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Copyright © 2022 Sara Fidélis

O BRUTO E A BELA
1ª Edição

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra


poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma,
meios eletrônicos ou mecânico sem consentimento e
autorização por escrito do autor/editor.

Capa: Maria Vitória


Revisão: Grazi Reis
Diagramação: April Kroes

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e


acontecimentos descritos são produtos da imaginação da
autora. Qualquer semelhança com a realidade é mera
coincidência. Nenhuma parte desse livro pode ser utilizada
ou reproduzida sob quaisquer meios existentes – tangíveis
ou intangíveis – sem prévia autorização da autora. A
violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº
9.610/98, punido pelo artigo 184 do código penal.

TEXTO REVISADO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO DA


LÍNGUA PORTUGUESA.
Sumário
Notas iniciais
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Epílogo
Receitas
Agradecimentos
Olá, meus amores! Estamos aqui com um lançamento
e esse, é muito especial para mim e sei que também será

para vocês. O Bruto e a Bela é minha vigésima história


escrita, e é uma versão contemporânea do meu primeiro

livro, O Ogro e a Louca.

Considerando isso, é muito interessante perceber


como minha escrita mudou no decorrer da minha ainda

curta carreira. Também é ótimo entregar aos meus leitores


uma história tão especial para mim, em uma nova vertente,

possibilitando que até mesmo os leitores que não gostam de

romances de época, agora possam ler.

Sempre gosto de usar esse espaço para alertar vocês


dos possíveis gatilhos na trama, dessa vez, eles não são

muitos, mas temos um no que se refere a traição. Não é

entre o nosso casal protagonista, então não precisam se

preocupar com isso.


Bom, acho que é isso! Espero que gostem de Matteo e

Anabela, se emocionem com eles, se divirtam e se

apaixonem.

Obrigada por apoiarem meu trabalho e por estarem

aqui mais uma vez.


Beijos

Sara Fidélis
Dedico este livro ao sono, do qual abdiquei para concluir,
aos energéticos e cafés que me ajudaram todas as noites e

ao travesseiro que vai me suportar logo após o ponto final. E

claro, dedico também a vocês.


Minha irmã está servindo o almoço, preparando a
mesa como faz todos os dias, também uma bandeja para

levar até nossa mãe. Dividimos nossas responsabilidades

assim, desde que nossos pais foram obrigados pelas

circunstâncias a pararem de trabalhar. Julieta cuida dos dois

e da casa e eu trabalho para pôr comida na mesa.


— Estou animada com essa sua entrevista — ela

comenta, tentando soar positiva.

A verdade é que tenho procurado um novo emprego já

tem algum tempo. Estou cansada do trabalho doméstico,


que exige muito de mim, mas sem uma formação não

consigo algo diferente, que pague um valor razoável.

— Sei que você queria estudar — Julieta diz,

meneando a cabeça —, também quero que possa fazer

faculdade um dia, e acho que talvez essa seja uma


oportunidade.

Suspiro, pensando no meu sonho distante de trabalhar

com livros ou perfumes, minhas duas paixões, não acho que

vá acontecer tão cedo.

— Como? Vou ser faxineira na mansão de um figurão e


provavelmente vai ser uma casa enorme. Vou chegar aqui

morta de cansaço e não vou ter tempo de pensar em

estudos.

Julieta faz um muxoxo, ela sabe que tenho razão, mas

quer ser otimista por mim. Colocando a bandeja em cima da

mesa, ela solta os cabelos pretos que são alguns tons mais

escuros que os meus, e os arruma com os dedos, prendendo

outra vez em seguida.

— É, mas tem duas vantagens — fala, pensativa. — A

primeira delas é que você foi indicada pelo seu antigo

patrão, então já vai para a entrevista bem recomendada e


isso deve facilitar as coisas. E a segunda e mais

importante… — Julieta faz uma pausa, criando um

suspense. — Você sabe quem é o Senhor Viturino?

O modo como ela diz isso faz parecer que é alguém

importante, seus olhos esverdeados brilham, enquanto

aguarda pela minha resposta.

— Na verdade, não. Deveria saber?

— Pois é, eu também nunca o vi, fisicamente. Mas dei

uma pesquisada na internet e você deveria fazer o mesmo.

O cara é o presidente das escolas Prover!

Franzo o cenho, assimilando a informação.

— Aqueles colégios de crianças ricas? — pergunto,

porque nesse nome sim já ouvi falar.

Já trabalhei para ricos o suficiente para conhecer essas

escolas, inclusive já lavei muitos uniformes de crianças que

estudavam lá, só não sei no que isso me ajudaria.

— Isso! Mas não só isso, ele também é o dono da rede

de ensino superior Vevet e proprietário de uma editora de


livros acadêmicos. Sabe o que isso significa?

Minha nossa! É quase como se o homem controlasse o

sistema de educação do país todo. Como não respondo,


ainda perdida com as novas informações, Julieta volta a

falar:

— Significa que se você for uma boa funcionária e se

der bem com ele, pode ser que consiga um desconto

futuramente, ou sei lá, alguma coisa que te ajude a estudar.

Sinto meu coração bater mais rápido, enquanto

começo a imaginar os cenários possíveis. Talvez seja minha

grande chance! Eles têm tantos cursos incríveis e vários

deles atraem minha atenção. A verdade é que tenho uma

ideia específica, um sonho que parece bastante impossível e

por isso o guardo no fundinho do coração, trancado a sete


chaves, mas muitas outras formações seriam excelentes

para o meu currículo e me ajudariam a conseguir empregos

que paguem melhor e que me ajudem a tirar minha família

das dificuldades financeiras.

— Isso é…

— Incrível, né? Agora vou levar o almoço da mamãe lá

no quarto e, Anabela, coma antes de ir e se esforce pra

conseguir a vaga! Se quiser dar uma olhada na internet,

pode ser que dê mais sorte que eu e encontre algo sobre o

seu futuro chefe. Não encontrei muita coisa além disso.


Julieta sai da cozinha levando a bandeja antiga com o

prato, que encheu com arroz, um pedaço de carne e

bastante salada. Pego meu celular e digito rapidamente o

nome do homem no campo de busca.

Viturino. Não sei o primeiro nome, então começo


minha pesquisa sem muitas informações, mas já encontro,

de primeira, uma página inteira falando da família e da

empresa.

Leônidas Viturino, fundador das redes Vevet e Prover,


um ícone no mercado, setenta e oito anos e aposentado.
Casado com Clarissa Viturino, com quem teve três filhos,
Matteo, Miguel e Catarina Viturino.
Encontro algumas fotos do casal de idosos, os dois

muito elegantes, em eventos do ramo. A filha também

aparece em algumas imagens, ao lado do atual marido.

Encontro até mesmo uma fotografia do casamento dela.

O filho mais velho é uma incógnita, apesar da menção

na biografia do pai, não há fotos e nem reportagens a

respeito dele, e o mais novo morreu jovem, em um acidente.

Não que essas coisas sejam relevantes agora. Se o


casal precisa de ajuda com os afazeres domésticos,
provavelmente os filhos não vão interferir nisso, eles nem

devem morar na mesma casa.

O senhor Viturino gostaria que viesse para uma


entrevista, ele vai mandar o motorista buscá-la.
Foi o que o funcionário dele disse quando ligou. Fui

indicada pelo senhor Pacheco, meu antigo patrão e isso me

garantiu uma preferência à vaga. De qualquer forma, não

encontro informações sobre hobbies ou assuntos que

possam me auxiliar na tentativa de agradar o futuro patrão,


então me apego à ideia de que sou boa com idosos,

geralmente eles gostam de mim e eu deles, vai dar tudo

certo!

Se tem uma coisa que realmente vai me ajudar, é não

chegar atrasada. Ergo o celular e analiso minha imagem no

reflexo dele. Não dormi direito à noite, ansiosa com a

entrevista, então minhas olheiras começam a aparecer sob

meus olhos castanho-claros, meus cabelos estão arrumados

em uma trança longa e escolhi uma blusa de lã, já que o dia

está frio, a calça é preta e básica e o par de sapatos da


mesma cor, são os mais novos que tenho e acho que passam

um ar mais elegante.
Olho no relógio, começando a me preocupar e, ao

mesmo tempo, escuto o som da buzina diante da casa.

Pego minha bolsa e o celular, também uma maçã da

cesta à minha frente. Saio porta afora, apressada, e

encontro um carro preto, desses modelos de luxo, à minha

espera. O chofer desce e abre a porta de trás para que eu

possa entrar, e já fico boquiaberta diante da pompa toda.

Pra que isso tudo? Eu sou uma possível funcionária,

nem tem nada certo ainda e o homem me manda um


motorista todo engomadinho, vestido a caráter e um carro
de rico! Posso imaginar o monte de frescuras que devem ter

com a arrumação da casa.

— Boa tarde, senhorita Gonzales. Eu sou o Timóteo, o


motorista da residência do Presidente.

— Da república? — pergunto, brincando, mas o


homem não parece achar graça.

Ele me fita pelo retrovisor, mas não está sorrindo.


— O Presidente Viturino. Nós o chamamos assim, mas

também pode se referir a ele como senhor Viturino.

— Ou CEO, certo? — tento mais uma vez aliviar o

clima.
Timóteo apenas aquiesce.

— Ele é o CEO da empresa, sim. Mas acho que não é

muito comum usar a sigla para se referir a alguém. Na


verdade, não precisa se preocupar muito com isso agora,

sua entrevista vai ser na residência Viturino, que fica nas


montanhas, em Campos do Jordão, e quem irá entrevistá-la

será o senhor Helder.


Ele não me dá mais informações, mas já fico nervosa

com o pouco de que disponho. Estava certa de que a


entrevista seria na capital, não trouxe nada comigo e vamos

levar cerca de três horas para irmos e mais três para


voltarmos. Fora que se o trabalho for lá, vai ser impossível

considerar.

Passo o trajeto todo preocupada, pensando sobre as

possíveis perguntas e ensaiando as respostas na minha


mente. Também enumero as dúvidas que tenho sobre o

trabalho para que possa esclarecer tudo durante minha


conversa com esse tal de Helder.

O motorista coloca uma música para tocar, algo


clássico demais, e acabo adormecendo. Quando acordo,
estamos subindo uma encosta arborizada e uma garoa leve
começa a cair.

— Estamos chegando — ele anuncia, quando percebe

que despertei.
Ao longe consigo ver a casa, se é que podemos

chamar assim. No topo da colina ela se destaca, imensa,


toda paramentada em vidro e madeira, há um deck de
madeira no último andar e já posso imaginar o quanto a

vista dali deve ser maravilhosa.

Pelo terreno estão espalhadas algumas casas


menores, como pequenos chalés, mas que também

transbordam elegância e beleza. É como se eu adentrasse


em um cenário de filme.

— É maravilhoso… — sussurro, mais para mim


mesma.

Timóteo ouve mesmo assim.


— Realmente. Foi construída pelo senhor Viturino

quase quarenta anos atrás, mas foi reformada recentemente


e passou por muitas mudanças. Algumas alas não estão

abertas também, mas é uma construção inigualável.


Aquiesço, sem saber o que responder, já que meus

olhos se perdem na vista incrível. Como alguém pode


manter uma casa como essa? Deve ter dezenas de

funcionários, considerando os jardins...

Desvio os olhos para observar melhor e percebo a

grama alta, as flores em meio ao mato denso e o óbvio


desleixo.

— Não tem jardineiro aqui? — pergunto, enquanto


seguimos para a entrada da frente.

— São pouquíssimos funcionários — Timóteo diz,


rebatendo meu pensamento anterior.

— Mas… a casa é enorme!

— O senhor Viturino não gosta de muita gente


andando por aqui, então nos viramos como dá.

Isso é muito esquisito, mas prefiro não questionar


mais ou dar a impressão de que não quero o emprego, ainda

que eu não saiba se quero ou como faria para vir todos os


dias trabalhar aqui.

Ele estaciona e desce em seguida para abrir a porta


outra vez. Quando coloco os pés do lado de fora do carro,

meus sapatos afundam na grama e percorro com os olhos a


faixada bonita. Assim de perto dá para perceber que a casa,

ainda que linda, está praticamente abandonada.

Os degraus estão imundos, as folhas das árvores


caíram sobre eles e fizeram quase uma cama, não são

varridas tem muito tempo. As portas e janelas de vidro estão


sujas e embaçadas, e logo que passo pelas portas de
entrada sou envolvida por uma enorme teia de aranha.

— Tem certeza de que alguém mora aqui? —


pergunto, mas logo ouço os passos que vem de dentro da

casa.

— O senhor Helder vai conversar com você agora —


Timóteo diz e então sai da casa pelo mesmo caminho que

fizemos para entrar.


Um homem aparece à minha frente pouco depois, os

cabelos brancos bem penteados para trás e um terno


impecável, o rosto enrugado e um sorriso gentil nos lábios.
Ele é um velhinho tão elegante e bem-arrumado, que chega

a destoar da casa saída de um cenário de filme de terror —


vocês sabem, linda, mas assombrada.

— Imagino que seja a senhorita Anabela — ele diz,

estendendo a mão para que eu o cumprimente.


— Sim, senhor. — Aceito o cumprimento e me
surpreendo com seu aperto firme. — É o senhor Helder?

— Isso, minha cara. Venha por aqui.


O homenzinho sai andando pelo corredor e tenho

pouco tempo para admirar a opulência da casa, bem


desgastada, mas ainda assim incrível.

Sigo seus passos e noto de relance as obras de arte


penduradas nas paredes, passamos por uma sala de música

e vejo um piano branco no canto, e continuamos andando


até estarmos diante de uma porta de madeira escura, ele a

abre, entra e eu o acompanho.


— Pode se sentar. — Ele aponta para o sofá de tecido.

Eu me sento na ponta dele, percebendo o quanto está

empoeirado. Ainda assim, as flores bordadas são bem


bonitas e o móvel, elegante. O senhor Helder também se
senta, mas em uma poltrona de frente para o sofá.

— Bom, eu sou o funcionário mais antigo nessa casa,


trabalho para os Viturino faz muitos anos e preciso dizer que

essa casa já passou por um período bem melhor, mas essas


são as condições atuais, depois de tudo.
Não faço ideia do que seja o tudo a que ele se refere,
mas preciso concordar que uma casa como essa poderia

estar em situação bem diferente.

— O senhor Timóteo me disse que não tem muitos


funcionários aqui — comento, sondando.
Talvez seja apenas uma desculpa, o tal Viturino pode

estar falido, isso justificaria o estado da residência.

— Trabalhamos com o mínimo necessário.


Sinto vontade de dizer que esse não é o mínimo nem

de longe, se está tudo sujo assim, mas me calo, ouvindo


suas explicações atentamente.

— O senhor Viturino é um homem reservado, não


gosta de pessoas estranhas andando pela casa e preza

muito sua privacidade. Se ficar com o emprego, vai

encontrá-lo, talvez, durante as refeições e ocasionalmente


pelos corredores, geralmente ele trabalha o dia todo no
escritório.
— Então ele mora aqui?

— Sim, ele não sai dessa casa.


Não sei bem o motivo, mas a frase me parece muito
enfática, como se o homem não saísse para absolutamente
nada, mas, claro, não pode ser o caso.

— Certo. E a vaga é para exatamente o quê?

Cozinheira? Já que mencionou as refeições…


Ele sorri, mas seus olhos se desviam para o chão.

— É para governanta, mas infelizmente estamos em


uma situação em que o cargo é apenas no nome, você não

poderá apenas delegar funções e coordenar tudo. Também


estamos sem cozinheira. Na verdade, assim como a nossa
equipe, vai precisar fazer de tudo um pouco e a
responsabilidade da casa toda estará nas suas mãos.

Meu Deus do céu! Eles não têm noção do que estão


propondo?

— Nós sabemos que é muita coisa — o velhinho volta

a falar, como se tivesse medo de que eu recusasse. — A


governanta também precisa residir no terreno da
propriedade. Há um chalé nos arredores que está
desocupado e pronto para recebê-la, suas coisas seriam
levadas para lá.

— Então eu preciso morar aqui? — questiono, apenas


para confirmar a insanidade, que só piora a cada nova
informação.
— Isso. Mas o patrão é generoso, a senhorita teria uma
folga semanal.

Sorrio, tentando conter a risada mais alta.


— É o mínimo, senhor Helder.

— Claro, claro… Não é muito complicado, sabe? Ainda

que cansativo. O patrão não é tão exigente quanto à


limpeza e à comida, mas extremamente rígido quanto a
privacidade e ao silêncio.
— Silêncio?

— Sim, são proibidos gritos pela casa, música alta ou


risadas exageradas — Helder sussurra.
Ergo as sobrancelhas, repensando sobre o quanto eu e
esse Viturino nos daremos bem. Pelo jeito em breve falar

também vai ser proibido!

— Entendo…
— A senhorita não parece muito interessada, eu
compreendo, já tivemos cinco governantas nos últimos anos

e elas não pararam aqui muito tempo, considerando


também o temperamento do senhor Presidente.

Temperamento? Pois bem, agora o homem ainda é um

babaca!
— Então o que o senhor está me dizendo sobre o

emprego é que terei muito trabalho, incluindo funções que


não são pertinentes ao cargo, vou precisar residir no local,
tendo apenas uma folga na semana e, para completar, não
posso falar alto, rir ou ouvir música e preciso lidar com um
patrão… muito rígido?

O senhor Helder ao menos tem a decência de parecer


constrangido.
— Bom, falando assim parece mesmo péssimo.

— E sem mencionar que cinco pessoas antes de mim


desistiram do emprego.
— Sim, exatamente, mas agora vou chegar à parte
vantajosa. Ainda assim, peço que caso a senhorita seja

muito sensível ou… leviana, talvez, reconsidere sobre ficar


com o emprego. Precisamos de alguém que fique, apesar
das dificuldades.

O homem ainda acha que preciso considerar alguma

coisa depois de todo esse discurso desanimador.


Francamente!
— Senhor Helder…
— Senhorita Gonzales, o salário é de sete mil e

quinhentos reais.

— O quê? — Eu com certeza estou ouvindo errado,


porque mesmo com todas as problemáticas não faz o menor
sentido oferecerem isso a alguém sem formação, como eu.

— Sim. — Ele solta um risinho ao perceber meu


espanto. — O senhor Viturino tem muito dinheiro e me deu
autonomia para incluir algum bônus caso seja necessário,
para convencer a senhorita a ficar.

— Sete mil, o senhor disse?


— E quinhentos.

— Claro. — Pisco, tentando assimilar a quantia. — E

um bônus para me convencer… O que tem de errado com o


trabalho?
— Nada além do que já expliquei. Acontece que a
senhorita foi bem recomendada e, como ele preza por

privacidade e todas essas questões mencionadas, a


indicação de um familiar tem grande importância.

— O senhor Viturino é parente do senhor Pacheco? —


questiono, tentando entender a que parentesco ele se

refere.
— Não, quem recomendou seus serviços ao patrão foi

a dona Catarina, que é amiga íntima dos Pacheco.

A filha do casal, se bem me lembro do que li antes de


vir.

— Certo… E a esposa do senhor Viturino? Eu gostaria


de conhecer a…

Mas Helder meneia a cabeça, negando meu pedido.


— O Presidente não tem esposa.

Franzo o cenho. Estaria a internet errada? Não é tipo


uma lei? Se está na internet é porque é verdade. Como
assim, não tem? E a senhora Clarissa?
Talvez tenham se separado, mas prefiro não

questionar.

— Então só o senhor Viturino mora aqui?


— Isso, apenas o Presidente.

Nessa casa enorme! Que coisa esquisita. Mas isso


facilita um pouco as coisas, lidar com um chefe ranzinza é
melhor que lidar com uma família inteira de pessoas chatas.
Nunca tive um emprego em que conseguisse ajudar

minha família e ainda fazer algo por mim, sempre precisei


depositar todo meu salário nas despesas da casa, que, aliás,
aceitando esse emprego até diminuiriam, considerando que
teria uma boca a menos para alimentar na casa dos meus
pais.

— Pelo seu interesse, imagino que o salário pareceu

atraente. Acha que consegue lidar com as complicações do


cargo diante disso? — o senhor Helder pergunta.
As mãos do velhinho batucam incessantemente sobre
os joelhos, o que indica que ele está nervoso. De jeito

nenhum eu rejeitaria essa quantia, mas já que vou sofrer


aqui, talvez possa testar os limites do meu futuro patrão um
pouco mais.

— Senhor Helder, eu não me importo em ser uma

governanta que além de delegar funções, lava, passa, limpa


e cozinha. Sei que posso dar conta de tudo.
— Excelente! — Ele sorri.

— Mas o senhor mencionou um bônus… Acho que vai


concordar comigo que o emprego vai exigir muito de mim e
talvez esse bônus seja o atrativo final para que eu aceite o
cargo.

— O que a senhorita deseja? Vou providenciar se


estiver ao nosso alcance — ele responde sem hesitar.
— Não é algo que vai ter custos financeiros. Eu… —
Desvio os olhos para minhas mãos sobre o colo, talvez
temendo a reação dele diante do meu pedido um tanto
ousado. — Quero estudar.

— Como disse?
— Terminei o ensino médio apenas, como deve ter
visto no meu currículo e sei que a Vevet oferece várias

bolsas anualmente. É isso que quero, uma bolsa para


estudar.

O homem pisca, atônito, e continuo, antes que ele


negue meu pedido:

— Sei que deve parecer estranho, mas é um sonho


que tenho e que nunca pude bancar. Sei também que um
curso superior não é tão barato, mas ele é o dono, certo?
Não vai custar nada, eu posso cursar à distância, assim não

preciso sair daqui à noite.

— Bom… Acho que não vai ser um problema, mas…


— Jura? — Começo a me animar, porque esperava
alguma objeção, mas ele parece bem inclinado a concordar.

— Qual seria o curso? Me diga e vou falar com o patrão


antes de fecharmos um contrato.
— Nada tão caro! Quero ter minha própria empresa
um dia, então penso em fazer administração ou talvez
biblioteconomia, porque quero trabalhar com livros,

provavelmente… Bom, ainda estou indecisa, mas algo do


tipo, decido quando chegar a hora.

Eu deveria ter me decidido e vindo com uma resposta


pronta, mas jamais cogitei que fosse conseguir o emprego

com tudo acertado assim.


O senhor Helder se levanta e caminha lentamente
para fora da sala. Remexo as mãos, ansiosa, nervosa com a
resposta que ele pode me dar.

Talvez o senhor Viturino me ache muito abusada e me


mande catar coquinhos e dar o fora daqui imediatamente.
Mas talvez me ache corajosa e determinada e sejam essas
as qualidades que ele admira como chefe, certo? Vou

manter o pensamento positivo.


O homem demora cerca de quinze minutos para voltar
e não sei se a conversa levou tanto tempo ou se foi por
conta do tamanho da casa e da lentidão dos passinhos dele.

Quando retorna, já não tenho esmalte nas unhas, arranquei


tudo cutucando, enquanto o aguardava.
— Bom, senhorita Gonzales, o patrão está de acordo
com o seu pedido. O emprego é seu se quiser ficar, mas
precisa começar ainda hoje.

— Hoje? Mas eu nem trouxe minhas coisas.


— O Timóteo pode buscar de manhã, se ficar bom
para a senhorita. Além disso temos seus uniformes já no

chalé e os itens básicos de higiene.

Eu me levanto em um pulo, comemorando, e acho que


pego o velhinho de surpresa quando o abraço apertado,
saltitando.

Eu deveria ser mais contida, mas mal posso acreditar


na minha sorte! Consegui um emprego que paga muito bem
e que vai mudar tudo para mim e, de quebra, vou estudar e
garantir meu futuro e o da minha família, poder ajudar

minha irmã para que ela também consiga estudar.

É como um milagre! O senhor Viturino pode ser o


próprio diabo que não vou me importar, porque ele acaba de
se transformar em um anjo, que mudou minha vida em

menos de uma hora.


Em todos os aniversários daquela data fodida acabo
sucumbindo. As lembranças ressurgem e me atormentam e

não consigo lidar com o peso delas sem uma ou duas

garrafas de uísque.

Para minha sorte, tenho esse lugar, meu próprio

universo onde consigo lamber minhas feridas sem ter os


olhos atentos de outras pessoas em cima de mim, me

analisando, sugerindo milhões de outras maneiras de lidar

com meus problemas, que não sejam me afundando em


álcool e me isolando do mundo.
A verdade é que parte de mim também morreu

naquela noite e o que restou foi isso, apenas a carcaça vazia

do que um dia foi um ser-humano. Conduzir uma empresa,

administrar minhas propriedades e ocasionalmente ter

algum contato com a minha família consomem toda a


minha energia e não sobra nada para interação social. Não

que alguém fosse se beneficiar com a minha presença

lúgubre.

A mansão foi adaptada para atender a todas as

minhas necessidades básicas e não preciso de mais que


isso, os poucos funcionários são bem treinados pelo meu

mordomo e não costumam ser um inconveniente, e daqui,

dessas terras ao redor da casa e de dentro do meu escritório,

controlo o legado dos Viturinos, sem contato com o mundo

externo.

Mas não hoje. Todos os anos nessa data e perto dela,

deixo o controle e o entrego nas mãos das amarguras das


minhas decisões ruins, do passado.

Passei a noite aqui, o dia já amanheceu tem muito

tempo, mas não faço ideia de que horas são. Não sei se já é

tarde ou se o sol já se pôs. Fiquei no escritório, mais


especificamente na biblioteca, relendo trechos do maldito

livro que me traz tantas lembranças ruins e bebendo em um

brinde silencioso à morte, que elevou minha tragédia a uma

proporção tão épica quanto a história que pouco antes

esteve em minhas mãos.

Acordo debruçado sobre o sofá atrás de mim, o rosto e

as roupas amassados, o livro caído ao chão e as garrafas


vazias. Helder não bateu na porta, ciente do estado em que

me encontraria, ele simplesmente entrou e agora está

parado à minha frente. Por mais que disfarce, seus olhos

transmitem a pena que tanto odeio.

— Que foi?

— A nova governanta, Presidente — ele diz, desviando

os olhos para as garrafas aos meus pés —, ela está aqui para

a entrevista.

— Não quero falar com ninguém. Se Catarina disse

que é boa, contrate a mulher e me deixe em paz.

Como sempre, ele nem titubeia diante do meu tom

mordaz e é por isso que o mantenho comigo desde sempre.

Não me lembro de uma vida da qual Helder não fizesse

parte.
— Sim, senhor. Ela aceitou as funções, mas quer um

bônus.

— O salário não é bom? Que porra mais ela quer?

— Senhor Viturino, ela disse que…

Meneio a cabeça, o interrompendo, sua voz parece

entrar dentro do meu cérebro e chacoalhar tudo. Os sinais

da ressaca que ameaça chegar.

— Qualquer coisa, não me importo com isso. Faça o

que essa senhora quiser, desde que ela impeça que a casa

desabe sobre nossas cabeças.

— Certo, o senhor precisa de alguma coisa?

Preciso morrer.
— Vou subir e tomar um banho daqui a pouco, tenho

que resolver algumas coisas da empresa mais tarde.

Helder aquiesce, mas não sai, ele parece engasgado,

como se ainda quisesse dizer alguma coisa.

— Que foi agora?

— O senhor precisa comer, Presidente. Já é quase

noite e não come nada desde ontem.

Ainda acho estranho quando ele me chama assim,

sendo o homem que cuidou de mim ainda na infância e que


me viu crescer, mas como exijo um tratamento formal dos

demais funcionários, Helder achou por bem se enquadrar

nisso com os outros.

— Não consigo pensar em nada que elas não

consigam estragar — falo, me referindo às funcionárias

atuais, que ou colocam sal demais na comida ou deixam a

carne dura, nada nunca fica aceitável.

— Vou pedir à nova governanta, ela disse que não se

importa em cozinhar.

— Espero que seja melhor que essas duas.

Ele concorda com um gesto de cabeça e me dá as


costas, saindo do escritório. Penso em me levantar, mas

meus olhos acabam se fixando no livro caído aos meus pés e

sinto outra onda de raiva me dominar.

Droga. Talvez eu devesse beber um pouco mais…


Com tudo acertado com o senhor Helder, não tive

tempo sequer de conhecer minha nova casa, o chalé que

fica logo atrás da mansão. Segui direto para a cozinha.

Helder me pediu que ajudasse com o jantar e

prometeu me mostrar a casa toda depois, além de me

explicar melhor sobre o trabalho, então eu o segui, o que

mais poderia fazer?

A casa parece ficar maior a cada instante, nesse

primeiro andar encontra-se o hall de entrada, a sala de

visitas, um escritório pequeno, onde Helder e eu

conversamos antes, a sala de música, da qual pude ter um

vislumbre e a sala de jantar, que é imensa e tem uma mesa

comprida de madeira, lindíssima e coberta de poeira. Do

lado esquerdo há um corredor, com mais duas portas

fechadas.

— O que tem ali?

Helder desvia os olhos para onde aponto.

— A primeira porta é o escritório e biblioteca do

Presidente e a segunda é a área da piscina.

— Dentro de casa? — questiono, estranhando.


— Sim, é coberta e aquecida.

Interessante…

— No andar de cima ficam os quartos, na ala a sua

esquerda vai encontrar a suíte do patrão e mais duas para

as ocasionais visitas, também vai ver a porta para o deck e a

varanda.

— E na ala direita?
— São outros quartos e cômodos, mas essa ala está

fechada. Não precisa se preocupar em limpar.

— Por quê?
— São muitos cômodos e pouco funcionários, então o
Presidente decidiu manter apenas parte da casa em

funcionamento.

— E ele usa a biblioteca e a área da piscina?


— Quase todos os dias.

— Certo. E preciso chamá-lo de Presidente?


O senhor Helder para e me encara, o cenho franzido,

mas não sei se pelo meu comentário ou se são só as rugas,


em razão da idade.

— Do que mais o chamaria?

— Hum, é… — respondo, por falta do que dizer.


Quando finalmente chegamos à cozinha, que fica aos
fundos da mansão, encontro uma cena digna de registro.

Duas mulheres estão praticamente soterradas por


louças, panelas e ingredientes, uma grita pedindo coisas a

outra, que parece não estar atenta, e o que elas estão


fazendo pode ser chamado de tudo, menos de um jantar

decente.
— Elis? — o senhor Helder chama e, pela

informalidade, posso imaginar que já sejam amigos.

Uma mulher de meia idade, com o rosto coberto de

farinha de trigo ergue os olhos muito azuis e o encara. Ela


ostenta um sorriso gentil nos lábios.

— Estou aqui, tentando fazer um bolo para a


sobremesa, enquanto Suzi diz que está preparando o jantar

— ela fala, apontando para a colega com a cabeça.

— É uma tentativa — a outra, provavelmente Suzi,


responde —, eu não sou cozinheira, senhor Helder, não

aguento mais criar cardápios diariamente e ver voltar tudo


intocado.
— Se fizesse alguma coisa gostosa ele comeria — Elis

rebate, e as duas começam a rir.


De repente elas parecem me notar atrás dele,
observando a cena com apreensão. Não tem como sair uma

comida razoável dessa bagunça.

— Quem é você? — Suzi pergunta, desviando os olhos


para mim. Apesar das palavras, o tom é bem-educado. — É a

nova governanta que veio nos salvar?


O velho mordomo me olha e dá de ombros, deixando
que eu mesma me apresente.

— Eu sou Anabela, vou trabalhar com vocês aqui,

como governanta sim, em teoria — completo.


Elas voltam a rir, quando ouvem a última parte.

— Mas no momento, vou ser cozinheira — digo, me


aproximando delas para tentar entender o que estão

fazendo. — O senhor Hélder pediu que eu preparasse o


jantar para o… Presidente.

— Ah! Graças a Deus! — Elis solta a colher de madeira


e leva a mão ao peito. — Eu juro que sou uma ótima

assistente, posso te ajudar no que precisar, é só pedir.

— Ótimo! Vou dar uma olhada na despensa então e na

geladeira. O senhor Viturino tem alguma restrição


alimentar?
— Comida ruim conta? — Suzi questiona, com uma

careta.

Acabo rindo com o comentário.

— Agora que já se adaptou a essas duas futriqueiras,


vou cuidar do meu trabalho — o velho mordomo decide. —

Senhorita Gonzales, esteja à vontade para dar suas ordens a


essas duas, sobre qualquer coisa que precisar e, bem, faça

as mudanças que achar necessárias, a casa está


inteiramente nas suas mãos experientes.

Que Deus me ajude!


Tudo bem que já trabalhei em casas de família antes,

já fiz tudo que vou ter que fazer aqui, mas em outra


proporção. Não sei quando vou conseguir dar um jeito nesse

lugar inteiro, então o melhor é começar o quanto antes.

Encontro alguns legumes na geladeira, que não está


muito abastecida, mas os entrego nas mãos de Elis para que

pique tudo, enquanto coloco água para ferver. Depois, os


coloco para cozinhar em fogo baixo, preparando uma sopa
para a entrada.

Enquanto cozinham, tempero e preparo um pedaço de


lombo e levo ao forno para assar.
Elis errou o ponto da massa do bolo e está tudo mole

demais, mas consigo consertar com um pouco mais de trigo.


Além disso coloco pedaços de nozes picadas no meio e unto

uma forma para levar ao forno.

Quando a carne fica pronta, coloco o bolo para assar e


assim continuo, sem parar um minuto, até ter todos os
pratos prontos.

Respiro aliviada quando vejo que são oito horas e o


jantar já pode ser servido. Consegui fazer arroz, refogar um

feijão e preparar uma salada, não é nada muito elaborado,


mas tenho certeza de que ao menos vai estar com um gosto

bom.

— Você é uma fada! — Suzi elogia, batendo palmas


diante da arrumação dos pratos.

— Não foi nada. Aliás, vou concordar que fiz isso bem


mais rápido que geralmente… E agora? Como costumam
fazer?

— O quê? — ela questiona, sem entender minha

pergunta.
— Chamam o Presidente para o jantar? Quem serve a

mesa?
Elis meneia a cabeça.

— Não precisamos chamar, pontualmente ele abre a

porta do escritório e uma de nós leva o jantar.


— Por causa da mesa suja, suponho. Vou dar um jeito

na sala de jantar amanhã. Querem que eu leve? Não me


apresentei ainda a ele. Na verdade, eu nem o vi.

Mas elas prontamente negam minha sugestão.


— Não precisa, pode ir arrumar suas coisas no chalé.

Nós cuidamos de tudo aqui e da louça, você mal chegou e já


caiu no meio do furacão.

Penso em insistir, mas me lembro dos meus pais e de

Julieta, que devem estar doidos por uma ligação minha,


além disso, quero mesmo conhecer o chalé que vou chamar

de casa de hoje em diante.


— Tá bom, então. Qualquer coisa vocês me chamam?

— Claro, vou te levar até lá — Suzi se oferece.


Saímos pela porta dos fundos e noto como a noite

nesse lugar é maravilhosa. Alguns postes pequenos


iluminam parcialmente o caminho, e o céu faz o restante do

trabalho.
Andamos sobre a grama úmida e de onde estamos
consigo avistar as luzes amareladas, já acesas no chalé que

fica a uns cinquenta metros da propriedade.

— É aquele?
— Sim, Elis e eu moramos perto também, dividimos
um chalé um pouco para baixo, o Timóteo mora no outro.

— E o senhor Helder?

— Ele tem uma suíte na casa, fica perto do patrão.

Quero perguntar sobre o nosso chefe, mas chegamos

diante das portas do chalé e Suzi me estende um molho de


chaves.

— Arrumamos tudo pra você mais cedo, espero que


goste.

— Vocês arrumaram? Mas como sabiam que eu ia

ficar?
Ela dá de ombros.

— Quando mencionam o salário todas querem o

emprego, o difícil é se manter nele.


Faço uma careta ao ouvir o comentário dela.

— Ele é tão difícil assim?


— E mais um pouco — responde, rindo —, mas você se
acostuma.

— Mesmo?
— Não! Eu ainda estremeço quando ele grita —
responde, rindo.

— Ele grita com vocês? — Estou começando a ficar

assustada.
— É mais com as situações, sabe? Tipo, ele não fala,
Suzi você é uma cozinheira de merda! Mas ele diz: Que
porra de comida horrorosa e salgada é essa? No fundo, é a
mesma coisa, não acha?

— É, não sei se tem muita diferença. Mas você está


aqui tem bastante tempo?

— Estou, me acostumei com ele, na verdade é só não


levar para o lado pessoal, ele nem liga pra nós, não decora
nossos nomes, então também não levo essas coisas para o
coração. O que importa é a grana no final do mês.

Certo, talvez ela tenha razão, mas eu e meu pavio


curto vamos ter que encontrar uma forma de lidar com esse
babaca.
— Vou voltar agora e ajudar a Elis, a coitada treme
toda vez que leva a comida pra ele.

Suzi acena com um tchauzinho agitado e começa a


correr, voltando ao trabalho.
Abro a porta com a chave que ela me deu e entro no
chalé.

É uma grata surpresa. O ambiente é aconchegante e


bonito, há uma lareira em um canto, já acesa, e em frente a
ela um sofá-cama, com algumas almofadas.

Uma televisão pequena está fixada na parede e nos


fundos, uma cozinha compacta, mas completa, exala
charme. Vejo uma única porta, que provavelmente é do
banheiro, e uma arara de madeira ao lado dela, com vários
cabides para que eu coloque minhas roupas.

Acima, uma prateleira guarda as roupas de cama.


É tudo simples, mas de bom gosto. Não é um espaço
enorme, mas maior que meu quarto em casa. É perfeito!

Meu celular vibra dentro da minha bolsa e me


repreendo por ter me esquecido de avisar Julieta.
— Oi! — atendo rapidamente.
— Onde você se meteu? Estou preocupada! A mamãe
já queria chamar a polícia!
— Em Campos do Jordão, acredita? A entrevista era
aqui.
— O quê? E não saiu ainda? Vai chegar aqui muito
tarde, precisa vir logo!
— Me escuta, aconteceu muita coisa — falo, me
jogando no sofá cama para descobrir se é confortável —,
consegui o emprego!

O estofado é bem macio até, ainda que não seja a


mesma coisa de uma cama.

— Jura?
— Juro! Mas aí vem a questão, a vaga é para trabalhar

aqui.

— Em Campos do Jordão? Mas é longe!


— Sim, vou ter que morar aqui, mas tenho uma folga

no fim de semana. Parece ruim, eu sei, mas ainda não


cheguei à parte boa.

— Então conta logo!


— O salário é absurdo, tenho um chalé só meu e

consegui convencer o patrão a me dar uma bolsa na


faculdade.

— O quê? — O grito dela quase estoura meu tímpano.


— Não acredito!
— Eu sei! É surreal, né? Então é o seguinte, Juli, conta
pra mamãe e pro papai, tranquilize eles e diga que vou ter

que ficar aqui. No fim de semana eu vou em casa e conto


tudo em detalhes.

— Mas irmã, vale a pena mesmo?


— Quando vou ter outra oportunidade assim? Com
esse salário posso bancar vocês aí e ainda comprar minhas
coisas. Vou mandar fotos do chalé, você mostra para os dois
pra ficarem calmos.

— Tá bom! Eu quero foto de tudo, não esquece de me


mandar.
— Prometo! Ah! O motorista dele deve ir buscar
minhas coisas de manhã, você arruma uma mala com

roupas? Principalmente de frio, aqui está gelado e eu não


trouxe nada além da minha bolsa, por sorte minha escova
de dentes veio comigo.

— Pode deixar!
Encerro a chamada e começo a fotografar tudo

imediatamente. Tiro fotos dos móveis, do espaço como um


todo e saio do lado de fora para fotografar a entrada.

Depois de enviar as imagens, sigo até o banheiro e,

satisfeita, constato que o chuveiro é uma daquelas duchas


grandes e a água parece bem quente. Não tenho roupas
limpas para vestir, então tomo um banho rápido e coloco as
mesmas de antes.

Encontro no braço do sofá uma pilha de vestidos,


todos iguais, em um tom cinza horroroso, pelo modelo e a
falta de beleza, imagino que sejam meus uniformes, eles até
se parecem um pouco com os que Elis e Suzi estavam
usando, só que os delas tem um avental por cima.

Credo…
Puxo o sofá cama para que abra e arrumo os
travesseiros, estendo os cobertores e me preparo para me

deitar. Só quando ouço meu estômago roncar é que percebo


que não jantei e nem comi nada.

A geladeira da cozinha é quase do tamanho de um


frigobar e não encontro dentro dela nada além de água e

gelo.
Abro os armários e avisto dois pacotes de macarrão
instantâneo, que por sorte não estão vencidos. Preparo um
deles, me ressentindo por ter cozinhado um jantar tão
gostoso pouco antes e agora estar comendo miojo, mas é a

vida, Anabela! Ele é milionário, você não.

Abro um sorriso.
Bom, não sou milionária, mas sou proprietária de um
salário muito, muito generoso a partir de agora.

**
O dia amanheceu perto das seis horas, mas eu me
levantei antes do sol. Ainda no chalé, construo uma lista de
todas as alas da casa, ainda que eu não tenha certeza

absoluta de quantos cômodos são.

Área externa.
Inclui jardins, frente da casa, varanda e deck.
Gramado.

Área interna.
Salas
Inclui a de visitas, hall, a de jantar e a de televisão
(será que tem uma?)
Piscina
Biblioteca/escritório
Cozinha

Quartos
Banheiros

Feito isso, começo a listar as coisas que precisam ser


limpas, além da própria casa.

Tapeçaria
Roupas de cama
Louça
Objetos de decoração

Com minhas listas em mãos, sigo para a casa,


sabendo que pelo horário ainda não vou encontrar as outras
trabalhando.

Aproveito o primeiro momento sozinha para conhecer

o lugar, terei que instruir as outras, então não adianta ficar


esperando que me expliquem tudo.

Entro na sala de música e percorro o ambiente com os


olhos. É tudo muito bonito e, apesar de abandonado e sujo,

não há nada aqui que água e sabão não resolvam. Ótimo!


As demais salas não têm a mesma sorte, em uma
delas o estofado está rasgado e na de jantar uma das
cadeiras está com a perna solta. Anoto as duas coisas para

resolver logo e continuo minha expedição.

Na área da piscina, estranhamente está tudo limpo,


mas então me recordo do que o senhor Helder disse. O
Presidente usa o local quase todos os dias, ele não iria nadar

na água suja.
A piscina é uma dessas olímpicas, com raias dividindo
o espaço. Em volta dela o piso é de madeira e, sobre ela, o
teto é de vidro. Colunas em estilo grego estão dispostas pelo

local, conferindo a estrutura uma aura de sofisticação,


espreguiçadeiras acolchoadas circundam a piscina.

É encantador!
Mas curiosa mesmo estou com o cômodo ao lado. Abro

a porta da biblioteca e de repente sou transportada para um


reino de sonhos.
É impossível não ficar fascinada! Admiro as estantes
altas e imponentes e a escada bonita que leva até as
prateleiras rente ao teto.

São milhares de livros dispostos nas estantes, o


cômodo é muito comprido e os móveis abarrotados de
exemplares estão espalhados por todo o local. Passo as mãos

pelas lombadas diversas, algumas são coloridas e


extravagantes, outras sutis e discretas e ainda há aquelas
douradas e chamativas.
Sempre tive uma relação quase de adoração com os
livros. É maravilhoso que, ainda que minha vida seja chata e

monótona, solitária, dentro das páginas dos romances eu


possa encontrar homens maravilhosos e viver amores
impossíveis.

Desde que me entendo por gente, estive em meio aos


livros. Minha mãe era bibliotecária e sempre me dava
exemplares novos, lia cada um deles para mim e me levava
a conhecer histórias mágicas. Quando aprendi a ler, ela
passou a levar os títulos que eu pedia, e assim minha paixão

por eles só aumentou.


Meu gosto por perfumes data da mesma época,
sempre amei sentir os cheiros e os relacionar a coisas já

conhecidas, ou descobrir fragrâncias novas, fazer misturas e


sentir que algo diferente se formou.

Avisto um exemplar jogado no chão, perto de um


estofado. A mesa de trabalho do Presidente está abarrotada

de papéis e há um computador ligado sobre ela. Talvez eu


não devesse ter entrado aqui.
Pego o livro do chão e leio o título na capa. A Ilíada.

Nunca li, ainda que sempre tenha tido curiosidade.

Qual seria o aroma desse livro?


É uma coisa minha, sempre que começo a ler um livro
e a gostar dele, borrifo um perfume, ou uma essência que
eu goste em um pedaço de papel e o uso para marcar o

progresso da leitura. Aos poucos, o cheiro se mistura as


páginas, e aquela história ganha um aroma próprio, único.

Sempre que meu olfato detectar aquela fragrância


depois, a história vai voltar com força total à minha

memória. Assim crio ligações entre meus livros preferidos no


mundo e os perfumes de que mais gosto. Não precisa
necessariamente ser uma colônia, já o fiz com o cheiro do
pó de café, da canela e outras tantas coisas.

Coloco o exemplar sobre a mesa de centro, avisto duas


garrafas vazias jogadas no chão e as posiciono de pé sobre o
tampo de madeira. Depois deixo o cômodo, ainda que contra

minha vontade. Talvez não seja a melhor forma de encontrar


o patrão, xeretando em suas coisas, então saio do lugar e
continuo minha expedição.
Quando termino de olhar tudo no andar de baixo, sigo
até a cozinha, onde encontro Elis e Suzi já à minha espera.

Helder está com elas e ele sorri ao me ver.

— Bom dia, senhorita Anabela.


— Bom dia, senhor Helder, bom dia, meninas. Preciso

de algumas coisas e queria falar com o senhor a respeito.

— Claro, de que precisa?


— Posso chamar um jardineiro? Também preciso fazer
algumas compras para a casa, comida e produtos de

limpeza. O estofado de uma das salas está rasgado e preciso


de alguém para consertar o pé de uma das cadeiras da
mesa, na sala de jantar.

O mordomo concorda, abrindo um sorriso.


— Como a senhorita é eficiente! Mal começou e já

notou tudo isso. Vou te entregar o cartão de crédito do


Presidente, que é reservado para as despesas da casa, pode
comprar tudo que precisar.

— Mas… O cartão dele?

— Não se preocupe, todas as compras chegam para


que ele veja depois, ele não se importa.

Claro que não, rico como é…


— Tá bom. Então vou pesquisar um jardineiro aqui e já

ligar, pra que venha hoje ainda.

Encontro com facilidade uma floricultura por perto,


fica mais abaixo, na cidade, mas não é longe. Eles

prometem enviar um funcionário experiente e fico satisfeita


por resolver meu primeiro problema no novo emprego.
Matteo
Eu me sento em frente ao computador e coloco os

fones no ouvido, antes de clicar no link para a reunião. A

câmera se abre e Catarina aparece do outro lado, toda


sorridente. Minha irmã é sempre assim, ela e o esposo,

Alberto, me ajudam a gerir a empresa desde que eu assumi


a presidência.

Como não faço aparições públicas e não aceito me


reunir com os administradores, acionistas e funcionários,

Catarina e Alberto têm uma procuração para tomarem

decisões e assinarem por mim, mas eles geralmente não o

fazem.

Quase que diariamente nós três nos falamos, seja

através de ligações ou por chamadas de vídeo, e eles me


passam todas as questões que precisam do meu aval,

depois colocam minhas ideias e planos em prática, sempre

em nome do Presidente. São fiéis e dedicados ao extremo e

nem mesmo o que aconteceu no passado, diminuiu a

devoção de Catarina para comigo.

— Bom dia, irmão! — Ela acena do outro lado.

Seus cabelos escuros estão presos em um coque no

alto da cabeça e os olhos azuis, iguais aos meus, me

esquadrinham à procura de qualquer sinal de que eu não

esteja bem. Ela sabe melhor que ninguém o que esse


período do ano faz comigo.

— Bom dia, Cat. Como vai o bebê?

Ela desvia os olhos e pousa a mão sobre a barriga

protuberante.

— Preguiçoso! Acho que deveria nascer logo pra que

eu consiga minhas costelas de volta.

— Só mais um mês — comento.

Minhas perguntas são mais por educação, não me


interesso de verdade pela gravidez e sei que sou um homem

horrível por isso, mas não é algo que esteja no meu controle.

Não sinto nada de bom há muito tempo.


— Eu sei, estive pensando e acho que Alberto e eu

deveríamos ir até Campos do Jordão te visitar essa semana,

o que acha? — Sei bem o motivo da visita repentina, mas

ela nem me dá espaço para interromper. — Depois que o

bebê nascer vai ficar complicado por algum tempo, então

acho que agora é o momento ideal.

— Eu estou bem, Cat. Não precisam vir.


Mas Catarina apenas faz um gesto de desdém com a

mão.

— Deixe de besteira, quem disse que não estava bem?

Só quero ver meu irmão.

— Acho melhor não, a casa não está pronta para

receber visitas — explico, porque assim talvez ela tire a ideia

da cabeça. — Agora chame logo o Alberto pra começarmos

essa reunião.

— Ele teve que sair pra resolver umas coisas, somos só

nós dois hoje. Mas vejamos… Bom, a inauguração do polo


dois da universidade em Campinas vai acontecer na sexta.

— Catarina leva a ponta da caneta até a boca, eu sei bem o

que a pausa e a expressão ensaiada significam. — Eles

gostariam…
— Não — interrompo.

— Mas eu nem falei!

— Não vou sair daqui, Catarina, você já sabe disso.

Não vou à porra de inauguração nenhuma, já sabe o que

fazer.

Catarina me encara com aquele olhar de piedade que

tanto detesto.

— Mas Mat, já tem cinco anos…

— E vão se passar mais uns sessenta, talvez. Vou viver

e morrer nessa casa, sabe disso.

— Mas por quê? Já não falamos sobre isso?

— Já e sua opinião não vai mudar a minha —

respondo, enfático. — Vamos voltar ao tópico da reunião. Se

eles pediram que eu fosse, é porque querem alguém para

cortar a fita e fazer parte da cerimônia, você ou Alberto

podem cuidar disso.

Ela meneia a cabeça.

— Perguntei se você iria porque tenho que tentar de

vez em quando, mas já tenho um substituto à altura.

— Quem?
— Papai. Ele se dispôs a ir e vai ser bom, vão gostar de

ter a presença dele lá.

— Perfeito. Mais alguma coisa? Algo urgente? Minha

cabeça está me matando hoje, quero tomar um remédio e

me deitar um pouco.

Catarina franze o cenho e, pela expressão dela, já sei

que disse a coisa errada.

— Bebeu a noite toda?

Prefiro não mencionar que foram duas noites, ou ela

viria imediatamente. Minha irmã tem o dom de ser

intrometida, tanto que mesmo com todos os meus esforços


para me afastar de tudo e todos, ela consegue se manter

relativamente próxima.

— Só um pouco — minto. — Encerramos por hoje?

Ela parece considerar e muda de assunto

drasticamente.

— A nova governanta já chegou?

— Sim, veio ontem — respondo, me lembrando de que

a mulher foi indicada por ela.

— Então vou amanhã, peça a ela pra preparar um

quarto pra nós.


— O que uma coisa tem a ver com a outra? Já disse

que não estou pronto para receber visitas.

— Sua casa parece um mausoléu, Matteo! Eu estou

grávida, preciso de um mínimo de conforto, mas como ela

chegou, sei que não vai se incomodar de preparar um

quarto pra nós. Além disso, o Pacheco disse que a comida

dela é excelente.

Isso me faz recordar o jantar maravilhoso que comi na

noite anterior, a mulher realmente sabe o que faz na


cozinha.

— Disso não posso discordar, fazia tempo que eu não

comia tão bem.

— Porque não contrata uma cozinheira… — fala baixo,

quase em um sussurro.

— E vou continuar assim.

Ela suspira.

— Bom, deu sorte então em conseguir uma

governanta que saiba cozinhar. Que fique por aí por muito

tempo.

— Quem sabe se casa com o Helder e fica pra sempre,


como ele? — comento, analisando a hipótese. Não seria
ruim.

Catarina parece surpresa com meu comentário.

— Mas ela é velha assim?

— Não sei, não a vi, mas deduzi que fosse.

— Você não a viu, Matteo? Cria vergonha nessa sua

cara! Como contrata a mulher e nem a cumprimenta? Você

já foi mais educado!

— Não preciso ser gentil, Catarina. Só tenho que pagar


bem.

— Você não existe! — comenta, irritada. — Quer


saber? Vou desligar, vai tomar seu remédio e dormir um
pouco, espero que esteja de bom humor quando eu chegar.

E vai conversar com o Alberto, está ouvindo?

— Sempre falo com ele.


— Conversar direito e não sobre trabalho.

— Mas sobre o que eu…


— Tchau, Matteo!

E, simples assim, ela desliga na minha cara.

Mal posso acreditar que vou ser obrigado a


recepcionar Catarina e o marido. Depois o mal-educado sou
eu, mas ficar se oferecendo para ir à casa dos outros é o
cúmulo.

Ouço três batidas a porta e logo Helder coloca a


cabeça branca para dentro.

— Posso entrar, Presidente?

— O que foi?
Ele fecha a porta atrás de si e caminha a passos lentos

até estar diante da minha mesa.

— A nova governanta começou o trabalho, está

observando as melhorias que a casa precisa e eu disse que


deixaria o cartão para as despesas com ela.

— Certo, isso é bom — concordo, pensando na visita


repentina da minha irmã. Vai ser ótimo que veja que estou

vivendo bem e largue do meu pé por um tempo. — Peça que


ela prepare um quarto para a Cat e o Alberto, vão vir visitar.

— Que maravilha! — O rosto todo do velhote se


ilumina. Catarina tem esse poder de conquistar as pessoas e

ele a adora. — Vou falar agora mesmo. Só tem uma questão


que achei melhor discutir com o senhor…

— E o que seria?
— Ela vai enviar a cadeira quebrada para a marcenaria
e o estofado que se rasgou para a tapeçaria. Mas quanto ao

jardim, pediu a floricultura que enviasse um funcionário


experiente, como eu sei que o senhor não gosta de

estranhos na propriedade, vim informar sobre isso, para


saber se tudo bem ou se digo para que ela deixe como está.

A grama está mesmo precisando ser aparada.

— Deixe como está. Não quero nenhum estranho

rondando aqui.
— Mas sua irmã vai vir e o jardim está um desleixo…

— Então eu vou arrumar — respondo, categórico.

— O senhor?

— Isso. Fale com ela pra cancelar com o jardineiro, vou

me trocar e capinar a entrada da casa.


— Tudo bem.

Ele retoma o caminho na direção da saída.

— E, Helder, explique a ela que não gosto de


estranhos aqui. Até mesmo as compras que fizer, peça que
entreguem no portão, lá embaixo.

— Tudo bem.
Helder deixa a biblioteca e sigo logo atrás. Subo para

meu quarto e troco as roupas sociais por uma calça velha de


moletom e uma camiseta que já viu dias melhores.

Tenho certeza de que há um par de botinas aqui em


algum lugar. Sempre que algo do tipo precisa ser feito na

propriedade, prefiro assumir o trabalho quando necessário,


a deixar alguém entrar no meu universo privativo.

Abro a parte do closet em que ficam meus sapatos e


encontro o que estou procurando. O fato de estarem velhas

e surradas é ainda melhor, já que vão ficar imundas.

Após instruir Elis para limpar a mesa da sala de jantar

e remover as teias de aranha do lugar, incumbi Suzi de


cuidar do hall. Talvez devêssemos mesmo começar por lá e

ir faxinando cada cômodo.


Decidi aproveitar a tarde que o patrão passa

trabalhando no escritório para limpar o quarto dele e me


programei de acordo com os horários do homem. Se ele iria

para a piscina às cinco horas, então eu aproveitaria esse


horário para limpar a biblioteca, retirar as garrafas vazias de

bebida que vi por lá e organizar o que for possível.

Subo as escadas, empolgada por finalmente conhecer

o segundo andar da casa.


Decido começar pelo quarto dele para não atrapalhar

sua rotina, caso ele decida voltar. Abro a porta alta de


madeira e entro em um cômodo escuro e frio. Meus olhos

levam algum tempo para se ajustar, mas aos poucos consigo


vislumbrar os contornos dos móveis.

Passo em frente a cama e sigo até as portas grandes

que saem na varanda. Eu as abro, deixando que a luz do dia


entre. Bem melhor.
Ainda que o Presidente seja chato e mal-humorado, na

idade dele não deveria ficar em um quarto fechado e


abafado assim, pode até mesmo fazer mal. Ele que me

aguente, porque vou colocar essa casa nos trilhos.


Arrumo a cama e troco os lençóis, olho ao redor e
percebo que o cômodo não está tão sujo quanto o restante

da casa, mas ainda assim tiro o pó, limpo o chão e passo um


pano úmido na varanda.

A vista daqui é fantástica, mal posso imaginar como


deve ser à noite.

Percebo um movimento em um dos arbustos em


frente à casa e me inclino sobre a balaustrada para enxergar

melhor. Um homem está capinando a grama. Sorrio,


satisfeita ao constatar que o jardineiro veio mais rápido que

o previsto.

O rapaz ergue a enxada e desfere o golpe contra o

mato alto, e não posso deixar de notar os músculos do braço


forte, comprimindo a camiseta justa.

Meu Deus do céu! De onde foi que esse jardineiro


saiu? Fico parada por um momento a mais que o

considerado decente, observando, mas quem pode me


culpar?

Os cabelos dele são bem pretos e caem um pouco


sobre a testa e já está todo suado. Não consigo ver os olhos
a essa distância, nem discernir os traços, mas é impossível
que um homem com esse corpo, não seja bonito.

Balanço a cabeça, desanuviando os pensamentos e

volto para dentro. Não é hora de ficar babando no corpão do


jardineiro.
Termino de arrumar o quarto, coloco as coisas no lugar

e, quando tenho certeza de que está tudo em ordem,


recolho meu material de limpeza e fecho as portas da

varanda outra vez, saindo do quarto.

Sigo para o cômodo ao lado e encontro um quarto tão


grande quanto o anterior, mas esse, por não ser usado com

frequência, está imundo, e levo mais de uma hora para


conseguir limpar, lavar o banheiro e tirar o pó e as teias de

aranha.
Busco roupas de cama limpas e troco tudo, deixando

um aroma gostoso de desinfetante no ar, quando saio.


Gostaria de conhecer o restante do andar, mas,
considerando o horário, o melhor que tenho a fazer é descer
e limpar a biblioteca, antes que o Presidente volte do seu

tempo na piscina.
Desço as escadas rapidamente e entro no escritório,
mas o que encontro não poderia me deixar mais surpresa.

Tranquilamente sentado na poltrona do Presidente,


lendo um livro surrado, está ninguém menos que o
jardineiro bonitão — reconheço pelos braços —, o abusado
não apenas tirou as botinas enlameadas, que agora estão

jogadas displicentemente sobre o carpete, mas também


arrancou a camiseta e exibe um senhor tanquinho, digno de
dar inveja, ou água na boca.
Por um instante eu o observo em silêncio. Não por

estar fascinada pela beleza do homem, mas porque a cara


de pau dele é tão grande, que não sei como reagir.

Mas não tenho como fugir, sou a governanta da


mansão e fui eu quem chamei esse idiota para cuidar dos

jardins. Lógico que eu não podia prever que o homem iria


invadir a casa e se sentar confortavelmente no escritório do
meu chefe.
Provavelmente ficou esperando o pagamento, mas

nada nesse mundo justifica uma atitude tão sem noção!

Estou furiosa. O que o senhor Viturino diria se o


encontrasse aqui? O homem sempre tão reservado teria um
ataque do coração, o que, na idade dele, pode ser fatal e
lógico, ainda me demitiria.

Cruzo os braços sob os seios e caminho até estar mais


perto dele, que, concentrado na história, ainda não me
notou.
— Está confortável aí, moço?

O abusado ergue o rosto e me encara com o par de


olhos mais azuis que já vi. Caramba! Ele é ainda mais
perfeito assim de perto. A barba é cheia e o maxilar forte, os

cabelos escuros e a expressão feroz.


Jesus me abana! Foco, Anabela! Pode ser lindo, mas é
um safado e pode colocar seu emprego a perder.

Ele me olha de cima embaixo, se demorando em cada

parte do meu corpo, fazendo com que meu rosto comece a


arder de vergonha.
— Eu fiz uma pergunta — falo mais alto, tentando o
intimidar e retomar o controle da situação.

— Hum… Estou confortável, eu acho — ele responde,


como se não tivesse sido pego em meio a uma invasão.
A resposta me deixa ainda mais irritada. Que cretino!
Noto as botinas dele enlameadas e jogadas no chão e

tomo uma decisão. Se não sai por bem, vai sair por mal. Me
abaixo e pego uma delas, dominada pela raiva.

E movida pela impulsividade, eu ajo. Sem pensar duas


vezes, atiro a primeira bota, que acerta o livro que ele tem

nas mãos e o joga no chão.


Ao menos consigo o surpreender, porque o rapaz se
levanta em um pulo e me encara com os olhos muito
arregalados.

— Está ficando louca? Quem você pensa que é para


sair atirando as coisas em mim? Aliás, o que você está
fazendo aqui?
Suas perguntas não me detêm nem por um momento,

preciso ser rápida e me aproveitar do elemento surpresa,


porque se ele conseguir me alcançar, sei que não vou ter
forças para lutar com um brutamontes como ele.

Então agarro com firmeza a outra bota e jogo contra

ele. Ouço o barulho quando o calçado o atinge bem na


cabeça.
— Saia daqui agora, seu sem-vergonha! Como tem
coragem de entrar assim na casa dos outros? Se eu for
culpada por isso, pode ter certeza de que vou pegar aquela

tesoura que você usa pra cortar o mato e vou fazer


picadinho de você!

O homem agora parece furioso, provavelmente porque


a botina o atingiu com força, e já começo a ver um galo se

formar.
— Quem você está chamando de sem-vergonha? E
com certeza não sou eu quem está invadindo propriedade
privada e atirando coisas.

Ele avança para cima de mim, planejando me


encurralar, mas consigo prever seu plano e pego um troféu
de vidro em cima da mesa.
— Se não sair agora, juro que vou jogar isso na sua

cabeça!

Ele parece perceber que não estou para brincadeira,


porque logo se abaixa em silêncio e pega sua camisa,

estendendo uma mão para o alto como se eu fosse um


assaltante e ele estivesse rendido.
— Calma, calma… Já estou saindo.

Continuo brandindo o troféu nas mãos e, vez ou outra,

ameaço jogar, até ele, de costas, chegar diante da porta e


sair por ela.

Só me resta esperar que vá embora de verdade. Levo a


mão ao peito, sentindo os batimentos do meu coração,
acelerados.

Foi muito arriscado o que fiz, não deveria ter


enfrentado o homem assim, mas agora que passou me sinto
melhor. Ao menos protegi o escritório do meu chefe. Ele
teria orgulho se soubesse a que ponto cheguei para tirar o

homem daqui.

Subo as escadas na direção do meu quarto, já com o

telefone nas mãos e prestes a chamar a polícia, mas


encontro Helder diante da porta, seguindo na direção
contrária à minha.
— Helder! — chamo e arrasto o homem para dentro do
quarto.

— Senhor? Aconteceu alguma coisa? — Ele olha para


os meus pés descalços e meu estado de imundície e se

assusta.
— Aconteceu! Tem uma mulher no meu escritório,
acho que deve ser de alguma gangue ou alguma coisa
assim. Ela começou a gritar comigo, começou a jogar

minhas botinas em mim — conto, apontando a testa para


elucidar. — Ficou falando coisas sem sentido e exigiu que eu
deixasse a casa, até me ameaçou com um dos troféus da
empresa, aqueles de vidro. — Ando de um lado para o outro

pensando em todas as possibilidades. — Acha que… será


que querem tomar posse das minhas terras à força? Um
bando? Imagino que não esteja sozinha, ela não invadiria
assim sem um respaldo.

Meu mordomo meneia a cabeça e me olha parecendo


confuso.
— Senhor Presidente? O senhor não está fazendo
muito sentido, não tem ninguém na casa.
— Estou dizendo porque eu vi, o hematoma na minha
cabeça não prova isso? Está me chamando de mentiroso?
Vamos fazer o seguinte, vou pegar minha arma, só pra
ameaçar a ladra e você liga pra polícia imediatamente.

Mas o velhote não se move.


— Acho que devemos verificar a casa antes, não vejo
necessidade de alertar a polícia sendo que ela já pode ter

ido embora.

Pensando bem ele pode ter razão. Talvez eu esteja


lidando com uma maluca, o melhor a fazer é a encontrar e
colocar pra fora sem alarde, se possível.
Passei parte da noite em claro, preocupado com a
invasão estranha que ocorreu durante o dia. Helder

vasculhou a casa toda e não encontrou nem sinal da

estranha, ainda assim, fiz questão de dormir com o revólver

perto da cama, por precaução.

Logo que o dia amanheceu, desci para o escritório,


decidido a colocar algumas coisas em ordem antes da

chegada de Catarina. O dia passou sem maiores imprevistos

e da biblioteca pude ouvir a correria pela casa, enquanto a


nova governanta e as outras funcionárias arrumavam tudo

para receber Catarina e Alberto.

Perto das três da tarde Helder trouxe uma bandeja

com café e bolo, além de um pão caseiro que me deixou

com a boca cheia d’água. A senhora Gonzales realmente


sabe usar as mãos.

Ainda consegui tempo para nadar um pouco e depois

desci para malhar na academia no porão, onde também

treino boxe no meu tempo livre. São hobbies e atividades

que me ajudam a manter a sanidade dentro dessas paredes.

Depois de tomar um banho, fui informado por Helder

de que minha irmã havia chegado, e é por isso que agora

estou aqui, de pé na entrada da casa, aguardando por ela e

Alberto, que seguem caminhando a passos de tartaruga, por

causa da barriga enorme de Cat.

Ela abre um sorriso enorme ao me ver e me envolve

em um abraço meio sufocante.

— Ah, Mat! Que saudades de você. — Segurando meu


rosto nas mãos, ela analisa meus traços com minúcia. —

Essa barba está imensa! Não concorda, Alberto? Já está na

hora de voltar a parecer humano.


— Muito obrigado pelo conselho, estou bem assim.

— Você tem comido direito? — insiste.

— Como um rei de dois dias pra cá, desde que a

senhora Gonzales chegou.

— Ah! Que maravilha! Então vamos entrar que estou

morrendo de fome. Será que ela vai preparar o jantar?

— Helder disse que já está quase pronto, entrem.

Alberto me cumprimenta com um aperto de mão


firme e um sorriso que não consigo retribuir. Odeio essa

mania que eles têm de se preocuparem tanto comigo.

