falar sobre
o assunto.
Com a cabeça erguida, consegui descer do ônibus e encontrar o
endereço da cliente. Toquei a campainha e esperei até que uma
senhora com largo sorriso e aparência acolhedora abriu a porta.
— Dona Marina? — Achei melhor confirmar.
— Pois não? — A senhora, ao contrário da minha chefe, parecia
um doce de pessoa. Isso me fez respirar aliviada e agradecer
mentalmente. Não aguentaria uma cliente grossa depois do que
havia passado.
— Trouxe o seu pedido da Iolanda Confecções. — Mostrei a
sacola em minha mão.
— Ah, claro. Entre, minha querida! — Ela abriu ainda mais a
porta, oferecendo passagem, e me conduziu para a sala de
refeições, onde uma mesa enorme estava parcialmente livre. —
Aceita alguma coisa? Chá? Água? Fiz uns biscoitos, pegue. —
Apontou para um pote de biscoitos amanteigados, com uma
aparência deliciosa.
— Não, obrigada. — Depois dos últimos acontecimentos, meu
apetite havia desaparecido. — Preciso que a senhora confira o
conteúdo e assine o papel, por favor.
— Claro, claro. — A doce senhora abriu a sacola e começou a
olhar e contar as peças, para logo em seguida conferir as
informações da nota. — O que aconteceu com você? Está com uma
expressão tão triste — perguntou enquanto assinava e devolvia o
documento.
— A senhora não acreditaria… — Suspirei.
— Experimente me contar, tenho tempo para ouvir. Se você
quiser, é claro. — Ela se sentou e copiei o gesto.
— Não precisa se preocupar, daqui a pouco passa. — Eu
duvidava muito que passaria tão cedo e detestava mentir. E por
mais que quisesse desabafar sobre o que tinha acontecida, também
estava receosa, afinal, dona Marina tinha contato com Iolanda.
— Tudo bem, querida. Mas você sabe que conversar com alguém
costuma ajudar, né? — Ela deu uma piscadinha e continuou me
encarando.
Não sabia explicar, mas tinha algo naquela mulher que me fazia
lembrar de vovó. Os olhos, talvez… E foi com isso em mente que
acabei perguntando:
— O quanto a senhora conhece a dona da confecção? — Estava
apreensiva com a resposta.
— Não muito. Foi a primeira vez que fiz pedido com ela. Uma
amiga indicou e o preço é bom. — Ela deu de ombros. — Eu vendo
roupas por um catálogo, mostro para as clientes, elas escolhem e
eu encomendo as peças. Por quê?
— O que aconteceu envolve a minha chefe e fico medo de ter
ainda mais problemas por falar demais.
— Ah, não se preocupe, não vou comentar. Prometo.
— Tudo bem. — Decidi confiar. Eu precisava mesmo desabafar
com alguém e Inês não parecia a pessoa mais adequada. Também
não queria revelar ao MeninoDoRio nesse momento, então dona
Marina me pareceu uma boa opção. — O meu sonho é ser estilista
e criar peças incríveis, reconhecidas no mundo da moda, com
preços acessíveis e destaque para os tamanhos grandes. Quero
que pessoas gordas como eu possam vestir roupas bonitas sem
pagar uma fortuna por isso. — Fiz uma pausa antes de prosseguir
com o relato.
— Muito bacana da sua parte sonhar em melhorar a vida de
outras pessoas. A maioria das pessoas nesse ramo só pensaria em
fama e dinheiro. Mas continue: o que deu errado? — Dona Marina
parecia mesmo interessada e até um pouco curiosa a respeito.
— Surgiu um concurso importante, que poderia ser a minha
grande chance. Eu fui selecionada para tentar uma vaga na final e ir
ao evento hoje, vestindo a roupa criada por mim. É a prova dessa
etapa.
— Meus parabéns! — Em um primeiro momento, ela ficou
empolgada, mas a empolgação se esvaiu quando notou a minha
tristeza. — Isso é bom, não é?
— Sim, se a minha chefe não tivesse destruído meu vestido. —
Doía só de lembrar. — Eu pretendia tentar refazer, mas ela me
arrumou trabalho de última hora. Eu não duvido nada que este seja
o motivo de eu estar aqui, justamente para não ter tempo de fazer
outro.
Como eu gostaria de poder apagar aquela cena da minha mente,
voltar no tempo, sei lá. A imagem dos retalhos caindo no chão vai
ficar para sempre guardada na memória.
— Mas que horror… — Dona Marina levou a mão ao peito.
— Nem me fala.
— E como era esse vestido?
— Ah, pode parecer estranho, porém eu trouxe o desenho e os
moldes comigo, antes que fossem destruídos também. Vou precisar
deles de qualquer forma. Aqui estão. — Mostrei os papéis para a
senhorinha, que abriu um sorriso.
— Que beleza!
— Fiz em homenagem à minha mãe. Ao vestido de casamento
dela, no caso.
— Ela deve estar orgulhosa.
— Espero que, de alguma forma, sim. — Era o que eu preferia
acreditar quando pensava sobre o assunto para aliviar a tristeza. —
Infelizmente, meus pais morreram quando eu era um bebê.
— Ah, meu bem, eu sinto muito. — A sinceridade em seu olhar
me comoveu. O dia de hoje estava sendo uma enxurrada de
sentimentos, e ouvir o carinho na voz de uma desconhecida era, de
certa forma, acalentador. — Vamos dar um jeito de manter a
homenagem à sua mãe. Você vai a esse concurso ou eu não me
chamo Marina.
— E como faremos isso? — Fiquei surpresa com a empolgação
da senhorinha.
— Muito bem. — Ela se levantou da cadeira e colocou as mãos
na cintura. — Tenho uma máquina de costura dessas mais
modernas, que ainda não sei como usar direito, e alguns tecidos
que comprei na empolgação, junto com a máquina. Não vai ficar do
jeito que você projetou, mas acho que deve servir. Se trabalharmos
rápido, você chegará lá a tempo.
— Isso é inacreditável! — soltei em um gritinho empolgado.
Encontrar uma pessoa disposta a ajudar em um de meus piores
momentos quase me faziam acreditar em fada madrinha e contos de
fadas.
25

Alice

Sem perder tempo, esvaziamos o restante da mesa e


colocamos sobre ela tudo o que precisaríamos. Os tecidos de dona
Marina tinham uma qualidade bem superior àqueles que o meu
dinheiro pôde pagar e eram ainda mais bonitos. Conseguimos cortar
os moldes em tempo recorde e dona Marina me apresentou à sua
máquina. Após uns minutos para entender o funcionamento dela,
por trabalhar com isso diariamente, consegui costurar com uma
velocidade impressionante, enquanto minha mais nova amiga ia
ajudando com acabamentos e coisas que pudessem adiantar ou
facilitar o trabalho.
Por horas, mantivemos o foco. O barulho da tesoura, dessa vez,
não era assustador. Acho que nunca tinha me empenhado tanto na
vida — e a cada parte costurada, imaginava que minha mãe estava
ao meu lado, me oferecendo forças para continuar.
“Não desista, Alice.”
E eu não desisti. Com as costas já doendo, ignorei todo o resto e
continuei costurando. Era o meu sonho que estava em jogo. Meu
futuro.
— É realmente muito bonito — dona Marina falou enquanto
observava a peça já no meu corpo.
— Não estou querendo me gabar, mas foi o meu melhor trabalho
até hoje — afirmei enquanto me olhava no grande espelho.
Era incrívelpoder ver aquele traje pronto, depois de todos os altos
e baixos das horas anteriores. O vestido de alças finas, busto em
cetim bege e decote coração, tinha uma saia mullet — curta na
frente e longa atrás — de voil bege acetinado. O forro era de um
tecido estruturado, que ajudava a dar volume. Para finalizar, uma
faixa envolvia a cintura — e foi o local escolhido para colocar o
broche com a tulipa estilizada. Afinal, ela era a minha marca e
representava muito mais do que apenas uma simples flor.
Enquanto mamãe era o vestido, papai era a tulipa e vovó era a
costura. Olhei para dona Marina, tentando conter as lágrimas, e tudo
o que eu conseguia era agradecer.
Bruxa nenhuma iria me impedir de ir àquela festa e mostrar ao
mundo do que eu era capaz.
— Espere, tenho algo que vai ajudar! — Dona Marina saiu do
quarto e, quando voltou, trazia o par de sapatos mais encantadores
e exóticos que eu já tinha visto em toda minha vida. Eles eram do
tipo boneca, com salto médio e cobertos com renda perolada,
combinando perfeitamente com o visual.
— Como a senhora adivinhou meu número? — Boquiaberta,
admirei o calçado nas mãos de dona Marina. — É lindo, mas não
posso aceitar.
— Claro que pode. Eu já não consigo mais usar sapatos assim e
ele está pedindo por um passeio. Sapatos estragam se ficarem
muito tempo sem uso. — Ela deu uma piscadela.
— Eu nem sei como agradecer. — Aceitei a oferta com carinho e
calcei os sapatos. Se tivesse planejado esses detalhes extras,
talvez o visual não tivesse ficado tão bonito como no improviso.
Com toda a paciência do mundo, apesar do tempo curto, parecia
que nada abalava a paz de dona Marina. Ela me pediu para sentar,
de costas para o espelho, e com suas mãos ágeis e habilidosas
começou a minha transformação. Eu sentia meu cabelo ser
movimentado, mas não conseguia ter ideia do que estava sendo
feito. Assim que terminou o cabelo, ela começou a vasculhar no
armário e voltou segurando uma cestinha com o que parecia ser
maquiagem.
— Eu não tenho muitos itens, mas acho que vão servir —
declarou enquanto se preparava para deslizar o pincel pelas maçãs
do meu rosto.
Continuei em silêncio, emocionada demais com o gesto para
conseguir manter uma conversa. Parecia que, de alguma forma, ela
estava esperando por mim. Dona Marina ia de um lado para o outro,
e movimentava o pincel como se fosse uma varinha mágica. Eram
gestos tão suaves e precisos.
— Pronto! — Quando se deu por satisfeita, pegou minha mão e
me levou de volta para o espelho.
Eu não achei que pudesse me surpreender ainda mais, porém
meu queixo caído provou o contrário. O cabelo claro estava preso
em um meio coque e o rosto tinha tons suaves destacando meus
traços, finalizado com um batom matterosado. O vestido anterior,
que se encontrava em trapos no chão do quartinho, era bonito, mas
nem se comparava ao resultado desse. Dei uma volta para admirar
todos os ângulos: estava tudo perfeito! Não consegui parar de
admirar a mulher que o espelho mostrava, tão diferente de mim no
dia a dia, e tão parecida com a minha mãe. Pela primeira vez na
vida, eu me sentia uma princesa.
Queria tanto que ela estivesse aqui para ver isso…
— Muito obrigada — com a voz embargada pela emoção,
consegui soltar as palavras.
— Ganhe esse concurso!
— Vou dar o meu melhor. — Abracei a minha mais nova amiga.
Depois de tudo, não podia considerá-la de outra forma.
— Está pronta? Preciso ir a um lugar. Chamei um táxi e te dou
uma carona até o local do evento. Você só precisa explicar ao
motorista onde é.
— Vou ficar lhe devendo mais essa.
— Que nada, só de ver um sorriso no seu rosto e esses olhos
brilhando já basta. Mas, é claro, não irei recusar se quiser dar uma
passadinha para um chá com uma velha solitária, quando tiver um
tempo livre.
— Virei com toda certeza. — Sem pensar duas vezes, abracei
novamente a senhora, dessa vez por mais tempo.
As roupas e sapatos usados anteriormente, assim como os
moldes, não seriam necessários tão cedo, então pedi para deixá-los
lá até poder buscar. Por sorte, havia escolhido uma bolsa pequena e
neutra para os objetos mais importantes, além da ecobag que levei
com os outros itens. O celular, documento, dinheiro e chave
ocupavam praticamente todo o espaço da bolsa, mas dei um jeito de
guardar o papel com croqui. Depois dos acontecimentos do dia,
passei a considerá-lo um amuleto da sorte. E com sorte não se
brinca.
Chegando ao local, me identifiquei como uma das participantes do
concurso, posei para uma série de fotos do pescoço para baixo —
disseram algo sobre os jurados não poderem ver o rosto, para
avaliarem apenas a roupa — e só então respirei aliviada. Graças à
minha fada madrinha dona Marina, eu ainda tinha chance.
— Aproveite a festa! — Até os funcionários pareciam empolgados.
Já eu estava em êxtase por poder viver aquele momento quando
achei que tudo estava perdido. A emoção tomava conta de mim e
tive que me segurar para não chorar, ou acabaria estragando todo o
trabalho de dona Marina com a maquiagem. Aproveitar a festa era
tudo o que eu queria naquele momento, como uma celebração
pessoal por ter chegado até ali.
Ao entrar, escaneei o local para ver se encontrava Iolanda e
Ingrid, mas elas não estavam à vista. Nem tinha percebido que
estava prendendo a respiração e apesar de estar um pouco mais
tranquila, continuei em estado de alerta e comecei a olhar tudo em
volta. A baixa iluminação proposital deixava o ambiente com um ar
mais intimista. De um lado, mesas e cadeiras foram dispostas para
aqueles que desejassem ficar sentados e aproveitar das deliciosas
opções de comidas e bebidas servidas. Outra parte, aparentemente,
havia sido destinada para os mais animados aproveitarem as
músicas dançantes.
Estava circulando pelo salão, sempre atenta para não cruzar com
Iolanda — a última pessoa que gostaria de ver, além de querer
evitar um escândalo — e, enquanto comia alguns canapés servidos,
aproveitei para conversar com algumas pessoas. Muitas delas
pararam para elogiar meu vestido e algumas, especialmente as do
ramo da moda, continuaram a conversa. Era sempre bom tentar
fazer contatos no meio. Ouvi bons conselhos vindos de quem tinha
bastante experiência.
— Querida, seu eu fosse você, iria até o bar fazer a degustação
de drinks famosos. Uma oportunidade incrível! — uma delas
aconselhou.
Eu não bebia com frequência, mas pensei na oportunidade de
saber o gosto de diversas bebidas tomando apenas pequenas
doses. Assim, poderia eleger meus favoritos e isso facilitaria
bastante quando fosse pedir em algum lugar. A lista era imensa,
mas quando eu teria outra oportunidade dessas? Como eram
distribuídos em copos de shot, decidi provar todas enquanto
beliscava alguns petiscos oferecidos. Ao chegar no final da lista,
achei melhor não beber nada mais além de bastante água. A
quantidade ingerida não havia sido grande, porém, não se deve
menosprezar as misturas — e evitar problemas durante uma das
etapas do concurso era a melhor opção. Então, tratei de sair do bar
depois de agradecer ao gentil barman.
Estava caminhando próximo a pista de dança, até que um homem
entrou no meu campo de visão. Ele usava um terno azul marinho de
corte bonito, que parecia ter sido feito sob medida e contrastava
perfeitamente com o cabelo negro. Quando seus olhos cruzaram
com os meus, fui capturada. Eu não conseguia mais prestar atenção
na música ou em qualquer um à minha volta: o desconhecido tinha
toda a minha atenção.
Adoraria ter sido eu a vencer a competição não oficializada de
quem seria o último a perder contato visual, mas ele tinha um olhar
tão intenso que fez os pelos do meu corpo se arrepiarem. Senti as
bochechas pegando fogo e, instintivamente, abaixei o rosto. Quando
ergui a cabeça de novo, ele havia desaparecido e uma pontinha de
decepção surgiu.
“Quem é aquele homem?”
Depois daquele momento, que eu cheguei a duvidar se havia sido
real ou criação da minha cabeça, em vez de observar detalhes,
procurei pistas de onde ele tinha ido parar. Ao virar na direção da
pista de dança, a distância entre nós era mínimae eu congelei onde
estava, sem saber como reagir. Meu corpo parecia ganhar vida
própria, pois todos os meus sentidos acordaram de forma intensa.
Como se fosse algo programado, a música mudou para um estilo
mais lento . Foi possível ouvir os primeiros acordes de I’llleave it to
you, de Leroy Sanchez, tocarem quando ele parou na minha frente.
— Dança comigo? — Todo o resto perdeu a importância no
momento em que o rapaz estendeu a mão. Só de perto pude
perceber como ele era alto e que seu cabelo estava bagunçado de
forma proposital. Ele sorriu e meu coração pulou uma batida.
Como resistir àquele sorriso?
Apenas assenti com um movimento de cabeça, ainda sem
conseguir pronunciar uma palavra sequer, e segurei a mão que ele
me oferecia. Uma sensação desconhecida, que misturava calor e
frio, percorreu todo o meu corpo enquanto eu me deixei ser guiada.
26