Catarina entra na casa e percebo que seus olhos

atentos percorrem todo o ambiente. Está observando a

situação da casa e acabo fazendo o mesmo para tentar

deduzir o que ela vai dizer.

Nem havia notado o quanto tudo estava limpo, mas as

teias de aranha desapareceram e os móveis estão sem pó.

Algumas cortinas e tapetes também sumiram, mas isso é o

de menos.
— Parece que ao menos a casa está em ordem…

— E por que não estaria? Acha que vivo aqui no meio

da sujeira? — pergunto, sem um pingo de vergonha pela


mentira.

Sei que se ela souber a verdade não vai mais me

deixar em paz.

— Ela não parava de falar em vir te ver, Viturino, pelo

menos agora vai ter o bebê em paz — Alberto diz,

caminhando logo atrás de nós, também analisando a casa

com atenção.

São dois intrometidos, foram melhores amigos um dia

e depois acabaram se casando. Não tem como dizer que não

são feitos um para o outro, já que os dois adoram meter o

nariz onde não são chamados.

— E vocês vão embora que dia? Amanhã?

— Mat! Deveria ao menos fingir que está feliz em nos

ver — Catarina rebate, mas não sinto um pingo de remorso.

Não é que eu não goste deles, só prefiro não ter que

lidar com visitas ou com a alegria irritante desses dois.

— Você sabe que não sou de fingimento.

Alberto começa a rir, porque ao que parece, nem

quando sou grosseiro consigo os ofender.

Chegamos à sala de jantar e me sento à cabeceira, os

observando se sentarem um à minha esquerda e o outro à


direita. Alberto começa a falar sobre amenidades e, pelos

olhares furtivos que eles trocam, sei bem que Catarina o

obrigou a puxar assunto.

Seria muito mais fácil para todos nós se minha irmã e

meus pais aceitassem o óbvio. Eles não perderam apenas

meu irmão, eu também estou morto por dentro. Sou oco e

não me importo com nada que possam dizer ou fazer por

mim, não quando ninguém pode me oferecer a

oportunidade de voltar no tempo e consertar meus erros.

— Boa noite, pequena Cat — Helder cumprimenta,

todo sorridente quando passa pela porta e a vê.

Catarina solta um gritinho animado e se levanta o

mais rápido que a barriga permite, para abraçar o velho

mordomo.

— Meu Helder! Que saudades eu senti…

— E eu de você. — Ele fita minha irmã com carinho e

depois pousa os olhos sobre seu ventre redondo. — Vai

trazer o bebê para que eu conheça?

Catarina responde, apoiando as mãos na cintura:

— Sabe que pode morar comigo na capital, não sabe?

Você iria me ajudar com meu filho, assim como ajudou


minha mãe comigo e Mat. E descansar um pouco também,

eu cuidaria de você, Helder.

— Para de tentar roubar meu mordomo, Catarina —

reclamo, ouvindo a proposta.

Ela estreita os olhos e me encara.

— Ele é da família! Não sabe que digo isso a ele todas

as vezes que venho? E sabe o que esse bobo sempre

responde?

Helder meneia a cabeça, sorrindo, mas Catarina

prossegue:

— Diz que não pode deixar o menino Mat.

— Engraçado, porque ele só me chama de Presidente

— respondo, fitando Helder e vendo que ele não retribui

meu olhar.

— É por respeito — ele diz, concentrado em encarar

apenas minha irmã —, como vou dar o exemplo aos

funcionários se ficar chamando o patrão de pequeno Mat?

Além disso, ele prefere assim hoje em dia.

Nisso ele tem razão. Não posso aceitar que me tratem

como criança, logo eu, um marmanjo de trinta e cinco anos.


— Quer se sentar com a gente Helder? — Cat convida,

já arrastando o homem.

— De jeito nenhum — o velho estaca no lugar —, mas

vim avisar que o jantar vai ser servido.

Helder consegue escapar de Catarina e foge de volta

para a cozinha. Pouco depois, uma das funcionárias mais

antigas na casa entra, trazendo uma travessa fumegante de

carne.

Não consigo me lembrar do nome dela, mas vejo


quando cumprimenta minha irmã e meu cunhado e depois

abaixa a cabeça quando passa por mim. A outra vem logo


depois e também coloca uma travessa com um risoto sobre

a mesa. Elas continuam indo e vindo até depositarem todos


os pratos à nossa frente e, por fim, se retiram.

Todos se servem, e fico satisfeito em ver que comendo


minha família fica menos tagarela. Catarina come um pouco

de cada prato e repete a dose, fechando os olhos a cada


garfada e fazendo com que o marido também prove tudo.

— O que achou do risoto? — pergunta, já é a quarta


vez que ela tece comentários sobre a comida.
— Maravilhoso — Alberto responde, sempre um bom
capacho para a minha irmã.

— E a carne?
Respiro fundo para manter a calma.

— Cat, já entendemos que você gostou de tudo —

corto, porque estou começando a me irritar.


A essa hora eu poderia estar lendo um livro, quieto na

biblioteca, ou me preparando para me deitar.

— Mas, Matteo! Essa mulher cozinha como uma

artista! É tudo incrível.


Ela tem razão no que diz, devo ter ganhado dois quilos

em apenas dois dias, mas prefiro não estender o assunto,


então apenas aquiesço.

— Vou falar com ela. — Catarina se levanta


repentinamente.

— O quê? Com a governanta?

Eu não consigo entender a dinâmica de Catarina, que


toma umas decisões aleatórias.

— Com quem mais?

— Mas por quê? Deixe a velha em paz, Catarina.


Suas faces começam a ficar rosadas e percebo que
está perdendo a paciência com meu jeito agradável de ser.

— Você é um grosso, sabia? Aposto que não elogiou a

comida dela nenhuma vez.


— Eu nem vi a mulher, como iria elogiar?

— Está vendo, Alberto? — Como sempre, Cat busca o


apoio de Alberto. — Não acha que ele fica pior a cada dia?

Como pode não ver a pessoa que está tomando conta da


casa toda? Isso é um absurdo!

— Olha, Matteo, vou ter que concordar com sua irmã.


Isso é muito esquisito.

— E quando é que não concorda com ela?


— Além de ridículo, é muito desagradável com os

Pacheco, que a indicaram — a tagarela continua. — Vou até


a cozinha agradecer e vou trazer a mulher aqui. E você,

trate de ser educado.

Esfrego as têmporas, irritado com o rumo que as


coisas estão tomando. Mas que inferno! Mal chegou e já está
me dando dor de cabeça.

— Calma, cara. Você anda muito estressado, acho que


está precisando de férias — Alberto diz, rindo abertamente
da minha cara.

— Férias do que, Alberto?


— Não sei, por que não vai viajar?

Ofereço meu melhor olhar mortal a ele, que tem ao

menos a sensatez de ficar quieto.


Catarina retorna pouco depois, ouço sua voz animada

e ergo os olhos para me deparar com a cena mais


assustadora da minha vida.

De braços dados com minha irmã e sorrindo


docilmente está ninguém menos que a ladra de ontem.

Apesar de perder a calma com Catarina e Alberto, eles são


minha família e algum resquício de humanidade que existe

dentro de mim se apavora, com medo que ela faça mal a um


deles.

Essa desgraçada!

Eu me levanto imediatamente e tento pensar rápido,

mas deixei a porra da arma no quarto.


— Saia de perto dela agora, sua bandida! — grito,

fazendo a única coisa ao meu alcance agora.

A mulher ergue o rosto e seus olhos encontram os

meus, Catarina abre a boca, assustada com o que está


acontecendo. Como não estaria? Grávida e refém de uma

maluca.

— Mat, eu…
— Fique calma, Catarina. Helder! — grito, tentando

encontrar uma solução.

Não posso simplesmente avançar e tirar a ladra daqui

a força, é uma mulher, por pior que seja. Mas posso assustá-
la.

Pego a faca da carne sobre a mesa e a empunho,


ameaçando, a moça solta o braço de Catarina e leva as

mãos ao rosto, amedrontada.

Isso…

— Quero que saia imediatamente dessa casa, ou vou


chamar a polícia!

— Mas o que é que está acontecendo? — Alberto

questiona.
— Essa mulherzinha invadiu a minha casa, me atacou
com as minhas botinas e tentou quebrar um troféu na

minha cabeça. Eu não sei o que ela quer, mas parece um


cão que não larga o osso.
— Matteo, você está bem? — Cat se aproxima dois
passos, devagar. — Irmão?

— Irmão? — a bandida pergunta, com olhos meigos.


O pior é que a safada sabe se fazer de inocente, é

linda e tem um corpo feito para o pecado, ainda que esteja


sob o longo vestido cinza, é impossível não perceber. Mas

que merda ela faz usando a roupa das minhas funcionárias?

— É culpa minha, dona Catarina — ela diz, em voz

baixa. — Houve uma confusão pelo que posso perceber.


— Cala a boca! — grito, exasperado com a falsidade

na voz de boa moça.

— Alberto! Segura ele, vai atacar a coitada da


senhorita Gonzales! Perdeu o juízo!

Enquanto absorvo as palavras e tento encontrar


sentido para elas, meu cunhado simplesmente agarra
minhas mãos, as prendendo em minhas costas, e me

empurra contra a mesa, tentando me segurar.

Como se fosse possível que um fracote como ele me


detivesse, caso eu não estivesse completamente em

choque. Ela disse senhorita Gonzales?


A bandida avança na direção da mesa, os olhos da
mesma cor que o mel líquido e que agora estão cheios de

água.

— Não precisa segurá-lo, por favor. Ele disse a


verdade, eu fiz mesmo essas coisas…
Alberto solta meus braços lentamente e Catarina

também se aproxima de nós, tentando entender esse circo.

— Desculpem, eu acho que fiz uma confusão — ela


continua, em sua explicação nada racional.

— Você é a governanta?

Ela aquiesce, mas não me encara.

— Eu não percebi que o senhor era filho do


presidente...

— Filho de quem? — Catarina questiona, também

alheia à loucura que virou esse jantar.


— Do Presidente Viturino.

Acerto o punho cerrado sobre a mesa e os talheres

pulam, assustando aos três.


— Eu não sou filho dele, sua maluca, eu sou o
Presidente.
Ela leva as mãos à boca e arregala os olhos, como se
só agora entendesse a dimensão da merda que fez. Minha

irmã se senta na cadeira outra vez, tão confusa quanto eu.

— Alguém pode me explicar direito o que está


havendo aqui?
— Depois, Cat. Agora a senhorita Gonzales e eu temos

muito o que conversar.

Não olho para trás quando caminho na direção da


biblioteca, tenho certeza de que depois da besteira sem
tamanho que ela fez, não vai hesitar em me seguir.

Entrando no escritório, me dirijo à minha cadeira, a


governanta vem logo atrás e fecha a porta, nos deixando
sozinhos.
Ela se aproxima da mesa, as mãos cruzadas à frente

do corpo e os olhos fixos nos próprios pés, está com


vergonha, e isso é o mínimo diante de tudo.

— Pode começar a se explicar.


Há apenas um instante de hesitação, mas ela logo

encontra a voz e começa a narrar os acontecimentos.

— Bom, meu nome é Anabela Gonzales, fui contratada


para ser a governanta da casa, mas não nos encontramos
nesses dois dias que estive aqui.

— Nos encontramos sim.


— Não direito, foi o que quis dizer…

— E a senhorita afirma que não é uma ladra, nem


membro de uma gangue?

— O quê? — ela questiona e parece surpresa com a


hipótese.

— Você invadiu meu escritório e começou a gritar e a


me ameaçar, atirando coisas em cima de mim. Quer que eu

pense o quê?
Ela suspira e fecha os olhos. Acho que está tentando
se recompor.

— Eu tinha chamado um jardineiro.


— Que eu disse para não chamar e avisei que eu
mesmo iria capinar a grama.

Anabela abre os olhos e me encara, com as

sobrancelhas erguidas.
— Então foi isso…

— Isso o quê?

— Só me disseram pra cancelar com a floricultura


muito depois. Então quando te vi da janela, capinando a
grama, achei que fosse o jardineiro.

Tento compreender o que se passou na cabeça dela,


mas cada vez fica mais difícil.
— Você achou que eu…

— Achei. E aí, quando entrei e te vi na cadeira, pensei

que tivesse invadido a casa, talvez esperando o pagamento.


— Pensou que o jardineiro invadiu o escritório e se
sentou na minha cadeira?

Ela não faz o menor sentido.


— Exatamente. Imaginei que se o Presidente, o senhor
no caso, chegasse e visse, ficaria furioso e ainda me
demitiria por não colocar a casa em ordem, então resolvi
enfrentar o… homem.

— Sem-vergonha — falo, citando a maneira que ela se


referiu a mim. — Se me lembro bem foi o termo que usou.
— Me desculpe, Presidente. Eu não tinha como saber,

não fazia ideia! Sei que está em seu direito, se quiser me


demitir, mas eu tenho feito um bom trabalho, não tenho?
Garanto que não costumo fazer essas coisas, jogar botinas
nos chefes.

Franzo o cenho diante do pedido de desculpas.


— Ou ameaçar ou esquartejar com tesouras de

jardim…

Vejo-a comprimir os lábios e percebo que está


contendo uma má resposta, ela está irritada com a
repreensão e, de repente, quero testar até onde vai sua

fachada de boazinha.
— Se a senhorita fosse mais eficiente, uma boa
funcionária, teria se apresentado ao seu chefe — comento.
— Nada disso teria acontecido.

O rosto dela fica vermelho e os olhos parecem duas


faíscas agora.
— Se o senhor fosse menos assustador, eu teria feito
isso.

Bingo.
Ela cobre a boca com a mão, ciente de que falou
demais.

— Eu te assusto? Pelo menos não fico ameaçando as


pessoas.
A garota coloca as mãos na cintura e bufa. Não tem
outra maneira de descrever, acho que a provoquei o

bastante para que atingisse um limite.


— Me desculpe pela sinceridade, mas o senhor faz

muito pior — fala, sem travas na língua. — Elis e Suzi


morrem de medo do senhor e o pobre do senhor Helder fica
defendendo essas regras ridículas, sobre não falar alto, não
ouvir música e não viver — completa, exagerando um

pouco. — Até a sua irmã parecia apavorada perto do senhor,


e olha, colocar medo em uma grávida e tratar a própria
família com falta de educação, não deveriam ser os modos
de um Presidente — ela diz a última palavra como se fosse

um insulto.

O comentário me diverte e percebo que sinto vontade


de sorrir, faz muito tempo que não me pego prestes a
gargalhar diante de qualquer coisa.

— E você diz tudo isso, sabendo que posso te mandar


embora?

— Digo por isso mesmo. Já percebi que já que vai me

demitir por defender sua casa contra um invasor — Anabela


coloca as mãos na cintura, chega a ser engraçado, ela é
baixinha e delicada, mas não parece ter receio nenhum de
me enfrentar —, então ao menos posso falar o que penso.
— Certo. Mas Anabela, ainda tenho uma dúvida —
digo, suprimindo a risada. — Por que inferno você não
cogitou a possibilidade de que eu fosse seu chefe? Afinal
estava no meu escritório, sentado na minha cadeira e você

ainda não tinha me visto. Como isso não passou pela sua
cabeça?

Ela abre a boca e fecha três vezes, depois percebo que


desvia seus olhos dos meus.

— Bom, eu só não imaginei…

— Por quê?
— Não podia imaginar essa sua aparência — fala, de
repente.

Por algum motivo seu comentário me faz querer rir


outra vez.
— O que tem de errado com a minha aparência?

Ela troca o peso do corpo de uma perna para a outra,


nervosa.
— Nada.

— Então não entendo. Quis dizer que me achou muito


feio, é isso? — questiono, simplesmente porque quero a
ouvir confessar o contrário.
É uma sensação estranha, já faz anos que não ouço
um elogio de uma mulher bonita e nunca senti falta, mas
por alguma razão quero que ela diga.

— Claro que não!


— Então me achou bonito.

Anabela estreita os olhos na minha direção, parece


uma onça prestes a atacar.

— Presidente, não sei o que isso tem a ver com a


conversa.

— Tudo. Quero entender por que agiu daquela


maneira.

Exasperada, ela ergue os braços e os solta ao lado do


corpo.

— O senhor quer que eu diga o quê? Com esses braços

e sem a camisa, o rosto…


Não estou mais conseguindo controlar a vontade de
rir.

— O que tem meu rosto agora?

— Eu não esperava que se parecesse com um modelo


de cueca, tá bom? Satisfeito? Achei que fosse um velho de
cabelos brancos e todo enrugado! — ela explode.
A gargalhada explode, vindo de dentro de mim, ao
mesmo tempo em que ela continua suas explicações, mas
não consigo mais me concentrar. Ela disse mesmo modelo

de cueca?

— Eu li sobre sua família, o senhor Viturino, seu pai.


Deduzi que ele fosse o presidente e na biografia dele diz
que tem mais de setenta anos…

— Então estava esperando um idoso — respondo, sem


conseguir parar de rir, o que parece enfurecê-la ainda mais.

— Isso!
— Não um modelo de cueca…

Dessa vez ela não confirma, apenas desvia os olhos


dos meus, constrangida.
— Tá tudo bem, senhorita Gonzales. Pode ir. — Seco os

olhos, tentando me acalmar, mas basta olhar para a


expressão indignada dela, que volto a rir, sem controle.

— Embora?
— Não, voltar ao trabalho.

— Não vai me demitir?


Sorrio, diante da surpresa na voz dela.

— Quer que eu te demita?


— Não, senhor, mas depois de tudo que aconteceu,
machuquei sua cabeça inclusive, sei que o senhor não gosta
de mim.

— Não mesmo, mas isso não tem importância.


— Como não?

— Você cozinha muito bem — falo, em um elogio

sincero —, está cuidando da casa, limpando e fazendo seu


trabalho. Se ficar fora do meu caminho, o que não é difícil
em uma casa desse tamanho, vamos nos dar bem.
— Vai ser um prazer ficar longe do senhor.

— Então temos um acordo.


Ela aquiesce e me dá as costas, mas mantém a pose
orgulhosa. Que governanta interessante eu fui arrumar…
Que grande idiotice eu fui fazer, meu Deus! Nem
acredito no tamanho da gafe. Confundir o patrão com o

jardineiro e expulsar o cara do próprio escritório!

Ele tem razão por ter ficado furioso, não sei como não

perdi o emprego, porque ele foi provocando, me irritando, e

quando percebi já tinha falado poucas e boas. Alguma coisa


eu devo ter feito certo.

Só que agora, tenho duas situações complicadas para

resolver. A primeira delas é referente à família do

Presidente.
Catarina foi tão educada e gentil, me agradeceu pelo

jantar e me tratou como se fôssemos amigas. E, em troca, a

coitada quase teve o filho ali mesmo na sala de jantar, com

o susto que levou. Preciso me desculpar.

A segunda e mais preocupante questão, é meu chefe,


mal-humorado, bruto e modelo de cuecas nas horas vagas.

O homem com toda certeza não gosta de mim e tudo bem,

ele não gosta de ninguém mesmo. Mas ainda assim, preciso

ao menos melhorar a impressão ruim que existe agora e não

sei como fazer isso.


Eu me remexo no meu sofá-cama, preocupada, afinal

eu fiz muitos planos com esse trabalho, não posso sair daqui

assim, por um mal-entendido bobo. A lembrança do

momento em que ele saiu do escritório me vem à mente e

meneio a cabeça.

— Anabela, sua idiota!

Eu preciso fazer algo que o agrade, que seja o

suficiente para esquecer o ocorrido e seguir adiante.

Talvez eu pudesse…

A biblioteca, claro!
Eu me sento em minha cama repentinamente, a ideia

fervilhando em minha mente.

Quando entrei na biblioteca, notei que apesar de ter

um acervo muito grande, é completamente desorganizada.

Os livros estão enfileirados sem nenhuma ordem ou padrão,

empoeirados e muitos até jogados, aleatoriamente.

Ele gosta de ler. Sei disso porque encontrei um livro na


minha primeira visita ao local e depois quando o surpreendi

e cometi a besteira de o expulsar, ele também estava lendo.

Além disso, quem teria uma biblioteca daquele tamanho se

não gostasse? Mas ainda assim não parece ter paciência

para a manutenção e a limpeza dos exemplares.

Se eu organizasse tudo bem bonitinho, por nome de

autor ou ainda por gênero, separasse nas estantes de uma

maneira mais metódica, com certeza ele iria agradecer,

ficaria feliz.

E se eu conseguisse selecionar alguns dos seus livros


preferidos e perfumar cada um deles, o Presidente não teria

outra escolha que não, me adorar! Eu seria elevada ao nível

do senhor Helder, com certeza. Então me decido, é isso que

vou fazer, eu só preciso da oportunidade.


E ela cai no meu colo, logo na manhã seguinte.

Depois de preparar um farto café da manhã para

acalmar os ânimos e lavar a louça em seguida, encontro

Catarina na sala de jantar, sozinha. Ela tem as pernas

apoiadas em uma cadeira que colocou à sua frente e mexe

no celular, parecendo entediada.

— Bom dia, senhora Catarina!

Ela ergue os olhos ao me ouvir e abre um sorriso.

Melhor, pelo menos ela ainda parece gentil.

— Bom dia, Anabela! Como passou a noite, depois

daquela situação de ontem?

— Bem, na verdade. Seu irmão não me demitiu,


então…

Catarina aquiesce, como se eu tivesse dito algo muito

interessante.

— Surpreendente — ela comenta, pensativa —, eu não

tinha dúvidas de que ele a colocaria no olho da rua. Não que

você tenha culpa, mas o Mat não tem paciência, não perdoa

e não confia nas pessoas com facilidade.

— Foi um engano, um gigantesco e catastrófico, mas

não fiz por mal.


— Eu não entendi muito bem o que houve, você

deveria me contar! Fiquei bem curiosa… — fala, tirando os

pés da cadeira e os apoiando no chão.

— Adoraria ficar e contar tudo, mas preciso mostrar

serviço, antes que ele mude de ideia.

Catarina não parece se importar com a minha objeção.

— Alberto o arrastou para pescarem, tem um açude

nos fundos da propriedade. Matteo não queria ir, mas não

teve muita escolha, então ele não volta até o fim da tarde, a

menos que chova… Está frio e o tempo meio fechado, não

acha?
Está sempre escuro dentro da casa, mas não

necessariamente isso reflete o clima lá de fora, hoje, no

entanto, realmente o céu está nublado.

— Sim, mas a previsão não disse que vai chover. Tem

certeza de que só voltam à tarde?

— Tenho sim. Por quê?

— É que… — Olho para os lados, confirmando que ele

não está mesmo por perto e depois me aproximo. — Estive

pensando em alguma forma de me redimir, fazer algo pra

agradar o Presidente.
— Interessante, mas preciso te dizer que quase nada o

agrada...

— Eu sei! — respondo, contente com a ideia que tive.

— Mas aí pensei em uma coisa, ele gosta dos livros, não

gosta?

— Ama! — Catarina se levanta, animada antes mesmo

de saber meu plano.

— Então, não sei se a senhora entrou na biblioteca,

mas está uma bagunça.

— Posso imaginar.

— Os livros jogados, as estantes empoeiradas… Eu

também adoro livros, acho que poderia arrumar tudo em

ordem, pelos nomes dos autores ou pelo gênero. Ele ficaria

feliz, não acha?

— Ou o mais próximo disso! Que ótima ideia! Sabe o

que eu acho? Que podemos ir, você e eu. Vou te ajudar e

vamos conversar.

— Não, de jeito nenhum. Não precisa se preocupar,

está grávida, melhor ficar descansando.

— Mas eu quero! Não vou aguentar ficar o dia todo


aqui sozinha, sem nada pra fazer. Você retribui minha ajuda
com duas coisas…

— O quê? De qualquer forma já te devo um pedido de

desculpas por ontem.

— Basta me entreter com fofocas e com alguma coisa

gostosa pra beber! E comer…

Sorrio diante da fome infindável dela, dizem que

algumas grávidas comem por dois. Catarina parece comer


por cinco.

— Que tal chocolate quente? Acho que combina com o


clima.

— Perfeito! — Ela bate palmas e chega a fazer uma


dancinha engraçada. — Vou te esperar no escritório, então.

Eu não a deixo esperando por muito tempo, levo uns


quinze minutos para preparar o chocolate e pegar alguns

biscoitos que restaram da fornada que assei para o café da


manhã.

Quando entro no escritório, encontro Catarina

analisando as estantes, com o cenho franzido.


— Bem que você disse, estão uma zona!

— Eu disse pra senhora…


Ela revira os olhos e me encara, colocando as mãos na
cintura.

— Você sabe que não devo ser muito mais velha que
você, não sabe? Dá pra parar de me chamar de senhora?

— Eu não acho que seja velha! — respondo, morta de


medo de que ela tenha me interpretado mal. — É só um

sinal de respeito, o seu irmão exige um tratamento mais


formal.

— Meu irmão é uma besta! Me chame de Catarina ou


Cat.

Acabo rindo da forma como ela fala do meu chefe e


aquiesço.

— Tudo bem, Cat.

— Ótimo!

Catarina serve a si mesma em uma caneca, que enche

de chocolate quente até a boca e fecha os olhos ao provar


da bebida, depois pega um dos biscoitos.

— Tem certeza de que nunca fez um curso de


culinária? Ou, talvez, faculdade de gastronomia?

Sorrio com o elogio.


— Aprendi a cozinhar depois que minha mãe ficou
doente, mas quando meu pai se aposentou e comecei a

trabalhar fora, a responsabilidade com o almoço e jantar


passou para minha irmã. Comecei a preparar só os pratos

diferentes, sobremesas mais elaboradas… Acabei pegando


gosto.

— E você não tem vontade de fazer uma faculdade


nessa área?

— Na verdade, não. Você já leu aquele livro que fala


sobre as linguagens diferentes do amor?

Ela faz que não.

— Diz que cada pessoa tem uma maneira de


demonstrar seus sentimentos, a minha é a de servir. Gosto

de cozinhar em casa, para as pessoas que eu amo, gosto de


cozinhar no trabalho, saber que as pessoas apreciam o que

eu faço. Apesar de cansativo, é bom limpar tudo e saber que


deixei alguém mais contente com meu esforço. É a minha
maneira de demonstrar amor pelas coisas e pela vida, mas

não é minha paixão como trabalho.

Talvez eu esteja falando demais, afinal, esse é o meu


trabalho, mas Catarina assente, como se me
compreendesse.

— E o que é a sua paixão nesse âmbito profissional?


— Livros e perfumes.

— Que mistura interessante. Você quer ser escritora?

— Não — sorrio com sua suposição —, gosto de lidar


com os exemplares mesmo, eu adoraria trabalhar em uma

editora, ou talvez uma livraria, uma biblioteca.

— Mas e os perfumes? Onde se encaixam?

— É uma mania, gosto de perfumar meus livros, pra


que a história tenha seu próprio aroma. Parece estranho, eu

sei.

— Parece adorável, na verdade — ela diz, e então

aponta para as prateleiras. — Por onde começamos?


— Não sei, o que acha melhor? Tirarmos tudo do lugar,

limparmos e depois já colocarmos de volta separados, ou ir


tirando um a um?

— Acho que tudo. Podemos fazer pilhas dividindo por

gênero, fica mais fácil guardar assim.


Concordo com o que ela diz, realmente vai ser melhor
assim. Começamos então o trabalho duro. Subo a escada

até alcançar a última prateleira e começo a retirar os livros


um por um. Catarina os pega das minhas mãos, para os

separar no chão.

Como não pode pegar muito peso, isso acaba


demorando mais tempo que levaria com outra ajudante,

mas muito menos do que se eu estivesse sozinha.


— E então? Vai me contar? — ela pergunta, depois de
algum tempo.

— O quê?

— Sobre o caos de ontem à noite.

— Ah, isso! É uma história boba. Comecei a trabalhar

aqui e chamei um jardineiro, pra capinar a grama que


estava alta. Eu não havia visto o Presidente ainda e achava

que fosse seu pai.


— O papai? Ele se aposentou tem alguns anos.

— Pois é, mas não tem nada informando isso na

internet.
— Até tem, se procurar bem, mas foi uma decisão sem
muito alarde, e Matteo não faz aparições públicas, então não

tem fotos também.

— Pois é — concordo, atenta ao que ela diz sobre as


aparições públicas. Pelo jeito a coisa de não sair da
propriedade é bem literal —, como eu esperava um senhor
já de idade e vi seu irmão capinando a grama, deduzi que

ele fosse o jardineiro.

— Ai, Deus…

— Fica bem pior — garanto.

Catarina já está rindo da minha desgraça.

— O que você fez exatamente?

— Entrei aqui e o encontrei na cadeira do chefe, sem


camisa e sem sapatos. Pensei que era um jardineiro muito

folgado e sem noção…


— E aí jogou as botinas nele!

— Foi. E ainda ameacei jogar o troféu de vidro, se ele


não saísse.

— Meu Deus do céu! E ele saiu?

— Saiu. Agora entendo que pensou que eu fosse uma


ladra, chegou a dizer que eu era membro de uma gangue,
acredita? Olha minha cara de bandida, Catarina!

Ela ri alto, apoiando a barriga com a mão enquanto


provavelmente imagina a cena.

— Como não tinha te visto, ele achou que você tivesse

invadido… — fala, entre as risadas.


— Isso. Pode imaginar o susto do homem quando me
viu entrando com você.

— Ele ficou branco feito um fantasma! Mas sabe o que

me deixou mais curiosa?


— O quê? — questiono, entregando outra pequena
pilha de livros nas mãos dela.

— Vocês vieram conversar, eu tinha certeza de que ia

ouvi-lo gritando e em seguida você seria demitida.


— Eu também.

— Mas nós o ouvimos rindo, gargalhando… — diz,


parecendo muito surpresa.

— É que ele me perguntou como eu tinha tanta


convicção de que ele não era o Presidente. E eu expliquei

que achava que fosse um velho.

— Foi só isso? Ele riu daquele jeito só por esse


comentário? — Catarina me fita com o cenho franzido, como
se considerasse minha explicação.
Eu não queria ter que dizer toda a verdade, mas ela

não parece que vai desistir tão fácil.

— Não, mas não pode rir, tá? Eu fico nervosa e falo


demais — começo, nem tenho coragem de olhar no rosto
dela para ver sua reação, então fecho os olhos. — Eu disse
que esperava que o Presidente fosse um idoso, enrugado e

não um... modelo de cuecas.

Catarina se engasga com a risada, apesar de não ver,


eu ouço, mas ela tem a sensatez de tentar disfarçar e se
conter. Eu continuo:

— Ele começou a rir de mim e acho que acabou


relevando a coisa toda.

— Isso foi… Modelo de cueca! Meu Deus — O riso está


nítido em sua voz e ela começa a gargalhar em seguida.

Abro os olhos e a encaro, bastante constrangida com minha


admissão.
Ela continua rindo e acaba me contagiando, pensando
bem, foi engraçado mesmo.

— Foi uma bobagem, mas ele achou cômico, eu acho.


Catarina balança a cabeça e seca os olhos, se
acalmando após a crise de riso. Ela me fita mais séria depois
disso.

— Você não entende, desde que ele se isolou aqui,


cinco anos atrás, eu nunca o vi rir daquele jeito, por isso
Alberto e eu ficamos espantados! Um sorrisinho forçado, de
vez em quando, mas uma gargalhada? Tem mais de cinco
anos que eu não ouço esse som.

O comentário me espanta. Sei bem que o Presidente é


carrancudo e não é muito sociável, mas não rir por cinco
anos? Me parece muito mais que uma questão de
personalidade. Alguma coisa fez com que ficasse assim.

— Posso perguntar o que aconteceu com ele?

Talvez eu tenha sido invasiva, porque ela desvia os


olhos dos meus para o chão e quando responde, não dá

muitos detalhes.
— Bom, digamos que ele perdeu muito, Matteo era
casado.

Ah, meu Deus…

Por essa eu não esperava, não podia imaginar que


fosse viúvo.

— Ele é tão jovem!


Ela concorda, mas dá de ombros.

— Casou cedo, a moça era de uma família rica, nossos


pais e os dela queriam fazer uma fusão das empresas e os
dois pareciam se gostar muito, então uniram o útil ao
agradável. Ele tinha uns vinte oito anos, não era moleque

também.

— Quantos anos ele tem agora?


— Trinta e cinco… — Catarina me encara,
repentinamente. — Eu tenho vinte e oito, e você?

— Vinte e sete.
— Viu? Um ano de diferença só entre nós — responde,
e percebo que mudou de assunto propositalmente. Não
insisto.

— Sim, e uma vida — concordo. — Enquanto eu sou


solteira ainda, você já se casou e vai ter um filho.
— Alberto e eu somos amigos há muito tempo,
percebemos que estávamos apaixonados e nos casamos.

Nunca tive outra pessoa, acredita?

— Ah! Que lindos! Um dia ainda vou viver um amor


assim, por enquanto me contento com os personagens

literários.
— Faz muito bem, eles não ousam nos irritar — ela
sussurra, em tom de segredo. — Você não tem namorado?

Meneio a cabeça, mas Catarina parece esperar uma

explicação melhor ou ao menos um desenvolvimento do


assunto.

— Meus pais precisam muito de mim e de Julieta,


minha irmã. Nós não saímos muito, é a primeira vez que fico
longe de casa e isso porque o salário compensa muito, então
nunca tive tempo para um namoro sério. Conheci alguns

rapazes, mas nada que evoluísse assim.


— Eu entendo, também não comecei a namorar cedo.

Continuamos conversando por algumas horas, ela me

conta mais sobre seu relacionamento, também compartilha


que sua gravidez já está entrando no oitavo mês e que o
bebê será um menino. Enquanto isso esvaziamos todas as
prateleiras, no entanto, logo que começo a guardar os livros,
Catarina se senta no sofá, que fica do outro lado do cômodo.

— Está se sentindo bem?

— Acho que dei um mal jeito nas costas, pegando e


colocando os livros nas pilhas.

Olho para baixo, analisando a bagunça que fizemos,


mas não posso deixar que ela continue assim.

— Acho melhor você parar por hoje, não pode se


esforçar demais.

— Mas como vai terminar? Já são quase cinco horas…


— Não tem problema, se o Presidente vier para o

escritório, vai ser só mais tarde, porque esse é o horário em


que ele vai pra piscina.

— É, depois tem o boxe — ela fala, pensativa. — Ele

não deve voltar hoje…


— Boxe?

— Não sabia? Ele tem uma academia no porão e treina


boxe também — conta, parecendo compartilhar um segredo.

— Agora está explicado...

— O quê?
— Hum… — Eu e minha grande boca. — É que ele é
forte, mas fechado aqui, não pensei que ele se exercitasse.

— A genética não seria boa assim. — Ela ri. — Mas o


que importa é que ele não volta ao escritório hoje, só
amanhã.

— E se resolver vir à noite?

— Vamos jantar juntos, Matteo, Alberto e eu. Não vou


dar espaço para que ele pense em trabalho. Mesmo porque,
suas reuniões são sempre comigo e eu já estou aqui.

Desço as escadas devagar e acabo por concordar.


— Tá bom, eu termino amanhã bem cedo, então. Peço
ajuda a uma das meninas… Sabe de uma coisa em que
pode me ajudar?

— O quê?

— Queria saber quais os livros preferidos dele.

— Pra deixar em destaque?


— Algo assim.

— Huuum, acho que tem Crime e Castigo, Memórias


Póstumas de Brás Cubas… Não consigo me lembrar de
todos, além disso, os preferidos as vezes mudam com o
tempo e novas leituras.

— A Ilíada, talvez? — sugiro. — Eu encontrei o livro


aqui outro dia, acho que estava lendo. A edição está bem
gasta…

— É… — Catarina foge dos meus olhos outra vez,

como já percebi que faz quando não quer falar a respeito,


mas dessa vez ela fala. — A relação do Mat com esse livro é
meio complexa. Não sei dizer se ele ama ou odeia, mas com
certeza são sentimentos fortes.

— E não é sempre assim com os melhores livros?


Sempre causam uma montanha-russa de emoções.
— É diferente, mas é por aí…

Deixamos a biblioteca juntas e, enquanto Catarina


sobe para o andar superior a fim de tomar um banho e

descansar um pouco antes do jantar, verifico se Elis e Suzi já


terminaram suas tarefas e então peço para já picarem os
legumes e adiantarem o possível para o jantar, enquanto
corro no meu chalé em busca do meu perfume, é um que

sempre adorei, mamãe o ganhou quando mais nova e


acabou me dando por achar forte e, desde então, sempre
que o meu acaba e sobra um dinheirinho, renovo o cheiro
que já sinto como se fosse parte da minha pele.
Não queria usar esse aroma especificamente para

perfumar um dos livros do patrão, mas é melhor que invadir


o quarto do homem e pegar um dos dele. Quando retorno a
casa, também faço uma mistura de canela e achocolatado,
na água e mergulho algumas tirinhas de papel nela, que

deixo secando enquanto trabalho no jantar. Também borrifo


minha própria fragrância em outros pedacinhos de papel.

Antes de me deitar e depois que já estão secos, passo


na biblioteca e os coloco dentro dos livros que Catarina

mencionou, bem como o que perguntei a ela, tomando o


cuidado de colocar mais de um aromatizador nele, para que
o cheiro se propague mais rapidamente.

Prontinho! Vão ficar perfeitos.

Retornando à cozinha sou informada de que o patrão e


sua família estão reunidos na sala de música, o que é bom,
considerando que já a limpei e, pelo horário, ele realmente
não pretende voltar a trabalhar hoje, então posso terminar

de guardar os livros amanhã.

Após cuidar da louça suja do jantar, me despeço de


Elis e Suzi e volto para o meu chalé confortável, em dois
dias terei minha primeira folga e vou em casa, já estou

morta de saudades dos meus pais e da Julieta. Nunca pensei


que fosse tão difícil ficar longe deles.
Demoro um pouco a adormecer, e quando o faço, caio
em um sono tranquilo.
Se há algo de que não posso reclamar com relação à

nova governanta, com certeza é da sua habilidade na


cozinha, ao menos não quando posso comer uma torta tão
saborosa quanto a que ela preparou como sobremesa hoje.
Por mais abusada e respondona que seja, cozinha mesmo

muito bem. Se não soubesse cuidar da casa, apenas pelas


refeições já valeria a pena tê-la contratado.
Ainda que eu continue evitando me estender muito na
conversa desde que me arrastaram — e a torta — para a sala
de música, Alberto e Catarina conseguem se ocupar um com

o outro, não sei de onde tiram tanto assunto, sendo que


moram na mesma casa e se veem todos os dias.

Mas quando Catarina corta um terceiro pedaço da

torta, não consigo mais ficar quieto:


— Catarina, como consegue comer tanto assim? Sei
que está grávida, mas parece que não vai caber!

Alberto ri do meu comentário, e minha irmã não

parece gostar disso.


— Vai rir do que esse idiota está dizendo, amor? Ele
está tentando controlar minhas refeições, agora.
Dramática, como sempre.

— Não estou fazendo nada disso, só disse que está

comendo demais.
— É a mesma coisa e, bom, a Anabela é a culpada, se
não fizesse coisas tão gostosas eu comeria menos. Nem sei
que tempo ela conseguiu para isso, depois de termos

trabalhado tanto a tarde...

— Vocês duas? O que você fez? Ajudou na limpeza? —


pergunto, realmente curioso.
Catarina sempre foi muito disposta, mas não me

lembro de alguma vez em que tenha pegado em uma


vassoura.

— Ajudei sim e foi muito divertido, mas não limpei a

casa e nem fiz serviço pesado — explica, se justificando para


Alberto. — Nós começamos a organizar a biblioteca, limpar
e separar seu acervo para dar um jeito naquela bagunça.
Por um momento penso ter entendido errado, porque
lógico que elas não fariam isso assim, sem o meu

consentimento.

— O que você disse?


— Os livros, Mat — ela repete, como se falasse do
tempo —, você gosta tanto deles, mas não cuida muito

bem…

O sangue já começa a correr mais rápido pelas minhas


veias, não sei explicar, mas sinto a raiva se condensar

dentro de mim, ameaçando irromper a qualquer instante.


— Está me dizendo que mexeram nos meus livros?

Torço para que eu tenha, de algum jeito, entendido


errado.

— Qual é o problema?

Como ela pode perguntar uma estupidez dessas? Qual


é o problema?
Eu me levanto imediatamente.

— HELDEEEEEEER!
Sei bem que ele vai ouvir de onde estiver.
Helder logo aparece e seus olhos assustados
encontram os meus. Não preciso dizer muita coisa, como me

conhece, ele já sabe quando estou furioso.

— Chamou, Presidente?

— Onde está a senhorita Gonzales?

Os olhos dele procuram os de Catarina, mas ela está


inerte, sem reação. Como se não tivesse feito uma merda

colossal.

— Ela já foi dormir, senhor — ele responde por fim —,

terminou as coisas na cozinha e foi, ela tem começado a


trabalhar muito cedo.

Deixo Alberto e Catarina na sala de música e sigo para

a biblioteca. Helder vem logo atrás de mim, tentando me

acompanhar com seus passos mais vagarosos.

O que mais me tira do sério é saber que, por mais que


parecesse bagunçado, eu sabia me encontrar no caos,

conseguia saber onde estava um exemplar quando

precisava dele e que agora ela tirou tudo do lugar!

Abro a porta e o que vejo me deixa sem reação por um

momento. A raiva domina meu corpo todo, faz muito tempo


que não me sinto irado assim, ao ponto de explodir, mas ao

ver meus livros todos jogados no chão e as estantes

completamente vazias, sinto vontade de matar alguém.

— Meu Deus… — Helder sussurra atrás de mim. —

Acho que ela ainda estava trabalhando nisso — completa,

justificando.

— Isso não é trabalhar, Helder, é destruir. Chame ela

aqui agora, eu não consigo nem expressar o ódio que estou


sentindo.

— Presidente, eu entendo que esteja bravo, sei o

quanto gosta dos seus livros e que ela fez mal em mexer
sem sua permissão, mas não seria melhor esperar até de

manhã? Ela já deve estar dormindo e certamente não fez

por mal…

— Helder, agora.

Mas o velho parece empacado no lugar.

— Eu ainda acho que é melhor esperar até de manhã,

tem certeza de que quer falar com ela agora? O senhor está
de cabeça quente.

Estou prestes a responder a isso, quando algo me

chama a atenção. A princípio é um cheiro forte de perfume,

que invade minhas narinas sem que eu saiba de onde vem,

lentamente, consigo discernir a fonte do perfume e é

quando noto uma pequena pilha de livros sobre minha

mesa, os únicos relativamente organizados.

Eu me aproximo dos exemplares, já com medo do que

vou encontrar. São meus livros preferidos e, junto a eles,

aquele que me desperta tanto sofrimento. O perfume forte


vem de um deles.

Quando pego o volume gasto de A Ilíada nas mãos,

sinto o cheiro, acho que de flores, mas levemente

amadeirado e ele impregna tudo, não é um aroma


desagradável, mas que porra estava passando na cabeça

daquela mulher pra jogar um vidro de perfume no meu

livro? E os outros... Estão cheirando a café!

É a gota d'água, o estopim para que eu me decida por

ir até ela agora mesmo.

— Pode ir dormir, Helder.

Passo por ele e saio pela porta dos fundos, sigo pelo

gramado na direção do chalé que sei que foi reservado a ela.

Pouco me importa o horário ou que esteja dormindo, ela vai

me ouvir agora. Claro que entendo que Catarina é tão

culpada quanto, mas duvido que a ideia tenha partido dela,

além disso, Anabela é minha funcionária, Catarina não.

Bato na porta de madeira e ela chega a chacoalhar

com a força que coloco no punho. Ouço os passos arrastados

dentro do chalé e fecho os olhos, controlando parte da raiva

que estou sentindo.

Pouco depois, a desordem e destruição em pessoa

está diante de mim, o rosto com um vinco de preocupação

entre as sobrancelhas e os cabelos castanhos soltos.

— Presidente?

— Preciso que veja uma coisa.


Seguro em seu braço e a puxo para fora, ela tenta me

acompanhar, mas não para de falar.

— Agora?

Não respondo a isso.

— Está tarde, Presidente. Acho melhor me trocar

antes…

Essa maluca, destruindo a casa dos outros e se

achando no direito de exigir qualquer coisa. Quando

entramos pela cozinha e pouco depois abro a porta da

biblioteca, eu a solto e aponto para o caos diante de nós.

— Quero saber que desculpa vai dar dessa vez para

essa zona que fez aqui.

Eu a encaro com raiva e percebo seu olhar vacilar,

Anabela analisa o estrago e morde o lábio inferior, como se

fosse uma criança bagunceira, que foi pega no meio de uma

arte.

— Eu sei que parece beeeem ruim, Presidente.

Acontece que não deu tempo de terminar, mas eu vou voltar

tudo para o lugar logo de manhã, prometo!

Eu me aproximo um pouco, estou agora a centímetros

de distância dela, que sustenta meu olhar com sua altivez


característica.

— Você destruiu meus livros — falo, apontando

diretamente para ela. — Quebrou um vidro de perfume

neles de propósito? Jogou café no meu exemplar de

Memórias Póstumas? — questiono, praticamente gritando.

— O que deu nessa sua cabeça oca pra fazer essa merda,

senhorita Gonzales? Achou que seria divertido testar minha

paciência?

— Por que acha que estraguei? São aromas… — ela


responde, começando uma explicação na qual não tenho o

menor interesse.

— Aromas? Sei que não vai entender o quanto esse

acervo é importante pra mim, provavelmente nunca leu um

livro na sua vida — rebato, com desdém.

— O senhor está sendo maldoso e preconceituoso, por

que eu não teria lido um livro na vida? Por que sou pobre? —

pergunta, sem abaixar a cabeça. — Na verdade, eu gosto

muito de ler.

— Preconceituoso? Não tem nada a ver com ter ou não

dinheiro, mas se você gostasse de livros, saberia que não

devia meter seu nariz no que não é da sua conta, sua


intrometida. É a minha biblioteca, os meus livros e não te

dei autorização para mexer em tudo e jogar perfume neles!

A desgraça de mulher me encara com os olhos cheios

de raiva e aponta o dedo na minha cara, replicando meu

gesto.

— Intrometida? O senhor é um bruto! — fala, no

mesmo tom que usei. — Eu estava organizando tudo,

porque agora está aqui, dando uma de homem culto e muito

chato, mas se amasse tanto seus livros como está dizendo,


não teria os deixado jogados nas estantes, cheios de poeira!
Eu passei o dia todo aqui, com a sua irmã, tentando fazer

alguma coisa que te agradasse e me retribui assim? É um


bruto mesmo!

O comentário me deixa ainda mais irado, os olhos dela

são muito bonitos, parecidos com mel em forma líquida e


agora parecem brasas de fogo e com certeza esse não é o

momento adequado para que eu repare na porra dos olhos


da governanta abusada.

— Eu sou um bruto? Foi você quem jogou meus livros


no chão e achou que seria uma boa ideia dar um banho de
perfume neles.
— Posso ter agido mal em não perguntar antes, mas
não banhei livro nenhum, são só marcadores aromatizados e

o senhor não tem direito de gritar comigo só porque paga


meu salário. — Ela não me dá tempo de rebater. — Separei

os livros por gênero e ordem alfabética, só não consegui


voltar para o lugar.

— Está me dizendo que decidiu que meu acervo


precisava da sua ajuda e ainda achou que eu deveria ser

grato?
Ela coloca as mãos na cintura, ao contrário do que

esperava, não parece disposta a se desculpar.

— Posso ter passado dos limites, mas tive boa

intenção, agora o senhor é muito mal-educado! Não sei se


percebeu, mas me arrancou da cama, com roupas de dormir

e no meio da noite, pra ficar aqui gritando um amontoado


de frases grosseiras — ela diz, seus olhos estão marejados e

de repente me sinto um idiota completo.


Tudo bem, não vou dizer que ela tenha feito o certo,

mas parece que ultrapassei alguns limites aqui. Na hora não


pensei em nada disso, fui impulsivo e movido pela raiva,
nem mesmo considerei o quanto era inapropriado arrastar a
garota até aqui usando essa…

Meus olhos traiçoeiros descem pelo corpo dela,

notando agora com mais atenção a camisola branca, que


mal cobre os seios com uma renda da mesma cor e desce

até a altura das coxas. São coxas bem torneadas e o tecido é


um tanto transparente e deixa pouco para a imaginação.
Noto suas curvas sensuais, as pernas bonitas e subindo um

pouco mais, a cintura fina, ergo mais os olhos e, porra,


consigo ver os bicos dos seios dela, intumescidos,

provavelmente por causa do frio.


Anabela é linda e gostosa, mas eu, com certeza não

deveria estar olhando assim, tão descaradamente. É o que


cinco anos de um maldito celibato fizeram comigo, não

consigo parar de encarar, como um adolescente


descobrindo que o pau funciona.

— Ei! — Um estalar de dedos na frente do meu rosto


me chama a atenção. — Primeiro ficou gritando comigo sem

um pingo de educação e agora vai ficar me olhando desse


jeito?
Ela cruza os braços cobrindo os seios e me fita de

modo diferente. Apesar das palavras contrárias, seu olhar


também percorre meu rosto, desce para o meu peito e se

concentra ali. Anabela passa a língua sobre os lábios,


umedecendo a boca bem-feita e em seguida pigarreia.

— Quer saber de uma coisa, senhor Presidente? —


pergunta, o tom claramente é de sarcasmo na última

palavra. — Nem que eu ganhasse trinta mil reais eu ficaria


aqui agora, vou embora amanhã. Salário nenhum no mundo

vale a pena se tiver que aguentar um grosseirão como o


senhor.

— Talvez eu tenha passado do ponto, mas…

— O senhor fique aí, com seus livros bagunçados que

diz que ama tanto! — interrompe bruscamente.


E sem esperar resposta, ela me dá as costas e sai

andando, fazendo com que eu me sinta um idiota completo.

**

A reunião terminou poucos minutos depois do


previsto, mas foi o suficiente para fazer com que a dor de
cabeça surgisse. Entro no carro e aguardo um pouco,
enquanto Miguel se despede dos outros, simpático como
sempre.
Meu irmão abre a porta do lado direito e se joga no
assento, colocando o cinto em seguida.
— Quer que eu te deixe em casa? — pergunto, saindo
do estacionamento da Vevet.
Ele afrouxa a gravata e me olha por um instante.
— Estava pensando em ir pra sua — fala. — A gente
podia ver um filme, sei lá, fazer alguma coisa.
— Pode ser, a Catarina disse que talvez apareça lá
mais tarde.
Miguel aquiesce, satisfeito com o programa.
— Ótimo. A Sofia está lá?
— Está, ela vai gostar de ver vocês.
Na verdade, não é exatamente assim. Ainda que
Miguel e minha esposa se deem bem, Catarina e ela não são
as melhores amigas. Sofia tem o gênio forte e minha irmã
não fica atrás, então a convivência entre as duas é no
mínimo interessante.
Dirijo pelas ruas da cidade, atento ao trânsito e
ouvindo os comentários de Miguel a respeito da reunião.
— Acho que esse novo campus vai ficar incrível, Mat.
Os arquitetos apresentaram um projeto foda, não achou?
— Achei interessante — concordo. — Mas não te
pareceu muito… grego? Aqueles pilares.
— Por isso eu gostei, me senti dentro da Ilíada, o
próprio Aquiles diante de Tróia. — Ele ri, mencionando seu
livro preferido.
— Não sei como tem saco pra aquele monte de versos.
Além disso, Aquiles não vai lá construir nada, a ideia é
exatamente o oposto.
— Eu sei, o que importa é o monumento, irmão. Pare
de se ater aos detalhes, e sobre os versos, você nem leu,
como leitor faz parte da sua obrigação, Mat, tem que ler as
epopeias.
— Não, deixo isso pra você.
Miguel ri e dá um tapa na minha nuca, o que me faz rir
também.
— Sabe que, no fim, nossa opinião sobre o projeto
pouco importa, papai vai decidir o que é melhor.
— É isso, o Presidente detém o poder.
Quando estaciono a BMW diante de casa, Miguel e eu
descemos e entramos pela porta da frente. A mansão em
Alphaville foi presente de casamento dos meus pais, a
arquitetura incrível continua em alta mesmo após dois anos.
— Sof? Cheguei, querida — grito, ao entrar pela porta.
Miguel me acompanha e nós dois seguimos,
arrancando as gravatas ao mesmo tempo. Somos muitos
parecidos fisicamente, ainda que ele seja mais jovem que eu
alguns anos.
Entro na cozinha e abro a geladeira, buscando a jarra
de água. Miguel pega os copos no armário e quando me viro
para o servir, vejo Sofia entrar pela porta dos fundos. Ela
está radiante, os cabelos loiros soltos sobre os ombros e um
sorriso enorme nos lábios, faz algum tempo que não a vejo
tão feliz, ela tem estado distante, e talvez em partes seja
culpa minha. Tenho trabalhado demais.
— Já chegaram! Que bom, estava entediada aqui,
sozinha.
Reparo no biquíni minúsculo que minha mulher está
usando, ela é linda, tem um corpo muito bonito, mas as
vezes acho que não tem noção do quanto chama a atenção.
— Sozinha? Onde está o Helder? — pergunto, olhando
ao redor.
— Limpando alguma coisa. Quis dizer sozinha, sem
você, Mat. — Ela me abraça, ficando nas pontas dos pés e
vejo o olhar de Miguel se desviar automaticamente.
Me incomoda um pouco o modo como ele olha para
minha esposa, mas meu irmão é quase um garoto e sei que
não faz isso com maldade. Sofia é bonita demais e andando
assim, praticamente sem roupas, torna as coisas mais
difíceis para ele.
— Acho melhor colocar um vestido — sugiro, dirigindo
a ela um olhar que indica claramente que estou me
referindo a ele.
Ela ri, me fitando de modo sarcástico, mas entende a
deixa e quando se afasta na direção do quarto, dou um tapa
na cabeça de Miguel.
— É minha mulher, babaca.
— Ei! — ele reclama. — Eu não fiz nada!
Acordo sobressaltado e me sento na cama, levando a
mão ao peito. Arfo um pouco, encontrando o ar lentamente,
que chega, enchendo meus pulmões. Já fazia algum tempo
que não sonhava com ele, ainda que tenha pensado em

Miguel nas últimas semanas dezenas de vezes.

O dia está quase amanhecendo, então arranco um


cobertor da cama e me levanto, o colocando em volta de
mim, sigo para a varanda e observo o horizonte, esperando

que o sol chegue e faça seu show diário.


Pensar em Miguel sempre me deixa nostálgico…

Sinto uma pontada no peito ao me lembrar do sonho,

ele tinha um sorriso fácil e era tão cheio de vida. Provo o


gosto amargo na minha língua, a bile que sobe e ameaça
me revirar do avesso, é o sabor cruel do arrependimento, da
dor.
Já se passaram cinco anos, mas a memória da risada,

dos olhos dele, tudo está tão nítido dentro de mim, assim
como a lembrança de uma época em que eu era inteiro, e
não estilhaços de um homem que sobreviveu inúmeras
batalhas, mas perdeu a guerra.

O sol surge no horizonte, tingindo o céu em vermelho,


laranja e violeta, pintando o manto da noite e
transformando em dia, renascendo, poeticamente, de um

modo que jamais farei.

Volto para o quarto, ciente de que não vou dormir


mais e sigo para o banheiro. Tiro a roupa e abro o chuveiro,
decidido a tomar um banho quente, antes de começar o dia.

Embaixo da água permito que ela lave o cansaço e a


frustração com o sonho, a lembrança. Eu fiz muita merda
nessa minha vida…

O pensamento me traz a memória a noite anterior,

quando arrastei a governanta até a biblioteca e falei muito


mais do que deveria. Ela não tinha como saber que era a
porra do livro do meu irmão, e ainda que realmente tenha se
intrometido no que não era da alçada dela, eu podia ter

falado de uma maneira menos grosseira.


Acho que perdi o hábito. Estou acostumado a
esbravejar e gritar, reclamar e não ter ninguém que se
incomode com isso o bastante. Me lembro da raiva dela, das

respostas à altura e dos olhos furiosos. A garota não tem


uma grande estatura, mas não parece ser do tipo que se
assusta fácil.
Recordo também do modo como me olhou, altiva,

ainda que de baixo e do momento em que constatei suas


roupas. A camisola transparente, a renda permitindo
entrever os bicos dos seios, as pernas bonitas.

É instintivo. Sinto meu pau ganhar vida, o que é novo

pra mim.
Durante esses cinco anos sozinho, preso nessa casa e
no passado, perdi as contas de quantas vezes me masturbei,
fosse com filmes ou imagens, ou até mesmo me utilizando

de devaneios com mulheres sem rosto. Mas é a primeira vez,


nesse tempo todo, que fico duro pensando em uma mulher
específica, uma mulher real.

Mas que inferno!

Fecho o chuveiro antes que acabe me provando um


pervertido e me toque pensando na porra da governanta.
Volto para o quarto e me visto rapidamente para o dia.

Ainda uso terno e gravata, da mesma maneira que


fazia quando ia ao escritório. É como um lembrete para que
não me afunde na amargura e não permita que meu corpo
seja soterrado.
Quando desço as escadas e me sento a mesa, Catarina

e Alberto já estão em seus lugares. Ambos erguem os olhos


quando chego e me encaram com expressões que oscilam
entre desânimo e desespero.

— Que foi? — pergunto, analisando-os à procura de


uma resposta.
— Bom dia pra você também — Cat retruca, de mal
humor.

— Está brava? Eu é que deveria estar furioso com


você, depois de ontem.
Ela meneia a cabeça.

— Matteo! Você tem noção do que fez? Você insultou a

pobre Anabela, aos berros! Gritou pra casa inteira escutar.


Suspiro, me negando a admitir meu erro tão
facilmente.

— Ela mexeu nos meus livros.


— E arrumou tudo, depois.

— Não arrumou, não, estavam jogados...


Catarina me interrompe.

— Sim, mas ela voltou a biblioteca depois que você foi


dormir e passou a noite em claro, colocando tudo no lugar,
isso antes de entregar a carta de demissão.

— Que carta? Não recebi carta nenhuma?


E se eu não recebi, a mulher não pode ir embora.

— É tudo culpa sua! Acha que não o escutei gritando


com ela? Você foi um grosso e agora, vamos ter que comer
essa gororoba esquisita!
Olho para o prato que ela aponta e percebo que há

nele uma espécie de mingau, de procedência bem duvidosa.

— Essa meleca é a vingança dela?


Alberto ri diante da minha pergunta, mas Catarina
continua séria.

— Claro que não! Isso é o que as outras funcionárias


conseguiram fazer, já que Anabela terminou o trabalho na
biblioteca e foi para o chalé recolher as coisas dela. O
Timóteo vai levar a garota embora.

— Mas… — Também encaro o mingau, como se ele


fosse mesmo uma sentença de morte. — Ela arrumou tudo?

Catarina arrasta a cadeira para trás e se coloca de pé.

— Vem ver.

Ela sai andando rumo a biblioteca e eu a sigo, ainda


tentando assimilar essa manhã, que já começou estranha.
Alberto fica onde está e come vagarosamente a coisa, que
está em seu prato.

Quando Catarina abre a porta do escritório, fica bem

nítido que Anabela realmente passou a noite no local. Todos


os livros foram colocados em seus lugares e está tudo
organizado.
Eu me aproximo das estantes e percebo que ela fez o

que planejou desde o início. Separou tudo de acordo com o


gênero e em ordem alfabética, de uma maneira bastante
metódica.

Dói em meu orgulho ter que admitir, mas realmente

ficaram muito melhores assim.


Caminho até onde estão os livros sobre a mesa e
percebo que ela deixou uma carta sobre eles, provavelmente
a de demissão, mencionada por Catarina.

— Você falou com ela?


— Tem noção da besteira que fez, irmão? — ela
questiona, sem responder. — Essa casa finalmente estava
parecendo habitada, Anabela fez com que o lugar ganhasse

vida de novo. Você até riu! Eu não te ouvia rir havia cinco
anos, Mat, e você obrigou a moça a se demitir!
— Eu não disse que era pra ela ir.

— Não, mas tornou impossível que ela ficasse.


Eu me viro para a encarar e suspiro, admitindo o erro.

— Fiz uma idiotice, tá bom? Eu não gosto que mexam


nos livros e… ela colocou perfume.
— Eu sei, ela me disse que gosta de fazer isso com os

dela, que cria memórias e interliga os cheiros com as


histórias. Foi um gesto de gentileza.

— Era o livro do Miguel.


— Ah… — Cat entende, sem que eu precise explicar,

mas continua sua defesa ainda assim. — Ela não sabia.


Talvez você devesse se desculpar, ela ainda não foi embora.

— E vou falar o quê? Que sou bruto mesmo e idiota,


mas que preciso que ela fique e continue arrumando as

coisas do jeito dela?


— É um bom começo. Poderia pedir desculpas pra
complementar.

— Eu não vou fazer isso, Catarina, então você pode


achar outra governanta.
Ela coloca as mãos na cintura, está usando um vestido
comprido e a barriga aponta para mim como se meu
sobrinho que ainda não nasceu, também me acusasse.

— A sétima?

— Mas que droga…

— Peça desculpas.
Meneio a cabeça.

— Chama o Helder, vou resolver isso.


Catarina não parece satisfeita, mas ao menos faz o
que peço. Helder aparece pouco depois, sozinho, seu olhar
deixa claro que também não está satisfeito com a situação.

— Bom dia, Presidente.


— Péssimo dia, pelo jeito. Chame a senhorita
Gonzales, por favor.

Mas ele apenas balança a cabeça, em uma negativa.

— O Timóteo já está guardando as coisas dela no


carro, ela está trancando o chalé…

Pelo jeito, não me resta alternativa a não ser me

humilhar para que a garota fique.


A mala com as minhas roupas chegou dois ou três dias
atrás e agora tive que colocar tudo dentro dela outra vez. Eu

deveria saber que era bom demais para ser verdade, que um

salário como aquele não iria cair do céu no meu colo.

Claro que não! Para receber tudo aquilo eu teria que

aturar um chefe idiota, que pensa que pode fazer o que quer
e dizer tudo o que pensa sem que ninguém o enfrente.

Ouço as batidas na porta do chalé e paro o que estou

fazendo para ir até lá. Provavelmente Suzi veio se despedir,

Elis estava toda emotiva quando eu disse que iria embora e


a outra ainda não havia chegado. Mas não é Suzi quem me

encara quando abro a porta.

O idiota está usando um terno impecável, a gravata

ajustada e os cabelos penteados ao nível da perfeição, o

maxilar forte está trincado e os olhos azuis fixos em meu


rosto.

O desgraçado é bonito em um nível quase

sobrenatural, talvez seja esse o motivo da arrogância, deve

estar acostumado demais a ter as mulheres fazendo tudo

que ele quer e manda.

Mas que é lindo, isso não tenho como negar.

— Bom dia — ele fala, a voz nem se parece com a

mesma que gritava babaquices ontem à noite.

Ele deve ter visto a biblioteca. Tá vendo, Presidente?

Imbecil…
— Do que o senhor precisa? Estou ocupada agora.

Ele abre e fecha as mãos e, depois, as coloca nos

bolsos, está nervoso.


— Vi sua carta de demissão na minha mesa.

— E por que a surpresa? Eu disse ontem que não iria

ficar aqui mais.


— Pensei que só estivesse com raiva — ele fala, agora

não está olhando diretamente pra mim.

— Não, não foi o caso. Eu não sou esse tipo de pessoa,

que fica com raiva e fala um monte de bobagem.

— Sei… Eu sou, pelo jeito.

— Com certeza — concordo, sem hesitar.

— Será que pode reconsiderar essa decisão de ir


embora? Eu vi o que fez na biblioteca e admito que ficou

muito bom.

— Admite? — instigo, provoco, sabendo que ele não

está contente em me pedir para ficar.

— Sim, sei que falei que você não tinha lido nada a

vida toda…

— Falou mesmo.

Cruzo os braços, saboreando o momento de vitória,

agora estou esperando o pedido de desculpas.

— Mas vi que realmente gosta de livros, a Catarina me

explicou aquela coisa dos perfumes. Não vou dizer que


estava certa, Anabela — diz, com seriedade —, você deveria

ter me consultado, mas digamos que eu entendo que não

fez por mal.


— E o que te fez entender isso, Presidente? Ontem

parecia decidido a acreditar que eu era um monstro.

Ele quase sorri, não chega a mostrar os dentes, mas é

algo bem próximo de um sorriso.

— Bom, talvez o mingau horroroso que me serviram

de café da manhã tenha contribuído — diz.

Ao invés do comentário me irritar, sinto vontade de rir,

ele obviamente é péssimo em pedir desculpas. Não sabe

bajular e nem disfarçar que só está fazendo isso por causa

da comida.

— Então está pedindo meu perdão? Veio até aqui

implorar que eu fique? — provoco.

O sorrisinho falso fica maior.

— Não vamos exagerar, mas me desculpo, já que faz

questão dessas palavras — fala, cedendo —, por ter sido

grosso e ter passado dos limites, mas você sabe que

também me deve desculpas.

— Me desculpe por fazer meu trabalho — retruco,

arqueando a sobrancelha.

— Senhorita… — Ele se interrompe e meneia a

cabeça. — Não precisa jogar café nos meus livros para fazer
seu trabalho.

— O senhor é que não entende a beleza do meu gesto,

um dia ainda vou abrir uma editora que venda livros

perfumados e o senhor vai perceber que não viu o negócio

milionário que estava bem embaixo do seu nariz.

— Sei…

Ele continua esperando que eu diga, então admito

minha falha também.

— Tudo bem, eu devia ter perguntado se podia mexer

nos livros e não devia ter presumido que fosse gostar dos

aromas nos seus exemplares.

— Então vai ficar?

— Vai parar de gritar? Porque, veja bem, senhor

Presidente… Meu ouvido não é penico!

— Que? — A careta que ele faz, finalmente me faz

perder a compostura e rir.

— É um ditado, nunca ouviu? Não é porque paga meu

salário que pode ficar me tratando assim.

O Presidente aquiesce, parece ter entendido o recado.

— Tá, vou voltar a ser o patrão mal-humorado, mas

silencioso de antes.
— Ótimo. Também não vai ficar me olhando daquele

jeito indecente. Isso pode ser considerado assédio.

— Assé… Assédio? Eu nem abri a boca! — ele

exclama, assustado.

Talvez esteja pensando que corre o risco de um

processo.

— Mas ficou me secando!

— Você estava quase nua, senhorita Gonzales, queira

me perdoar, mas eu sou homem. O que queria que eu

fizesse?

— Pra começar, não me arrastasse de camisola por aí.

Ele respira fundo e concorda.

— Tudo bem, desde que a senhorita continue usando o

uniforme horroroso de governanta e evite camisolas, isso

não vai ser um problema.

— Uniforme horroroso! Então admite que são feios pra

burro, né?

Ele ri, agora mais abertamente, e acabo sorrindo

também. É realmente difícil ver o homem abrir a cara e,

depois do que Catarina disse sobre ele não rir há muito


tempo, se tornou quase que uma vitória presenciar esses

momentos.

— Pra burro?

— É modo de falar. Mas são muito feios!

— Não é pra ficar bonita, é pra ser prático — diz,

dando de ombros.

— Ah, isso ele é, praticamente uma fantasia de


Halloween.

— Então vai ficar? Com a fantasia de dia das bruxas de

preferência?
Penso por um momento na proposta, mas enquanto
minha mente vagueia, acabo percorrendo os traços dele

com os olhos, me concentrando mais do que devo nos


ombros largos sob o terno, no corpo bem-feito decorado

pelas roupas caras, o homem sabe ser gostoso…

Deus me ajude!
— Senhorita Gonzales.

— Sim…
— Quando os olhares partem da funcionária, isso

também se enquadra em assédio?


O comentário não me deixa constrangida, dirijo a ele
um olhar cínico.

— Não vai querer me processar, eu nem tenho onde


cair morta! E não estou olhando nada — nego, tarde demais.

Ele estende a mão em uma oferta de paz.

— Temos um acordo.
Coloco minha mão na do Presidente e algo esquisito

acontece. Sinto uma onda elétrica que passa dele para mim
e eriça os pelos do meu braço todo.

Seus olhos azuis perscrutam os meus e é como se, por


um segundo, fôssemos envolvidos por uma bolha que nos

isola do restante do mundo.


— Eu vou… — Balanço a cabeça, me forçando a

recuperar a sensatez e depois solto a mão dele


rapidamente. — Com uma condição.

— Mais uma?
— Vai me deixar ler os livros da sua biblioteca.

Dessa vez ele nem hesita.

— Feito. Se der um jeito no café da manhã, ainda te


deixo escolher um exemplar de presente.
— Jura? — Meu coração acelera, ele tem tantos títulos
incríveis na biblioteca que é impossível não começa a

escolher já, mentalmente.

— Sim, e se fizer isso em trinta minutos pode ficar


com dois.

Fecho a porta atrás de mim e saio apressada, o


deixando para trás, mas o som da risada dele ainda me
acompanha por vários metros.

Quando chego na casa, constato primeiro uma coisa: o

supremo senhor Presidente tinha razão sobre o mingau, não


tenho como defender! Acho que Elis quis dar uma lição no

homem por ter feito com que eu desistisse do emprego, até


já consigo imaginar a cena dela despejando o leite na

panela e praguejando em voz baixa, porque ainda que não


seja muito boa na cozinha, é impossível que tenha feito algo

tão ruim sem planejar.


Não consigo salvar o café da manhã em meia hora,
como ele pediu, mas faço ovos mexidos com bacon, separo

algumas fatias do pão caseiro que fiz antes e também


preparo bolinhos de chuva açucarados, em quarenta

minutos.
Catarina e Alberto brigaram pelo último bolinho na

travessa, mas o bebê acabou vencendo. Provavelmente não


vou receber os livros, mas ver meu chefe mal-educado, com

a barba cheia de floquinhos de açúcar e canela é um prêmio


à parte.

Decido trazer a faxina para a cozinha hoje, assim


podemos preparar o almoço enquanto cuidamos da limpeza.

Elis começa a retirar toda a louça dos armários enquanto


Suzi lava e seca cada peça com cuidado. Depois de colocar o

feijão para cozinhar, subo em uma cadeira e começo a


esfregar o azulejo encardido, tirando também as manchas

de gordura.
Isso me toma algum tempo e me divido entre a

limpeza e a preparação de uma carne cozida com legumes,


arroz, feijão fresco e uma salada. Nada muito elaborado,

mas com o tempo de que disponho, até que não é nada tão
simples.

Depois de servir o almoço e terminar a faxina na


cozinha, passo a tarde toda na lavanderia. Elis está

passando as roupas que já secaram, enquanto Suzi está


reorganizando o armário de roupas de cama e toalhas de

mesa.

Ficam apenas os tapetes para lavar no dia seguinte,


porque quando termino já é hora de começar a preparar o

jantar.
Estou vasculhando a geladeira quando Catarina me
chama, sua bolsa já está pendurada no ombro e ela abre os

braços para se despedir de mim.

A ideia de ficar aqui nessa casa, sozinha com o senhor


Não-Toque-Nos-Meus-Livros me causa um frio na barriga,

apesar da nossa trégua. Elis, Suzi e o senhor Helder ainda


estarão comigo, mas foi Catarina quem trouxe um pouco de

normalidade ao sobrenome Viturino.


— Anabela, querida, foi um prazer conhecer você! —

Ela me abraça calorosamente, com certa dificuldade, devido


ao tamanho da barriga.

— O prazer foi todo meu. Você foi tão gentil comigo!


Obrigada por isso.

— Estou muito feliz e aliviada por você ter aceitado


ficar. — Ela faz uma pausa rápida e sonda o corredor, antes
de continuar: — Meu irmão é um homem difícil, eu sei, mas
se tiver paciência vai aprender a gostar dele.

Se ele continuar agindo feito um bruto, acho difícil,


ainda que agora já tenha notado algum vislumbre de

humanidade no bonitão. O melhor mesmo é ficar bem longe


do caminho dele e fazer meu trabalho e nada além disso,

sem esperar qualquer coisa além do meu suado pagamento


no final do mês.

— Estou tentando, Cat — digo a verdade. —, talvez


tudo fique mais fácil depois.

Alberto coloca a cabeça para dentro da cozinha,


apressando a esposa, e aproveita para dar um tchauzinho de

onde está.
— Obrigado por tudo, Anabela e o almoço estava

divino!

Catarina morde a boca e fecha os olhos, como se

estivesse se lembrando do sabor.


— É verdade. Vou sentir falta disso…

— Por que não ficam para o jantar? — sugiro, afinal

posso preparar o bastante, contando com eles.


— Não podemos. Amanhã temos uma reunião bem
cedo, mas vamos voltar logo que o bebê nascer e eu espero

te encontrar aqui, hein? — Catarina sorri e alisa meu ombro


antes de ir para junto do marido.

Como dois irmãos podem ser tão diferentes um do


outro?

Então hoje irei cozinhar apenas para o Presidente.


Pensando bem, eu ainda nem sei do que ele gosta, não que

eu devesse o agradar depois do que aconteceu, muito pelo


contrário, até porque isso foi justamente o que quis fazer

antes, mas já que vamos tentar fazer isso dar certo, não vejo
motivos para não aprender sobre suas preferências. Mesmo

sendo insuportável na maioria das vezes, ele ainda é o meu


chefe.

Por isso, decido perguntar para a pessoa que melhor o

conhece nessa casa, o senhor Helder. Ele coloca as mãos


para trás e encara o teto, pensativo, a postura, como
sempre, impecável.
— Vejamos… O Presidente gosta muito de comida

italiana, massas. Ele também adora carnes de todos os


tipos, ainda que não elogie muito, dá pra perceber
facilmente do que ele gosta.

— É mesmo? Como?
Helder dá de ombros, como se fosse óbvio.

— Quando ele gosta, não sobra nada no prato.


Apoio as mãos na cintura, encarando a dispensa à

minha frente, com as portas escancaradas.

— Ele gosta de macarrão?


— Sim, também.

Fico na ponta dos pés para ver as prateleiras de cima.


Temos extrato de tomate, temperos diversos e muita comida
enlatada, que acho que era o que comia antes. Por isso ele
deve gostar tanto da minha comida…

— Que tal uma lasanha? Eu pensei em risotto, mas


não temos arroz arbóreo. Acho que vou fazer compras
amanhã.

— Ele vai gostar muito — o senhor Helder concorda —,

e se fizer as compras, se lembre de mandar entregar lá


embaixo. Timóteo pode trazer para a casa.
— Por que isso?

— O Presidente não quer estranhos na propriedade.


— Santo Deus… E você, senhor Helder? Também gosta
de lasanha? — pergunto.

— Não precisa se preocupar comigo, senhorita.


— O que você gosta, então? Vou preparar um prato
especial para você — digo.

Helder sorri, discreto, e suas bochechas brancas


ganham um tom mais corado. Ele é mesmo um fofo!
— Eu adoro lasanha, senhorita, minha mãezinha fazia
com o molho à bolonhesa.

— Decidido, então — digo, começando a pegar os


ingredientes. — Vou fazer lasanha para todos nós.
Depois de preparar o jantar, Elis, Suzi e eu vamos
embora. Cada uma de nós pega um pedaço da lasanha para

comer em casa, enquanto Helder prepara a bandeja para


servir patrão.

Apesar de ter sido um longo dia, a minha própria


bagunça me espera no chalé, por isso prefiro nem me sentar

quando chego, ou vou perder a coragem.


Volto as roupas para o armário e os casacos para os
cabides. Troco minha roupa de cama também e, por fim,
lavo a louça que ficou da noite anterior e agradeço por
termos água aquecida nas torneiras, porque faz muito frio

aqui.

Estou congelando, então pego um pijama quentinho


na gaveta e sigo para o banheiro. A água quente me faz
relaxar e me ajuda a pensar. Me lembro da noite anterior

quando o Presidente me olhou daquele jeito na biblioteca e


uma onda de calor me faz arder em lugares inapropriados.
Eu devo ter algum problema por me sentir atraída por
alguém como ele. O pobre coitado do Fabinho, que me

levava até bombons em casa e fazia várias declarações de


amor nunca me despertou interesse e aqui estou eu,
imaginando como seria ser beijada pelo senhor Presidente
idiota.

Depois do banho, apago as luzes do chalé e me deito


sob o amontoado de cobertores no meu sofá-cama
confortável, disco o número de Julieta para contar a ela
sobre os últimos acontecimentos e dizer também que não

irei para casa nesse final de semana, apesar da saudade.


Preciso tirar o dia livre para fazer minha prova.
O vestibular online dos cursos EAD da rede Vevet é
uma redação, pelo que li no site de inscrição, o que me
anima muito, já que tenho facilidade para escrever, por ler

muito. O que me preocupa é o tema, que só vai ser revelado


na hora.

De qualquer forma, estou confiante e, mesmo que


tenham me prometido uma bolsa, pensei em fazer o

vestibular, conseguir uma nota boa o suficiente e então a


apresentar ao Presidente, para que ele decida por me dar
bolsa integral ou arcar com as mensalidades.
Este foi o principal motivo pelo qual engoli meu

orgulho e decidi ficar. O salário é ótimo, sim, mas poder


fazer um curso superior era um sonho que eu acreditava
estar muito distante e que pode mudar todo o meu futuro e
o da minha família.

Além disso, gosto muito daqui, gosto do chalé, do frio


e da neblina por entre os pinheiros pela manhã. Gosto do
trabalho e da companhia da Elis e da Suzi, adoro o senhor
Helder e toda a sua pompa de um mordomo saído dos

filmes.
Também tem alguma coisa no senhor Viturino que eu
gosto, uma coisa bem pequena, escondida no meio de tudo
que me irrita, algo que não consigo identificar, mas sei que
está lá e com certeza não tem a ver com a sua aparência

maravilhosa e os arrepios que sinto quando ele me olha com


mais atenção.

Helder empurra a porta da biblioteca com o ombro.


Suas mãos estão ocupadas segurando a bandeja com meu
jantar, eu já estava mesmo com fome.

A lareira está acesa e a luz proveniente dela é o


suficiente para iluminar as páginas do livro em minhas
mãos, mas prefiro não correr o risco de ver o homem, já de
idade, trombando em algum móvel pelo caminho, por isso

acendo o abajur sobre minha mesa.


— Boa noite, Presidente. Trouxe seu jantar. A senhorita
Gonzales fez lasanha.
Helder deixa a bandeja sobre a mesa com cuidado e
me aproximo para ver o prato, parece delicioso.

— Catarina mataria alguém por isso aqui — digo,


lembrando da minha irmã esfomeada.

Lembrar de Cat me faz pensar no que ela disse antes


de ir embora, sobre buscar novas atividades para fazer aqui,
já que me recuso a sair. Ela está com medo de que eu acabe
doente com essa minha vida monótona e falou de uma

maneira que deu a entender que não faço absolutamente


nada, chegou a culpar o ócio pelas minhas dores de cabeça
e pesadelos. Ela sabe exatamente o que dizer, porque
depois disso me senti patético.

— De fato. A menina Cat sempre tomou vitaminas


para abrir o apetite e era a última a deixar a mesa,
enrolando com a comida, e veja só agora. A gravidez faz isso
com muitas mulheres — Helder parece perceber que o

comentário não me distrai, então ele retorna a sua postura


original. — Bom apetite, senhor e até amanhã — Helder se
despede, e com um cumprimento de cabeça, ele vai
embora.
Mas o que disse, na verdade, me trouxe uma
lembrança, uma das muitas que adoraria esquecer.

Enquanto fito as chamas dançando na lareira, me

lembro de Sofia me acordando de manhã, porque queria


comer um camafeu de nozes. Eu ainda não sabia do bebê,
mas ainda assim, como sempre, procurei o doce até
encontrar, apenas para a agradar.

Eu me lembro também do dia em que me contou


sobre a gravidez. Nós não estávamos em um bom momento
como casal, mas acreditei, como um idiota, que aquilo
mudaria tudo. Realmente mudou, só não foi como imaginei
que seria.

Sofia estava maravilhosa naquela noite, com os


cabelos loiros soltos, encaracolados e emoldurando seu
rosto redondo, ela usava um lindo vestido longo com flores

vermelhas bordadas sobre a saia. Esse tipo de roupa,


delicada, não era o que ela costumava vestir e quis fazer um
elogio, mas não queria dar um braço a torcer depois da
nossa última briga, então fiquei admirando de longe.
Depois de algum tempo, ela foi até onde eu estava, na

cozinha e me ofereceu um sorriso largo. Sofia ficou parada


de pé diante de mim e pediu que eu abrisse minha mão,
quando o fiz, ela colocou um pequeno sapatinho de lã
amarela sobre meus dedos e me encarou até que minha

ficha caísse.

Eu estava tão feliz… Foi o dia mais feliz de toda minha


vida, com certeza. Eu a girei em meus braços e me ajoelhei
para beijar sua barriga. Afinal, nós teríamos um filho e nada

mais importava. Com certeza, Deus havia decidido que nós


merecíamos esse presente, ainda que nos últimos meses
tivéssemos feito sexo pouquíssimas vezes, foi o que pensei,
na ocasião.

Eu, que nunca havia pensado em me tornar pai, de


repente me sentia pronto e queria mais que tudo viver esse
momento ao lado da mulher que eu amava, construir uma
família com ela, passar o legado dos Viturino à diante, dar

um neto para os meus pais e um sobrinho para os meus


irmãos. Eu não via a hora de contar a eles que eu e Sofia
teríamos um bebê.

Minhas mãos se fecham em punho com a memória,

mas não vou socar nada dessa vez, acho que nem tenho
mais forças para isso. Catarina deve ter razão, estou
adoecendo aos poucos, me tornando parte das paredes
dessa casa: frio, silencioso, escuro e solitário. Pelo menos
antes eu sentia raiva e isso é muito melhor que não sentir

nada.

Agora a lasanha já não parece mais tão saborosa.


Essas malditas lembranças se alimentam de mim, enquanto

perco a fome.
Sirvo mais uma dose do uísque que deixei ao lado da
poltrona, no chão e bebo o líquido ardente em um gole só. O
álcool sempre me ajuda a esquecer.
Não consigo dormir depois de falar com Julieta e meus
pais, pelo visto sou do tipo sentimental, nunca tinha ficado

tanto tempo longe deles e só de ouvir a voz de minha mãe,

dizendo que sente saudades, quase me desmanchei em

lágrimas. Agora estou com insônia e preciso urgentemente

de algo novo para ler.


Eu poderia ler pelo celular, encontrar um ebook, mas me

sinto tentada a invadir a biblioteca do meu chefe. Ele não

disse que eu podia? Também não me prometeu um livro se


eu fizesse o café da manhã?
Atiro as cobertas para o lado e me levanto. Calço meus

chinelos ao lado do sofá cama e visto um casaco em cima do

pijama.

Deixo o chalé em silêncio, ainda que eu saiba que

ninguém vai me ouvir, já que estão todos dormindo, e sigo


para a casa. Entro pela porta dos fundos, na cozinha, e faço

o possível para não esbarrar em nada e acabar fazendo um

barulhão.

Quando chego diante da biblioteca e entro, me

assusto ao ver uma luz fantasmagórica vinda de dentro do


cômodo.

É a lareira, Anabela! Só isso.

— Quem é? — uma voz pergunta na penumbra.

Droga. Levo a mão ao peito, meu coração dispara com

o susto, mas reconheço a voz do Presidente.

— Sou eu… Anabela.

— O que foi? Já ia tirar os livros das estantes de novo?

— pergunta, mas há humor em sua voz.


— Queria pegar um livro emprestado pra ler, não

estou conseguindo dormir…

— Entre.
Fecho a porta atrás de mim e pisco os olhos, me

adaptando à escuridão.

— Posso acender a luz?

— Melhor não… — ele responde.

Aperto os olhos e consigo discernir sua silhueta, ele

está sentado em sua cadeira, mas debruçado sobre a mesa.

— Por que o senhor está dormindo aqui?

— Não estava dormindo, estava evitando dormir.


— Por quê?

— Pesadelos — ele diz, simplesmente. — Não sei se

eles são piores, ou as lembranças.

O que me surpreende, não é do feitio dele admitir

alguma fraqueza.

— Entendi…

Mas se não posso acender a luz, como vou conseguir

pegar um livro? A lareira até ilumina um pouco, mas não

consigo ler as lombadas dos exemplares.

— Vou ligar a lanterna do celular então…

Ele não diz nada e entendo isso como aceitação.


Acendo a lanterna e ilumino a prateleira à minha frente.
Sigo até onde estão os romances, que não são muitos, e

tento escolher entre eles.

— Alguma sugestão?

O Presidente ergue a cabeça, ou ao menos imagino e

me fita, na escuridão do cômodo, seus olhos estão

brilhantes.

— Hum… Que tipo de livro?

— Romances.

— Claro que seriam… — fala, em voz baixa, mas eu

ouço. — Que tal O Conde de Monte Cristo? Ou Os

Miseráveis?

— Quis dizer romance romântico, não o gênero


textual.

— Jane Austen? — sugere, mas algo em sua voz soa

meio esquisito.

— Pode ser, só li Orgulho e Preconceito.

— Leia Persuasão, é o melhor da autora — fala,

convicto.

Estico a mão até a prateleira de cima e alcanço o

exemplar de capa dura. É uma edição antiga, como muitas

aqui, e maravilhosamente bonita. Quando me viro, a


lanterna ilumina brevemente o rosto dele, abatido e sinto

um incômodo. Por que ele está aqui sozinho a essa hora?

Parece triste.

Hesito por um momento, mas me aproximo da mesa.

— O senhor está bem?

Vejo mais nitidamente, porque estou bem perto, ele

me fita com seus olhos azuis, agora escuros como a noite e

dá de ombros. Não parece um Presidente nesse momento,

apenas um homem, carregando o peso do mundo nas

costas.

Avisto a garrafa de uísque sobre a mesa e o copo


vazio.

— Quanto o senhor bebeu?

Ele meneia a cabeça.

— Não muito, não o bastante.

A bandeja com a lasanha que fiz está quase intocada, ao

lado dele.

— A comida não estava boa?

— Deliciosa, eu é que não estou me sentindo muito

bem hoje.
— E se… E se eu te ajudar a subir pra ir dormir? —

ofereço, sem saber ao certo se deveria fazer isso.

— Eu estava com dor de cabeça e pensando no

passado. Bebi uns dois copos, mas posso subir as escadas,

Anabela.

Ele não costuma me chamar pelo primeiro nome, mas,

pelo visto, a bebida entra e a informalidade vai embora.

— Tudo bem, então.

— Anabela… — ele repete. — O nome combina com

você — fala, se colocando de pé.

Estamos frente a frente agora, a camisa dele tem os

primeiros botões abertos e a gravata está frouxa sobre o

peito, os cabelos dele caem parcialmente sobre os olhos

profundos e seu hálito quente toca meu rosto.

— Você é linda…

Por essa eu não esperava e não sei como responder a

isso, deveria dar as costas e sair, fingir que não ouvi o

elogio, mas ele está tão perto e é tão bonito. Meu coração

está acelerado e meus pés imploram para que eu os mova

um pouco para a frente, para que me aproxime um pouco


mais.
O Presidente ergue a mão e as pontas dos seus dedos

tocam meu rosto, em uma carícia lenta. Fecho os olhos e

deixo as emoções fervilhantes causarem tumulto dentro de

mim.

— Abra os olhos… — pede, em um sussurro.

Não sei negar isso a ele, não quando sua voz causa

arrepios por todo meu corpo e me faz esquecer que existe

um mundo além desse instante aqui compartilhado.

Eu faço o que pede e encontro seu olhar intenso, que

me devora ao mesmo tempo que me sonda.

— São como mel líquido.

— Mel… — repito, completamente aérea, concentrada


apenas nele.

— Sim, seus olhos. — As pontas dos dedos resvalam

pela linha do meu queixo e tocam meus lábios. — Eu quero


provar…

Eu me aproximo um pouco mais, nossos corpos agora


estão colados, inclino o rosto, dando permissão para que ele
vença a distância que ainda existe.
Quando sua boca cobre a minha, não é afoito, ou
desesperado. É leve, sutil, como se sentisse meu gosto,

como se estivesse saboreando.

Seus lábios têm gosto do uísque, mas são macios e ele

tem um cheiro maravilhoso, o perfume amadeirado,


mesclado ao cheiro de suor.

Suas mãos fortes circundam minha cintura e eu as


sinto, mesmo sobre o pijama, me aquecendo feito brasa. Ele

me puxa de encontro ao seu corpo e apoio minhas mãos em


seu peito rígido, me deixando levar.

Entreabro meus lábios, permitindo que ele me beije


com mais intensidade, sua língua desliza para dentro da

minha boca e me toca vagarosamente. Percorro seu peito e


seus ombros com as palmas das minhas mãos, conhecendo

o corpo forte e subo uma delas para a nuca dele, meus


dedos tocam os fios de cabelos mais longos um pouco nesse

local e suspiro, deliciada com a sensação.


Em algum lugar dentro de mim, uma voz grita,

provavelmente minha consciência, que me alerta sobre o


quanto isso é errado, mas não consigo me afastar, não
ainda. Preciso de mais um pouco para gravar o gosto dele na
memória.

Saboreio seus toques, a firmeza com a qual me

segura, colada a ele, a suavidade com a qual me beija, sua


respiração agitada, que mostra que me deseja tanto quanto

eu o quero nesse instante.


Não sei qual de nós interrompe o beijo, mas quando
nossos lábios se separam, os olhos dele me encaram de uma

maneira diferente, como se me visse sob uma nova ótica, eu


sei que o fito da mesma maneira. Aos poucos, o restante do

mundo parece romper a bolha na qual nos colocamos e a


constatação do que acaba de acontecer chega até nós.

— Anabela…

— Não quero falar sobre isso agora — respondo.

Pego meu livro sobre o tampo da mesa, dou as costas

a ele e deixo a biblioteca para trás.

**
Ainda não acredito que nós nos beijamos. Fico

repassando o momento na minha cabeça, como se tivesse


sido apenas um sonho muito vívido, mas o exemplar de

Persuasão que deixei sobre a minha cama prova o contrário.

Não devia ter permitido que isso acontecesse,

colocando em risco meu emprego, pela terceira vez em


apenas uma semana, se Julieta estivesse aqui já estaria

criando mil fantasias de amor entre mim e o Presidente,


mas eu sou realista e sei que foi um erro e um gravíssimo,

que não vai se repetir.


Enquanto preparamos a mesa para o café da manhã

tento me concentrar para não derrubar nada, mas minhas


mãos não param de tremer, agora que sei que vamos nos

encontrar de novo. Tenho medo de um confronto, que ele


queira falar alguma coisa sobre ontem e simplesmente não

sei o que eu diria.

— O que você tem hoje, Anabela? Está se sentindo

bem? — Elis pergunta, tomando a bandeja com o suco de


laranja das minhas mãos.

— Me desculpe, não é nada, acho que minha pressão


está um pouco baixa — minto, mas não é exatamente uma

mentira. Pode ser que esteja mesmo.


A sensação dos lábios macios do Presidente contra os

meus não para de me atormentar, a forma como suas mãos


me levaram de encontro ao seu peito ainda me causa

arrepios.

Ele pigarreia ao entrar na sala e nós três nos


afastamos da mesa, os olhos dele se encontram com os
meus brevemente, mas ele se volta para frente como se mal

registrasse a minha presença. Suzi encara o relógio na


parede, se certificando de que não estamos atrasadas.

— Bom dia — cumprimenta e essa única palavra


parece as surpreender.

Elis e Suzi respondem em voz baixa e em seguida,

saem da sala, uma atrás da outra.


O Presidente está vestindo um terno azul escuro,

ajustado e percebo que penteou o cabelo à perfeição. Ele


está ainda mais bonito, se é que isso é possível.

Ele se senta à mesa e serve café em sua xícara. Sondo


o corredor e constato que estamos sozinhos, ainda que eu

não queira, talvez esse seja um bom momento para


conversar sobre o que aconteceu e impor limites, me
desculpar também, é claro e deixar claro que o que
aconteceu entre nós não pode se repetir.

— Senhorita Gonzales. — Sua voz é firme e não


demonstra nenhum sentimento.

— Sim?

O Presidente beberica seu café, depois levanta seus

olhos e me encara por alguns segundos.


— Pode se retirar.

A frase me acerta como um tapa na cara e tenho

certeza de que fiquei vermelha, porque minhas bochechas


ardem. Como ele consegue ser tão frio? Está agindo como se

o beijo nunca tivesse acontecido.


Assinto em concordância e passo por ele pisando duro.

Ao que parece, o Presidente quer me lembrar qual o meu


lugar nessa casa, quer deixar claro que aquele beijo não
significou nada, como se eu fosse uma garotinha

apaixonada, prestes a confundir tudo.

— Como quiser, senhor — digo com rispidez.


Para mim isso é ótimo, melhor impossível! Me poupa

de ter que me explicar e falar sobre aquela bobagem, o


melhor a fazer é fingir que nunca aconteceu, assim como
ele também parece preferir.

Sendo sincera, nem sei por que estou tão brava, afinal,

pouco antes estava me tremendo toda com medo de que ele


quisesse conversar sobre o ocorrido. Talvez eu me sinta
insignificante ao perceber que ele nem mencionou o que

fez.
Ele deveria, não? É meu patrão, não deveria tomar

esse tipo de liberdade e se o fez, o mínimo era se desculpar,


se justificar talvez. Mas não, é claro que o insensível não o

faria. Claro que agiria como se tivesse toda a razão em agir


assim, ele não se sente culpado simplesmente porque não

tem sentimentos, tem uma pedra de gelo no lugar do


coração.

Voltando para a cozinha, faço uma lista de compras e

decido ir até a cidade. Desde que cheguei, no início da


semana, não saí dessa casa, e acho que novos ares vão me
fazer bem. O senhor Helder pede que Timóteo me leve até
Campos do Jordão e nós dois partimos logo após o almoço.

Eu já havia vindo até a cidade antes, quando era


criança, mas não me lembrava do quanto é bonita e
aconchegante. As casas de arquitetura ao estilo europeu,
com seus telhados inclinados e flores na janela, parecem ter

o poder de me transportar para um outro lugar, os turistas


animados, com seus casacos e cachecóis entram e saem das
chocolaterias na Vila Capivari e eu observo pela janela,
como quem assiste a um filme pela televisão,
completamente encantada.

Por um momento me imagino aqui, passeando de


mãos dadas com um homem encantador, apaixonada e
jantando com ele em algum desses restaurantes chiques,

tirando fotos como o casal do outro lado da rua. Ele também


me amaria e me dirigiria um olhar cheio de paixão, seus
olhos azuis me fitariam com desejo, antes de me beijar.
Olhos azuis o caramba! Meneio a cabeça, fazendo com
que a fantasia vá embora, logo que percebo que o homem

desconhecido ganhou um rosto, que agora já me é bastante


familiar. Honestamente, não sei o que aquele maldito beijo
fez comigo, sempre tão sensata e agora imaginando
cenários românticos com aquele bruto, que logicamente

jamais viria em um lugar cheio como esse, com qualquer


mulher que fosse.
— Posso te deixar no supermercado que fica logo ali
na frente, senhorita Gonzales. Te espero no carro para ajudar

com as compras.

Aquiesço, encarando o motorista pelo retrovisor.


— Vai ser ótimo. Tem alguma coisa que queira para o
jantar? — pergunto, sendo gentil.

— Eu? Não, senhorita. Tudo que tem feito é delicioso,


deveria perguntar ao Presidente.
— Aquele grosso? E acha que ele iria me responder?

— explodo, saindo do carro e deixando Timoteo com os olhos


esbugalhados.

Não sei a razão do susto, deveria já ter se acostumado


ao fato de que ninguém aguenta seu patrão estimado.

Beijoqueiro de araque!
Pego um carrinho na entrada do mercado e
acompanhando a lista nas minhas mãos, começo a pegar
tudo o que preciso para encher aquela despensa. Não deixo

nada de fora, se o maldito não sai de casa, ao menos tem


que comer direito, certo? Compro carnes variadas para
encher o freezer, legumes e verduras frescas, frutas
diversas.
Também compro farinha, ovos, leite, refrigerantes —

pode até ser que ele não goste, com aquela malhação toda,
mas eu gosto — e compro itens específicos para algumas
das receitas que pretendo fazer. As noites frias estão
pedindo por caldos e não vejo a hora de assar uns
marshmallows em uma daquelas lareiras, como sempre vi

fazerem nos filmes, então também compro. É o que dá


deixar o cartão de crédito nas mãos de uma mulher irritada!

Termino as compras pegando duas garrafas de vinho,

para servir quando chegarem as visitas que raramente


aparecem e separo alguns itens para levar para o chalé,
pagando esses do meu bolso, claro. Também não sou uma
aproveitadora.
Quando passo no caixa e pago pelas compras, Timoteo

aparece e me ajuda a carregar o carro. Ele abre o porta-


malas e o enche com as sacolas rapidamente.

— Timoteo, pode me esperar aqui só um minutinho?

Quero comprar uma última coisinha...


Ele aquiesce, educado como sempre e corro para
entrar em uma chocolateria bonita, logo na esquina. Pego
uma caixa de bombons de cereja e um chocolate em pó da
melhor qualidade, não é achocolatado, daqueles cheios de

açúcar, mas chocolate mesmo, vai ficar perfeito no meu


chocolate quente!

Volto para o carro e enquanto subimos pela estrada


estreita, observo os pinheiros altos nas encostas e os chalés

escondidos nas montanhas, do outro lado da serra, é


impossível deixar de pensar que alguma coisa muito ruim
deve ter acontecido, para que ele quisesse se esconder aqui,
longe dos amigos e da família. O lugar é lindo, não posso

negar, mas não para viver solitário assim, sei que ficou
viúvo, mas não sei… Me parece muito tempo para ainda
estar de luto pela esposa, mesmo que a amasse muito.
Ainda assim, pode ser possível. Talvez tenham vivido

um amor desses épicos, que deixam marcas eternas na


alma e parte dele tenha morrido junto com a amada,
desistido de viver. Que tipo de mulher ela deve ter sido para
o deixar destruído a esse ponto?

Deixo as reflexões de lado quando Timóteo estaciona


na lateral da casa, sob a sombra de uma árvore. Nós
descemos com as compras, passando pela porta dos fundos,
que leva até a cozinha.
O motorista deixa as sacolas sobre a mesa e retorna

imediatamente, fazendo uma careta estranha ao passar por


mim, entendo o que a careta significa assim que coloco
meus pés para dentro da casa.

Pilotando o fogão e vestindo uma camiseta básica e


calças jeans, está ninguém menos, que o próprio Presidente
Viturino. Isso só pode ser brincadeira! Eu estou alucinando?
Coloco minhas sacolas sobre a mesa ao mesmo tempo

que ele desvia os olhos e me fita por um segundo, procuro


por Elis ou Suzi, mas acho que estamos sozinhos, o que
torna tudo ainda mais esquisito.

— Quer que eu faça isso? — pergunto, afinal, ele não

me parece ser o tipo de pessoa que cozinha.


— Sabe fazer waffles? — Sua voz é firme, mas não tem
raiva ou irritação em seu tom.

— Não, mas…

— Eu sei e sou bom nisso. — O Presidente cobre a


panela com a tampa e se vira, ficando de frente para mim.
— Só estou tentando uma coisa…

— Que coisa? — pergunto.


Começo a tirar os produtos de dentro das sacolas para
guardar em seus devidos lugares, mas de canto observo as
roupas informais que está usando, ele fica muito bem nelas,
parece mais jovem, menos tenso e tão bonito quanto em

seus ternos perfeitamente cortados. Está calçando um tênis,


eu com certeza nunca o vi assim, mas imagino que seja o
tipo de roupas que usa na academia — exceto pelo jeans —
e no boxe.

— Você não entenderia — ele diz, balançando a


cabeça.
O que ele está tentando fazer? A expressão em seu
rosto me desperta curiosidade, é uma mistura de vergonha

e tristeza, talvez até um pouco de esperança, eu não


deveria, mas sinto uma vontade muito forte de o entender,
compreender o que se passa em sua cabeça.

— Por que não tenta? — Dou um passo à diante,

tentando o incentivar.
— Esqueça isso, senhorita Gonzales, e me desculpe
por invadir sua cozinha. Na verdade, eu não queria comer
isso, foi um desejo momentâneo… — Ele me olha nos olhos
por um instante e respira fundo, batendo a colher de pau
contra o ar. — Um desejo momentâneo, fortíssimo.

A lembrança do nosso beijo na biblioteca preenche

meus pensamentos, pelo modo como fala, me parece estar


se referindo a isso. Ele está me pedindo desculpas e dizendo
que foi um desejo muito forte que o levou a me beijar?
— De que exatamente nós estamos falando?

Ele aponta com a colher de pau para a panela e dá de


ombros.
— Waffles, senhorita.

Lógico que não estava pedindo desculpas. E ele sabe

fazer isso, por acaso?


— Ah, sim, é claro. E onde estão Elis, Suzi?

Ele me fita com o cenho franzido, parece confuso.

— Quem?

Dessa vez não escondo meu olhar de irritação.


— Suas funcionárias, Presidente. As mulheres que
limpam sua casa, lavam o banheiro que o senhor usa,

tornam essa sua caverna habitável.

— Ah, sim… Eu só não sabia os nomes delas.

— Por que será, não é mesmo?


Ele ignora a pergunta sarcástica.

— Eu pedi que eles saíssem — explica, simples assim.


— Saíssem? Da cozinha ou da casa? E cadê o senhor

Helder?

— Pedi que saíssem da casa, elas voltam mais tarde


para o jantar. E ele está no quarto, tirando um cochilo, como

sugeri.
— Ao menos ele o senhor sabe quem é…

— Claro que sei, que absurdo — responde,


resmungando —, o homem me criou e aos meus irmãos

desde crianças.
— Seus irmãos? — questiono, dando uma de
desentendida.

A verdade é que nunca o ouvi falar do irmão que

morreu, então não custa tentar a sorte.


— É, Miguel e Catarina — fala, tranquilo, mas não se
estende.

Também não me sinto corajosa o suficiente para


perguntar sobre a morte de Miguel, então mudo o rumo da
conversa.
— Helder deve ser bem idoso, pra ter criado o senhor.
— Ele é velho, mas tive a impressão de que acaba de
me chamar de velho também, senhorita. Não tem mesmo
medo de perder o emprego.

— Ah, eu não te chamei de velho, mas jovenzinho


também não é, né?
— E a senhorita tem quantos anos para fazer todo

esse julgamento? — a pergunta vem de maneira


despretensiosa, mas sinto que ele está mesmo curioso.

Talvez esteja com receio de ter agarrado uma menina


muito nova.

— Tenho vinte e sete.

— Eu tenho trinta e cinco.


— Eu sei.

Se ele se surpreende com minha resposta, não


demonstra. Me aproximo do fogão, sondando a calda de
chocolate que ele fez, até que parece estar se saindo bem.
— Tá bom, então. Vou te deixar aí preparando seu

lanche e estarei na lavanderia, caso precise de mim.

Saio pela porta dos fundos e sigo sem olhar para trás,
mas me odeio por estar torcendo muito para que ele me
chame de volta. O que, claro, o babaca não faz.
Sofia está grávida há pouco tempo, descobrimos duas
semanas atrás, e resolvo fazer uma surpresa, comprar algo
para o bebê e para ela. Uma das minhas muitas tentativas
de melhorar as coisas entre nós.
O bebê com certeza já nos tornou mais próximos, Sofia
agora passa todo o tempo em que eu estou em casa,
comigo, e sempre se programa para dar uma passadinha no
escritório. Voltamos a dormir na mesma cama e pelo que
parece, minha mania de me mexer a noite toda não a
incomoda mais. Com isso, claro, o sexo voltou a acontecer
com mais frequência e, aos poucos, as coisas parecem estar
se encaixando.
No trabalho, no entanto, não está tão fácil. Meu pai
exige muito de mim e meu irmão não para mais no escritório
e nem vai às reuniões, o que me deixa ainda mais
sobrecarregado. Catarina é quem mais me ajuda.
Olho no relógio e percebo que passa das cinco, se não
for rápido não vou encontrar as lojas abertas. Então deixo as
tarefas por fazer e saio do escritório.
Dirijo até o endereço que pesquisei mais cedo e entro
na loja. A vendedora me atende rapidamente e digo a ela
que quero um ursinho para o bebê, mas ainda não sei o
sexo.
— Venha por aqui — ela diz, começando a caminhar.
Sigo a mulher pelo corredor da loja, que está
abarrotada de coisas e chegamos ao final dele. Olho a
estante para a qual ela aponta e vejo os bichinhos de
pelúcia enfileirados, são muitos e de vários tipos, o que
torna minha escolha mais difícil.
Encontro coelhos, cachorrinhos e girafas e até mesmo
um panda bem fofo. Acabo me decidindo por um labrador
enorme e de pelos bem clarinhos.
Ainda estou no caixa quando percebo que
provavelmente o bichinho é muito grande para um recém-
nascido, mas o bebê não vai brincar mesmo por vários
meses, o importante é o gesto.
De posse do cãozinho, volto para o carro e sigo até a
floricultura mais próxima, onde compro flores para Sofia. Ela
não gosta de rosas, as acha convencionais demais, como
sempre diz. Então compro tulipas, bonitas e estilosas.
Olho no relógio e constato, feliz, que ainda não são
seis horas. Vou chegar bem antes do horário de costume e
fazer uma surpresa a ela.
Estaciono diante de casa e entro pela porta da frente
em silêncio. Sofia está na cozinha, ao telefone e não me
ouve entrar. Fico em silêncio, aguardando que encerre a
ligação para me anunciar.
— O que isso importa? Isso não vai acontecer.
Ela parece tensa, está discutindo com alguém e isso
me incomoda.
— Não, não vou deixar o Matteo, já disse isso a você.
O quê? Sinto como se alguém socasse meu estômago
com muita força. De que porra ela está falando? Com quem
ela está falando?
— Mesmo assim, mesmo que o bebê seja seu…
Acordo repentinamente e me sento na cama,

atormentado. É o segundo pesadelo em uma semana e

odeio quando eles retornam assim, como lembranças.

Descobrir a traição de Sofia foi uma das coisas mais terríveis

que vivenciei, aquilo abriu um buraco no lugar onde antes

ficava meu coração.

Ainda me lembro do que fiz naquele dia. Voltei para o

carro em silêncio, sem que ela me visse e saí dali. Não voltei

até que estivesse muito tarde e não disse nada a ela pelos

próximos dias. Foi uma fase horrível, mas, mesmo depois

disso, não ficou muito melhor.

Olho na direção da varanda. Ainda que as cortinas

estejam fechadas, percebo que assim como na outra noite,

ainda não amanheceu e sigo a mesma rotina, arrancando o

cobertor da cama, me enrolando nele e saindo para assistir

ao nascer do sol.
Hoje estou com uma dor de cabeça incômoda, talvez

fruto do pesadelo, mas as mudanças na casa e na minha

vida também devem estar mexendo comigo. Anabela.

Meneio a cabeça, me lembrando do beijo. Eu não

deveria ter feito aquilo, principalmente com ela, uma

funcionária. Não sei qual das minhas atitudes merece o

prêmio de canalhice, o beijo roubado ou o fato de agir como

se não tivesse acontecido, no dia seguinte. Ela está irritada

comigo e com toda razão, mas não consigo me arrepender,

mesmo sabendo que o que fiz foi errado.

Tinha muito tempo que eu não me sentia vivo, como

me senti naquele momento, e, agora, não me parece tão

fácil esquecer.

Após assistir ao espetáculo do dia raiando, tomo um

banho e troco de roupas, me preparando para o dia.

Descendo as escadas, encontro Helder na sala de jantar,

onde meu café está sendo servido desde que Anabela

chegou.

— Bom dia, Presidente.

— Bom dia, Helder.


Eu me sento à cabeceira, como de costume, mesmo

que vá comer sozinho.

— O senhor dormiu bem? — ele questiona, servindo

um pouco de café na minha xícara. — Tem levantado muito

cedo esses dias.

— É, não estou dormindo direito.

— Posso perguntar por quê? Tem alguma coisa o

incomodando?

— Lembranças, Helder. Os sonhos… — Balanço a

cabeça, me negando a entrar em detalhes, não é algo que

queira discutir. — As enxaquecas também estão piores.

— Imaginei que tivesse algo a ver com isso, o senhor

tem dormido muito mal.

— Você é sempre muito atento.

Ele aquiesce, mas não parece feliz em estar certo.

Helder se preocupa muito comigo, ainda que tenhamos

tantas formalidades à nossa volta.

— Já vão trazer seu café da manhã da cozinha, senhor.

Mas quero sugerir uma coisa.

Fico em silêncio, aguardando. As pontadas na minha

cabeça vêm e vão, mas mesmo que esteja irritado com isso
e com o sonho, Helder merece ao menos a consideração de

ser ouvido.

— O senhor precisa de férias.

— Alberto disse a mesma coisa — falo, me lembrando

da conversa anterior. — Interessante essa ideia de vocês, já

que eu não saio de casa pra nada.

— Não sai, mas trabalha o tempo todo, precisa de


descanso. E mesmo que não queira sair e viajar, ainda deve

haver algo interessante pra fazer por aqui, para se distrair.


— Catarina também disse umas coisas assim, como se

eu fosse um idiota que não faz nada o dia todo…

Helder não discute isso, o que me leva a acreditar que

pense da mesma maneira.


— Talvez possa ir pescar com mais frequência, mesmo

sem seu cunhado.

Aquiesço, analisando a sugestão.


— Posso treinar boxe.

— Mas o senhor já faz isso, a ideia é fazer algo


diferente.

— Ontem eu fiz waffles, Helder — conto, me


lembrando do momento em que Anabela entrou e me
surpreendeu. — Se lembra como eu gostava de cozinhar de
vez em quando?

Ele aquiesce, satisfeito.


— Foi um bom começo, senhor.

— Se vocês todos insistem nisso, vou tentar pensar em

opções de lazer que consiga fazer sem sair da propriedade.


Passo o resto do meu café pensando nisso, mas

poucas coisas me veem à mente. Talvez depois eu devesse


parar e fazer uma lista, tentar encontrar coisas que queira e
possa fazer. Pela manhã tenho uma reunião com Catarina,

quando a tela se abre, primeiro tento entender o que estou


vendo.

Não vejo seu rosto, mas seu couro cabeludo está bem

diante da câmera.
— Cat?

— Oi, irmão! — A voz sai meio abafada. — O ar-


condicionado quebrou, o Alberto foi ligar pra um técnico.

— Annn… Tá bom.

— Por isso estou nessa posição — diz, em uma


explicação que ainda não compreendo. — Coloquei um
ventilador embaixo da mesa e estou com o rosto voltado pra
ele, ou não aguento o calor.

— Não está tão quente assim, Catarina. Deixe de ser

exagerada.
— Aqui está, sim.

— Mas é inverno…
— Você não tem um bebê enorme e contorcionista

dentro da sua barriga, Matteo. Não sabe o que é sentir calor.

— Ah, entendi, coisa da gravidez.

— É, mas já está acabando, graças a Deus.

— Isso. Logo passa…


— Bom, como pode ver, hoje estou desconfortável, só

queria te dizer que deu tudo certo na abertura do campus


dois de Campinas. O papai foi, mamãe o acompanhou e as

fotos ficaram ótimas.

— Perfeito.

— Por falar nisso, quero discutir uma coisa com você.


Helder me disse que você aprovou um bônus para a

Anabela, você sabe o que ela pediu?

— Na verdade não. Eu disse que podia dar o que ela

quisesse — respondo, me lembrando do momento em que


ele me questionou a respeito.

— Pediu uma bolsa na faculdade, para estudar a


distância.

— É mesmo? Não sabia que era isso que ela queria.

— Sim, mas mesmo assim ela se inscreveu no


vestibular — minha irmã conta. — Fez a prova e quando as

notas saírem, você pode definir isso? Se vamos encaixar no


sistema de contemplação de bolsistas ou arcar com os
custos?

— Tudo bem, como você achar melhor. Sabe o curso


que ela quer?

— Ela não me disse.

— Certo. Não entendo por que ela fez a prova do


vestibular, se já era certo que entraria pelo bônus.

— Também não sei, mas talvez quisesse mostrar que


ela podia entrar através do próprio esforço.

Concordo, pensando melhor a respeito. Anabela


parece fazer o tipo orgulhosa, com certeza ela faria isso para

se provar capaz, ainda mais depois da discussão na


biblioteca.
— Vou desligar então, preciso de uma banheira de

gelo — Cat diz, ainda abaixada na posição estranha.

— Deus amado, eu vou é acender a lareira.


Ela ergue o rosto e me dirige um olhar fulminante.

— Tenha um bom dia, Mat.


A imagem some e Catarina também. Observando

minha agenda percebo que não tenho muito o que fazer


hoje, as próximas semanas estão tranquilas, o que torna a

ideia das férias mais atraentes. Estou refletindo sobre isso


quando meu celular toca sobre a mesa. Poucas pessoas têm

meu número, então isso é bem raro.

Olho o visor e me surpreendo ao ver o número de Greg

ali. Faz um bom tempo que não nos falamos.


— Alô… — atendo, um pouco surpreso.

— E aí, cara? Como vão as coisas no mausoléu?


— Muito bem, a múmia aqui vai bem também.

Ele gargalha ruidosamente. Greg é do tipo expansivo,

sempre cheio de piadas prontas e tiradas sarcásticas. É meu


amigo mais antigo, nos conhecemos na época da faculdade

e é o único que permaneceu depois de Sofia. Não nos vemos


com frequência, já que ele está sempre fora do país, mas de
vez em quando me liga ou manda mensagens.

— Também estou bem. Quero ir até São Paulo no final


do mês que vem, estou planejando aproveitar e te fazer uma
visita.
— Sério? — questiono, mal me livrei de uma visita e já

vem outra.

— Claro, percebo na sua voz a empolgação. Aposto


que vai até me dar um beijinho quando me vir chegando.
— Você bebeu hoje?

— Ainda não. Acabei de acordar, mas pretendo beber,


por quê?
— Pensei que estivesse alucinando.

— Ah, Viturino! Admite que está morrendo de


saudades! Agora me conta, como vai o velho Helder?
— Uma saúde de ferro, leal como sempre, mais
animado que eu…

— Isso não é difícil — responde, fazendo piada. — E


nossa Cat?
— Que o Alberto não te ouça falar assim, mas Catarina
está bem e vai ter o bebê logo, quem sabe você já o
conhece?

— Sei não… Bebês e eu, não somos a melhor


combinação.
— É, sei bem o que quer dizer.

— Bom, vou te ver então, combinado? Tem comida


nessa casa ou só enlatados, como na última vez? Porque se
for assim eu já levo uns petiscos.
— Tem comida. Contratei uma governanta nova e ela
cozinha muito bem.

— Ahh, caralho! Agora sim! Parece que você está


melhor. Fico feliz.
— Estou bem, Greg.

— Tá bom. Vou desligar então e nos vemos em breve.


A semana está sendo tensa. A tapeçaria foi limpa e
está seca e com a ajuda de Elis e Suzi, volto tudo para o

lugar. Também arranco as cortinas, que parecem nunca


terem sido lavadas. Eu as levo até a lavanderia, que fica fora
da casa, nos fundos da cozinha. O sol hoje se dignou a
aparecer e é um dia mais quente que os que geralmente
temos por aqui, o que é bom, vai ajudar a roupa a secar

mais rápido.

Constato o horário e volto para dentro da casa, a fim


de preparar o lanche da tarde. O Presidente está no

escritório desde cedo e ainda não o vi e se depender de


mim, vamos continuar assim. Aquele idiota! Me beijar
daquele jeito e agir como se não fosse nada. Francamente!
Depois ainda invadir a cozinhar, do nada!
Eu deveria cozinhar alguma coisa, é o que costumo

fazer em casa, quando Julieta ou meus pais me irritam.


Também gosto de assar biscoitos quando estou feliz, mas no
momento, não é o sentimento que me domina. Isso é
injusto, além de me irritar, o homem ainda vai comer

deliciosos biscoitos, eu deveria ser do tipo que se irrita e


queima o arroz, isso sim!
Já fiz a receita várias vezes, então acabei decorando.
Abro as portas da despensa e pego o açúcar mascavo, o

açúcar cristal, a farinha de trigo, a essência de baunilha, o


fermento em pó e as gotas de chocolate que fiz questão de
trazer do mercado. Na geladeira pego os últimos
ingredientes, a manteiga e um ovo.

Após misturar bem a manteiga com os açucares, o ovo


e a essência, acrescento a farinha devagar, mais com muita
irritação, também coloco o fermento e por fim, as gotinhas
de chocolate.

Levo a mistura à geladeira e, enquanto espero,


aproveito para lavar a louça que sujei e acender o forno para
aquecer. Quando se passam os dez minutos necessários
para a massa ganhar mais firmeza, faço as bolinhas e coloco

em uma assadeira.

Enfeito os biscoitos por cima, com mais gotas de


chocolate e depois levo ao forno para assar. Eu poderia fazer
um chocolate quente para acompanhar, mas o Presidente

não anda merecendo agrados, então passo um café quente


e, quando termino, os biscoitos estão prontos.
Arrumo tudo em uma bandeja bonita e ainda faço

questão de colher uma rosa no jardim, que posiciono dentro


de um pequeno vaso. Tudo lindo e delicioso, para que o
babaca não ouse me criticar por qualquer coisa, como
corresponder ao beijo dele.

Elis entra na cozinha, agitada e me fita com os olhos


arregalados.
— O que aconteceu? — pergunto, notando sua
expressão.

— Eu que pergunto! De onde vem esse cheiro


maravilhoso? A casa está inteira cheirando a chocolate e
vim roubar um pouco do que quer que seja — ela diz,
sondando o forno.

— São biscoitos, eu já retirei daí — falo, mostrando a


bandeja pronta.

— Você fez para o patrão? Não sobrou nadinha?


Abro um sorriso diante da súplica dela e tiro o pano de

prato que usei para cobrir a forma, revelando os biscoitos


que reservei para nós.

— Ah! Você é maravilhosa, sabia?


— Sabia — falo, brincando —, mas você também podia

ser gentil e me agradecer me fazendo um favor.

— Qual?
— Preciso que leve a bandeja para o Presidente, não
quero falar com ele.

— Ahhh, não! Ele está de mal humor, não dormiu


direito à noite, eu ouvi o Helder falando pra Suzi ficar fora do
caminho dele hoje. Não viu como está esquisito? Ontem nos

expulsou da casa e você nem vai acreditar! Estava usando


calça jeans!
Prefiro não comentar que eu também o vi e me
surpreendi.

— E por que ele não dormiu?


— Isso eu não sei… Parece que está com crise de
enxaqueca. Anabela, pensa comigo — ela diz, se
aproximando e juntando as mãos como se fizesse uma prece

—, ele vai com a sua cara, pode não parecer, mas se fosse
eu que retirasse os livros todos das estantes, ou jogasse uma
botina na cabeça dele, já teria sido demitida e ainda teria
que arcar com um processo enorme! Mas você fez isso tudo

e ele ainda implorou pra que ficasse.


— Não é bem assim, ele não implorou nada.

— Ele te deu um livro! Acho que isso deixa claro que


se tem alguém que pode enfrentar o Presidente em dias
como hoje, é você.

Suspiro, resignada. Ao que parece ninguém quer ver o


homem. Abro o armário e pego um analgésico e depois
encho meio copo de água, é o único jeito de resolver essa
dor de cabeça que esse homem se tornou.

Caminho decidida até a biblioteca, com a bandeja


segura em uma das mãos e bato na porta. Ouço a voz dele
responder com um entre meio contrariado. Abro uma fresta
e espio por ela.

O Presidente está sentado em sua poltrona, reclinado


sobre a mesa escrevendo alguma coisa. Não parece tão
nervoso quanto disseram.

— Vim trazer o seu lanche — falo, entrando por fim.

Ele ergue o rosto e seus olhos encontram os meus


momentaneamente. Sinto um frio na boca do estômago.
Esse maldito, agora deu pra me fazer sentir coisas...

— Pode deixar aqui.


Caminho até estar diante dele e coloco tudo sobre o
tampo de madeira, com um pouco mais de rispidez que o
necessário. Ele me encara, com o cenho franzido.

— O que foi, senhorita Gonzales?

— É obrigado, que se fala, Presidente.

— Hum… — Ele desvia os olhos para a bandeja e


observa os biscoitos e o café fumegante. — Parece delicioso.

E isso aqui? — Aponta para o copo de água.


— Me disseram que estava com enxaqueca, trouxe um
comprimido — ofereço o analgésico e ele abre a mão para
segurar —, tome com a água.

— Obrigado — diz, colocando o remédio na boca e


bebendo a água em seguida —, essa dorzinha chata está me
incomodando.
— Imagine meu incômodo, então, já que minha dor de

cabeça tem cerca de um metro e oitenta. Não dá pra


descrever como dorzinha.

Ele parece confuso e cerro os lábios percebendo que,


mais uma vez, falei mais do que devia.

— Está se referindo a mim, por acaso?

— Não, senhor Presidente.


— Me parece que sim. Vamos, diga o que pensa, diga
que está brava comigo por causa do que aconteceu aqui.

— Aconteceu alguma coisa? Não me lembro. — Me

recuso a dar essa satisfação a ele.


Mas o babaca sorri de lado, esses sorrisos estão se
tornando cada vez mais comuns e deixam seu rosto ainda
mais lindo. Deus do céu, como pode ser bonito assim? E

rico, e inteligente e ainda beijar bem… É injusto com o


restante do mundo.

— Não quero que me considere arrogante, mas não


acho que esqueceria isso tão facilmente.

— Mas está enganado, tenho uma memória péssima!

— É mesmo, Anabela? Talvez eu devesse a refrescar,


então.
— Voltei a ser Anabela? Fica difícil acompanhar suas

mudanças nas normas de formalidade. E pra que refrescar


algo, se amanhã vai fingir que não fez nada?

— Ah! Então é esse o problema, está brava porque agi

como se não tivesse te beijado.


— Não é bem esse o ponto, senhor.
— Claro que é… — Ele parece pensativo e seus olhos
agora não me encaram. — Eu não sabia o que dizer.

— O senhor? Sem palavras?

— Sim. Escute, não vou mentir, tá bom? Senti muita


vontade de te beijar e então o fiz, você correspondeu, mas
depois saiu. Não sabia se deveria me desculpar, se agi mal
ou se devia me explicar. No fim, preferi não dizer nada.

— Eu não correspondi, só fui pega de surpresa —


minto, melhor preservar a dignidade.
— Correspondeu, sim. Ao menos por um momento.

— É difícil reagir diante desse tipo de situação,


quando um patrão…
Ele me interrompe, erguendo a mão. Seus olhos me
fitam agora com raiva.

— Eu não sou esse tipo de homem, Anabela. Não


quero que fale ou pense coisas assim, não fico me
aproveitando da minha posição para dar em cima das
funcionárias dessa casa, assim como nunca fiz isso quando

ainda trabalhava na empresa.


— E o que quer que eu pense, então?
— Que foi só com você, porque foi. Não sei, acho que
você me atrai com esse seu jeito arisco, essa língua afiada,
tem alguma coisa em você que me tira do estado de inércia

e me faz cometer uma besteira atrás da outra.

Isso me faz sorrir.


— É, acho que tenho esse dom de tirar as pessoas do

sério.

— Tem mesmo — ele concorda.


Apenas deixo de encará-lo porque fica estranho, o
clima começa a mudar e antes que um de nós acabe tendo

outro deslize, prefiro desviar o assunto para outras questões.

— O que estava escrevendo?


— Ah, não é nada… — Ele cobre o papel com a mão,
escondendo.

Estreito os olhos.
— Só me deixou mais curiosa.

— Não é da sua conta — ele fala, mas agora está

sorrindo.
— Bruto! Aposto que é uma lista de regras para a
casa, como aquelas de não gritar, não ouvir música e não
viver.
— Não viver? Que coisa mórbida, eu nunca disse isso.

— Disse com atitudes.

Ainda que eu responda em tom brincalhão, ele fica


repentinamente sério e meneando a cabeça, tira a mão de
cima do papel, me permitindo ver.

— É o que todo mundo anda me dizendo e não é bem


uma mentira. Mas resolvi tentar fazer alguma coisa
diferente, de tanto insistirem.
— Então é uma lista de afazeres? De coisas para se
divertir?

— Algo assim. Mas não sei se ainda consigo fazer isso,


como fez questão de frisar, eu não vivo tem bastante tempo.
— Me deixe ver isso — falo, me aproximando um

pouco. Ele não faz menção de cobrir a folha novamente,


então entendo como aceitação. — Pescar das oito às nove…
Vai colocar um alarme também?

Ele não responde.

— Voltar a cozinhar… Bom, acho que isso explica sua


invasão na cozinha, ontem. Capinar o jardim e plantar
algumas flores… Olha, já te vi em ação nesse caso e o
senhor fica muito bem com a enxada na mão — digo,
tentando deixar o clima mais leve, já que ele parece
constrangido.

— Ficou me olhando sem camisa, Anabela? Não sabia


disso.
Parece que funciona, porque agora ele está rindo

novamente.

— Eu olhei da varanda, para o jardineiro. Não tenho


culpa se era o senhor, eu não tinha como saber.
— Isso não faz diferença nenhuma na verdade — diz,

meneando a cabeça —, ainda assim estava olhando.

— É, não vou negar… — Volto a encarar a folha. —


Lutar boxe. Olha, essa sua lista não tem nada muito
diferente do que costuma fazer, acho que deveria tentar

algo novo. Por exemplo, se vai lutar boxe, que seja com um
oponente. Se vai plantar flores, faça uma estufa e porque
não fazer um piquenique à beira do lago quando for pescar?
Entende? Coisas relaxantes, leve um livro também e sobre

cozinhar, acho que foi um bom acréscimo à lista.


— Vou pensar nas suas sugestões. A verdade é que ao
que parece, eu não sei mais me divertir…
Ao dizer isso, seu olhar me parece triste. É estranho,

as vezes falando com ele, sinto como se fossem duas


pessoas. O Matteo de agora, que quer viver e se abrir e
aquele que ainda está preso a problemas do passado. Talvez
tenha mesmo sido a morte da esposa que o tornou assim,
esse também pode ser o motivo de não ter levado o assunto

sobre o beijo adiante, talvez se sinta culpado, mesmo que a


mulher já tenha falecido a tanto tempo.
Retorno para a cozinha um pouco pensativa sobre
minha conversa com o Presidente. Como será que essa

mulher morreu para que tenha ficado tão abalado?

Estou preparando um pratinho com biscoitos para o

Helder, quando Suzi chega. Ela se senta perto de Elis, na

pequena mesa reservada a nós e pega um biscoito também.


— Parece meio distante hoje, Anabela — comenta, se

servindo também de uma xícara de café.

— Estou pensando no Presidente.


— No que exatamente? — ela questiona, sugestiva, as

sobrancelhas se arqueando.

— Não seja boba, não é nada assim. É que ele é

sempre tão sério e irritado, mas as vezes parece meio triste,

não acham? — Me aproximo delas e diminuo o tom de voz.


— Vocês sabem como a esposa morreu?

As duas se entreolham, mas não parecem ter uma

resposta satisfatória.

— Na verdade, quando vim trabalhar aqui ele já vivia

sozinho. Eu nunca entendi bem o que aconteceu, só sei que


tem algo sério aí, no passado dele, e depois disso ficou aqui

fechado.

— Isso é triste — murmuro, mais para mim mesma.

— Já ouvi a dona Catarina e a senhora Clarissa

conversando uma vez — Suzi fala, fazendo suspense.

— A mãe dele? Ela vem muito aqui? — Me sento em

frente a elas, também pegando um biscoito.

— Pelo menos a cada dois, três meses.


— E sobre o que elas falavam? — É Elis quem

pergunta.
— Parece que a tristeza dele, esse isolamento, não é

só por causa do luto, por perder a esposa. Tem a ver com

chifre.

— Como assim? Ele traiu a mulher? — pergunto,

chocada.

Eu me recordo do modo como ele se justificou para

mim pouco antes, não o imagino fazendo algo assim, tão


desleal.

— Não, menina. Ela foi quem traiu e depois morreu, ou

morreu traindo… — Suzi completa, explicando. — Não

entendi muito bem. O que eu sei com certeza é que mesmo

defunta, dona Catarina e a senhora Viturino já deixaram

muito claro que não gostavam dela de jeito nenhum.

— Que coisa…

Geralmente o ser-humano tem a tendência a perdoar

os erros daqueles que morrem, às vezes a pessoa apronta

todas em vida e quando parte dessa pra melhor, vira uma


santa da noite para o dia, com direito a flores e

homenagens. Se ainda odeiam a falecida, mesmo depois da

morte, a mulher só pode ter sido uma vaca! O que elimina


minha suposição de que tenham vivido um amor lindo e

épico. Ele ficou foi destruído pela traição, decepcionado.

— Também tem a coisa com o irmão, que o abalou

muito — Suzi continua.

— O que aconteceu? Eu li alguma coisa mesmo sobre

um irmão entre ele e Catarina, e ontem o Presidente

comentou que Helder ajudou a criar os três.

— Isso, se chamava Miguel. Morreu em um acidente

aéreo, o avião caiu pelo que dizem.

— Que coisa horrível! — Cubro a boca com a mão. Aos

poucos começo a entender toda a amargura do homem, não

deve ter sido fácil lidar com essa sucessão de tragédias.

— Pois é, a família ficou arrasada e o senhor

Presidente e o irmão eram muito próximos.

— São tantas desgraças — concordo. — Essa conversa

só me deixou mais curiosa. Será que é tudo verdade?

— Você deveria perguntar — Elis sugere, rindo. — Já

que são tão amigos…

— Deixa de bobagem, não somos amigos coisa

nenhuma.

— Ele não grita com você.


— Ficou maluca? A única coisa que ele faz é gritar

comigo — afirmo, mesmo que o beijo ainda esteja muito

vivo em minha mente —, com vocês por outro lado, nunca o

ouvi erguer a voz, são muito exageradas.

— Eu te disse no primeiro dia — Suzi lembra —, ele

não grita com a gente, grita a respeito das coisas que nós

fazemos, mas também não é muito legal.

— Não sei se ele é tão ruim assim… — comento, me

lembrando do modo como falou comigo mais cedo.

As duas se entreolham e sorriem.

— Anabela, nós sabemos que ele é um gato, temos


olhos também. Mas não é porque está caidinha por ele que

vai nos convencer que o homem é gentil — Suzi fala,

colocando uma mecha do cabelo preto atrás da orelha.

— Bom, eu não diria gentil… — Muito tarde as

palavras dela penetram meus ouvidos e arregalo os olhos. —

Eu não estou caidinha por ninguém! De onde tiraram uma

ideia dessas?

— Sei lá, você estava suspirando enquanto preparava

esse prato aí e quando perguntei disse que estava pensando


no Presidente.
— Vocês falam um monte de bobagem — respondo,

porque claro que vou negar até a morte.

As duas caem na risada. Pelo jeito sou mesmo uma

piada é completamente transparente.

Passo o restante do dia ocupada com meus afazeres.

Aproveito que terminei o trabalho na cozinha e faço uma

limpeza no deck que fica na frente da casa. O lugar é

maravilhoso e estava completamente abandonado.

O quarto do Presidente tem uma varanda e uma

escada que leva até o deck, mas também é possível chegar

aqui vindo por fora.

O chão é todo de madeira e há uma amurada. Daqui é

possível ver parte da cidade lá embaixo e muito das

montanhas ao redor, a vista é incrível.

Em um dos cantos há uma lareira enorme, não de

pedra, afinal não há paredes, mas dessas ecológicas. Ao

redor dela estão dispostas algumas cadeiras de aparência

confortável, mas que provavelmente não tem uso algum.

Posso imaginar que a vista do céu noturno deve ser

maravilhosa aqui. Só de pensar já sinto uma vontade imensa

de pegar um livro e me sentar para ler.


Limpo tudo com empenho, retiro a poeira, confiro se

nenhum bichinho se aventurou embaixo das almofadas das

cadeiras e, depois de terminar, retorno para dentro a fim de

preparar o jantar.

Dessa vez Elis não se recusa a levar a bandeja do

Presidente e aproveito para me servir também do caldo de

feijão que preparei e janto, na companhia dela, de Suzi, do

senhor Helder e de Timoteo e, quando terminamos, lavo a

louça rapidamente e deixo tudo organizado para a manhã


seguinte.
Quando saio para o chalé, percebo que ainda que não

esteja quente, não é uma noite tão fria e volto a pensar no


deck e na ideia de ler um pouco por lá.

Entro em casa, tomo um banho rápido e me visto.

Depois pego um cobertor e o jogo sobre os ombros, também


pego o exemplar de Persuasão sobre minha cama e sigo na

direção do deck.
As luzes dos pequenos postes espalhados pela

propriedade estão acesas e quando chego ao deck, os dois


postes que ficam nas extremidades dele também estão
ligados. Não iluminam muito, mas é o suficiente para que eu
consiga enxergar as páginas.