Gustavo


Uau!”
, foi a primeira coisa que pensei assim que a avistei
do outro lado do salão. Não sei se era a iluminação do local ou se
ela tinha alguma espécie de brilho próprio, o fato é que eu não
consegui desviar o olhar. Já nem lembrava o que estava fazendo,
mas de uma coisa eu tinha certeza: precisava saber quem ela era.
— Gustavo, venha, quero te apresentar a um dos nossos maiores
fornecedores. — Meu pai apareceu no momento que ela
interrompeu o contato visual e me arrastou, sem que eu tivesse
tempo de reagir.
“Teve a festa toda para me apresentar a metade dos convidados,
precisava ser agora?”
Continuei andando a contragosto, tentando observar o caminho
para não esbarrar em ninguém e, ao mesmo tempo, verificar se ela
ainda se encontrava no mesmo lugar, mas foi impossível não a
perder de vista, tamanha a circulação de pessoas.
— Borges, esse é meu filho Gustavo. — Paramos em frente a um
homem que parecia bons anos mais novo que meu pai.
— Ah, então esse é o famoso Gustavo. Não param de falar de
você e desse concurso, meu jovem. — O homem sorriu de forma
amigável.
— Espero que coisas boas — tentei interagir.
— Até o momento, sim. — Borges levantou o copo de uísque,
como se fizesse um brinde.
— É ótimo saber disso. Agora, se me derem licença, preciso
verificar algumas coisas do evento. Foi um prazer! — Fiz um
cumprimento de cabeça e saí dali o mais rápido que consegui.
Eu não havia mentido, afinal, procurar aquela convidada era um
assunto do evento.
Fiz o caminho inverso, mas óbvio que ela não estaria parada no
mesmo lugar. Comecei a andar pelo salão, meus olhos
desesperados para encontrá-la, enquanto fingia ser apenas um bom
anfitrião.
Foi então que eu a vi e parei de respirar por alguns segundos.
Ok, era uma mulher de costas, mas aquelas belas curvas e o
vestido eram inconfundíveis, até para quem viu com uns bons
metros de distância. Eu me aproximei, com medo de perdê-la de
vista novamente, e encerrei os passos quando estávamos a apenas
um metro de distância, pensando em como abordá-la. Não foi
preciso. Como se tivesse sentido minha presença, ela se virou e eu
falei a primeira coisa que me veio à cabeça assim que escutei a
música lenta:
— Dança comigo?
Por sorte, ela aceitou meu convite ou eu teria ficado sem jeito,
com a mão estendida no meio da pista.
Quando sua mão tocou a minha e ficamos ainda mais próximos
por conta da música, me senti mais vivo do que há muito tempo não
vinha sentindo. Algumas pessoas olhavam curiosas para nós, mas,
depois de um tempo, outros pares se juntaram nessa dança lenta.
Torci mentalmente para que a música se estendesse bem além dos
seus três minutos e quarenta e dois segundos. Sabendo que não
era possível, aproveitei cada instante em que nossos corpos
estavam colados, embalados na canção.
A proximidade me permitiu sentir o perfume floral que ela
emanava e a moça mexeu comigo de uma forma que eu não sabia
explicar. Eu estava inebriado, hipnotizado, e apenas me deixei levar
pelo momento. Por alguns instantes, até esqueci da minha
correspondente, a mulher que vinha ocupando meus pensamentos.
“Nãoé como se eu estivesse traindo alguém. E eu nem sei se ela
um dia vai querer me encontrar. Não posso deixar de viver,
esperando que ela se decida”,tentei argumentar comigo mesmo,
mas a verdade era que eu me sentia confuso.
Optei por não pensar muito — ao menos só aquela noite. Estava
nítidoque eu me sentia atraído pela minha parceira de dança. Tinha
algo nela que chamava a minha atenção. Uma estranha sensação
de conhecer uma pessoa que eu nunca vi me dominou. Quando
chegou aos momentos finais da transição de uma música para a
outra, eu não queria me separar dela, que também parecia inebriada
pelo momento. “É agora ou nunca!”
— Seria estranho se eu te convidasse para conversar em um local
com menos observadores? — Fiquei com medo de perguntar e
causar uma situação desagradável, mas algo me dizia para não
perder a oportunidade.
— Bem provável que sim, mas considerando a ocasião, vamos
apenas fingir que não. — No primeiro momento, ela pareceu
surpresa com minha ousadia, mas fiquei empolgado com a resposta
positiva.
— Então, vem comigo…
Para onde, eu não sabia. Só queria poder me livrar de toda essa
gente e barulho e me concentrar apenas nela.
— Alice. — Ela estendeu a mão direita.
— Gustavo. — Segurei a mão oferecida e, como um cavalheiro à
moda antiga, depositei um beijo.
Sem pensar muito a respeito, continuei segurando a mão dela e a
conduzi pelo salão. Fizemos o pequeno trajeto em silêncio até uma
área parcialmente oculta em que foi colocado um dos bancos para
duas pessoas.
“Preciso agradecer a quem teve essa brilhante ideia.”.
— Eu teria entendido se dissesse não, mas obrigado por aceitar
meu convite — disse enquanto nos sentávamos, bastante próximos
devido ao espaço disponível.
— Na minha visão, esse evento pode ser considerado como local
público. Então devo estar segura. — Ela parecia se divertir com a
situação.
— Tem razão. Muitas testemunhas, além dos seguranças. —
Embarquei na ideia.
— Tudo friamente calculado. — Rimos juntos. Ela ficava ainda
mais linda quando sorria. — Brincadeiras à parte, por que me trouxe
aqui? — Uma Alice curiosa me olhava.
— Bem… — hesitei um pouco antes de prosseguir. Eu não tinha
pensado sobre isso, então achei melhor ser o mais sincero que
consegui sem assustá-la:— Pode parecer estranha a minha falta de
explicação, mas a verdade é que eu não sei. Não estava pronto
para te deixar ir, sem saber nada sobre você.
— Agora eu fiquei sem palavras. — Ela desviou o olhar. — Não
sei se colocaria dessa forma, mas senti algo parecido. — Tive
dúvidas se ela ruborizou ou se a iluminação deu essa impressão.
Senti a empolgação crescer dentro de mim com as últimas
palavras de Alice. A ideia original era conversar e conhecê-la um
pouco melhor, mas parecia que nenhum de nós estava conseguindo
encontrar as palavras. Cogitei observar os detalhes da mulher à
minha frente, mas quando meus olhos se depararam com aquela
boca, ficou difícil pensar em qualquer outra coisa a não ser beijá-la.
Era como se um imã nos atraísse, e vê-la entreabrir os lábios
enquanto mantinha o contato visual foi a deixa que me levou a
chegar ainda perto. Nos últimos centímetros que nos separavam,
dei espaço para a moça se afastar, caso eu estivesse sendo
invasivo demais.
Estava me sentindo de volta à adolescência, meu coração
acelerando em expectativa. E quando ela começou a vir em minha
direção, ao invés de se afastar, meu corpo inteiro gritou em alívio.O
espaço que nos separava era quase inexistente. Fechamos os olhos
e o calor emanado entre nós foi o que nos guiou. Faltavam apenas
alguns milímetros para nossos lábios se tocarem e eu não
conseguia pensar em nada além do beijo que estava prestes a dar,
até ouvir passos se aproximando. Como se o encanto tivesse sido
quebrado, nos afastamos.
Um silêncio constrangedor se instalou por alguns instantes. Algum
desconhecido passou pelo local sem notar a nossa presença, e só
então percebi que estávamos prendendo a respiração. Trocamos
um olhar de cumplicidade.
— Seu vestido está incrível! — Tentei descontrair. Mesmo ainda
não entendendo tanto de moda, era impossível não notar a beleza
daquela peça.
— Feito por mim. — Seus olhos brilharam e um lindo sorriso
preencheu seu rosto.
— Sério? Você deveria estar participando do con… Espera, você
é uma semifinalista? — Eu não sabia se estava surpreso ou
empolgado, como uma criança que acaba de descobrir o brinquedo
que vem no ovo de chocolate.
— Sim! Eu ainda nem acredito nessa oportunidade. E parece que
me saí bem, já que você achou meu vestido bom o suficiente para
ser considerado uma das peças do concurso, mesmo sem eu ter
contado.
— Que incrível! Ainda não conheci nenhum dos outros
selecionados.
— Eu também não, pelo menos não que eu percebesse. Os
convidados capricharam no visual.
— Olhando por esse ângulo, então eu posso ter conhecido algum
deles sem saber. — Estávamos nos divertindo com a coincidência.
Parecia que a conversa planejada inicialmente aconteceu, afinal. —
A propósito, belo trabalho. Você se importaria de me mostrar mais
peças?
— Bom, até tenho, mas não estou com as fotos aqui.
— Uma pena, confesso que estou curioso.
— Ah! Não me pergunte o motivo, mas eu trouxe o croqui desse
aqui, posso lhe mostrar. — Ela abriu a pequena bolsa, retirou um
papel dobrado, que em algum momento devia estar em melhores
condições, e me entregou. — Essa é a minha assinatura especial.
— Apontou para um broche de tulipa que estava no vestido e no
croqui.
Antes que eu tivesse a chance de olhar muito além do detalhe
apontado, barulhos que pareciam tiros foram ouvidos e tudo ficou
escuro. Gritos seguiram a falta de iluminação e senti quando Alice
se levantou, também assustada.
“Estava tudo indo bem demais…”
— Eu preciso ver o que aconteceu. Me espera? — A escuridão
era tanta que não consegui ver onde ela estava. Antes que Alice
tivesse a chance de responder, os convidados começaram a se
agitar e pareciam desesperados para tentar encontrar a saída.
Sons se passos acelerados se juntaram aos gritos, e foi então que
meu celular começou a chamar.
“Nãoentrem em pânico.”,é o que sempre dizem, mas na prática
ninguém escuta.
— Leandro, já sabe o que aconteceu? — quis saber. Ele parecia
tão calmo que eu cheguei a duvidar que estávamos no mesmo local
e me explicou que havia sido um problema com o transformador. —
Menos mal. Já estou a caminho.
Encerrei a ligação e apontei a tela na direção de onde Alice
estava, usando a luz fraca para tentar encontrá-la. Mas não tinha
ninguém ao meu lado.
— Alice?! — chamei, o som da minha voz sendo abafado pelo
barulho feito por todo aquele tumulto.
Sem ter resposta de Alice, tive que deixar o local, pois era um dos
principais responsáveis por tudo que acontecia e precisava ajudar a
conter os danos. Liguei a luz da lanterna, que não era de muita
serventia, mas ainda era melhor que nada, e com muito custo
consegui atravessar o salão. Enquanto andava, também procurava
por ela. Antes que eu encontrasse Leandro, as luzes se acenderam
e precisei fechar os olhos por um momento para depois abri-los
lentamente, me acostumando à claridade. A luz forte substituiu a
iluminação fraca, que estava sendo usada para criar um clima mais
intimista, e me dei conta de ainda estar segurando o papel que
pertencia a Alice.
Primeiro, foquei direto no detalhe especial, mencionado pela
moça como algo criado para identificá-la, depois admirei os traços e
particularidades da peça criada por ela. Por último, meus olhos
caíram sobre a assinatura com o pseudônimo utilizado para a
inscrição no concurso.
— Não posso acreditar! — Perplexo, li mais algumas vezes para
ter certeza de que não tinha algo de diferente, uma letra ao menos,
mas era exatamente igual. PlusStylistRJestava escrito naquele
papel.
É ela!
A euforia tomou conta. Finalmente pude conhecer a mulher que
vinha roubando cada vez mais espaço em meus pensamentos e que
havia deixado bem claro não querer se identificar. E pensar que, por
um momento, tive um certo peso na consciência por estar
interessado em “outra”. Mas agora eu sabia quem ela era, apesar de
Alice não fazer ideia de ter me conhecido, ou melhor, conhecido o
MeninoDoRio.
A alegria desapareceu quando percebi não ter trocado telefone ou
meio de contato e comecei a me questionar se foi sorte ou azar.
Uma sensação de impotência tomou conta de mim.
“Elaestava tão perto… O que eu faço agora?”,pensei sozinho,
ainda olhando embasbacado para o papel nas minhas mãos.
Eu podia mencionar o acontecido em uma das cartas, mas tinha
medo de que ela parasse de me escrever quando soubesse a
verdade.
Alice estava inscrita no concurso, mas eu não podia burlar o sigilo
dos candidatos nem mexer os pauzinhos para encontrá-la. Isso
acabaria com a imagem da empresa e com as chances da garota. O
fato de eu saber quem era ela, por si só, já não seria bem-visto, mas
como o júri não fazia parte do quadro de funcionários da Vestindo
Estilo, eu não teria acesso a nada, muito menos sobre a decisão do
vencedor. Só me restava torcer para eles verem o mesmo talento
que eu vi.
Apesar do imenso desejo de revê-la, não era como se eu
soubesse a melhor forma de agir quando a encontrasse de novo,
porque, no fundo, tinha esperanças de que isso acontecesse. Um
cara podia sonhar, não é?
O meu pensamento caiu sobre as cartas trocadas até aquele
momento. Como ia continuar me correspondendo sem acabar
entregando que já nos conhecíamos? Todo cuidado era pouco.
27

Alice

No susto, eu acabei ficando de pé e me arrependi segundos


depois quando comecei a ser levada involuntariamente em direção à
saída de emergência — que ficava a poucos metros de onde eu
estava. Gustavo tentou me dizer algo, mas não consegui entender.
— Gustavo? — gritei na direção que eu achava ser a certa, mas
ele não pareceu ouvir.
Tentei voltar para onde eu estava antes de tudo acontecer, na
esperança de encontrá-lo, e estava me exigindo um esforço físico
enorme ir na direção contrária à multidão, ainda mais no escuro.
Alguns segundos se passaram até eu perceber que seria em vão
continuar procurando, então me deixei ser levada pelo fluxo. Do lado
de fora, apenas aquela quadra parecia estar sem luz, mas pelo
menos podia contar com a iluminação natural da lua e eventuais
faróis de carros passando.
A última coisa que eu queria era ir embora, não quando tinha
encontrado uma companhia bem mais que agradável. Mas não iria
adiantar de nada ficar por ali, sem saber o que causou o problema
ou quanto tempo iria demorar para ser resolvido. Nem sei quanto
tempo levaria até que eu conseguisse encontrá-lo, e se isso seria
possível.
O momento havia se perdido.
Um táxi vazio, que ninguém pareceu notar, aparentou estar
milagrosamente esperando por mim. Não era um hábito gastar esse
tanto com transporte, mas, considerando as circunstâncias, valia a
exceção. Se Iolanda não tinha me visto até aquele momento, não ia
dar sorte ao azar. Preferia contar com um tempo a mais de paz.
Tão logo o motorista deu a partida após eu sinalizar o endereço,
as luzes se acenderam, mas já era tarde para voltar.
Por hábito, fui verificar as notificações do telefone e, ao avistar o
aplicativo de cartas, percebi que aquela noite havia esquecido do
MeninoDoRio. Senti uma ponta de culpa, mas tentei me lembrar de
que não tínhamos nada de concreto, além de uma amizade virtual.
Apesar dos sentimentos que eu estava desenvolvendo por ele,
ainda era um campo de possibilidades, enquanto o meu encontro
não planejado daquela noite havia sido bem real. Há pouco tempo,
eu estava sozinha. Agora, depois daquela noite, eu tinha dois caras
disputando meus pensamentos. Nem precisava de muito para saber
que isso complicaria um pouco a minha vida, mas decidi apenas
curtir o momento.
Ao chegar em casa, quando fui procurar pelas chaves, dei falta do
croqui e meu pensamento me levou diretamente para o meu par de
dança. Não que eu fosse conseguir pensar em outra coisa depois de
viver momentos tão intensos. “O que foi aquilo?”
Eu sempre gostei do clima e da expectativa, mas me arrependi de
não ter tomado a iniciativa e o beijado. Queria tanto saber como
seria o toque dos lábios dele nos meus, se os movimentos seriam
lentos ou urgentes, em como seria tocar seu cabelo durante o beijo
e se o leve calor que eu estava sentindo na hora iria me incendiar
por inteiro…
Só me restava imaginar.
Eu sabia apenas o primeiro nome dele, que era muito comum,
então cheguei à conclusão de que seria impossível achá-lo sem
parecer uma stalker, pedindo aos organizadores do evento
informações sobre todos os convidados com o nome de Gustavo.
Não foi uma decisão fácil, mas achei melhor guardar tudo o que
aconteceu aquela noite na memória e não pensar mais nele, ou ao
menos tentar, já que meu corpo estava deixando bem claro que
discordava da mente.
Com muito carinho, tirei o vestido e o guardei cuidadosamente,
assim como os sapatos que me foram presenteados. Adoraria
deixá-los expostos, como um lembrete de coisas boas acontecendo
em minha vida, mas com Iolanda por perto, estariam mais seguros
no armário.
“Umdia, eu não precisarei mais esconder e poderei exibir com
orgulho as peças que criar.”
Depois de um dia tão intenso e cheio de reviravoltas, nem me dei
ao trabalho de procurar por um pijama e me joguei na cama só com
a lingerie. Apesar de muitos pensamentos quentes sobre Gustavo
estarem passando pela minha cabeça, acabei pegando no sono
alguns minutos depois e logo estava revivendo a cena do quase
beijo.
No sonho, nossas bocas estavam coladas e mãos grandes
tocavam minha pele, deixando um rastro de calor por onde
passavam. O beijo foi ficando mais intenso e nossos corpos, cada
vez mais grudados. Eu queria mais, precisava de mais.
Nossas bocas se afastaram para que ele pudesse depositar beijos
em meu pescoço, o que me deixou com ainda mais desejo. Eu
estava totalmente entregue. Gustavo poderia fazer o que quisesse
naquele momento, porém, começamos a nos afastar, como se uma
força sobrenatural me puxasse para longe dele.
Assustada, abri os olhos e demorei alguns segundos para
identificar onde estava, e só então me dei conta, completamente
frustrada, de que fora apenas um sonho. Um sonho delicioso e
frustrante.
Seria difícil voltar a dormir depois daquilo.
28

Gustavo

Nem nas minhas melhores fantasias eu poderia imaginar


que acabaria conhecendo a pessoa com quem vinha sonhando
acordado por causa de algo que organizei. Era irônico, mas se eu
não tivesse aceitado a oferta do meu pai, isso não teria acontecido.
Nossa, eu estava tão perto de saber que gosto ela tinha… nossas
bocas estavam quase coladas. Queria esganar a pessoa que
interrompeu nosso momento. Só de lembrar, era impossível não
ficar excitado, tamanha a tensão entre nós.
Por que ela tinha que mexer tanto comigo?
Era um domingo de sol e estava dentro do quarto, deitado na
cama, pensando na mulher que me deixava em chamas. Ter
concordado com os termos dela era uma tortura — e isso era nítido
pelo volume que se destacava na minha calça, implorando para ser
tocado. Não resisti e abri o zíper, libertando-o. Eu sabia que não
seria o suficiente, tamanho o meu desejo por ela, mas, pelo menos,
daria um alívio ao membro pulsante no meio das minhas pernas.
Minha mente foi invadida pelas imagens que agora eu tinha dela,
do seu cheiro, das curvas deliciosas… e completei com
pensamentos de como seria tocar seu corpo e ouvir gemidos de
prazer, enquanto minha mão direita fazia movimentos suaves de vai
e vem. Quanto mais eu pensava nela, mais excitado ficava. Com
isso, fui intensificando os movimentos. Queria que fosse a mão dela
me tocando. Só de imaginá-la tão perto, meu pau ficava ainda mais
duro. Não demorou muito para que meu corpo fosse tomado por
uma onda de prazer, e o resultado disso escorreu pela minha mão.
Como previ, não foi o suficiente:pelo contrário, a vontade de estar
com ela só cresceu. Eu ia enlouquecer sem saber se poderia
colocar em prática tudo que passava na minha cabeça. Ontem à
noite foi real demais para ser apenas fruto da minha imaginação.
Frustrado, fui tomar um banho e, quando acabei, decidi ligar o
computador. Quem sabe adiantar alguma tarefa pendente do
trabalho. Eu poderia me masturbar o dia todo e não seria suficiente
para diminuir a frustração de não ter Alice comigo.
Fiquei tão ocupado nos últimos dias com todos os preparativos do
evento que mal tive tempo de verificar as notificações — menos
ainda de responder as mensagens. No automático, o primeiro site
que eu sempre abria era o de troca de cartas. Notei que tinha uma
não lida e a primeira coisa que fiz foi conferir a data. Tinha sido
algumas horas antes, ufa!

De: PlusStylistRJ
Olá!
Acho que agora já consigo me comunicar com mais
frequência, como nos “velhos tempos”. Senti falta de
conversar contigo.
Acredita que minha chefe destruiu o projeto mais importante
da minha vida? Eu achei que tudo estava acabado, mas tive
uma ajuda muito especial e uma das noites mais incríveis de
todos os tempos.
Sei que isso vai soar contraditório, mas queria que você
tivesse me visto usando o vestido que criei em homenagem à
minha mãe.

Era a minha vez de responder Mas como fazer isso sabendo


quem ela era? Sonhei tanto em conhecê-la, que o destino se
encarregou de mexer os pauzinhos para esse encontro. Que outra
explicação podia ter?
Eu queria poder responder “Sim,eu estava lá e o seu vestido era
mesmo incrível”. Ou então que ela era a mulher mais linda da festa,
e que eu estava louco de vontade de tê-la em meus braços de novo.
Porém, se eu me limitasse a um “Ei,querida, não precisa ter
medo”,estaria mentindo, porque isso nunca esteve mais longe da
verdade. Se antes era ela quem não queria nossas identidades
reveladas, agora era eu quem não podia, de jeito algum, deixá-la
saber quem eu era. A moça estava participando do concurso
realizado pela empresa da minha família, e a última coisa que ia
querer era a sua desclassificação.
Sabendo a identidade da minha correspondente, passei um bom
tempo relendo as cartas em busca de informações extras. Afinal, eu
podia ter deixado passar algo importante e também era uma forma
de analisar tudo por outra perspectiva. As minhas especulações
foram confirmadas: o concurso era o acontecimento tão importante
que havia mencionado.
O tempo passava enquanto eu imaginava mil e uma formas de
responder à última carta sem parecer estranho ou entregar o que
sabia. Com certeza, aquela foi a carta mais difícil que escrevi.

De: MeninoDoRio
Olá, minha doce e querida PlusStylistRJ!
Que bom que voltamos à programação normal.
Mesmo que a nossa comunicação esteja um pouco fora do
comum, quero dizer que estive pensando em você a cada dia
que se passou, sem exceção. E, se eu não lhe escrevi muitas
coisas, estive te escrevendo na minha mente. Quase posso
formar diálogos na minha cabeça e é uma boa forma de me
sentir perto, mesmo longe. Quer dizer, será que estamos tão
longe assim?
Sinto muito que tenha que aturar uma bruxa como chefe, e
você nem faz ideia do quanto sou grato por essa alma
bondosa que ajudou você.
Não precisaria ver seu vestido para saber que você era a
mais linda, onde quer que estivesse.
Gosto demais de você.
Até!

— Trabalhando no fim de semana, filho? — Meu pai entrou no


quarto sem bater. — Aconteceu algo? Pode me falar.
— Relaxa, pai. — Cliquei no botão de enviar. — Só respondendo
a umas coisas pendentes.
— Menos mal. — Ele pareceu relaxar um pouco. — Você já viu as
publicações sobre a festa?
— Ainda não. O que estão dizendo? — Fiquei tenso enquanto
esperava a resposta.
— Apesar do incidente com o transformador, que é claro que foi
mencionado diversas vezes, as pessoas estão elogiando bastante.
Bom trabalho!
— Obrigado, pai. — Soltei um suspiro de alívio. A sensação era
de que tinha passado no primeiro grande teste. — Ah, quase me
esqueci: sua mãe pediu para avisar que hoje almoçaremos fora, de
um jeito ou de outro. Ou iremos a algum restaurante ou pediremos
comida e faremos nossa refeição na mesa externa.
— Alguma ocasião especial?
— Você conhece a sua mãe. Ela não precisa de ocasião especial
para querer sair da rotina. Helena está sempre inventando algo.
— O que vocês decidirem, para mim está ótimo. Eu já vou descer.

De: PlusStylistRJ
Olá, meu caro!
É impressão minha ou tem algo estranho acontecendo aqui?
Não sei dizer, mas tinha um tom diferente na sua última carta.
Caso queira compartilhar, coloco meus ouvidos — ou, no
caso, os olhos — à disposição. E os dedos também, para
responder sobre qualquer assunto.
Depois de tanta correria, espero ter uns momentos de
refresco pelos próximos dias, mas nem gosto de comemorar
antes da hora, porque se eu te contasse… Nossa, acontece
de um tudo.
Fui eu a propor não nos revelarmos um ao outro, mas talvez
pequenas migalhas de informação poderiam ser bem
interessantes. Aqui vão algumas sobre mim, pois mesmo não
tendo perguntado, acho que gostaria de saber:
Acredito em astrologia você deveria me passar sua data e
hora de nascimento para eu poder ver seu mapa astral em
algum site gratuito e analisar se podemos continuar sendo
amigos. Talvez fosse uma boa ideia ter feito isso no início.
Tarde demais… Brincadeira! Não vou fazer seu mapa astral,
nem precisa dizer seu signo, eu também não vou dizer o meu.
Eu amo morangos, desenhar (especialmente roupas, mas
isso você já deve ter percebido) e uma boa leitura. Acho que
nem preciso dizer o quanto amo animais, especialmente
gatos, mas é sempre bom reforçar. E o restante você vai
descobrindo aos poucos, se continuar aí do outro lado.
Espero ansiosa para saber as suas também. Fique à vontade
para mandar uma lista enorme. ;)
Beijinhos!