Eu me sento em uma das cadeiras e noto que a lareira


foi acesa, as chamas fulguram brilhantes, contrastando com

a escuridão da noite. No céu, as estrelas também se


destacam e suspiro, maravilhada. Não sei se existe lugar

mais lindo no mundo.


Coloco os pés sobre a cadeira, junto ao meu corpo e

abro meu livro.

“Sir Walter Elliot, de Kellynch Hall, no condado de


Somerset, era um homem que, para diversão, nunca abria
nenhum livro, a não ser o Baronetage; nele encontrava
ocupação para as horas de ócio e consolo nas horas
amargas; nele se exaltavam suas faculdades de admiração e
respeito, pela contemplação dos poucos remanescentes da
antiga nobreza; nele quaisquer sensações desagradáveis
provocadas pelos negócios domésticos se transformavam
naturalmente em comiseração e desdém, enquanto folheava
a lista quase infinita de nobres criados no último século…”
— Me parece um homenzinho muito chato — reflito,

em voz alta.
No entanto, não esperava obter resposta.

— Já me chamaram de coisa pior.


Assustada, ergo o rosto e me deparo com o Presidente,

que caminha devagar na minha direção. Ironicamente, ele


também tem um livro nas mãos.

— Parece que tivemos a mesma ideia — fala,


mostrando o exemplar.

— Achei que seria um bom lugar para ler, é tão lindo


aqui.

— É mesmo. Sempre gostei de me sentar e observar a


noite daqui, mas andava muito sujo.

Ergo a sobrancelha diante do comentário.

— Por que será?


— Não sei. Minha personalidade cativante andava

espantando as funcionárias.

— Que mulheres estranhas — respondo, rindo e

percebendo seu tom leve. — O senhor vai ficar?


— Acendi a lareira e fui buscar um livro, vou ficar.

— Fique à vontade, não quero atrapalhar — digo,


fazendo menção de me levantar.
— Não precisa ir. Eu vou me sentar aqui e ler em

silêncio, não vou te atrapalhar.

Isso me faz sorrir.

— A questão é o contrário, eu é que não quero


atrapalhar o senhor.

Ele tem os olhos fixos ao longe, nas montanhas, e

caminha até se sentar na cadeira vazia ao meu lado.


Observo sua figura imponente, os ombros largos e que
mesmo assim me parecem carregar um peso imenso, depois

da conversa de hoje, com as meninas na cozinha, comecei a


pensar nele de outra maneira. Não me parece mais um

homem bruto e sem coração, mas alguém ferido demais


para se abrir.

— Vou dizer uma coisa que nunca disse pra nenhum


funcionário meu, exceto para o Helder, mas ele teima em

continuar assim.

— O quê? — questiono, curiosa.


— Acho que em algum momento, ultrapassamos a
linha da formalidade, Anabela. Não estou mais me sentindo

confortável em te ouvir me chamando de senhor e de


Presidente.
Mordo o lábio, contendo um sorriso.

— E do que devo te chamar, então?

— De Matteo, é o meu nome afinal de contas.

— Matteo…

Ele também sorri.

— Tá bom, vai me chamar de Anabela ou vai continuar


com o senhorita Gonzales?
— Eu gosto de Anabela, combina com você.

— Me disse isso na outra noite.

— Eu me lembro. — Ele sorri também.

Foi o que falou antes de me beijar e ainda que não

estejamos mais falando sobre isso, o assunto está aqui,


pairando entre nós.

— Claro… Que livro vai ler?

— Fahrenheit 451 — responde. — Na verdade já li,


mas gosto bastante dele.

— Nunca li, fala sobre o quê?


— É uma ficção distópica, na realidade da história os

bombeiros são responsáveis por queimarem livros, o


governo proibiu as pessoas de lerem, vetando assim o

pensamento crítico e tudo que vem dele.


— Parece interessante.

— É muito. O autor escreveu um pouco depois da

segunda guerra, o mundo ainda estava abalado com tudo


que aconteceu, havia censura, então foi uma narrativa de

impacto. É meio surreal imaginar uma sociedade em que os


livros fossem proibidos, não acha?

Reflito um pouco sobre a pergunta, seria tão fora da


realidade assim?

— Acho que sim, mas ao mesmo tempo fala muito


sobre o mundo atual, se pensar bem. Os livros são de

extrema importância e podem mudar as vidas das pessoas,


ensinar, fazer com que elas aprendam e galguem posições

que outros não querem que alcancem.


— Mas não queimam os livros, não são proibidos.

— Não, mas muitas vezes os tornam inacessíveis,


financeiramente.

— Nunca parei pra pensar por esse lado.

— Porque você é rico — respondo, rindo. — Eu sempre


li muito e precisava usar as bibliotecas, porque o valor

dificultava um pouco a compra. Não agora, que ganho um


salário milionário do melhor patrão do mundo! — brinco. —
Agora vou montar uma biblioteca.

Ele também sorri.

— Gostei de ouvir seu ponto de vista. Vai montar uma


biblioteca e jogar perfume em tudo?

Reviro os olhos.
— Já disse que não é assim.

— Bom, depois que o susto passou, consegui perceber


que os aromas que você colocou ficaram sutis, é uma ideia

interessante.
— É porque mal tinham secado naquele dia, você não

esperou e já foi surtando!

— Você está usando… — fala, seus olhos encontram os


meus e há neles um calor que antes não estava ali.

— Usando o quê?

— O perfume que colocou no meu livro, estou


sentindo o cheiro.

Seus olhos percorrem meu rosto e se concentram em


minha boca, sinto um frio na boca do estômago, é como se
partilhássemos algo muito íntimo, ainda que nem tenhamos
nos aproximado.
— Ah, sim… Eu não quis invadir seu quarto e pegar
um dos seus, então usei o meu — explico, tentando me

manter concentrada na conversa e não no modo como o


olhar dele agora queima meu colo exposto pelo decote da
blusa.

— É delicioso… — O modo como ele diz isso, faz

parecer que se refere a algo mais, mas não sei dizer se estou
interpretando bem ou se estou imaginando coisas.
Puxo o cobertor em volta dos ombros para me cobrir
mais.

— Não pareceu gostar naquele dia.


Matteo agora me fita nos olhos, o momento deixado
de lado.

— Só porque você me assustou, destruindo tudo como


um furacão.
— Viu só, senhor Presidente? Aprendeu uma lição.

— Matteo — ele frisa. — Que lição eu aprendi?

— Isso, Matteo. Aprendeu que não deve julgar antes


de conhecer o todo.

— Com certeza aprendi.


Aquiesço e nós nos olhamos por um instante muito
longo. Pigarreio e volto os olhos para o livro, os olhares estão

se tornando insustentáveis, como se exigissem algo mais.

— E o que me diz do meu livro? — questiono,


seguindo para um assunto mais seguro. — Comecei agora e
esse Sir Eliot já me parece um chato, não acho que seja o

tipo de mocinho que eu gosto.


Ele ri do meu comentário e meneia a cabeça.

— Porque ele não é o protagonista. Sir Eliot é o pai da

heroína, e, sim, é chato pra caralho.


Abro um pouco os olhos, surpresa com o palavreado.

— O Presidente fala palavrão!


Dessa vez ele gargalha alto e o som me faz sorrir

junto.

— Você é uma figura, sabia? — pergunta, meneando a


cabeça.
— Mas então, Sir Eliot chato-pra-caramba é o pai da

mocinha?

— Isso. Uma mocinha que se acha feia, a família a


acha feia na verdade. Ela se chama Anne e amou muito um

rapaz no passado, mas seu pai não aceitou o pedido dele


para se casarem. Alguns anos depois, não me lembro

quantos, ele volta e o livro trata desse reencontro e dos


sentimentos que Anne ainda tem por ele, mas que não
acredita que sejam correspondidos.

— Meu tipo de história! Vou amar.

— Com certeza vai. Até eu que não sou muito de


romances gostei desse.

— Do que você gosta, então? Aliás, estou


incomodando com tantas perguntas?

— Na verdade, estou gostando muito de conversar


com você. Acho que fazia muito tempo que não tinha uma
conversa interessante assim — fala, parecendo sincero.

Está usando calça social e camisa, mas a gravata não

está presente e o paletó foi substituído por um casaco


quente. Não que isso faça muita diferença, ele está lindo
como em todas as vezes.
— Pois bem, Matteo, me conte mais sobre você —

peço, morrendo de curiosidade.

Claro que não imagino que ele vá se abrir e falar sobre


coisas muito pessoais, mas estou sedenta por qualquer

migalha de informação.
Ele suspira e coloca o livro fechado de lado, parece

pensar um pouco antes de começar a falar.

— Como sabe, sou o presidente da empresa, assumi o


cargo depois que meu pai se aposentou, mas como não saio
daqui, coordeno tudo através de Catarina e Alberto, meus

braços, esquerdo e direito.


— E posso perguntar por que não sai daqui?

— Pode. Se vou responder é outra questão.

— Claro… — concordo, acreditando que nossa


conversinha chegou ao fim.

Mas ele me surpreende continuando.


— Cinco anos atrás minha vida era muito diferente,

digamos que passei por uma sucessão de tragédias, perdi


pessoas, aprendi a desconfiar até da minha sombra. Não
confio em ninguém.

Eu me lembro da conversa com as meninas mais cedo,

sobre a traição, e aquiesço, compreendendo mais do que ele


imagina.
— E não sai por isso? Por não querer se envolver com
as pessoas?
— Deve estar pensando no quanto preciso de terapia

— ele diz, abrindo um sorriso triste. — Preciso mesmo, mas


não quero melhorar, estou confortável assim. A verdade é
que, com tudo isso, me afundei em uma depressão profunda
e o mundo lá fora deixou de fazer sentido, as pessoas…

prefiro viver aqui, em paz.

— E pretende continuar assim?


— Talvez. Não sei… Pensava que sim, mas

ultimamente tenho sentido necessidade de fazer coisas


novas, quem sabe um dia eu sinta vontade de sair outra
vez? Sei que não pareço mais tão deprimido quanto estava
um tempo atrás.

— Sobre isso, sua lista, se quiser ajuda com alguma


coisa, ou companhia, posso ser sua amiga, Matteo.
— Mesmo? Acho que seria bom ter alguém pra me
acompanhar. Por falar nisso, é domingo. Você não deveria

estar em casa? Com sua família.

Aquiesço, concordando.
— Deveria. Fiquei pra estudar pro vestibular, depois
achei que seria melhor ir na semana que vem.
— Você mora com quem? Ou morava, antes de vir pra
cá.

Percebo que o momento de saber mais sobre ele se


encerrou, agora o foco mudou para mim.

— Meus pais e minha irmã, Julieta. Ela é alguns anos


mais nova que eu e cuida dos meus pais e da casa, eles não
trabalham mais, meu pai se aposentou e minha mãe ficou
doente e precisou parar de trabalhar, mas não recebe. Então

eu trabalho fora para ajudar nas despesas da casa enquanto


minha irmã cuida deles.

— Parece se dar muito bem com sua família.


— Sim, são tudo pra mim. Me esforço muito hoje pra

poder ajudar minha irmã lá na frente, quero poder ajudá-la a


se formar também, se ela quiser.

— Com certeza vai conseguir. Ela é doidinha como

você?
— Julieta? É pior! Você acha que eu sou louca, mas
isso porque ainda não a conheceu.

— Que Deus me livre, então — ele diz, fazendo uma

careta.
— E você?
— Bom, hoje somos Catarina e eu, ela é mais nova.
Meus pais também são ótimos, mas admito que não sou o
melhor filho do mundo.

— Clarissa e Leônidas Viturino, certo?


— Isso. Qualquer dia vai acabar os conhecendo, de vez
em quando aparecem pra destruir a paz dessa casa.

— Credo! Deixa de ser amargurado, Matteo. Eles vêm

ver o filho, já que você não vai até eles.


— Eu sei, mas vai entender quando chegarem, minha
mãe fala o tempo inteiro, gosta de música e fica me
tratando como um bebê.

Isso me faz rir, já posso imaginar a mãe em volta dele,


falando de milhares de preocupações e o deixando irritado.
— Basicamente é a versão da sua irmã, só que mais
velha.

— Isso! Ou melhor, o contrário — Matteo pontua. —


Catarina é a versão da minha mãe, elas são idênticas.
— Meu Deus! Devem te enlouquecer com tanto

entusiasmo.

— Enlouquecem mesmo.
— E seu pai?
— Ele é mais quieto, mas é um bom homem, coloca
sempre a família em primeiro lugar.

— Gosto deles — decido —, não parecem o tipo de

ricos metidos que vemos por aí.


— Não, esse papel é meu na família.

— Isso mesmo. Pomposo e arrogante — arremato, e

ele semicerra os olhos em minha direção.


— E modelo de cuecas nas horas vagas.

Cubro o rosto com as mãos, lamentando o momento


em que abri minha boca e disse essa frase.

— Não vai esquecer isso nunca?

— Jamais! Fazia séculos que não tinha meu ego


massageado assim.
Matteo se reclina na cadeira e apoia os braços atrás da

nuca, muito confortável.

— Isso porque não sai daqui.


— Pode ser verdade, mas ainda assim não acho que

tenha sido um elogio dos mais comuns.

— Porque não foi um elogio, eu estava explicando a


confusão, só isso.

— Se insiste…
Percebo o quanto está mais leve e descontraído e, ao
mesmo tempo, o quanto isso faz meu coração acelerar, meu
rosto se aquecer e meu sorriso aumentar.

É um jogo muito perigoso, e não há outra opção a não


ser sair magoada de um envolvimento com ele, então
decido que o melhor a fazer é colocar um fim à noite.

— Acho que vou me deitar — falo, me colocando de


pé.

— Já vai?
Ele parece se assustar, acho que fui repentina demais.

— Está tarde e eu me levanto bem cedo pra preparar o


café, meu chefe é muito exigente e pontual — explico,
fazendo uma piada para manter o clima leve.
— Você nem leu.

— Mas a conversa valeu a distração.


— Ah, isso valeu mesmo.

— Boa noite, Matteo.

— Boa noite, Anabela.


Tive uma boa noite de sono, como não acontecia a
semanas. Com isso, acabei perdendo a hora de me levantar,
mas ainda assim me sinto bem. Qual o problema afinal?
Catarina vai resolver as coisas e, se precisar muito de mim,

vai esperar. O mundo vai continuar girando.


Ligo o chuveiro e analiso minha imagem no espelho,
minha barba realmente está muito espessa, encobrindo boa
parte do meu rosto, talvez eu devesse dar um jeito nela

logo.

Tiro a roupa e entro no banho, deixando que a água


quente relaxe meu corpo. Reflito sobre ontem, a conversa
com Anabela e o quanto foi bom passar a noite falando

sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo.

Ela se ofereceu pra ir comigo em busca dessas


tentativas de fazer coisas novas. Acho que é uma boa ideia,
exceto pelo fato de que provavelmente vou acabar a

beijando de novo. Tento não deixar o pensamento ir além,


mas quanto mais evito, mais fantasio sobre ela e sobre fazer
sexo com ela, eu acho que transar deveria estar no topo da
minha lista, uma foda bem-feita, como não tenho há muito

tempo.

Termino o banho e desligo o chuveiro, penteio o


cabelo em frente ao espelho e pego a toalha, ao mesmo

tempo em que a porta se abre.


Em choque, assisto Anabela entrar no banheiro,
cantarolando uma música. Ela estaca ao me ver, seus olhos
descem pelo meu corpo nu e ela então cobre o rosto e solta
um grito.

— Ahhhh! Você está pelado!


Continuo parado, tentando entender se eu a
materializei aqui com a força do pensamento, se estou

dormindo ou que diabos está acontecendo.

— Matteo! — Ela abre uma fresta entre os dedos, fita


meu pau, que já começa a crescer e grita de novo. — Ai!
Cobre isso agora!

O desespero dela me faz recobrar os sentidos, abro a


toalha rapidamente e a coloco em volta da cintura.

— O que você está fazendo aqui? — pergunto, entre


excitado e irritado.
Anabela arranca os fones brancos e grandes dos

ouvidos.

— Vim pegar a roupa suja! O que você está fazendo


aqui?
— No meu banheiro? Tomando banho!

— Mas está tarde, você deveria estar no escritório


tomando seu café — fala, como se eu fosse o culpado.
— Eu dormi demais. Você não deveria bater?

— Deveria, mas pensei que estivesse lá embaixo.


— Não ouviu o chuveiro ligado?

— Estava ouvindo música! — diz, me mostrando o


fone em suas mãos.

— Quebrando uma das regras, então a culpa é sua.

— De jeito nenhum. Não podemos ouvir música alta,


não tem nada que fale sobre ouvir nos fones.

— É, mas por culpa deles, agora você viu meu pau.

— Não fala isso! Meu Deus do céu, eu vou sair e vou


fingir que isso não aconteceu. Vamos esquecer o que eu vi,
tá bom?

— Ah, não vou conseguir tão fácil. Você ainda abriu os


dedos pra dar outra espiada — provoco, me divertindo ao
ver as bochechas dela ficarem vermelhas. — Acho que

gostou!

— Matteo! Eu olhei pra ver se já podia olhar.


— Que desculpa horrível.

— Não é, não.
— Demorou um tempão pra cobrir o rosto, Anabela.

— E eu agora tenho culpa? Fui pega de surpresa,


comecei a apreciar a vista e depois a ficha caiu!

Agora não consigo mais segurar a risada.

— Apreciar a vista, modelo de cueca… Esses seus


elogios só ficam melhores.

— Você não sabe que não pode andar pelado por aí? —
pergunta, ignorando minha provocação. — As virgens

desavisadas correm sérios riscos.

A palavra me atinge em cheio e acho que agora estou


boquiaberto.

— Virgem? Ah, meu pai. Como isso pode ser possível?

— Apoio as mãos na pia, abaixando a cabeça.

E eu aqui me imaginando dentro da garota…

— Por que estamos discutindo a minha virgindade? Eu

vou embora, e o senhor se vista.


— Estamos discutindo porque você achou que deveria

mencionar. Agora como vou esquecer?

Pelo canto do olho, percebo quando ela apoia as mãos


na cintura.

— Esquecendo, vai me dizer que tem algum fetiche


com virgens?

Meneio a cabeça, sem saber como chegamos a esse

ponto da conversa.
— Nunca tive, mas ando tendo alguns com você.

— Socorro! Você foi de carrancudo a safado muito

rápido e não sei qual versão eu prefiro — ela diz, levando a


mão ao peito.

— Sabe sim. Tem certeza de que vai sair?

Anabela ainda direciona um olhar para o meu peito,


seus olhos observam o caminho que as gotas de água

fazem, escorrendo para dentro da toalha e solto um gemido


baixo.

— Tenho! — ela grita.

— Anabela…
— Bom dia, chefe!

E ela se vai.
Passei boa parte do dia no escritório em outra
chamada de vídeo com Catarina. Minha irmã mudava de

posição a cada dez minutos, incomodada com o peso da

barriga, e no final das contas fui eu quem ficou

desconfortável por vê-la sofrer com dores em tantos lugares


diferentes. Parece que essa reta final é mesmo a mais difícil.

Cat me disse que eu estava aéreo e chamou minha

atenção várias vezes, dizendo que já estava ficando

preocupada com a minha falta de interesse, mas a verdade


é que Anabela não saiu da minha cabeça um minuto sequer

e, pensando nela, acabei me distraindo.

Sempre que me lembro de seu rosto corado quando

me viu nu no banheiro, um sorriso teimoso surge em meu

rosto. Ela não sabia se ia embora, se devia falar alguma


coisa, se fechava ou cobria os olhos, se sondava ou fingia

desinteresse e adorei a provocação. Há muito tempo não

flertava com ninguém e pensei ter perdido o jeito, mas, pelo

que parece, isso é como andar de bicicleta, não é algo que

se possa desaprender.
A questão é que esses últimos momentos viraram

minha cabeça do avesso e, mesmo que eu procure não me

aprofundar nas fantasias, elas retornam sem que eu

perceba. Imagino como seria tocar sua pele e explorar seu

corpo com as minhas mãos e o pensamento faz com que

meu pau desperte outra vez. Porra! Isso está ficando muito

difícil de suportar.

Desço a escada que leva para o porão, onde construí a


academia e meu ringue de boxe, socar alguma coisa sempre

me ajuda a aliviar a tensão, espero que dessa vez não seja

diferente.
Abro a porta de ferro e a empurro com força, acendo

as luzes do amplo salão e tiro meus sapatos ao pisar sobre o

carpete emborrachado. Passo pela academia, deixando

minhas roupas pelo caminho. Meus shorts de boxe e as luvas

estão perto do ringue e eu os visto antes de saltar sobre as

cordas, para cima do tablado elevado.

O saco de pancadas fica pendurado no centro, já que


treino sozinho. Respiro fundo antes de iniciar a sequência,

afasto as pernas, flexiono meus joelhos e acerto o primeiro

golpe com o punho direito, retornando rapidamente para

minha guarda, me movo com passos curtos e firmes, depois

lanço o próximo golpe. Mantenho a distância de ataque,

nem muito perto e nem muito longe, desfiro outro soco de

direita e o saco treme, como deve ser.

Mas Anabela surge outra vez na minha mente, se

despindo do uniforme sem graça, revelando um corpo


perfeito, com os seios redondos que já observei tantas

vezes, a cintura fina sob minhas mãos e a boceta pequena,

intocada, roçando meu pau, ereto.

— Puta que pariu, Anabela…


Gotas de suor começam a correr sobre meu peito,

enquanto continuo a golpear, sem pausa, controlando a

força para não precisar de tempo para recuperar o fôlego. O


segredo está na concentração e na base forte.

De onde estou vejo quando Anabela passa pela porta,

trazendo consigo uma jarra com água gelada e um copo,

mas dessa vez ela não é apenas fruto da minha imaginação

fértil, é bem real, ou não estaria mais usando o uniforme

horrendo ou mantendo os cabelos tão presos.

Anabela observa tudo ao redor com curiosidade, pelo

visto ela ainda não havia conhecido esse espaço da casa.

— Trouxe sua água — ela fala alto, elevando sua voz

acima do som dos golpes. Observo quando coloca a bandeja

sobre a mesinha, no canto.

Dou um último soco forte no saco de pancadas que

recua, depois me viro para a encarar. Seus olhos estão

arregalados e os lábios, entreabertos, e quando me

aproximo, ela se afasta um passo. Sua respiração está

entrecortada. Retiro as luvas e escondo um sorriso, ciente de

que me assistir treinando mexeu com ela.


— Normalmente o Helder é quem traz a água — falo,

pulando sobre as cordas e parando em frente a ela.

— O senhor Helder não está se sentindo bem hoje. —

Anabela encara o chão quando fala, tímida.

Por um momento, deixo de analisar o modo como o

peito dela sobe e desce e os olhos escapam dos meus, para

me preocupar com meu velho mordomo.

— O que ele tem? — O homem sempre teve uma

saúde de ferro e me surpreende que esteja indisposto,

apesar da idade.

Mas então Anabela levanta os olhos e eles param


sobre o meu peito, com esse único e maldito olhar, ela faz

com que a minha respiração, que já está descompassada

pelo esporte, fique ainda mais irregular e, agora com o

corpo dela assim, tão perto, fica difícil relaxar. Essa mulher

está me fazendo perder todo o controle, que levei anos para

adquirir.

— Fique tranquilo, já cuidei dele — responde,

parecendo se lembrar do assunto em questão.

Seu olhar, no entanto, continua percorrendo meu


corpo e quando ela passa a língua pelos lábios, em um gesto
involuntário, sinto uma ereção se aproximar.

— Pelo visto você cuida de tudo, não é? — Me

aproximo mais um passo e dessa vez Anabela fica onde está,

meus pés se movem sem que eu planeje, como se alguma

coisa me atraísse para ela. — Me diga, Anabela, existe

alguma coisa que a senhorita não faça maravilhosamente

bem?

Ela sorri, e o brilho dos seus olhos se intensifica,

Anabela tomba um pouco a cabeça e ergue o queixo.

— Talvez as coisas que nunca fiz… — ela provoca.

Cacete, ela está tornando tudo mais interessante com suas

atitudes sempre tão imprevisíveis.

— Aposto que seria perfeita também, mas eu adoraria

provar essa teoria.

Anabela fita o volume sob meus shorts de boxe, o

tecido emborrachado marca cada centímetro do meu desejo

por ela.

— Acho que eu deveria subir… — ela diz, mas não se

move.

Se ela quisesse mesmo se afastar, teria feito isso.


Então envolvo sua cintura e a trago para mim, seu peito
sobe e desce enquanto meus lábios procuram os dela,

devagar, provocando, vejo sua pele se arrepiar e sinto seu

corpo tremer sob meu toque.

Anabela fecha seus olhos e espalma as mãos sobre

meu peito suado, encaro isso como aceitação. Dessa vez o

nosso beijo é afoito, desesperado, sua língua quente e macia

se move no mesmo ritmo da minha, demonstrando o quanto

ela também reprimiu esse desejo.

Beijo seu queixo, sua bochecha e o pescoço, me


demorando ali, o cheio que vem dela é maravilhoso e posso
sentir a mesma fragrância que Anabela deixou nas páginas

do meu livro. A partir de agora eu gosto daquele perfume,


foda-se o livro, talvez minha aversão por ele também mude,

se me fizer pensar nela toda vez que o abrir.

Seguro sua nuca, enquanto saboreio sua pele, e


Anabela pressiona seu corpo contra a minha ereção. Se eu

não estivesse ciente de que seria sua primeira vez, eu me


enterraria nela aqui mesmo, sobre esse tablado.

Minha mão desce até seu joelho — que porra de


vestido longo — e subo suas roupas devagar, sentindo sua
pele arrepiada sob meus dedos.
— Matteo…

O som do meu nome, escapando de sua garganta só

me deixa ainda mais duro.


Santo Deus! Como eu quero essa mulher.

— Preciso ir — ela diz, a voz hesitando. — Temos que

parar.
— Você não quer? — pergunto, entre uma carícia e

outra.

Volto a beijar sua boca e a seguro mais perto,

temendo que se afaste. Anabela retribui o beijo, mas afasta


o corpo lentamente, e sinto que perdi a batalha.

— Quero — ela diz, interrompendo o beijo —, mas nós


dois sabemos que não é uma boa ideia. — Anabela me

afasta, depois alisa a saia do vestido e arruma o coque.

Tudo em mim grita para que eu peça para ela ficar,

meu corpo pede para continuar de onde estávamos, mas ela


está certa em conter essa insanidade. É a razão que segura

minhas mãos onde estão, quando Anabela se afasta, me


olhando nos olhos, como se esperasse por uma objeção que

não vem.
Volto para dentro do ringue e me aproximo do saco de
areia, a observando cruzar a porta. Ouço seus passos

subindo a escada, depois encaro meu pau duro sob os shorts


e lamento pelo que não aconteceu.

— Droga…

Soco com força, e a dor me lembra de que esqueci de


recolocar as luvas.

A neblina dessa manhã está mais densa que o normal,


transformando toda a paisagem do lado de fora em uma

grande nuvem branca. A temperatura também caiu, por isso


precisei me amontoar de blusas e vestir um casaco longo

sobre o uniforme.

Estou passando o café, quando o senhor Helder entra

na cozinha. Me viro para o encarar e noto que seu rosto


ainda dá sinais do resfriado forte que o pegou de jeito

ontem.

— O que o senhor está fazendo aqui? Deveria estar

descansando.
— Estou me sentindo melhor hoje, senhorita — ele

insiste, teimoso, mas sua voz está rouca.

— Nada disso. — Me aproximo dele e toco sua testa e


bochechas com as costas da mão para checar a
temperatura. — Está com febre. Volte para o quarto e tire o

dia de folga, vou levar seu café da manhã e um antitérmico.


O senhor Helder me encara por alguns segundos e

percebo o que está pensando, mas ele é educado demais


para dizer em voz alta.

— Eu sei que não posso te dar folga, mas tenho

certeza de que o Matteo faria o mesmo — falo, respondendo


sua objeção silenciosa.

Helder ergue as sobrancelhas e um sorriso sabichão


desponta de seus lábios, só então percebo o que fiz.

— O Presidente deve querer que você descanse —


digo, tentando corrigir o erro de tê-lo chamado pelo primeiro

nome, mas acho que é tarde para isso.


Helder assente e apoia suas mãos nos meus ombros,

com carinho.

— Por falar em Matteo — ele faz uma pausa depois do


nome, para que eu entenda que o detalhe não passou

despercebido —, ele está te chamando no escritório.


— Agora? — questiono, estranhando o pedido. Ainda
nem servimos o café da manhã e eu não o vejo desde

ontem, no ringue.

— Sim, senhorita.
Provavelmente ele quer falar sobre o que aconteceu

ontem e meu coração se acelera com a lembrança e o receio


sobre o que está por vir.

Sinto meu rosto esquentar só de me lembrar de como


ele estava maravilhoso, vestindo apenas aqueles shorts e as

luvas, todo suado…


Depois do beijo na academia, inventei uma dor de

cabeça e deixei Elis e Suzi cuidando dos últimos


preparativos para o jantar. Precisava ir embora e pensar

sobre o que estou fazendo com a minha vida.

Está claro para mim que ele me deseja, mas não sou

ingênua o suficiente para acreditar que está se


apaixonando. Matteo ainda vivencia o luto pela morte da
esposa e talvez nunca se cure disso. Não quero competir

com a memória dela, nem entregar meu coração nas mãos


de alguém que já não ama nem a própria vida, sei que corro
o risco de me machucar se me envolver demais.

— Tudo bem, então, mas faça o que estou pedindo,

Helder, por favor.


Passo por ele e sigo pelo corredor escuro, já que nós

ainda nem abrimos as cortinas das janelas. Bato na porta e


espero um segundo apenas, antes que ele me peça para

entrar.

Matteo está sentado em sua poltrona do outro lado da

mesa, vestindo um casaco pesado sobre o terno e luvas. Ele


fica ainda mais elegante assim.

— Bom dia, Anabela. — Seu tom é cordial, o que me


faz relaxar imediatamente.

— Bom dia — respondo, me aproximando da mesa.


— Sente-se, por favor — ele pede, apontando para a

cadeira livre. — Está fazendo muito frio hoje, não acha?

— Hum, sim. Tive que colocar várias blusas para ficar


aquecida.
— Imagino que você não tenha muitas roupas para o
inverno, não é? Em São Paulo não costuma fazer tanto frio

como aqui.

— São o suficiente por enquanto, mas se for


necessário vou comprar mais algumas coisas.
Ele faz que sim com a cabeça e um silêncio

constrangedor paira no ar, entre nós.

— Não sei fazer isso — ele diz, como franzo o cenho,


aguardando, ele continua —, essa coisa de ficar falando de

coisas casuais até inserir o assunto, então vou direto ao


ponto. Te chamei porque pensei muito sobre o que está

acontecendo entre nós.


— Não precisa se preocupar com isso, eu sei qual é o

meu lugar — respondo, porque prefiro dizer eu mesma,


antes que ele fale algo assim e eu acabe me ofendendo.

— Sei disso, Anabela, e esse seu lugar aqui, não tem


absolutamente nada a ver com o que está acontecendo. —
Ele me olha nos olhos agora. — Deixando isso de lado, o fato

de ser minha funcionária e eu, seu chefe, a verdade é que


eu não paro de pensar nisso.
Eu não sei o que dizer, não acho que consiga formar
uma frase clara e objetiva depois disso, mas, por sorte, acho

que ele não espera que eu diga alguma coisa agora.

— A questão é que não posso e não vou me envolver


romanticamente, entende? Não confio nas pessoas, não me
apaixono e não quero mudar isso. Preciso que você entenda

e que não espere uma transformação, porque não quero ser


responsável por magoar ninguém.
Parece que ele levou a sério a ideia da sinceridade e
não sei se gosto ou não disso. Matteo aproxima o rosto,

apoiando as mãos sobre a mesa.

— Anabela, não quero que pense que estou abusando


do poder ou que quero me impor a você. Eu nunca faria isso.
Só que está ficando cada vez mais difícil resistir e eu sei que

você também sente o mesmo.


Desvio meus olhos dos dele, não sei bem como reagir
a essa conversa.

— Aonde você quer chegar? — pergunto. — Esse tipo

de conversa não é o que geralmente acontece depois de um


beijo…
Ele abre os braços, parecendo frustrado.
— Talvez eu tenha perdido o jeito — diz, mas faz isso
com um sorriso maravilhoso nos lábios, contrariando a fala.

— Você tem que impor regras sobre tudo? As coisas


não podem simplesmente acontecer?
Matteo encara suas mãos sobre a mesa e meneia a
cabeça.

— Não quero que você se magoe, então preferi ser


direto, ainda que isso não seja o mais comum nesses casos.
Se você quiser, tendo como benefício apenas o prazer, eu

também quero. Nós nos damos bem, nossas conversas são a


melhor coisa do meu dia, Anabela e o seu beijo… Porra, não
consigo parar de pensar nisso. Só precisava deixar claro até
onde eu vou, para que, se você decidir entrar nessa comigo,
esteja ciente dos meus limites e do que isso significa.

Eu me levanto da cadeira, essa conversa, no mínimo


estranha, não vai nos levar a lugar algum. Preciso pensar
com calma no que ele está propondo.

— Me desculpe, Matteo, mas não acho que esteja


pronta para falar sobre isso ou tomar uma decisão a esse
respeito.
Ele assente, mas penso ver decepção em seu rosto.
— Então sugiro que você pare de ser assim tão linda.

Não quero demitir alguém por esse motivo — Matteo


responde sorrindo.

— Obrigada. Eu acho — digo, retribuindo seu sorriso


gentil — Eu… Preciso terminar o café, meu patrão é muito

exigente. — Sigo até a porta.


— Ou pode deixar que ele morra de fome e ficar aqui
comigo — brinca, sugestivo.

— Nunca faria uma crueldade como essa, levo meu

trabalho a sério. — Abro a porta devagar, porque não quero


que Suzi e Elis me vejam saindo daqui tão cedo. — Com
licença, senhor.
— Até logo, Anabela.

Eu me jogo no sofá-cama e levo as mãos ao rosto,


frustrada com a situação e comigo mesma. Talvez parte de
mim esteja irritada pela proposta, por ouvir claramente que
isso é tudo que ele tem a me oferecer, mas, por outro lado, o

que mais eu iria esperar de um homem que sofreu tanto?


Além disso, estou aqui há pouco tempo, não é como

se estivesse perdidamente apaixonada, apenas me sinto


muito atraída por ele, curiosa para saber mais, ansiosa para
estar com ele e com medo de acabar me envolvendo
demais.

Pego meu celular e disco o número de Julieta, preciso


conversar com alguém e ela é minha melhor amiga nesse
mundo, a única com quem posso me abrir de verdade.
— E aí, irmã? Como vai o trabalho? — questiona,
atendendo quase que imediatamente.

— Vai bem, liguei por outro motivo. Pode conversar?


— Claro, o que foi?
— Mamãe está perto? Ela não pode ouvir…
Ouço um resmungo do outro lado e depois um barulho
de porta, não demora muito e a voz de Julieta retorna.

— Pronto, estou sozinha agora. O que houve? Já saiu


do trabalho?
— Não, corri para o chalé pra falar com você, mas
tenho que voltar para preparar o jantar. É que aconteceu
muita coisa, você não faz a menor ideia.

— Ai, Anabela! Está me assustando, desembucha logo.


Eu me deito de bruços e me preparo para despejar os

acontecimentos dos últimos dias em cima dela. A


pobrezinha não está preparada para o caos em que minha
vida se transformou.

— O que exatamente eu te falei do senhor Viturino?


— Que se enganou e achou que fosse um velho, mas
não era e que ele é o cão chupando manga.
— É, não mencionei que é mais bonito que qualquer

homem que eu já vi na vida, né?


— O quê? — Ela ri, meio engasgada. — Não, não disse
isso, sua safada!
— Pois ele é, lindo. Alto, cabelos pretos e olhos azuis,

forte e tem um olhar que me desmonta inteira.


— Anabela! Isso era o mais importante, sua maluca!
Tinha que ter contado na mesma hora que o viu.
— Pois é, eu o vi sem camisa na primeira vez, tive um
problemão porque achei que fosse o jardineiro, discutimos
várias vezes, brigamos, falei que ia embora…
— Eu juro que estou tentando acompanhar. Como você
não me contou nada disso?
— É que ele pediu desculpas, eu resolvi ficar. Foi tudo
muito tumultuado, as coisas foram se atropelando e eu, sei
lá, achei que não era nada demais, só um homem bonito e
muito grosso.

— E agora tá caidinha por ele! Mas aqui, e a esposa?


Olha, eu sei que sou meio inconsequente, mas isso aí não dá
pra apoiar, Anabela. O homem é casado.
— Deixa de falar besteira. Acha que eu ia me meter

em uma confusão dessas? Ele é viúvo.

— Ahhhhh! Mas e aí? Rolou alguma coisa?


— E aí que ele me beijou…

— O QUÊ??? Seu chefe lindo e gostoso, rico e mal-


humorado te beijou?
— Exatamente.

Ouço um barulho alto, acho que ela derrubou alguma

coisa com o susto. Julieta pragueja e outro barulho se segue.


— E aí? ANDA! Continua falando. Aiiiii…
— Que foi?

— Deixei a panela cair no meu dedinho, de tanta


empolgação. Pode continuar. Como foi? Ele beija bem?
— Aii, ele é perfeito, Julieta. O beijo dele… Nossa, nem
sei como descrever.

— E o que ele disse depois?


— Então, no dia seguinte ele não falou nada e eu
fiquei brava porque esperava que pelo menos se
desculpasse, ou sei lá. Mas aí, no outro dia ele disse que não
sabia o que dizer, que se sentia atraído por mim e que não

era do feitio dele dar em cima de funcionárias.

— E você acredita nele?


— Sim, ele nem sabe os nomes das funcionárias da
casa, não tem nenhum relato do tipo. Só que as coisas se

complicaram mais, porque tivemos uma noite incrível,


conversamos sobre livros e ele foi tão maravilhoso.

— E se beijaram de novo?
— Calma! Tô seguindo a ordem dos acontecimentos.

Depois disso, eu entrei no banheiro pra pegar a roupa suja e


ele estava saindo do banho. Pelado!

— O QUÊ? MEU JESUS CRISTINHO!


— Pois é, tomei o maior susto.

— E como era?
— Julieta!
A imbecil começa a rir do outro lado, se divertindo as
minhas custas.

— Tá, o que você fez?


— Eu cobri o rosto, claro.

— Mas não deu uma olhadinha?


— Bom, não dava pra não ver… Eu saí correndo,

acabei o encontrando de novo mais tarde e acabamos nos


beijando outra vez. Ele luta boxe, estava no ringue e veio pro
meu lado, todo suado e gostoso…

— Ai, meu Deus do céu…


— Eu não resisti! Quem iria resistir? Só uma santa! Só
que aí vem a situação tensa, foi por isso que liguei.

— O que foi?
— Ele me chamou pra conversar hoje cedo, disse que

se sente muito atraído, que quer… você sabe.

— Quer transar com você?


— Isso, ele não usou bem essa palavra, mas é isso. Ele

disse que é só o que pode oferecer, que sempre vai me


respeitar e me tratar bem, que essa situação jamais seria
um inconveniente a respeito do trabalho, mas que não vai
se envolver emocionalmente, que não está aberto a
relacionamentos.

— Tá, mas você queria isso? Namorar com ele, sei lá.
— Bom, não, mas eu não sou do tipo que faz sexo
casual, Ju. Não sei nem como lidar com algo assim.

— O que você disse?


— Que não podia responder aquilo e saí de lá, mas o
problema é que eu quero muito ficar com ele,
experimentar… Não paro de pensar nisso, trabalhei o dia
todo com essa conversa martelando na minha cabeça.

— E vai morrer virgem se ficar com essa resistência


toda! Olha, nós duas já somos adultas, eu preciso ficar aqui
com o papai e a mamãe, mas você conseguiu um emprego
bom e ainda pode perder sua virgindade com um homão
desses. Eu não ia perder tempo!
— Você é jovem ainda — respondo, revirando os olhos.
Julieta está obcecada em perder a virgindade, eu até a
entendo, nos tornamos as duas Gonzales virginais, Deus me

livre.

— Mas não quero morrer virgem. Se eu fosse você


dava um jeito de ficar com o viúvo bonitão, não precisa se
envolver também, você deixa que ele te ensine umas
coisinhas, aproveita o corpão que disse que ele tem e
depois, se perceber que está se aproximando demais, pula
fora e fala pra ele que chega. Pelo menos mata a vontade.
— Mas eu trabalho aqui, sou funcionária dele.
— Ele não iria te demitir por causa disso, só se fosse
muito babaca.
— Não, eu sei que não faria isso. Acha que devo
arriscar? Estou com medo.
— Medo de quê? Eu acho que devia sim, ele sabe que
você é virgem?
— Sabe…
— Pareceu um problema?
— Não, ele não se importou.
— Então ótimo! Manda ver e depois me conta tudo. Me
deixa conhecer a experiência pela riqueza de detalhes,
Anabela.
— Hum, sei… Não acho que vou me sentir confortável
narrando tudo, mas prometo te contar se acontecer.
— Tá, e o tamanho, se doeu, se foi bom, se você go…
— Tchau, Julieta!
Encerro a chamada rindo do desespero dela, minha
irmã ainda vai se meter em muita enrascada nesse

desespero. Ela é bem mais nova que eu e ainda vai viver


muitas experiências nessa vida, mas ficar ansiosa só
complica as coisas.

Eu sei, olha quem fala! Mas no meu caso, já estou


beirando os trinta anos, está mais que na hora de conhecer
o sexo e por que não com Matteo? Um homem lindo e por
quem me sinto tão atraída?
É só resguardar o coração… e eu posso fazer isso com

certeza.
Observo minha imagem no espelho do pequeno
banheiro, no chalé. Não sou ousada o bastante para ser

clara, não vou chegar nele e dizer que mudei de ideia, que

agora quero que me mostre e ensine tudo, muito menos me

deitar na cama dele, esperando.

Então preciso fazer com que ele entenda de outra


maneira, talvez ele possa voltar a tocar no assunto, e assim

facilitar as coisas para mim.

Mas como é que vou seduzir o homem com esse


uniforme horroroso? Usando três blusas de frio em cima
dele, uma meia grossa de lã e luvas? Assim fica difícil, mas o

frio não dá trégua.

Claro, por menos prático que seja, sempre posso soltar

os cabelos, acho que já seria um avanço. Tiro os grampos

que prendem o coque rígido e vejo as mechas castanhas


caírem em ondas sedosas sobre meus ombros.

Pego também um gloss do meu nécessaire e passo

nos lábios, os deixando mais bonitos. Quanto ao amontoado

de roupas não há muito o que ser feito, então eu terei que

ser o suficiente.

Pois bem, Anabela. A maior sedutora que essas

montanhas já viram, fala sério…

Deixo o chalé e sigo apressada até a casa, fugindo do

vento cortante. Já é quase hora do jantar, então entro na

cozinha e já começo a mexer com os preparativos.

Elis e Suzi me auxiliam, cortando legumes e fatiando a

carne. Eu cuido do arroz, preparo um feijão com bacon e um

pouco de linguiça e depois desenformo o pudim que fiz para


a sobremesa.

— Quer que eu leve a bandeja para o Presidente? —

Suzi oferece.
— Não, se puder dar um jeito na louça, eu mesma levo

o jantar dele.

Se elas notam algo de estranho nessa atitude, não

demonstram. Estou um pouco nervosa com esse encontro,

mas decidida. Não vou voltar atrás.

Deus do céu, vou mesmo morrer virgem se não der um

jeito nisso.

Quando bato a porta e a voz dele responde de dentro,

sinto meu coração disparar no peito. Entro no escritório e o

encontro sentado à mesa, como de costume, da mesma

forma que estava hoje de manhã, ainda que já tenha

trocado de roupa.

— Boa noite — cumprimento, tentando soar natural.

Ele ergue o rosto, e percebo seus olhos percorrerem

meu corpo por completo.

— Soltou os cabelos… — constata, surpreso.

— Hum, sim, eu soltei.

Caminho até chegar à sua frente e então coloco a


bandeja sobre o tampo de madeira. Os olhos dele não se

desviam para a comida, mas continuam sobre mim.

— E está usando batom.


Droga. Do jeito que ele fala me sinto uma tonta.

— Bom, eu…

— Está ainda mais linda.

— Obrigada.

Matteo então fita a comida em seu prato e pega os

talheres.

— Parece ótimo.

— Espero que goste — respondo. — Matteo…

— Sim?

— Posso falar com você um momento? Não quero que

deixe de comer, mas queria tocar em um assunto — digo,

aproveitando para falar sobre uma questão que tem me

incomodado e, claro, ficar mais um tempo perto dele.

— Claro.

Observo enquanto corta um pedaço da carne e leva

até a boca, fechando os olhos. Ele faz tudo parecer tão

apetitoso que eu poderia ser facilmente uma chefe de um

restaurante chique, com várias estrelas Michelin.

— Eu e as outras temos trabalhado muito, o pobre

Helder não tem mais a força de antigamente. Acha que seria

possível contratar mais alguns funcionários? — emendo uma


fala na outra, de modo que ele não possa negar antes de

ouvir tudo. — Sei que não gosta de pessoas andando pela

propriedade, e preza por sua privacidade, mas garanto que

manterei todos fora do seu caminho, vou coordenar os

horários de modo que não te incomodem e eu mesma vou

cuidar do seu quarto.

Isso faz com que ele sorria.

— Eu adoraria que você cuidasse do meu quarto,

Anabela. Principalmente da minha cama.

— Mesmo? — Também sorrio. — Nem imagino o

motivo.
— Você precisa de ajuda para que, exatamente? — ele

questiona, deixando o flerte descarado de lado.

— Seria bom ter alguém que cuidasse das suas

roupas, e das cortinas, tapetes, toalhas de mesa, essas

coisas. Lavar e passar.

— Certo. O que mais?

— Elis e Suzi me ajudam na cozinha, e como

precisamos preparar quatro refeições diárias, isso e a louça

nos tomam muito tempo.


— Você quer parar de cozinhar? — questiona,

parecendo assustado com a possibilidade.

— Não, quero alguém que ajude na limpeza da casa,

somos poucas pra muito trabalho. Gostaria de reabrir os

cômodos fechados, limpar esses quartos e os preparar para

quando sua família vier, dar conta de limpar o ringue e a

área da piscina…

— Certo. — Ele assente e aguardo um minuto

enquanto come um pouco mais. — Três funcionários, duas


mulheres e um homem para ajudar no serviço mais pesado.

É o máximo que posso concordar, Anabela. E isso desde que

prometa manter essas pessoas fora do meu caminho.

— Jura? — Me levanto, animada. — Não posso

acreditar que concordou!

— Eu também não, garanto. Devo estar mesmo de

quatro por você, porque nada justifica isso.

O comentário exasperado me faz sorrir e dou a volta

na mesa até estar ao lado dele. Matteo ergue os olhos azuis

para me encarar e me inclino, beijando sua face

rapidamente.

— Obrigada.
— Agora vai me comprar com beijos… Sou patético,

não sou?

— Não. É maravilhoso.

— Mas não o suficiente para te tentar.

— Quem disse isso? Eu só fiquei com medo, com

receio pelo meu emprego… — E pelo meu coração, mas essa

parte eu não digo em voz alta.


— Acha que eu a demitiria?

Ignoro a pergunta e o encaro com os olhos estreitos.

— Se eu concordar com essa proposta indecente…


Isso ficaria entre nós e os outros funcionários não saberiam,
certo?

— Mas é lógico, imagine o que falariam de mim se

soubessem. Você… está considerando?


— Sei que disse que não vai se envolver, eu estou

totalmente de acordo com isso, sem amor, mas…

— Mas?

— Você vai ser gentil? — pergunto, morrendo de


vergonha.

— Acha que eu seria bruto com você na sua primeira


vez?
— Você é bem bruto algumas vezes.

Ele meneia a cabeça e sorri.

— Eu seria gentil e paciente na sua primeira vez,


Anabela e não seria só sexo. Nós passaríamos um tempo

juntos, a conversa entre nós flui facilmente, podemos jantar


na companhia um do outro e fazer aqueles passeios pela

propriedade. Tudo, menos…

— Amor.
— Isso. Não é por você, entenda bem, se eu pudesse
me apaixonar, com certeza seria por alguém como você,

mas eu não tenho um coração para dar a ninguém, ele não


existe.

— Tudo bem, não estou pedindo que me dê um órgão

vital — brinco, aliviando o clima e tentando ignorar seu


comentário triste.

— Isso é um sim?

Dou as costas a ele e sigo rumo à porta da biblioteca,

andando do modo mais provocativo que três blusas e um


vestido horroroso permitem.

— Isso é um talvez, mas se quiser deixar o quarto


destrancado… pode ser que eu volte quando todos forem
dormir.

Depois dessa decisão as horas demoraram a passar.


Quando nos reunimos à mesa da cozinha para jantar,

estou ansiosa, mas ninguém mais parece com pressa.


Timóteo repete o jantar duas vezes, enquanto Elis e Suzi se

demoram com fofocas sobre as pessoas que conhecem em


comum.

Acabo abrindo a boca para contar que o Presidente


decidiu contratar mais funcionárias e isso faz com que a

conversa gire em torno do acontecimento.


— Eu disse que você consegue o que quer com ele,

não disse? Ele nunca sequer cogitou contratar mais gente —


Elis fala, surpresa.

— Deixa de bobagem, eu só expliquei direitinho os


serviços para os quais precisamos de mais pessoal.

— O Helder já fez isso muitas vezes, não fez? — Suzi


encara o velho mordomo. — E ele sempre disse o quê?

— Não — Helder fala, abrindo um sorriso. — Eu


também não esperava por essa.

— Até você, Helder?


— Ora, senhorita Gonzales, tem que admitir que

conseguiu convencer o Presidente a fazer o que ele se


negava há anos.

— Vocês são muito bobos! Querem saber? Convenci


mesmo e, se depender de mim, eu ainda arrasto ele até lá

embaixo, na cidade, qualquer dia desses.


Isso faz com que eles comecem a rir, como se eu

tivesse feito uma piada, nenhum deles coloca fé em mim.


Depois disso, no entanto, acabam encerrando o jantar, e as

meninas me ajudam a organizar tudo, antes de ir.

Corro no chalé para tomar um banho e tento me

preparar o melhor que posso. Não quero pensar muito na


minha decisão para não voltar atrás e desistir.

Escolho um conjunto de lingerie apresentável, não é


nada muito sensual, mas ao menos são novinhos e

combinam e, bom, são pretos, acho que até que são


bonitinhos e coloco uma camisola por cima, além de um

casaco.

Cerca de duas horas depois de ter saído, volto para a

mansão, tudo está silencioso e, pelo horário, deduzo que


Helder já tenha ido se deitar. Eu morreria de vergonha caso

ele me visse entrando ou saindo do quarto do Presidente.

A porta está entreaberta e eu a empurro devagar.


Matteo está de pé, no meio do quarto, e seu rosto se

volta na minha direção quando me ouve. Eu o encaro,


decidida a ir além, e caminho até estar diante dele, que me
fita parado, com a camisa aberta e os braços caídos ao lado

do corpo.

Apoio minhas mãos em seus ombros, estou tremendo,


mas não desisto. Lentamente, afasto a camisa para baixo, o

despindo diante de meus olhos, também retiro meu casaco,


deixando que caia no chão junto à roupa dele. Suspiro ao

ver seu torso musculoso e Matteo analisa cada movimento


meu. Minha mão traça o caminho, desde seus ombros até o

umbigo, querendo descer mais, mas não ousando tanto.


O olhar dele parece carregado de surpresa, mas cheio
de desejo também e quando detenho a mão sobre o cós da

sua calça, Matteo toca meu queixo suavemente e me beija.

Dessa vez ele não é tão gentil, seus lábios me tomam


com desejo, com pressa, abro a boca para receber sua

língua, que já me provoca, e ergo os braços para circundar


sua nuca. As mãos dele estão nas minhas costas e ele as
desce devagar, até as espalmar contra minha bunda, me

prendendo a ele, colando nossos corpos de maneira que eu


sinta sua ereção contra minha barriga. Um gemido me
escapa e ele sorri contra meus lábios.

— Se decidiu, então?

— Sim... — sussurro, assentindo.

O Presidente não precisa de mais incentivo, ele me

puxa para o colo, me levantando do chão, e passo as pernas


ao redor de seu quadril, agora sentindo nossos sexos se

tocarem em um atrito delicioso, causado pelas roupas que


ainda nos separam.

Matteo caminha comigo até a cama e me coloca nela,


minha cabeça apoiada contra os travesseiros e então se

deita sobre mim, me mantendo presa embaixo do seu corpo


forte.

Seus beijos ficam mais desesperados e uma de suas


mãos encontra a pele da minha perna, exposta pela

camisola que estou usando, seu toque deixa um rastro de


calor, ele me acaricia, me toma para si a cada centímetro.

— Matteo… Você sabe que eu…


— Sei. — Ele apoia a testa contra a minha e respira
fundo. — E eu deveria ser um homem decente e te dizer pra

ir embora, pra sair desse quarto, mas pelo visto sou um


canalha, porque não consigo fazer isso. Não quando tudo

que eu quero é me enterrar em você.

— Eu quero isso, só preciso que tenha calma.

— Vou bem devagar, eu prometo — ele diz, e deposita


um beijo no meu queixo. — Tem certeza? Quero muito que

fique, mas sabe que não sou homem pra você, Anabela.

— Isso quem decide sou eu, já não conversamos?


— Sim. Você entende que não posso te oferecer mais

nada?

Aquiesço, minhas mãos tocam seu rosto e eu o

acaricio sob a barba espessa.

— Só estou pedindo que tenha paciência com uma


virgem — respondo, sorrindo.

Ele sorri também.


— Estamos quase no mesmo barco, tem tanto tempo

que não faço isso que quase voltei à estaca zero. Vou ser
paciente, só não prometo durar muito na primeira vez, eu
estou louco por você. — Ele agora beija meu ombro.
Matteo volta os lábios para minha boca e suas mãos
erguem minha camisola, roçando em minha pele e subindo

o tecido, até retirá-la pela cabeça. Sinto um pulsar forte


entre minhas pernas e os dedos dele tocam meus seios
vagarosamente, sobre o sutiã.

Levando as mãos até minhas costas, ele desabotoa a

peça, enquanto seus olhos esquadrinham os meus. Assisto


enquanto Matteo joga a lingerie sobre a cama e então desce
o rosto sobre meu colo, tomando um de meus mamilos na
boca.

A sensação em meu sexo cresce, é como algo que vem


de dentro e que aumenta a cada instante, mesmo que ele
ainda nem tenha me tocado ali. Minhas costas se arqueiam
e um gemido deixa meus lábios, enquanto sinto os dele
brincarem com meu corpo. Deixo que minhas mãos

passeiem pelo corpo anguloso e forte, por seus ombros,


braços e costas, tateio seu peito e seu rosto.

Matteo volta a me beijar e seus dedos deslizam pelo

meu corpo, indo de encontro ao pulsar em meu sexo, que


clama por seu toque. Ele é como tempestade, que me
inunda por dentro, até que eu transborde, e por mais
incompatíveis que nós sejamos, nesse momento, temos um
encaixe perfeito.

Seu toque encontra minha excitação e ele desliza um


dedo, vagarosamente por baixo da minha calcinha. Quando
me penetra, sinto um incômodo leve, mas com o polegar ele
circunda meu clítoris com toques lentos, que me excitam e

fazem com que eu esqueça o receio.


— Você é tão gostosa, minha Bela — ele sussurra em
meu ouvido.

— Matteo…
— Calma… vou te deixar pronta pra mim.

Ele se afasta um pouco e demoro a compreender sua


intenção, eu o vejo se posicionar entre minhas pernas, as

abrindo diante de si.


Meu rosto queima de constrangimento quando ele
retira minha calcinha e me deixa assim, aberta e exposta,
mas o fogo nos olhos dele me faz ficar ainda mais molhada.

Matteo desce o rosto sobre meu sexo, sem desgrudar os


olhos dos meus e vejo quando a ponta de sua língua
encontra minha entrada úmida. Fecho os olhos.
Primeiro ele parece brincar comigo, me provando

enquanto me contorço embaixo dele, como se eu fosse sua


presa e não pudesse escapar do seu jogo. Ele mordisca,
lambe e distribui beijos que mal tocam minha pele, me
atiçando em uma lenta tortura.

— Matteo... — imploro.
— O que quer de mim, Anabela? — Sua língua me
arranca mais um gemido.

— Pare de brincar comigo…

Ele sorri, e sinto sua risada reverberar por meu corpo


todo, e então me chupa de uma só vez, fazendo com que eu
grite de prazer.

Matteo não parece mais disposto a se divertir, ele me

suga com força e sua boca traz sensações indescritíveis.


Estou encharcada, nunca tive um homem nessa posição
antes, mas ainda assim sei que ele está fazendo algo de
muito certo, porque sei bem o que é um orgasmo, já tive

alguns sozinha e sinto que o meu se aproxima.


Ele continua me acariciando com a língua, os lábios e
os dentes, que mordem minha carne em alguns momentos
e agarro seus cabelos com força, me deliciando. Meus
quadris se movem contra o rosto dele, involuntariamente e

Matteo desliza um dedo para dentro de mim outra vez, com


movimentos de entra e sai, em uma dança erótica e que me
permite chegar mais perto do êxtase.

— Você está pronta, tão molhada…

Afirmo com um gesto, tentando não pensar no que


virá. Matteo abre a gaveta ao lado da cama e pega um
preservativo, me surpreendo por ver que estava preparado,
mas não tenho muito tempo para refletir sobre isso, porque

assisto maravilhada enquanto ele retira a calça e a cueca e


desliza a camisinha pela extensão de seu pau. Também não
consigo o admirar como se deve, porque logo ele então se
acomoda entre minhas pernas outra vez, agora roçando seu

quadril contra o meu. Sinto o toque em minha entrada e


apoio minhas mãos em seus ombros, com firmeza,
preparada para a dor que virá.

Mas ela não vem.

Ele beija meus lábios outra vez e sinto como se esse


gosto, o sabor dele, fosse algo já familiar, Matteo força um
pouco a entrada para dentro de mim, devagar, seus dedos
me tocam com habilidade, me excitando e distraindo.
Lentamente ele desliza mais para dentro, seus olhos

fixos nos meus, atento às minhas reações, demonstrando


cuidado.

— Tem certeza, Bela? Se eu continuar agora, não vai

ter mais volta.


Eu me derreto toda quando ele me chama assim.

— Pode parar com a tortura e entrar rápido? — peço,


em tom de súplica.

— Vai ser pior… — responde, ele força um pouco mais


e sinto a dor aguda me rasgar, dilacerando.

Matteo se impulsiona mais uma vez e me perco nas


sensações, minhas unhas se cravam em suas costas e minha

boca se abre com a surpresa.


— Dói muito?

Meneio a cabeça, porque doeu, ardeu, mas sinto o

incômodo agora diminuir a cada instante. Ele não se move,


aguardando, esperando que eu me acostume a tê-lo assim,
dentro de mim.
Matteo reclina a cabeça contra meu ombro e fica

imóvel. Nos mantemos assim por um ou dois minutos e


então ele se ergue, apoiando-se nos próprios braços e
inclina o rosto sobre meu corpo, beijando meus seios
vagarosamente. Fecho os olhos quando sua boca abarca
meu mamilo, erguido diante dele.

Matteo me beija e suga devagar, instigando,

excitando. Sua boca me provoca e outra vez me vejo pronta


para continuar. Seus dedos tocam meu clitóris, provocando
e me tocando, me deixando preparada.
— Continue — peço.

— Não quero que sinta dor, podemos esperar mais um


pouco.
Toco seu rosto com carinho e afasto uma mecha dos
seus cabelos que cai sobre seus olhos.

— Quando você me beija e me toca assim, não


consigo pensar na dor.
Matteo parece convencido pelas minhas palavras,

porque sem nunca deixar de me tocar e beijar, ele volta a se


mover. A princípio existe um incômodo, mas é mínimo,
quando fito seus olhos cheios de desejo, quando observo seu
corpo, banhado de suor se movendo em cima de mim.

Volto a me excitar e a dor fica esquecida, ele não se


move com rapidez, mas seu ritmo suave é constante. Aos
poucos a dor dá lugar ao prazer e seus beijos espalhados
pelo meu pescoço e na minha boca se encarregam de me
levar ao ponto em que estava antes.

O desejo se acumula dentro de mim, crescendo, e sou


tomada pela surpresa quando os tremores e espasmos
arrebatam meu corpo. Me entrego totalmente em suas
mãos, e Matteo se impulsiona para dentro de mim mais três

vezes.
Enquanto chego ao topo do mundo e despenco
sussurrando seu nome, Matteo afunda o rosto em meus
cabelos e se derrama dentro de mim. E aqui, no calor dos
braços dele, eu percebo que jamais conseguiria separar as

coisas.

Seus olhos azuis me fitam por um momento longo


demais e ainda que nenhum de nós diga, sei que esse

sentimento é compartilhado. O que vivemos aqui, pode ser


tudo, menos passageiro.
Eu não esperava que as coisas acontecessem assim,
mas agora que eu a tive, não pretendo acabar com isso tão

cedo. Conheço bem as minhas limitações e sei até onde

consigo ir, mas me afastar agora, quando acabo de tê-la,

não é uma opção.

Depois que terminamos, ficamos um tempo na cama,


apenas encarando um ao outro, e senti algo estranho,

diferente, mas não quis pensar muito a respeito por medo

de estragar o momento. Eu a acompanhei de volta até o


chalé, já que Anabela se recusou a passar a noite, com

receio de sermos vistos.

É a primeira vez que a vejo desde ontem e quando ela

entra na sala, trazendo meu café da manhã, busco seus

olhos, preocupado. As outras funcionárias a seguem de


perto e me lembro da promessa que fiz de aumentar o

pessoal. Faço uma nota mental para falar a respeito com

Catarina, logo mais.

— Bom dia, Anabela — cumprimento, e ela ergue o

rosto para me fitar.

Os olhos estão arregalados e, com prazer, assisto as

suas bochechas se tingirem de vermelho.

— Bom dia, senhor Presidente.

Ah, claro. Talvez esteja sendo informal demais.

— Bom dia, senhoras — cumprimento, em uma

tentativa de passar normalidade, mas não consigo me

lembrar a porra dos nomes delas.

Anabela coloca o bule de café à minha frente e as


outras duas me servem com bolo, pão e manteiga, além de

uma geleia avermelhada, de morango, acho.


— Bom apetite — uma das outras fala e, então, as três

deixam a sala, uma após a outra.

Droga. Preciso ser mais atento e evitar ficar babando

pela governanta na frente dos outros. Seria mais fácil se ela

não fosse tão bonita ou se não cheirasse tão bem.

Faço minha refeição em silêncio e, logo que termino,

me dirijo ao escritório. Me sento à mesa e coloco os fones,


pronto para a primeira reunião com Catarina. A tela se abre

e vejo minha irmã na cama, o computador à sua frente.

— Bom dia, Matteo.

— Está se sentindo bem?

— Não consigo mais fazer nada! O Alberto foi para a

empresa e vai cuidar das coisas por lá até que eu posso

voltar. O bebê deve nascer ainda essa semana.

— Já não era sem tempo, você está imensa.

— Sempre tão gentil, meu irmão.

Ignoro o sarcasmo em sua voz e volto a falar:

— E então, algo importante?


Ela meneia a cabeça.

— Já cuidei de tudo. Tivemos que afastar um reitor que

foi acusado de desviar o dinheiro da universidade, mas já


estamos analisando isso, enviei para o seu e-mail as

informações.

— Sim, recebi tudo e acho que agiu bem em afastá-lo

durante a investigação. E a Prover? Algo que eu precise

saber?

— Precisamos falar sobre nossa editora. O material

escolar que está sendo entregue, não tem agradado aos

professores, eles acham que as apostilas deixam a desejar,

sugeriram algumas alterações e acho que seria interessante

incluir algumas unidades novas nas próximas impressões.

— Certo. Escolha nossos professores mais qualificados

para definirem as matérias dentro de cada disciplina, deixe

que façam as sugestões e então peça para reimprimirem o

material necessário.

— Perfeito. — Ela desvia os olhos para uma agenda

que está ao seu lado e então me olha novamente. — O

resultado do vestibular já está disponível no site.

— Mesmo? Chegou a ver se a senhorita Gonzales

conseguiu as notas que esperava? — pergunto, tendo o

cuidado de não a chamar de Anabela, não depois da gafe de

hoje mais cedo.


Catarina faz um gesto com a mão, dispensando minha

pergunta.

— Mas claro que conseguiu, eu sabia que ela daria

conta.

— Ótimo. Será que ela já sabe?

— Imagino que não, saiu agora a pouco e ela deve

estar trabalhando, não?

— Sim, eu mesmo vou contar.

Catarina estreita os olhos e faço o possível para não

me entregar, mas ela tem olhos de águia.

— Pelo jeito se tornaram amigos, depois dos primeiros

incidentes.

— Não diria que somos amigos, mas não estamos

prestes a nos matar — falo, desviando meus olhos dos seus.

— Já é alguma coisa. Como ela conseguiu a nota,

vamos incluir seu nome no programa de bolsistas, tudo

dentro das especificações.

— Perfeito. Por falar nela, Anabela me pediu que fosse

mais flexível com relação ao número de funcionários na casa

— conto, me lembrando. — Concordei em contratar mais

três pessoas, duas mulheres, uma para cuidar da lavanderia


e uma para auxiliar nos afazeres domésticos e um rapaz

para o serviço mais pesado. Pode providenciar as

entrevistas? O Helder mesmo falará com os candidatos.

— A Anabela sugeriu? — ela questiona, com o cenho

franzido.

— Sim, foi o que eu disse.

— E você concordou?

— Catarina, vi que a necessidade era real, elas não

conseguem lidar com tudo sozinhas, estão sobrecarregadas.

— Mas é lógico que estão! É o que venho dizendo tem


cinco anos, Matteo! Mas tudo bem, antes tarde que nunca,

não é? Vou providenciar isso agora mesmo.

Encerro a chamada e me levanto da cadeira, satisfeito

por ter uma razão para trazer Anabela até aqui. Caminho

até a porta e a abro, colocando a cabeça para fora. Uma das

minhas funcionárias, a senhora loira e de olhos claros, passa

por mim e aproveito a deixa.

— Senhora…

— Elis, senhor.

— Isso, Elis. Pode pedir que a senhorita Gonzales

venha até aqui por favor?


— Claro, Presidente.

A mulher sai, andando apressada. Meneio a cabeça a

observando seguir na direção da cozinha, por algum motivo

essa coitada parece estar sempre com medo de mim,

mesmo quando estou sendo educado.