De: MeninoDoRio
Estranho, eu? Deve ser impressão sua. Ando trabalhando
demais, talvez seja isso. Sinto até vergonha de confessar uma
coisa dessas para alguém como você, tão batalhadora, mas
não estava muito acostumado.
Adorei as curiosidades, devíamos ter feito isso há mais
tempo. Não sei se terá tantos itens quanto esperava, mas aqui
vão as minhas:
* Também amo animais;
* Assistir séries;
* Tenho zero habilidade em esportes com bola, mas posso
dizer que sou um esgrimista acima da média;
* Adoro locais com água;
* Sou filho único;
* Ainda moro com meus pais.
Até mais!
29

Alice

Após os últimos acontecimentos, parecia que as coisas


estavam dando certo, mas no fundo eu tinha medo de me empolgar
demais. Na verdade, estava radiante e ao mesmo tempo dividida. O
mais engraçado era estar ponderando sobre dois homens, sem
saber se os veria — de novo, no caso de Gustavo — em algum
momento da minha vida. Era quase como sonhar com aquele seu
ator favorito, cuja foto você usa como proteção de tela no telefone,
mas sabe que nunca vai conhecer.
Comecei aquela manhã escrevendo para o MeninoDoRio, depois
de alguns dias sem contato, enquanto esperava por Inês. Óbvio que
ela iria querer saber todos os detalhes de uma das noites mais
importantes da minha vida e não aguentaria esperar pela segunda.
Muito menos se contentaria com mensagens.
— Trouxe o café da manhã! — Ela colocou suco e sanduíches na
bancada da pia. — Agora, comece a falar.
— Bom dia para você também, apressadinha! — Inês tentou fazer
uma cara de anjinho e eu ri.
— Vamos logo, comece me explicando que mensagem foi aquela
dizendo que não iria mais. — Minha amiga sentou em uma das duas
cadeiras disponíveis no meu quarto e ficou me encarando enquanto
comia. Copiei seu gesto.
— Por favor, não pire, tudo foi resolvido. O que aconteceu é que
sua mãe veio aqui e destruiu meu vestido para me impedir de
participar.
— Como é? — Inês desistiu da mordida que estava prestes a dar
no sanduíche.Apontei para o montinho de tecido picotado no canto.
— Custo a acreditar que saí de dentro daquela barriga.
— Foi horrível, não gosto nem de lembrar. — Tentei dissipar as
memórias daqueles momentos terríveis. — Mas aí meu caminho
cruzou com um anjo, que me ajudou a fazer outro vestido. Cheguei
ao evento nos quarenta e cinco do segundo tempo. Nem deu tempo
de te avisar, para você ir comigo.
— Essa é a minha garota! Sem problemas, eu estava na última
parte de um livro ótimo, fiquei bastante entretida. — Eu amava a
expressão de menina sapeca que Inês fazia em algumas situações.
— Mas e aí, como foi a tal festa?
— Foi incrível! Eu nem te conto… Conheci um cara, Gustavo é o
nome dele. — Comecei a me abanar.
— Humm. Rolou algo?
— Quase.
— Vai vê-lo de novo? — Minha amiga se empolgou no
interrogatório digno de funcionária de uma famosa agência de
investigação.
— Não faço ideia. Mas a grande questão nem é essa. Lembra
daquelas cartas que eu estava trocando com alguém?
— Você está dividida. — Não foi uma pergunta.
— Sim. De um lado, tem esse meu correspondente há algum
tempo. Sinto que estamos construindo algo, mas eu não sei nomear,
apenas percebo que tem sentimento ali, isso não dá para negar. —
Mordi o lábio inferior enquanto tentava organizar os pensamentos.
— E, por outro, tem o tal de Gustavo. Depois de ontem, eu tentei
não pensar mais sobre ele, já que nem tenho seu contato. Só que
eu não consigo ignorar o momento que tivemos. Até meus sonhos
ele andou invadindo. E agora?
— Parece que a vida amorosa de alguém anda agitada — Inês
brincou. — Sei que tenta sempre partir pro lado racional, mas você
mesma apontou coisas que estão fora do seu alcance resolver.
Então, se quer o meu conselho, que tal esperar um pouco mais e
ver no que dá?
— Não é como se eu tivesse muitas opções no momento — disse
a verdade e minha amiga concordou.
Durante mais um tempo, conversamos sobre várias coisas,
mesmo que meus pensamentos estivessem divididos entre Gustavo
e o MeninoDoRio.
Quando Inês foi embora, aproveitei o resto da manhã para
produzir mais peças em prol do abrigo, pois as levas anteriores
haviam esgotado rapidamente e os clientes e amigos viviam
pedindo por mais na loja. Mesmo não ganhando dinheiro algum por
esse trabalho, era gratificante saber que minhas criações faziam
tanto sucesso. Esperava que isso se repetisse quando fosse entrar
no mercado da moda.
Foi então que recebi uma carta nova, e encarei a oportunidade
para tentar conhecer um pouco mais sobre o MeninoDoRio. Contei
algumas coisas a meu respeito e fiquei bem animada quando li sua
resposta.
Depois de trocar cartas e comer a outra parte do sanduíche de
almoço, parti em direção ao abrigo. Talvez passar um tempo com os
animais seria uma boa forma de afastar os dois homens da minha
mente, além disso, fazia um tempo desde a última vez que consegui
ir até lá. Apesar de estar ajudando de outra forma, ainda sentia falta
do contato com os bichinhos. Como estava ocupada com outras
coisas, Inês não pôde ir comigo.
— Boa tarde, pessoal! — Cheguei toda animada, pronta para
colocar a mão na massa.
— Boa tarde! — Luiz respondeu com a mesma empolgação,
enquanto pegava um pesado saco de ração para os cachorros.
— O que eu posso fazer para ajudar? — perguntei a Pâmela, que
estava com a cara enfiada em uma pilha de papéis.
— Você está familiarizada com as limpezas?
— Não tanto quanto a Inês, mas o básico eu sei, sim.
— Ótimo! A pessoa que hoje estaria responsável pelos cuidados
do gatil teve um imprevisto e não virá. Precisa trocar água, colocar
comida, limpar caixa de areia, essas coisas… — Pâmela foi
soltando as informações sem nem tirar os olhos do que estava
fazendo.
— Claro, agora mesmo.
— Se tiver alguma dúvida ou precisar de ajuda, me chama. Estou
resolvendo algumas coisas burocráticas por aqui e, assim que
acabar, vou lá te ajudar. Os outros voluntários estão no canil.
— Está bem.
Ainda não estava completamente segura das tarefas, mas isso iria
acontecer com a prática. Estranhei não ter visto Nick logo de cara,
pois o gato sempre vinha ao meu encontro quando eu aparecia por
lá, mas deduzi que ele estivesse pegando sol ou dormindo em
algum canto. Quando terminasse, passaria um tempo brincando
com ele e os outros gatos.
Depois de uma breve análise, achei melhor começar o serviço
limpando as caixas de areia e, logo em seguida, foi a vez de trocar a
água. A comida foi a etapa mais fácil de todas elas, pois um medidor
estava dentro da grande caixa onde a ração ficava guardada, e foi
só colocar as porções recomendadas nos potes individuais e encher
as vasilhas compartilhadas. Varri o local e encontrei no armário um
produto de limpeza específico para passar no chão. Faltava pouco
para terminar quando avistei Nick deitado em um cantinho. Feliz em
ver meu amigo, encostei a vassoura na parede mais próxima e fui
até ele.
— Olá, querido. É bom ver você.
Nick aparentava estar dormindo, então me aproximei lentamente
do bichano, mas notei seus olhos amarelos abertos. Estranhei que
não fez movimento algum, além de mexer levemente a cabeça para
olhar em minha direção. Ele era sempre muito ativo e gostava
bastante de brincar com os outros gatos.
— O que foi? O que você tem? — Acariciei a cabeça e dorso do
animal e ele continuou estático, como se tivesse sem forças para
fazer qualquer coisa.
Obviamente, o gato não podia responder, pelo menos não de
forma verbal, e mesmo eu não sendo uma conhecedora profunda de
animais e seus comportamentos, sabia que tinha algo errado
acontecendo. Por isso, corri para chamar Pâmela. Não queria deixá-
lo muito tempo sozinho e em possível agonia.
— Você precisa vir comigo agora mesmo! — Apareci no escritório
em um rompante.
— Mas o que foi que houve? Algum gato fugiu? Te mordeu? —
Pâmela se sobressaltou.
— Não, eu estou bem e todos os gatos estão lá dentro. — Fiz
uma breve pausa para recuperar o fôlego. — É o Nick, ele não
parece nada bem.
— Onde ele está? — A moça largou tudo, pronta para agir.
— Eu te mostro.
Fomos juntas o mais depressa possível até o gato, que
continuava na mesma posição de quando o deixei. Respiramos
aliviadas ao ver o corpinho subindo e descendo por conta da
respiração. Mas a sensação de alívio durou apenas um instante,
logo dando lugar à preocupação novamente.
Pâmela se aproximou do gato e mexeu nele delicadamente para
ver se encontrava algo de errado.
— Não faço ideia do que pode ser. Melhor correr com ele para o
veterinário. Tem uma clínica aqui perto, onde sempre levamos os
bichinhos. Você pode me ajudar?
— Sim, é só me dizer o que fazer.
Seguindo as instruções de Pâmela, peguei a primeira manta que
vi pela frente e entreguei a ela, que enrolou o gatinho de forma
habilidosa e, com todo o cuidado, colocou Nick nos meus braços.
Enquanto dirigia rumo ao veterinário, Pâmela contou que a dona da
clínica era uma velha conhecida e todos os procedimentos eram
feitos lá.
— Oi, Pâmela. O que houve? — o recepcionista se manifestou
assim que entramos pela porta automática.
— Não sabemos. Tem alguém disponível para dar uma olhada
nele? — Dava para sentir a aflição em seu tom.
Eu também estava à beira do desespero, mas tentei ao máximo
me manter sob controle.
— Tem sim. Vou avisar à doutora Marta e ela já vem atender
vocês.
Se alguém tivesse cronometrado, saberia que não levou nem
sessenta segundos para a veterinária aparecer e nos encaminhar ao
consultório. O Nick tinha ficha lá, então ela fez algumas perguntas
para uma avaliação inicial e deu continuidade ao atendimento.
— Vou colocá-lo no soro. Precisa ficar internado em observação e
fazer alguns exames. Fiquem tranquilas, ele vai ser muito bem
cuidado e vamos mantê-las informadas do quadro.
— Muito obrigada.
Apenas assisti a tudo sem saber como reagir, eu tinha um carinho
por aquele animalzinho que não saberia explicar. Fomos embora
com o coração na mão e Pâmela me deixou em um local de fácil
acesso aos transportes públicos, mas não sem antes prometer que
me manteria informada de tudo sobre Nick.

De: PlusStylistRJ
Oi...
Você acredita que o meu gato favorito do abrigo está doente?
Não sabemos ainda o que ele tem, mas parece grave. Estou
tão preocupada. Não entendo o motivo de animais ficarem
doentes e sofrerem, eles são tão bondosos, não mereciam
passar por isso.
Sei que não estou falando coisas com muito sentido, mas me
sinto tão impotente nesse momento. Se eu o tivesse adotado,
será que estaria bem agora?
Espero que ele fique bem.

De: MeninoDoRio
Sinto muito que você e ele estejam passando por esse
momento terrível. Queria poder segurar sua mão e dizer que
vai ficar tudo bem, mas eu não posso prometer nada sobre a
segunda parte, apenas torcer.
Me enlouquece não poder estar perto nesses momentos.

l
Quando chegou a manhã seguinte, eu tentei me concentrar nas
aulas, mas minha cabeça estava no gatinho internado. A última
atualização, recebida na noite anterior, ainda não tinha informações
de um diagnóstico do animal. Senti o celular vibrar no bolso traseiro
da calça e ignorei o que o professor falava, mesmo sem ter o
costume de mexer no aparelho durante as aulas.
Pâmela:
Alice, não vou ficar te enrolando. As notícias
não são boas.
Alice:
Ele morreu? :’(
Pâmela:
Não! Porém, está bem mal. As despesas dele
estão bem altas e vão precisar fazer alguns
procedimentos com urgência, mas precisam de
pagamento adiantado. Não vou entrar em
detalhe sobre os motivos. Eles concordaram
em segurar um pouco mais por conta da nossa
parceria. O problema é a falta de caixa no
momento. Não sei o que fazer.
Alice:
De quanto estamos falando?
Pâmela:
Ainda não sei o valor exato, mas não é muito
barato. Qualquer quantia ajuda muito.
Alice:
Vou dar um jeito.
A pessoa mais próxima que eu conhecia com dinheiro era
Iolanda, e nem precisaria ter bola de cristal para adivinhar que ela
torceria a cara para um pedido como esse. Infelizmente, a mãe
controlava as movimentações financeiras das filhas, então Inês não
era uma opção. Também não pediria dinheiro ao MeninoDoRio
quando nem o nome dele sabia.
“Onde eu vou conseguir doações tão rápido?”
Por sorte, estava sentada justamente do lado da aluna
representante da turma na comissão da formatura e, ao avistá-la,
tive uma ideia:
— Oi, Luísa. Será que pode me dar uma informação? —
Consegui a atenção da moça. — Se eu desistir de participar da
formatura, tem como pegar o dinheiro de volta? Em quanto tempo
ele ficaria disponível? — falei quase sussurrando para não
atrapalhar a aula.
— Sim, tem a possibilidade de desistência. De cabeça, eu não
lembro, mas tem uma multa. O valor está no contrato. Mas você tem
certeza de que vai desistir? — Luísa pareceu estranhar a conversa.
— Preciso do dinheiro com urgência. É literalmente uma questão
de vida ou morte. Vou ajudar um animalzinho doente.
— Tadinho! Eu vou mandar uma mensagem agora, que a
professora não veja, e ver como consigo ajudar.
— Obrigada.
Notei a Luísa digitar freneticamente no celular enquanto tentava
prestar atenção na aula e torci para a solução vir o mais rápido
possível. Quando terminou a aula, ela me procurou com a resposta:
— Tenho boas notícias. Eu expliquei a situação e eles enviaram
os papéis da rescisão do contrato para o seu e-mail preenchido no
cadastro. Você só precisa assinar e enviar de volta. Eles vão abrir
uma exceção e depositar o dinheiro, já com o desconto, assim que
receberem o documento.
— Nem sei como te agradecer. — Respirei com certo alívio. —
Vou correndo no setor de cópias imprimir isso e darei um jeito de
enviar agora mesmo.
— Espero que ele melhore.
— Eu também.
— Só tem um problema — ela voltou a falar. — Se desistir agora,
não vai ter como participar da formatura. O prazo para o último
pagamento é amanhã. — Luísa me ofereceu um sorriso triste, e o
peso do que estava prestes a fazer começou a bater com força.
— Não tem problema — respondi, resignada. — Nick só precisa
ficar bem.
Luísa me deu um abraço e, em um sussurro, repetiu que estava
torcendo para que ele ficasse logo bem.
A empresa realmente cumpriu com o prometido e o dinheiro ficou
disponível ainda naquele dia. Assim que recebi a notificação de
depósito no aplicativo do celular, fiz a transferência para Pâmela.
Eu estava tão preocupada com o estado de saúde de Nick que
um e-mail importante passou despercebido na minha caixa de
entrada. Só depois que resolvi a situação financeira do Nick é que
olhei meu telefone com mais atenção e reparei em uma notificação
não visualizada. “Comoeu pude esquecer que o resultado era
hoje?” Então, corri para abrir o e-mail.
Daria tudo para saber quem escrevia aqueles e-mails tão
divertidos e fora do convencional. Mas, caramba, eu estava na final!
Resolvi entrar no site só para admirar meu nome e minha peça entre
os finalistas, mesmo ninguém sabendo que era eu.
Quase cai para trás quando percebi o traje enviado por Ingrid
entre os três.
“Algo me diz que isso não é bom.”
Pâmela:
Oi, Alice. Eu de novo. Passando aqui para
avisar que o Nick está bem. Obrigada mesmo
pela ajuda. <3
Alice:
Ótima notícia! Descobriram qual era o problema
de saúde dele?
Pâmela:
Ele engoliu um objeto não identificado, que
acabou ficando preso no intestino, obstruindo a
passagem. Foi necessário fazer uma cirurgia
de emergência, mas disseram que ele tem tudo
para ficar bem.
Alice:
Ah, meu menino… Irei visitá-lo quando for
possível. <3

De: PlusStylistRJ
Trago boas notícias! O gatinho está se recuperando bem!

De: MeninoDoRio
Que ótima notícia, fico feliz por vocês dois!
30

Gustavo

Quando cheguei à empresa na segunda-feira, os


funcionários pareciam me ver com outros olhos: recebi palavras de
incentivo, alguns joinhas e os mais ousados até me deram tapinhas
nas costas. O resultado dos finalistas iria para o ar em breve e o
engajamento dos clientes com a empresa melhorava a cada dia. A
impressão era que o sucesso da festa havia deixado todo mundo
empolgado.
— Chamou, senhor Almeida? — impliquei com meu pai assim que
entrei no escritório.
— Você anda muito engraçadinho, Gustavo. Mas é ótimo te
encontrar de bom humor. — Ele estava de pé, organizando sua
pasta de trabalho.
— Devo me preocupar?
— Isso é você quem vai decidir — disse de forma enigmática —
Surgiu uma emergência para resolver e vou precisar me ausentar, o
que não seria nada demais em outra ocasião, mas tem algumas
coisas importantes acontecendo aqui e preciso que você assuma
meu lugar por hoje, caso precisem de algo.
— O quê?! — O choque me fez tombar na cadeira.
— Não vai ser tão difícil.Chame o Leandro para te ajudar, sei que
confia nele. — Antes que eu pudesse argumentar, meu pai saiu da
sala sem nem fechar a porta e tudo que ouvi depois foi um “Até!”,
mas ele já estava fora de vista.
Pelo visto, o velho parecia mesmo disposto a me testar.
Avisei a Leandro que a nossa sala tinha mudado temporariamente
para a principal do prédio e ele, ao contrário de mim, não pareceu
assustado. Torci para tudo correr bem, a ponto de ninguém precisar
me pedir para resolver alguma coisa. Só que era da Vestindo Estilo
que estávamos falando, e é claro que meus desejos não foram
atendidos. As primeiras vezes que o telefone tocou, eu quase pulei
da cadeira. Não fazia ideia do que me aguardava na função de
CEO, e o medo de fazer alguma besteira só aumentava.

De: MeninoDoRio
Estou vivendo um dia de CEO. Acho que preferia estar em
um daqueles programas de transformação, as chances de dar
merda são menores.
Agora sou eu que digo: torça por mim!

De: PlusStylistRJ
Está usando terno, sentado em uma cadeira e fazendo pose
de “quem manda aqui sou eu”?

De: MeninoDoRio
Claro, o chefe mais gato que já passou por aqui. ;)

De: PlusStylistRJ
Hummm... Parece interessante.
Vou ficar imaginando.

— Se prepara, esse telefone vai começar a tocar e não vai parar


— Leandro falou enquanto olhava o celular. — Acabei de ver no
grupo que a coleção nova não chegou às lojas. As pessoas estão
arrancando os cabelos.
— Ah, que ótimo. — Fui irônico. — Estava dando certo demais.
Por que essas roupas precisavam estar nas lojas hoje? Não podem
atrasar um dia ou dois?
— Pergunta isso para o pessoal do marketing, que anunciou aos
quatro ventos, e para os lojistas, que enfrentarão clientes furiosos
amanhã.
— É claro que algo assim iria acontecer justamente quando meu
pai está fora.
Como Leandro havia previsto, o telefone começou a tocar.
— Oi, Amanda.
— Senhor Gustavo, pessoas de vários setores estão ligando,
incluindo os lojistas. Posso encaminhar as ligações? — Coloquei no
viva-voz para que Leandro ficasse a par de tudo.
— É… — Precisei pensar rápido. — Se não for alguém para
explicar o que aconteceu ou aparecer com uma solução, peça para
aguardar. Assim que tiver uma posição, todos serão avisados.
Obrigado.
— O que precisa que eu faça? — Leandro se manifestou assim
que coloquei o fone no gancho.
— Você tem mais contatos do que eu. Consegue descobrir o que
houve? Preciso saber a raiz do problema para pensar em algo e não
quero ligar para o meu pai, a menos que não tenha outro jeito.
— Agora mesmo.
Protegido dentro daquela sala, por mais estranho que fosse, eu
estava conseguindo manter a calma. Seria diferente se tivesse que
lidar com todas essas pessoas ao mesmo tempo e de forma
presencial.
Lembrei do site e resolvi dar uma olhada, fazia muito tempo que
não o acessava. Estava moderno e o concurso, que tinha site
próprio, aparecia em destaque. Algumas fotos das principais peças
da coleção nova estavam dispostas na página inicial e, quando fui
procurar pela loja virtual, não a encontrei. Ainda tentei em outro site
de buscas, mas nada apareceu.
— Descobri — Leandro se pronunciou. — O sistema do centro de
distribuição das peças apagou todos os dados. Perderam todas as
informações sobre o que e quanto deveria ir para cada lugar. Já era
para estar tudo embalado, mas teve um pequeno atraso na entrega
das peças.
— E esse atraso não foi comunicado?
— Como as lojas são todas na cidade do Rio, eles disseram que
daria para fazer, apesar da falha. Estavam no meio do processo
quando o programa apagou hoje cedo. Achariam que seria resolvido
a tempo, mas não foi o que aconteceu.
— Alguma previsão, pelo menos?
— Bem que eu gostaria. Já estão trabalhando para consertar, mas
as chances de a nova coleção estar disponível nas lojas é
praticamente zero.
— Você faz alguma ideia do motivo de ainda não termos uma loja
on-line? Eu acabei de me dar conta e estou surpreso.
— Esse é um dos projetos em desenvolvimento. Acho que o plano
é lançar junto com a coleção Contos de Fadas Modernos.
— Tive uma ideia: o que acha de colocarmos essa loja para
funcionar? — sugeri.
— Acho que já passou da hora.
— Faça uma lista com todos os envolvidos nesse projeto e peça à
Amanda para convocar todo mundo na sala de reuniões com
urgência.
Não sei de onde tinha saído essa versão minha, mas eu estava
longe de querer reclamar. A vontade de resolver o problema me
movia, e eu só me dei conta da posição que ocupava quando muitos
pares de olhos me observaram, esperando pelo que eu tinha a dizer.
A sala de reuniões nunca pareceu tão assustadora, mas eu
precisava falar alguma coisa.
— Boa tarde. Acredito que todos estejam cientes do problema que
estamos enfrentando. — Todos balançaram a cabeça em afirmação,
então prossegui: — Não será possível seguir com o plano inicial,
porque as peças não vão chegar a tempo.
— E o que faremos? Foi anunciado em todas as redes sociais —
um funcionário do marketing questionou.
— Vou precisar da ajuda de vocês. Alguém sabe me dizer a
quantas anda o projeto da loja virtual?
— Está na fase testes, aguardando o lançamento — o mesmo
homem respondeu.
— Funciona? — quis saber.
— Talvez precise de um ajuste ou outro, mas sim. — Ele deu de
ombros.
— Ótimo. A equipe de marketing consegue fazer um material
ainda pra hoje?
— Se não for algo muito grande, dá pra fazer.
— A ideia é soltarmos um anúncio em todas as plataformas,
avisando que o lançamento dessa próxima coleção será diferente.
Primeiro, estará disponívelna loja virtual, que será lançada amanhã.
E que tudo isso era uma surpresa para os clientes.
— Vamos fazer parecer que esse era o plano desde o início.
Gostei — uma mulher de cabelo loiro e óculos quadrados
respondeu. Não me lembrava o nome dela, apenas que era gerente
de algum setor.
— Podemos oferecer algum brinde, clientes adoram brindes.
— Brinde é uma boa, pensem em opções e nos envie as
propostas — outra mulher, dessa vez um pouco mais nova,
concordou. Ela já tinha participado de algumas reuniões, sempre
trazendo ideias valiosas.
— Sei que talvez seja pedir muito, mas precisamos fazer isso
funcionar. — Tentei manter meu tom controlado. — Vamos
transformar essa sala no nosso novo escritório coletivo enquanto
trabalhamos no projeto. Assim, facilita a comunicação. Posso contar
com vocês?
Quando pensei em propor isso, tive medo da reação deles, mas
todos pareceram empolgados com a ideia. Pelo visto, eu e Leandro
não éramos os únicos que concordavam que essa loja on-line já
deveria existir.
Eu ainda não sabia como meu pai iria reagir, mas era uma boa
forma de resolver o problema, pois como as peças estavam
concentradas em um lugar, ao invés de enviar para as lojas, em um
primeiro momento eles teriam que se organizar para fazer os envios
aos clientes e, com isso, ganhariam tempo para tentar recuperar o
sistema ou levantar as informações novamente. Eu não tinha total
dimensão de todos os setores que isso iria afetar, mas era uma
questão a ser resolvida depois.
Logo, todos estavam com suas ferramentas de trabalho naquela
sala e com a mão na massa. Eu e Leandro ficamos circulando e
vendo se podíamos ajudar em algo. Provavelmente todos teriam
que fazer hora extra, mas pensaria em um jeito de compensá-los
depois, além do valor pago. Também pedi que garantissem comida
e bebida, pois não sabíamos quanto tempo se prolongaria.
Também fiz uma nota mental de aprender todos os nomes dos
funcionários. Isso era o mais importante.
— Boa noite a todos. — Já era um horário avançado quando meu
pai, que estava a par de tudo, entrou na sala de reuniões. — Como
estão as coisas? — Ele se dirigiu a mim.
— Uma correria, mas acho que vai dar tempo. A novidade já foi
anunciada e os seguidores estão interagindo bastante. Falta
terminar o que será publicado amanhã e os últimos ajustes para o
site entrar no ar.
— Nem consigo dizer o quanto estou orgulhoso da sua postura
diante do ocorrido. — Meu pai colocou a mão no meu ombro de
forma carinhosa. — Eu não sei se teria pensado em algo assim,
mas foi uma ideia excelente.
— Obrigado. — Acenei com a cabeça. Receber elogios sobre o
meu trabalho era estranho, ainda mais ocupando a posição dele,
mesmo que por tão pouco tempo.
Estávamos quase entrando a madrugada quando tudo foi
finalizado. Fiz questão de que todos os funcionários fossem levados
de táxi para casa e agradeci a todos individualmente pela ajuda.
— Nem acredito que funcionou — confessei a Leandro depois que
o último deixou a sala.
— Comparado à pessoa que não sabia como começar a planejar
o concurso com a versão de hoje, parece mesmo que você leva jeito
para liderar.
— Que meu pai não me escute, mas não é tão ruim quanto eu
pensei. Talvez eu até tenha gostado dessa adrenalina.
— Será que isso significa o que eu estou pensando? — Um
sorriso conspiratório apareceu no rosto de Leandro.
— Veremos…
Eu tinha ido de carro, mas estava cansado demais para dirigir, por
isso também aderi ao táxi. No trajeto, aproveitei para escrever uma
carta, pois sabia que, assim que chegasse em casa, iria me jogar na
cama e dormir.

De: MeninoDoRio
Nem se eu tentasse com vontade, conseguiria imaginar o
caos que foi o dia de hoje.
Experimentei a parte ruim de ser CEO, mas me saímelhor do
que pensei. Estou orgulhoso.
Talvez a ideia de que isso não era para mim tenha caído por
terra. Tenho muito no que pensar, mas posso ter encontrado
uma direção.
31

Alice

Na quinta-feira, abri mão do meu horário de almoço e


fui com Inês visitar Nick, que estava de volta ao abrigo e se
recuperando. Ainda precisava de cuidados, comida especial e
remédios, mas tudo estava correndo bem. Ufa!
— Oi, Nick. Bom te ver de volta. — Comecei a fazer carinho na
cabeça dele e, quando parei, ele colocou a patinha sobre a minha
mão. Parecia uma forma de me pedir para continuar, ou que, apesar
de não poder fazer tanto esforço, estava feliz por eu estar ali.
— Own, mas que fofura — Inês se derreteu.
— Que susto você me deu, mocinho. Nunca mais faça uma coisa
dessas. — Depositei um beijo no topo da cabeça dele.
— Eu fiquei sem acreditar quando me contou sobre ter desistido
da formatura, mas olhando para ele, é compreensível. Eu teria feito
o mesmo na sua posição.
— O mais importante, e meu objetivo desde o início, é concluir os
estudos e pegar o diploma. Terei outras festas para ir. — Dei de
ombros. É claro que senti uma pontinha de tristeza pela mudança de
planos, mas eu iria superar. — Como você também optou por não
participar, podemos comemorar juntas em algum lugar especial.
— Claro, vai ser ótimo! Vou pensar em uma comemoração à
nossa altura. — Inês sempre com suas cartas na manga.

l
Após dias muito corridos, finalmente consegui tempo para sentar
e trabalhar nos últimos detalhes da peça final para o concurso. O
prazo estava muito perto de vencer. Na verdade, só me restavam
algumas horas para subir o arquivo.
Quando me senti realmente satisfeita, coloquei o detalhe especial
— aquele com a minha marca — e estava pronta para assinar com
o pseudônimo quando Iolanda, mais uma vez, entrou nos
aposentos. Uma mania muito feia, diga-se de passagem.
— Olá, querida. Parabéns pela classificação na final — Iolanda
começou a falar toda simpática, como se não tivesse destruído o
meu vestido, e foi chegando cada vez mais perto de forma
sorrateira. — Mas parece que você não escutou o meu conselho de
amiga. Uma pena. — Ah, essa sim é a Iolanda cínica que eu
conheço.
Desde o acontecido, tentei ao máximo evitar a minha chefe. Como
tinha muito trabalho a fazer, não foi tão difícil assim. Passei todo o
meu tempo na frente da máquina de costura ou então na faculdade.
— Eu não podia desistir do meu sonho — respondi cansada.
— Mas vai. — Iolanda estava perto demais e com uma postura
ameaçadora. — Veja bem, eu tenho planos e um objetivo. Não
pretendo deixar nada nem ninguém atrapalhar. Confesso que,
inicialmente, fiquei com raiva, mas pensando bem, também me senti
feliz de ver seu desenho entre os finalistas. Uma concorrente a
menos.
— Se você está pensando que vai me convencer a desistir dessa
vez, está muito enganada! — Finalmente decidi me impor.
— Tem certeza? Pretende arriscar tudo por uma possibilidade,
mesmo sem saber se vai ter o resultado esperado? Vai arriscar ficar
sem emprego, sem onde morar e sem pagar a faculdade? No seu
lugar, pensaria bem. — Iolanda tinha um olhar de quem havia
encurralado sua presa.
— Você está me ameaçando? — A incredulidade estava
estampada no meu rosto.
— Claro que não. Só estou apresentando os fatos. Não sou
obrigada a ter por perto uma concorrente que pode destruir meus
planos.
— É sério? Já não basta tudo o que fez esse tempo todo? —
Indignada era uma boa palavra para resumir como eu me sentia
naquele momento.
— O quê? Te dar emprego, lugar para morar?
Meu Deus, como ela era sonsa!
— Não, me refiro ao quanto você se aproveitou da minha
ingenuidade e da situação para me explorar. Eu tenho feito
absolutamente tudo o que me foi pedido nesses últimos quatro
anos, sem receber nada a mais por isso. Até o “muitoobrigada”foi
bem escasso. — Depois de anos engolindo tantos sapos, não
consegui me conter e deixei sair boa parte do que estava entalado.
Como alguém podia ser tão mesquinha e com um senso de
superioridade tão grande? Em que mundo ela vivia? As pessoas
falam tanto em carma, por que raios ela não estava pagando por
tudo que fez? Naquele momento, eu daria tudo para conhecer o
ponto fraco da megera e poder fazer o mesmo jogo de palavras que
ela vinha fazendo comigo. Por um momento, eu queria ver esse
olhar de triunfo derreter.
— Você que sabe — Iolanda respondeu com toda a calma do
mundo.
“Issonão pode estar acontecendo. Deve ser um pesadelo e eu
vou acordar a qualquer momento.”
Iolanda não era a melhor pessoa do mundo e eu sabia disso, mas
também não a considerei capaz de fazer algo pior do que destruir
meu vestido. Santa ingenuidade!
— Não vai dizer nada? — Ela se aproximou da minha mesa de
trabalho. — Olha só! — Levantou o rosto e sorriu para mim. —
Parece que você tem algo do meu interesse aqui. Ia mesmo te pedir
um desenho para Ingrid enviar, assim como fez da outra vez, mas já
está pronto. Você é mesmo muito eficiente.
A mulher, que mais parecia vilã desses contos que lemos por aí,
segurou a borda do papel e tentou puxá-lo, mas eu fui rápida o
suficiente para segurá-lo do outro lado.
— Esse desenho é meu. É o meu trabalho. Eu estou cansada
desse seu comportamento invasivo. Você não pode entrar aqui,
destruir meu vestido e agora vir roubar isso aqui. — Um misto de
desespero e revolta era perceptível em cada palavra que saiu da
minha boca aos berros.
— Tem certeza? Tudo bem, eu me ofereceria para ajudar a
arrumar suas coisas, mas você consegue. Quero você e todos os
seus pertences fora daqui até a noite ou irá tudo para o lixo. Quanto
à sua rescisão, pagarei com gosto, porém ainda não sei quando.
Pode demorar um pouco… ou muito. Sabe como são essas coisas
burocráticas. Inclusive, eu deveria descontar os retalhos que você
usou, mas não sou uma pessoa má.
Perplexa com o discurso que acabara de ouvir, mais uma vez o
desespero tomou conta de mim. Mil e uma coisas passaram pela
minha cabeça:o fato de eu não ter reserva alguma de dinheiro, nem
ao menos um cartão de crédito com limite; a única pessoa que eu
era íntima o suficiente nessa cidade para pedir abrigo morava no
mesmo teto da víbora que destilava veneno na minha frente; quase
quatro anos de faculdade seriam pausados por tempo indefinido; e
as esperanças que eu voltei a ter quando pisei naquela festa
descendo ralo abaixo. Eu não tinha garantia alguma naquele
concurso — era tudo ou nada.
Tinha muito a perder.
Soltei a folha.
— Foi o que pensei. — Iolanda soltou uma gargalhada maléfica.
— Você fez uma boa escolha. Vou te dar um bônus por isso. E não
se preocupe, seu sonho vai se realizar, sim. Você poderá desenhar
toda a coleção que Ingrid vai assinar para a Vestindo Estilo quando
vencer. Obrigada, querida. Até mais.
Iolanda foi embora levando não só o desenho, como também
todos os meus sonhos e esperanças depositados naquela peça. Eu
não tinha forças nem para sair do lugar onde estava parada como
uma estátua pelo choque do ocorrido. Grossas lágrimas foram
caindo no papel de desenho em branco a minha frente. “O que será
que eu fiz para merecer isso?”

l
Passei não só o restante daquele dia como também o sábado e
metade do domingo deitada na cama. Tudo tinha perdido a graça.
— Alguém aí? Estou entrando. — Inês tinha uma chave reserva
para emergências. — Te mandei mensagem o fim de semana todo e
você não me respondeu. — Encolhida na cama e muito abalada,
voltei a chorar quando vi a minha amiga. — Meu Deus, o que houve
com você?
— Sua mãe… — foi só o que consegui dizer entre soluços. Algo
muito precioso havia sido arrancado de mim sem piedade.
— O que aquela bruxa fez dessa vez? — Mesmo sendo a filha de
Iolanda, Inês nunca compactuou com o comportamento da mãe.
— Ela me obrigou a desistir do concurso e vai enviar meu croqui
como se fosse o da sua irmã. — A desesperança tomou conta.
— Mas ela não pode fazer isso! — Inês correu para me abraçar o
mais forte que pôde.
— Era isso ou ir parar na rua, com uma mão na frente e outra
atrás. — O choro se intensificou só de lembrar dessa terrível
possibilidade.
— Minha mãe foi capaz de chegar a esse ponto?
— Pareceu bem convincente para mim. — Respirei fundo.
— Eu não posso acreditar… Vou falar com ela agora! — Inês
pegou o telefone e procurou o contato para ligar.
— Aí seremos duas com problemas. — Mesmo com tudo que
havia me acontecido, eu não podia deixar Inês se prejudicar
também.
— Ai, amiga. Eu me sinto tão culpada. — Inês desistiu de fazer a
ligação e começou a acariciar meu braço, em uma tentativa de
amenizar a dor. — Vou começar a procurar um trabalho para sair de
casa e vou te levar embora daqui para morar comigo. Não posso
deixar que ela continue abusando de você dessa forma e também
não aguento mais viver sob o mesmo teto dessa tirana.
— Não é sua responsabilidade, Inês — proferi com doçura.
— Descansa. Tudo vai ficar bem, prometo. — Eu estava encolhida
em posição fetal, então ela arrumou espaço na cama e deitou ao
meu lado, me abraçando ainda mais forte.
32

Gustavo

De: PlusStylistRJ
Se me fosse pedido para escolher o pior momento da minha
vida, com certeza seria esse fim de semana. É inacreditável
como as pessoas conseguem ser gananciosas e cruéis,
chegando ao ponto de passar por cima dos outros. Esse
“outros”, no caso, sou eu, e a pessoa gananciosa e cruel é a
minha chefe. Nossa, eu fui mais do que uma funcionária
exemplar nos últimos quatro anos e nem o mínimode respeito
recebo de volta. É pedir muito?
Não sei se deveria dizer, mas moro na confecção onde
trabalho e esse é um dos tantos motivos que me fazem
precisar desse emprego. Detesto depender de alguém, em
outra situação já teria ido embora sem nem olhar para trás,
mas não posso dar esse passo no escuro. Eu passei a confiar
em ti e gostaria de poder desabafar por completo, mas isso é
tudo o que me permito contar agora.
Dói desistir de um sonho, dói estar tão perto de alcançá-lo e
ver tudo escorrer pelos meus dedos. Mas eu vou superar,
assim como superei todas as outras adversidades até hoje. No
momento, vou me permitir viver essa espécie de “luto” e logo
encontrarei outro objetivo que traga novamente sentido aos
meus dias.
Obrigada por estar aí do outro lado...

De: MeninoDoRio
Minha querida, foi angustiante ler essas palavras de
sofrimento e não poder fazer nada para amenizar a sua dor.
Gostaria de poder ao menos te abraçar.
Eu sei, a última coisa desejada e talvez a pior de ouvir
nessas horas é a que vou dizer agora. Mas tenho certeza de
que, de alguma forma, tudo vai ficar bem. Você se mostrou tão
lutadora e está cheia de conquistas, então erga a cabeça para
poder voltar a enxergar novas oportunidades, como você me
ensinou a fazer.
Posso afirmar, sem sombra de dúvidas: você foi uma das
melhores coisas a me acontecer nos últimos tempos e
adoraria poder retribuir de alguma forma. Se tiver qualquer
coisa, qualquer coisa mesmo, dentro das minhas
possibilidades, não hesite em pedir.
Eu acredito em você!
Sonho acordado com o dia em que lerei no meio dessas
linhas o convite para um encontro. Como eu quero te abraçar,
minha menina….

“Oque será que tinha acontecido com ela?”,era o que não me


saía da cabeça. “Será que tinha algo a ver com o concurso?”
Estava tão preocupado, que precisei me segurar para não fazer
uma besteira gigante. Mas não podia dizer que não havia cogitado
quebrar o sigilo do concurso, conseguir os dados de Alice e ir até
ela. Ainda bem que pensei bem, pois essa atitude, além de não
ajudar em nada, ainda complicaria mais as coisas. Iria prejudicar a
moça no concurso e eu não tinha garantia alguma de que seria bem
recebido — como Gustavo ou como MeninoDoRio.
Resolvi procurar meu pai. Falar de trabalho era um tema que ele
adorava e me ajudaria a mudar um pouco o foco dos meus
pensamentos. Nem precisei fazer uma caça ao tesouro para
encontrá-lo em seu escritório, entretido com o jornal.
— Pai?
— Oi. — Ele depositou o jornal em uma mesinha ao lado da
poltrona. Parecia de ótimo humor. — Sente aqui. — Ele apontou
para uma cadeira próximo a ele e eu aceitei a sugestão.
— Estava pensando e acho que seria uma boa ideia fazer
parcerias com digital influencers. Acredito que tenha um grande
apelo com o público-alvo. Precisamos deixar as pessoas na
expectativa por essa nova coleção.
— Você não sabe como fico orgulhoso por te ver tão empolgado e
dedicado. — Ele só faltou levantar e dar cambalhotas enquanto
soltava fogos.
— Pois é, estou considerando ficar na empresa de forma fixa
depois desse concurso. — Quase me arrependi por ter
compartilhado esses pensamentos quando notei o tamanho da
expectativa no semblante do meu pai. Tinha medo de decepcioná-
lo. — Mas não se anime muito. Não prometo assumir nada grande.
Só quero conhecer melhor o funcionamento e descobrir se consigo
encontrar outras formas de contribuir com boas causas.
— Não tem como não me animar. Só de você demonstrar
interesse já é maravilhoso! E se saiu tão bem com o problema das
entregas. Podemos conversar sobre outra pessoa assumir, se você
dividir as funções que exigem tomadas de decisão e acompanhar
tudo de perto. O que acha?
— Que tal ir com calma? Prometo pensar com carinho na
proposta. — Não consegui esconder a surpresa diante da primeira
vez que meu pai mostrou flexibilidade com relação ao principal
cargo da Vestindo Estilo.
— Claro, meu filho. Não quero apressar as coisas, já percebi que
não adianta. Tudo no seu tempo. — Ele deu uma piscadela e o
encarei com estranheza, mas achei graça da situação.
— Obrigado por entender.
Não pretendia ter essa conversa naquele momento, mas o
assunto acabou surgindo e confesso que senti um certo alívio por
estarmos nos entendendo tão bem, depois de anos em conflito. Nós
dois aprendemos a ouvir o outro e a ceder um pouco, e isso fez toda
a diferença na nossa relação pai e filho.
33

Alice

Ainda faltavam algumas horas para aquele domingo


das trevas terminar — olha que o Halloween nem havia chegado —
e ficar em casa não estava parecendo uma boa ideia. Ainda mais
em um lugar com tantas lembranças das monstruosidades de
Iolanda. Naquele momento, lembrei de ter prometido uma visita à
Marina e ainda não tinha conseguido cumprir. Achei melhor entrar
em contato antes de ir, porque com a sorte dos últimos tempos, era
capaz que a senhora tivesse até mudado de endereço sem deixar
rastros.
— Olá, dona Marina. Como vai?
— Oi, Alice! Estou feliz em receber a sua ligação. Agora todo
mundo só quer mandar mensagens e eu não me sinto muito à
vontade com essas novas tecnologias. — O comentário dela me fez
lembrar de vovó. — Mas ignore as reclamações e me conte o motivo
de ter entrado em contato.
— Eu gostaria de saber se a senhora está livre ainda hoje. Sei
que está em cima da hora, mas gostaria de fazer aquela visita que
prometi.
— Pois venha, será um prazer te receber. As portas sempre
estarão abertas para ti.
Nem me dei o trabalho de trocar a roupa, apenas peguei a bolsa e
verifiquei se estava com documentos e algum dinheiro. No caminho,
passei em frente a uma pequena loja de bairro, que vendia bolos
caseiros. Eles pareciam tão apetitosos, que acabei comprando um.
Assim, pelo menos não chegaria de mãos vazias e testaria se
açúcar ajuda mesmo quando estamos tristes, como dizem por aí.
Ou será que inventaram isso só para poderem comer sem culpa?
Na dúvida, a gente come.
— Seja bem-vinda! — dona Marina abriu a porta e me deu um
abraço caloroso. — O que temos aqui? Bolo cremoso de milho. —
Leu na etiqueta da embalagem. — Parece uma delícia!Entra, entra,
acabei de passar um café e fiz suco também. Não sabia do que
você gostava.
— Não precisava se preocupar. Tendo água, já estou feliz.
— Ah, querida, não é sempre que essa velha senhora recebe
visitas. Quero colocar o meu jogo de porcelana em uso depois de
tanto tempo.
— Justo. A mesa está linda, até me sinto importante — tentei
brincar, apesar do meu estado de espírito.
— E você é. Nunca duvide disso.
Sentamos para fazer um lanche e, realmente, o bolo estava
delicioso. Por um instante, pensei que deveria ter prestado mais
atenção ao nome da loja, ter guardado um cartão, rede social ou
algo do tipo. Tentaria lembrar de olhar quando fizesse o caminho de
volta. Talvez até comprasse outro para levar para casa.
Dona Marina foi contando os últimos acontecimentos de sua vida,
por insistência minha, que estava tentando evitar fazer o mesmo.
Obviamente não deu certo, pois quando a senhorinha terminou seu
relato, quis saber tudo desde o dia do evento até aquele momento.
Então, eu contei. Comecei pelos detalhes principais da festa, o
encontro inesperado com Gustavo e toda a química que rolou entre
nós, até o momento em que nos perdemos um do outro. E, claro, eu
não podia deixar de falar do meu MeninoDoRio.
— Achei que o tempo ia me ajudar, mas continuo sem saber o
que fazer. Me sinto fortemente atraída pelo Gustavo, mas tenho
sentimentos pelo MeninoDoRio. Ele tem sido tão importante… —
Tomei um longo gole do café ao me lembrar das cartas que
trocávamos. — Poder contar com ele no dia a dia e confiar em
alguém para me abrir do jeito que fazemos é algo especial. E,
apesar de ter dito ao meu correspondente que preferia manter tudo
no virtual, sinto que poderia encontrá-lo. Mas e se a magia se
quebrar quando eu o conhecer?
— Eu talvez conseguiria te dar conselhos sobre a vida, carreira ou
sobre o próximo livro a ser lido, mas coisas que envolvem seres
humanos não são muito o meu forte. Acho que não posso te ajudar
nisso, a não ser dizendo para escutar seu coração.
— Tentarei lembrar disso. — Sorri para ela. — Mas, no momento,
não é isso o que mais me aflige.
Soltei um longo suspiro ao lembrar da última maldade de Iolanda
e depois desembestei a falar tudo de uma vez, quase sem respirar
entre as palavras. Pontos e vírgulas deixaram de existir, devo tê-los
engolido junto com o café.
— Mas que vaca filha da mãe! — Fiquei em choque após ouvir as
palavras bruscas de dona Marina. — Me desculpe, mas não tinha
como falar nada mais leve do que isso. Na verdade, nem usei as
palavras que gostaria por consideração. Você não tem culpa de
nada e não precisa ouvir isso.
— Pode acreditar, também a xinguei mentalmente de nomes que
nem devem existir. — Só mesmo dona Marina para me fazer rir
dessa situação.
— E com razão! Eu teria dado uns três bofetões nessa senhora
para ver se ela aprende. Sou totalmente contra a violência, mas não
sei se teria conseguido me segurar.
— Eu gostaria de poder peitá-la, dizendo para aprender a
desenhar e que eu não iria abrir mão de nada. Só que não teria para
onde ir nem como terminar de pagar a faculdade. Mas juro: quando
pegar o diploma, vou sair daquele emprego e daquele lugar, mesmo
precisando voltar a morar na minha cidade natal.
— Olha para mim. — O tom de dona Marina mudou de brincalhão
para sério. — Não precisa se preocupar. Só continue sendo você e
agindo de acordo com a sua consciência. Confie que, no tempo
certo, tudo vai se resolver.
— Nossa, falando assim, não tem nem como questionar. —
Apesar de todas as coisas ruins, eu me sentia grata pelas boas
pessoas que a vida tinha colocado no meu caminho.
— Acho bom!
Continuamos a refeição enquanto conversávamos sobre
amenidades. Contei toda a minha vivência com o abrigo, os animais
e especialmente sobre o queridinho Nick. Dona Marina, por sua vez,
relembrou dos velhos tempos, quando costurava itens para doação
e prontamente se voluntariou para fazer algumas peças. Também
confessou que, após ouvir os relatos, iria parar de fazer
encomendas com a IolandaConfecções. Não era uma quantidade
significativa a ponto de fazê-la cortar despesas, mas seria seu
protesto silencioso por todo o ocorrido.
— Obrigada por tudo mais uma vez. Só de passar esse tempo
com a senhora já me sinto bem melhor. — Olhei com ternura para
dona Marina.
— Bom ouvir isso. Lembre-se: amanhã é um novo dia. O que
precisa vai encontrar o caminho até você, é só acreditar. — Achei
ter visto dona Marina piscando, mas não tinha certeza.
Quando deixei a casa dela, com uma sacola contendo as coisas
que havia deixado lá, estava me sentindo bem mais leve e
pensando sobre como dar um jeito de conseguir passar mais vezes
para uma visita. Quando cheguei em casa, cai na cama e peguei o
celular. Precisava mandar uma carta antes de pegar no sono.