Retorno para minha mesa e aguardo por ela. Anabela

não demora a aparecer, ela entra no escritório e fecha a

porta, antes de caminhar até onde estou.

— Mandou me chamar, Presidente?


Arqueio a sobrancelha ao ouvir o tratamento formal.

— Senhorita, por acaso tem a intenção de me


descartar após uma noite de sexo casual?

Ela tem um acesso de tosse e isso me arranca uma


risada.

— Matteo… — Tenta falar, mas ainda está um pouco

engasgada. — Não pode falar assim! E nem me chamar de


Anabela na frente das outras…

— Nós estamos sozinhos.

— Bom, sim, mas… — Anabela suspira e passa a mão

pelos cabelos compridos. — Não pretendo fingir que não


aconteceu, só não quis supor que o senhor pensasse da
mesma forma.

— Então ficou com medo de que eu te descartasse?


Achei que pensasse melhor de mim, eu até sugeri que

ficasse comigo essa noite.


Ela parece perceber meu tom brincalhão, porque seus

olhos se semicerram e ela apoia as mãos na cintura.

— Está tirando sarro de mim?


— Não sei se ainda consigo fazer essas brincadeiras,
talvez não tenha sido muito claro.

— É, você é péssimo.

— Você está se sentindo bem?

Ela desvia os olhos e encara as próprias mãos.

— Estou, acho que conversar sobre isso é mais


constrangedor do que o que fizemos ontem.

— O que fizemos não foi nada constrangedor, foi

delicioso. Mas quero saber se te machuquei ou se está…


arrependida.

Ela nega com um gesto.

— Só um pouco envergonhada. Não estou machucada,

um pouco dolorida, mas é normal, certo?


— Certo. Mesmo assim, queria que tivesse ficado. Não
me senti bem em te ver ir embora depois da sua primeira

vez, queria que tivesse passado a noite comigo.

Anabela me encara agora, a sobrancelha erguida e um


sorriso de canto.

— Não foi você quem achou melhor impor certos


limites? Acho que algumas vezes se esquece deles.

— Eu sei, mas não queria que se sentisse mal,


sozinha.

— Não me senti mal, acho que dormirmos juntos é um


daqueles limites que não devemos transpor, é íntimo

demais e acho que isso complicaria as coisas. Tudo bem?

— Tudo, se insiste. Você tem compromisso hoje à

noite?
— Não sei, por quê? — pergunta, ainda me encarando

com ar de deboche.

Essa abusada…
— Pensei que pudéssemos jantar juntos, conversar um
pouco.

— Conversar? — A pergunta sai em tom irônico, mas

não estou brincando.


— É — respondo. Pego o catálogo de cursos da Vevet e

o coloco sobre a mesa. — Precisamos definir o curso para o


qual vai se inscrever.

Os olhos dela vão do catálogo para mim e de volta


para o catálogo.

— O Curso? Mas o vestibular…

— Saiu o resultado hoje. Por mais que não precisasse,


você quis provar que conseguiria e, parabéns, você
conseguiu mesmo.

— O quê? Saiu o resultado? Ai meu Deus! Está


dizendo que eu passei?

Anabela leva as mãos ao coração, seus olhos perdem o

ar brincalhão e agora brilham de empolgação.


— Estou, pensei que essa parte estivesse clara.

— Não acredito nisso! — Ela começa a pular à minha


frente, toda animada e também sorri. — Vou estudar!

— Vai sim, depois que decidir o curso.

— Isso! Eu vou escolher.


— E vai jantar comigo hoje.

— E jantar com você!

Ela repete tudo que eu falo, sorrindo sem parar.


— Se quiser dispensar os outros, eu posso fazer o

jantar hoje — sugiro, pensando na lista outra vez.

— Claro que não, Matteo! Iriam desconfiar, além disso,


o Helder e os outros também precisam comer — fala, como

se eu sugerisse uma loucura.


— Então pode fazer mais cedo? Mande todos pra casa.

— Isso tudo é ansiedade pra ficar sozinho comigo?


— Talvez…

Ela meneia a cabeça, provavelmente percebendo o


idiota que tenho me tornado perto dela. Não sei o que penso

que estou fazendo, mas com certeza está tudo errado.


— Tá bom. Vou dar um jeito no jantar e levar isso

comigo — ela diz, pegando o catálogo. — Mais tarde a gente


se fala.

— Certo.

— E o Helder?

— Ele dorme cedo, não vai ver nada. Além disso

podemos jantar lá na frente, no deck.


— Perfeito!

Ela me dá tchau e um sorriso e se vai. Por um


momento penso em a segurar e roubar um beijo, e então
percebo o quanto fui um trouxa por falar tanto sobre não me
envolver. Tudo para dois dias depois estar de quatro pela

garota.

Volto para a cozinha pisando nas nuvens. Nem

acredito que consegui passar no vestibular por mérito meu!


Eu até mesmo poderia pagar pelo curso, com o salário que

recebo agora.

Mas saber que consegui é o que mais me deixa feliz,

me esforcei, estudei nas horas vagas, mesmo trabalhando


bastante, e fiz a redação. Posso não ter tirado uma nota

altíssima, considerando o pouco que consegui estudar, mas


foi o suficiente para entrar e agora preciso me decidir sobre

o curso.
Elis e Suzi estão cochichando quando entro, e elas me
analisam com curiosidade descarada.

— Que foi?

— O que o Presidente queria, hein? Vocês andam


muito amiguinhos — Elis sugere, e Suzi começa a rir. —
Sabia que ele perguntou meu nome? E ainda aceitou

contratar novos funcionários. O que você fez com a fera que


andava à espreita nessa casa, Anabela?

—Vocês adoram falar bobagem. Nos tornamos amigos,

sim, talvez se vocês tivessem se esforçado um pouco, não


teriam lidado com um chefe tão mal-humorado por tanto

tempo.
— Sei…

Estendo o folheto para que elas vejam, e quem sabe

isso acabe com as desconfianças.


— Ele me chamou pra dizer que passei no vestibular,
agora tenho que decidir o curso que vou fazer.

— O quê? Você passou? — Suzi questiona e já começa

a bater palmas, comemorando comigo.


Eu também pulo e danço, feliz em ter conseguido essa
vitória.
Elis também grita e chega a bater a tampa da panela
repetidas vezes, mas para tudo quando um Helder bastante

assustado aparece na porta.

— Que algazarra é essa? O Presidente vai colocar


vocês todas no olho da rua!
— A Anabela passou no vestibular.

— Ah! Que coisa boa, menina! Meus parabéns!


— Obrigada!

— Sabe o que isso pede? — Elis pergunta, olhando de

mim para Suzi. — Uma comemoração! Devíamos deixar o


jantar aqui hoje e irmos comer na cidade, tomar umas
cervejas… O que acham?
— Eu topo! Com certeza. Quer ir com a gente, Helder?

— Eu? Nesse frio? Não, obrigado, mas se divirtam.


— Então? O que diz, Anabela?

— Bem… Eu não posso ir hoje. Pode ser amanhã?


— Por quê? O que vai fazer hoje?

Hesito um pouco, sem saber como responder a isso


sem me entregar.

— O Presidente me pediu para ficar e falar com ele

após o expediente, precisamos definir o curso e fazer minha


matrícula. Como a bolsa foi parte dos requisitos para a
minha contratação, preciso providenciar uns documentos.

— Depois do trabalho?
— Claro — Helder me interrompe —, queria que o
Presidente a deixasse resolver coisas pessoais durante o
expediente?

— Bom, não. Mas é que…


— Eu acho que o melhor a fazer seria prepararmos o
jantar mais cedo, assim todos ficamos livres do trabalho

antes — sugiro, sem entender se o senhor Helder está me


ajudando propositalmente ou se pensa mesmo assim.

— Podemos? Preparamos o jantar antes, se estiver


tudo bem.

— Claro. Mas Elis — Suzi chama, com uma expressão


de tristeza latente —, você me animou toda com a ideia das
cervejas. E se formos sem a Anabela?

— E vamos comemorar o quê?

— A vida?

— Comemorem que vamos ter mais ajuda logo, logo


— sugiro.
— Isso! Então vamos adiantar tudo e sair mais cedo.

Tudo bem, senhor Helder?

— Tudo ótimo, menina. Eu vou aproveitar pra me


deitar antes, ainda estou me recuperando daquela gripe.
Com isso definido, fico mais tranquila com relação ao

meu jantar com Matteo, afinal, mesmo que nos descubram,


tenho a desculpa perfeita. Me ocupo em limpar a sala de
música, tirar o pó do pobre e intocado piano, e abro as
janelas para entrar um pouco de ar fresco.

Em um canto há um karaokê e eu o encaro aturdida,


tentando imaginar quem é que poderia cantar nessa coisa.
Matteo não me parece combinar com o instrumento.
Também limpo o microfone e o aparelho e volto tudo para o

lugar. Os tapetes já foram lavados e as cortinas também,


então preciso apenas me preocupar com o chão.
Mais tarde, coloco um bolo para assar e faço pão de
queijo. Depois que o lanche da tarde é servido ao

Presidente, começamos a preparar o jantar.

Ouço algumas reclamações de Elis e Suzi, que


repetem várias vezes que eu não deveria fazer risoto de
carne no dia em que elas não vão jantar em casa. Mal sabem
as pobres que estou fazendo justamente por isso, me parece

um prato adequado e tento não pensar na palavra


romântico, porque ela não deve entrar no meu vocabulário
no que se refere a Matteo.

Quando termino o jantar, Helder faz questão de

preparar um prato para levar ao Timóteo, alegando que não


há razão para que ele venha jantar aqui se mais ninguém
pretende ficar. Por algum motivo, tenho a sensação de que
ele está tentando facilitar as coisas para mim, mas não

entendo como ele saberia sobre Matteo e eu.


Depois de deixar tudo pronto e de fazer companhia
enquanto Helder monta o próprio prato, deixo a casa e sigo
para o chalé, onde tomo meu banho e me arrumo para o

jantar. Coloco um vestido de lã fina e uma meia calça por


baixo e me cubro com um sobretudo preto.

Calço minhas botas sem salto e uso uma boina sobre


os cabelos, me aquecendo um pouco. Com o catálogo de

cursos em mãos, retorno para a mansão e, quando entro, me


deparo com Matteo na cozinha, espiando dentro da panela.
— Oi…

— Boa noite, Bela — ele cumprimenta.


Agora deu pra me chamar assim e não posso

simplesmente pedir que pare, alegando que causa disparos


inapropriados no meu coração.

— O que está fazendo?

— Vendo o que você preparou. Peguei uma garrafa de


vinho pra nós.

— Cadê o Helder? — pergunto, olhando ao redor.


— Trouxe o prato e colocou na pia, depois disse que

estava indo dormir.

— Tá bom — Abro as portas do armário para pegar os


pratos —, vou arrumar a mesa lá fora então.
— Já arrumei. Só traz a panela.

— Vamos levar a panela? Vai esfriar.


— Acendi a lareira, é só deixar perto dela.

Faço o que ele diz e pego o risoto, enquanto Matteo

carrega a garrafa de vinho e duas taças. Eu o acompanho e,


quando chegamos ao deck, constato que ele realmente
preparou tudo. Alinhou os pratos e os talheres e forrou a
mesa com uma toalha branca. A lareira está acesa e os

postes também.
Sirvo nossos pratos enquanto ele abre o vinho e o
despeja nas taças, depois coloco a panela perto do fogo,
como ele sugeriu, e me sento.

— Você está linda com essa boina — ele comenta,

bebericando o vinho.
— Obrigada, mas vou começar a pensar que diz isso
só para me agradar, já que fala que estou linda sempre que
me vê.

Mas Matteo dá de ombros e arruma a gravata sobre as


roupas perfeitamente alinhadas.
— Porque está sempre linda quando te vejo.

— Mesmo com meu uniforme horroroso?


— Bom, nesses casos você, seu rosto e corpo,
continuam lindos. A roupa não posso defender.

— Você sabe que são uniformes e você é o chefe aqui,

não sabe?
— Sei, mas acha mesmo que fui eu que escolhi aquela
atrocidade? Foi minha mãe, são as mesmas roupas que
usam na casa dela, só que lá, ainda adicionam o avental

branco por cima, igual antigamente.

— Sério?
— Sim, mas estou prestes a abolir esse trambolho
daqui, já que você fica muito mais bonita sem ele.

— Senhor Presidente — chamo e vejo o sorriso dele se

alargar —, sabe que, pra quem não quer nem ouvir falar de
romance, o senhor é um homem muito galante?
Ele começa a rir.

— Eu não faço ideia do que estou fazendo, Anabela —

admite, rindo. — Você sabe que me casei cedo, não sabe?


Foi uma coisa meio arranjada, então não precisei preparar
nada, as coisas só aconteceram. Depois eu me fechei aqui,
ou seja, até mesmo sobre essa coisa de relacionamento

casual, eu não sei o que fazer.


— Com certeza não deveria ficar me chamando de
Bela e é melhor parar com os jantares românticos.

— Sério? Mas eu gosto disso, de ficar com você assim.

Além do mais, pra ser romântico eu teria que acender velas.


Ergo a sobrancelha e mostro os arredores com as
mãos.

— Temos uma lareira acesa, a luz das estrelas e da lua


sobre nós, um bom vinho… — Sorrio diante da expressão
confusa dele. — Eu sei, também gosto de ficar assim, mas
não deveríamos gostar.

— E o que eu faço, então? Só sexo bruto e selvagem?

Acho uma boa ideia também — responde, com um olhar que


me aquece por inteiro.
— Matteo!

— O quê? — Ele começa a rir e fico admirando,


encantada. Como pode ser tão lindo? Como pode carregar o
peso do mundo sobre os ombros e ainda assim sorrir de
maneira tão leve? Ele não sorria assim, mas parece ter
reaprendido. — Então vamos deixar isso pra depois, pensou

sobre o curso?
Pego um pouco do risoto com a ponta do garfo e o
assisto a fazer o mesmo. Comemos por um instante, em
silêncio e tomo um gole do meu vinho, antes de responder.

— Eu já te contei sobre meus planos com os livros e os


perfumes, não existe curso para isso. Então pensei em
administração, pra lidar com meu negócio futuramente, mas
tem um problema.

— Qual?

— Odeio matemática.
— Isso seria mesmo um problema.

— Então pensei em biblioteconomia, que era o plano

desde o início, mas não quero trabalhar em uma biblioteca,


ainda que não me oponha completamente.
— Olha, se sua ideia é trabalhar com livros,
geralmente eu sugeriria letras, jornalismo, direito ou

história. Por outro lado, pensando nos perfumes seria melhor


cursar química. Mas nenhum dos casos se encaixa
perfeitamente com o que você quer. Você já tem sua ideia
de negócio, então apesar do seu amor por livros e perfumes,
não acho que tenha que cursar algo que tenha relação

direta com essas paixões.

— Como assim?
— Sua ideia é única, não vai encontrar uma faculdade

que te ensine como fazer isso. Eu sugeriria alguma coisa


que te ensinasse mais sobre empreender, como os números
não são sua praia, acho que deveria pensar em marketing,
vai aprender a vender sua ideia e seu produto e muito mais,
além de conseguir o diploma que quer.

— Marketing… — Analiso a sugestão e, a cada instante


que levo pensando nisso, fico mais empolgada. Ele tem
razão, vou conseguir aplicar os conhecimentos que vou
adquirir no meu futuro negócio. — É uma excelente ideia.

— Pense direitinho, mas acho que é o melhor


caminho.
— Obrigada, Matteo. Você entende muito disso, nem
parece que não sai daqui pra nada.

— Porque não foi sempre assim — responde, ainda


sorrindo. Por vezes penso ter dito besteira ou me
intrometido muito, mas ultimamente ele não parece se
importar. — Alguns anos atrás eu passava o dia todo na

empresa, chegava em casa e ia ler, estudar mais. Era bem


caótico, mas eu gostava.
Ainda que esteja mais flexível, não quero entrar nesse
assunto, porque não quero que ele fique triste e se feche

outra vez, então aproveito o gancho.

— Por falar em livro, avancei um pouco com


Persuasão.
— É mesmo? Em que parte você está?

— Não posso mais ouvir em silêncio — falo,


começando a citar o trecho da carta que já decorei. —
Preciso falar com você, pelos meios de que disponho no
momento. Você trespassa minha alma. Sou metade agonia,
metade esperança…

— Não vai me dizer que decorou a carta do capitão,


Bela.
Ergo a sobrancelha diante do apelido e ele meneia a

cabeça.

— Anabela, desculpe. Decorou? — pergunta, em um


tom que é carregado de ironia.
— Só o começo, mas pretendo decorar inteira, porque

estou apaixonada! Sinceramente, o que é aquele homem?

Matteo toma mais um gole do seu vinho e meneia a


cabeça, fingindo tristeza.
— Então você é dessas. Que decepção…

— Dessas?
— Que se apaixonam por personagens fictícios.

— Eles são menos arriscados, Presidente. Não dão dor

de cabeça, não são cheios de regras e não ficam me


confundindo.
— Touché. Fico feliz que esteja gostando do livro —
responde, evitando responder a minha indireta. — Acho que

vou reler e depois podemos debater o final e discutir sobre


como eles demoram a se resolver, porque, vai dizer que não

ficou irritada com todos os mal-entendidos e aquela


enrolação?

— Bom, podiam ter se acertado mais rápido, concordo.


Mas aí não teria história.

— Fato.

Continuamos nesse clima descontraído até muito mais


tarde, conversando e bebendo, apreciando a companhia um
do outro enquanto o céu testemunha esse momento.

Quando ele me beija e segura minha mão, me levando até


em casa, eu percebo.
Não poderia ter cometido um erro maior, ao julgar que
poderia separar as coisas. A verdade é que sou como um

daqueles livros, e depois que Matteo borrifou seu perfume


sobre minhas páginas, nada que eu pense em fazer poderá
afastar a fragrância que já está intrincada na minha alma.
Talvez eu esteja indo além do que planejei, o que pode
ser reflexo dos anos de solidão, mas alguma coisa me diz

que é mais que isso. Anabela é inteligente, perspicaz e

linda, e não consigo evitar querer estar por perto e passar

meu tempo com ela.

Por isso prefiro não pensar muito quando a chamo na


manhã seguinte, com planos que com certeza ultrapassam

os limites que eu mesmo impus.

— Mandou me chamar, Matteo? — ela pergunta,


entrando no escritório.
Está absolutamente linda em seu uniforme terrível. É

quando um homem sabe que está ferrado, a mulher usa

roupas assustadoras, tem os cabelos presos de uma maneira

ainda pior e consegue estar mais bonita a cada vez que a

vejo.

— Lembra da lista que fiz?

— Como eu poderia esquecer se até invadiu a cozinha

por conta dela? — indaga, colocando as duas mãos na

cintura.

— E lembra de ter sugerido um piquenique na beira


do lago, ao invés de uma pescaria?

— Hum, sim… Eu sugeri isso — responde, me fitando

agora com curiosidade.

— Decidi que vai ser hoje, estou oficialmente de folga

e você vai me acompanhar.

— Eu vou? Mas tenho muito trabalho a fazer.

— E o patrão sou eu, então estou te liberando

também.
— Mas as outras, vão falar… — ela sussurra.

— Vamos pensar em alguma desculpa.


— Pra um piquenique? Só nós dois? Acho que não

vamos encontrar algo que justifique.

— Então não diga que é um piquenique. Eu as expulso

da cozinha, preparo a cesta e saio. Você só desaparece, sem

deixar rastros.

— Bom, isso talvez funcione…

— Vou dizer ao Helder que precisou sair, ele cuida das


coisas.

— Tá bom, então. Se tem certeza disso.

— Me encontre na porta do seu chalé em meia hora.

Ela aquiesce, sorrindo, e então se vira, pronta para

sair.

— E Anabela…

— Sim?

— O que exatamente eu não deveria esquecer de

levar?

— A comida? — sugere, rindo.

— Sim, algo mais?

— Pegue uma toalha pra forrar o chão, um livro…


Copos?

— Certo.
Quando nos encontramos em frente ao chalé, um

pouco mais tarde, ela está perfeita. Trocou o uniforme

hediondo por um vestido florido, de mangas compridas, e


colocou um chapéu de palha sobre os cabelos. Anabela é

sempre linda, mas acho que nunca a vi tão bonita quanto

hoje.

— Você está…

— Com cara de quem vai a um piquenique. Não acha?

Até encontrei um chapéu desses que usam nos filmes.

— Eu ia dizer maravilhosa, mas com certeza está

parecendo alguém que vai a um piquenique.

— Nós vamos caminhando?

— Sim, não fica longe, além disso, meu carro não sai

da garagem tem muito tempo. Nem deve ligar mais.

— Pensei que Timóteo o usasse todos os dias.

— Ah, ele usa. Me refiro ao outro carro.

Anabela aquiesce e me mostra uma bolsa que tem nas

mãos.

— O que é isso? — pergunto, tentando sondar dentro

da bolsa, mas ela se esquiva.

— Também peguei algumas coisinhas.


Encaro seus olhos castanhos, que parecem sorrir com

ela, e sinto uma vontade enorme de ser diferente, ao menos

por um dia.

— Eu quero te propor uma coisa antes de irmos.

— Mais uma proposta indecente, Presidente?

— Na verdade o contrário disso. Queria que ao menos

hoje fôssemos só eu e você, um homem e uma mulher, sem

regras e sem limites.

— Hum… Acho perigoso.

— E por quê?

— Você pode gostar muito disso e não querer voltar ao

padrão depois.

— Ah, é mesmo? E você, não?

— Não. Você sempre me irrita, o que torna impossível

que eu caia no seu charme.

— Você também me irrita muito, se quer saber. Mas e

então? Vai concordar?

— Vou. Mas só por hoje, não se empolgue.

Então seguro a mão dela na minha, entrelaçando

nossos dedos, e me permito por um dia ter a ilusão de que

somos apenas duas pessoas se conhecendo, passando uma


tarde juntos. Sem os títulos de patrão e funcionária e, com

certeza, sem todo o peso que carrego sobre mim, sem a

culpa e sem o passado.

Anabela desvia os olhos para nossas mãos, mas não

faz menção de as soltar. Ela aperta meus dedos nos seus e

sorri. Saímos caminhando juntos, lado a lado, rumo ao lago

que fica bem aos fundos da propriedade. Na verdade, não

passa de um açude, colocado ali estrategicamente para

facilitar a pescaria, mas, hoje, vai nos servir como um belo


lago.

Carrego a cesta com uma mão enquanto com a outra

seguro a dela. O sol está fraco e venta um pouco, mas não

está frio e nem chovendo, o que nessa época do ano já é

uma vitória.

Quando chegamos, primeiro abro a cesta e retiro a

toalha, que Anabela trata de estender sobre o gramado

ainda úmido de orvalho, se colocando de joelhos.

— Pode me dar as coisas que eu arrumo — pede,

estendendo uma das mãos.

Também me sento no chão, do outro lado e começo a

retirar o que trouxe. Um pedaço de queijo fatiado, algumas


uvas, pão de queijo, que ela mesma fez no dia anterior, e

alguns pedaços de um bolo que encontrei sobre a mesa.

— Você trouxe bastante comida.

— Peguei tudo que encontrei na frente, também

trouxe um vinho — falo, retirando a garrafa da cesta —, e se

não quiser beber, suco de uva para improvisar.

— Oba! Eu também trouxe uma coisinha — ela


responde, abrindo a própria bolsa. Anabela retira de lá uma

caixa de chocolates de cereja e coloca sobre a toalha. —


Comprei quando fui ao mercado, estava guardando para

devorar quando estivesse de TPM, mas acho que hoje é um


bom dia.

— O que mais você trouxe?

Ela retira o exemplar de Persuasão de dentro da bolsa

e o balança no ar, diante dos meus olhos.


— Quem sabe eu consiga ler um pouco enquanto

você… pesca?

— Não trouxe a vara — respondo, rindo da suposição.


— Pensei que fosse o plano.

— Não, só um piquenique com a minha garota, já que


hoje somos um casal se conhecendo.
— Ah, é essa a história? — pergunta, os olhos
brilhando de diversão.

— Sim, nos conhecemos por aí…


— Na cidade, eu fui comprar chocolates — ela

completa, mostrando a caixa outra vez —, e você trabalhava


no caixa da loja.

— Acha que tenho cara de vendedor de chocolates?

Ela dá de ombros.

— Sei lá como é a cara de um vendedor de chocolates.

— Certo, eu vendia chocolates e te achei linda.

— E me convidou para sair.

— Um piquenique. Foi uma ótima ideia.

— Não é? Te achei um fofo.


— Nós já nos beijamos? — pergunto, me virando um

pouco para a encarar.

Anabela arruma o chapéu sobre os cabelos e aquiesce,

sorrindo. Ainda não sei bem definir o que é, mas o sorriso


dela faz com que alguma coisa dentro de mim se mova, é

como se tirasse algo do lugar.

— Já, eu adorei seu beijo e não vejo a hora de te beijar


de novo.
— E eu não paro de pensar em quando as coisas
evoluírem e nós transarmos a primeira vez.

— Porque é apressado — responde, meneando a

cabeça.
— Porque você é gostosa e doce, e inteligente e sexy.

— Nossa, eu sou incrível!


Sorrio ao ouvir o tom dela de surpresa.

— É mesmo.
Anabela pega um pão de queijo e o recheia com uma

fatia do queijo que eu trouxe.

— Em outra vida você deve ter sido uma ratinha —


comento, a observando.

— Bobo… É pra você — ela diz, me entregando o


petisco.

— Agora me ganhou pelo estômago.


— Ah, isso eu ganhei mesmo. Não estou falando de

mim, a moça da chocolataria, mas de mim, Anabela. Só me


manteve no emprego por causa da comida.

— Foi o que te salvou, mas está saindo da


personagem.

— Verdade, esquece o que eu disse!


Ela corta outro pão de queijo e o prepara para si

mesma. Depois de comer, Anabela se deita sobre a toalha,


com o livro nas mãos.

— Em que página você está? — pergunto.


— Ainda na carta, não consigo sair dela.

— Se cansou da leitura?

— Pelo contrário. É tão maravilhosa que fico lendo e


relendo. Ofereço-me uma vez mais, com um coração ainda
mais seu…
— Do que quando quase o partiu, eu sei. Esse capitão

sabia usar as palavras — concordo.


— Ah! Sabe a carta também e ficou fazendo piadas

comigo!

— Eu não sei a carta, Anabela. Que ideia. Só alguns

trechos que sempre são citados por aí.


— Sei… Mas ouça só esse pedaço e me diga se não é a

coisa mais linda do mundo: Nunca amei outra pessoa.


Injusto posso ter sido, fraco e rancoroso posso ter sido, mas
nunca inconstante.
— É, eu disse que ele sabe usar as palavras. Ou

melhor, a autora sabia, foi ela quem escreveu.


— Credo! Me deixa imaginar que foi aquele cara lindo

do filme.

— Tá bom, se você insiste — respondo, rindo da


empolgação dela. — E sobre o curso? Se decidiu?

— Sim, vou fazer o que sugeriu e me matricular em


marketing e propaganda.

— Então vou cuidar do processo.


Estou satisfeito com sua decisão, tenho certeza de que

vai se dar bem na área.

— Obrigada.

— Não precisa agradecer, faz parte do seu contrato.

— Ah! Fugimos das personagens outra vez. Vamos


esquecer esse assunto.

— Certo. Bom, o caixa da chocolataria está doido de


vontade de beijar a moça que comprou os chocolates.

— É mesmo? Então ele deveria fazer isso.


Eu me deito ao lado dela e Anabela se vira, ficando

frente a frente comigo. Ela ergue um pouco o rosto e vou de


encontro a ela, tomando sua boca macia na minha.

Anabela se aconchega em meus braços e enlaça meu


pescoço, se aproximando ainda mais. Nossos gestos
demonstram a urgência que sentimos. Seguro sua nuca com
uma mão e aprofundo o beijo, levando minha língua de

encontro a dela, que cola o corpo ao meu e sorri contra


meus lábios em seguida.

Suas mãos descem do meu pescoço para meus


ombros, me provocando com seus toques hesitantes. Por

mais que estejamos próximos, ainda é pouco. Estou duro,


excitado e ansioso por ocupar o mesmo espaço que ela.

Seguro sua cintura fina e a viro, colocando-a sobre


minhas pernas, seu chapéu sai voando e para perto do lago.

Talvez esteja sendo afoito demais, mas estou desesperado


para entrar em sua boceta apertada outra vez. Trago seu

rosto para mais perto e deixo seus lábios, distribuindo beijos


em sua nuca e pescoço.

Estar dentro dela é como uma necessidade agora, que


cresce a cada segundo. Colocando as pernas uma de cada

lado do meu corpo, ela se encaixa sobre mim, meu pau roça
contra seu sexo quente, quando Anabela me monta. Ela

geme ao sentir a fricção e o som me faz trincar os dentes,


em um esforço para não agir como um homem das cavernas

e rasgar suas roupas, agilizando o processo.


Porra, ela era virgem até dois dias atrás.

Aproveitando a posição, busco a barra do vestido e


coloco a mão por baixo dele, percorro o caminho por suas

coxas grossas enquanto volto a beijar a boca gostosa. Eu a


toco sobre o tecido úmido da calcinha que está usando, e
Anabela rebola em minha mão, me deixando louco de tesão.

Sem conseguir me segurar por mais tempo, afasto a


peça para o lado e toco sua boceta molhada, meus dedos

deslizam facilmente. Ela me incentiva, se contorcendo sobre


mim e me deixando ainda mais duro, se isso é possível.

Anabela está completamente entregue, ela joga o

pescoço para trás e aproveito para beijar e inalar seu cheiro.


O vestido tem uma amarração na frente e eu solto o laço

com destreza, liberando seus seios diante de mim. Ela olha


para os lados e fica tensa por um momento.

— Ninguém vem aqui, fique tranquila.

Seus olhos retornam para os meus e ela assiste


quando seguro seus seios com as duas mãos. Eu os admiro

por um instante, aproximando meu rosto devagar.


Anabela agarra meus cabelos e me conduz para mais
perto, ansiosa, me fazendo sorrir. Eu a beijo no vale entre os
seios e depois na pele alva de seu colo. Ela se remexe,
pedindo mais, aperto os dois mamilos entre meus dedos e

depois mordisco um deles. Com a ponta da língua eu a


atiço, provocando, e depois sugo com força. Ela choraminga
quando retiro seu seio da boca e assopro.

Estou me controlando e merecia um prêmio por

conseguir me conter por tanto tempo, a fricção dela contra


os meus dedos e meu pau, ainda dentro das calças, quase
me enlouquece.
— Anabela… Eu preciso foder essa sua boceta gostosa.

Agora.

Seus olhos se abrem um pouco e temo tê-la assustado


com o palavreado, mas ela sorri.
— Aqui? — pergunta, apenas.

— Aqui mesmo, desse jeito.


Abro o zíper da calça e afasto a cueca, liberando meu
pau. Ela o olha de um jeito que quase me faz gozar,
lambendo os lábios e me analisando.

— Viu o bastante? — pergunto, provocando.


Seus olhos brilhantes como mel líquido me fitam,
cheios de tesão, e ela não oferece resistência quando afasto
sua calcinha para o lado e deslizo para dentro do calor
apertado dela.

— Porra… Caralho… Você é a coisa mais gostosa desse


mundo inteiro.
Sua boca está entreaberta em um círculo perfeito e
aguardo um momento, para que se acostume comigo.

— Dói?
— Não, isso… É muito bom.

— Então senta pra mim.

Ela me encara, confusa.

— Já estou sentada.
Sua inexperiência me faz sorrir, ela só fica mais

deliciosa assim, aprendendo e ansiosa por isso. É inevitável


que uma sensação de posse tome conta de mim.

— Assim, Bela… — Seguro em sua cintura e a guio


para cima e para baixo e dessa vez ela não faz objeção ao

apelido.
Anabela pega o ritmo rapidamente, mas continuo
auxiliando seus movimentos. Seus seios sobem e descem a
céu aberto, a visão me perturbando o juízo.
Seus cabelos se soltam do coque e caem, cascateando

por seus ombros e peito, tocando meu corpo. Ela parece


uma deusa, majestosa, controlando nosso ritmo e tomando
seu prazer para si mesma.

Não consigo deixar de pensar em quanta coisa ainda

quero ensinar a ela, nas várias formas e locais em que quero


estar dentro dela.
Sinto seu orgasmo chegar, forte e delicioso. Ela
estremece em cima de mim, sua boceta se contrai e me

aperta e não consigo evitar o jorro quente que sai de mim


para dentro dela.

É a idiotice mais gostosa que já cometi.


Voltamos para casa pouco depois, Anabela parece

pensativa e imagino que esteja nervosa com o que fizemos.


Não queria ter que tocar no assunto, então espero que ela o
faça para a tranquilizar.

— Está quieta — respondo, quando já estamos perto

do chalé.
— Nós não usamos preservativo.

— Não tinha farmácia por perto — brinco, mas ela

permanece séria. — Fique calma, tá bom? Existem pílulas


para o dia seguinte. Eu peço na farmácia que entreguem

uma aqui, prometo que não vai acontecer de novo. Tá bom?

Ela aquiesce, agora parecendo mais tranquila.


— Não pensei na hora.

— Eu devia ter levado preservativo, ter imaginado que


iria precisar. Você me desculpa por isso?
— Tá tudo bem, só não esqueça de pedir a pílula.

Quando chegamos perto do chalé, ela se despede de

mim e entra. Termino o caminho sozinho, pareço um idiota,


sorrindo sem parar. Nem a minha irresponsabilidade
consegue estragar o momento.
Mas outra coisa consegue.

Quando entro na casa, encontro Helder na cozinha,


parecendo aflito.
— Que bom que voltou, Presidente. Temos uma
situação complicada à sua espera.

— Situação? O que houve?


— Sua mãe ligou, parece que é bem sério.

Sigo para o escritório às pressas, preocupado, e ligo

para minha mãe rapidamente. Ela não demora a atender.

— Filho, escute… Temos uma questão delicada.


— O que foi? Fala logo que está me deixando nervoso.

— Eu preciso que venha até aqui.


Por um momento penso ter entendido errado.

— O quê? — pergunto. — Eu não saio daqui, a senhora

sabe disso. Aconteceu alguma coisa com o papai? Catarina e


o bebê estão bem?
— Não, filho, não tem nada a ver com eles. É a Sofia.

— Sofia? — Sinto o impacto de ouvir o nome dela


tanto tempo depois. — O que eu tenho a ver com ela?
— Matteo, a coisa é séria, tá bom? Sei que não sai de
casa, só que nesse caso você não tem escolha.

Tomo um minuto para mim mesmo, assimilando o que


ela está dizendo. Mas por mais que pense, não faz o menor
sentido, não tenho notícias de Sofia há muito tempo.
— Como assim não tenho escolha? Não vou a lugar

nenhum por causa da Sofia, mãe.

— Filho, ela está morrendo.


A informação me surpreende, mas não sinto
absolutamente nada.

— Morrendo? Pra mim ela já morreu tem muito tempo.


— Eu sei, mas… não é sobre isso. Olha, não posso
explicar isso por telefone, só preciso que saiba que se não
fosse extremamente importante, impossível de resolver sem
você aqui, eu não te pediria que viesse. Vou te esperar na

casa dos pais dela, à noite.

Minha mãe desliga sem mais palavras, e encaro o


telefone, chocado. Mas que merda pode ter acontecido para
que ela me pedisse isso? Ciente de tudo que passei por

causa desse demônio de mulher?


— Porra…

Não consigo acreditar que vou fazer isso,


principalmente por causa da mulher que antes, me fez

esquecer o mundo pra viver aqui, enclausurado. Deixo o


escritório e encontro Helder me esperando do lado de fora.
— O senhor vai? — ele questiona, aflito.

— Ela disse o motivo? Porque não me explicou nada


direito.
— Não, só disse que tem a ver com a bruxa e que era
muito sério — fala.

Helder está nervoso e eu não consigo sentir muita


coisa, é como se assistisse ao desenrolar de um dia perfeito
que acaba de se tornar um caos.

— Eu… Acha que tenho que ir?


— A senhora Viturino não pediria isso se não fosse

caso de vida ou morte.

— Merda. Chame o Timóteo, não vou levar nada


porque pretendo estar de volta ainda hoje.
— O senhor pode me ligar? Fico preocupado.

— Também estou, Helder. Que porra essa vaca quer


comigo?
— Não sei, menino Matteo — ele fala, pela primeira
vez em anos me chamando como fazia quando eu era

pequeno.

E é assim que me sinto, como um moleque que de


repente foi arrancado da segurança e jogado aos lobos.

Menos de cinco minutos depois, deixo a propriedade.


São cinco anos sem ver o lado de fora desses muros, sem ver
outras pessoas e construções. Me espanto por um momento
ao ver como a cidade cresceu e mudou nesse tempo, mas

logo estamos na estrada.

Timóteo está sério e apreensivo. Com razão, afinal


trabalhando pra mim esse tempo todo ele nunca precisou
ser meu motorista de verdade. Levo o caminho todo
pensando, tentando entender o que de tão sério pode ter
acontecido, mas sem conseguir chegar a nenhuma

conclusão.

Quando chegamos em São Paulo, passo o endereço


para Timóteo e perco o tempo analisando os prédios que
surgiram, as empresas que agora ostentam galpões

enormes, onde antes era só mato. É tudo igual, mas


também muito diferente.
O trânsito caótico me espanta, agora que estou
acostumado à calmaria das montanhas, tudo é surreal e, ao

mesmo tempo, nada me distrai o bastante.

Quando entramos no bairro nobre em que meus ex-


sogros residem, fico mais tenso, preocupado com o que vou
encontrar. O carro dos meus pais está estacionado em frente

à casa, e Timóteo para um pouco à frente dele.


Desço e respiro fundo algumas vezes, sem entender
ao certo como me sinto, tendo deixado minha própria
fortaleza. Toco o interfone, e a porta se abre um pouco

depois. Uma garotinha de olhos muito azuis e cabelos claros


me encara de baixo.
— Oi, moço — cumprimenta, sorridente.

Pisco, tentando entender se estou no lugar certo, mas

ela emenda outra frase.


— Veio ver quem, hein?

— Eu… Vim falar com Clarissa Viturino, ela disse que


estaria me esperando aqui.

— Ah! Você é o Matteo?

— Isso — respondo, meio aéreo.


De onde saiu essa menina?

— Pode entrar — fala, abrindo espaço para mim —,


vou avisar que você chegou.
Entro na sala e olho ao redor, percebendo que a casa
não mudou muita coisa ao longo dos anos. Apenas a foto de

Sofia, que ficava sobre o aparador desapareceu, eles


também não aceitaram bem o que ela fez, o que me deixa
ainda mais surpreso de que ela esteja aqui.

A garotinha volta pouco depois, arrastando minha

mãe pela mão. Clarissa Viturino não é jovem, mas parece ter
envelhecido dez anos nos poucos meses em que não nos
vimos. Seus olhos estão vermelhos e ela começa a chorar
assim que me vê.
— Mãe?

— Ah, Matteo! — Ela me abraça forte e chora sem

parar, enquanto tento entender que pesadelo é esse que


estou vivenciando.
— O que houve?

A menina se aproxima e puxa minha mãe pela saia,


parecendo preocupada.
— Não chora, vovó.

E meu mundo começa a girar, enquanto as coisas

perdem o foco. Sinto que minhas pernas quase cedem, mas


me mantenho firme, com os braços da minha mãe ainda me
envolvendo.
— Ela te chamou de quê?

— Fique calmo. — Ela me solta e se vira para encarar a


menina. — Maitê, por favor, vá brincar um pouco. Preciso
conversar com o Matteo.
— Tá bom.

A garota sai correndo da sala e me sento no sofá,


antes que acabe desmaiando de choque.
— É uma menina tão alegre, filho. Nem parece ter tido
uma vida tão difícil.
— Onde está Sofia? — pergunto, ignorando essa ideia
ridícula que estão tentando me fazer considerar.

Vovó. Porra!
— Em um quarto, lá em cima — ela conta, meneando
a cabeça. — Sei que você não tem razão nenhuma para

acreditar nela, Matteo. Também duvidei a princípio, mas


você olhou bem para a garota?

— Tudo que vejo é uma mentira. Vai me dizer que não


conhece Sofia? Não sabe o tipo de aproveitadora que ela é?

Está usando essa menina pra enganar vocês, ela pode ser
filha de qualquer um.
O pai de Sofia, Osmar, que um dia foi meu sogro,
aparece no corredor e entra na sala. Seus olhos também

estão inchados, como os da minha mãe e por um momento


penso que ele vai defender a filha, mas o homem aquiesce,
me dando razão.

— Nós sabemos que Sofia não é confiável, mas a idade

da menina, Matteo, a história toda parece ser verdadeira.


— Ainda assim, mesmo que a idade seja de quando
era casada comigo…
— Ela estava grávida, você se lembra — ele fala, como

se eu pudesse esquecer.

— Estava, mas tirou a criança. Ela mesma disse isso,


abortou e arrancou o bebê a sangue frio porque pedi o
divórcio.

— Eu sei o que Sofia disse e o quanto isso te deixou


mal — minha mãe fala, segurando minha mão com firmeza
—, mas ela mentiu. Filho, essa menina foi deixada de lado
esses anos todos, morou em abrigos porque a mãe não

estava apta a cuidar dela. Sofia só a pegou de volta porque


os pais a descobriram e concordaram em receber as duas
aqui, mas ela quer falar com você.

A informação vem como um soco na boca do meu

estômago.
— Isso só pode ser brincadeira. Vocês estão dizendo
que ela não abortou e que abandonou a garota em um
orfanato?

— Infelizmente.
Sem esperar por mais nada, saio da sala e subo as
escadas, pronto para enfrentar a mulher que um dia chamei
de esposa. A última porta do corredor está aberta e eu a

empurro, entrando no quarto, furioso.

Mas não encontro Sofia. O cômodo é escuro e pequeno


e, aos poucos, minha visão começa a se acostumar e
consigo ver uma cama no canto e, no centro dela, uma

figura esquálida, emaciada.


Eu me aproximo um pouco e observo a mulher. Ela

parece morta, uma máscara cobre sua boca e nariz e o único

indício de que ainda está viva é a respiração fraca que faz


com que seu peito suba e desça.

Olho em volta, procurando por Sofia, mas não há mais

ninguém além da figura fantasmagórica. No entanto,


quando a mulher abre os olhos e me encara, a confusão dá

lugar ao choque, que percorre meu corpo por inteiro.


Os cabelos loiros, que um dia foram sedosos e cheios

de vida, agora estão opacos, cortados de maneira irregular

na altura dos olhos, o corpo que um dia foi a razão de tanta


desgraça, agora é apenas uma carcaça, ossos e pele.

— Oi…

Nem mesmo a sua voz é a mesma, parece apenas o


sussurro de alguém que já não tem mais forças. Não consigo
sequer responder, dizer alguma coisa. Apenas continuo a

encarando, sem encontrar uma forma de sair do estado em

que me encontro.

— Não imaginei que fosse te reencontrar assim, um

dia.
— O que… O que você tem? — consigo perguntar

finalmente.

— Estou morrendo. AIDS e, agora, tuberculose.


Eu a observo por um momento e constato que diz a

verdade, ela não poderia estar mais perto da morte, a

menos que estivesse em um caixão.

— Você não abortou — respondo, em tom acusatório.

— Confesso que disse isso como punição a você, pelo

pedido do divórcio. Então escondi a menina em um


orfanato.

— Isso não faz o menor sentido — respondo, me


negando a acreditar. — Ela não é minha, eu mal te tocava

naquela época.

— Eu sei que ela é sua.

— Não tem como saber.

Sofia meneia a cabeça.


— Eu mal a conheço, a deixei para adoção, mas acho
que ninguém a quis — fala, suas palavras não têm um pingo

de emoção. — Meus pais me expulsaram de casa, todas as

pessoas que eu conhecia me odiavam por causa do que


aconteceu e minha única saída foi começar a fazer

programas. Não podia fazer isso tendo uma criança comigo.

Estou tomado pela raiva, ainda que esteja cadavérica


à minha frente, minha vontade é a de gritar e xingar, mas

faço o possível para manter o fio de controle que ainda


resta.

— Você sabe muito bem que se ela fosse minha eu

assumiria a menina.

— Você, meus pais, seus pais… — fala, simplesmente.

— Não achava que vocês mereciam qualquer coisa que

saísse de mim. Só que, agora, eu vou morrer e parece que


ainda existe em mim alguma coisa boa, fiquei com pena da

menina, contei aos meus pais sobre ela quando pedi abrigo
e a trouxe pra cá.

— Alguma coisa boa em você? Você destruiu a minha

família, me enganou, mentiu e jogou sua filha em um


abrigo. Com certeza a usou como moeda de troca para ter
uma cama para morrer confortável. Você é um monstro,

Sofia.

— Mas a menina não tem culpa — fala, não negando


nada do que eu digo.

— Ela não é minha filha.

Não posso acreditar que seja, porque eu sei, só eu sei


o que isso faria comigo. Jamais me perdoaria.

— Você é quem sabe, não posso te dar essa certeza se


é o que espera. Mas um teste de DNA resolveria isso

facilmente.

— Vou embora, eu nem mesmo deveria ter saído de


casa por sua causa.

— Matteo… — Ainda reúno coragem para a encarar

uma última vez quando ela me chama. — Você acha que


consegue me perdoar? Pra que eu possa descansar em paz.

Um riso mórbido me escapa diante do pedido.

— Paz? Mas quem disse que eu desejo que tenha paz?


Por mim, você pode apodrecer no inferno.

Desço as escadas sem pensar duas vezes e me deparo


com minha mãe, que me aguarda no último degrau.

— E então?
— Ela não é minha filha, mãe. Não entende? Não é.

Ela aquiesce, entendendo tudo aquilo que não digo,


que não consigo dizer.

— Tudo bem, mas preciso de você mesmo assim —


fala, simplesmente. — Vou ficar com ela, Matteo, mas

preciso de tempo. Catarina vai ganhar o bebê essa semana,

preciso de uns quinze dias para organizar a casa para que


Maitê venha morar comigo.

— O quê? Por que a senhora faria isso? O Osmar já não

aceitou a garota e a retirou do abrigo?


— Vou fazer isso, porque se ela não é sua filha, ainda

assim é sua sobrinha. E em qualquer uma das hipóteses, ela


é minha neta.

Miguel. A verdade me atinge em cheio. Em qualquer

perspectiva, a vida dessa garota está ligada à nossa.


— O que eu faço? — pergunto, desolado.

Passo as mãos pelos meus cabelos, tentando

encontrar uma alternativa.


— Leve ela com você, só por uns dias. Até que nós

possamos resolver as coisas por aqui, a guarda provisória é


deles, mas sei que não vão se opor, não fazem a mínima

questão da menina.

— A senhora não pode me pedir isso.


— Por favor, filho. Pelo Miguel.

— Merda…

— E sei que você não quer isso, mas pode fazer o teste
antes de ir? Podemos chamar o pessoal do laboratório aqui,

você tira o sangue e depois vai.

Aquiesço contrariado. Por mais que eu tenha certeza


de que a menina não é minha filha, não posso negligenciar

a situação assim. Não me resta alternativa a não ser


concordar.
Ainda não acredito que concordei com essa ideia
absurda de trazer a menina comigo, mas a verdade é que

naquele momento eu faria qualquer coisa que minha mãe

julgasse ser o certo, já que eu mesmo não sabia como reagir

ou tomar uma decisão. Tudo o que sei fazer agora é seguir


em modo automático e me vejo caindo cada vez mais fundo

dentro desse precipício em que Sofia me colocou.

A menina falou durante o caminho todo, contou sobre

o orfanato e o abrigo anterior, falou também sobre suas


amigas e as meninas que não gostavam dela. Timóteo me
lançava um olhar ou outro pelo retrovisor, sem entender

quem era a menina ou por qual razão estaria indo comigo

para Campos do Jordão. Mas obviamente não vou me

explicar, nem eu entendo direito o que está havendo aqui.

Quando estacionamos em frente à casa, abro a porta


do carro para que ela desça, e a menina pula para fora,

boquiaberta e olhando tudo ao seu redor.

— Que frio! — reclama, esfregando os braços finos.

Depois ela pega seu casaco de lã rosa sobre o banco

do automóvel e se veste. Acho que essa é uma das coisas


que se aprende em um desses abrigos, a cuidar de si

mesmo.

Pego sua mochila no porta-malas e, quando retorno

para perto dela, a vejo se esticando sobre os pés para espiar

dentro da casa.

Ainda que ter sido jogado no meio desse vendaval me

irrite, a vantagem de trazer a menina para casa é

justamente a ajuda que vou ter. Nunca cuidei de uma


criança antes e só a ideia de passar tempo com ela, me

enchendo com suas perguntas esquisitas e me fazendo

lembrar de tudo o que quero esquecer, me deixa doido. Pelo


menos aqui sei que Maitê estará segura e posso seguir com

a minha rotina habitual, bem longe do radar dela.

Paro para abrir a porta e sinto, de repente, uma

mãozinha segurando a minha, o toque me assusta, e

quando olho para baixo eu a vejo arrumando o cabelo loiro

com a mão livre, como se quisesse causar uma boa

impressão. Não sei em quem.


— Nossaaaa! Sua casa parece uma mansão — ela

comenta, assim que passamos pela porta, observando ao

redor. — Eu nunca fui em uma casa assim, tão grande. Só o

lar São José, mas isso é porque várias crianças moram lá.

Aqui mora muita gente também?

E, mesmo contrariado, percebo que a cada dia que

passa, mais pessoas invadem a minha vida e a minha casa,

eu simplesmente não sei quando foi que perdi o controle

das coisas.

— Não, só Helder e eu — respondo, sem dar mais


detalhes.

Tento me esquivar da mão pequena, mas a menina

aperta firme, me obrigando a continuar assim.


— Helder é seu filho? — pergunta, enquanto seguimos

pelo corredor, na direção da sala de jantar.

A dúvida dela poderia até ser engraçada, se eu não

estivesse tão atordoado com toda essa merda que está

acontecendo desde que Sofia resolveu ressurgir das cinzas.

Ainda não tive tempo para pensar sobre tudo que ela disse

ou sobre o que faz sentido nessa história toda.

Principalmente porque a menina não parou de falar nem por

um minuto.

— Meu mordomo — digo.

— O que é um modomo?

Deus, me dê paciência! Por que logo eu, que não sou

calmo e nunca lidei com uma criança na vida, preciso passar

por essa provação?

— Mordomo. É ele quem administra a casa.

Enquanto a garota repete a palavra em voz baixa,

meus olhos encontram os de Anabela no topo da escada,

seus cabelos estão presos outra vez e a expressão em seu

rosto demonstra confusão. Com tudo o que aconteceu,

acabei não me despedindo dela, e agora estou retornando

para casa com uma criança a tiracolo.


Sei bem que não prometi nada a ela e deixei claro que

não estava pronto para me envolver romanticamente com

alguém, mas também não esperava que isso fosse acontecer

e que me veria em uma situação como essa, logo depois da

tarde que passamos juntos. Caso contrário não a teria

arrastado para essa bagunça toda.

Anabela desce os degraus, mas para onde está

quando vê a garotinha, atrás de mim.

— E quem é ela? — a menina pergunta, abrindo um

sorriso cheio de dentes. Na verdade, não tão cheio assim, já

que falta um dos da frente.

Estudo as expressões de Anabela, buscando entender

o que passa em sua cabeça e noto que ela olha de mim para

a garota algumas vezes, provavelmente tentando entender

o que está acontecendo.

Como não respondo, ela decide fazer isso por si

mesma.

— Me chamo Anabela, sou a governanta da casa. Qual

é o seu nome? — pergunta, abrindo um sorriso e fingindo

naturalidade.
— Maitê.
Anabela se aproxima dela e volta a agir como de

costume, toda gentil e educada.

— Que nome lindo você tem!

— Obrigada, eu também gosto muito do seu.

Anabela me encara por um segundo, mas não posso

falar sobre isso agora, não tenho a menor condição de

explicar o que nem eu entendo.

— Depois conversamos — falo, entregando Maitê e

suas coisas para ela, que a recebe, sem perguntar mais

nada. — Ela vai ficar com você e os outros. Peça a alguém

que prepare um quarto, por favor, e explique isso ao Helder.

Eu preciso subir e, quem sabe, desaparecer.

Passo por elas, subindo a escada. Sei que devo parecer

um babaca arrogante agora, mas estou prestes a ter um

surto. Preciso de um banho e de algumas doses de uísque

para evitar esses pensamentos repetitivos que estão me

torturando.

Enquanto subo os degraus devagar encaro o teto alto,

questionando Deus sobre o que fiz de tão ruim para merecer

tudo isso.
Minha vida já não ia mal o suficiente? Se é que o que

eu fazia pode ser considerado vida, preso dentro dessa casa,

sozinho, consumido pelo passado. E então, quando Anabela

chegou e comecei a me abrir, devagar, vejo tudo

desmoronar de novo. É como se o próprio universo tivesse

determinado que Matteo Viturino nasceu para se foder.

Eu me lembro de Sofia mais uma vez, a mulher linda e

enérgica com quem me casei um dia e a comparo com a

pessoa em que se transformou, sua pele ressecada e os


olhos fundos envoltos pelas olheiras, jamais vão sair da
minha cabeça.

No passado, ela fez com que eu me afundasse em


amargura e sofrimento, cada vez mais fundo e tudo o que

eu queria era sumir. Sofia me assistia ruir aos poucos e


aquilo só parecia a deixar mais forte e, quando pedi o

divórcio, ela não hesitou em desferir seu último golpe,


afirmando que abortou a criança, fazendo com que eu

carregasse também a culpa por essa morte, todos esses


anos. Mais um fardo que tive sobre meus ombros.

Sofia é como um tornado, que passa destruindo tudo o


que toca pelo caminho, cruel e Incontrolável. Ela fez o
mesmo com a menina, sua própria filha, quando a
abandonou em um maldito abrigo.

Soco a parede do corredor com força e sinto a dor


aguda aliviar um pouco a revolta em meu peito, mas esse

alívio não dura mais que cinco segundos, antes que a


angústia retorne com força total, dilacerando meu peito.

Mesmo sabendo que Maitê não é minha filha, ainda assim é


uma Viturino, que poderia ter tido tudo, família, carinho e a

melhor educação, mas precisou passar cinco anos sozinha,


por puro egoísmo da mãe.

Mesmo agora, em seu leito de morte, Sofia usou a


menina para conseguir o apoio dos pais. Ela segue usando e

manipulando as pessoas, como fazia antes. Não acredito em


seu arrependimento e em nenhuma palavra que saia

daquela boca imunda, ela destruiu minha família um dia e


continua ferrando com tudo em seu caminho.

Só de pensar nisso, em tudo, sinto meu estômago se


embrulhar. Corro até o meu banheiro, sentindo o líquido

ácido subir pelo esôfago, abro a tampa do vaso sanitário e


vomito o que restou da minha última refeição.
Sofia disse que queria fazer alguma coisa boa pela
garota antes de morrer e agora já está feito, então que

morra logo de uma vez. Não me surpreenderia se mesmo de


outro plano espiritual ela pudesse me atormentar.

Quando volto para a mansão, depois de me trocar e


colocar outra vez o uniforme, me deparo com um verdadeiro

caos na cozinha. Elis e Suzi falam alto e estão agitadas,


enquanto Helder toma uma xícara de café e tem o

semblante de óbvia tensão.

— O que está acontecendo aqui? — pergunto,


imaginando que estejam fofocando sobre Matteo e eu. Sabia

que deveríamos ter sido mais cuidadosos.


Elis se vira para me encarar e me puxa pelo braço,
fazendo com que me aproxime do trio.
— Você não vai acreditar no que aconteceu — fala,

criando suspense. — O Presidente saiu! Saiu mesmo, de


carro com o Timóteo.

— Como assim saiu?


Estávamos juntos até agora a pouco, ele não

mencionou nada a respeito, então não consigo encontrar


uma explicação lógica para o que estão dizendo.

— Isso mesmo que ouviu, sabe a falecida senhora


Viturino? — Suzi pergunta, dirigindo um olhar desconfiado

ao Helder. — Pois bem, ela não está morta!


— O quê?

O comentário me pega de surpresa e apenas os

observo, sem entender bem de onde Suzi tirou essa ideia


absurda.

— É sério. Eu ouvi o Presidente falando com o Helder


que ia ver a senhora Clarissa, a pedido dela. E ele chamou a

esposa de vaca, acredita?

— Helder? — Encaro o velho sentindo o desespero

tomar conta de mim.


Como assim ele ainda tem uma esposa?

O mordomo suspira, resignado.


— Elas não entendem nada e ficam falando, não é

bem assim. Primeiro, deduziram sozinhas que o demônio


tinha morrido, o senhor Presidente é divorciado — ele diz,

me encarando. — Vocês já ouviram sobre a traição, quando


ele descobriu se separou, por isso falam como se ela

estivesse morta, mas é no sentido figurado.

Meu Deus do céu…

Eu me sento em uma das cadeiras e deixo meu corpo


se afundar, sentindo o peso da revelação.

— E ele nunca sai dessa casa, mas foi correndo

quando ela ligou? — questiono, e não consigo evitar o tom


acusatório.

— Não foi assim. Quem ligou foi a senhora Clarissa e


disse que era assunto sério. — Ele meneia a cabeça,

parecendo preocupado. — Espero que tudo fique bem e,


Anabela, tenho certeza de que ele vai explicar tudo quando
voltar.

Helder deixa a cozinha e eu fico aqui, refletindo sobre

o impacto dessas descobertas. Ele realmente não é casado e


isso me deixa aliviada, mas ainda assim mentiu sobre uma

coisa que não deveria e saiu sem nem ao menos se despedir.


E, sim, Matteo não me deve explicações e é por isso
que não vou cobrar nada, mas ainda assim dói e me deixa

decepcionada.

Ele retorna no mesmo dia, mas já passa das onze da

noite. Helder já foi dormir e Suzi e Elis foram para casa, eu


continuei esperando, queria me encontrar com ele, olhar em

seus olhos e conseguir talvez, mensurar o que essa coisa


entre nós significa, sem tem de fato alguma relevância.

Mas não. Matteo voltou com uma garotinha e


simplesmente a atirou para cima de mim, sumindo no

próprio quarto sem me dar sequer uma explicação sobre a


criança.

Caminho com Maitê ao meu lado, até um dos quartos


de hóspedes. A menina observa tudo pelo caminho, fazendo

um comentário ou outro sobre o assoalho e as cortinas


bonitas.

A menina loirinha e tagarela tem os mesmos olhos


que Matteo, e como ele foi ver a ex-esposa e voltou com ela,

só consigo imaginar que seja sua filha. Não existe outra


explicação.
Respiro fundo, tentando conter minha raiva para que
ela não perceba. Matteo não me prometeu nada e eu não

tinha que saber sobre seu passado, não era da minha conta.
Mas além de mentir sobre a morte da esposa, esconder uma

filha? Acho que isso é demais.

Além disso, Matteo não coloca os pés para fora desta

casa, mas logo que a safada chama, ele vai correndo.


Provavelmente ainda ama muito essa mulher para agir

desse jeito, e eu sou só um curativo sobre um ferimento


aberto.

Abro a porta do quarto para que Maitê possa ver, a


menina observa os móveis, ainda do lado de fora, depois me

encara.

— Eu vou dormir aqui sozinha? — pergunta.


— Isso, acho que sim — falo, afinal, não recebi

nenhuma instrução.

Maitê entra no cômodo grande e vai até a cama,


depois se senta sobre o colchão de molas.

— É muito bonito — ela diz, mas percebo que está


segurando o choro.
Eu me aproximo dela e me sento ao seu lado na cama,
Maitê abaixa a cabeça e seca o cantinho dos olhos com os

dedos, cheia de delicadeza. Meu coração fica apertado.

— Está tudo bem com você? — Talvez ela esteja


sentindo a falta da mãe.
— É que não gosto de dormir sozinha — ela assume e

aperta os olhinhos azuis.

As lágrimas escorrem pelo seu rosto e deixam seus


olhos vermelhos. Ergo seu queixo com as mãos e seco seu
rosto, depois coloco seus cabelos dourados para trás dos

ombros.
— Por quê? Você tem medo?

Ela faz que sim, decididamente.

— Fica tudo escuro. No lar a Dona Cleonice sempre


deixava uma luz no corredor.

Lar? Que lar? Isso não faz o menor sentido.


— Você morava onde, Maitê?

— No lar São José. E tinha muitas meninas que


dormiam no mesmo quarto que eu — ela fala.
Então Matteo a buscou em um abrigo para crianças.
Talvez não seja filha dele, como imaginei, Matteo pode ser
frio às vezes, mas tenho certeza de que não deixaria sua
própria filha crescer sem família.

— Talvez eu possa resolver isso, tá bom? Vou pensar


em uma forma.
Ela envolve minha cintura com um abraço apertado, e
o choro dá lugar a um sorriso.

— Obrigada!
— Tudo bem. Não precisa agradecer — respondo,
dando tapinhas em sua cabecinha loira.

Maitê pressiona a barriguinha quando seu estômago


ronca. A pobrezinha deve estar faminta.
— Está com fome, Maitê?

— Sim — responde, com um sorriso sem graça.


— Então vamos para a cozinha, vou preparar alguma
coisa para você comer. — Estendo minha mão para ela e
Maitê me dá a sua, antes de pular da cama para o chão.

Na cozinha, esquento o jantar para a menina, que me


espera sentada à mesa. Ela é bem falante, quer logo saber
há quanto tempo trabalho aqui, quantos anos eu tenho e até
quem são meus irmãos. Matteo não aparece mais, nem para

saber se resolvi as coisas sobre a pequena.


O senhor Helder entra na cozinha uns vinte minutos

depois, quando a menina já limpou o prato. Ele está


vestindo um roupão e pantufas, mas provavelmente o
falatório da garota o acordou. Helder parece tão surpreso
quanto eu ao encarar Maitê.

— Mas quem é essa princesinha aqui? — ele pergunta


para mim, mas olha diretamente para ela.
— Essa é a Maitê — falo.

Helder me encara por um segundo, como se pudesse

encontrar a resposta em meu rosto, então dou de ombros


sem que ela veja.
— Que linda, Maitê. Você veio com o Presidente?

— O Presidente? — Ela faz uma careta engraçada. —

Não, eu não gosto de política — diz, arrancando risadas,


minhas e de Helder.
— Como você é esperta! Um encanto! Mas me referia
ao Presidente Viturino, Matteo.

— Ah, sim, o moço. O que ele é da vovó?


Helder parece pensar a respeito e volta a me encarar,
mas eu sei tanto quanto ele. Ou seja, nada.

— Quem é sua avó?


— Tenho duas. Elas são bem legais, mas eu não

lembro os nomes agora — explica, como se fosse muito


comum.

— Não lembra os nomes?


— É que eu conheci as duas ontem, uma me tirou do

lar e a outra me mandou pra essa mansão.

Pela estatura, a menina deve ter cerca de cinco anos,


talvez seis. Mas acredito que o fato de ter crescido em meio

a outras garotas, deva ter a deixado tão esperta, não me


lembro de saber o que era política nessa idade, ainda que
ela talvez não entenda a dimensão da coisa, conhece o
nome, isso já é mais que a maioria.
— E a sua mãe? Como ela está? — Acho que Helder

está na mesma que eu, mas pelo menos tem coragem para
fazer as perguntas certas.

— Acho que virou adubo.

Helder acaba se engasgando com saliva e tosse tanto


que chego a ficar preocupada. Sirvo um copo d'água para o
homem, que ficou com o rosto vermelho pela crise.

— O senhor tá bem? — Maitê pergunta.


— Sim, claro, me desculpe por isso. É que eu não

esperava essa resposta, você disse que ela virou adubo?

A menina agora parece pensativa.


— É, eu não tenho mãe, ela morreu quando eu era

bebê. Foi o que a diretora do lar falou… E quem morre, vira


adubo. — Maitê parece cansada do assunto, porque se vira
para mim logo depois. — Posso beber água também?

— Claro, querida.

Pego um copo no armário e encho de água, depois


entrego em suas mãozinhas. Helder coça a cabeça,
preocupado, ele está tentando reunir as peças desse
quebra-cabeça, assim como eu.

— O Presidente não deve ter comido nada, senhorita


Gonzales. Pode preparar um prato e levar para ele?
— Tudo bem — respondo, contrariada.

No momento não estou muito a fim de falar com


Matteo.
— Certo. Vou me recolher então, a Maitê já está
instalada?

— Está, sim, já preparei o quarto para ela — falo.


— Mas eu não quero dormir lá sozinha. Você disse… —
Ela me encara, preocupada.

— Não vou te deixar dormir sozinha, tá bom? Pode ir,


senhor Helder, eu cuido dela.

Helder se despede de nós e vai para o seu quarto.

Maitê me diz que já tomou banho hoje, por isso depois


de voltar com ela para o quarto de hóspedes, eu a visto com

o pijama que encontro em sua mochila desgastada e a levo


para escovar os dentes.
— Você pode fazer uma trança no meu cabelo? —
pergunta, quando se senta na cama.

— Posso. Se vire, então. — Apago a luz e acendo o


abajur perto da cama.
Começo a trançar as mechas loiras e macias,
pensando em tudo o que essa menina deve ter passado até

chegar aqui.

— Você tem mamãe e papai, não tem? Já que disse


que tem uma irmã.
— Eu tenho, sim.

— Eu queria sair do lar para ter uma família também,


mas acho que ninguém me quer — Maitê diz com o queixo
erguido, mas fala de maneira direta, como se isso não a
chateasse.

— Por que diz isso?

— Porque a vovó prometeu que eu ia morar na casa


dela, mas agora me mandou para cá com esse moço que
não gosta de conversar. E ela só ficou comigo um dia, acho
que já cansou de mim…

Meu coração dói com sua constatação, às vezes as


pessoas não entendem o quanto uma criança pode
compreender as coisas e sofrer com suas próprias
conclusões.

Termino sua trancinha e amarro na ponta, depois faço


um carinho em sua cabeça e me levanto para fazer com que
se deite na cama. Maitê coloca suas pernas para debaixo do
cobertor e eu a cubro até o pescoço.

— Tudo vai se resolver e se sua avó disse isso, ela vai


cumprir. E sobre o moço que não gosta de conversar, ele
também não falava comigo, no começo.
— E o que você fez? — ela pergunta.

— Insisti um pouco e hoje somos amigos. Quer que


apague o abajur?
Ela faz que não com a cabeça e segura minha mão,
antes que eu me afaste da cama.

— Vou te esperar acordada, tá?

— Tá bom. Vou pegar meu pijama e escovar os meus


dentes, mas venho rapidinho.