De: PlusStylistRJ
Obrigada pelas suas palavras de incentivo. É muito bom ter
com quem contar em todos os momentos. Você fala dos meus
conselhos, mas os seus têm sido acalentadores e a lanterna
em um túnel escuro. Sou grata por estar aí.
Fui visitar uma amiga hoje e ela me disse que as coisas
encontram o caminho até nós, se acreditarmos e deixarmos o
universo trabalhar. Estou tentando manter isso em mente, em
especial a parte de acreditar.
Peço desculpas, eu andei tão focada nos meus problemas e
acabei nem perguntando como estão as coisas por aí.
Melhores que por aqui, eu espero. Também, se tiver pior, já
seria algo próximo do fim dos tempos. Ok, eu estou
exagerando, mas você entendeu.
Também te quero muito bem. Você tem se tornado essencial
para a minha vida... Mais do que gosto de admitir.

De: MeninoDoRio
Depois de ler os seus relatos, eu ficaria até com vergonha de
reclamar sobre algo.
Por aqui está tudo sob controle. Eu ainda não sei muito bem
o que me aguarda, mas estou tentando focar nos desafios
atuais enquanto começo a considerar o cargo de CEO no
futuro.
Se isso fosse um concurso de Miss, meu pai estaria correndo
atrás de mim com a faixa e a coroa.
34

Gustavo

Eu realmente achei que o ápice do concurso fosse o


grande evento, mas me enganei. A revelação se mostrou bem mais
desafiadora. As pessoas estavam agitadas e algumas até
apreensivas, enquanto eu me enquadrava nos dois grupos. Não
podia contabilizar que foi um sucesso até ter terminado — e eu não
via a hora de acabar, principalmente por causa de
Alice/PlusStylistRJ.
Quase nem dormi de ansiedade por saber que, naquele dia, tudo
seria revelado. Eu finalmente poderia conversar com Alice e dizer
toda a verdade. Ainda não tinha um plano de como fazer isso, mas
torcia para ela ganhar o concurso e ficar tão feliz a ponto de me
perdoar pela omissão.
Cheguei bem mais cedo do que o necessário à empresa, antes
mesmo do meu pai, mas como não aguentei ficar na sala, resolvi
andar pelos corredores e conhecer algumas pessoas. Qualquer
coisa que tirasse o foco do concurso e fizesse a hora passar mais
rápido.
Até café eu fiz. Ficou horrível, diga-se de passagem, mas ao
menos tentei. Como a intenção foi boa, ninguém teve coragem de
me dizer a verdade, mas imagino que deve ter sido derramado na
pia assim que virei as costas. Pobre dos seres humanos presentes
no momento, pois beberam na minha frente e fingiram que estava
bom. Parecia que ninguém estava a fim de chatear o filho do chefe e
futuro dono da empresa.
— Senhor Gustavo, estava mesmo lhe procurando. — Leandro
apareceu do nada.
— Só Gustavo, por favor. Já disse, não precisa de formalidades
comigo. — Dei dois tapinhas nas costas do homem com quem
dividia a sala nos últimos meses.
— É verdade, força do hábito. — O rapaz coçou a cabeça.
— Mas diga: por que estava me procurando?
— Já estamos com o resultado. O senhor Rui achou uma boa
ideia nos reunirmos para ver o vencedor antes de ser anunciado
publicamente.
— Sim, claro. Vamos lá. — Até tentei agir normalmente, como se
fosse algo casual, mas por dentro a ansiedade me fazia querer
correr até a sala de reuniões.
Já que eu não podia correr sem parecer estranho, andei com mais
pressa que o normal.
Quando percebi que uma das concorrentes era a minha
correspondente, passei a me interessar ainda mais pelo concurso,
na expectativa de ela ser uma das finalistas, quem sabe a
vencedora. Assim, teria a chance de vê-la de novo.
Continuar as conversas por carta, sem revelar a verdade, foi
muito difícil, ainda mais sabendo que ela era linda — por dentro e
por fora. Aquele cheiro de flores e os lábios que eu quase pude
sentir me deixavam louco. Ao mesmo tempo, tinha medo de que
desaparecesse de vez ao saber quem eu era. Ela foi muito enfática
sobre não revelarmos nossa identidade.
“E se eu não contar?”, cogitei. Não, não podia fazer isso,
desonestidade nunca era uma boa forma de conquistar as coisas.
Confiança, uma vez quebrada, é difícil, para não dizer impossível,
de recuperar.
Ao entrar na sala, observei que já estavam todos reunidos,
incluindo os jurados, porque só restava vago um lugar na mesa: o
meu. Leandro tinha uma cadeira separada, perto do equipamento de
projeção.
— Podemos começar — falei enquanto me sentava. — Após a
divulgação do resultado ao público, temos que nos preparar para
todo o marketing envolvendo a apresentação do vencedor ou
vencedora. As pessoas precisam se empolgar e ficar esperando
ansiosas pela revelação dos modelos. Isso vai aumentar as vendas
no futuro.
— Parece que alguém ficou mesmo animado com o concurso. —
Meu pai nem tentava disfarçar a empolgação.
— Antes de compartilhar o resultado, gostaríamos de informar
sobre uma das candidatas ter desistido — um dos jurados se
manifestou. — Esse fato foi muito estranho, e acabou nos deixando
apenas com dois finalistas, o que de certa forma facilitou o nosso
trabalho.
— Desistiu? Mas quem perderia essa oportunidade com tanta
chance de vencer? — Leandro não conseguiu se segurar.
Meu coração apertou quando me lembrei daquela carta tão
dolorosa. “Não pode ser!”
— Vocês podem ter acesso a essa informação depois que
revelarmos os resultados. Optamos por não comentar nada antes,
pois o regulamento prevê desclassificação automática pelo não
envio do croqui no prazo. Então, não faria diferença para a
candidata e nem teria tempo hábil de chamar outro concorrente.
— Ok, então vamos lá! — incentivei.
A informação recente deixou todos, exceto os jurados, ainda mais
curiosos com o resultado.
— Sim, podemos prosseguir — meu pai confirmou.
Leandro já estava com tudo preparado e acabou sendo o primeiro
a saber do resultado depois dos juízes. Ele apertou um botão e, de
repente, estava na tela o croqui do acessório pet, a foto de rosto e
uma legenda contendo os dados da vencedora.
A minha primeira reação foi ficar desapontado de não ver a foto
da mulher com quem eu sonhava — dormindo e acordado. Só que,
ao olhar o desenho, foi necessário reconhecer que a tal Ingrid fez
um bom trabalho e merecia ser a vencedora. Demorando um pouco
mais meu olhar nos detalhes, algo me chamou atenção.
— Espera, vocês têm certeza de que não confundiram os croquis
dos participantes?
— Como assim? — O jurado da ponta estranhou a pergunta. —
Não tinha nem como.
— Esse desenho não pode ser dela! — declarei, um pouco
exaltado.
— Gustavo, que história é essa? — Meu pai ficou preocupado
com a minha reação exagerada.
— Espera um momento, vou buscar algo que guardei na minha
sala.
Saí de lá antes que alguém pudesse falar mais alguma coisa. Por
sorte, havia deixado o croqui de Alice em uma gaveta, depois de
carregá-lo para cima e para baixo durante dias. Por isso, eu
reconheceria os traços e, principalmente, aquela tulipa em qualquer
desenho. Com o papel em mãos, voltei correndo para a sala de
reuniões.
— No dia da primeira etapa do concurso, eu acabei conhecendo
uma das candidatas a finalista — comecei a explicação. — E,
quando acabou a luz, ela havia desaparecido e seu croqui ficou
comigo. Como nós não temos acesso aos participantes, eu guardei.
— Onde você está querendo chegar? — meu pai perguntou o que
todos os presentes queriam saber.
Aposto que ele lembrou do que aconteceu com a minha última
namorada e por isso me lançou um olhar que dizia “De novo não!”
— Ela me confessou que sempre usava um detalhe em seus
desenhos, tipo uma marca registrada nas suas peças. E, se vocês
olharem esse croqui, provavelmente vão chegar à mesma conclusão
que eu. — Entreguei o papel aos juízes.
O croqui passou de mão em mão e, depois, os três jurados se
reuniram em volta do desenho, conferindo com o que estava
estampado no telão.
— Ah, agora as coisas começaram a fazer sentido. PlusStylistRJ
foi justamente a finalista desistente.
— Mas por que ela faria isso? — pensei em voz alta.
— Alguém sabe me dizer de onde elas são? — Meu pai resolveu
tomar a frente da situação.
— As duas são do Rio e, pelo endereço, moram perto uma da
outra — Leandro esclareceu.
Agora que já tínhamos acesso aos dados, ele rapidamente
acessou o arquivo e fez algumas pesquisas que pudessem
contribuir.
— Melhor assim, não precisaremos fazer vídeo conferência —
meu pai comentou, cruzando as mãos sobre a mesa.
— Leandro, por favor, pegue os dados das duas, entre em contato
com elas e peça que venham com urgência. — Voltei a coordenar
as ações necessárias. — Ainda hoje, às 14h. Precisamos resolver
isso antes de divulgar o resultado. Tem algo muito estranho nessa
história.
— Agora mesmo — ele respondeu.
Enquanto Leandro procurava as informações, fiquei andando de
um lado para o outro na sala. Nervoso. Ansioso. Preocupado com
Alice e o teor das suas últimas cartas. É claro que uma coisa tinha a
ver com a outra, era a única explicação!
O que será que aconteceu com ela? Lembro que mencionou sua
chefe e que a mulher a estava infernizando. Podia ser isso. Mas
como?
“Ah, minha doce Alice… o Vu dar um jeito de te ajudar, mesmo que
você não tenha pedido a minha ajuda. Não vou deixar seu sonho
morrer.”
— Oi — alguém falou sem muito interesse, e só então percebi que
Leandro já havia feito a ligação, que estava no viva-voz.
Isso fez com que todos ficassem em silêncio.
— Senhorita Ingrid?
— É ela — a mulher do outro lado da linha confirmou. — Quem
está falando?
— Estou ligando em nome da Vestindo Estilo e gostaríamos de
falar sobre o resultado do concurso. — Leandro incluiu mais
algumas informações, tentando não demonstrar nossa suspeita.
— Claro, estarei aí. — Dessa vez, seu tom estava mais animado.
Mas o rosto de todas as pessoas na sala não demonstrava
qualquer sinal de felicidade.
35

Alice

O dia havia começado bem. Sem precisar ir à faculdade,


aproveitei o tempo livre para fazer algumas tarefas pendentes antes
de começar o turno na confecção. Estava terminando de cortar o
molde de uma das peças quando o telefone tocou e atendi sem nem
olhar o visor.
— Alice falando.
— Senhorita Alice, o meu nome é Leandro e eu trabalho na
Vestindo Estilo. Precisamos da sua presença hoje, às 14h, para
uma reunião.
— Reunião? Mas eu não estou mais participando do concurso.
— A sua presença é indispensável para alguns esclarecimentos.
— Droga! — Continuei trabalhando enquanto falava ao telefone e
acabei cortando a peça de forma errada. — Desculpe, não foi com
você. Às 14h, né? Estarei aí.
— Ótimo, procure por mim quando chegar. Enviarei o endereço
por mensagem, caso não saiba onde fica. Até breve.
Se tivesse mais alguém ali, poderia atestar a minha palidez diante
da convocação.
“Descobrirama verdade sobre os croquis, só pode! Será que
preciso chamar um advogado?”
Eu nem podia pagar por um e onde o acharia a tempo? Mas
chegar lá com um advogado a tiracolo seria uma confissão de culpa.
Melhor ir sozinha e ouvir o que eles tinham a dizer. Talvez negar até
o último momento funcionaria. Ou, quem sabe, estavam apenas
querendo esclarecimentos do motivo da desistência.
Não, eles não se dariam ao trabalho por isso…
Por três segundos, cogitei fugir, mas logo lembrei que eles tinham
todos os meus dados e desisti da ideia. Teria que encarar o
problema.
36

Gustavo

Eu estava ansioso demais pelo momento em que a veria de


novo. Mal consegui engolir a comida durante o almoço e só queria
que desse logo o horário da reunião mais importante da minha vida
até aquele momento.
— Por que tinha que acontecer isso justo na primeira ação da
empresa que eu organizo? — comentei com Leandro, que estava na
sala de reuniões comigo enquanto não dava o horário combinado
para todos estarem presentes.
— Não é incomum problemas surgirem, principalmente quando
está fora do nosso controle. Você não ouve muito disso por aí,
porque nunca esteve nos bastidores — ele tentou me tranquilizar.
— Faz sentido.
A recepcionista ligou, avisando que nos aguardavam no saguão
principal. Leandro já estava saindo pela porta segundos depois de
desligar. Qual delas será que era? Achei que estava tendo um treco.
Eu não tive muito tempo para criar minha teoria, pois os outros
membros da reunião chegaram e ocuparam seus lugares.
— Senhorita Ingrid, pode ficar à vontade, os responsáveis pelo
concurso já estão aguardando na sala. — Ouvi a voz de Leandro.
— Obrigada.
Leandro abriu a porta para que ela pudesse entrar. Ao lado dela,
uma senhora alta, que usava um vestido vermelho escuro, entrou
também. Só podia imaginar que aquela era a mãe de Ingrid. Algo
em sua postura me incomodou de imediato.
— Boa tarde, eu sou Iolanda, dona da Iolanda Confecções, e é
um prazer conhecê-los. Essa menina é mesmo um talento, vocês
não vão se arrepender. — Ela segurou nos ombros da filha,
exibindo-a como um troféu.
— Sentem-se, por favor, estamos esperando mais alguém antes
de começar o assunto que as trouxe até aqui — meu pai ordenou.
E lá estava Leandro, fazendo aquele trajeto pela segunda vez em
pouco tempo. Mal deixou a tal Ingrid na porta da sala e foi avisado
que Alice o aguardava.
O dia já estava atípicocom todo o rebuliço em torno do resultado,
só não imaginava essa reviravolta aos quarenta e cinco do segundo
tempo.
— Estou atrasada? — Ouvi a voz suave, que vinha do lado de
fora. — Me desculpe.
Leandro respondeu alguma coisa, mas eu estava ansioso demais
para prestar atenção em tudo que não fosse ela. Minhas mãos
tremiam por saber que a veria a qualquer segundo, e tratei de
escondê-las embaixo da mesa para não passar vergonha.
Ninguém poderia saber da nossa relação — por mais confusa e
platônica que fosse.
Assim que a porta foi aberta, todos os olhares se voltaram para
Alice. Especialmente os meus. Lá estava ela… Tão linda que mal
consegui respirar. Meu coração batia acelerado dentro do peito,
gritando em euforia por estar tão perto da mulher que vinha
mudando a minha vida desde a primeira carta que trocamos.
Os cabelos claros estavam presos em um rabo de cavalo alto,
destacando seu belo rosto — e tudo o que eu queria fazer naquele
momento era deixar que meus dedos acariciassem a pele macia.
— Boa tarde — ela cumprimentou a todos e se dirigiu para a
cadeira indicada.
Seus olhos preocupados varreram a sala de reuniões e, quando
pararam em mim, pude ver a pergunta silenciosa que fazia. “Eunão
te conheço de algum lugar?”
Então, Alice ruborizou. Acho que foi naquele instante que percebi
o quanto era louco por ela. Daria tudo para saber no que estava
pensando, já que, na minha cabeça, imagens de nós dois juntos era
o que ganhava destaque. Foi impossível conter o sorriso.
Finalmente estávamos na mesma sala.
Mesmo sem toda a produção da festa, Alice parecia ainda mais
linda do que eu conseguia lembrar. Minha vontade era de pedir a
todos que saíssem para que eu tivesse um momento a sós com ela,
nem que fosse para apenas conversar.
Mas o que eu diria? Que era o MeninoDoRio?
— O que ela está fazendo aqui? — A tal Iolanda quebrou a magia
do momento com sua voz esganiçada.
37