Volto para a cozinha e preparo o prato para Matteo,

como o senhor Helder pediu.


Nosso último encontro foi maravilhoso, e o Presidente
realmente parecia mais leve e feliz, enquanto se
comportava como o vendedor de chocolates que se
apaixonou pela mocinha. Nós transamos sobre a relva úmida

e nunca me senti tão desejada em toda minha vida. Parecia


ser possível que alguma coisa surgisse, mesmo que ele
tenha deixado claro que não. Aquele momento me deu
esperanças.

Mas agora tudo está diferente, ou igual era antes de


nos beijarmos. Ele é o mesmo de sempre, escondido em seu
quarto, ou na biblioteca, fugindo das pessoas e dos
problemas, carregando o peso do mundo nos ombros e sem

se abrir com ninguém.


Subo a escada com a bandeja nas mãos e bato na
porta do quarto, mas ele não me pede para entrar, como de
costume. Ao invés disso, caminha até a porta. Ouço seus

passos do lado de dentro e então ele abre uma pequena


fresta, só o suficiente para me ver.

— Trouxe seu jantar.

— Anabela, eu não quero comer, me sinto péssimo.


Não é uma boa hora. — Sua voz é lenta e entrecortada e
percebo que está bêbado.

— Podemos conversar, parece que você bebeu demais.

Precisa de ajuda? — ofereço, ainda que esteja chateada com


ele.
— Não — seu tom agora é autoritário, diferente do
modo como me tratou nos últimos dias —, eu disse que

quero ficar sozinho.

Suas palavras me magoam, não é que ele não tenha


me tratado exatamente assim no começo, mas agora,
depois de tudo que aconteceu, não parece certo.

— Tudo bem, então. Se importa se eu dormir aqui na


casa hoje, com a Maitê? Ela não quer ficar sozinha.
— Não me importo. — Matteo fecha a porta de uma
vez e respiro fundo para conter a vontade de gritar com ele

e falar algumas verdades.

Desço outra vez com a bandeja, guardo o prato na


geladeira e depois vou até meu chalé pegar um pijama,
minha escova de dentes e o livro, para ler caso eu não

consiga dormir.
A noite está fria, como sempre, mas acho que já estou
começando a me acostumar com as baixas temperaturas da
montanha. Volto para o casarão minutos depois, apago as

luzes e tranco a porta dos fundos.

No quarto de hóspedes, encontro Maitê sentada na


cama, esperando, como disse que faria.
— Que bom que você voltou, pensei que não viria —

ela fala, aliviada quando me vê.

— Mas eu disse que ia voltar.


Tiro os sapatos e me troco no banheiro, depois escovo
meus dentes e desfaço o coque.

Amanhã é o dia que os novos funcionários irão chegar


e, com nossa nova hóspede, acredito que será um dia longo
e muito cansativo.
Eu me deito com ela na cama e Maitê se aproxima de
mim, se aninhando aos cobertores. Em menos de cinco

minutos sua respiração fica mais lenta e pesada e ela


adormece. Apesar de já ser madrugada, meu sono
simplesmente não vem. Além disso, sinto falta do meu sofá-
cama.

Fico pensando em Matteo lá em cima, mergulhado em


suas amarguras e segredos. Queria fazer alguma coisa, mas
Matteo nunca me diz tudo, ele só me mostra o que quer e as
últimas revelações só provam isso.

Pego o exemplar de Persuasão sobre a cômoda e o


abro onde deixei o marcador. E lá está a carta do Capitão
Wentworth outra vez, a mais linda declaração de amor que
já li, em toda minha vida.

"…Sou metade agonia, metade esperança…"


Eu também, capitão, eu também.
Deixo Maitê dormindo quando saio do quarto, ainda
nem são seis horas da manhã.

Elis e Suzi ainda não chegaram, mas começo a

preparar o café. O senhor Helder, por outro lado, já está de

pé, esperando os novos funcionários que chegarão a

qualquer momento, sei disso porque ouço seus passos no


cômodo ao lado. Penso em Matteo lá em cima, sozinho. Pelo

que vi na noite passada, ele ainda deve estar na cama.

— Bom dia, senhorita Gonzales — o senhor Helder me


traz de volta à realidade.
— Bom dia, o senhor dormiu bem?

— Não muito. Fiquei preocupado com o menino

Matteo. Ele comeu?

Meneio a cabeça.

— Se continuar assim, terei que avisar seus pais. Ele

não pode ficar sem se alimentar — Helder serve café preto


em uma xícara para si mesmo.

— Os pais dele… Como eles são? — pergunto.

O senhor Helder sorri, saudoso, e percebo que sente

muito carinho pelo casal Viturino.

— Eles são ótimos, senhorita, pessoas muito boas. O


senhor Leônidas é um gênio, um matemático e

empreendedor respeitado no país todo. Ele é mais discreto,

assim como o Presidente. A senhora Clarissa, por outro lado,

é muito alegre e brincalhona. Cat se parece muito com a

mãe, assim como Miguel também parecia. — Helder assopra

seu café antes de beber o primeiro gole.

— Eles eram muito próximos? Matteo e Miguel?


— Ah, sim, com certeza, passavam todo o tempo

juntos. Eram também muito parecidos fisicamente.


Melhores amigos, eu diria — responde, e percebo o tom de

tristeza em sua voz.

Helder está com a família há muitos anos, com certeza

sentiu muito a morte do rapaz. Coloco o leite para ferver e

começo a cortar fatias de melão sobre a tábua, na pia.

— Deve ter sido muito difícil para ele, não é? Eu tenho

uma irmã, a Julieta, e somos como unha e carne. Não


imagino minha vida sem ela.

— Sim — ele concorda. — Foi e ainda é muito difícil, o

Presidente fica inconsolável nos aniversários da morte de

Miguel. Ele não só perdeu o irmão, mas se decepcionou

muito. O menino Matteo nunca mais foi o mesmo…

Recentemente, cheguei a acreditar que estivesse melhor,

mas agora aconteceu isso.

A campainha toca, e o senhor Helder termina seu café

em um único gole.

— Devem ser eles. Vou conversar com os três, falar


sobre as regras da casa, salário e outros detalhes, antes de

os apresentar à senhorita.

— Tudo bem.
Helder acerta seu terno e caminha na direção da

porta, mas para antes de sair da cozinha.

— E a garota? Como está? — pergunta, se lembrando

da nossa pequena hóspede.

— Está bem, dormindo como um anjo — digo, me

lembrando dela.

— A senhorita passou a noite com ela?

— Sim. Ela não queria ficar sozinha — explico.

— Foi muita bondade sua. Todos nessa casa têm muito

o que agradecer a senhorita, está fazendo muito mais que

sua obrigação.

— Isso não é nada, foi apenas um combinado entre


nós duas. Também já fui criança e sei como é desagradável

estar sozinha em um ambiente novo.

Ele faz que sim com a cabeça.

— Mesmo assim — insiste.

Helder me deixa sozinha com meus pensamentos e

vai receber os novos integrantes da nossa equipe. Enquanto

isso, adianto ao máximo o café da manhã e coloco um bolo

no forno para assar.


Vinte minutos depois o senhor Helder nos chama para

os conhecer, incluindo Timóteo. Os três ficam de pé na sala

de visitas, formando uma fileira.

— Bom dia a todos — cumprimento, e eles me

respondem em uníssono.

— Essa é a senhorita Gonzales, governanta da casa —

Helder fala, apontando para mim. — Elis e Suzi são

responsáveis pela limpeza e o Timóteo é nosso motorista.

Acenamos, os cumprimentando, e Helder volta a falar.

— Essa aqui é a senhorita Helena — Helder apresenta

a moça da esquerda. Ela tem olhos intensos e o cabelo loiro


está perfeitamente alinhado em um coque justo, percebo

também uma cicatriz grande no rosto, provavelmente

resultado de um corte.

— Muito prazer, senhorita Gonzales, Elis, Suzi e

Timóteo — ela fala em tom moderado.

Com certeza Matteo aprovaria sua discrição.

— A senhorita Mariana, que trabalhava em um

restaurante na cidade. Ela pode te ajudar na cozinha, se

necessário, senhorita Gonzales. — Helder aponta para a

mulher morena e alta, que está no meio.


— Muito prazer em conhecer todos vocês, estou muito

animada para começar.

— E, por último, mas não menos importante, o senhor

Pedro, que vai cuidar dos serviços gerais e da manutenção

da casa — Helder finaliza, apresentando o homem alto e

negro. Não consigo mensurar quantos anos tem, mas os

cabelos grisalhos me sugerem uns quarenta e cinco, ainda

que pareça mais jovem.

— Muito prazer — ele diz, um pouco acanhado.

O senhor Helder me lança um olhar antes de se

afastar um passo, essa é sua deixa para que eu assuma.

— O prazer é nosso por ter vocês aqui. Como podem

ver, é uma casa grande, e precisamos de ajuda para manter

tudo em ordem. Ainda que eu seja a governanta, faço um

pouco de tudo e sou responsável pelas refeições, assim

como o senhor Helder é quem cuida das necessidades

pessoais do Presidente.

— E onde ele está? — Mariana pergunta, me

interrompendo. — O Presidente.

— O Presidente é um homem reservado, por esse

motivo nos encarregou de falar com vocês. Ele não gosta de


ser incomodado, acho que o Hélder deve ter falado sobre

isso com vocês — explico.

— Sim, é claro — ela concorda, aquiescendo.

— Ótimo. Aos poucos vamos todos nos conhecer

melhor e tenho certeza de que vamos nos dar muito bem,

logo vão compreender o funcionamento da casa. Pois então,

vamos começar logo. Timóteo, por favor, apresente a casa

ao senhor Pedro e mostre a ele onde ficam as ferramentas e

os equipamentos de jardinagem.

— Sim, pode deixar.

Timóteo e Pedro caminham devagar na direção da


porta, já entretidos em uma conversa animada.

— Helena e Mariana, vocês podem ir com Elis e Suzi.


— Me viro para falar com as duas, que estão observando

tudo, atrás de mim. — Mostrem tudo a elas, exceto a


biblioteca e o quarto do Presidente, é claro. Eu vou terminar

o café e o servir lá em cima hoje, porque ele está indisposto.


— Tudo bem, Anabela — Suzi responde, prestativa.

— Depois disso vocês quatro podem limpar a área da


piscina. Acho que o Presidente não vai usar hoje, então
vamos aproveitar. Queria eu mesma mostrar a elas o serviço,
mas tenho que cuidar da nossa hóspede — falo, explicando.

— Que hóspede? — Elis pergunta, curiosa.


Como se fosse invocada por essas palavras, Maitê

aparece parada aos pés da escada, com a trancinha toda


bagunçada e coçando os olhos, ainda vestida com o pijama

e de pés no chão.

— Aquela hóspede ali — digo, apontando para ela.

Mas que porra de dor de cabeça é essa que mais se

parece com pancadas balançando o meu cérebro? Ou talvez


sejam batidas mesmo.

Batidas na porta.

Abro os olhos e percebo que dormi por cima das

colchas, com a mesma roupa que cheguei. Meu pescoço


parece travado em um torcicolo e simplesmente não
consigo virar.

— O que é? — pergunto, de onde estou.

— Sou eu, Anabela. — Ouço sua voz doce vinda do


outro lado.

Penso em pedir que ela vá embora, mas não quero os


preocupar ainda mais. Se eu continuar aqui dentro, Helder

vai ligar para os meus pais, como fez da primeira vez que
me afundei assim, e tudo que não quero agora é a família

toda reunida aqui. Além disso, preciso mesmo comer


alguma coisa.

— Pode entrar.

Anabela abre a porta devagar e entra com a bandeja.

O cheiro do pão caseiro me alcança antes dela e meu


estômago se revira outra vez.

— Você dormiu? — ela pergunta, deixando a bandeja


aos pés da cama.

— Sim. Acabei dormindo de sapatos e tudo.


Não consigo olhar para ela por causa do pescoço, mas

posso imaginar que esteja irritada com meu modo de agir.


Eu não a culpo, também estaria puto em seu lugar.
— Quer ajuda com alguma coisa?

— Eu consigo fazer minhas coisas sozinho, Anabela,


não estou tão mal assim — respondo, em um tom de voz

mais grosso que o planejado.


— Tudo bem, bom apetite. — Ouço os passos de

Anabela, seguindo para fora e ela faz questão de fechar a


porta com força.

Tudo bem, eu mereço isso. Ainda mais que deve achar


que não quis olhar na cara dela.

Primeiro me esforço para beber o café, porque preciso


de energia. Depois disso a coisa fica bem mais fácil e até

como um pãozinho e as fatias de melão que Anabela trouxe.

Aos poucos, massageando com a palma da mão


aberta, consigo voltar meu pescoço ao lugar e sigo para o

banheiro, onde tomo um banho demorado e um analgésico


para a dor de cabeça. Me lembro da menina no andar

debaixo e sinto uma pontada de ansiedade, que logo se


transforma em um tremor incômodo. Não consigo sequer
cogitar a possibilidade que seja minha filha, mas de todas as

formas, me sinto em dívida com ela e por isso, só de pensar


na garota me sinto pior.
Deixo o quarto e vou para o escritório, planejando

ocupar minha cabeça e esperar que o tempo passe.


Enquanto cruzo o corredor, vejo Anabela pela janela,

caminhando lá fora. Sei que tenho sido um idiota com ela e


que preciso me desculpar, mas não consigo fingir que estou

bem quando na verdade me sinto à beira de um colapso. Só


espero que ela não sofra por isso, a raiva, eu suporto, mas

não quero imaginar que a magoei com a distância que


impus.

De repente, Maitê aparece e corre atrás de Anabela,


saltando de um lado para o outro. As duas balançam suas

mãos dadas enquanto seguem de volta para casa.


Abandono meu posto na janela e quase esbarro em

uma mulher, em meu caminho. Eu nunca a vi antes, mas


considerando seu uniforme, deve ser uma das novas

funcionárias.

— Bom dia — ela diz de um jeito estranho, me

olhando de cima a baixo.


Merda! Eu disse que não queria ver ninguém

passeando pela minha casa, Anabela me prometeu que


cuidaria disso.
— Bom dia.

Passo por ela e sigo para o meu escritório. Não posso

culpar Anabela, já que ela está cuidando da garota por mim.


Nem posso imaginar o que faria com ela caso Anabela não

estivesse aqui.
Vou falar com o Hélder sobre isso, para estabelecer

limites. Será que estou pedindo algo tão difícil assim?


Apenas quero que se mantenham fora do meu caminho.

Eu me sento na poltrona, mas minha cabeça continua


latejando no ritmo dos passos acelerados, que sobem ou

descem a escada.
Por que raios essa mulher está batendo os pés com

tanta força?

Abro a porta para exigir silêncio e dou de cara com a


garota, segurando uma flor vermelha estendida, que oferece
para mim.

— Trouxe pra você — ela diz com um sorriso


exagerado.

Olho para o final do corredor, procurando por Anabela,

mas a menina está sozinha.


Seguro a flor, esperando que com isso ela vá embora,
mas ao invés de dar meia volta, ela simplesmente passa no

meio das minhas pernas e entra em meu escritório, como se


tivesse sido convidada.

— O que você faz aqui? — ela pergunta.


— Trabalho.

A menina corre até minha mesa, levanta a perna e

apoia os braços na cadeira para se sentar.


— Entendi.

— Você tem que sair, eu não gosto de crianças — digo,


talvez assim ela me deixe em paz.

— De que você gosta? — Maitê pergunta, ignorando


meu comentário maldoso.

— Não sei, garota.

A menina bate as mãozinhas sobre os joelhos e me


encara parecendo irritada.

— Meu nome é Maitê, não gosto que fique me

chamando de garota.
Esse sim é o fim do mundo! Agora estou sendo
repreendido por uma menina de cinco anos.

— Tá bom, Maitê. Pode ir agora?


— Eu gosto de galinhas — ela continua,
simplesmente.

Por um momento tento entender a que ela se refere


exatamente, mas é uma tarefa difícil.
— Galinhas? — Santo Deus, crianças são mesmo
muito estranhas.

— É. Lá no lar tinha um monte delas, mas minha


preferida era a Fifi. — Ela faz uma pausa agora e a expressão
em seu rosto muda. — Só que um dia a Fifi sumiu, e eu
fiquei muito triste.

Pobre Fifi, já imagino o final da história.

— Você sabe o que aconteceu com ela? — pergunto,


mas não sei por que estou interessado nisso.

— Não.

Eu me aproximo dela e apoio meu corpo na mesa,


cruzando os braços sobre o peito.
— O que você almoçou no dia seguinte?

Ela faz uma careta e abre um sorriso, depois meneia a


cabeça.
— Não lembro. Já faz tempo.
— Aposto que foi galinha ao molho pardo, talvez
frango frito…

Ainda assim, Maitê não parece entender o que estou


dizendo e suspiro, desistindo da maldade, a menina não
tem culpa de ter feito minha vida se transformar em um
caos.

— Você devia trazer galinhas pra cá, ou talvez um


cachorrinho.

— Então você me trouxe a flor para pedir as galinhas?

— pergunto.
— Não. Trouxe pra você sorrir um pouco, eu não dizi?

— Não disse — corrijo.


Nós dois ouvimos Anabela ao mesmo tempo e

olhamos para a porta, antes mesmo que ela apareça diante


do escritório. Ela leva a mão ao coração, aliviada e entra
para pegar a menina no colo.

— Graças a Deus te achei. Eu não disse que era para

me esperar na sala de televisão? — ela pergunta.


— Desculpa. — Maitê faz cara de arrependida. — Eu
vim falar com o moço.
— Tudo bem, vamos assistir aos desenhos agora. —

Anabela se vira com Maitê no colo, sem me dirigir uma


única palavra que seja.

Eu não gosto que ela me trate assim, com indiferença.


Preciso me explicar e resolver essa situação.

— Anabela, quero falar com você depois — digo,


tentando atrair sua atenção.

— Estou muito ocupada hoje, Presidente, quem sabe


amanhã… — Ela sai para o corredor, me ignorando.

— Precisa ser hoje, Anabela.

— Eu disse não! — ela fala alto, porque já está quase


alcançando a escada.
Maitê acena para mim do colo de Anabela e as vejo

desaparecer escada abaixo.

Merda…
Helder é quem traz meu almoço mais tarde. Ele entra

no escritório como uma sombra, silencioso, e deixa a


bandeja sobre a mesa. Meu mordomo já está prestes a sair
quando eu o chamo outra vez, sei que ele se preocupa
comigo, mas não quer ser inconveniente e perguntar.
— Senta aqui um pouco, por favor. Quero contar o que

aconteceu — digo a ele.

Helder se senta na cadeira diante de mim e se inclina


um pouco, ouvindo com atenção.
— Sofia está mesmo doente, a beira da morte —

conto. — Nem parece a mesma pessoa.

— Talvez seja algum castigo — Helder responde,


fazendo o sinal da cruz em seguida.

Não sei se é o caso, mas ela definitivamente não teve


a vida feliz que com certeza planejava.

— Sofia mentiu sobre aquele bebê, Helder. Há cinco


anos ela me disse que abortou, mas era tudo mentira, ela

deixou a menina no orfanato, enganou a todos nós, inclusive


a própria família e foi viver, fazendo programas.
— Meu Pai amado! Então a garota…

— A Maitê é minha sobrinha. Não acredito que seja

minha filha, porque Sofia e eu não tínhamos mais um


relacionamento direito e eles já estavam me traindo.
— Que mulher ordinária! — Helder fecha as mãos em
punho, tomando minhas dores.
— Mesmo assim, a pedido de minha mãe fiz um teste

de DNA, o resultado vai sair hoje ou amanhã, então é isso.


Estou esperando para confirmar.

Helder alisa seus cabelos brancos e assente em

concordância antes de se levantar.


— Estou torcendo para que tudo fique bem,
Presidente. Sabe que pode contar comigo em qualquer
circunstância.

— Eu sei, sim. Obrigado por isso e desculpe por te


deixar preocupado. Fiquei apavorado com tudo.
— Não tem problema. Qualquer coisa que precisar,
estou à disposição lá embaixo.

Helder me deixa sozinho outra vez e consigo almoçar


um pouco. Anabela fez macarrão com salmão e brócolis hoje
e o prato está divino, apesar da minha falta de apetite.
Mais tarde, Catarina me liga por videochamada, ela

exibe a barriga do outro lado, que, segundo ela, está baixa,


sinal de que o bebê já está se encaixando.

— Está conseguindo ver? — ela pergunta, virando de

um lado para o outro.


— Acho que sim.
Minha irmã se senta outra vez e ajusta a tela do
notebook.

— E então, como se sente? — ela pergunta, me


sondando.

— Péssimo, é claro. Você já sabe sobre tudo o que


aconteceu?

— Mamãe me contou — ela diz. — Como foi rever a

Sofia?
— Não sei, eu não senti nada além de desprezo. Ela
nem parece a mesma pessoa, Cat, é como se já estivesse
morta.

— Que horror! — Catarina e Sofia nunca se deram


bem, mas minha irmã é incapaz de desejar uma coisa
dessas a alguém, ela é boa demais para isso. — E a Maitê? O
que achou dela?

— É muito falante e intrometida.

Cat cai numa gargalhada contagiante e acabo rindo


também. Sei que isso não é o que eu devia falar de uma
criança, mas estou sendo sincero, a menina é bem

inconveniente.
— Ah, Matteo, você me mata de rir! Crianças são
assim, irmão, pode ir se acostumando.

— Por favor, mantenha seu filho longe do meu

escritório. Ela veio até aqui hoje me pedir umas galinhas,


acredita?
Cat começa a rir outra vez e segura a barriga,
enquanto suas risadas ecoam do computador para o

escritório.

— Eu nem consigo imaginar uma conversa como essa


entre vocês.
— Pois é.

— Estou louca para conhecer minha sobrinha.


Esse comentário, por mais verdadeiro que seja, me faz
sentir estranho. Acho que Cat percebe, porque continua:

— Na verdade, liguei porque o resultado do exame


saiu.
— Puta que pariu, Catarina! E você me diz isso só
agora?

Meu corpo todo começa a tremer imediatamente. Não


sei se estou pronto para saber a verdade, ainda que tenha
julgado estar certo sobre a menina.
— Você quer que eu envie o envelope? — ela
pergunta, o mostrando diante da câmera.

— Abre logo isso, Catarina, pelo amor de Deus.

Catarina não precisa de mais incentivo. Ela rasga o


envelope e desenrola a folha, eu me aproximo da tela,
impaciente.

— E então?
Cat leva a mão ao coração e abre um sorriso. Eu sei o
que isso quer dizer, porque ela não sorriria se Maitê fosse
filha da infidelidade de Sofia e Miguel.

— Ela é sua filha, Matteo! A Maitê é mesmo sua filha!


Olha isso! — Ela coloca o papel na câmera, mesmo que eu
não consiga ver nada. — Parabéns!
Enquanto Cat pula na frente da câmera com o papel

em mãos e é repreendida por um Alberto muito preocupado,


meu mundo gira sem parar.

Eu sou o pai dela, porra!


Eu me lembro de quando Sofia contou sobre a

gravidez e me ajoelhei para beijar sua barriga, me sentindo


o homem mais feliz do mundo. Me lembro do momento em
que ela me disse que havia feito um aborto e da tristeza
sem fim que dilacerou meu peito. Também me recordo do
sorriso da menina hoje, sentada em minha poltrona e de
quando segurou minha mão ontem, quando chegamos.

Meus olhos encontram a flor murcha sobre minha


mesa e sinto vontade de chorar. Não posso acreditar que tive
uma filha e que ela passou cinco anos sozinha assim, sem

família e sem que eu sequer soubesse que existia.


— Matteo! — A voz de Cat me traz de volta, ela acena
com as duas mãos diante da câmera. — Você está se
sentindo bem? Ficou pálido.

— Cat… — Escondo meu rosto nas mãos e sinto as


lágrimas transbordando dos meus olhos.
— Ah, meu irmão, como eu queria te dar um abraço
agora! Não chora…

— Ela passou cinco anos em um orfanato,


abandonada. Isso é terrível. Eu sou terrível, Cat, eu não sei
ser pai, não cuido nem de mim mesmo…
— Fica calmo, Matteo, sei que você vai fazer o que é

certo e aos poucos vai se adaptar. Tudo vai ficar bem, não
pense no tempo perdido, mas sim no presente, que está aí
na sua frente agora.
Respiro fundo, tentando me recompor, porque não
posso fazer com que fique nervosa também, mas a verdade

é que não penso em futuro algum, eu só consigo me apegar


ao passado, a toda dor e sofrimento que ser minha filha,
causaram a essa menina.

— Tudo bem, Cat, eu preciso desligar agora.

— Fica bem, tá? Se cuida e cuida dela, mamãe deve


aparecer por aí logo, você sabe…

Fecho meu notebook e me encosto na poltrona, as


perguntas invadindo minha mente.

Como vou cuidar de uma criança? Eu, que vivo


trancafiado dentro dessa casa?

Como vou dizer a ela a verdade? A menina vai me odiar

quando souber que a deixei viver como uma órfã e, por mais
irritante que ela seja, não quero ser odiado por ela.
Eu só queria desaparecer agora, fugir dessa dura
realidade onde pessoas ruins destroem vidas, por puro
prazer e crianças inocentes pagam o preço pelos nossos

pecados.

Queria poder reescrever o passado dela.


Maitê.
Minha filha, que não merecia ter passado por nada
disso.
Um pouco antes…

Depois de passar algum tempo com Maitê, vendo

desenhos e distraindo a menina tanto quando posso, resolvo

levá-la para um banho, já que a bonequinha se sujou de

terra do lado de fora da casa, quando decidiu que seria


ajudante do Pedro. Ainda é bem cedo, mas, com o frio que

faz por aqui, não é bom deixar para dar banho nela a noite.

Encho a banheira do quarto de hóspedes, melhor

mergulhar a menina e esfregar direito para ficar bem


limpinha. Também preciso resolver a questão referente a

hora de dormir, não posso ficar na casa todos os dias.

— Lá no lar, eu tomava banho com as minhas amigas,

um chuveiro do lado do outro, sabe?

— Sei, você já tomou banho em uma banheira assim?

— Não, lá não tinha. Só a bacia em que a freirinha


fazia pão de queijo…

Isso me faz sorrir.

— Não é legal lavar esse pezinho sujo e depois fazer

pão de queijo na mesma bacia.

Ela ri, se divertindo com a ideia.

— Ia ser pão de chulé.

Retiro a camiseta colorida que ela está usando e a

calça de moletom, Maitê arranca os sapatos e solto seus

cabelos depois.

— Pode entrar.

Seguro em sua mão para a apoiar e Maitê entra na

banheira, as pernas se afundando completamente.

— Quantos aninhos você tem mesmo? — pergunto,


começando a ensaboá-la.
— Cinco, mas sou pequena pra minha idade. A

freirinha diz que é porque eu corro muito e gasto tudo que

eu como com minha alergia.

— Que alergia?

— Essa coisa que faz a gente correr e brincar…

— Ah! Sim… Energia.

— Issoooo. — Ela aquiesce.

— E quem é a freirinha?
— É uma das que não é freirona, como a diretora.

— Sei — respondo. Mas não entendo bem se as

freirinhas e as freironas são diferenciadas pela altura, ou se

por uma questão hierárquica. Melhor deixar pra lá.

Passo a bucha nas costas dela e depois nos ombros,

esfrego as pernas e os braços e, quando já está toda cheia

de espuma, coloco um pouco de xampu nas mãos e começo

a esfregar o couro cabeludo da pequena.

— Esse xampu é cheiroso, não acha, Anabela? Vou

ficar cheirosa igual você.


— Acho sim, vai ficar mesmo.

Ela aquiesce, balançando a cabeça para cima e para

baixo e fazendo com que a água espirre em meu rosto.


Era pra ser só um banho, parte do meu trabalho que

agora inclui cuidar dela, mas quando ela se afunda na água

para se livrar do sabão e emerge outra vez, noto uma


pequena marca em forma de meia-lua em seu ombro. É

idêntica a marca que Matteo tem no mesmo lugar.

A constatação me deixa em choque, não tem como

essa menina não ser filha dele, sendo que tem até a mesma

marca de nascença.

Fico um pouco mais calada depois disso e Maitê

parece perceber, porque acaba diminuindo o falatório

também. Quando terminamos e visto uma roupa quentinha


na menina, retorno com ela para a sala de televisão e peço a

Elis que tome conta dela, enquanto falo com Matteo. Eu não

queria, planejava o evitar e dar o troco pela maneira com

que vem me tratando, mas diante disso, não posso ignorar

mais a conversa.

No entanto, encontro Helder no caminho, acho que foi

levar o almoço tardio de Matteo e decido expor o problema,

aflita, esperando que ele talvez tenha uma solução.

— Helder… Vem cá. — Eu o arrasto para dentro da sala

de música.
O homem me encara com curiosidade, aguardando.

— Você sabe quem é a menina? A Maitê?

— Bom, não sei exatamente, mas tenho algumas

suspeitas, claro.

Eu o encaro, com desconfiança.

— O Matteo não te disse nada?

— Ele só tem desconfianças também, nada muito

certo…

Aquiesço, compreendendo a situação.

— Olha, você não pode me perguntar como sei disso,

porque vou morrer de vergonha. Mas eu dei banho na


Maitê… E ela tem uma marca de nascença no ombro, em

formato de meia-lua…

Helder arregala os olhos, me encarando com espanto.

Penso ter ouvido um barulho na porta, então coloco a

cabeça para fora e observo o corredor, mas estamos

sozinhos.

— O menino Matteo tem uma assim, no ombro

esquerdo!

— Exatamente — respondo, me voltando para ele. —

Acha que devo contar?


— Claro que deve, é importante.

Helder realmente não pergunta como sei da marca de

Matteo, mas acredito que já suspeitasse de nós a um tempo,

então isso foi só uma confirmação.

Bato a porta do escritório e ele me diz para entrar. Eu

o encontro em frente ao prato vazio, pelo menos almoçou

dessa vez…

— Quero falar com você.

— Pensei que tivesse dito que não queria, Anabela —

responde, de mau-humor.

— Vai me culpar por isso? Você mentiu pra mim.

Matteo meneia a cabeça.

— Não quero falar a respeito agora, estou preocupado

com algumas coisas, se puder ser depois…

— Não, não pode. Acredito que você tenha

desconfianças sobre a Maitê, se é sua filha ou não — falo, de

uma vez.

Ele ergue os olhos da mesa e me encara, surpreso.

— Quem te disse isso?

— Ninguém, mas pra começar ela tem os seus olhos e

você saiu daqui, o que nunca faz, e voltou com a menina.


Era meio óbvio que fosse algo assim.

— Não é bem o que você está pensando, é muito mais

complicado que isso.

— Eu sei. Sei que sua ex-mulher te traiu — falo, me

lembrando do que ouvi antes —, provavelmente você não

tem certeza por conta disso.

Ele me encara em silêncio, não parece disposto a dar


qualquer explicação ou a dizer como se sente.

— Ela é sua filha, Matteo. Eu tenho certeza.

Agora ele ri, um riso amargo e sem humor.


— E por que você teria certeza, Anabela? Acha que
porque transamos algumas vezes me conhece bem assim e

pode deduzir isso?

Abro a boca para responder, chocada com a grosseria,


mas ele me interrompe.

— Está enganada. Você não sabe de um terço do que


me aconteceu e com certeza não pode afirmar que a

menina é minha filha, porque ela não é.

— Mas…

— Pode me deixar sozinho? Se vai ficar falando essas


bobagens, prefiro não conversar com você agora. Eu não
tenho filha nenhuma.

Mas que idiota! Saio do escritório pisando duro e não

insisto no assunto porque não sou obrigada a ficar me


humilhando por causa dos assuntos dele, deixe que

descubra sozinho, então, babaca!


Depois disso, até consigo evitar que meus

pensamentos se desviem para ele por um tempo. Me esforço


para pensar apenas no jantar que preciso preparar, na casa

enorme que tenho que coordenar e nos funcionários que


acabam de chegar.

Como elas foram arrumar a academia, porque


seguimos na ideia de limpar os cômodos que nunca

conseguimos, decido me mudar temporariamente para a


cozinha.

Elis e Suzi parecem estar gostando da minha nova


disposição, já que como maneira de passar o tempo, estou

cozinhando sem parar, principalmente depois que Maitê


chegou. Eu olho para a menina e fico furiosa ao pensar que

ele não me deixou nem explicar, como pode simplesmente


ignorar a filha assim?
Bolinhos estão lotando a mesa, pães e tortas esfriam
recém-saídos do forno e todos os bules da casa já estão

cheios de chocolate quente, e até mesmo de chocolate frio,


mas eu os aqueço novamente e novamente. Helder entra na

cozinha e encara a mesa, assustado, seus olhos se desviam


com muito pavor para uma das pilhas de pães açucarados,

que ameaça cair.

— Anabela, preciso falar com você um instante.

Eu o encaro por entre uma nuvem de farinha que


paira ao meu redor.

— Pode falar, senhor Helder.

— O Presidente está no escritório ainda e acho que a


senhorita precisa falar com ele.

Sinto meu coração acelerado, mas me recuso a tentar


outra conversa com ele, já disse tudo o que precisava e fui

completamente ignorada. Não quero falar com Matteo.


— Fale para ele que estou ocupada, cozinhando, não

posso sair daqui agora.

— Não, senhorita, ele não pediu para falar com

ninguém. Eu é que estou preocupado. Sei que está brava,


mas ele… Acho que suas suspeitas se confirmaram e ele

está transtornado.

— Minhas suspeitas… A Maitê?

— Sim, ouvi uma garrafa se quebrando, eu até queria


entrar, mas acho que só você vai conseguir algum avanço

com ele.

Irritada, passo a socar a massa da torta que estou


preparando.
Agora ele está bravo porque a menina é mesmo sua

filha?

Helder parece ainda mais assustado com a maneira


como estou lidando com a massa, também por ver a cozinha

tomada por comida.


— Anabela, ele não está bem… O Presidente não fazia

ideia sobre a menina.

— Eu tentei falar, mas ele me expulsou de lá, cheio de

grosseria. Um bruto mesmo…


— Mas é que… Ele não queria, você não entende? Se

sente culpado agora que sabe, porque a menina ficou lá,


esse tempo todo.
A explicação dele acaba fazendo com que meu

coração se abrande um pouco. Eu não havia pensado por


esse lado, mas faz todo sentido que Matteo se sinta culpado,

mesmo que não soubesse.

Decido ao menos tentar falar com ele e bato na porta


do escritório, esperando por sua resposta me dizendo para
entrar, mas ela não vem, então entro mesmo assim.

Nenhuma luz está acesa, o computador está desligado


e ele nem mesmo acendeu a lareira. Meus olhos se ajustam

a escuridão e caminho para dentro do cômodo, procurando


por ele.

Dou a volta atrás da estante e o encontro sentado no

chão, encostado no sofá. Matteo está com a camisa aberta e


há uma garrafa de uísque quase vazia em suas mãos, a

outra está quebrada em um canto, perto da parede e é fácil


deduzir o restante. Os cabelos desgrenhados caem um
pouco sobre seus olhos e, mesmo nesse estado, ainda

consegue ser o homem mais lindo que já vi. Ele não ergue
os olhos para mim e sem dizer nada, me sento ao seu lado

no chão e toco sua mão com cuidado.


— Matteo… Não saiu mais daqui e o Helder ouviu uns
barulhos. O que houve?

— Eu… não sei como fazer isso, Anabela — ele diz,


meneando a cabeça. Percebo seu rosto molhado e me

assusto ao entender que estava chorando. — Sofia disse que


eu era o pai daquela garotinha, mas não acreditei, só que

agora…
— O quê?

Ele não olha para mim, seu olhar está perdido. Dessa
vez não há também grosseria em seu tom de voz, é apenas

um homem, sofrendo muito.


— O resultado do exame saiu. Que tipo de pai deixa a

filha jogada em um orfanato por cinco anos?

Sua voz está embargada e mesmo que ele não diga,


consigo entender. Matteo não rejeitou a ideia da
paternidade por raiva ou desprezo, mas porque se sente

culpado, por isso não aceitou quando tentei falar com ele,
não queria cogitar a ideia de que fosse mesmo o pai, porque

isso implica em ter desconhecido a filha por todo esse


tempo.
— Você não a abandonou em um abrigo, Matteo. Eu
sei que não…

— Como sabe?

— Não faria isso, você não é assim.

O som angustiante do seu choro incontrolável me

alcança e assisto desolada quando ele abaixa a cabeça entre


as pernas e se perde na tristeza que parece o consumir de

dentro para fora. Eu nunca o vi chorar, é ainda mais


surpreendente do que quando o vi sorrir pela primeira vez,

mas muito mais doloroso.


Sem pensar em mais nada e me esquecendo de

qualquer limite que deveria existir entre nós, puxo seu corpo
para mim e faço com que se deite, colocando a cabeça

sobre minhas pernas. Acaricio seus cabelos, enquanto ele


libera o pranto de dor que vem de sua alma quebrada.

Sua respiração entrecortada, os soluços que fazem


com que seu corpo trema em meus braços, tudo deixa
transparecer a imensidão da dor que está sentindo. Ficamos

um tempo assim, eu o consolo em silêncio e meus olhos


também estão marejados, mas me esforço para ser forte e
dar a ele o apoio de que precisa.
Não posso dizer que entendo o que ele está sentindo
agora, eu mesma não sou mãe, mas consigo imaginar que

seja algo terrível, saber que um filho seu passou por tudo
que Maitê precisou enfrentar. Não por escolha, mas porque a
oportunidade de dar uma vida decente a ela, foi tirada dele.

Aos poucos seu choro vai cessando, e Matteo se

acalma o bastante para se virar, seus olhos azuis são como


uma represa que transborda e se concentram diretamente
em mim.
— Quer me contar como isso aconteceu? — pergunto,

ainda acariciando seus cabelos, tocando seu rosto com


carinho.

Matteo me encara por um momento, antes de


finalmente colocar para fora tudo que o aflige. Seu olhar

volta a se perder, mas em algum lugar dentro dele, as


palavras o encontram.
— Nossas famílias tinham negócios em comum e
gostavam da ideia de um casamento entre nós. Eu a achava

linda e ela parecia gostar de mim.

— Então se casaram… — concluo.


— Nos casamos. Eu era louco por ela, mas Sofia era
estranha, obcecado pela própria aparência, gostava de

joguinhos de sedução e eu sabia o quanto ela gostava de


atenção, mesmo de outros homens. A princípio isso não me
incomodava, achava que era só pelo ego.

— Vocês não eram felizes?

— Ela me evitava muitas vezes, mas em outras me


abraçava e parecia se importar. Eu trabalhava muito, ela
ficava em casa, sozinha, e eu não fazia ideia.

— Ah, Matteo…
— Ela engravidou. Estávamos em uma fase ruim,
nosso casamento indo ladeira abaixo, mas ela parecia feliz
com a notícia e também fiquei. Pensei que pudesse mudar
tudo.

Ele agora parece perdido nas lembranças, eu devoro


suas palavras e ouvindo tudo, consigo compreender muito
mais sobre o homem que conheci aqui.

— Um dia voltei mais cedo pra casa, quis fazer uma


surpresa, mas eu entrei e a ouvi no telefone. Sofia falava
com um homem, dizia que não iria se divorciar, mesmo que
o bebê não fosse meu.
— Não acredito!

Ele não demonstra reação diante da minha


interrupção, apenas continua narrando tudo, como se
colocar pra fora fosse o mais necessário agora.
— Saí de casa desolado, me sentia traído e

decepcionado, furioso. Não disse nada a ela naquele dia,


nem naquela semana, eu queria descobrir quem era o
homem com que ela estava me traindo.

— O que aconteceu depois? — Prendo a respiração,

aguardando sua resposta.


— Eu subi as escadas um dia e fui até o quarto falar
com ela, mas os encontrei na cama. Foi a coisa mais
dolorosa da minha vida, a traição foi como uma facada no

meio do meu peito. Aquela cena me destruiu de muitas


maneiras irreversíveis.

— Sinto muito... Você o conhecia?


Ele apenas aquiesce, mas não diz quem era. Não faria

diferença porque eu não o conheceria, então não insisto em


saber.

— Depois disso, pedi o divórcio e exigi que ela saísse

da casa. Eu disse que quando a criança nascesse, se fosse


minha, eu assumiria. Mas as coisas com Sofia não eram

fáceis.

— O que ela fez?


— Os pais não a queriam em casa, estavam revoltados
com a filha e com o que consideravam uma mancha na

reputação da família tradicional que tinham. Ela apareceu


alguns dias depois e me disse que tinha abortado, eu fiquei
arrasado. Entre esses dois eventos, aconteceu outro ainda
pior e eu já era só resquícios do homem que tinha sido um

dia.

— Ela disse isso? Que abortou?


— E estava rindo. Disse que como eu tinha insistido
em me divorciar, não merecia ter um filho. Fiquei enojado e

disse que não queria ter que ver o rosto dela nunca mais.

— E não se viram? Até agora?


Ele meneia a cabeça.

— O resto você pode imaginar, me fechei aqui, o


divórcio saiu e Sofia sumiu no mundo. Fazia anos que eu não
ouvia falar nela.
— Você a viu ontem?
— Sim. Ela disse que teve a menina e a entregou em

um lar para crianças, mesmo sabendo que eu assumiria se


fosse minha, mesmo sabendo que meus pais cuidariam ou
até mesmo os pais dela. Ela queria nos punir por termos a
arrancado das nossas vidas.

— Mas puniu a Maitê, pobre garotinha…


— Sofia está morrendo — ele conta, e isso me
surpreende —, com isso acho que sentiu algum remorso

pela menina e resolveu dizer a verdade, minha mãe ligou


em pranto, pedindo que eu fosse até lá e, quando cheguei,
essa bomba foi atirada no meu colo. Eu tinha tanta certeza
de que não era minha filha…

— Se você nem sabia da existência dela, como pode


ser culpado, Matteo?
— Isso não importa. A questão é que ela é minha filha
e foi abandonada em um lar, jogada de um canto ao outro

como se fosse uma indigente e eu estive aqui, vivendo como


um covarde esse tempo todo, no luxo, enquanto ela não
tinha nada. Você não entende? Enquanto Maitê passava
fome, eu comia do bom e do melhor. Enquanto ela dormia
naqueles lugares horríveis, eu descansava na minha cama
grande e macia. Eu deixei que ela passasse por isso tudo
sozinha.

Consigo entender tudo que ele está dizendo, mas não


sei fazer com que compreenda que não tinha escolha. Como

poderia ter feito diferente se nem sabia a respeito dela?


— Matteo… Eu sei que nada que eu diga vai te
consolar agora e você nunca vai esquecer esses anos que
perdeu. Mas se tem algum culpado nisso, é a Sofia. Você é

tão vítima quanto a Maitê, foi tão privado dela, quanto ela
foi de ter uma família. — Ele não concorda, mas também
não nega, continua me encarando e ouvindo. — Tenho
certeza de que aquela linda menina preferiria ter um pai

que a ame a partir de agora, do que nunca ter um. Não é


culpa sua, Matteo. Não tinha como saber que ela estava
viva.

Ele sorri tristemente.

— E mesmo assim você tinha certeza. Como?

Toco seu rosto com delicadeza e desço a mão para a


parte em seu peito que a camisa não cobre. Com a ponta do

dedo, circulo a cicatriz pequena em seu ombro esquerdo.


— É porque apesar de todos os seus alertas, acho que
me apeguei a cada pedacinho seu, me recordo de cada
parte sua em que coloquei meus olhos. Porque tudo que
faço é pensar em você e nos nossos momentos juntos.

— Mesmo com raiva de mim? Mesmo depois que fui


um babaca?
— Mesmo assim. Você me deixou acreditar que Sofia

tivesse morrido e compreendi as coisas pelo pior cenário


possível. Eu fui dar um banho nela e acabei notando que
Maitê tem a mesma marca de nascença que você tem, no
mesmo lugar.

Ele não diz nada sobre isso, acho que ainda está
assimilando a nova informação. Depois de um tempo, volta
a falar.
— Eu só não queria conversar sobre isso, ainda tem

coisas que não consigo te dizer. Me sinto envergonhado e,


no fim, não sabia mais como contar. Me desculpe por ter
sido estúpido.

E então ficamos aqui, sentados no chão, conversando

sobre o passado, o presente e o futuro, sobre Matteo e Maitê


e o que podem ser a partir de agora.
Os fardos que o destino impõe sobre nós, as vezes são
pesados demais para que uma alma frágil suporte, mas
quando temos com quem dividir, são reduzidos de tal forma,

que se tornam sustentáveis.


Matteo

Anabela e eu ainda estamos sentados no chão,

encostados no sofá, falando sobre nossas vidas. A garoa fina


que começou a cair do lado de fora se intensificou rápido e

agora observamos a chuva pelas janelas de vidro do


escritório. Anabela segura minha mão na sua e acaricia meu

braço com movimentos circulares, o simples toque dela faz


com que eu me sinta muito mais leve. Depois de ter contado

a verdade a ela, é como se tivesse me livrado de um fardo

imenso.

As luzes não estão acesas, nem mesmo a lareira está,


e as nuvens cinzentas do lado de fora deixam o escritório

mais escuro. Eu poderia estar ruindo, aqui e agora, mas tudo


o que sinto nesse momento é conforto e uma vontade

avassaladora de beijar Anabela. Ao que parece, ela tem esse

poder sobre mim, a mulher é como uma flor que nasceu no

meio deserto, trouxe vida e esperança onde não havia nada.

Toco seu rosto com gentileza e a trago para mais


perto, meu nariz toca sua pele e inspiro seu cheiro bom, ela

é como uma heroína que veio para me salvar de mim

mesmo.

Quando nossos lábios finalmente se encontram, um

trovão irrompe do céu, ao mesmo tempo que ouvimos


batidas constantes na porta.

Anabela se afasta imediatamente, em silêncio, e fica

de pé.

— Espere aqui um minuto — falo, pensando que seria

melhor que não nos vissem assim, sozinhos, ainda mais no

escuro.

Abro a porta do escritório e a expressão preocupada

no rosto de Helder me coloca em alerta. A essa altura eu já


devia ter aprendido com a vida, não importa o quanto uma

situação seja ruim, ela sempre pode piorar.


— Senhor, temos um problema — ele diz, suas mãos

tremem um pouco e os olhos parecem apavorados.

Anabela aparece ao meu lado e se apoia em meu

ombro. Provavelmente então não se importa em sermos

vistos juntos.

— O que aconteceu? — É ela quem pergunta, porque

eu já estou imaginando o pior dos cenários.

— A menina Maitê. Não a encontramos em lugar

algum — ele diz, desviando seus olhos dos meus.

Sinto como se meu coração parasse de bater por

alguns segundos e preciso me apoiar no batente da porta,

porque minhas pernas falham. Isso só pode ser algum mal-

entendido.

— O quê? — Anabela questiona. — Eu a deixei com a

Elis. — Ela passa por mim, saindo do escritório para o

corredor.

— Sim, senhorita, mas alguma coisa aconteceu, já


procuramos na casa toda e ela não está aqui.

Não, isso não faz sentido, é uma criança, ela tem que

estar aqui em algum lugar. Talvez esteja se escondendo…


Sigo pelo corredor andando a passos rápidos, Anabela

me segue de perto, junto com Helder. Quando chegamos no

hall de entrada da casa, encontramos os outros funcionários


reunidos, dois deles eu ainda nem havia conhecido, uma

mulher loira e um homem alto.

— Procuraram no porão? — pergunto de uma vez, sem

tempo para formalidades. — Na academia? Na piscina?

Santo Deus, a piscina!

Uma imagem perturbadora passa pela minha cabeça

e sei que não vou sobreviver a outra tragédia.

— Ela não está na piscina, Presidente, foi o primeiro

lugar que verificamos — Helder explica, tentando me

acalmar.

— Então onde? Onde ela está? — Meu coração bate

acelerado no peito, enquanto as palavras simplesmente

saem da minha boca. — Não acredito nisso!

Eu acabo de descobrir que sou o pai dela, não fiz nada

a não ser ignorar a menina esse tempo todo, como vou lidar

com o fato de perder minha filha que acabo de encontrar?

— Elis, onde a viu pela última vez? — Anabela

pergunta.
A mulher começa a apontar para a sala de televisão e

percebo que suas mãos estão tremendo.

— Ela estava assistindo a um desenho, fui até a

cozinha pegar um copo d'água e, quando voltei, ela não

estava mais lá. — E então ela começa a chorar. — Eu sinto

muito, foi uma questão de minutos.

Penso em gritar, em culpar todos eles pelo sumiço

dela, mas eu mesmo sou o maior culpado, por ter deixado

Maitê sozinha mais uma vez. Além disso, não temos tempo a

perder, já anoiteceu e cada minuto é importante.

— Vou procurar nos chalés. Timóteo, verifique o sótão


e vocês procurem na casa de novo — falo antes de sair

correndo porta afora.

A chuva incessante me molha em questão de

segundos, enquanto corro sobre a grama molhada,

descendo na direção do primeiro chalé. Fica difícil enxergar

qualquer coisa daqui de cima com esse tempo, e o

desespero começa a me dominar.

— Maitê! — grito, ouvindo minha própria voz ecoar

pelas montanhas.
Deus, proteja minha menina!
Como isso foi acontecer? Bem aqui, debaixo dos

nossos olhos, Elis está inconsolável e Suzi tenta fazer com

que se acalme, enquanto os outros procuram pela casa.

— Fique calma, Elis, ela vai aparecer — Suzi diz, com a


voz suave.

— Vou ser demitida — ela soluça —, o senhor

Presidente não vai me perdoar.

— Não vai ser demitida, não. Ela só deve estar

brincando em algum lugar, crianças fazem isso o tempo

todo.

Elis meneia a cabeça e seu gesto me faz acreditar que

ela sabe mais do que está dizendo. Tudo bem que Maitê

estava sob os cuidados dela, mas essa culpa exagerada

esconde mais alguma coisa.


— Elis, o que aconteceu? — pergunto, me

aproximando dela. — Você precisa contar tudo, qualquer

coisa que julgar importante. Ela pode estar em perigo

agora…

Ela respira fundo e fecha os olhos, suas mãos tremem

tanto que tenho medo de que tenha um desmaio.

— Me desculpa, Anabela, eu não imaginava que

pudesse acontecer uma coisa assim.

— O que houve?
— Vim buscar a água na cozinha, mas a Mariana

chegou e começou a me contar sobre uma conversa que


ouviu entre você e o senhor Helder, na sala de música. Eu

sinto muito por isso.

— Que conversa? Por que ela estava bisbilhotando? —

pergunto. Mas que abusada essa Mariana! Mal chegou e já


está fazendo fofoca.

— Ela disse que ouviu vocês falando que o Presidente


é o pai da menina e talvez ela tenha ouvido a história, não

sei… Porque quando voltei ela tinha sumido.

— Droga, Elis! Então ela não está na casa!

— Mas não sei se ela escutou, é só uma hipótese…


Sem dar ouvidos a isso, saio pela porta dos fundos.

— Quando Matteo voltar conte a ele o que aconteceu.

Corro para fora da casa, a chuva despenca do céu,


sem trégua, e o frio cortante faz doer a pele. Estou usando o

vestido do uniforme e um casaquinho de lã e não é nem de


longe o bastante para o frio que faz aqui fora. Fico pensando

em Maitê e tento me lembrar das roupas que coloquei nela.


Eram quentes para o calor da casa, mas aqui fora, ela não

está agasalhada o suficiente.

Desço na direção do lago onde fizemos o piquenique,

abraçando meu próprio corpo, tentando me proteger do


vento cortante.

— Maitê! — chamo por ela.

Já é noite e está escuro, e isso faz com que a


caminhada se torne muito mais difícil e lenta. Depois de

passar um bom tempo andando sem rumo, já não sei mais


onde estou ou como voltar. Não vejo mais as luzes da casa e

acho que posso estar perdida.


A chuva começa a perder a força, mas ainda faz muito
frio e meu corpo não para de tremer sob as roupas

encharcadas, em espasmos incontroláveis.


Caminho devagar até o tronco de uma árvore e decido
tomar fôlego para tentar encontrar o caminho de volta.

Agora que a chuva parou, posso ouvir os ruídos dos animais


que vivem na mata e sinto um pouco de medo, corro um

pouco na direção contrária, procurando por qualquer sinal


da casa. Droga, eu devia ter pegado o celular ao menos.

Só percebo que caí em um buraco quando a dor


lancinante atinge meu pé, mas não consigo ver se me feri.

Talvez Matteo já tenha encontrado Maitê e agora estejam me


procurando. Contando que o céu ainda tinha resquícios de

sol quando saí e agora a noite é escura, imagino que passei


mais de uma hora andando. Se fizer o caminho contrário,

provavelmente vou ver as luzes outra vez em algum


momento.

Assopro minhas mãos, tentando as aquecer, e me


impulsiono para fora do buraco. Percebo que minha mente

está criando figuras e ouvindo sons que não existem, há uns


dez metros de onde estou vejo uma sombra, deitada perto

de uma pedra grande. Prendo a respiração ao perceber que


se trata de um animal dormindo.
Olho fixamente para a figura por um momento e ouço

gemidos baixinhos, aperto os olhos, tentando ver melhor, e


meu coração dispara no peito. É a Maitê! Tenho certeza de

que é ela.

— Maitê! — Corro até o outro lado, rezando para que

isso não seja apenas um delírio da minha mente cansada,


ou estarei seguindo direto para algum animal, mas quando

me aproximo eu tenho certeza.


Maitê está deitada no chão, tremendo. Seu rosto está

todo coberto de lama e as roupas completamente molhadas,


como as minhas. Toco seu rosto pálido e sinto sua pele, que

está muito fria.

— Maitê, acorda! — Seguro seu corpo magro e a trago

para junto de mim, eu a abraço com força, tentando fazer


com que se aqueça, e sua cabeça pende para o outro lado.

Está desmaiada e infelizmente não há calor em mim


para transmitir a ela.

— Vai ficar tudo bem, seu papai está vindo.


Reúno minhas forças para chamar por ele, seu nome

sai da minha boca com dificuldade, como se o grito se


agarrasse à minha garganta.
— Matteo! — grito, o mais alto que consigo. — Tudo

bem, querida, precisamos subir. Você precisa de um médico,


mas logo estaremos em casa, tomando chocolate quente e

deitadas em uma cama bem quentinha.

Fico de pé com algum esforço e coloco Maitê sobre


meus ombros, mas ela parece duas vezes mais pesada
agora, e minhas pernas travadas pelo frio não cooperam.

Procuro me concentrar em caminhar, um passo de cada vez,


porque é preciso, subo vagarosamente, sentindo a dor

latejante em meu pé, torcendo muito para que nos


encontrem logo.

Os chalés estão vazios, não há sinal dela em qualquer


um deles. Desço até a entrada da propriedade e procuro
também na guarita, mas não há qualquer indício de que
Maitê tenha vindo até aqui.

Subo para a casa outra vez. Talvez Helder e Anabela a


tenham encontrado em algum canto, brincando, crianças

fazem coisas assim. Penso em descer até o açude, mas torço


para que isso não seja necessário, não quero sequer

imaginar que ela tenha ido até lá.


No entanto, quando passo pela porta dos fundos, Elis,

Helder e a outra, cujo nome sempre esqueço, estão reunidos


perto da mesa, de um jeito bastante suspeito, como se

planejassem alguma coisa.

— O que aconteceu? Vocês a encontraram? —

pergunto, sem fazer rodeios.


Elis respira fundo, a mulher sempre teve medo de me

encarar e acho que nunca trocamos mais que algumas


palavras, mas agora é diferente, ela está vermelha e aperta

uma mão na outra, parecendo desesperada.

— Não a encontramos, mas eu preciso contar uma

coisa, Presidente — diz, como se fosse a coisa mais difícil


que já fez na vida.
Merda. Eu sabia que alguma coisa estava errada nessa
história, estava pressentindo isso.

— Então diga logo, seja direta — falo.

Ela assente, mais decidida.

— Quando vim até a cozinha pegar o copo de água

para a menina, a Mariana me encontrou e falou que escutou


uma conversa entre o senhor Helder e a senhorita Anabela.

— O quê? Quem é essa Mariana?

— Mariana é uma das novas funcionárias, senhor —

Helder fala, e pelo seu rosto vermelho, acho que também se


sente envergonhado.

— Eu sinto muito, senhor, acabei dando ouvidos… —


ela fala, encarando o chão.

— Não. Você quer dizer que acabou participando da

fofoca, não é? — pergunto, furioso, ainda que não entenda o


que isso tem a ver com o sumiço de Maitê. — Eu sabia que
era um erro trazer mais gente para essa casa.
— Eu sinto muito, mas a Mariana disse que a menina é

sua filha, Presidente, e acho que ela pode ter ouvido isso.
Quando voltei, ela não estava mais lá.
— O quê? — Fecho as mãos em punho e a mulher se
encolhe, como se eu fosse fazer alguma coisa contra ela. —

Vocês foram longe demais dessa vez! Ela merecia saber por
mim e não desse jeito. Agora está lá fora, em algum lugar,
debaixo dessa chuva.

Helder olha para o chão, ele sabe que também

cometeu um erro.
— Me desculpe, Presidente. Anabela veio me
questionar, sobre falar ou não com o senhor a respeito disso
e acredito que tenha sido essa conversa que Mariana ouviu.

— Helder, conversamos depois. Vou sair e procurar por


ela, quando eu voltar resolvo tudo isso. E você — aponto
para Elis —, reflita sobre o que aconteceu e peça a Deus que
minha filha esteja a salvo.

— O Pedro e a senhorita Helena estão procurando a


menina — Helder fala. — Timóteo foi junto deles.

— E onde está a Anabela, afinal? — Desde que voltei,


ainda não a vi.

— Ela saiu para procurar também, mas saiu sozinha.

Meneio a cabeça, em desespero, a situação fica pior a


cada instante.
— Chame um médico de uma vez, não tem como
estarem bem depois desse tempo todo aí fora.

Pego uma capa de chuva, um casaco e uma lanterna


antes de sair, eu já perdi minha filha uma vez e não posso
perdê-la de novo, não agora.
Andando rumo ao açude, acabo encontrando os outros

no caminho. A chuva continua a cair enquanto nós


procuramos, cada vez mais dentro da mata e longe de casa.

Timóteo, Pedro, Helena e eu já estamos há mais de

duas horas procurando por Maitê e Anabela nos arredores, o


frio se intensifica à medida que o tempo passa e a sensação
de impotência está me enlouquecendo.
— Maitê! — chamo outra vez. — Anabela!

Pedro segue na frente agora e salta sobre um córrego


que passa pela mata.
— Ouviram isso? — ele pergunta, atento.

— Não. O que foi?

Ficamos parados e em silêncio, e então eu a ouço de


longe, é a voz de Anabela, me chamando.

— Anabela! — grito outra vez, agora mais alto.

Ela me chama de novo, em resposta.


Corro na direção de sua voz, à nossa direita, os outros

me seguem de perto.

— Anabela!
— Matteo! — Sua voz fica cada vez mais forte e ela
continua gritando, guiando meu caminho.

— Ali! — Timóteo aponta na direção dela e então eu a


vejo, não só Anabela, mas também Maitê, em suas costas.
Corro até elas, sentindo toda a adrenalina que corre
em minhas veias, Anabela está pálida e caminha com

dificuldade. Deve estar congelando aqui só com esse


maldito vestido.

Ela me entrega o corpo gelado da minha filha logo


que me aproximo o suficiente, e percebo que está

desacordada. Meu coração desacelera e fica mais difícil


respirar, reencontrar a menina assim, sem a tagarelice
habitual e a alegria irritante, me deixa desolado. Eu sou
mesmo um fracasso como pai, mal me tornei um e já

consegui ferrar com tudo.


— Ela está… Muito fria — Anabela fala, com
dificuldade.
Timóteo cobre os ombros de Anabela com seu próprio

casaco e ela se encolhe dentro dele, tremendo de frio. Toco o


rosto de Maitê e a envolvo em meus braços, a cobrindo
também com o casaco que trouxe.

— Você está bem? — pergunto, vendo o quanto está

trêmula, seus lábios estão arroxeados.


— Sim, só com muito frio.

— Vocês, cuidem dela e a tragam pra casa — falo,

olhando para o trio que observa tudo em silêncio —, vou


correr com Maitê.
— Estamos logo atrás do senhor, Presidente. —
Timóteo envolve os ombros de Anabela em um abraço. Me
sinto desolado por não poder me dividir nesse momento e

oferecer conforto a ela, mas Maitê está desmaiada e precisa


de mim agora.

Anabela assente, me incentivando, e então começo a

correr de volta como se minha vida dependesse disso e, de


certo modo, depende mesmo, porque se alguma coisa
acontecer com essa garotinha, não vai me restar nada.
Estou cansado de perder, de sempre me arrepender

tarde demais, de ser empurrado para um destino cruel que


toma de mim tudo o que é bom.

— Aguente firme, Maitê, seja forte e eu prometo


encher aquela casa toda de galinhas e o que mais você me
pedir.

Não sei em que ponto começo a chorar, mas não


permito que isso diminua meu ritmo, os músculos das
minhas pernas começam a sentir, mas não paro, eles
poderiam explodir e eu continuaria correndo.

Algum tempo depois, não sei exatamente quanto,


avisto as luzes da casa, foco meus olhos nelas e sigo rápido
para lá.
Estamos quase em casa, vamos conseguir.

Quando chegamos, o médico já está à nossa espera,


Helder pediu que ele viesse, como instruí. O Dr. Hugo age
bem rápido, coloco a pequena sobre a cama no quarto que
vem ocupando e ele verifica sua temperatura e constata que

ela está com hipotermia grave, o corpo em uma


temperatura inferior aos trinta e dois graus.
Depois de algum tempo e após o exame minucioso do
médico, Elis, agora recuperada da situação em que nos

envolvemos, assume a frente e tira as roupas molhadas de


Maitê, depois a abraça, como o médico pediu, já que minha
temperatura também está baixa e por isso serei sempre
grato. Sua preocupação com Maitê, a forma como está
lindando com os cuidados necessários, conseguem abrandar

minha raiva, mesmo porque ela só ouviu a conversa, a


responsável pela fofoca foi a outra.

A outra funcionária, Suzi, traz cobertores e até um


secador de cabelo, e aos poucos a cor e o calor de Maitê

começam a voltar. Eu poderia a observar assim para sempre,


enquanto suas bochechas voltam a ficar rosadas e a boca
perde o tom roxo apavorante.
Anabela chega um pouco depois, com Timóteo,

Helena e Pedro, eu já não aguentava esperar. Não me


importo com o que vão pensar sobre nós, simplesmente a
trago para mim e a envolvo em um abraço. Seu corpo
pequeno e frio treme sob meus braços e nossos corações

parecem bater no mesmo ritmo. Quero beijar seus lábios e


dizer como me preocupei com ela também, mas me
contenho.

Elis traz chá para Anabela, e Suzi enche a banheira

com água quente, depois disso elas a levam para tomar um


banho.

Helder conduz o médico para o andar inferior, para


pagar pelos serviços dele. Agora que todos deixaram o

quarto e o pesadelo teve fim, penso por um momento no


que poderia ter acontecido caso Anabela não a tivesse
encontrado. Nós estávamos procurando em outra direção e
ela já estava desmaiada, por isso não teria como nos ouvir.

Se não fosse por Anabela, minha filha estaria morta.


Ela entra um pouco depois e fecha a porta atrás de si,
está usando roupas limpas e quentes. Traz duas canecas
com chocolate quente nas mãos e me entrega uma delas,
depois disso se deita na cama, ao lado de Maitê.

— Eu te disse, não foi? — fala, fazendo um carinho nos


cabelos loiros dela. — Disse que logo estaríamos aqui,
deitadas em uma cama quentinha, bebendo chocolate

quente.
— Por que ela não acorda? — pergunto, ainda nervoso
com essa situação.

— Acho que é normal, seu corpo gastou muita energia

para tentar manter o equilíbrio da temperatura, e agora ela


está cansada.
Apoio meus antebraços sobre os joelhos e meus olhos
encontram os de Anabela por alguns segundos. Eu nem sei
como agradecer por tudo o que ela faz e é.

Mas preciso tentar.


— Obrigado por cuidar dela — falo. — Se não fosse por
você…

— Não precisa agradecer, eu só tive sorte.


— Você tem muito mais que isso, tem amor e
bondade. Me espanta que goste de alguém como eu —
concluo, meneando a cabeça enquanto reflito sobre isso.

Ela arqueia as sobrancelhas, enquanto esconde parte


do rosto dentro da caneca de chocolate quente.
— Quem disse que eu gosto de você?

Começo a sorrir e Anabela faz o mesmo. Depois de um

dia como esse, me sinto muito abençoado por estar onde


estou e por ter mais uma chance.
Continuo a encarando, analiso seu rosto em busca de
sinais de que esteja mesmo bem, mas de repente algo me

chama a atenção.

— O que aconteceu com seu pé?

Anabela aparenta confusão e então olha para baixo,

mas já estou me levantando para ver melhor.

— Hum, não sei. Caí em um buraco e acho que virei,

senti dor, mas logo vi a Maitê e acabei me esquecendo.

— Acho que quebrou. — Observo o inchaço e o quanto

está roxo, não me parece nada bom. — Vou pedir que o


médico também te examine.

— Não precisa, Matteo. Tenho certeza de que não foi

nada, ele já deve ter ido.

— Deixa de ser teimosa — respondo, abrindo a porta

do quarto.

Por sorte Helder e o médico ainda estão conversando,


então os interrompo para que ele suba comigo outra vez e

examine o pé machucado de Anabela.

Ele chega perto da cama e primeiro analisa o

hematoma com os olhos, depois segura o pé dela e a vejo se


contorcer em uma careta de dor.

— Não, ela não quebrou — conclui, mas balança a

cabeça em uma negativa —, mesmo assim foi uma torção

bem feia. Não vai conseguir apoiar o pé no chão por alguns

dias, o ideal é que o mantenha para cima até o inchaço

diminuir.

Anabela agora encara o homem como se tivessem

nascido chifres no coitado.

— Eu não posso ficar com as pernas pra cima, doutor

— ela responde —, eu tomo conta dessa casa imensa, quem

vai fazer meu trabalho?


O médico olha da paciente para mim, aguardando que

eu me posicione.

— Isso sou eu quem decide, Anabela. Você trabalha

pra mim, então agora vai estar de folga e ficar com o pé pra

cima. Obrigado, doutor.

— Por nada. Vou deixar uma receita de analgésicos

para a dor — ele finaliza, deixando o quarto.

Anabela me fita, irritada, mas não insiste. Observo as

duas, deitadas na cama e, repentinamente, tenho uma

ideia. Já é quinta-feira, no sábado todos estariam de folga,

então posso antecipar isso e cuidar eu mesmo da situação.

Assim vamos ficar mais à vontade e terei tempo também de

me entender com Maitê longe dos olhares curiosos.

— Espere aqui com ela, vou resolver algumas coisas.

Desço as escadas e chamo Helder até o escritório,

após nos despedirmos do médico. Ele não demora a chegar

e seu semblante ainda parece preocupado.


— Chamou, Presidente?

— Helder, eu preciso de um tempo — falo, indo direto

ao ponto.

— Não entendi, senhor…


Eu me recosto na poltrona e cruzo as mãos sob meu

queixo, pensando no que estou prestes a fazer.

— Preciso de tempo e espaço pra resolver as coisas

com Maitê, explicar a ela a nossa situação e… me aproximar.

— Entendo.

— Quero fazer isso longe dos olhares curiosos e como

amanhã já é sexta-feira, pensei em dar folga pra todos um

dia mais cedo — falo, contando meu plano. — Não sei se os

outros vão ver seus familiares ou ficar na propriedade, isso

fica a critério de cada um, só prefiro que não venham para

essa casa até segunda.

— Mas senhor, e a comida? — ele questiona, surpreso.

— O médico disse que a senhorita Gonzales não pode andar

por enquanto, mas talvez uma das outras possa ficar e…

— Deus me livre! — exclamo, me lembrando do horror

que era quando elas cozinhavam. — Eu mesmo cozinho,

Helder e, se precisar, posso pedir alguma coisa na cidade.

— Então devo dar folga a todos? Elis, Suzi, Timóteo? E

os novos funcionários?

— Sim. Elis, Suzi, Timóteo, aquele outro que começou

a trabalhar…
— Pedro.

— Isso, o Pedro. E a Helena também.

— E quanto a senhorita Mariana? — pergunta, ciente

de que a situação dela não é como a dos outros.

— Ela pode ter uma folga eterna — falo, sem hesitar

—, mande essa mulher embora hoje ainda, pode ir pra casa

dela ou pro inferno, como achar melhor. Não quero nem ver

a cara dessa linguaruda.

Ele concorda, se encolhendo um pouco diante do meu

tom irritado.

— Sim, senhor. E quanto a senhorita Anabela? Quer

pedir que o Timóteo a leve à casa dos pais?

— Não. Anabela vai ficar aqui, comigo. Vou cuidar das

duas.

Helder até tenta se controlar, mas o sorrisinho que

esconde não me escapa. Esse velho…

— Eu vou visitar minha irmã — fala, me

surpreendendo.

— Que irmã? — Franzo o cenho, dificilmente Helder

sai da casa em suas folgas.


— A que mora na cidade, o senhor sabe, jogamos

baralho às vezes.

E eu crente que ele só desaparecia, meio sem rumo,

às vezes.

— Achei que sua irmã tivesse falecido.

Mas Helder meneia a cabeça.

— Uma faleceu, mas a Helda ainda está viva.

— Sua irmã se chama Helda? E você Helder? —

questiono, constatando o quanto os nomes são parecidos.

Ele ri agora, se divertindo com meu espanto.

— Mamãe não era muito criativa, a que morreu se

chamava Heldina.

— Que coisa…

— Tudo bem, então? Se eu for passar o fim de semana

com ela?

— Claro. Pode voltar na segunda também.

Quando deixamos o escritório, passo pela cozinha e

aproveito para conferir a despensa, mas estamos bem

abastecidos, Anabela cuidou das compras e não vou precisar

de nada para o fim de semana.


Observo os funcionários deixarem a casa, incluindo

Helder, que carrega uma mochila com seus pertences. Eles

se reúnem na entrada, aguardando para que Timóteo os

leve para a cidade, nem mesmo as duas que dividem o

chalé decidiram permanecer, quando têm a alternativa de

três dias livres.

Eu me sinto menos tenso quando o carro deixa a

entrada da casa, esses dias sozinhos serão bons para que eu

possa colocar a cabeça no lugar e resolver minha vida com


Maitê.
Subo as escadas e viro no corredor, seguindo para o

quarto de hóspedes. Agora que Maitê vai ficar, preciso


mobiliar um quarto para ela, talvez a ideia sugerida por

Anabela, de reabrir a ala fechada da casa, seja boa, posso


transferir os quartos de hóspedes para lá e mobiliar uma

suíte para Maitê mais perto da minha.

Quando chego ao lado da porta, ouço as vozes das


duas, conversando. Fico aliviado ao perceber que Maitê

acordou, mas o alívio dura pouco, porque ouço sua voz


chorosa e sentida. Paro do lado de fora, ouvindo a conversa.
— Não chora, lindinha. Por que você saiu na chuva,
assim?

— Eu não queria voltar para cá, mas agora você me


trouxeu — fala, entre um soluço e outro.
— Por que não queria ficar aqui? — Anabela pergunta,
a voz mansa enquanto conversa com a pequena.

— Eu escutei aquela moça falando. Ela dizeu que o

Matteo é meu papai e que não me quis. Ele não me quer por
que eu sou feia? Ou por que eu falo muito?
A pergunta inocente faz com que eu sinta como se

abrissem um buraco no meio do meu peito. Quanta dor ela


passou sozinha, Deus…

— Eu podia me comportar.

Merda, se eu não tivesse demitido a tal Mariana, essa


hora estaria sendo preso por assassinato.

— Não fale bobagem, meu amor. É claro que seu papai


te quer — Anabela responde, e pela voz embargada sei que

também está quase chorando.


— Ele não quer, não — Maitê insiste —, minha mamãe

também não quis. O Matteo acha que eu não fico quieta,


mas eu podia ficar, se meu papai me quisesse eu não ia
dizer mais nadinha.

É horrível ouvir o desespero na voz da pequena,

perceber que ela faria tudo para ter o amor de um monstro


como eu. Apoio a cabeça nas mãos e seco as lágrimas que

insistem em cair.
Tento me recompor e, depois de alguns instantes,
acho que consigo. Entro no quarto e observo as duas

deitadas, lado a lado. Anabela acaricia os cabelos claros de


Maitê, cuidando dela da mesma forma que fez comigo,

antes.

— Você acordou, Maitê… — comento, como se não


tivesse ouvido a conversa delas.

Ela apenas agarra Anabela pelas roupas e afunda o


rosto no vestido dela, me evitando.

— Será que posso me sentar perto de você? Queria


conversar.

Minhas habilidades para falar com crianças são


impressionantes, é como se eu falasse com o Helder. Mas,

por sorte, ela balança a cabeça, permitindo, ainda que não


me encare. Eu me sento ao lado dela e Anabela faz menção

de se levantar.

— Acho melhor deixar vocês dois…

— Vai sair pulando igual o Saci? — pergunto em tom


brincalhão e aponto para seu pé. — Fique quietinha aí.

Ela faz uma careta, mas volta a se acomodar nos

travesseiros.
— Maitê, eu sinto muito que tenha ouvido as coisas
maldosas que aquela moça disse, foi muito feio o que ela

fez. — Ela se mantém em silêncio. — Quero falar com você


sobre o que descobriu.

Os olhinhos finalmente se voltam em minha direção.

— Que você é meu papai?

— Sim, que eu sou seu papai.

Os pensamentos de culpa retornam à minha mente,


mas faço o possível para seguir o conselho de Anabela e

focar no futuro, em tudo que ainda podemos viver daqui pra


frente.

— Eu também não sabia — conto. — Sua avó achava


que você era minha filha e por isso fizemos aquele exame

de sangue, lembra? Antes de virmos pra cá.


Ela balança a cabeça, concordando.

— Mas eu não te disse nada antes porque queria ter

certeza.
— Minha vovó Clarissa é mesmo muito esperta, não é?

Isso me faz sorrir e apenas assinto. Em apenas dois


dias de convivência, minha mãe e Maitê se tornaram neta e

avó. Talvez não seja tão difícil para nós dois.


— E quando descobriu que eu era sua menina?

Sorrio outra vez. Sua menina…


— O resultado chegou ontem, mas a Anabela também

viu que nós temos a mesma marquinha — explico,


abaixando a lateral da camisa para que ela veja meu ombro.

— Eu tenho mesmo! São iguaizinhas! Que lindo! — Ela

exclama, animada.
Não parece mais triste e acho que entendeu que eu

não quis abandoná-la, que por mais que seja horrível, não
foi proposital.

— Minha… filha — testo a palavra nova na minha boca


—, se eu soubesse de você, nada disso teria acontecido.

Você pode me perdoar por ter ficado tão sozinha? Por não
ter tido uma família, até hoje?
— Eu não fiquei sozinha — Maitê diz, meneando a
cabeça. — Tinha muitas amiguinhas no lar e as freirinhas e

as freironas.

Meus olhos percorrem o rosto da pequena e penso em

como uma criança tão jovem pode ser tão forte. Maitê foi
abandonada, não teve ninguém que a amasse e mesmo

assim não olha para seu passado com tristeza.


— Mas… Se você é meu pai, quem é minha mamãe?

— pergunta, me fazendo pensar em Sofia e em tudo que ela


fez. — Ela não me quis, não foi?

Observo seus olhos brilhantes, tão inocentes e puros.


Não posso destruir a inocência que ela ainda tem, não com

isso. Um dia, Maitê vai ter idade suficiente para entender o


que aconteceu. Não hoje.

— Ela morreu, querida — falo, antecipando o


inevitável.

Chego a pensar que é uma informação muito pesada,


mas Maitê apenas balança a cabeça, compreendendo.

— Coitadinha… — Ela se aproxima um pouco de mim


e vejo quando Anabela disfarça um sorriso. — Agora eu vou

morar aqui, então?


— Sim, minha menina — respondo, usando o termo
que ela usou antes. — Vai morar comigo, vamos cuidar um

do outro, nos divertir juntos. Vou montar um quarto pra


você…

— E vai me deixar ter uma galinha?


Santo Deus… Eu prometi não foi? Que se ela

acordasse teria quantas galinhas quisesse, não sou do tipo


que quebra promessas, ainda que ela não tenha ouvido.

— Eu posso concordar com a galinha, mas vai ter que

cuidar dela — falo, testando o quanto quer isso.


— Eu cuido! Muito, muitão! Vou montar uma casa pra

ela e dar muita comida.

— E deixa ela longe da Anabela, principalmente se

tiver batatas por perto. Ou ela vai ter o mesmo destino da

Fifi.
Anabela agora está rindo, sem se conter.

— Seu malvado! Eu nunca faria isso — rebate, me


olhando de um jeito divertido.

— E o que você faz toda semana? Frango empanado,


galinha ao molho pardo, frango assado com batatas.
— É diferente. Essas vêm do mercado, não são
bichinhos de estimação.

— Sei… Fica esperta, Maitê.


A pequena nega com um gesto.

— Ela não vai pegar minha galinha, é só você dar uma


pra ela também.

— Viu? Resolvido — Anabela concorda.

— Claro que sim — resmungo, ainda achando graça.


— Matteo, pode chamar uma das meninas pra me

ajudar a descer? Preciso ir me deitar, estou muito cansada.


Eu peço pra te ajudarem com a Maitê — ela diz, e seu rosto
realmente demonstra todo seu cansaço.

— Que meninas?

Eu me faço de desentendido, mal sabe ela que


estamos sozinhos.

— Já disse os nomes delas, você não decora por ficar


fazendo gracinha, não é possível!

— Já decorei, Anabela. Chamei todas pelo nome hoje,


quando pedi ao Helder que desse folga pra todo mundo.

— O quê? — Não sei se está mais surpresa com a folga

ou com o fato de que decorei os nomes.


— Sim, você, Maitê e eu. Só ficaremos nós três na
propriedade até segunda-feira.

— Mas… Até o Helder? — Ela olha ao redor, como se o


velho mordomo fosse surgir de repente.
— Helder foi ver a Heldinha, alguma coisa assim… A
irmã dele.

— Era Heldina, mas ela morreu — Anabela corrige. —


A Helda é que mora em Campos do Jordão.
— Isso, a que joga baralho — digo, me lembrando do

que ele falou.

Anabela meneia a cabeça.


— Vou dar um desconto porque você está ao menos
tentando. Então eu também estou de folga?

— Claro. Só que sua folga vai ser ficar com o pé pra


cima, sendo bem cuidada por mim e tendo a companhia
maravilhosa da Maitê. Me fala o que você precisa do chalé
que vou buscar, vou instalar as duas e preparar o jantar.

— Você? Você vai preparar? — ela questiona, sorrindo


e parecendo desacreditar.

— Acha que só sei fazer waffles? Eu sei cozinhar muito

bem.
— Hum… se você diz. Mas onde nós vamos dormir?

— Eu não gosto de dormir sozinha — Maitê fala,


cruzando os bracinhos.
— Então que tal se as duas dormirem na minha cama?
Eu posso dormir aqui.

— Pra que isso? Maitê e eu dormimos aqui, já fizemos


isso antes e você pode continuar na sua cama confortável.
— Mas a minha é maior e mais macia, vocês estão se
recuperando. Precisam do melhor.

Com isso decidido, deixo as duas tagarelando e sigo


para o meu quarto. A roupa da cama está limpa, porque foi
trocada hoje. Pego vários cobertores no closet, na intenção
de aquecer Maitê o máximo que puder, também ligo o

aquecedor.
Arrumo os vários travesseiros sobre a king size e deixo
tudo o mais confortável possível. Retornando ao quarto,
pego primeiro Maitê no colo, que dá risada e se anima com o

transporte. Eu a coloco deitadinha no centro da cama e volto


para buscar Anabela.

Ela já está de pé quando entro, apoiando apenas um

dos pés no chão e provavelmente se planejando para


conseguir chegar até o quarto. Sem aviso, eu a pego no colo

e ela solta um gritinho assustado.

— Matteo!
— Hoje você é minha paciente.

— E acha que os médicos carregam as pacientes


assim? — pergunta, se segurando em meu pescoço.
— Eles têm macas, eu não tenho. Preciso usar o que
está à disposição.

— É mesmo? — questiona, sorrindo.


— Sim, e vou precisar te apertar bem forte, mas é só
precaução pra não cair — falo, enquanto trago o corpo dela
para mais perto, em um abraço que não planejei. — Me

desculpa. Sei que já disse isso, mas me perdoa pelas


mentiras e omissões e obrigado por tudo que você está
fazendo por mim e agora pela Maitê. Você é…

— O quê? — pergunta, acariciando meu rosto com sua

mão delicada.
— Você é como se fosse uma cola.

Anabela faz uma careta engraçada e percebo que não

me expressei bem. Não tem como isso soar bonito, então


apenas dou de ombros.
— Você juntou meus pedacinhos, os estilhaços e os

colou, um a um. Ainda sou um homem ferrado, mas estou


de pé e inteiro.

— Matteo…

Eu me inclino um pouco e beijo seus lábios


rapidamente.

— Vocês não vêm, não? — O Grito de Maitê me faz


acelerar e saio correndo com Anabela nos braços.

Entro no quarto e Maitê começa a rir quando nos vê


assim.

— Ele te carregou igual uma menina também, somos


duas menininhas…

— Está vendo? — Anabela pergunta, quando a coloco


deitada ao lado de Maitê. — Seu papai é muito forte e ele
acha que eu não consigo andar.

— Mas não pode, você machucou o pezinho me


carregando, tem que ficar quietinha agora pra melhorar.
A resposta da pequena me faz sorrir.

— Viu, Anabela? A Maitê sabe das coisas, entende

melhor que você. Agora fiquem as duas aqui, vendo algum


filme — falo, caminhando até o painel que oculta a
televisão. Aperto o botão, e a proteção de madeira desce,
revelando a tela grande. — O que querem ver?

Quando não respondem, me viro para encará-las e me


deparo com as duas boquiabertas, encarando a parede.

— O que foi? Não sabiam da televisão aí?

— Eu nunquinha vim nesse quarto e nunquinha vi


uma televisão que sai da parede!

— Eu também não — Anabela concorda —, você é


cheio de surpresas.

Sorrindo com suas expressões, entrego o controle nas


mãos de Anabela e deixo o quarto. Desço as escadas para o

andar de baixo e caminho até a cozinha.


Observo a despensa e a geladeira, tentando encontrar
ingredientes para preparar alguma coisa, que não sei bem o
que vai ser. Já está ficando tarde, então penso em algo que

não demore muito e me decido por uma macarronada.

Coloco a água para ferver e retiro da geladeira, queijo,


presunto, bacon e molho. Pico tudo em pedacinhos bem
pequenos e levo o macarrão para cozinhar na água. Em

outra panela, frito o bacon e depois coloco o molho de


tomate, jogo o queijo e o presunto também e mexo até que
a muçarela se derreta, tempero com sal, alho e cebola.

Escorro a água do macarrão quando fica pronto e

coloco o molho por cima da massa, misturando bem. Por


fim, abro uma caixa de creme de leite e a adiciono à
mistura. O cheiro está bom e espero que o gosto também
não decepcione.

Como sei que vai ser difícil para que Anabela desça,
sirvo o jantar em um prato para ela e em outro para Maitê,
pego uma bandeja e os coloco sobre ela. Também pego duas
latas de refrigerante na geladeira, provavelmente se
Anabela comprou é porque gosta.

Quando chego no quarto, elas estão aninhadas na


cama, rindo de um filme qualquer. Anabela me vê entrar e
se senta, esticando o pescoço para sondar o que preparei.

Maitê por outro lado é mais descarada, a pequena lambe os


lábios e comemora, deve estar morrendo de fome.
Coloco a bandeja no meio delas e cada uma pega seu
prato. Abro as latinhas de refrigerante e desço para fazer
meu próprio prato.
Quando retorno para perto delas, já comeram boa
parte do jantar, me sento no chão mesmo, em frente a cama
e como, me entretendo com o filme.

— Esse macarrão está delicioso — Anabela elogia —,


acho inclusive que você pode cozinhar a partir de agora.
— Quer perder o emprego? — pergunto, em tom
brincalhão.

— E é só pra isso que sou útil nessa casa? Eu faço


tanta coisa!
— Mas você sabe fazer biscoitinhos e chocolate quente
— Maitê diz, olhando Anabela de lado.

— Seu pai sabe fazer waffles, acredita? A gente quase


não come isso aqui no Brasil, aposto que ele faz panquecas
doces também.

— Juraaaa?

As duas me encaram, aguardando minha resposta.


— Claro que faço, vou fazer pra vocês no café da
manhã.

Eu me levanto e retiro os pratos delas, pronto para


descer com eles e lavar. Mas antes disso, decido buscar as
coisas de Anabela no chalé.
— O que você quer que eu pegue na sua casa?

— Minha escova de dentes já está aqui, trouxe pra

dormir com a Maitê. Pega só meu celular, acho que ficou na


mesa da cozinha, aqui mesmo.
— Quer que eu pegue seu livro? Vai ficar aí de molho
um pouco.

— Eu já terminei, mas podia pegar outro pra mim na


biblioteca.
— Tá bom, vou escolher então.

— Eu também quero! — Maitê ergue a mão, animada.

— Você sabe ler?

— Não, mas a Anabela lê pra mim.


— Oooou, o seu pai lê pra nós duas — sugere, me

encarando com o desafio.

Até que não me parece uma ideia ruim.


— Então, prepare-se para morrer! Ande na prancha!

Fui até o fim da prancha. Tubarões circulavam, e


piranhas também…
Maitê leva as mãos à cabeça, preocupada, mas

Anabela, engraçadinha, resolve interromper a narrativa,

modificando um pouco a frase que vem em seguida.

— Piranhas são peixes de água doce. O que elas

estavam fazendo no mar, Presidente?

— Você tem razão — admito, escondendo um sorriso e

seguindo com a leitura. — As piranhas apareceram mais


tarde. Certo. Então…

Maitê se estica para ver as figuras da página.

— As piranhas vão comer ele! — ela fala, agitando as

mãozinhas.

— Ah, não! — Anabela esconde o rosto, entrando na

brincadeira. — E agora?
— … Eu estava na beirada da prancha, encarando a

morte certa, quando uma escada de corda bateu no meu


ombro e uma voz grave e trovejante gritou: — Rápido! Suba
pela escada de corda!
Maitê comemora pulando sobre o colchão, Anabela e
eu rimos do seu entusiasmo. Nunca na minha vida li para

uma criança e não fazia ideia do quanto é divertido.

— Aposto que é o estegossauro invertor! — ela diz,

decidida.

Seus olhos brilham com a empolgação.

— Talvez seja o estegossauro inventor, mas você só vai

descobrir amanhã — falo, fechando o livro.

Maitê cai de joelhos sobre a cama, fazendo cara de


choro, a pilantrinha poderia seguir carreira como atriz, com

tanto drama.
— Ah não! São mesmo mil horas até que o papai

chegue com o bendito leite. Eu não gosto de esperar!

— Mas esperar é o que torna a experiência mais

divertida — Anabela fala. — Além disso, já é hora de dormir,

mocinha.

— Tá bom, tá bom — Maitê exibe a janelinha com um

sorriso forçado. — Preciso escovar os dentes?

— Esses quatro que você tem aí? — pergunto,

apontando para o sorriso banguela.

— Eu não tenho só quatro. Tenho um… dois… três…

Eu me levanto da poltrona onde estava sentado, deixo

o livro sobre a cama e estendo minha mão para que ela

segure.

— Vamos lá, vou te ajudar com isso.

— Eu sei escovar sozinha — ela diz, mas mesmo assim

segura minha mão.

— Porque você é muito esperta.

Vejo por sobre o ombro Anabela sorrindo de orelha a


orelha. Ao contrário do que supus, que talvez ter agora uma

filha fosse criar uma distância entre nós, ela parece gostar
de me ver assim, todo babão por Maitê, isso e todas as

coisas que aconteceram acabaram nos aproximando mais.

— Felizmente o leite — Anabela lê em voz alta,

segurando e folheando o livro. — Por que será que você

escolheu este aqui?

— Catarina me deu. Comprou na última bienal de São

Paulo, junto com uma centena de livros — respondo alto,

enquanto coloco a pasta de dente de morango na escovinha

de Maitê. É outra das obras de Anabela, que tratou de incluir

algumas coisas para a pequena nas compras da casa. — Eu

nunca quis ler, porque não é muito o meu estilo, mas estava
procurando alguma coisa que a Maitê fosse gostar.

— E acertou em cheio. Acho Neil Gaiman sempre

maravilhoso, mas aqui vejo apenas um pai que escreveu

uma história para entreter os filhos.

Maitê está de pé sobre um banquinho que improvisei

e ela começa a escovar seus dentes, balançando a cabeça

de um lado para o outro, no ritmo da escovação.

— Com maravilhoso você quer dizer o que,

exatamente? — pergunto, me aproximando da porta outra

vez.
Ela está deitada de bruços sobre a cama, os cabelos

compridos e ondulados caem sobre seus ombros e ela me

encara com seus olhos bonitos. Anabela sim é maravilhosa.

— Brilhante, perturbador… — responde, sem perceber

o modo desejoso como a estou fitando.

— Claro. — Abro um sorriso ao ouvir a explicação. —

Então você faz parte do time que tem medo de Coraline,

com os botões pretos no lugar dos olhos? — pergunto,

cobrindo os meus para enfatizar. — Deve ter lido as teorias

que existem sobre isso?

— De jeito nenhum! Nem falo a respeito, se quer


saber. — Anabela meneia a cabeça, como se só a lembrança

lhe causasse arrepios. — Por outro lado, temos Stardust, O

Mistério da Estrela. Meu preferido.


— Pronto! — Maitê grita, me chamando a atenção e

então sorri outra vez, querendo que eu confira se estão

mesmo limpos.

Olho os dentinhos e constato que estão mesmo

branquinhos, depois a retiro do banco e coloco no chão.

— Perfeito, é hora de dormir então.


Maitê corre para o quarto e se deita outra vez ao lado

de Anabela e cubro suas pernas com o cobertor pesado.

— Acho que nunca li este — respondo, retomando o

assunto com Anabela. — O nome não me é comum.

— Sério? A história é linda e encantadora. Eu assistia

ao filme quando era adolescente e quis ler o livro, se quiser,

podemos assistir amanhã.

Como se eu estivesse em posição de negar alguma

coisa a ela, principalmente quando me fita com esse brilho

nos olhos.

— Tudo bem, então.

Faço menção de me afastar, mas Maitê agarra minha

mão e eu a encaro, curioso.

— Você podia se deitar aqui um pouquinho… — ela

diz, fazendo um beicinho para dramatizar.

Não é como se eu não quisesse, então me deito ao

lado dela, que fica entre Anabela e eu. Maitê trata logo de

puxar os cobertores para me cobrir também e prende minha

mão na sua.

Ela ainda não me chamou de pai, ainda que tenhamos


conversado sobre isso, mas acho que é um mero detalhe, as
coisas vão bem entre nós dois.

— E sobre o que é o filme? — pergunto. Anabela se

vira de lado na cama, ficando de frente para mim.

— Ah, melhor deixar claro que não é um filme muito

adulto, tem bruxas, fantasmas…

— Tudo bem, Bela — respondo, usando o apelido que

agora ela parece aceitar melhor. — Eu sei que sou meio


careta, mas posso dar conta de duas horas de fantasia.

Ela sorri, satisfeita.

— Tudo bem, então, está combinado, e nós queremos


pipocas e brigadeiro para acompanhar.
— Nós? Isso é um complô, por acaso?

Maitê assente, fazendo uma careta maléfica

engraçada.
— Tudo bem. Vocês são duas e eu sou UM pobre

coitado!

— Coitadinho! — Anabela fala, se divertindo às minhas

custas.
— Teremos pipoca e brigadeiro, já que insistem.

— Uhuuuuu! — Maitê levanta os braços, animada.

— Boa noite então, Maitê — falo. — Hora de dormir.


Pela primeira vez tenho vontade de beijar suas
bochechas fofas, mas sei que é cedo para isso. Ela é quem

precisa definir o ritmo da nossa aproximação, e eu apenas


sigo seus comandos.

— Boa noite, mas fica aqui até eu dormir, hein?


— Pode deixar. Boa noite, senhorita Gonzales,

aproveite para dormir até às dez.

— Boa noite, Presidente — ela brinca. — Mal posso


esperar por isso.
— Boa noite, Presidente — Maitê imita, achando graça.

Fecho os olhos então, por um momento apenas, para

incentivar Maitê a fazer o mesmo, mas acabo refletindo um


pouco sobre como me sinto bem em tê-la aqui, comigo.

Eu não sabia que a menina poderia me ganhar assim


tão rápido e não acho que estou preparado para ser o pai

que ela precisa, mas Maitê merece ter esse amor e vai ter.
Quero fazer como Anabela disse, semear nosso futuro, já

que os anos passados foram roubados de nós. E, por um


instante, percebo que isso vai ser muito melhor se Anabela
também estiver comigo, não sei como, mas devagar ela se

infiltrou no meu coração.


Antes eu não queria viver. Não havia motivos, mas
agora eu preciso me curar, mesmo que o processo demore,

preciso ser forte. Apesar de todas as tragédias e todo


sofrimento, ainda há uma chance, Maitê é a esperança, é a

luz no fim do túnel e eu estou seguindo na direção dela. E


Anabela fortalece meus passos.

Acabei adormecendo com as duas, uma coisa que não


previ e não fazia parte dos planos, mas nenhuma delas

mencionou nada na manhã seguinte, quando desci para


preparar o café.

Caí na besteira de afirmar que faria as panquecas.


Acontece que ao contrário do que disse, nunca fiz e não faço

nem ideia de como fazer. Além disso, as panquecas com que


estamos acostumados no Brasil, são geralmente salgadas e

recheadas, não é bem o que Maitê está esperando. Para


minha sorte, existe internet, então agora estou encarando a

receita das panquecas doces no celular, enquanto procuro


pelos ingredientes na despensa.
1 xícara (chá) de farinha de trigo
1 xícara (chá) de leite

2 colheres (sopa) de manteiga derretida

2 colheres (sopa) de açúcar refinado

1 colher (sopa) de fermento em pó

1 ovo

1 colher (chá) de sal


Primeiro reúno todos os ingredientes sobre a pia e
depois começo a me organizar de acordo com o modo de

preparo.

Não demoro muito para fazer o café da manhã e, no


fim das contas, acho que me saí bem. Aproveito e pego tudo

de que disponho, a calda de chocolate, que é para sorvete,


mas vai servir, e a bisnaga com mel. Na minha opinião é

tudo muito doce, mas as duas formiguinhas devem gostar.


Levo a bandeja para cima e tento pensar em uma

maneira de manter Anabela na cama ainda hoje. Sei que já


deve estar doida de vontade de deixar o quarto, mas o pé
ainda não está bom o suficiente para que saia correndo por

aí.
Quando entro no quarto, as duas estão deitadas, uma

de frente para a outra, conversando. Anabela pede ajuda


para se levantar e seguir até o banheiro e eu a deixo lá

dentro, mas fico esperando para a ajudar a voltar para


cama.

Ela não demora muito e pouco depois estão as duas se


lambuzando de calda e mel e se deliciando com as

panquecas.
— Bem que você disse que sabia fazer, ficaram

incríveis! Sabia que eu nunca comi panquecas doces? —


Anabela elogia.

Se ela nunca comeu, não iria notar mesmo que não

estivessem tão boas.


— Eu também não comi, você fazeu muito bem! —

Maitê concorda, a boca toda suja de chocolate.

Experimento um pedaço e até que ficou gostosa

mesmo, mas eu não conseguiria comer uma inteira. Já elas


comem duas, cada. Maitê toma um copo cheio de leite

morno e Anabela uma xícara de café.


Quando terminam, percebo que Maitê também já

perdeu a paciência de ficar deitada aqui.


— O que vocês querem fazer?

É unânime, as duas querem sair da cama. Então,

encontro um meio termo, decidindo que vamos assistir a um


filme na sala, o que vai fazer com que Anabela mantenha a

perna para cima e fique confortável, sem deixar


completamente o repouso.

Anabela ainda discorda quando eu a pego no colo,


suas bochechas ficam vermelhas com o constrangimento,

mas acaba aceitando. Maitê, por outro lado, desce saltitando


ao meu lado e rindo da cena que para ela parece cômica.

Sigo com as duas para a sala de televisão e coloco


Anabela sentada no sofá. Acendo a lareira, enquanto Maitê

observa a tudo com fascínio.


— Isso vai deixar a gente quentinha, né?

— Exatamente, princesa. Nunca mais você vai passar


frio — falo e sinto um arrepio ao me lembrar do estado em

que ela estava quando a peguei com Anabela na outra noite.


— Senta aqui comigo, Maitê — Anabela chama,

batendo no sofá ao seu lado.

— Vocês fiquem aqui, então — digo, entregando o


controle da televisão nas mãos de Anabela. — Vou preparar
a encomenda que vocês me fizeram e daqui a pouco eu
volto.

Estou me saindo um ótimo cozinheiro, não tanto

quanto Anabela — já começo a sentir falta da comida que


ela prepara —, mas até que consigo me virar bem.
Dessa vez pesquiso como fazer brigadeiro de colher e

me surpreendo ao ver que é bem fácil na verdade. A pipoca


não tem segredo, coloco o pacote no microondas e deixo

que ele faça o trabalho por mim.

Quando tudo fica pronto, despejo o conteúdo da


panela em uma tijela funda e pego três colheres. Depois uso

um pote comprido para colocar as pipocas e completo,


pegando três latas de refrigerante na geladeira. Não é muito

a minha praia, mas posso abrir uma exceção hoje e, pelo


horário, esse vai acabar sendo nosso almoço.

O filme até que é legal, mesmo que seja fantástico


demais e cheio de criaturas sobrenaturais, o enredo é
interessante e a história é bonita, instigante. Claro que
ainda assim fiz algumas piadas desnecessárias só para fingir

que sou adulto demais para isso.


No entanto, quando acaba, Maitê parece decidida a
provar que eu posso ser ainda mais criança que isso. Ela

está adorando nossa programação, mas já decretou que o


próximo filme do nosso cinema vai ter que ser um desenho.

Ela se levanta e fica de pé à minha frente, os olhos


cheios de expectativa.

— Podemos ver A fuga das Galinhas? — ela pergunta,


animada.

Começo a rir, sem controle. É surreal a coisa que essa


menina parece ter com galinhas, nunca vi nada parecido.

Chego a chorar de rir, porque a cada dia fica mais claro que
logo minha mansão vai se tornar um galinheiro.
Ao mesmo tempo em que gargalho com as falas dela,
percebo o quanto isso era incomum, antes de Anabela

chegar. Maitê veio depois, como a peça que faltava para


trazer sentido à minha vida outra vez.

— Galinha de novo? — pergunto, ainda sorrindo. —


Você é mesmo uma figura.

— É muito legal — Maitê estende a mão para o balde e


enche a boca de pipocas. — Você tem que assistir! — fala,
de boca cheia.
Ela é tão fofinha que não acho que seja o melhor
momento para ensinar que deve comer antes de falar.

— Por mim, tudo bem, vocês duas decidem.


Eu me sinto tão leve hoje, que é como se fosse um
novo Matteo. Um que não usa terno o dia todo, nem fica
escondido do mundo dentro da biblioteca. Um Matteo mais

tranquilo, mais divertido, que assiste a filmes infantis, conta


histórias e cozinha para passar o tempo.

Percebo o quanto eu gosto disso, dessa minha nova

versão. Talvez seja cedo para dizer que estou livre do


passado, mas gosto de estar me permitindo, vivendo essas
novas experiências e seguindo em frente.
Maitê volta a se sentar quando colocamos a animação
que escolheu, mas dessa vez do outro lado, deitando a

cabeça no colo de Anabela, que brinca com os fios dourados


do cabelo dela. Ela adormece em seguida.

Sem pensar muito, seguro a mão de Anabela com

carinho e ela retribui o gesto apoiando a cabeça em meu


ombro. Sem aviso, o pensamento de que parecemos muito
com uma família passa pela minha mente, mesmo sabendo
que não era o que eu planejava quando comecei a me
envolver com Anabela. O plano era ser casual, só sexo, e

depois ela voltaria a ser a governanta, a cumprir seus


deveres e a morar em seu chalé, e eu voltaria a ser o homem
amargo e recluso que sempre fui.

Talvez eu não consiga mais separar as coisas e quem

sabe elas possam ser diferentes e possamos ficar bem. Não


estou seguro de que não vou retroceder em minhas atitudes
e naquela depressão que me assolava antes, mas não vejo
algo acontecendo que me tire a felicidade que estou

vivendo agora.
— Em que você está pensando? — Anabela pergunta.
— Parece que está em outro lugar.

— Estou pensando no futuro — admito.

— Com Maitê?

— Isso. Também — digo, sem revelar demais.


Não quero dizer a ela o que estou pensando agora,
como me sinto, não quero dar esperanças de que isso possa

ser permanente, quando ainda não estou completamente


curado e não quero estragar um momento bom como esse.

— Eu tenho pensado muito na faculdade.


— Não tem que se preocupar. Você vai se sair bem —

digo. — É muito inteligente e determinada.

Ela me olha e parece procurar por sinceridade no que


digo. E encontra.
— Obrigada.

Maitê mexe a cabeça sobre o seu colo, querendo


acordar e me levanto imediatamente.
— Vou levar Maitê para o quarto.

A pequena balança a cabeça outra vez e abre os olhos


azuis sonolentos.
— Eu não quero ficar sozinha.

Eu a pego no colo e sigo com ela para a escada.


— Você nunca mais estará sozinha, filha.

Quando chego ao quarto, coloco Maitê na cama e puxo


as cobertas para a cobrirem até a altura do queixo. Ela se

vira de lado, se ajeitando melhor e pisca os olhos.


Acaricio seus cabelos macios e me viro para deixar o
quarto.

— Boa noite, papai — ela diz.

Sua voz me alcança e sinto um misto de emoções. É a


primeira vez que ela me chama diretamente assim, ainda
que já tenha entendido que sou seu pai.

Algo dentro de mim muda nesse instante, se aquece e


me sinto aliviado por perceber que esse amor, o que estou
sentindo por Maitê e ela por mim, só tende a crescer a cada

dia e é o tipo de sentimento que jamais irá ser tirado de


mim. O que sinto por Anabela também pode ser assim, se
eu me arriscar…
— Boa noite, minha filha.

Encosto parcialmente a porta e aguardo por um


momento do lado de fora. Só desço as escadas quando
tenho certeza de que ela pegou no sono e não vai despertar
com medo.

Encontro Anabela ainda sentada na sala, mas ela


retirou o filme da galinha e está procurando por algo
diferente.

Eu me sento ao seu lado e me recosto no sofá. Ela

desvia os olhos para mim e parece perceber o quanto estou


reflexivo.
— Que foi?

— Ela me chamou de papai — conto, sem rodeios.


— Ahhh! Essa menina é um amor, Matteo! —
comemora. — Fico feliz em ver o quanto você tem se aberto
para ela e o quanto ela está feliz por ter te encontrado.

Aquiesço, concordando. Noto que o fogo na lareira

precisa ser reavivado, os relacionamentos também são


assim, se houver esforço das duas partes para manter a
chama acesa, ela pode queimar eternamente. Pode ser
assim entre nós.

— Eu pensei um pouco em tudo mais cedo, sabe? As


coisas mudaram muito desde que você chegou aqui.

— Eu? — Ela parece surpresa.


— Sim, começou com você — falo, sem conseguir

conter as palavras. Estou sentindo tanto, que não consigo


ignorar. — Primeiro você me desafiou, aquilo me tirou de um
estado de apatia.

— Sei. — Ela sorri. — É o poder de uma botina suja


jogada na cabeça de alguém.
— Com certeza foi uma concussão, porque depois
disso não fui mais a mesma pessoa — respondo, sorrindo

com a lembrança.

— Acha que fiz alguma diferença na sua vida?


— Alguma? Você mudou tudo, Bela. Me instigava,
desafiava e conseguiu me fazer rir, algo que eu parecia ter
esquecido como era e ainda nem falei nada sobre o sexo.

Anabela parece constrangida agora.


— Melhor deixar essa parte pra lá.

— Me diverti tanto com você aquele dia no lago, algo


que eu não fazia a muitos anos, foi perfeito.

— Foi mesmo — ela concorda.

Seguro sua mão na minha, me sinto nervoso, como se


a estivesse pedindo em casamento.
— Mas aí eu voltei e aconteceu tudo. A Sofia, a Maitê…

Eu retrocedi e me fechei de novo.

— Sim, você me afastou. — Anabela parece se lembrar


disso com certa frustração.

— Eu preciso te dizer três coisas.

— O quê? — questiona, seu olhar encontra o meu.


— Eu gosto de você, não sei mensurar ainda o que
esse sentimento significa e o quanto é forte, mas gosto

muito de você — admito. — Fiquei louco de preocupação


com você lá fora, na chuva, assim como me preocupei com a
Maitê.
Sondo seus olhos âmbar como o uísque, e sinto
vontade de mergulhar neles e descobrir o que veem quando
me olham, mas não preciso lutar muito, porque ela diz, sem

ressalvas…

— Também gosto de você assim.


— Eu quero tentar, se você quiser. Por enquanto
apenas entre nós dois, não sei… Pensei muito nisso e não

quero te dizer uma coisa e depois agir diferente — falo,


assumindo meus medos.

— O que quer dizer? Está dizendo que quer tentar


algo não tão casual assim? — ela questiona, tentando

simplificar o que estou complicando.


— Anabela… Não sei o que vê quando olha pra mim,
mas eu sou um homem mais quebrado do que você
imagina, tenho problemas seríssimos de confiança e uma

espécie de trauma, carrego arrependimentos.

— Eu vejo um homem incrível, que sofreu muito, se


decepcionou muito, mas que está se reerguendo.
— É exatamente o que eu sou, mas você, ainda que eu

tenha te contado algumas coisas, não conhece a dimensão


de tudo que aconteceu, do quanto isso está enraizado em
mim. O que eu quero dizer é que, quero tentar, quero que
você saiba que é importante pra mim, que não é algo
apenas físico. Mas também quero e preciso que você saiba,

que ainda não entendo o quanto estou curado dessa ferida.

— Tem a ver… Com a morte do seu irmão? Fiquei


sabendo que eram muito próximos — ela pergunta, não

querendo se intrometer demais.


Talvez ela imagine, talvez tenham dito a ela o que
aconteceu, mas ainda assim, ela não diz.

— Sim, tem a ver com isso. Miguel era uma das

pessoas que eu mais amava no mundo e carrego muito da


culpa pela morte dele nas costas.
— Matteo… — ela chama meu nome com carinho. —
Você nunca pensou em se abrir com alguém? Talvez possa

fazer isso com um profissional, mas acho que o que faz essa
sua culpa te corroer é o fato de guardar tudo aí dentro —
diz, colocando a mão sobre o meu peito.

— Não pensei, mas eu não pensava em muita coisa

enquanto vivia aqui, enclausurado.


— Deve pensar agora, então O que acha?
— Prometo considerar a possibilidade — respondo. —
Você entende o que eu disse?

— Acho que sim. Disse que gosta de mim e quer


tentar se envolver, mas não quer me prometer nada porque
tem medo de que algo aconteça e você se feche novamente.
— É. Mas sei que estou pedindo muito, pedindo que

arrisque seu coração em uma dúvida.

— Mas também vou viver uma dúvida eterna, se não


arriscar.
— Podemos ser mais cautelosos, se preferir.

— Cautelosos? Acho que já ultrapassamos todos os


limites do casual, Matteo. Não fomos nada cautelosos.
— E tudo bem pra você?

— Eu quero tentar — ela diz, apertando meus dedos


entrelaçados aos seus.
— Eu também.
Finalmente a segunda-feira chegou e, por mais que
estivesse amando o meu tempo a sós com Matteo e Maitê,

principalmente depois da minha última conversa com ele,

não via a hora de poder sair da cama e voltar ao trabalho.

— Olha só, acho que já consigo andar e fazer algumas

coisas. Mancando um pouco, talvez… — completo quando


sinto uma pontada de dor.

— Ao menos por mais hoje você e Maitê deveriam ficar

aqui em cima, quietinhas — Matteo retruca.


— Mas não disse que seu amigo chega hoje? Preciso

preparar um quarto e checar a despensa.

— Não precisa fazer isso. — Ele meneia a cabeça. —

Não foi por esses motivos que me pediu que contratasse

mais funcionários? Vou pedir que uma delas venha te ver e


aí você pode instruir a pessoa.

— Matteo! Elas não podem me encontrar na sua cama.

Ficou doido?

— Por que não? Vou dizer que instalei vocês duas aqui

por ser mais confortável e dormi no quarto de hóspedes.


— Mas… Ainda é muito íntimo.

— Nós somos íntimos — ele responde, dando de

ombros.

Não sei o que fazer com ele agindo assim e dizendo

essas coisas. Desde que eu soube da história dele e que

conversamos mais abertamente, comecei a ver Matteo por

outra perspectiva.

Ele não é alguém que procura relacionamentos


casuais ou que não quer se comprometer. É um homem

quebrado, que tenta ainda superar as mágoas e os

sofrimentos do passado. Mas a cada dia que passamos


juntos, a cada comentário afetuoso dele e gestos carinhosos,

mais vejo o quanto ele já evoluiu, como tem vagarosamente

se livrado dos seus fardos e se tornado mais leve e, com isso,

sinto meu coração se encher de esperanças.

Foi quando ele pegou Maitê dos meus braços e correu

com ela na direção da casa, que vi em seus olhos o quanto

estava também preocupado comigo, dividido. Foi ali que eu


soube que o que temos não é algo superficial de maneira

nenhuma e foi no calor do abraço dele, quando retornei, que

entendi. Eu não tenho mais como evitar me envolver, não

quando já estou completamente apaixonada, as palavras

dele ontem, confessando isso, foram apenas a certeza de

que eu precisava para me arriscar ainda mais.

Matteo faz o que diz e deixa o quarto. Inalo

profundamente, sentindo o cheiro do perfume dele. Minhas

mãos passeiam pelo cobertor macio e percebo o quanto me


sinto confortável aqui, na cama dele.

— Belinha… — Maitê chama, me surpreendendo com

o novo apelido. — Você acha que eu posso tomar um pouco

de chocolate quente?
— Hum… Será que não vai ter dor de barriga? Já

tomou hoje.

Ela nega com a cabeça.

— Mas eu quero com pedaço de nuvem.

— Pedaço de nuvem, é?

Ela aquiesce e se recosta em mim. Não demora muito

e Helena passa pela porta, os olhos nos encontram

abraçadas no meio da cama e ela sorri. Não há julgamento

em seu olhar.

— Como as senhoritas estão? — pergunta, sorrindo.

— Estou bem, meu pé já desinchou bastante e o roxo

está melhorando também. Acho que amanhã já consigo


voltar à ativa, mesmo que com menos esforço.

— Não se preocupe com nada, vamos colocar tudo em

ordem. E a pequena?

— Eu tô bem, mas vou ficar melhor se puder tomar

uma canequinha de chocolate quente — Maitê fala, fazendo

seu drama.

— Se a senhorita Anabela disser que pode…

— Pode, Helena. Ela é muito boazinha, só não traz

muito porque Maitê tem que jantar depois.


— Tá bom. O Presidente pediu que eu viesse ver o que

você quer que nós façamos hoje…

— Então, um amigo dele vem fazer uma visita, chega

hoje, mas vai ficar alguns dias. Preciso que preparem um

quarto pra ele.

— Certo.

— Se puderem se juntar, seguindo pelo corredor aqui,

tem a ala que está fechada. Quero reabrir, porque lá tem

mais quartos, mas precisam ser limpos, devem estar

cobertos de teias de aranha e as roupas de cama precisam

ser lavadas também. Mas é melhor começar hoje porque


pelo que o Matteo disse, a família dele também vai chegar

logo, os pais e a irmã com o cunhado e o bebê, em alguns

dias.

— Certo, vou conversar com Elis e Suzi.

— Isso. Se precisar, chame o Pedro pra ajudar. E, por

fim, peça pra Elis conferir a despensa e a geladeira e fazer

uma lista de compras, não precisam ir até o mercado, eles

entregam aqui.

— Tá bom.
— Ah! Você sabe cozinhar? — pergunto, me

lembrando do mais importante.

— Sei sim, até que me saio bem.

— Ótimo. Então tente cuidar do jantar e não deixe a

Elis temperar nada, pelo amor de Deus.

— Tá bom — ela ri —, vou cuidar de tudo e te aviso

sobre qualquer coisa. E logo trago seu chocolate, Maitê.

Aquiesço, observando Helena deixar o quarto. É

engraçado o quanto me sinto inútil apenas dando ordens e

coordenando as coisas, o que é bobo, porque em teoria é o

que eu deveria fazer nesse cargo.

Enquanto assisto ao pôr do sol do deck, observo um

carro esportivo subir a encosta. Não preciso de muito mais

para saber que é Greg, ele sempre adorou exibir os carros da


empresa de sua família, chamativos e ostensivos e quando

está no Brasil, não resiste à ideia de proclamar a riqueza dos

MacKintosh.

Desço rumo a porta de entrada e o aguardo,

impaciente.

Logo, Greg e um outro cara, que se parece muito com

ele, descem do carro e caminham na minha direção.

Expansivo como sempre, meu amigo mais antigo me

envolve em um abraço forte, na mesma hora.

— Viturino, porra… Você tá ainda mais feio que eu me

lembrava!
— Já você se parece com uma boneca, MacKintosh!

Ele ri alto e aponta para o cara ruivo ao seu lado.


— Meu irmão, Yan. Lembra dele?

— Acho que o vi na formatura — respondo, analisando

o rosto do outro. Me parece familiar.


Yan me cumprimenta com um aperto de mão, mas

parece mais sério que o irmão, o que é bom, porque dois


como Greg eu não iria suportar.

— Espero que não seja um problema, ter trazido Yan


comigo. Não avisei, mas nessa casa abandonada deve ter
lugar pra mais um.

Greg eleva os olhos para a casa e parece analisar os

arredores.
— Não é um problema — respondo e, para meu

espanto, percebo que realmente não é. Não estou


incomodado por ter mais uma pessoa hospedada aqui. — E,

ao contrário do que pensa, minha casa anda bem habitável.

Ele parece considerar o que digo, porque assente,


passando a mão pelos cabelos ruivos.
— Se está dizendo... — Greg abre um sorriso de canto

e fita o irmão. — Yan e eu trouxemos uma surpresa pra você,


meu amor — fala, fazendo suspense.

— Espero que não seja uma aliança.

— Não, é uísque e dos de verdade, nada como essa


água suja que você gosta de tomar.

— Pelo menos sua visita valeu de alguma coisa, então.


Greg corre até o carro, de onde pega a bagagem no

porta-malas e depois volta para perto de nós trazendo um


saco pardo também.

— Vamos entrar — chamo, seguindo na frente —,


devem estar querendo um banho, mas podemos beber
depois.

Depois de pedir a Helena que conduza os irmãos aos


quartos, que já foram arrumados de manhã, espero que se

juntem a mim no escritório.


Helder entra pela porta trazendo os copos que solicitei

e peço a ele que avise Anabela e Maitê que estou com Greg
e que depois subo para ficar um pouco com elas.

Yan aparece antes do irmão, trocou as roupas de


viagem por jeans e camiseta branca e usa uma jaqueta de

couro marrom por cima de tudo, combinando com as botas.


Noto isso porque os dois são bem diferentes nesse quesito,

enquanto Greg prefere roupas mais sociais, seja na Escócia


ou aqui, no Brasil, Yan parece ter um estilo mais rústico.

— O Greg já vem — ele diz, entrando no cômodo.

— Senta aí. Que tal um charuto? — pergunto, pegando

a caixa dentro da gaveta.


— Ainda fuma isso? Meu irmão dizia que na época da

faculdade vocês fumavam. Não é meio antiquado? —


questiona, sorrindo de um jeito meio debochado.

— Já experimentou com uísque? Não tem coisa


melhor, mas não pode tragar — explico, usando a lâmina de
cedro que está na caixa para acender um deles.

Yan ri outra vez e meneia a cabeça.


— Sei disso, quer ensinar um escocês a fumar,

Viturino?

— Pelo que sei, sua especialidade é o uísque.


Greg entra pela porta nesse instante e abre um sorriso

ao ver o charuto aceso.

— Ahh, os velhos tempos.

— Demorou esse tempo todo pra tentar dar um jeito


nessa cara de assombração? — provoco.

— Precisava ficar bonitão, não acha? Faz séculos que


não vejo meu amigo desgraçado.

— Não adiantou muita coisa, sinto muito.

Ele me dirige um olhar fuzilante e puxa uma cadeira


para se sentar ao lado do irmão. Estendo a caixa com os

charutos e cada um pega o seu, tratando eles mesmos de


acenderem.

Greg coloca a garrafa do tal uísque sobre a mesa e o


nome no rótulo chama minha atenção.

— MacKintosh? Sua família está produzindo?


— Yan está mais envolvido com a destilaria — conta,

parecendo orgulhoso do caçula. —, estamos começando a


avançar, mas parece promissor. E a bebida, garanto que

nunca tomou uma igual.

— Vou testar sua palavra agora mesmo.


Greg abre a garrafa e enche nossos copos
rapidamente.

— Então se decidiu por tocar os negócios de família na

Escócia? Fazia tempo que não vinha pra cá.


— Na verdade fico indo e voltando, as coisas estão

meio complicadas.

— Como assim? Pensei que tivessem herdado tudo

quando seu pai morreu.


— Herdamos um monte de dívidas, nosso financeiro

não vai bem — Yan diz, tomando o uísque em apenas um


gole.

Volto os olhos para Greg, mas ele não nega.


— É, mas se conseguir vender a empresa aqui no

Brasil, posso liquidar as dívidas que temos na Escócia. E se


vender a propriedade e os negócios lá, posso viver

tranquilamente no Brasil.
Sirvo outra dose da bebida para Yan, enquanto
assimilo as informações.

— E por que ainda não fez isso?


Greg solta a fumaça, parecendo considerar.

— Ainda não sou bem o dono, aqui. Meu avô não me


passou tudo no papel— fala, simplesmente —, e o Yan

prefere ficar na Escócia, ele gosta dessa vida no campo.


— Tem campo de sobra aqui no Brasil também.

— É mais que isso. Tem a questão da cultura, nossas

origens, a família…
Aquiesço, compreendendo o dilema.

— Só que o Greg adora isso aqui também, a empresa


— Yan explica.

Realmente a rede de concessionárias que vai herdar


do avô sempre foi uma das paixões dele, por isso a loucura

por carros esportivos. Por outro lado, sei o apreço que sente
pelas terras nas highlands, o lugar em que seus

antepassados viveram. Vender aquilo lá seria como abdicar


da cultura da família.

— Mas e você? O que tem feito enquanto eu estive


fora? — Greg pergunta, vendo que não tenho nenhum
conselho sábio a oferecer.

A pergunta me arranca uma risada. Por onde


começar?

— Sofia apareceu.

Greg se engasga com a bebida e arregala os olhos.

— Aquela vaca veio até aqui?

— Não exatamente, mas apareceu com uma criança,

dizendo que era minha filha.


— Porra! Como se você fosse acreditar, depois de tudo

que aquele demônio fez.

Tomo um gole do uísque, que desce queimando pela


minha garganta. Não quero admitir tão rapidamente, mas é

mesmo muito bom.


— Não acreditei quando ela disse, mas minha mãe me

convenceu a fazer um teste de DNA, ao menos assim tiraria


a história a limpo.

— E então?

— Ela realmente é minha filha, está deitada em um


quarto lá em cima e vai adorar conhecer você.

Greg me encara confuso, o outro então não deve estar


entendendo nada dessa conversa. Ele não sabe sobre Sofia.
— Explique isso melhor, Viturino. Parece que estou
perdendo alguma coisa — Greg questiona, franzindo o

cenho.

— Sofia está morrendo, está doente, por isso me


chamou.
— Porra… E dizem que vaso ruim não quebra.

Ignoro o comentário sarcástico, porque apesar de


tudo, me sinto melhor não tripudiando em cima de quem
está prestes a cair.
— Fiz o teste e trouxe Maitê pra casa, minha vida virou

de ponta cabeça, mas as coisas estão se ajeitando, estamos


nos aproximando.

— Ela escondeu a menina esses anos todos?

— Escondeu? Ela abandonou a filha em um orfanato


— conto —, e só me falou sobre ela porque está à beira da
morte e acho que se sentiu culpada.

— Puta que pariu, Viturino! Não acredito que a

desgraçada fez isso. Qualquer um na sua família ficaria com


a menina.
— Ela sabia disso, fez por maldade mesmo. Mentiu
que tinha abortado, você se lembra.
— E vocês estão se dando bem? Você e a garota?

— Quando ela veio comigo eu ainda não sabia, não


queria aceitar que era minha. Tinha certeza de que era…
dele.
— Merda…

Greg meneia a cabeça, ele é o único além da minha


família e Helder, que sabe sobre Sofia e Miguel.
— Vocês vão ficar de segredinhos? Não entendo
metade do que estão falando — Yan reclama, alheio ao

assunto.

— É só prestar atenção, idiota. — Greg desvia os olhos


para o irmão. — Sofia era mulher do Matteo, mas era uma
vaca e meteu o chifre nele.

— Você é um amigo adorável… — comento, bebendo


um pouco mais.

— Só estou explicando por cima.


— Acho que já entendi, ela apareceu com a filha e

você achou que era do amante — Yan completa.

— É, por aí. Quando chegamos aqui, pedi que Anabela


cuidasse dela, até resolver isso, mas quando o resultado saiu
eu fiquei mal. Pensem em tudo que a coitadinha passou

esses anos todos…

— Que barra, cara. E quem é Anabela? — Greg


questiona, percebendo a informação nova.
— A governanta — respondo, mas a palavra agora

parece soar errada —, Senhorita Gonzales, na verdade.

— Uma governanta que é uma senhorita? Pensei que


fossem todas velhas — fala, rindo.
— Não — Também acho graça no comentário. —

Também pensei que fosse, mas essa não é.

— É, Viturino, parece que sua vida anda bem


movimentada, pra quem não sai dessa casa. Achei que ia
chegar aqui e te encontrar naquele mal humor de sempre, a

casa coberta de poeira e teias de aranha, mas parece que a


víbora ressurgir pra te atormentar, trazendo sua filha a
tiracolo, fez com que as coisas se agitassem por aqui.
— Isso, e a tal governanta jovem… — Yan fala,

provando ser mais perspicaz que o irmão.

— Imagino que seja muito bonita... — o outro entra na


pilha logo.
— Cai fora, Greg. A garota está aqui pra trabalhar —

falo, e eu mesmo posso perceber o ciúme em minha voz.

Merda.

— Está gostoso?
Maitê beberica o chocolate quente que Helena trouxe.

Estamos assistindo a Hotel Transilvânia e, ainda que

seja um filme para crianças, também estou curtindo a


animação.
— Uma delícia, você deveria fazer toooodo dia.

— Sei, formiguinha.

Faço cócegas na barriguinha dela e Maitê gargalha,


mas consegue manter a caneca nas mãos.
— Terminaram? — Elis entra no quarto, toda

sorridente. Acho que está feliz por Matteo não a ter


dispensado.

— Tô acabando, Elisinha — Maitê fala, com sua mania


de diminutivos.
Elis bagunça os cabelos da pequena e para ao lado da

cama, esperando.

— Como está o pé, Anabela?


— Muito melhor, acho que Maitê e eu vamos tomar
banho e descer para o jantar. Não aguento mais ficar nessa

cama!

— Ah, eu achei fofo o Presidente ceder a cama pra


vocês duas e dormir no quarto de hóspedes. Ele está tão
mudado, você não acha?

— Mas o papai dormiu com a gente — Maitê fala, e


arregalo os olhos ao ser desmascarada.

Elis serra os lábios em uma risca fina, contendo uma

risada, e sinto meu rosto arder de vergonha.


— A Maitê estava com a gente — falo, já que é a única
coisa em que consigo pensar.

— Deixa de ser boba — ela responde. Elis se aproxima

da cama e diminui o tom de voz para um sussurro. — Nós


estamos todos na torcida por vocês.
— Ah, Elis… Eu achei que ninguém sabia de nada —
Pego o travesseiro e afundo o rosto nele.

Ouço a risada dela.


— Saber, não sabemos, mas dá pra perceber nos

detalhes. A gota d’água foi ele dispensar todo mundo pra


cuidar de você.

Descubro o rosto.

— Ei! Ele cuidou da Maitê, fez o jantar pra ela, deu


banho. Eu só… só estava aqui!

— Mas ele também te carregou no colo — a pequena


linguaruda me entrega de novo.

— Maitê!

Elis se desmancha em uma gargalhada alta, e Maitê


me encara sem entender o que fez de errado.
— Elis, pelo amor de Deus! Não pode falar isso pra

ninguém, nós não estamos… Bom, eu não sei o que estamos


fazendo e eu sei que não deveria, mas ele…

— É bonitão, eu sei. Estamos torcendo pra que faça

por merecer.
— Ah, eu sei que não sou tão bonita e nem estudada,
mas eu…
Elis meneia a cabeça e me interrompe com uma
risada divertida.

— Não você, ele! Esperamos que ele te mereça. Você é

linda, gentil, educada e tem um coração enorme. Não sei


onde está com a cabeça, mas apoio.
— Sério?

— Ele… — Ela olha para Maitê, mas a pequena já

voltou a se concentrar no filme. — O Presidente é mal-


humorado, reclamão e sistemático. Mas sabe que já consigo
ver mudança? Ele está bem melhor desde que você chegou.
— Acha mesmo?

— Ah! Não sabe que ele decorou nossos nomes? Eu


trabalho aqui tem mais de dois anos e só agora ele sabe
quem eu sou.
Isso me faz rir, é típico dele e, claro, eu já sabia.

— Eu não sei o que fazer, não queria me envolver e


nem me iludir, mas ele não tem me deixado escolha. Ele é
tão fofo, Elis…

— Coitada. Ou bateu a cabeça ou já era, tá


apaixonada, porque fofo ele não é mesmo.
Depois disso as horas se arrastam. O amigo de Matteo
chega e sou informada de que trouxe o irmão. Por sorte Elis
e as outras já terminaram de limpar os quartos.

Maitê e eu passamos uma tarde preguiçosa na cama,


sendo paparicadas e aproveito para ler um pouco do livro
que Matteo me trouxe na outra noite.
Maitê se inclina para olhar sobre meu ombro.

— Que livro é esse?


— Seu pai me emprestou, se chama O Morro dos
Ventos Uivantes.

— É uma linda história de amor? — pergunta,


animada.
— Está mais pra uma história de ódio — falo, olhando
a capa com o cenho franzido.

— Por quê?
— Hum, difícil explicar. Se eu pudesse dar um perfume
a esse livro… Acho que ele cheiraria aquela flor que colocam
nos cemitérios. Credo…

Matteo aparece na porta nesse instante, e Maitê se


vira para encarar o pai.
— A Belinha me dizeu que o senhor emprestou esse
livro pra ela ler.

— Sim, é um romance.
— Ela dizeu que é de ódio — completa, meneando a
cabeça.

— Sério? Não está gostando, Anabela? — ele

questiona, agora rindo.


— E quem gosta? Esse Heathcliff é o próprio diabo na
Terra e essa Catherine? Doida! A mulher tem umas atitudes
que eu não entendo. Será que não tinha Deus nessa época

não?

— Você sabe que é uma ficção, não sabe? — Ele está


rindo da minha indignação.
— A autora também estava precisando de Deus —

concluo, em tom de brincadeira.

— Solução mágica.
Estreito os olhos para ele, que trata minha fala com

descaso.

— Você gosta mesmo desse livro?


— Sei lá. Li em uma época que estava amargurado,
devo ter me identificado.
— É provável. Não tem um romance gostoso e leve pra
ler, não? Pode ser de época assim, eu gosto, só não gostei

desse casal tóxico.

Matteo pensa por um instante.


— Tem um de uma autora nacional que acho que você
vai gostar, a história se parece com a nossa.

— A nossa, é? — Meu coração erra uma batida. Ele


está dizendo que temos uma história de amor?
— O Ogro e a Louca, ou a Louca e o Bárbaro… Um
negócio assim.

— E no que essa história se parece com a nossa?


— Bom, a mocinha vai trabalhar como governanta na
mansão de um marquês. Se não estou enganado, ela

também atira coisas nele… Tem muita semelhança.

— E os dois se envolvem? — pergunto, me animando.


— Claro. Ou não seria um romance.

— Tá bom, quero esse então.


— Vou trazer. Te avisaram que o Greg chegou? — ele
pergunta, mudando repentinamente de assunto. — Ele
trouxe o Yan, irmão dele.
— Sim, me falaram que já haviam preparado os
quartos. Precisa de alguma coisa?

— Não, está tudo bem. Como está se sentindo?


Movimento o pé um pouco e percebo que agora já
quase não dói.

— Bem, acho que estou pronta para voltar à ativa.


— Que bom, talvez possa descer e jantar com a gente.
Maitê também vem, claro.

Penso por um momento, não acho que seja a atitude

mais sensata, considerando que os outros funcionários vão


ver. Mas não consigo negar isso a ele, não quando me disse
que quer tentar, ele está se esforçando.
— Tá, tudo bem. Um jantar pode ser uma boa ideia.
Maitê segura minha mão enquanto descemos
lentamente os degraus da escada. Ela parece uma

bonequinha com o vestido azul rodado de mangas

compridas e meia calça branca que Helena e Timóteo

trouxeram da cidade, e ficou se admirando no espelho


enquanto eu penteava seu cabelo loiro.

Dentre as poucas roupas que Matteo buscou no chalé,

encontrei um cardigan preto que veio na minha mala, mas

que pertence à Julieta. Eu o vesti por cima de uma blusinha


azul escura e coloquei uma calça jeans, lavei meu cabelo e o
sequei com o secador. Não vesti nada muito extravagante

para um jantar com os amigos de Matteo, mas estou muito

melhor que antes.

Ele nos vê chegar e se levanta imediatamente, vindo

na nossa direção e, por sobre seu ombro, consigo ver os dois


rapazes sentados à mesa.

— Eu já ia te buscar. Por que não me esperou? — ele

pergunta em tom de repreensão, sondando meu pé dentro

das sapatilhas.

— Você não vai ficar me carregando por aí com a casa


cheia, Matteo — sussurro. — Além disso, a Maitê me ajudou

a descer, não foi? — pergunto baixinho, me virando para ela.

Matteo desvia seus olhos dos meus para encarar

Maitê, que coloca as mãos na cintura, exibindo as roupas

novas.

— Você parece uma princesa — ele diz e abre um

sorriso.

— Obrigada, papai. — O tom de Maitê é todo meigo,


ela está encantada com o pai, posso ver o brilho em seus

olhos azuis se intensificar quando pronuncia a última

palavra.
— Venham, meninas, quero que conheçam meus

amigos.

Matteo apoia sua mão em minhas costas para me dar

apoio, e Maitê continua segurando na outra, com firmeza.

Quando nos aproximamos da mesa, os dois homens se

colocam de pé. Mesmo que eu não soubesse que são irmãos,

isso ficaria claro com os traços angulosos dos rostos e a


semelhança que há entre eles, além da tonalidade ruiva dos

cabelos.

O primeiro estende a mão para me cumprimentar, ele

ostenta um sorriso gentil.

— Muito prazer, meu nome é Greg Mackintosh.

— Anabela, o prazer é meu — respondo, aceitando o

cumprimento.

O outro é um pouco mais sério, mas também me

oferece um aperto de mão firme.

— Yan Mackintosh — se apresenta.

Apesar de serem bem parecidos, fica claro no primeiro


instante que Yan é mais reservado que o irmão.

— E você deve ser a Maitê. — Greg segura a mão dela

com gentileza e deposita um beijo sobre seus dedinhos.


Maitê assente, tentando segurar um sorriso. — Estou muito

feliz por te conhecer, seu pai e eu somos amigos há muito

tempo.

— Sou eu sim, moço. Amei o seu cabelo — ela elogia,

parecendo mesmo deslumbrada com o escocês.

— E eu amei o seu — ele diz, em tom conspiratório.

Percebo que deixaram o assento ao lado da cabeceira

vazio, e Matteo me conduz até lá, Maitê se senta ao meu

lado.

Elis, Suzi e Helena passam pela porta trazendo o

jantar para a mesa e, de repente, me sinto envergonhada

por estar aqui sendo servida enquanto deveria estar do

outro lado, fazendo meu trabalho, mas elas parecem felizes

em me ver e isso me tranquiliza um pouco. Elis me dirige

um sorrisinho cúmplice e elas parecem estar segurando a

comemoração, também estou contente por ser importante o

bastante para que ele me apresente aos poucos amigos que

tem.