Alice


O que ele está fazendo aqui?”
Distraída por Gustavo e pelas lembranças do sonho que tive com
ele, eu ainda não tinha percebido a presença da minha chefe e de
Ingrid na sala. Fiquei feliz por estar sentada.
— Agora que estão todos aqui, podemos começar. — O homem
que parecia uma versão mais velha de Gustavo se pronunciou —
Gustavo?
Estava dividida entre manter meus olhos presos no homem que
fez meu coração bater mais forte na noite da festa ou então prestar
atenção no teor da reunião. Respirei fundo algumas vezes e decidi
que a segunda opção era mais segura.
— Vocês foram chamadas porque precisamos de alguns
esclarecimentos. Leandro, pode colocar a imagem, por gentileza?
Quando vi surgir na tela o croqui do vestido assinado com o meu
pseudônimo, meu coração pulou uma batida. Ao lado dele, estava a
peça considerada vencedora da terceira etapa e do concurso. “Eles
descobriram.”Iolanda e Ingrid pareciam não entender o que estava
acontecendo e mantiveram a pose.
— Ingrid, você afirma que esse croqui com o acessório pet foi
realmente feito por você?
— Mas é claro que ela afirma — Iolanda se meteu. — Você está
duvidando da minha filha? — Sua indignação era digna de um
Oscar.
— Acalme-se, senhora. Foi apenas uma pergunta. — Gustavo
tentou ser educado, mas era nítida a sua irritação. — Aconteceu o
seguinte: identificamos algo em comum nos dois desenhos. Esse
símbolo, uma espécie de assinatura, se eu não estou enganado. —
Ele apontou o laser para a tulipa. — Nós temos uma teoria, já que o
seu croqui da primeira etapa não tinha isso, mas estamos dando a
vocês a oportunidade de falar.
— Só pode ser uma coincidência. Elas estudam na mesma turma,
devem ter aprendido algo do tipo em uma aula e resolveram usar —
Iolanda não conseguia ficar calada e, mais uma vez, se meteu onde
não era chamada.
— Senhora, só vou pedir uma vez: a partir de agora, não se
manifeste mais. Nem deveria estar aqui, para início de conversa. —
A versão mais velha de Gustavo perdeu paciência. — Queremos
ouvir as candidatas. Alice, tem algo a dizer? Por que desistiu?
Revezei o olhar entre o interlocutor e minha chefe. Ela me
encarava de uma forma assustadora.
“Nãoposso correr o risco. Vou perder tudo de uma vez. Preciso
garantir meu salário, moradia e a ajuda para os bichinhos.”
— Não… — a voz saiu quase como um sussurro. Usar poucas
palavras era a melhor saída. Se começasse a explicar,
provavelmente teria me embolado.
— Os desenhos são da Alice — Ingrid se manifestou, para minha
surpresa.
— O que você pensa que está fazendo? — Iolanda tentou conter
a filha, porém era tarde demais.
— Chega, mãe, não aguento mais! Eu sou péssima desenhando.
Até consigo elaborar bem outras coisas relacionadas à moda. Eu sei
o que gosto, só não consegui pensar em uma forma concreta de
tornar real. Desde pequena, sempre amei coisas relacionadas à
moda, o que deixou a minha mãe cheia de orgulho, óbvio. Só que,
ao contrário do que ela quer, eu sonho em ser modelo. Amo montar
looks, mas com peças criadas por outras pessoas. Faço moldes e
até costuro. Agora, criar modelos bons o suficiente para uma
coleção? Eu nunca conseguiria fazer algo assim. E nem quero… —
Como um lobo enjaulado que via a chance de liberdade pela
primeira vez, Ingrid nem sequer mediu as palavras.
— Cale a boca! — Iolanda estava desesperada.
Eu também. Ao mesmo tempo, estava sem reação, apenas
olhando a garota desabafar, quase aos gritos, enquanto sua mãe
tentava impedi-la de destruir seus planos.
— Não! Eu cansei de fazer suas vontades. Alice me ajuda
fazendo muito além de consertar os meus desenhos desde o início
da faculdade. Ela praticamente me carrega nas costas nos trabalhos
em grupo. — Ingrid desviou o olhar de Iolanda e se virou para
Gustavo, que tinha uma expressão de pura raiva no rosto. — Minha
mãe não achou nada demais cobrar esse favorzinho, já que deu
emprego e lugar para Alice morar. Ela melhorou meu desenho para
a primeira fase — apontou o dedo na minha direção —, e esse
segundo é totalmente dela. Minha mãe a obrigou a entregá-lo e
desistir de participar. Eu nem queria fazer isso! — Após ter
começado, Ingrid foi vomitando uma informação atrás da outra e
deixou todos os presentes chocados, inclusive eu, pois essa era a
última coisa que imaginaria vê-la fazendo.
Fui tomada por um misto de alívio pela verdade ser revelada e de
apreensão pelo que viria a seguir, tanto de Iolanda quanto da
Vestindo Estilo.
— Isso é verdade? — Gustavo questionou.
Assenti, envergonhada. Eu sabia que podia me limitar a um “sim”
como resposta, mas resolvi que estava na hora de deixar minha
história ser ouvida. Por isso, assim como Ingrid, não contive minhas
palavras:
— Desde que comecei a trabalhar para ela, Iolanda aproveita que
alugo um quartinho na sua confecção e me explora de todas as
formas possíveis. Algumas vezes sob ameaças… Eu aguentei,
porque preciso do dinheiro, de lugar para ficar e por ter um sonho.
Falta tão pouco para terminar a faculdade… — Enxuguei uma
lágrima solitária e teimosa que caiu do meu olho. — Eu tinha
acabado o desenho no instante em que ela entrou no meu quarto,
só faltava assinar. Se ela tivesse chegado lá um pouco antes, não
teria a minha marca e vocês nunca saberiam. Mas eu me pergunto:
como notaram esse detalhe?
— Você me contou. — Gustavo colocou o papel com meu
desenho sobre a mesa.
— Nossa, achei que tinha conhecido um convidado e não um
funcionário da Vestindo Estilo.
Apesar de toda aquela situação ser muito tensa, era a presença
de Gustavo que mais me desnorteava. Eu ficava pensando que
nunca mais o veria e ali estava ele, em carne, osso e pura sedução.
E o pior de tudo era que ele estava ouvindo as minhas desgraças.
Ainda bem que eu estava sentada, porque não teria forças para me
manter de pé.
“Foco, Alice!”
— Não posso acreditar que tiveram a coragem de roubar o
trabalho de alguém. Ainda mais depois de saber o quanto ela ajudou
vocês. Eu, Rui Almeida, não compactuo com esse tipo de
comportamento. Não preciso, mas vou dizer com muito gosto: está
desclassificada, Ingrid. — Ele fez uma pausa e ninguém ousou
emitir sons. — Além disso, entrarei em contato com outros
empresários do ramo para notificá-los de suas práticas, dona
Iolanda. Se eu fosse a senhora, começaria a pensar em outra forma
de ganhar dinheiro, honestamente de preferência. Ao receberem
essa informação, acho improvável alguém ainda fazer negócios com
a sua empresa.
— Não façam isso, por favor! — Sem conseguir me controlar, me
vi falando em um rompante: — Os funcionários são honestos e não
têm culpa. Não é justo deixá-los desamparados da noite para o dia.
— Não se preocupe, vou dar um jeito de recolocar o pessoal em
empresas parceiras. Ninguém ficará desamparado, dou minha
palavra — senhor Rui disse em um tom firme, que não dava espaço
para dúvidas.
A tensão ainda percorria meu corpo quando Iolanda explodiu:
— Garota insolente. Você vai me pagar! Quero você fora do meu
estabelecimento ainda hoje, nem que eu mesma jogue todas as
suas coisas na rua!
— Leandro, consiga uma reserva para a moça em um hotel e, por
favor, auxilie na busca por um lugar para ela morar. Podemos
adiantar parte do pagamento pela coleção também. Veja como
consegue ajudá-la. Confio no seu discernimento — senhor Rui
decretou.
— Como assim? Que pagamento? — Eu não estava entendo
mais nada.
— Ainda não percebeu? Seu croqui foi o vencedor. Parabéns,
você é a mais nova estilista da Vestindo Estilo! — foi Gustavo quem
disse, sem nem tentar esconder a felicidade por trás das palavras.
Eu pretendia dizer algo, mas estava em choque. As lágrimas,
dessa vez de alegria, desciam pelo meu rosto sem qualquer
controle.
O sonho estava se tornando real.
— Não chore, menina. Com um talento desses, eles seriam
idiotas, com o perdão da palavra, se perdessem essa oportunidade.
— A mulher sentada ao meu lado, que imaginei ser um dos jurados,
colocou a mão no meu ombro. — Os outros candidatos eram muito
bons, mas tem um toque especial nos seus traços e nas roupas
criadas por você que encantou a todos nós. A decisão foi unânime.
— Obrigada, prometo dar o meu melhor! — Estava quase pedindo
que alguém me beliscasse para ter certeza de que não estava
vivendo um sonho.
Enquanto todos me parabenizavam, Iolanda continuava
reclamando, dizendo que era um absurdo e que tudo aquilo não
passava de um complô contra ela. Porém, foi ignorada. Pelo menos
até três seguranças enormes entrarem na sala e a removerem do
prédio. Ingrid foi atrás, parecendo bastante aliviada, e me deu uma
piscadela antes de sair.
Gustavo foi o último a falar comigo, mas não teve tempo de dizer
qualquer outra coisa a não ser um tímido “parabéns”, acompanhado
de um sorriso, antes que um homem o chamasse para resolver uma
questão.
Gostaria muito de poder falar com ele, apesar de não ter ideia do
que eu diria. Mesmo assim, tive que me contentar com um aceno
enquanto ele desaparecia pelos corredores da Vestindo Estilo.
Quando fiquei sozinha na sala e pude digerir um pouco do que
tinha acabado de acontecer, meus pensamentos me levaram a uma
certa fada madrinha senhora. Parece que a profecia feita por dona
Marina tinha começado a se cumprir.
38

Gustavo

De: PlusStylistRJ
Você acredita em magia?
Pois eu não consigo usar outra palavra para explicar o que
me aconteceu hoje. Você sabe como eu andava
desacreditada, mas minha história teve uma reviravolta
impressionante.
Por enquanto, não posso dar muitos detalhes, mas posso te
dizer que eu consegui! Vou realizar meu sonho e me livrar da
minha chefe em uma tacada só.
Eu podia ter esperado um pouco mais para dar a notícia
completa, mas você foi a primeira pessoa com quem eu quis
compartilhar minha felicidade.

Não conseguia definir o que senti após ver a carta de Alice. Eu


precisava resolver aquela situação, e rápido, mas sem estragar
tudo. Revelar a verdade era um risco — não à minha vida, mas à
minha felicidade. Como ela reagiria? Será que nunca mais falaria
comigo ou será que entenderia que omiti minha identidade, e nosso
envolvimento, para não prejudicar seu desempenho no concurso?
Li e reli as palavras da minha correspondente, ao mesmo tempo
que lembrava de cada uma de suas reações durante a reunião. O
medo em seu rosto quando viu Iolanda, o desespero ao ouvir a
suspeita dos jurados, a surpresa quando Ingrid revelou a verdade e,
principalmente, a emoção ao descobrir que era a grande vencedora
do concurso.
Alice era tão linda, tão inocente, tão boa… E a última coisa que eu
queria era tirar sua alegria com a revelação de que eu era o
MeninoDoRio. Durante horas, não consegui achar uma boa forma
de responder, e foi por isso que decidi escrever de volta apenas no
dia seguinte, depois de uma boa noite de sono.

De: MeninoDoRio
Olá, querida!
Parece que os bons ventos sopraram por aí. Então, se você
tiver de bom humor, consideraria me encontrar pessoalmente?
Caso não esteja, apenas ignore a minha pergunta anterior e
finja que nada aconteceu. ;P
Falando sério, eu quero muito te ver, olhar nos seus olhos e
te abraçar. Além disso, tem uma coisa que preciso muito te
contar e não pode ser por carta. É algo importante. Eu não te
pediria esse encontro se não fosse.
Para melhorar um pouco as coisas, assim espero, fica a seu
critério o dia, local e horário.
Espero ansioso pela sua resposta.

Passei a manhã desconcentrado, apenas esperando que ela se


manifestasse. A dúvida se ela aceitaria meu convite ou não acabou
me consumindo, a ponto de meus amigos reclamarem da minha
falta de atenção durante o treino de esgrima. Estava voltando para
casa quando meu celular apitou com a notificação.
“É ela!”
A minha vontade foi de parar o carro no primeiro acostamento,
mas faltava pouco para chegar em casa. Então, assim que cruzei o
portão da garagem, estacionei de qualquer jeito e abri a carta ali
mesmo. Meu coração batia acelerado e eu estava suando frio.

De: PlusStylistRJ
Olá, querido!
Achei ter lido em uma das cartas algo do tipo “Nãovou mais
te pressionar quanto a isso.”. :P
Pensei que tivesse esquecido. Era um campo de
possibilidades, eu nunca prometi nada.
Mas posso confessar uma coisa? Eu tenho nutrido uma
vontade de te conhecer e estava criando coragem. Passei os
últimos tempos dividida entre “Melhordeixar as coisas como
estão. Em time que está ganhando não se mexe”,e “M elhor
me jogar de cabeça e arriscar”.Algumas pessoas afirmam ser
melhor fazer algo e se arrepender do que ficar eternamente se
perguntando “E se?”.
Você tem demonstrado merecer um voto de confiança depois
de todos esses meses. E, sim, você estava certo: parece que
o vento está favorável no momento e, por eu estar de ótimo
humor, vou aceitar sua proposta.
Estranhei o tom da sua carta. Devo me preocupar?
Me encontre no Café Delícia hoje, às 18h.
Te espero lá!
P.S.: Ah, como sou tola, não sabemos como o outro é.
Estarei vestindo calça e uma blusa com estampa de gatinhos.
Não deve ser difícil de me achar.
P.P.S.:O local não é tão perto, eu sei, mas eu estava mesmo
querendo uma desculpa para ir até lá e comer um dos cookies
deliciosos do cardápio.

Senti um frio na barriga quando li aquelas palavras. Eu não


precisava ter dons de adivinhação para saber que ninguém gosta de
mentiras ou de ser enganado, mesmo sem querer e por um bom
motivo. Esperava ao menos ser ouvido e, com sorte, perdoado em
algum momento. Mas a verdade precisava ser dita.
“Espero que ela entenda.”
Foi assim, muito apreensivo, que me encaminhei para o tal Café
Delícia. Eu não precisava de nenhuma pista para achá-la, tinha
gravado em minha memória todos os detalhes capturados pelos
meus olhos nas duas vezes que nos encontramos.
O momento que eu mais esperei nas últimas semanas tinha
chegado e foi preciso me controlar para não acelerar o carro além
da velocidade permitida. Minhas mãos estavam tão frias que
precisei desligar o ar-condicionado, e não era para menos: eu
estava prestes a conversar com ela, olhos nos olhos, sem uma tela
nos separando e Alice iria poder me chamar pelo nome. O local
combinado não era tão perto e o meu nervosismo só foi
aumentando durante o trajeto. Mas, por ela, eu atravessaria o país
de carro se fosse preciso.
Ao chegar à cafeteria, fui até o balcão.
— Bom tarde, qual é o seu pedido?
— Uma dose de coragem, por favor — acabei dizendo em voz
alta.
— Infelizmente, ainda não temos esse item no cardápio, senhor.
— Alessandra, que tinha o nome evidente em um crachá, parecia
estar se divertindo com a situação, mas manteve a postura mais
séria que conseguiu. — Posso oferecer o nosso cappuccino com
rum? Talvez ajude.
— Ótimo. Quero o grande, com dose dupla de rum.
— Como desejar.
Só quando peguei meu pedido e dei um longo gole foi que a
coragem de escanear o local à procura de Alice surgiu. “Essa
bebida é uma delícia!”, pensei assim que provei. Realmente, não foi
difícil encontrá-la, e aquela covinha na bochecha direita, que
aparecia enquanto sorria distraída, a deixava ainda mais
encantadora — se isso era possível. Tomei mais um longo gole e
decidi me aproximar.
— Oi — falei, tímido. Não sabia como começar.
— Ah, oi! — O sorriso no rosto de Alice aumentou ainda mais,
parecendo empolgada em me ver, e quase perdi a coragem de falar
a verdade. — Que coincidência te encontrar. Estou esperando
alguém — ela abaixou a cabeça enquanto colocava o cabelo atrás
da orelha, parecendo envergonhada por admitir isso —, mas não
vejo problema se quiser ficar por aqui, enquanto ele não chega. —
Alice olhou na direção da porta e conferiu o relógio. — Está
atrasado, por sinal.
Queria rir de nervoso. Eu jurava que ela iria ligar os pontos assim
que me visse e eu não precisaria dizer com todas as letras que
menti. Mas, pensando bem, ela não tinha motivos para me associar
ao MeninoDoRio, além do fato de eu estar no mesmo lugar que ele
deveria encontrá-la. Puxei a cadeira e me sentei, tentando
processar as informações.
“Eagora? Eu poderia tentar fazer amizade e conquistá-la sem
contar nada. Ela nunca saberia. Por outro lado, o que eu faria com o
MeninoDoRio? Pararia de responder do nada? Coragem, homem!”
Enquanto estava mentalmente nesse monólogo, ficamos em
silêncio, apenas trocando olhares. Mas enquanto o meu era
apreensivo, o dela continha algo a mais…
“É desejo nos olhos dela ou eu estou ficando louco?”
Querendo acabar logo com essa agonia, respirei fundo e tomei
mais um gole da bebida, antes de começar a falar:
— Na verdade, ele não está atrasado. — Depositei o copo vazio
sobre a mesa quase em câmera lenta, como se isso pudesse adiar
a revelação que estava prestes a fazer.
— Como sabe? Vocês são amigos? — A confusão estava
estampada no rosto dela.
— Depende de como você enxergue a situação, Alice. Ou eu
deveria dizer PlusStylistRJ? — Fiquei apreensivo nos segundos que
se passaram depois dessa deixa.
Foi então que o sorriso dela murchou e o silêncio voltou à mesa.
Quase conseguia enxergar as engrenagens girando em sua mente,
enquanto ela ligava os pontos. E a cada segundo que passava, pior
eu me sentia.
— Não — foi a única coisa que falou.
— Sim. Eu sou o MeninoDoRio — finalmente disse com todas as
letras.
— Como?! Isso é algum tipo de pegadinha? — Ela olhou para os
lados, como se me encarar fosse difícil demais.
Era impossível decifrar a expressão de Alice, mas algo me dizia
que ela não estava favorável à notícia. Não sei se era medo,
tristeza, frustração ou raiva, mas a verdade era que eu estava vendo
a destruição daquilo que construímos.
— Não, claro que não — eu me apressei em dizer ao notar que as
coisas estavam saindo de controle. — Eu jamais brincaria com algo
tão sério.
— Você?! Não pode ser! — Ela levou as mãos a boca em sinal de
puro choque.
“Será que a possibilidade é tão ruim assim?”
— Por favor, me escute. E se depois você quiser ir embora e
nunca mais olhar na minha cara, o que vai ser um pouco difícil, pois
teremos que trabalhar juntos durante o seu contrato, eu vou
entender. Até invento uma boa desculpa e tento trocar de função
com alguém para você não ter que falar comigo e me ver o mínimo
possível. — As palavras saíram emboladas, tamanho era o meu
desespero.
Estava disposto a prometer qualquer coisa, contanto que ela me
ouvisse. Por isso, sussurrei um “por favor”.
— Tudo bem, sou toda ouvidos.
— Eu juro, não estou tentando te enganar e nunca foi minha
intenção omitir nada de você. Quando nos conhecemos no dia da
festa, eu ainda não sabia de nada. Juro! Mas você esqueceu o
croqui comigo e eu vi a sua assinatura, foi fácil ligar os pontos. — A
memória daquele momento ainda era muito nítida. — Eu deveria ter
falado algo. Em outras circunstâncias, teria contado assim que
descobri, mesmo que isso fosse te deixar frustrada por descumprir o
nosso combinado, porque eu detesto mentiras. Mas entenda:eu era
o responsável pelo concurso que você estava participando. Imagina
a situação? Não podia correr o risco de dar motivos para te
eliminarem. Por outro lado, saber quem você era acabou sendo
fundamental para desmascarar aquelas duas.
Tentei explicar da melhor forma que pude, apesar do nervosismo
e do medo latente de perdê-la. Porém, a resposta inicial de Alice foi
o silêncio. Mais um tempo se passou enquanto apenas trocamos
olhares. Era como se ela estivesse tentando avaliar a veracidade da
minha justificativa. Vi quando ela respirou fundo e se preparou para
dizer:
— Atendi ao seu pedido e ouvi o que tinha a dizer. Agradeço a
sinceridade, mesmo tardia. Agora, preciso de um tempo para
processar tudo isso. Se me der licença. — As palavras mecânicas
tiveram o mesmo impacto de um soco certeiro.
Ela se levantou e me deixou arrasado, olhando para um copo
vazio.
“Issotudo está errado!”,algo gritou em minha cabeça enquanto
via a mulher dos meus sonhos sair por aquela maldita porta. Eu me
rastejaria aos pés dela se fosse preciso, mas não podia deixá-la
partir. Não sem tentar mais uma vez. Em um pulo, levantei da
cadeira e fui até ela, quase trombando com uma senhora enquanto
me dirigia para a saída. Alice já estava uns bons metros à frente.
— Espere! — gritei e comecei a correr para alcançá-la.
Não sei se foi pela surpresa, mas ela parou de andar e logo eu
estava à sua frente, ofegante por ter corrido como se a minha vida
dependesse disso. Aquele olhar, antes tão doce, parecia
profundamente magoado. Nunca quis tanto abraçá-la como naquele
momento. Dizer que tudo ficaria bem. Porque tinha que ficar tudo
bem.
— Por favor, me perdoa. Imagino que deve parecer impossível
confiar em mim de novo, mas tudo que peço é uma chance de te
provar isso — disse, olhando nos olhos dela. Eu estava apavorado,
não sabia mais o que fazer e teria me ajoelhado se não achasse
que isso só a afastaria ainda mais.
Os segundos que se passaram sem que ela dissesse uma palavra
foram uma tortura. Estávamos tão perto e talvez mais distantes do
que nunca. O olhar de mágoa deu lugar à confusão. Ela parecia
travar uma batalha interna e aguardei que ela desse o próximo
passo. Como se lesse meus pensamentos, Alice se aproximou o
suficiente para que eu pudesse colar minha testa na dela. Meus
olhos estavam fechados, a respiração pesada. De forma instintiva,
toquei seu cabelo e segurei o queixo de leve. Senti o toque delicado
da mão dela sobre a minha e tudo que conseguia pensar era em
finalmente beijá-la, mas antes que eu pudesse fazer qualquer coisa,
ela se afastou e foi embora.
Pela primeira vez, eu soube o que era ter um coração partido.
39

Alice

Que ironia… Eu achei que teria que fazer uma escolha


entre dois homens e acabei descobrindo que eles eram a mesma
pessoa. Deveria me sentir aliviada, mas a sensação de ter sido
traída tomou conta. Não sabia se estava exagerando, mas foi
impossível olhar para ele e dizer que estava tudo bem, como se
nada tivesse acontecido. Foram vivências tão diferentes, que era
difícil juntar em uma pessoa só — e eu precisava de tempo para
processar.
Minha primeira aparição como contratada da Vestindo Estilo
aconteceu dois dias depois do nosso fatídico encontro. Eu havia
sido muito bem instalada no hotel e me sentia imensamente aliviada
de não ter mais que olhar para a cara de Iolanda.
Se a ideia de trabalhar com Gustavo quando achei que ele era um
funcionário da Vestindo Estilo já era complicada, considerando que
eu me sentia atraída por ele, saber que ele era o MeninoDoRio só
tornou as coisas ainda piores. Eu tinha revelado muito naquelas
cartas e não podia ignorar o que sentia, mesmo estando magoada.
Por isso, me segurei ao profissionalismo com força e coloquei na
cabeça que iria me acostumar. Para quem aguentou quatro anos de
Iolanda, aquilo era fichinha.
— Boa tarde! — Nem se quisesse, Gustavo conseguiria esconder
a empolgação quando entrei na sala.
— Boa tarde, Gustavo. — Preferi não olhar muito na direção dele,
com medo de acabar me derretendo enquanto não decidia sobre
como lidar com aquele impasse, e me limitei a ocupar o espaço
vazio em uma das cadeiras.
— O Leandro vai chegar daqui a pouco. Se você preferir não falar
comigo, pode se reportar diretamente a ele. Faça a lista de itens
necessários e providenciaremos tudo o mais rápido possível. — Era
evidente que ele havia murchado um pouco após a minha reação
fria.
— Tudo bem. Trouxe alguns dos meus materiais comigo, então já
posso começar a trabalhar logo após terminar a lista. — Tentei me
concentrar no trabalho.
— Desculpe a minha inexperiência, mas acho que precisamos
fazer uma reunião para acertar alguns detalhes sobre a coleção
antes de qualquer outra coisa — Gustavo começou a falar.
Não resisti e subi o olhar para ele. Grande erro. Porque, me
olhando de volta, estava o homem mais lindo que já havia
conhecido. O cabelo preto, por mais arrumado que estivesse,
teimava em cair sobre a testa. Precisei controlar a vontade de ir até
ele e arrumar a mecha rebelde, só como desculpa para tocá-lo.
Assim como havia acontecido na cafeteria, um silêncio cheio de
tensão tomou conta. Minha respiração acelerou, como se estivesse
faltando oxigênio dentro da sala. Mas era a energia pulsante entre
nós que consumia o ar, me impedindo de fazer qualquer outra coisa
a não ser olhar para ele. Gustavo, o homem por quem me sentia
completamente atraída. MeninoDoRio, o homem com quem tinha
uma ligação emocional.
Ele estava aqui, tão perto de mim…
— Boa tarde, pessoal! — Leandro interrompeu o momento
quando entrou na sala, carregando algumas pastas. — Olha, a
nossa pequena equipe está crescendo. Não vai demorar muito e
precisaremos de uma nova sala — A empolgação dele era
contagiante. — O que temos para hoje?
— Reunião. — Eu e Gustavo e falamos ao mesmo tempo.
— Ah, que divertido. Adoro reuniões, sempre saem coisas muito
produtivas. — Olhamos para Leandro ao mesmo tempo, espantados
pelo gosto peculiar do rapaz.
Gustavo tinha razão, a presença de Leandro com certeza
amenizou muito o clima naquele ambiente. Logo estávamos
interagindo e compartilhando ideias para a coleção, que prometia
ser um sucesso. Mas ainda não era o suficiente para que eu me
sentisse confortável na presença de Gustavo quando o terceiro
membro da nossa equipe não estava por perto. Os rapazes
pareciam cúmplices e trocavam olhares, que eu desconfiava ter algo
a ver comigo. Porém, quando éramos só nós dois, um clima de
tensão ficava no ar. Quase dava para ver as faíscas e eu não podia
negar que parte disso era o desejo acumulado.

l
Consegui sobreviver à primeira semana na Vestindo Estilo e,
como minha carga de trabalho se tornou bem menor, pude contar
com o sábado livre para ajudar no abrigo. Eu e Inês, não por
coincidência, éramos as voluntárias que cuidariam dos gatos
naquele dia.
Eu não era a única de emprego novo. Inês, decidida a sair de
casa o quanto antes, começou a trabalhar na loja da sua amiga Tati.
Ter o próprio dinheiro enquanto não descobria a carreira que
pretendia seguir parecia um bom plano.
Dessa vez, era a vida dela que estava mais atarefada, então
aproveitamos o dia de folga para colocar os assuntos em dia.
— Lembra que você me disse para deixar o tempo fazer o seu
trabalho? Acho que ele andou aborrecido, porque só complicou a
situação.
— A situação complicou ou você que está colocando mais
empecilhos que o necessário? — Ela arqueou a sobrancelha.
— Amiga, ele mentiu pra mim.
— Por motivos bem convincentes.
— Virou advogada do diabo agora?
— Se for o Lúcifer da série, com certeza. E o tal Gustavo não
perde muito para ele. — Inês piscou.
— Só você mesmo! — Eu ri. Tinha que admitir, Inês sempre vinha
com as melhores referências. — A questão é:quem me garante que
ele não está mentindo agora? Que não está tentando me enganar?
— É por que mesmo ele faria isso?
— O cara é rico, está cercado de modelos e pode ter a mulher
que quiser. Agora, olha para mim! Você sabe que eu não tenho
vergonha de ser quem eu sou ou do meu peso, mas não posso me
enganar achando que as pessoas não se importam. A internetestá
cheia de provas — desabafei o que vinha me incomodando.
— A resposta está na sua afirmação. Olha para você! Ele seria
um completo idiota se não valorizasse a pessoa incrível que você é.
Por que não dá uma chance para ele? Melhor, por que não dá uma
chance para vocês?
— Prometo pensar a respeito. — Inês me olhou com cara de
“acho bom”.
Nick se aproximou e eu o peguei no colo.
— Ver você com Nick me faz lembrar tanto do Thor. Estou
morrendo de saudades — ela falou com tristeza.
— Tem notícias dele?
— Pâmela disse que a adaptação está indo bem.
— E o Téo?
— Nunca mais o vi desde o evento. — Minha amiga tentou
parecer indiferente.
— Mas gostaria, né?
— Talvez… Pelo cachorro, é claro.

l
Apesar de mudar de ambiente, a minha rotina continuava
parecida. Pela manhã, assistia às aulas e, à tarde, ficava na
Vestindo Estilo. O clima entre mim e Gustavo foi melhorando pouco
a pouco, conforme eu processava melhor tudo que havia acontecido
entre nós. Olhares e sorrisos eram trocados, e Leandro fingia não
perceber.
A conversa com Inês me fez refletir bastante e decidi que valia a
pena tentar resolver as coisas, eu só precisava criar coragem.
Então, naquela segunda, véspera de feriado, Leandro havia sido
liberado e nós dois ficamos sozinhos na sala.
“É agora ou nunca!”
— Gustavo? — Parei em frente à mesa dele. Minha voz saiu mais
fraca do que o esperado.
— Sim? — Ele parecia tão apreensivo quanto eu.
— Aquele dia no café, eu te escutei. Agora gostaria de pedir que
fizesse o mesmo. — Um sorriso tímido, porém encorajador, surgiu
em meus lábios.
— Tudo bem, vá em frente. — Ele se levantou e veio até mim, não
havia mais nenhum móvel nos separando.
— Eu estaria mentindo se dissesse que aquela revelação não foi
um choque pra mim. De todas as pessoas na face da Terra, você
seria o último da lista, caso eu tivesse feito uma. Não digo isso de
forma negativa, mas olha as probabilidades. — Acabamos rindo da
situação. — Eu passei esses últimos dias em conflito, tentando
entender o que eu estava sentindo sobre tudo isso e,
principalmente, sobre o que eu deveria fazer. Fiquei, sim, muito
frustrada por ter sido enganada, mesmo entendendo seus motivos.
Mas depois de muito pensar, preciso te dizer — respirei fundo e
continuei: — eu consigo te perdoar pela omissão. Talvez possamos
começar do zero, ou quase.
Agora, meu sorriso estampado era largo e refletiu no rosto de
Gustavo. Foi como se o peso das mágoas que eu andava
carregando me deixasse e desse lugar a uma pontinha de
ansiedade pelo que estava por vir.
— Você não faz ideia de como é bom ouvir isso. Sabe como é ver
a pessoa que se tornou a sua favorita no mundo magoada e
perceber que foi por sua causa? De vê-la todos os dias e querer
abraçá-la, como prometi nas cartas? São tantas coisas passando
pela minha cabeça…, mas deixarei para compartilhar em outro
momento. Não quero que você fique constrangida e estamos em
ambiente de trabalho. — Era nítidoo quanto ele estava radiante. Só
faltou rodopiar comigo pelo escritório.
— Tem razão. Nossa, eu nem sei explicar o quanto senti a sua
falta. — Soltei um suspiro de alívio ao saber que tudo estava
finalmente resolvido. — Posso pedir aquele abraço? Já perdi tempo
demais.
— Nem precisa falar duas vezes.
40

Gustavo

Eu quase não acreditei no que ouvi e tive medo de acordar


a qualquer momento e descobrir que havia sido um sonho. Porém,
quando a abracei tão delicadamente, como se fosse algo frágil e
muito precioso, tive a certeza de que era bem real. Ela enfim
pareceu relaxar na minha presença, ali naquele abraço tão
desconhecido e familiar ao mesmo tempo. Que loucura a vida podia
ser.
Já havíamos dançado uma música lenta juntos, mas nada se
comparava àquele abraço. O corpo dela se moldava perfeitamente
ao meu e, naquele momento, eu pude sentir de novo aquele
perfume floral que estava na minha memória. Não faço ideia do
tempo que ficamos ali, colados, mas nenhum dos dois queria soltar.
A espera tinha sido muito longa e as expectativas eram grandes. O
telefone começou a tocar e, antes que quebrasse o momento, eu
desconectei o aparelho, sem soltá-la completamente. O que quer
que fosse poderia esperar.
Voltei a abraçá-la por completo e depositei um beijo no topo de
sua cabeça. Meu coração batia tão forte que eu poderia apostar que
ela estava ouvindo. Meu corpo inteiro estava ciente da presença de
Alice. Quanto mais eu olhava para ela, mais encantado ficava.
Seguindo meus instintos, e aproveitando a porta fechada, olhei para
ela como se pedisse permissão. Apesar de querer muito, eu tinha
dúvidas se estava preparado cruzar aquela linha, que seria um
marco na nossa história. Alice balançou a cabeça de forma
afirmativa e então colei meus lábios aos dela, dando início a esse
beijo tão sonhado.
Se eu achava que estava aceso antes, nem podia se comparar à
adrenalina que percorreu todo meu corpo quando nossas línguasse
entrelaçaram. Se fosse planejado, esse beijo seria suave, mas a
urgência não permitiu. O gosto daquela boca era tão doce quanto
Alice, que, mesmo sem espaço nenhum entre nós, continuava
tentando me puxar para mais perto. Estávamos sem fôlego, mas
ninguém queria parar.
Diferente da primeira vez, não tivemos passos para nos
interromper. Apesar de o local não ser nada adequado para o que
fazíamos, eu agradeci mentalmente por ter trancado a porta: já
havíamos esperado tempo demais. Nada além de um beijo havia
sido cogitado, mas depois de tantas emoções vividas e guardadas,
as coisas esquentaram um pouco além do controle e, por um
instante, me esqueci que estávamos no escritório da Vestindo Estilo.
Os beijos, antes inocentes, ficaram cada vez mais ousados. Alice
mordiscou minha orelha e me olhou de forma intensa, como um
convite não verbal, e eu me deixei levar pelo momento. Desci beijos
pelo pescoço dela, que deixou escapar um gemido baixinho.
Quando cheguei perto do limite do que a roupa cobria, tateei até
encontrar o zíper do vestido e o abri. Abaixei as alças e fiquei louco
quando vi a pele descoberta. Mas antes que eu pudesse terminar de
tirar sua roupa, ela resolveu tirar a minha também.
Alice tocou meu peito com seus dedos delicados e, bem devagar,
fez o caminho para o vale da perdição, até atingir o cós da calça,
mas a impedi de terminar quando olhei de relance em direção à
mesa de Leandro, feliz pelo rapaz ser tão organizado e tê-la deixado
praticamente vazia. Mantendo o contato visual, direcionei Alice até
nossos corpos serem parados pelo móvel e ela arqueou a cabeça
para trás, deixando seus seios ainda mais expostos.
Terminei de tirar seu vestido e estava tão cego pelo desejo que
nem reparei em que tipo de lingerie ela usava, mas não fez
diferença, pois logo o sutiã se juntou às outras peças no chão e
acariciei os seios nus. Sem perder tempo, ela passou as unhas de
leve pelas minhas costas e me puxou para mais perto. Alice pareceu
sentir o volume pressionando a calça social e soltei um gemido
quando o corpo dela roçou meu membro ainda coberto.
— Posso ajudar você — ela disse de forma nada inocente.
Como em uma espécie de tortura planejada, foi tirando o restante
da minha roupa devagar e, quando terminou, o desejo latente fez
com que colássemos nossos corpos de novo. Agora, as peles se
tocavam sem nenhum impedimento e, em um movimento rápido, eu
a coloquei sentada na mesa.
— Preciso sentir o seu gosto. — Não dei muito tempo para que
ela pudesse interpretar a frase e logo estava de joelhos, com a
cabeça posicionada entre suas pernas.
Depositei beijos suaves na região do baixo ventre e ela se abriu
ainda mais para mim, apoiando-se na mesa. Passei a língua
lentamente e Alice deixou escapar um gemido bem mais alto, o que
me incentivou a continuar e, pouco a pouco, aumentar a velocidade,
para depois diminuir novamente, intercalando os movimentos da
língua.
— Gustavo... Não para! — Alice implorou. Nunca fiquei tão feliz
em obedecer.
Instintivamente, ela agarrou meu cabelo com uma das mãos
enquanto sentia ondas de prazer se espalharem pelo seu corpo. Um
gritinho escapou da sua boca quando chegou ao ápice. Levantei,
observando o efeito que o orgasmo tinha sobre ela: ofegante e
corada, Alice nunca esteve mais linda. E logo nossas bocas
estavam coladas novamente. Saber que eu tinha proporcionado
prazer e que era por mim que ela estava chamando me deixou
ainda mais excitado.
— Quero retribuir — ela sussurrou entre beijos.
— Agora não — disse baixinho ao ouvido de Alice. — Quero
sentir você de outra forma.
— Oh! — Ela pareceu ficar ainda mais corada, se isso era
possível, e assentiu enquanto mordia os lábios ao olhar para meu
membro rígido e pulsante.
Voltamos a nos beijar enquanto eu deixei as mãos passearem por
seu corpo e descobrirem como sua pele era macia. Eu estava a
ponto de explodir.
— Camisinha — ela me lembrou e fui até a minha carteira, de
onde tirei um pacotinho laminado.
Desenrolei o látex e, como se lesse meus pensamentos, ela
segurou minha ereção com cuidado e a posicionou na sua entrada,
mas ao invés de penetrá-la, fiquei deslizando lentamente para cima
e para baixo, estimulando novamente seu ponto de prazer.
— Por favor — implorou com a voz falha.
O pedido foi atendimento prontamente. Quando meu membro
deslizou para dentro dela, foi a minha vez de soltar um gemido um
pouco mais alto. Os movimentos começaram lentos e foram
ganhando intensidade, nossos corpos suados se tocando e a
urgência sentida através dos beijos junto com as sensações que
cresciam.
Alice cravou as unhas nos meus ombros e enlaçou a minha
cintura com as pernas, o que possibilitou que eu chegasse ainda
mais fundo, para delírio de ambos. Ela ficou me encarando com
olhar de desejo enquanto eu aumentava a velocidade dos
movimentos, até que seu corpo começou a dar sinais de que outra
onda de prazer estava se aproximando. Então, ela fechou os olhos e
me apertou. Acelerei ainda mais e deixei que o meu prazer também
chegasse ao ápice, logo após o dela.
Ofegantes, passamos um tempo abraçados, enquanto
tentávamos normalizar a respiração. Havia sido intenso demais para
que alguma palavra fosse dita.
41

Alice

Dois meses depois


Um dos dias mais esperados por mim havia chegado. Depois de
quatro longos anos de muito trabalho, eu estava encerrando um
ciclo importante. A faculdade tinha uma política incomum de fazer a
colação de grau assim que todas as notas e aprovações eram
disponibilizadas no sistema — e a data acabou coincidindo com a
festa de formatura da minha turma.
Fui até lá para participar do evento obrigatório junto com os
alunos concluintes de todos os cursos, incluindo Inês e Ingrid.
Fizemos o juramento, assinamos o documento e pegamos o papel
para dar entrada no tão sonhado diploma. Tudo bem burocrático.
Ingrid, assim como eu e a irmã, também havia desistido da festa
de formatura. Afinal, depois que souberam de todo o ocorrido,
nossos colegas de turma começaram a olhar torto para ela, que
ainda se sentia culpada por ter aceitado, mesmo sem querer,
participar dos planos e armações da mãe. Em uma conversa franca,
me pediu mil desculpas e também agradeceu a bondade e tudo que
havia feito por ela todos esses anos. Eu, manteiga derretida que
sou, acabei perdoando a irmã da minha melhor amiga.
Na verdade, sentia pena de tudo que Ingrid passava com a mãe.
Diferente de Inês, ela não tinha coragem de bater de frente com
Iolanda, que se aproveitava disso para manipular a filha sempre que
tinha a chance. Torcia para que, um dia, ela conseguisse se libertar
e pudesse fazer algo de que realmente gostasse. Ou, quem sabe,
para que um milagre acontecesse e Iolanda tivesse uma redenção.
Sonhar não era proibido.
A única coisa que pedi a Ingrid foi que me prometesse nunca mais
abaixar a cabeça e compactuar com os planos de sua mãe.
Se as coisas estavam indo mais do que bem para mim, Iolanda
não podia dizer o mesmo. Depois daquele vexame na Vestindo
Estilo, Rui havia cumprido com sua palavra e avisou às empresas
do ramo sobre as práticas nada legais da minha ex-chefe. Os
pedidos foram diminuindo e chegarem a um nível que Iolanda
sozinha poderia fazer todo o processo de produção. Sem saída, a
megera foi obrigada a fechar as portas e teve que contar com as
poucas economias para sobreviver, até pensar em outra fonte de
renda. Nem preciso dizer que Iolanda e Ingrid tiveram que procurar
empregos para se manterem.
Rui, como prometido, conseguiu realocar todos os funcionários da
Iolanda Confecções , o que me deixou transbordando gratidão. Tinha
muito carinho e consideração por toda a equipe, que sempre me
deu suporte durante o tempo em que trabalhamos juntos.
Pedi que ninguém contasse à instituição de ensino sobre as
“ajudas” que dei a Ingrid. Assim, ela teria um diploma e talvez isso
lhe ajudasse. Com a mãe que tinha, ela precisaria de toda a ajuda
possível.
Alice:
Cadê você? Não consegui te ver em lugar
nenhum.
Enquanto conversava com meus colegas de turma, enviei uma
mensagem para Inês, mas não tive qualquer resposta. Assim como
os alunos que participariam da festa contratada, eu também estava
com meu belo traje a rigor. A única diferença entre nós era que eles
estavam usando a beca, mas fizeram questão da minha presença
como convidada, afinal, foram quatro anos de convívio, bons
momentos, um pouco de sofrimento e muito aprendizado.
Como bons alunos de Moda, todos estavam usando criações suas
por baixo da beca. Os modelos seriam exibidos no salão de festas
logo após a cerimônia. Em nenhum momento fiquei triste por não
participar da forma tradicional. Saber que o dinheiro tinha
contribuído para Nick estar vivo era a minha maior recompensa.
Eu só tive tempo de me acomodar em uma cadeira qualquer do
auditório quando, um a um, os alunos foram sendo chamados — por
ordem alfabética — para subirem ao palco e se sentaram em
bonitas cadeiras dispostas de frente para a audiência. Logo em
seguida, o mestre de cerimônias voltou a falar:
— Antes de começar oficialmente as homenagens, vocês devem
ter notado uma cadeira vazia. — Ele apontou para um espaço na
primeira fileira. — Pois bem, os alunos aqui presentes se recusaram
a viver esse momento sem uma pessoa muito importante e querida,
que fez parte de toda essa trajetória com eles. — Uma pausa
dramática e meus amigos se entreolharam com sorrisos
conspiratórios. — Então, eles se reuniram e pagaram pela formatura
dessa pessoa também. Alice Barreto, vai ali colocar a sua beca. Os
seus colegas estão te esperando aqui em cima para começar e
espero que esteja preparada para improvisar um discurso, porque
você é a oradora da turma esse ano.
Muitos aplausos ecoaram no auditório enquanto meus olhos
marejavam com lágrimas de gratidão. Eu sabia o quanto era querida
por todos, e o sentimento era recíproco, mas não podia acreditar
que tinham feito isso por mim. Só me dei conta de que ainda estava
no mesmo lugar quando Inês apareceu para me buscar.
“Então,ela sabia de tudo! Eu deveria ter estranhado que ela
estava arrumada demais para a colação.”
Enquanto minha beca era colocada por um funcionário da
empresa que organizou a formatura, Inês apontou na direção onde
vovó e Gustavo estavam sentados.
Era nítido o quanto Inês estava feliz por mim. Obviamente, ela foi
recrutada para ajudar na surpresa. Tínhamos combinado de
comemorar juntas e ali estávamos, usando uma roupa bonita e
vivendo esse momento. Na plateia, vovó não conseguia parar de
chorar e Gustavo estava ao seu lado com um sorriso bobo no rosto,
que eu estava me habituando a ver toda vez que ele olhava pra
mim.
Nem percebi o tempo passar enquanto o mestre de cerimônias
fazia todo o protocolo comum em formaturas. Começou com
aquelas fotos clássicas de quando éramos crianças e da turma em
momentos juntos. Depois, chamou os professores homenageados,
até que chegou a minha vez de falar. Improvisar um discurso, ainda
mais em um momento tão importante e emotivo como esse, não era
uma tarefa fácil. Tentei fazer o meu melhor depois do gesto tão
bonito e emocionante dos meus colegas.
— Boa noite. Acho que vocês notaram como eu fui pega de
surpresa. — A risada dos presentes foi ouvida. — Não é novidade
que hoje é um grande dia para todos aqui. Seja para nós,
formandos, celebrando a conclusão dessa etapa, ou para os nossos
convidados, porque nos apoiaram durante todo o processo.
Estiveram conosco em cada conquista e também viram as partes
nem tão boas da vida universitária. Por isso, em nome de todos,
quero agradecer o apoio que nos foi dado.
“T ambém preciso agradecer aos professores e funcionários em
nome da turma. Vocês que estiveram conosco e foram tão
importantes para a nossa trajetória acadêmica.
Agradecimentos feitos, agora quero dirigir a palavra aos meus
colegas, mas estendo a todos os presentes. Essas pessoas em
cima desse palco, e eu também me incluo no grupo, têm sua história
individual, personalidades diferentes, algumas batalhas vencidas e
outras não. Todos nós somos vitoriosos e eu me sinto muito feliz e
honrada por ter dividido a sala de aula com cada um de vocês.
Não importa o tamanho do seu sonho, o primeiro passo é
acreditar. Acreditem de uma forma tão intensa, a ponto de fecharem
os olhos e conseguirem visualizar o que tanto desejam. E, ao abri-
los, ter a sensação de felicidade, como se aquilo já fosse real. Vocês
são incríveis e têm uma capacidade enorme. Olha só aonde
chegamos… e ainda tem muito mais por vir.
Agora, vamos curtir, porque foi merecido!”
Todos aplaudiram muito, alguns mais sensíveis estavam
emocionados e até derramaram algumas lágrimas, mas era nítida a
alegria estampada em cada rosto ali. Muitas memórias ao longo dos
quatro anos ficariam gravadas e seriam lembradas nas famosas
reuniões de turma.
Um a um, fomos chamados para receber o canudo com um
diploma simbólico e o mestre de cerimônias encerrou dizendo “Eu
os declaro formados”.Capelos foram arremessados para o alto e
despencaram como se fosse uma chuva de chapéus. Os alunos se
abraçavam entre si e fomos cumprimentados por familiares e
amigos.
Antes de passar para o salão anexo, para onde os convidados
haviam sido encaminhados, os formandos foram retirar as becas.
Com seus lindos modelos exclusivos, um a um foi chamado para
entrar no salão por uma passarela. Após o desfile, muitas fotos
foram tiradas, e só depois que tivemos a chance de aproveitar as
comidas, bebidas e a pista de dança.
— Vocês não fazem ideia de como é surreal estar vivendo esse
momento com as pessoas que mais amo ao meu lado — falei,
olhando para vovó, Inês e Gustavo. — Parece um sonho! —
Emocionada, abracei cada um deles.
Não era sonho, mas com certeza era uma noite para ser
guardada na memória.
“Oque precisa vai encontrar o caminho até você. É só acreditar.”
Lembrei mais uma vez do sábio conselho de dona Marina. Tudo
estava bem melhor do que eu poderia ter sonhado.
42

Gustavo

Eu não conseguia lembrar a última vez que tinha ficado tão


nervoso, exceto no dia que precisei revelar que era o MeninoDoRio.
Enquanto andava de um lado para o outro, esperando Alice, dona
Josefina e Inês chegarem, me questionei se aquele jantar realmente
tinha sido uma boa ideia. Nunca havia apresentado ninguém
oficialmente aos meus pais, apesar de amá-los, e temia a reação
deles. Sabia que minha mãe seria um amor com Alice, não tinha
como ser diferente, mas meu pai ficou com a pulga atrás da orelha
assim que soube que eu estava namorando com a mais nova
contratada da Vestindo Estilo. Ele nunca digeriu bem aquele
incidente com a modelo.
“Ficacalmo, vai dar tudo certo.”,fiquei mentalizando esse mantra
até receber uma mensagem que elas haviam chegado. Preferi
encontrá-las no jardim, não queria que parecesse cena de novela,
em que todos estão arrumados e sentados na sala esperando um
mordomo receber os convidados e levá-los até lá.
— Oi, amor! — Alice correu para me abraçar. Talvez a ficha do
quão sortudo eu era nunca iria cair.
— Boa noite, meninas — cumprimentei as outras convidadas.
— Obrigada pelo “menina”. — Dona Josefina piscou.
— Vamos entrando, meus pais estão esperando por vocês. —
Mostrei o caminho.
Eles aguardavam perto da entrada, agora sem nenhum vaso caro.
Em pensar que, meses antes, eu estava passando bêbado por
aquela porta e discutindo com meu pai… As coisas pareciam ter
mudado bastante.
— Alice, essa é Helena, minha mãe. E você já conhece o meu
pai. — O frio na barriga confirmou que esse momento estava
mesmo acontecendo.
— É um prazer — Alice falou, tímida, e minha mãe a puxou para
um abraço.
— Finalmente posso conhecer o motivo de Gustavo andar
sorrindo à toa.
— Mãe, pai, essas são Inês e dona Josefina, a melhor amiga e a
avó de Alice.
— Obrigada por nos convidar — Inês se pronunciou.
— Sejam bem-vindas e espero que se sintam em casa — foi a
vez de meu pai dizer.
— Espero que estejam com fome, pois o jantar já será servido.
A nossa cozinheira havia sido dispensada, então guiei todo
mundo para a mesa de jantar enquanto minha mãe terminava de
pegar os pratos que seriam servidos. Sem saber muito bem sobre
os gostos das convidadas, foram preparados, de prato principal,
peixe assado, um prato vegetariano e as costelas. Foi maravilhoso
sentir o aroma do meu prato favorito, sabendo que, dessa vez, eu
poderia me deliciar com ele até o final.
— Então, Alice, está gostando de trabalhar na Vestindo Estilo?
— É um sonho poder fazer o que amo, ser ouvida e ainda ter todo
aquele suporte. Obrigada. — Alice sorria de orelha a orelha.
— Nós que agradecemos o seu talento. Andei olhando os
primeiros testes para a sua coleção e mal posso esperar para ver as
peças na vitrine. — Por mais que ele desconfiasse de mim no
quesito amoroso, era nítido que meu pai simpatizou com Alice
desde o dia que ela foi chamada na empresa para esclarecimentos.
Mamãe e dona Josefina engataram em uma conversa sobre filhos
e foi difícil interromper as duas para a sobremesa. Até Inês trocava
comentários com meu pai sobre o comércio de roupas, já que ela
estava trabalhando em uma loja e, recentemente, havia sido
promovida a gerente. Enquanto isso, Alice e eu permanecemos de
mãos dadas sob a mesa.
O jantar correu muito bem, mostrando que não havia motivo para
tanta preocupação da minha parte. Depois que todos comemos a
sobremesa, pedi licença para levar as moças em casa.
— Volte mais vezes! — Minha mãe não queria deixar Alice ir até
que ela prometesse fazer uma nova visita.
Inês e dona Josefina andavam inseparáveis, então levei as três
de volta para o hotel que Alice estava hospedada até achar um novo
local para morar — mas ainda não tinha encontrado, porque queria
algo perfeito. Ainda bem que fui convidado a subir, ou teria que
inventar uma desculpa para que meus planos dessem certo.
— Estão entregues. Agora, se me permitirem, gostaria de roubar
a Alice essa noite.
— Desde que ela volte ainda mais feliz, eu autorizo — Inês
brincou.
— Divirtam-se, crianças. Vou assistir a um filme e depois
descansar. — Dona Josefina já estava no sofá com o controle na
mão.
— Vamos? — Olhei para Alice com um sorriso no rosto.
— O que você está aprontando? — ela perguntou, erguendo uma
sobrancelha.
— Você confia em mim?
— Claro que sim. — Sua resposta imediata me deixou ainda mais
confiante.
— Então, feche os olhos.
Ela seguiu minha instrução e eu a guiei até o elevador, apertando
o botão do último andar. Sem que ela soubesse, eu havia reservado
a melhor suíte do hotel e fiquei satisfeito ao perceber que o meu
pedido tinha sido atendido. Pétalas de rosas estavam espalhadas
sobre a cama e algumas velas aromatizadas iluminavam o
ambiente, apenas o suficiente para que ficasse aconchegante e não
precisasse acender a luz.
— Pode abrir — sussurrei no ouvido dela e percebi quando os
pelos do seu corpo se arrepiaram.
— Minha nossa, que lindo! O que estamos comemorando? — Ela
ficou dividida entre observar os detalhes e olhar para mim.
— O nosso amor — declarei, olhando no fundo dos olhos de
Alice. — Eu não preciso de uma ocasião especial. Tenho vontade de
celebrar a cada minuto que passo ao seu lado. — Emoldurei seu
rosto com as mãos e deixei minha boca encostar na dela. — Agora,
chega de conversa, tem uma banheira cheia de espuma esperando
por você.
Teria sido uma delícia tirar peça por peça, mas eu tinha outros
planos. Nós nos despimos e eu a ajudei a entrar na banheira, a
temperatura estava perfeita. Sentei primeiro e ela se encaixou entre
as minhas pernas. Então, tentei prender o cabelo de Alice em um
coque desajeitado, deixando seu pescoço exposto. Eu tinha que me
segurar para não apressar as coisas quando estava perto dela e
aquela noite eu queria que fosse incrível, por isso, comecei com
uma massagem.
Passeei minhas mãos pela sua pele delicada e molhada, tentando
criar um mapa mental do que ela demonstrava gostar. Quando
cheguei ao baixo ventre, desci os dedos de encontro ao principal
ponto de prazer de Alice. Por instinto, ela fechou as pernas, mas
logo voltou a se abrir para mim enquanto inclinava para trás,
encostando a cabeça no meu peito. Enquanto fazia movimentos
circulares com os dedos, usei a outra mão para acariciar seu seio
Era uma sensação incrível ouvi-la gemer de prazer.
Com toda calma, fui descobrindo o jeito que ela mais gostava de
ser tocada, até sentir que ficou ofegante. Então, intensifiquei os
movimentos. Alice apertou a borda da banheira com força quando
chegou ao clímax e depois relaxou em meus braços. Quando se
recuperou, ainda com o rosto vermelho e levemente sem fôlego,
girou um pouco o tronco para me olhar e disse:
— Vamos para a cama?
Trocamos beijos intensos no trajeto da banheira até a cama. Alice
pareceu assumir o controle e me posicionou deitado, com a barriga
para cima, a minha ereção exposta. Engatinhando, ela aproximou o
rosto do meu membro e, sem aviso, passou a língua por toda a
extensão, me fazendo estremecer. Continuou o movimento da
língua na cabeça do meu pau e, quando eu menos esperava, o
abocanhou por inteiro. Quase fui à lua e voltei.
— Que boca deliciosa… — deixei escapar.
Achei que estava no controle, mas percebi que me enganei
quando ela me cobriu com o látex, posicionou um joelho de cada
lado do meu corpo e agachou lentamente sobre meu membro rígido
e pulsante.
— Você é tão quente e macia. — Minha dificuldade em formar
frases era nítida.
— Gosta disso? — Alice parecia se divertir com a minha reação.
Balancei a cabeça em concordância. Com total domínio da
situação, começou a rebolar, procurando uma forma de dar prazer a
nós dois. Segurei firme em seus quadris para ajudar nos
movimentos, enquanto tentava me controlar ao máximo, esperando
que ela chegasse ao orgasmo primeiro. Ouvir seus gemidos estava
me deixando louco. Quando achei que não conseguiria mais resistir,
ela acelerou o ritmo até gozar e eu parei de me segurar, deixando o
prazer percorrer meu corpo.
Os movimentos foram cessando enquanto tentávamos normalizar
nossas respirações. Ela saiu de cima de mim, se aninhou no meu
peito e eu a abracei.
— Eu já disse que você é a minha pessoa favorita? — falei
enquanto acariciava seu cabelo.
— Nunca vou me cansar de ouvir isso.
43

Alice

Quando comecei a trabalhar na Vestindo Estilo, pude fazer bem


mais do que apenas desenhar as peças da coleção para qual
assinei um contrato. Em conversas com Gustavo, falei sobre
algumas de minhas ideias e ele, muito empolgado, resolveu
apresentá-las nas reuniões. Seu pai, animado com o interesse dele
na empresa — e também por achar as ideias interessantes e viáveis
—, o autorizou a montar os projetos em parceria comigo e Leandro.
Como novidade, além dos itens pet voltados para ajudar a causa
animal, as lojas Vestindo Estilopassariam a vender roupas plus size
pela primeira vez desde a sua fundação. Começariam com as peças
da coleção Contos de Fadas Modernos, mas eu já tinha
apresentado novas ideias para futuras coleções.
— Você já olhou o seu e-mail? — Gustavo apareceu do nada, me
dando um baita susto.
— Ainda não.
— Uma mosquinha me disse que seria interessante checar. — Ele
tinha um olhar travesso.
Curiosa, não perdi tempo:em poucos segundos, estava abrindo o
aplicativo, só não sabia em busca do quê. Não precisei procurar
muito, pois no topo da lista aparecia o endereço eletrônico da
Vestindo Estilo. Com as mãos um pouco trêmulas, cliquei para
visualizar o conteúdo.
Eu reli aquele e-mail uma dúzia de vezes para ter certeza de que
era real.
— Nosso primeiro projeto aprovado! — Abracei Gustavo.
— O primeiro de muitos. — Sem se importar que várias pessoas
estavam ao nosso redor, ele me beijou.
Mal podia esperar para colocar em prática as peças de lingerie
que tinha em mente. Eu seria a primeira cliente a renovar as peças
íntimas do guarda-roupa. Não aguentava mais ver — não só, mas
principalmente — calcinhas e sutiãs muito simples, com cortes sem
graça e as poucas opções nas lojas.

Felizmente, eu conhecia algumas pequenas e médias empresas


on-line que se dedicavam a peças voltadas para o público gordo.
Porém, nem todas as pessoas podiam ou gostavam de fazer
compras on-line, por diversos motivos. Não poder experimentar
antes de comprar era um dos principais. Quem nunca se frustrou ao
vestir uma peça comprada na internetque atire a primeira pedra.
Eu sonhei muito com as mudanças que vencer aquele concurso
traria para a minha vida, mas ver tudo na prática ainda era
inacreditável.
Naquele dia, acordei cedo e fui direto para o local onde seria o
desfile de estreia da minha primeira coleção oficial, e é claro que
Gustavo me acompanhou. Afinal, era o momento tão esperado de
revelar a criação inspirada em contos de fadas, que estaria
disponível para a venda no dia seguinte.
Inês também estava lá, trabalhando extraoficialmente no evento,
ajudando a cuidar dos animais do abrigo que participariam do
desfile. Ela saiu da casa da mãe assim que recebeu o primeiro
salário e estava morando comigo provisoriamente. Eu passei a ter
meu cantinho e contava com a companhia de vovó e presença
constante de Gustavo. Aliás, falando na minha avó, ela praticamente
adotou Inês.
Iluminação e som foram checados, as modelos contratadas
faziam as últimas provas das peças antes de exibi-las na passarela,
e os convidados começavam a chegar e iam sendo posicionados de
acordo com o mapa de assentos. Entre eles, estavam jornalistas e
influencersresponsáveis pela cobertura do evento.
— Inês, tudo certo com os preparativos? — Eu não conseguia
esconder o nervosismo na voz, mesmo com toda a euforia que
demonstrava.
— Sim, os nossos lindos modelos pet estão arrumados e
aguardando para brilhar. — Inês me tranquilizou. — Os acessórios
ficaram incríveis.
— E eles estão bem acomodados? Precisam de alguma coisa? —
Apesar de dividir a atenção com mil tarefas, também estava atenta
ao bem-estar dos animais.
— Tudo certo. Espero mesmo que alguns deles possam ser
adotados hoje. Mas essa ajuda das vendas já vai ser muito útil. É
incrível que o Amor de Animal seja o primeiro abrigo a receber
doações.
— Fico tão feliz que, graças ao concurso e à ideia de Gustavo,
podemos ajudá-los em grande escala. E é como um sonho não
depender mais da sua mãe.
— Nem me fale desta senhora. Ela morreu pra mim. — Inês
revirou os olhos. — Ah, preciso te contar uma coisa: meu pai ligou
hoje e me convidou para morar com ele. Estou pensando
seriamente em aceitar.
— Jura? Que bom! Mas já estou sentindo sua falta antes mesmo
de você ir. Promete que vem me visitar para irmos juntas ao Café
Delícia?
— É óbvio. Ou você acha que vai se livrar de mim assim tão fácil?
— Digo o mesmo. Ainda vai ouvir falar muito de mim por aí. —
Pisquei.
— Sempre soube que você alcançaria o mundo! — Inês me
abraçou rapidamente, pois eu estava atrasada para me trocar. —
Agora, me deixa voltar lá para dar uma olhada nos nossos amigos
peludos.
— Espera! O Nick veio?
— Sim, você fez muita questão.
— Ele vai entrar comigo por último, para encerrar o desfile. O
acessório dele tem uma etiqueta com o meu nome.
— Podexá! — Inês piscou.
Finalmente, havia chegado a hora de acabar com a curiosidade
de todos sobre quais seriam as peças criadas por mim. As modelos,
exibindo minhas criações, foram desfilando pela passarela e sendo
muito aplaudidas. Todos pareciam encantados com a nova coleção.
Alguns estavam literalmente de boca aberta. Ufa!
Antes de desfilarem sua beleza, os bichinhos fizeram algumas
fotos para o catálogo e para a campanha de divulgação. Se o
objetivo era ajudar a causa animal, em vez de animais contratados
por agência, por que não pagar o cachê das fotos para um local que
realmente precisava desse dinheiro?
Quando as modelos voltaram para a passarela junto com os
bichinhos usando acessórios que combinavam com suas roupas, foi
possível ouvir várias expressões como “ Own!”e “Quefofo!”.Eles
foram a verdadeira sensação do evento, virando notícia em muitos
veículos de mídia e viralizando nas redes sociais.
— Boa tarde, senhoras e senhores aqui presentes. Meu nome é
Gustavo Almeida, representante da Vestindo Estilo, e espero que
vocês tenham apreciado nossa nova coleção, fruto da parceria com
a estilista Alice Barreto, vencedora do concurso Contos de Fadas
Modernos.
Subi na passarela, trajando o mesmo vestido que tinha me levado
até a final, com Nick em meu colo, usando uma linda bandana
combinando, criada exclusivamente para ele. Aplausos explodiram
por todo o local e Gustavo me entregou o microfone assim que me
aproximei. Rui e Helena nos olhavam da plateia cheios de
admiração.
— Olá a todos! Agradeço a presença de cada um. Essa foi a
minha coleção Contos de Fadas Modernos para a Vestindo Estilo.
— Mais aplausos foram ouvidos. — Gostaria de dar alguns recados
antes de iniciarmos o coquetel.
— Arrasou, garota! — alguém gritou.
— Obrigada! — Sorri. — É muito importante lembrar que os
acessórios pet vendidos terão seu valor integral revertido para
ajudar instituições dedicadas a cuidar de animais abandonados.
Aproveitando, agradeço a parceria com o abrigo Amor de Animal. A
equipe trouxe esses lindos animais com toda a segurança para
mostrar ao mundo as peças da coleção, e será o primeiro local
beneficiado com a renda das vendas.
— Como faz para adotar um dos animais? — um convidado quis
saber.
— Excelente pergunta. Os animais presentes no desfile e muitos
outros estão disponíveis para adoção. Tem uma equipe de
voluntários prontos para esclarecer todas as dúvidas e verificar se
os candidatos estão aptos. Mas lembrem-se: animais não são
presentes. Precisam de amor e cuidados até o fim da vida. Maus-
tratos e abandono são crime.
— Esse gatinho no seu colo também é do abrigo? — outra pessoa
perguntou.
— Sim! E a primeira ficha preenchida para adoção vai ser a
minha. Então, Nick, o que acha de finalmente ir para casa comigo?
— perguntei ao gato, que pareceu entender o convite e esfregou o
focinho em meu rosto. — Acho que isso foi um sim.
Empolgadas com a cena, as pessoas foram conhecer os animais.
No meio delas, avistei dona Marina olhando fixamente em minha
direção, com um sorriso travesso no rosto. Podia jurar que ela deu
uma piscadela, assim como da outra vez, mas estava longe demais
para ter certeza.
Quem não pôde participar do evento aguardava curioso para ver a
tão falada coleção e pôde se deliciar com as notícias e fotos do
evento se espalhando por toda a internet. No dia seguinte, as
vendas começaram simultaneamente on-line e em lojas físicas. As
pessoas já aguardavam ansiosas tanto atualizando o site como em
filas esperando as portas abrirem. Nas vinte e quatro horas iniciais,
o primeiro lote das peças já se encontrava esgotado. Minha coleção
era um sucesso!
Epílogo

Dois meses depois…


De: MeninoDoRio
Olá, querida Alice!
Mesmo passando bastante tempo juntos, foi por aqui que
acidentalmente — será? — nos conhecemos, e não gostaria
de deixar isso morrer.
Se você não se importar, adoraria continuar me
correspondendo com você. Provavelmente com menos
frequência, pois agora tenho outras formas de te falar o que
penso e sinto. A minha favorita delas é olhando nos seus
olhos.
Preciso te dizer: tenho muito orgulho da mulher que você é.
Sou um cara de muita sorte por te ter ao meu lado na vida
profissional e, principalmente, na amorosa.
Aliás, falando em vida profissional, que sucesso! Nunca
duvidei. Já sobre a amorosa, eu não poderia estar mais feliz e
tento demonstrar isso diariamente de diversas formas.
Te amo,
Gustavo

De: PlusStylistRJ
Olá, Gustavo! Ou eu deveria dizer “meu amor”?
Sim, amor. Foi esse sentimento que você despertou em mim
aos poucos, e isso foi crescendo até não caber mais aqui
dentro. Ok, estou romântica até demais para o meu gosto. Tá
vendo o que você faz comigo?
Nem preciso dizer o quanto eu adoraria continuar me
correspondendo com você. Amo escrever cartas, ainda mais
se forem para alguém tão especial. Podemos tentar umas no
papel também, se quiser, mas não garanto que a minha letra
será tão legível como essa daqui. Como você já notou, meu
talento para desenho não se ampliou para a caligrafia.
Obrigada por ser esse parceiro incrível na vida e por ter
chegado para somar. Ver você crescendo e aprendendo a
cada dia me enche de orgulho. Sonhe e voe cada vez mais
alto. Eu estarei aqui para aplaudir, assim como você faz
comigo desde que nos conhecemos, antes mesmo de saber
quem eu era.
Falando em sucesso, as suas ideias na empresa têm sido
muito bem recebidas e já consigo ver a Vestindo Estilo com
uma cara diferente, com o seu toque, meu CEO favorito. E
veja só o que você possibilitou àquele abrigo e a outras
instituições empenhadas na causa animal!
Nem se eu costurasse dia e noite, as peças para arrecadar
dinheiro chegariam a essa quantia, muito menos com essa
velocidade. Saber que pelo menos aqueles animais nunca
mais vão passar por aperto e sofrimento enche meu coração
de alegria. Eu espero ver essa corrente do bem se
multiplicando, alcançando cada vez mais e mais causas.
E, assim, vamos mudando o mundo. Um passo de cada vez.
Te amo!
Alice

De: MeninoDoRio
Minha princesa, estou louco para viver o nosso “felizespara
sempre”!

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