— Bom apetite. — Suzi deixa a última travessa cobre a

mesa. Pelo que parece, Helena preparou um macarrão de

forno, e o cheiro está maravilhoso.


— Obrigada, Suzi — digo.

— Obrigado, Suzi. Agradeça também a Elis e Helena,

por favor — Matteo completa.

Suzi paralisa e é a minha vez de segurar o riso. Por

essa ela não esperava. Matteo tem melhorado visivelmente,

e acredito que boa parte do progresso se deva à Maitê.

— Podemos? — Greg pergunta, apontando para a

refeição diante de nós.

— Como sempre, esfomeado — Matteo comenta e

dirijo um olhar assustado a ele, mas percebo que os dois

estão sorrindo.

É até engraçado assistir o Presidente turrão brincando

com alguém, não que ele não o faça comigo, mas nunca o vi

agir assim com outras pessoas. Parece ser uma boa

amizade.

Pego o prato de Maitê e começo a servir um pouco do

macarrão, porque já vi seus olhinhos espertos sondando

tudo com curiosidade. E fome.

— E então, Anabela, Matteo comentou que você é a

governanta? — ele fala, mas no fim soa como uma pergunta

casual.
— Isso mesmo — concordo.

A situação é um pouco desconfortável, porque estou

fora do meu lugar como funcionária, mas ele não parece

questionar por mal, está apenas curioso.

— E agora está ajudando o Viturino a cuidar da Maitê?

— Sim. — Troco um olhar rápido com Matteo, e a

serenidade em seus olhos me faz relaxar.

Greg olha de mim para o amigo e estreita um pouco

os olhos claros.

— Você é de onde mesmo?


— Minha nossa, Greg. Vou pedir para que ela preencha

a ficha completa, cara fofoqueiro… — Matteo fala, mas não

parece incomodado de verdade, acho que eles se tratam

assim o tempo todo.

— Sou de São Paulo, minha família mora lá.

— E o namorado? — ele pergunta, e Matteo tem um

acesso de tosse, acho que se engasgou com um pedaço de

carne.

Suspeitava de que eles já tivessem a par do meu

envolvimento com o Presidente, mas, pelo visto, não. Ele


deve estar desconfiado e provocando o amigo para tirar a

prova.

— Ah… Eu não tenho — respondo, e coloco o prato de

Maitê diante dela.

— Como você é inconveniente, Greg — Yan reclama,

mas está com um sorriso no canto dos lábios.

— Típico dele. — Matteo bebe um gole do vinho e


meneia a cabeça.

— Foi só uma pergunta inocente, Anabela, sem


segundas intenções.

— Tudo bem. — Ofereço a ele um sorriso amigável.


Matteo se recosta à cadeira confortavelmente,

enquanto encara o amigo.

— É claro que foi inocente. A menos que a sua


intenção seja se entender comigo lá embaixo, no ringue.

Você lembra como o meu punho direito bate forte, não é


MacKintosh?

Apesar de ser só uma brincadeira entre eles, gosto


muito de ver Matteo enciumado, ou quase isso, é idiota, mas
me faz perceber que ele se importa. Greg, no entanto,

comemora. Acho que esse era o objetivo desde o começo.


— Ah não, Viturino, não vou ser saco de pancadas
dessa vez. Toda vez que venho você tenta me convencer de

que apanhar é lazer. Deixo essa tarefa para o meu irmão, aí


sim você vai ter um adversário à altura.

Matteo direciona o olhar para Yan, acho que


analisando o oponente, mas, antes de responder a

provocação do amigo, Helder invade a sala de jantar com


um celular nas mãos e um sorriso enorme no rosto.

— Me desculpem a intromissão, mas a senhora


Viturino está na linha, disse que tentou ligar para o senhor,

Presidente, mas não está conseguindo falar — ele explica,


oferecendo o telefone.

Matteo tateia os bolsos, antes de se voltar para Helder.


— Acho que deixei meu celular no escritório. — Ele

pega o outro aparelho das mãos ágeis de Helder.

Nós quatro esperamos enquanto Matteo decide sobre


sair ou não da mesa, mas parece achar melhor ficar onde

está. Ele leva o telefone ao ouvido, antes de falar.


— Oi mãe… Sim, deixei meu celular no escritório…

A expressão em seu rosto se transforma em um sorriso


e ele me encara por um segundo, compartilhando este
momento comigo.

— Que coisa boa. O bebê e ela estão bem? — Ele faz


uma pausa e me atento, tentando compreender se Catarina

entrou em trabalho de parto. — Sim, agora é vovó pela


segunda vez, Maitê ganhou um priminho.

Maitê abre a boca, surpresa, e leva a mão ao coração.


Sua reação me deixa emocionada, afinal, ter uma família é
tudo o que a pequena sempre quis e ganhou um pai, avós,

tios e um primo, tudo de uma vez só.

— Um priminho? — ela pergunta, animada. — É um


bebê, Belinha?

— Isso, Maitê, filho da sua tia Cat.

Maitê tomba sua cabeça sobre meu braço, sorrindo.

— Acho que vou desmaiar de felicidade! Eu nunca tive


um bebezinho.

Matteo também sorri, está radiante. É como se, a cada

experiência feliz, ele se libertasse de uma outra ruim, como


se cada vez ficasse mais próximo da porta que o manteve
preso no passado por todos esses anos.

— … Sim, sei que ela precisa conhecer o avô, a Cat, o


Alberto e o bebê. Para o Natal? Sei… É verdade, pedi que
abrissem a ala fechada da casa, mas… Uma festa? Acho que

não precisa tudo isso… — Matteo tenta se esquivar, mas


acho que a mãe é mais esperta. — Claro que quero dar um

primeiro natal em família para a Maitê…

Agora a pequena solta um gritinho e começa a dançar

na cadeira, acho que a empolgação dela termina de o


convencer.

— Tudo bem, mãe, pode ser, sim…

Helder observa, admirado, e sua mão repousa sobre

meu ombro, como se quisesse garantir que eu também


estou ouvindo o que Matteo diz. Sabe-se lá quanto tempo

essa casa não vê uma comemoração de Natal e, no que


depender de mim, será perfeito.

Matteo se despede da mãe e encerra a chamada, mas


todos nós o encaramos admirados, ninguém aqui acredita

que Matteo acabou de concordar com uma festa.

— É o bebê. Nasceu — ela explica, como se nossa


surpresa se devesse a isso.
— Você vai dar uma festa de Natal, Viturino? Foi isso

mesmo que ouvi? — Greg questiona, por todos nós.


— É só uma reunião familiar, Greg, nada de mais, e, se

ficar me azucrinando com isso, não te convido.

— Eu viria mesmo assim, não perderia por nada a


chance de ver a fênix renascer das cinzas.

Matteo meneia a cabeça, forçando uma impaciência


que não existe.

— Ah, cala a boca.


— Olha só o que o papai dizeu, é feio. — Maitê puxa

meu cardigan, apontando para o pai.

— Me desculpe, filha.

— Tem que pedir desculpa para mim, Viturino — Greg


fala, colocando uma garfada de macarrão na boca.

— Sai fora.

Uma reunião familiar com muita comida, música,


presentes e luzes. Não vejo a hora de começar a organizar

tudo, mesmo que talvez eu não participe como convidada.

Os dias que se seguiram foram simplesmente

perfeitos. Maitê e eu fomos até a cidade comprar roupas e


outras coisas que pudessem transformar o quarto de
hóspedes no quarto dela.

Timóteo nos acompanhou e compramos brinquedos,


colchas de personagens e uma televisão novinha, tapetes

novos e uma cortina rosa, além de um coelho de pelúcia


maior que ela. Depois de tudo pronto, a princesa não quis

mais sair de lá. Agora ela só pede companhia até


adormecer, mas já aceita ficar em sua cama, na companhia

do enorme coelho.
No entanto, quando decidi voltar para o meu chalé, as

coisas se complicaram foi com o Presidente.

— Por que você quer voltar para lá? Todos vão vir,

mas…
— Todos quem? — pergunto, apenas para que ele

mesmo ouça sua própria resposta.

— Meus pais, Cat, Alberto e o bebê. E Greg e Yan vão

embora, mas voltam para a comemoração de Natal.


— Pois então, quanto às visitas fique tranquilo, eu já

havia instruído as meninas a reabrirem a ala ao lado, então


os quartos estão prontos pra receber mais hóspedes.
— Você é perfeita! — Ele segura em meu rosto e beija
minha boca rapidamente.

— Por falar nisso, vai ser perfeito se o senhor

Presidente treinar as mãozinhas pra ficarem longe de mim


enquanto as visitas estiverem aqui.
— Ah, merda… Não tinha pensado nisso.

— Parece decepcionado — falo brincando, mas

satisfeita por perceber que não sou a única a querer ficar


sempre perto dele.

— E estou, eles não vão embora antes do Natal. Tenho


certeza, principalmente por causa da Maitê, vão aproveitar a

oportunidade de reunir a família, minha mãe finalmente


tem dois netos, ela está nas nuvens.

— Isso é verdade.

— Mas eu posso dar uma escapadinha e ir até o chalé,


quem sabe?

— É arriscado, com tanta gente na casa.


Mas Matteo não parece disposto a perder todo esse

tempo.

— Vale o risco, qual o problema também se


descobrirem?
— Você não pode estar falando sério…

— Mas estou.

Sua resposta faz com que um frio se instaure na boca


do meu estômago, estamos avançando, mas não sei
exatamente o que nós somos, ou o que vamos nos tornar.

— Então volto ao chalé hoje, antes que a sua família

chegue e você… Bom, seja discreto.


— Combinado.

E depois disso voltei para o meu chalé, mas Matteo

escapava da mansão uma noite ou outra para dormir


comigo no sofá-cama. Muitas manhãs acordamos juntos e
ele voltava correndo, antes que Maitê acordasse.
Greg e Yan realmente foram embora, com a promessa

de que voltariam para o Natal, e acabei me empolgando


com a decoração da casa. Mais animado que eu, só o senhor
Helder, que até se ofereceu para ser o Papai Noel, o que
achei uma excelente ideia.

Finalmente chegou o dia em que os pais de Matteo,


Catarina e a família vão chegar.
Maitê está muito ansiosa para conhecer todos e por
isso estou me dividindo entre ela e as tarefas. Os biscoitos já
estão no forno, assando para o café da tarde, os quartos
estão limpos e prontos para acomodar todos, Maitê já tomou

banho e cuidei de deixar a pequena ainda mais linda para


conhecer a família e, agora, nos minutos que me restam,
preciso ficar apresentável também.

Visto uma jaqueta jeans sobre o uniforme e coturnos

pretos que, embora tenham muitos anos, ainda parecem


novos. Faço uma maquiagem básica, com base, pó, blush,
rímel e um batom nude. Enquanto penteio meu cabelo,
ouço o primeiro carro estacionar.

Pego meus brincos sobre a cômoda e os coloco


enquanto saio do chalé. Catarina está abraçando Matteo
enquanto Helder cumprimenta Alberto. O pequeno Otávio,
pelo que parece, está no bebê-conforto.

— Você está linda, Cat — Matteo elogia.


Ela direciona um olhar desconfiado ao irmão.

— Quanta gentileza! Obrigada.

Eu me aproximo deles devagar e vejo uma cabecinha


curiosa apontar na porta da casa e depois se esconder outra
vez.
— Anabela! Que bom te ver aqui! — Cat me envolve

em um abraço apertado.

— Muito bom te ver também, e o Matteo tem razão,


você está mesmo linda.
Ela olha de mim para ele e sorri, desconfiada. Outra

vez estou chamando o patrão pelo nome, sou um desastre


em manter a descrição.

Cumprimento Alberto em seguida e enquanto Cat e


Matteo conversam sobre a viagem, eu sigo até a porta. Maitê

está parada ali, escondida e com as bochechas vermelhas.


— Vamos conhecer o priminho? — Estendo minha mão
para ela.

— E se ele não gostar de mim?

Acho engraçado a sua preocupação com o julgamento


do bebê, mas talvez nessa idade ela ainda não entenda que
o raciocínio deles é diferente do nosso.

— Tenho certeza de que vai.


Maitê segura minha mão e saímos juntas para fora,
Catarina interrompe a conversa com Matteo e se aproxima
devagar, seus olhos estão marejados e percebo que ela está
tentando não chorar. Não acho que sejam os hormônios do

puerpério, porque eu também me sinto assim.

— Oi, Maitê.
— Oi… — Ela arrasta os pés no chão e olha para baixo,
envergonhada com a atenção.

— Eu sou a Cat, sua tia. Posso te dar um abraço?


Maitê faz que sim e abre os bracinhos. As duas se
abraçam e vejo Cat segurar o choro para não assustar a

menina, mas discretamente ela passa um dedo pelo canto


do olho, secando a lágrima.

— Nós vamos ser grandes amigas.


— Você é mamãe do priminho? — ela pergunta,

ficando na ponta dos pés para ver o bebê, que está


embalado nos cobertores.

— Isso. Vem cá, vou te mostrar ele direitinho, e


quando estivermos lá dentro você pode segurar um

pouquinho.
Matteo abre espaço para Maitê e, enquanto ela se
estica, ele se agacha para ficar da altura dela.

— Ele é muito bonito, não é?


— Sim, papai, é muito fofinho.
Cat leva a mão ao coração, emocionada, e eu preciso

engolir o nó que se formou em minha garganta.

O segundo carro faz a curva na estrada de terra e para


do nosso lado, um casal mais velho sai do carro e imagino

que sejam Clarissa e Leônidas Viturino. O motorista é quem


abre a porta para os dois.
Clarissa é mais baixa que o marido e extremamente
elegante, seus cabelos estão perfeitamente enrolados e ela

levanta o xale sobre os ombros quando Matteo a envolve em


um abraço carinhoso. Depois ele abraça o pai, o homem usa
um terno impecável e está perfeitamente alinhado, mas
quando repousa as mãos sobre os ombros de Matteo e sorri,
parece muito gentil. Não consigo ouvir o que ele diz, mas

acho que é bom.

Matteo chama Maitê, que vai correndo até onde ele


está. Ela abraça a avó, animada por revê-la, e depois disso

Matteo a apresenta para o avô.


Eu os deixo sozinhos e vou até a cozinha conferir se
está tudo certo para o café, as meninas estão terminando de
pôr a mesa e meus biscoitos, que graças a Helena não se
queimaram, estão exalando o aroma delicioso pela casa
toda.

Aproveito o momento para preparar também um


pouco de chocolate quente, porque sei que Maitê e Catarina

vão gostar.
Quando retorno para a sala de jantar, as mulheres,
incluindo Maitê, já estão sentadas à mesa e se servindo.
Clarissa está segurando Maitê no colo e Catarina está ao

lado dela, amamentando, completamente admirada. Matteo


está conversando com o pai e Alberto, de pé, perto da
janela, bebericando uma xícara de café, mas o senhor
Viturino está mastigando um dos meus biscoitos.

— Fiz chocolate quente — falo, deixando a garrafa na


mesa.
— Ah, Anabela, você não existe mesmo! — Catarina
vai logo enchendo seu copo. — Ela é a governanta, mamãe,

que te falei. A responsável por tudo isso.

Clarissa se levanta por um momento, deixando Maitê


de pé ao lado de Cat.

— Que prazer é te conhecer, Anabela, tenho tanto a


dizer… Só obrigada não é o suficiente. — Ela me abraça
apertado e nesse momento percebo que nossa discrição é
pura bobagem, a verdade é que todos eles sabem o que está
acontecendo.

— Não tem nada o que agradecer, é o meu trabalho —


falo, um pouco sem jeito.
Eu me abaixo para ver melhor o bebê, que Catarina
acaba de colocar de volta no bebê-conforto e está dormindo,

ignorando todo o falatório.

— Não é só o seu trabalho, Anabela, seja sincera. Você


e o Matteo? — Catarina arrisca o palpite e meu rosto queima
de vergonha.

— Deixe a garota em paz, Catarina — Clarissa


repreende a filha.

— Eu só quero saber! Na verdade, eu já sei, mas quero


ouvir dela ou dele.

Maitê levanta a mão para falar. Santo Deus!

— Eu também sei! — grita.


— Sabe de nada, Maitê! — falo. Senhor! Segure a

língua dessa menininha!

Clarissa e Catarina começam a rir, eu estou mesmo


encurralada. Olho por sobre o ombro para ele, mas Matteo
continua entretido na conversa com o pai e Alberto.

— Tudo bem. Está acontecendo, sim, alguma coisa.


— Eu sabia! — Cat comemora com uma dancinha

engraçada.

— Mas não sei o que é, eu não o entendo — confesso.


Percebo que as duas trocam um olhar preocupado, e

Clarissa pede que eu me sente na cadeira livre ao seu lado,


mas, antes que eu me aproxime, ouço um grito vindo do
final do corredor, seguido por alguma coisa caindo.

— O que é isso? Quem gritou? — Catarina fica de pé

em um pulo e se afasta, pegando o bebê, protegendo o filho


do que quer que fosse.
Clarissa toma Maitê pela mão e faz o mesmo, mas eu
me aproximo da porta, seguindo Matteo.

É o senhor Helder que gritou, reconheço a voz dele.


— Helder! — Matteo grita quando o vê caído no chão,
sobre um aparador de madeira que se despedaçou sob seu
corpo.

Helder aponta para o outro lado da sala e Matteo se


vira para olhar, seus olhos ficam paralisados com o que
veem e seu rosto, pálido como se tivesse visto um fantasma.
O senhor Leônidas vai até onde Matteo está e sua
reação é exatamente a mesma, ele leva a mão ao peito.

— O que está acontecendo? — Cat pergunta de onde


está.
Eu me viro para entender o que estão vendo e percebo
um homem. Parado de pé, com uma mochila nas costas e os

olhos muito arregalados, está a cópia quase perfeita de


Matteo.

Talvez seja mesmo um fantasma.


Pisco os olhos para ter certeza de que o que estou

vendo é real, mas ele continua ali de pé, parado diante de

nós. Se isso fosse uma alucinação, eu o veria sozinho,

vestido com seu costumeiro terno grafite e toda aquela

audácia brilhando nos olhos, mas não, ele está mais magro
que antes, a barba por fazer e as roupas são casuais demais.

Meu pai entra na sala em seguida e para ao meu lado, tão

chocado quanto eu, e então, Miguel sorri.


— Oi, pai.
Olho para o lado e o vejo cobrir a boca com as mãos,

tentando segurar o choro, mas eu ainda não consigo me

decidir se o que estamos vendo está mesmo acontecendo ou

se isso não passa de um sonho. Como ele poderia estar

aqui? Meu irmão morreu naquele maldito acidente.

— Miguel? — meu pai pergunta, se apoiando em meu

ombro.

— Sou eu, pai.

Anabela está parada de pé, perto da porta e Cat

aparece logo atrás dela, espiando sobre seu ombro, quando


o vê ela grita e faz menção de correr de volta, mas fica onde

está.

— Como pode estar aqui? — Fecho minhas mãos em

punho, reunindo toda minha coragem para dialogar com o

fantasma que me assombra dia e noite. — Voltou da morte?

Isso é loucura…

— Eu não morri — ele fala simplesmente, e me encara

com o queixo erguido.


Minha mãe passa por Catarina e corre até onde ele

está, pulando em seus braços, tomada por um choro

angustiante.
— Meu menino, meu Miguel, meu amor…

— Que saudade, mãe!

Ele a abraça de volta e o som de seus soluços podem

ser ouvidos por qualquer um na casa, ele também parece

emocionado. Quero contestar, mas não consigo, porque

tudo está acontecendo muito rápido e é como se eu

estivesse bem no olho de um furacão sendo arrastado para


dentro.

Miguel morreu cinco anos atrás, não tem como estar

de fato aqui, de pé diante de mim. Observo sua imagem e

não há dúvidas, por mais assustador que seja, meu irmão

voltou mesmo dos mortos. Sinto alívio quando me dou conta

disso, mas depois disso, a confusão e o choque me

dominam, me paralisam.

Eu devia conseguir falar alguma coisa, exigir que se

explique, mas as palavras se prendem à minha garganta e

de repente me falta o ar. O que pode ter acontecido? Onde


ele esteve por todo esse tempo?

Minha mãe segura seu rosto com as duas mãos e o

beija várias vezes, agradecendo aos céus pelo milagre,

Catarina entrega o bebê para Alberto e se aproxima


devagar, com receio, mas Miguel a puxa para um abraço e

tira minha irmã do chão, como sempre fazia. Então ela

desaba, chorando ruidosamente.

— É você mesmo? — pergunta, a voz embargada. —

Como senti sua falta!

Miguel afaga os cabelos castanhos de Cat e seus olhos

encontram os meus outra vez.

— O que houve? Você fugiu depois do que aconteceu e

soubemos do acidente — falo, as lembranças retornando

com força.

— Matteo, depois… — meu pai interrompe, também se

adiantando para receber meu irmão.

Eu quero ficar feliz com seu retorno. Porra! Sofri por

cinco anos, me sentindo culpado pela morte dele, mas isso

não faz o menor sentindo e não consigo evitar os

questionamentos.

— Pai, eu vi os destroços do avião no mar, nós

participamos das buscas e fizemos um funeral, velamos um

caixão vazio e ficamos de luto por muito tempo. Nós… Eu

sofri com a culpa pela morte dele por todos esses anos,

temos o direito de saber onde ele estava.


Vejo quando Maitê se aproxima no corredor com olhar

curioso, e então Anabela a segura pela mão e a leva de volta

para a cozinha. Fico grato por isso, não quero mesmo que

minha filha o veja e faça perguntas, não quando nós

mesmos não temos as respostas.

— Ele tem razão, Leônidas — minha mãe concorda.

Ela encara Miguel e toma a mão dele na sua. — Onde você

esteve, filho? O que te fizeram?

Miguel olha para nossa mãe e percebo a culpa em seu

rosto, em sua expressão angustiada. Ele meneia a cabeça e

a verdade começa a ficar mais clara.

— Vocês têm todo o direito de ficar com raiva de mim

por não ter dado notícias todo esse tempo…

— Você está me dizendo que sabia que nós

acreditávamos que estivesse morto e nos deixou sem

notícias de propósito? — pergunto, a raiva ameaçando

irromper minha aparente calma.

Feliz. Era como eu deveria me sentir com o retorno

dele, apesar de tudo que fez no passado, mas quando

começo a entender que ele nos deixou pensar o pior


propositalmente por cinco anos…
— Fiquei envergonhado pelo que fiz e achei que o

melhor era sumir das vidas de vocês, eu não podia continuar

por perto depois de ter…

— Está dizendo que escolheu causar todo esse

sofrimento à sua família? Você fez isso? Fez com que

acreditássemos que tinha morrido? — As palavras saem da

minha boca como gritos incontroláveis. Tenho vontade de

cruzar a distância que nos separa e socar a cara dele, mas,

na mesma intensidade, sinto o desejo forte de abraçar meu


irmão outra vez.

— Eu sinto muito. — Ele mantém os olhos fixos em

seus próprios pés, mas mesmo diante da sua admissão,

minha mãe e Cat continuam lá, segurando suas mãos.

— Mamãe ficou doente por causa do que você fez,

nosso pai parou de trabalhar! E eu…

— Matteo… para com isso! — Cat pede, entre soluços.

— Não, Catarina! Ele me traiu e depois destruiu a

minha vida, me deixou aqui, mergulhado na culpa enquanto

ria às nossas custas. — Miguel me encara, seus olhos azuis

estão vermelhos pelas lágrimas, mas ele não diz nada. —

Como pôde ser tão egoísta?


Não dou tempo para que ele responda e nem acredito

que conseguiria ouvir qualquer explicação que tenha a me

dar, nada justificaria o que fez, sigo pelo corredor e entro na

biblioteca, porque preciso muito ficar sozinho e tentar

assimilar tudo isso.

Tranco a porta e caminho até a mesa. Lanço o abajur

ao chão e ele se espatifa em mil pedaços, estilhaçado, da

mesma forma como me sinto agora, chuto minha mesa, que

só se mexe alguns centímetros e arremesso tudo o que


encontro pela frente contra a parede.
Preciso extravasar, descontar a raiva que estou

sentindo em alguma coisa. Avisto o exemplar de A Ilíada,


que está sobre a poltrona e que guardei esse tempo todo

por ser o livro preferido do filho da puta. Enquanto arranco


uma a uma suas páginas amareladas, penso em toda dor

que Miguel nos causou, na traição, nas mentiras, o acidente


que provavelmente foi forjado para fugir das consequências

do que tinha feito, penso em Maitê que foi deixada em um


abrigo por todos esses anos e em todas as vezes que chorei

e bebi, me sentindo culpado pela morte dele, uma morte


que nunca aconteceu.
Caio sentado na poltrona e só então consigo chorar,
depois de extravasar a raiva que comprime meu peito, me

impedindo de respirar direito. Eu finalmente estava


conseguindo me libertar do passado, com Maitê e Anabela

havia esperança para mim, mas agora tudo é escuridão de


novo, e me vejo afundando em um poço, cujo fundo, não

consigo vislumbrar.

Trouxe Maitê para fora da casa porque Matteo não está

em seu juízo perfeito, é claro, e Maitê não precisa ver o pai


desse jeito.

Eu sabia que alguma coisa não estava certa no


momento em que o vi, parado de pé enquanto Matteo

parecia ter visto um fantasma, mas quando entendi quem


era, tudo ficou ainda mais confuso. Miguel está vivo e, por
algum motivo que não entendo bem, Matteo não soube
como reagir a isso.

— O que aconteceu, Belinha? — Maitê pergunta

enquanto tenta olhar para trás.


— Seu papai está tendo uma conversa importante de

adultos — falo, sem entrar em detalhes.

— O senhor Helder está bem?

Helder. Com toda essa confusão eu nem consegui falar


com ele, mas me lembro de ter visto quando ele se levantou

do chão. O pobrezinho deve ter caído com o susto que levou,


também pudera, não é todo dia que um defunto aparece de

mochila na porta de casa.

— Está sim, querida, fique tranquila.

Maitê corre até a cerca e sobe nas ripas enquanto me


aproximo devagar. Ver os dois juntos durante esses dias,

Matteo e Maitê, foi lindo, talvez a coisa mais bonita que já


presenciei na vida. E o retorno de Miguel é um milagre de

Deus para essa família que já sofreu tanto, sei que quando
tudo for explicado e Matteo tiver seu próprio tempo, a

felicidade dele estará finalmente completa.


O senhor Leônidas passa pela porta dos fundos e

caminha na direção oposta à nossa, Helder vem logo atrás


dele, mas não o segue. Ao invés disso, vem até onde estou

parada, observando Maitê brincar.

— Oi, Helder, o senhor está bem?

Ele faz que sim, mas depois meneia a cabeça.

— Eu me assustei.
— Quem não se assustaria? Até mais cedo o rapaz
estava morto, por vários anos e então reaparece assim…

Helder coça a cabeça e solta um suspiro preocupado.

— Acho que as coisas vão ficar difíceis de novo.

— Eles só estão em choque, mas o que aconteceu é

um milagre. Quando passar a surpresa inicial, vão ter muito


o que celebrar.

— Sem dúvidas o retorno dele é uma coisa boa, mas


não acho que seja um milagre.

Olho mais atentamente para Helder, os fios dos seus

cabelos finos e brancos voam como o vento, e o vinco em


sua testa me diz que está mesmo preocupado. Eu não o
questiono, aguardo um pouco até que explique o que quer

dizer com isso.


— Pelo que entendi, Miguel quis ficar distante todo

esse tempo, fez com que eles acreditassem que estava


morto e é por isso que o Presidente e o senhor Viturino estão

nervosos assim.

Com toda essa confusão eu não tinha sequer pensado


nisso. Por isso Matteo parecia tão irritado, porque
independentemente dos motivos, Miguel não os contatou

em momento algum.
— Por que ele faria isso? — pergunto, a cabeça a mil,

imaginando milhares de explicações improváveis. — Ele


poderia ter sido alvo de um sequestro? Ou talvez tenha

ficado em coma… Um acidente aéreo pode causar danos


assim.

— Isso só ele poderá responder, mas não é o que

parece. Ele admitiu que os deixou acreditar que estava


morto.
Maitê salta pela grama, brincando, sem imaginar o

caos que está acontecendo lá dentro.

— Pode ficar com a Maitê um minuto? Vou tentar falar


com o Matteo.
— Ele está na biblioteca, senhorita, mas sugiro que dê
um tempo a ele. O Presidente está confuso e muito irritado.

Helder tem razão e, por mais que eu queira ajudar, ele


precisa de espaço agora, por isso concordo. Não sei se é

seguro voltar para casa com Maitê, mas preciso levá-la para
dentro porque a temperatura já começa a cair na serra.

Talvez possamos ficar no quarto por enquanto, até que tudo


volte à normalidade.

Nós entramos na casa outra vez e quando passamos


pela sala a senhora Clarissa, Cat e Miguel ficam de pé, ele se

aproxima de nós, segurando uma mão na outra e, quando


está bem perto de Maitê, se abaixa para ficar na altura dela.

— Oi, Maitê. Eu sou o Miguel. — Sua voz é firme, tudo


nele lembra o irmão mais velho, mas ainda assim são bem

diferentes.
— Você parece o papai — ela diz, o encarando com

curiosidade.

— É porque sou irmão do seu papai.

— O que você é meu, então?

— Sou seu tio — ele diz, abrindo um sorriso triste.


Miguel se levanta e me encara por um segundo, ele
estende sua mão para me cumprimentar e eu aceito, mas

nenhum de nós diz nada.

— Vou levar a Maitê para tomar um banho. Se me dão


licença…
Nós duas subimos os degraus da escada para o quarto,

e fico repassando em minha memória o que Helder disse,


sobre ele ter feito com que acreditassem em sua morte. O

que quer dizer isso? Por que Miguel faria uma coisa dessas?

O único pensamento que me vêm é que fizeram algo


muito ruim para ele. Talvez Matteo e Miguel tenham brigado

por algum motivo, já que Matteo sente tanta culpa, mas


ainda assim, não me parece motivo para uma atitude

drástica como essa, nada parece justificar deixar seus pais


sofrendo o luto de perder o filho.

Não quero julgar ou tomar as dores de Matteo sem


entender o que houve, mas fica difícil quando penso em
tudo que ele sofreu, quando imagino a pobre Catarina
chorando pelo irmão e os Viturino fazendo um funeral,

enquanto o rapaz estava escondido em algum canto por aí.


A única coisa que talvez seja capaz de aplacar a raiva
que estou sentindo agora é o boxe. Talvez seja uma

alternativa mais racional socar o saco de pancadas, ao invés


de usar a cara de Miguel como alvo.

Subindo sobre o tatame, arranco minhas roupas e

busco os shorts que estão no mesmo lugar em que os deixei


outro dia. Eu os visto rapidamente e apanho as luvas, estou
vendo as cordas e estou sentindo o chão sob meus pés
descalços, mas minha mente só consegue pensar nessa
merda toda e no rosto do meu irmão, ressurgindo assim,

sem sequer um aviso prévio.


O primeiro soco é desferido no saco com tanta força
que sinto os nós dos meus dedos arderem, mesmo com a
proteção sobre eles. Desgraçado! Não consigo evitar os

pensamentos, continuo socando sem parar, em uma


tentativa vã de não visualizar as cenas que tanto
atormentam minha cabeça, mas é impossível.

Não consigo fugir das lembranças do passado, me


recordo do quanto me senti humilhado e traído quando
descobri sobre Miguel e Sofia e, como isso, a dupla traição
deles, me destruiu. Me lembro das coisas que disse a ele

antes que viajasse e do modo como Sofia saiu de casa, de


ter torcido mesmo para que meu irmão nunca voltasse e de
quando ele foi dado como morto, com a queda do bimotor,
da culpa que acabou com o resto de homem que eles

haviam deixado para trás. Eu quis tanto retroceder, retirar


as palavras de ódio que havia dito contra Miguel, quis ter
agido de modo diferente, qualquer coisa para que ele não
tivesse partido.

Mas mesmo em meio a tantas hipóteses e


pensamentos, nunca imaginei que ele estivesse vivo e
escondido por todos esses anos. Essa história, a porra dessa
mentira é o que me deixa irado. Ele ter nos deixado aqui,

em luto, enquanto fazia Deus sabe o quê. Que tipo de


homem deixa a mãe acreditar em algo assim apenas para
fugir das consequências dos seus atos?
Um soco de direita e o saco de move para frente e

para trás, sinto a dor se espalhar dos meus dedos para a


mão toda.

Ouço o rangido da porta e deduzo que seja Anabela,


vindo insistir para que eu coma alguma coisa, mesmo que

Helder já tenha feito isso mais cedo, eles não entendem que
tudo de que preciso é me isolar um pouco e tentar colocar
as ideias no lugar.
Mas quando me viro para dizer a ela que estou sem

fome, é o rosto de Miguel que me encara do outro lado das


cordas. Ele se aproxima um pouco e não parece inclinado a
sair.

— Temos que conversar — fala, como se estivesse com

a razão e eu, fugindo dele.


O comentário me faz sorrir, mas não é um riso bem-
humorado, é de descrença.

— Agora você quer conversar? Está atrasado uns cinco

anos.
Miguel passa pelas cordas, invadindo meu espaço, as
mãos estão nos bolsos, e percebo que há receio da minha
reação em seus olhos, mas ele não se afasta, ele é como a
porra de um fantasma desses filmes de terror, que depois

que decide assombrar um lugar, nunca mais vai embora. No


caso, o lugar sou eu.

Ele se recosta do outro lado, mantendo certa


distância, mas não o bastante, tudo o que eu quero é que vá

embora e me deixe em paz.


— Você me odeia, não é? — pergunta, como se isso
explicasse tudo o que eu sinto.

Mas não existe uma palavra que possa nomear o que


eu sinto por ele, uma parte de mim sempre vai amar o irmão
que cresceu comigo, que me seguia por todos os lugares e
tinha um sorriso fácil, e é por isso que hoje eu o odeio tanto,
porque, por mais que tenha me apunhalado pelas costas,

sua morte me devastou.


— Que porra de pergunta é essa? Não é óbvio?

— Então ficou feliz com a minha morte?

Não acredito que estou sendo arrastado para essa


conversa contra a minha vontade, nem mesmo que ele
tenha a audácia de me perguntar algo assim.

— Eu morri com a sua morte, Miguel. — Minha

resposta me faz sorrir outra vez e meneio a cabeça. — Mas


você não.

Ele coloca as mãos para trás, depois me encara,


pensativo, como se procurasse as palavras certas.
— Voltei porque sinto falta da minha família, quero

recuperar o amor e a confiança de vocês, Mat.

— Esqueça isso, ao menos comigo. Todos esses anos


em que nos deixou aqui, pensando o pior, só provam que
você não era digno de confiança antes, quando transava

com a minha esposa, e ainda não é.


Embora pareça ter se preparado para essa conversa,
Miguel fecha os olhos e os aperta ao ouvir a acusação, mas
assente.

— Eu sei que o que fiz não tem perdão, mas eu era um


idiota e a Sofia…
— Não quero ouvir suas justificativas, Miguel, porque
nada que diga vai apagar o que você fez. Ela te drogou?

Você comeu a mulher do seu irmão contra sua vontade? Foi


forçado a isso?

— Não… — Ele não consegue dar uma resposta

melhor, porque não existe desculpa para o que fez. —


Conheci a Maitê.
Esse desgraçado…

Sem conseguir controlar a raiva, avanço para cima


dele e o seguro pela blusa, o jogando contra o tatame.
Miguel não oferece resistência.

— Não chega perto dela! Estou avisando, Miguel, se


insistir nisso eu mesmo te mando para o lugar de onde você
veio!

Ele espalma as mãos contra meu peito, tentando me


afastar, mas não força e nem revida minha raiva.
— A mamãe me contou tudo, Matteo, sobre a Sofia e
sobre o DNA.

Estou me segurando muito para não socar a cara dele,


o maldito nos deixou e mentiu, mas renasceu dos mortos e
eu deveria me sentir bem com isso, mas não consigo, não
quando todos os fantasmas do meu passado parecem ter

encontrado o caminho até mim.


— Eu sou o pai dela.

— E eu sou tio — ele diz, calmamente. — Sou seu


irmão, Matteo. Eu sei que fiz tudo errado, sei que te fiz

sofrer e me arrependo disso, não pretendo roubar sua filha,


só voltei porque quero seu perdão e o da nossa família.
— Você é um desgraçado e não tem alma, só não te
mando embora agora em respeito aos nossos pais. — Ainda
segurando sua blusa, eu o forço a ficar de pé. Miguel
caminha, de costas, até estar outra vez escorado nas cordas.

— Mas posso te colocar para fora do meu ringue e impor


alguns limites. Eu não quero falar com você, então saia
agora.

— Você vai ter que resolver suas questões comigo,


Matteo, uma hora ou outra.
Prefiro não responder, então aguardo que ele pule as
cordas para o outro lado e saia da academia. Apenas quando
ouço o barulho da porta se fechando, consigo voltar a

respirar com um pouco de normalidade.


Anabela deixa a bandeja com meu café da manhã
sobre a cômoda no canto do meu quarto, ela está ainda

mais linda hoje, os cabelos castanhos ondulados caem em

cascata emoldurando seu rosto, presos no alto da cabeça.

Está usando um vestido florido curto, aproveitando a


temperatura amena dessa manhã, e o simples fato de ter

subido com a comida até aqui me mostra que me conhece o

bastante para saber que não vou me unir à minha família e

agir como se estivesse tudo bem.


Ainda não encontrei a coragem necessária para contar

tudo a ela e, considerando que Miguel agora está aqui e

vivo, isso fica mais eminente a cada instante, mas Anabela

sempre me olha de um jeito tão… bom, que me sinto

constrangido em admitir a vergonha do meu passado.

— Bom dia, Matteo. Como você está?

Dou de ombros, porque não sei responder essa

pergunta, estou aqui, e isso basta por enquanto. Meus olhos

não se desviam dela, Anabela é como um bálsamo sobre

uma ferida dolorosa e, por um momento, consigo focar os


pensamentos apenas nela e no quanto é maravilhosa.

Ela está tensa, o que era de se esperar considerando

tudo que houve nas últimas vinte e quatro horas, também

está curiosa, mas eu não estou pronto para elucidar as suas

dúvidas.

— O Greg está lá embaixo e quer falar com você — ela

diz, me sondando.

Meneio a cabeça.
— Diga para ele ir embora, não quero falar com

ninguém.
Anabela une as mãos na frente do corpo e ensaia

algumas vezes para falar, percebo que está hesitando e sei o

quanto estou sendo arredio, mas no momento não consigo

ser o homem que vinha sendo nos últimos dias, é como se o

retorno de Miguel tivesse me arrastado de volta ao passado

e começo a perceber que um futuro feliz para mim, talvez


não seja mesmo possível. Não mais.

— Seus pais estão preocupados com você — ela diz

em voz baixa.

Passo os dedos por entre meus cabelos e deixo meu

notebook de lado para falar com ela. Estou me distanciando

de tudo outra vez, de todos, mesmo contra minha vontade,

mas enquanto Miguel estiver aqui, minha vida não pode

voltar a ser o que era.

— Peça para irem embora, todos eles. Se meus pais e

Catarina forem, ele também vai…

— Matteo, eu sei que está chateado, entendi que seu


irmão deixou vocês acreditarem que estava morto e sei que

foi uma atitude egoísta, concordo com você e entendo que

se sinta assim, mas de uma forma ou de outra, ele está vivo


e vocês dois eram muito próximos pelo que sei, gostavam

das mesmas coisas e se amavam, não?

— Ah, com certeza gostávamos das mesmas coisas —

respondo, cínico, ela não sabe do que aconteceu, do que

Miguel fez, mas Anabela não poderia estar mais perto da

verdade com suas sugestões —, mas isso não importa mais,

só quero ele fora daqui, mande todos irem.

— Não posso fazer isso. — Ela balança a cabeça, como

se fosse uma ideia absurda. — Quer que eu, a governanta,

expulse sua família da casa?

— Você não é só a governanta.

— Mas também não sou nada que possa ser descrito

em uma só palavra.

Nisso não posso discordar, nossa relação é indefinida e

realmente não quero causar um atrito entre Anabela e meus

pais, justo agora que se conheceram.

— Então peça ao Helder. Alguém tem que me ajudar

— Insisto.

Anabela se aproxima de onde estou, ficando parada ao

lado da cama. É quase como se fosse um gesto involuntário,


sem pensar, mas ela ergue os dedos e os passa por entre

meus cabelos lentamente.

— Quer me contar o que aconteceu de verdade? Por

que você está agindo assim com tanta raiva? — pergunta, a

voz doce de sempre, me instigando a me abrir.

Mas eu nego. Por mais que queira que Anabela esteja

na minha vida e faça parte dela, não quero compartilhar o

passado doloroso, não mais do que já fiz, eu quero dividir o

passado e o futuro em duas partes que não se choquem de

modo algum.

— Me desculpe, mas não quero.


Anabela comprime os lábios, mas não insiste, ela

apenas afasta a mão.

— A Maitê sentiu sua falta, está perguntando por você.

Eu odeio estar fazendo minha filha passar por isso

outra vez, mas não consigo ignorar o que está acontecendo

e seguir em frente. Não consigo sair desse buraco sozinho e

não sei se estou disposto a aceitar ajuda.

— Diga a ela que não estou me sentindo bem, mas

que logo as coisas vão se acertar… E diga que eu a amo.


Anabela concorda, mas a expressão em seu rosto me

diz que está magoada comigo, porque obviamente a estou

colocando do outro lado da linha invisível que desenhei

entre nós, demarcando meus limites.

— E o que eu faço com o Greg? Ele disse que não vai

embora sem falar com você.

— Deixe que ele suba então — decido por fim. — Eu

mesmo mando ele embora.

Anabela assente e se vira para sair do quarto. Seu

vestido florido gira com o rodopio, me chamando atenção

outra vez.

— Onde está o uniforme horroroso de sempre? —

pergunto, tentando soar mais leve.

Ela para e se volta para mim, alisando o vestido, e

parecendo estranhar a pergunta repentina.

— Estavam todos sujos, eu sei que não deveria, mas...

— Não deveria? Sabe que pode usar o que quiser,

ainda mais se isso me livrar de ter que ver você com aquela

coisa horrorosa. Você é linda, mas fica ainda mais sem

aquela coisa.
Ela sorri de um jeito triste e agradece o elogio,

Anabela é a luz em meio ao caos e se não fosse por ela, e

agora por Maitê, eu não estaria aguentando tanto, já teria

sucumbido.

— Queria poder voltar àqueles dias. Só você, Maitê, e

eu.

— Eu também queria. — Anabela fecha a porta, me

deixando sozinho outra vez.

Mas não por muito tempo, já que Greg chega alguns


minutos depois. Ele entra no quarto e fecha a porta atrás de

si, está vestindo roupa de academia, o que me diz que veio


correndo logo que soube dessa merda toda.

— Vim assim que sua mãe ligou, Viturino. — Ele


arrasta uma cadeira para se sentar ao lado da cama. — Que

porra aconteceu aqui?

— Agradeço por se preocupar, mas não queria que

viesse, não quero falar com ninguém.


Greg ignora o que falo, meneando a cabeça, deixando

claro que não vou conseguir me livrar dele.

— Eu não acreditei até ver com meus próprios olhos,

não sei se isso, ele ressurgir assim, foi coragem ou covardia,


mas com certeza desde o começo foi muita loucura.

— Ele é egoísta, desgraçado e traíra. Pensando bem,

hoje entendo o porquê de eles terem se envolvido, Sofia e


Miguel são mais parecidos do que eu pensava.

Greg assente e cruza os braços sobre o peito, me


olhando com desconfiança.

— E como você está com toda essa merda? Porque,

porra, Viturino, não consigo nem me colocar no seu lugar.


— Como eu poderia estar? Sinto como se Miguel
tivesse me traído outra vez, quero socar a cara dele ao

mesmo tempo que…

— Ao mesmo tempo… — ele repete, esperando que eu


conclua.

— Nada.

Greg não se dá por vencido.

— Sou seu amigo, cara. Se falar que quer perdoar esse


babaca, eu vou tentar entender e, se disser que quer matar

ele, ajudo a esconder o corpo.

— Eu não quero falar disso, Greg.


— Você sente falta dele, isso é normal, cara, vocês são
irmãos, são iguais de algumas formas.
— Eu não sou como ele — corrijo, porque não vou
deixar ninguém me comparar àquele mau-caráter.

— Lógico que não são. Mas vocês eram muito

próximos, toda àquela porra aconteceu e depois disso você


precisou lidar com o luto, só que agora ele está aqui, e está

vivo. — Ele faz uma pausa, como se esperasse que eu


dissesse alguma coisa. — Eu não consigo nem imaginar o
que você passou, mas também tenho um irmão que eu amo

e nem consigo imaginar a minha vida sem ele.


O escocês desgraçado entende bem mais do que eu

estou disposto a dizer.

— É estranho. Depois de tudo o que ele me fez, eu


sinto tanta raiva, mas ao mesmo tempo me sinto aliviado

por ele estar aqui, quero matar Miguel e ainda assim… —


Não consigo terminar a frase, mas acho que Greg também

compreende o que ficou subentendido. — Você viu meus


pais? Estão com ele?
— Sua mãe e a Cat, estão, mas seu pai eu não vi.

Greg apoia sua mão sobre meu braço.

— Não deixe que isso destrua sua felicidade, Matteo.


Não deixe que isso te arraste de volta para o buraco onde
você esteve nos últimos cinco anos. Alguns homens como eu

são amaldiçoados e a nossa única opção é ter o que é


possível, mas não é o seu caso. Se concentre nas coisas

boas, em sua filha, sua família, suas empresas, e na mulher


linda que conseguiu gostar de você quando nem você

mesmo gostava.

Ele está falando da Anabela, é claro, e eu não estou

em condições de negar, mas algo em sua fala também me


chama atenção.

— Amaldiçoado? Ainda acredita nessa bobagem? Já


falei que são superstições bobas.

— Sabe que não são — ele diz, meneando a cabeça —,


meus avós, meus pais, são a prova disso. Eu prefiro não me

arriscar, melhor pegar várias garotas do que me apaixonar e


morrer infeliz.

— Isso é ridículo — retruco, Greg tem essa crença,


baseada em uma história meio folclórica de sua família, que

diz que os Mackintosh não podem amar ou uma merda


assim, coisa de gente doida.

— Não vem ao caso agora, mas sobre seu irmão, não


sei o que esse retorno quer dizer, não entendo o que Miguel
quer, também não confio nele, mas quero que saiba que

estou com você, que pode contar comigo para qualquer


coisa.

— Obrigado, Mackintosh, sei que tenho seu apoio.

Obrigado por vir e por insistir em ficar, você é um bom


amigo.
Desço com Greg, para o acompanhar até a porta e, por

mais que meu desejo seja me trancar dentro do quarto e só


sair quando ninguém mais estiver aqui, a conversa com

Greg fica martelando na minha cabeça.

Essa é a minha casa e é a minha vida, tenho uma filha


que precisa de mim e não tenho motivo nenhum para me

esconder. Greg se despede de mim com um aceno de


cabeça e depois vai embora, deixando um rastro de poeira

atrás do seu carro.


Quando entro novamente na casa, ouço vozes vindas
da sala de jantar, por isso sigo pelo corredor. Deixar de me

esconder não é a mesma coisa que deixar de os evitar, mas


quando passo pela sala de música eu os vejo e meus pés

ficam travados onde estão.


Anabela está sentada ao piano, iluminada por um
feixe de luz que invade a sala através das cortinas e meu

irmão está sentado ao lado dela.

Miguel olha diretamente em seus olhos e ouço suas

palavras seguintes.
— Claro que não, mas sabe qual o poder que uma

mulher bonita e ardilosa tem sobre a mente de um cara


deslumbrado?

Sinto uma pontada forte no lugar onde deveria estar


meu coração. Acreditei por todos esses anos que não tinha

mais um, até agora, quando me dou conta de que ele


sempre esteve aqui, apenas estava despedaçado demais

para sentir algo. Mas Anabela fez com que voltasse a pulsar
e no momento ele arde da pior forma no meio do meu peito,

consumido pelo ciúme.


A música de melodia suave toca cada vez mais alto à
medida que me aproximo da sala de música. Estava tirando

a poeira dos móveis do hall de entrada da casa quando ouvi


pela primeira vez, e a curiosidade me fez seguir o som pelo
corredor, até estar parada diante da porta.

Miguel está tocando, e o faz com maestria. Seus


ombros largos sobem e descem com as teclas enquanto o

ritmo se intensifica

Eu me afasto um passo, tentando não fazer barulho,


mas o assoalho range e Miguel para de tocar, ele se vira e

me vê. Percebo uma linha leve de decepção em seu rosto,


ou talvez seja só coisa da minha imaginação.

— Oi — cumprimenta, gentil.

— Oi. Sinto muito por interromper você, ouvi a música


e fiquei curiosa, nunca vi ninguém tocando aqui.
Ele faz um gesto de desdém com a mão e sorri.

— Não tem problema, só estava matando a saudade

desse piano.
Miguel se vira outra vez para o instrumento, mas
continua a conversar comigo.
— Meu irmão comprou esse piano para mim, porque
gostava de me ver tocar. — Ele passa os dedos sobre as

teclas com suavidade, nostálgico, e acabo entrando no


cômodo e me aproximando um pouco mais. — Pensei que,
talvez, se eu tocasse, ele se lembraria dos bons momentos
que tivemos juntos. — Miguel me encara outra vez. — Foram
muitos. Mais momentos bons que momentos ruins, isso eu

garanto.

— Infelizmente os momentos ruins marcam mais que


os bons, não é? — pergunto, ainda que não entenda bem a

que ele se refere.


— Sim. Você tem razão.

Talvez Miguel possa me contar o que houve entre eles,


para que eu entenda de uma vez por todas o que aconteceu,

só assim terei a chance de ajudar Matteo a superar.


— Miguel, eu sei que deve achar esquisito que eu
pergunte assim, sou só a governanta, mas…

— Anabela, eu sei que você não é só a governanta,

Catarina me contou. Pode perguntar o que quiser. — Ele


sorri com gentileza e vejo sinceridade em seu olhar, Miguel
se afasta um pouco para que eu possa me sentar.
Olho para os lados e decido aceitar o convite implícito,
afinal, ele tem as respostas que procuro.

— O que aconteceu entre vocês? — pergunto, me


sentando ao seu lado. — Por que você desapareceu todo
esse tempo?
Miguel respira fundo antes de começar. Nem acredito

que finalmente vou ouvir a história completa.

— Matteo era casado…


— Eu sei, Sofia, a mãe de Maitê.

— Sabe que ela o traiu?


Aquiesço e faço uma careta involuntária, não consigo
imaginar que uma mulher pudesse trair um homem como
Matteo.

— Sofia era linda, mas sorrateira, era manipuladora…


Os dois não se davam muito bem e ela fazia parecer que
Matteo a abandonava e que isso a fazia se sentir sozinha.
— Ele não é assim — defendo.

Apesar de tudo, eu o tive comigo por vários dias e, aos


poucos, pude vislumbrar o homem que ele foi um dia, antes
dela. Tenho convicção de que Matteo é o melhor, e talvez

isso seja meu coração tolo falando mais alto.


— Claro que não, mas sabe qual o poder que uma

mulher bonita e ardilosa tem sobre a mente de um cara


deslumbrado?

Não entendo onde ele quer chegar, mas antes que eu


tenha chance de compreender, ouço passos apressados

dentro da sala. Nós nos viramos para ver quem é e tudo


acontece tão rápido que não consigo acompanhar direito.
Matteo parece outra pessoa, seus olhos são como duas
lâminas afiadas e a expressão que beira à loucura me diz

que ele está fora de si. Ele me puxa pelo braço, fazendo com
que me levante e em seguida me afasta de Miguel. Eu odeio
o jeito bruto com que faz isso.

Ele agarra Miguel pela camisa e com um soco o joga

no chão, Matteo chuta o banco perto do piano, mandando-o


longe também.
— Matteo! — grito, assustada.

Clarissa e Catarina devem ter ouvido o barulho,

porque chegam rápido, meu rosto está ardendo em


vergonha, por conta da cena que não faz o menor sentido.
— Anabela é minha! — ele diz alto, apontando o dedo
em clara ameaça ao irmão. — Fique longe dela, Miguel!
— Parem com isso! — Clarissa exige, se colocando

entre os dois. — Chega de desgraças nessa família!

— Tudo é seu, não é, Matteo? — Miguel se levanta


devagar, a mão sobre o nariz que está sangrando. Ele coloca
o banco onde estava antes, como se analisasse cada

movimento. — E eu sou o egoísta?


Acho que essa frase só enfurece ainda mais Matteo,
porque ele avança sobre o irmão outra vez, mas Clarissa se
interpõe, mantendo as mãos espalmadas sobre o peito do

filho mais velho, tentando impedir que ele se aproxime do


outro.

— Leônidas! — ela chama pelo marido. — Helder!


Catarina segura minha mão, me confortando e só

então percebo que estou chorando.

— Dividi tudo com você, Miguel! Você era tudo pra


mim, filho da puta — Matteo diz, e acho que nem se toca

que ofende a própria mãe.


O senhor Viturino passa por mim e por Cat, e Helder
vem logo atrás dele.

Miguel parece envergonhado e não retruca a fala do

irmão.
— Eu sei disso, Matteo, fui um idiota, tá bom?

— Vai pro inferno!


— Menino Matteo… — Helder fala, em tom de súplica.

Leônidas toma o lugar da esposa e empurra Matteo

para trás.
— Precisa se acalmar — ele fala, com a voz firme.

— Eu cometi um erro — Miguel fala, insistindo em se

desculpar.
As engrenagens começam a girar na minha mente.
Por que ele se desculparia tanto? Estávamos só
conversando.

— Você só cometeu erros a vida inteira e eu sempre


estive lá para passar o pano, até que você ferrou comigo
também.
— Matteo! — Leônidas aumenta seu tom, seu rosto

está ficando muito vermelho.

— Agora vocês entendem por que eu não podia voltar?


— Miguel diz, parecendo ao ponto das lágrimas também. —
Eu sei que ele não vai me perdoar e quem perdoaria? Era

melhor ficar morto mesmo.


— Chega! — Leônidas grita, e se volta para Miguel. —
Você não precisaria voltar se nunca tivesse partido. Forjar a
própria morte? Você acha que a vida é um filme? Um
Viturino assume os próprios erros e lida com as

consequências. Foi isso que ensinei aos três. — Ele se vira


para Matteo outra vez. — E você… Saia desse maldito
casulo, cuide da sua filha, siga a sua vida. Façam como
quiserem, não precisam ser amigos, depois do que

aconteceu, não tenho esperanças disso, mas sou pai dos


dois e isso nunca vai mudar, sua mãe está sofrendo, a
Catarina também e vocês dois só pensam no próprio
sofrimento.

Agora eu entendo, ninguém precisa me dizer mais


nada, não depois das palavras que Miguel me disse a
princípio, tudo finalmente fez sentido e estou enojada.
Por isso ele disse que ela era manipuladora, estava se

justificando antes de contar o que fez ao irmão, por isso ele


fingiu estar morto, porque não queria lidar com o fato de ter
sido descoberto.

— Eu vou embora — Miguel fala, orgulhoso. Ele dá a

volta ao redor do piano, mas Catarina entra em seu


caminho.

— Você quis voltar, então agora vai ficar aqui. Quer


matar a nossa mãe? Seja sensato uma vez na vida.

Miguel desvia os olhos de Cat e me encara por dois


segundos, tempo suficiente para Matteo achar que ele o faz
com segundas intenções.

— Puta que pariu…

— Matteo! — Leônidas o repreende outra vez.

— Sinto muito pai, mas isso é demais pra mim. — Ele


vem até onde estou e segura minha mão com firmeza,
depois me leva para fora da sala.

Eu repasso tudo o que ouvi enquanto o sigo pelo


corredor. Minha visão fica embaçada pelas lágrimas que se
acumularam em meus olhos, mas nós continuamos
andando.

Começo a compreender que me meti em algo muito


maior, Matteo não me ama, ele não está pronto porque
estilhaçaram seu coração muito antes e talvez não haja

conserto.
Mas eu com certeza o amo e estou destruída por
finalmente entender a dor a que ele foi exposto, uma traição
como essa não traz apenas vergonha e decepção, ela deixa
marcas muito mais profundas.
Anabela se solta da minha mão logo que entramos em
seu quarto, no chalé. Ela parece abalada, porque agora sabe

de tudo, já que nossa discussão deixou as coisas muito

óbvias. Pelo menos não vou precisar explicar nada.

Ver os dois daquele jeito, tão perto, me deixou louco

de ódio, e ouvir as palavras dele foi o estopim para a minha


fúria. Meus pais sempre disseram que Miguel puxou seu

gênio forte de mim, e ele simplesmente não consegue

deixar barato, mesmo estando completamente errado, ainda


assim hoje ele se esforçou para não revidar, eu queria que o
fizesse, assim ao menos eu teria extravasado toda a raiva

que ainda sinto.

— Anabela, vou perguntar uma só vez e não quero

ouvir mentiras. O que vocês estavam fazendo lá sozinhos?

Ela coloca as mãos na cintura e parece se sentir


ofendida com a pergunta, mas no momento não me

importo, de qualquer forma eu preciso saber a verdade.

Anabela meneia a cabeça e seu olhar é uma mistura

de raiva e pena, uma combinação que eu odeio.

— Matteo, não sou a Sofia — ela diz, pontuando cada


palavra.

— Não disse que era, responda o que eu perguntei.

Ela ri com cinismo, eu odeio isso. Se não quer se

parecer com ela, não pode agir como ela e me fazer reviver

o passado.

— Eu ouvi a música e fui até lá. Começamos a

conversar e eu quis perguntar o que aconteceu entre vocês,

me sentei para ouvir a história. Foi só isso.


— Queria ouvir a versão dele?

Estou andando sem direção pelo quarto, meus

sentimentos estão todos à flor da pele e a insegurança está


me empurrando para trás outra vez. Estou sentindo tudo

como antes, o ciúme é uma força perigosa e está me

dominando. É desesperador imaginar que ela pudesse fazer

algo assim.

— Eu queria ouvir a sua história, mas você nunca quis

me contar.

Eu me viro para ficar de frente para ela. Anabela está


nervosa, e de que maneira não estaria? Tudo isso, toda essa

sujeira vindo à tona, é demais para qualquer um.

— E ele te disse o que fez? Ele disse que comeu a

minha esposa? — Anabela começa a chorar outra vez, ela

cobre o rosto com as mãos. — Era isso o que queria saber,

não é? Está satisfeita agora?

— Eu não sabia que era isso, achei que estivesse bravo

por outro motivo — fala, entre soluços. — Nunca ia imaginar

algo assim.

Eu me lembro das palavras dele.


Sabe qual o poder que uma mulher bonita e ardilosa
tem sobre a mente de um cara deslumbrado?
— Ele estava se jogando pra cima de você — concluo,

ainda que ela negue.


— Você ainda deve gostar dela porque mesmo depois

de tanto tempo não consegue superar! Lógico que ele não

estava fazendo isso e, mesmo que fizesse, deveria saber que


eu não faria.

— Não tem a ver com gostar dela, tem a ver com ele.

Miguel é o problema — explico o que pra mim é muito óbvio.

— Ela era minha esposa, mas ele? Ele é meu irmão, porra!

Anabela continua balançando a cabeça, como se tudo

o que eu dissesse fosse mentira. Não consigo acreditar que

isso esteja acontecendo.

— Por isso eu não queria me envolver, porque não

estou pronto — assumo.

— Porque você não confia nas pessoas! — ela rebate,

ainda chorando.

Merda.

— Isso. Se quer saber a verdade, não confio mesmo —

admito. — É melhor colocar um ponto final nisso antes que

você se magoe mais. Você não merece estar envolvida nesse

caos e eu não tenho cabeça para relacionamento, eu sou

fodido, não percebe?

— Matteo, eu juro que não foi nada disso.


— Sabe o que é pior? Eu sei que você está falando a

verdade, mas isso, as palavras dele pra você vão ficar me

corroendo e vou sempre esperar o pior de todo mundo.

Ouço os soluços dela. Talvez eu esteja sendo muito

duro, mas dar falsas esperanças é ainda pior, no fundo eu

sempre soube que as coisas terminariam assim, por isso a

alertei de que não deveríamos envolver sentimentos.

— Você vai continuar trabalhando aqui. Anabela. Eu

disse que isso jamais iria interferir no seu emprego, mas o

que aconteceu entre nós dois foi um erro.

Seus olhos rasos d’água brilham como mel líquido e


me encaram com uma mágoa profunda, me dói saber que

estou causando isso, mas é autopreservação. Não posso

amar: não posso passar por nada disso outra vez, eu não

suportaria.

— Um erro?

— Eu me precipitei e peço desculpas por isso.

Anabela assente, mas quando se afasta de mim ela

cambaleia para trás, como se fosse cair. Ela consegue se

apoiar na cômoda a tempo, e me aproximo instintivamente.

— Você está se sentindo bem? — pergunto.


— É claro que não, seu idiota. — Ela faz um gesto com

a mão para me afastar. — Não foi nada. — Anabela se

recompõe, ajeita o cabelo e seca o rosto molhado, eu mal

consigo olhar para ela agora. — Vou descer então. Ainda

nem comecei o almoço.

— Foda-se o almoço, eles que comam na cidade. Tire o

dia de folga.

— Sim, senhor Presidente — ela diz, em tom

respeitoso, mas eu sei bem o que significa.

Sua resposta quer dizer que ela está colocando uma

pedra imediatamente sobre nós dois e o que vivemos.

Significa que eu a magoei mesmo que não fosse minha

intenção.

Anabela abre a porta para que eu saia e o faço. Sei

que fiz o certo, mas o caminho correto nem sempre é o mais

fácil, ela merece alguém muito melhor que eu, um homem

que possa se entregar por inteiro e que não tenha medo de

amar, alguém que confie nela e que possa ser leve, que não

carregue o peso do mundo sobre os ombros.

Só de pensar nisso, em Anabela com outro homem,

sinto meu coração doer, mas já me acostumei à dor, convivo


com ela há muito tempo, e antes a minha dor, que a dela.

Sigo para a casa, mesmo que não seja o que eu quero.

Seco as lágrimas em uma tentativa de que não percebam


como me sinto, mas sei que provavelmente meus olhos já
estão inchados e me denunciam. Minha vontade é de me

esconder no chalé e chorar o dia todo, mas não posso me


dar a esse luxo, não ciente de que vão dar por minha falta e

me procurar.

Antes de entrar, no entanto, encontro o senhor Hélder.


Ele parece perdido em seus pensamentos, mas nota minha

presença quando me aproximo.


— Está tudo bem, menina? — questiona, erguendo o

rosto que antes fitava o chão.


— Na medida do possível. — Forço um sorriso para não
o preocupar.

Não funciona, porque ele não retribui e meneia a


cabeça.

— Sei que não deve ser fácil lidar com a desconfiança


dele, sem motivo. Foi muito difícil pra ele quando descobriu

sobre os dois, Matteo e o menino Miguel eram muito


próximos.

Aí está algo que não me entra na cabeça. Tenho Julieta


e eu jamais a trairia dessa maneira e tenho certeza absoluta

de que ela também não faria algo assim comigo.


— Todo mundo fala isso, mas, se fossem assim tão

amigos, Miguel não faria o que fez — falo, revelando o que


estou pensando.

Helder dá de ombros.

— Ninguém sabe o que se passou na cabeça dele, mas


provavelmente se apaixonou e não conseguiu resistir, não

quando ela o tentava a cada momento.

— Você trabalhava com eles? Sei que está com a

família desde que eles eram crianças, mas me refiro ao


Matteo e a Sofia.
— Me mudei com o Presidente quando se casaram, eu
cuidava da casa que eles tinham na cidade. Ele trabalhava o

dia todo e ela ficava em casa, mas nós não éramos


próximos.

— Você desconfiou, Helder? — pergunto, intrigada

com o modo como as coisas se deram.


— Não de Miguel, não imaginei que ele iria cair nas
artimanhas dela. Mas Sofia não era tão discreta, ela parecia

o provocar sempre, mas ainda assim eu tentava justificar,


achava que ela não percebia o que estava fazendo. Nunca

pensei que estivessem mesmo envolvidos.

— Essa história é surreal…


— E isso destruiu todos eles, Matteo não consegue

perdoar e esquecer, com razão.

Eu me aproximo um pouco mais, a curiosidade

vencendo sobre a mágoa que estou sentindo de Matteo no


momento.

— O que ele fez quando descobriu?

Helder fica em silêncio por um instante e chego a

pensar que não vai me dizer, mas ele volta a falar um pouco
depois.
— Os dois tiveram uma briga feia, Miguel saiu da casa

transtornado e jurou que iria embora do país e se afastaria


deles todos, só que então veio o acidente aéreo.

— Que ele inventou…


— Sim, provavelmente pagou alguém para derrubar

aquele avião no mar e o corpo nunca foi encontrado. Acho


que foi demais pra ele, a culpa.

— Imagino que sim, mas mentir assim pra família…


— Também não foi uma boa opção, claro. O melhor

seria que nenhum deles tivesse conhecido Sofia.

Aquiesço, mas em seguida reconsidero.


— Ao menos ela nos deu Maitê.

— Que também sofreu muito por causa da mãe. Essa


mulher parece um agouro, chegou e foi destruindo tudo por

onde passou.
— Acha que Matteo vai ficar bem um dia? — Faço a

pergunta que não se cala dentro de mim. Quero acreditar


que ele vai superar tudo isso, mas a cada dia percebo o

quanto está arraigado nele.

Helder parece refletir um pouco sobre isso.


— Achei que vocês dois fossem se entender — ele diz,

finalmente —, eu vi o quanto você fez diferença na vida


dele, só que o Miguel reapareceu e tudo desmoronou. Não

sei mais se amor é o suficiente diante de uma coisa como


essa.

Assinto, compreendendo. Ele tem toda razão, Matteo


precisa de ajuda, ainda que não pareça considerar a ideia de

se render a uma terapia.


Deixo Helder com seus pensamentos e entro na

cozinha. Elis e Helena estão sentadas à mesa, uma


escolhendo feijão enquanto a outra pica alguns pimentões.

— Oi — Elis cumprimenta ao me ver entrar, elas me

encaram com pena, o que me faz entender que já sabem da


briga de mais cedo —, tudo bem?

— Vai ficar, vim avisar que não vou fazer o almoço


hoje, o Presidente disse que tudo bem e realmente não me
sinto bem o suficiente pra isso.

— Não precisa se preocupar, vai descansar, eu cuido

da refeição — Helena se oferece.


— Tem certeza? Ele disse mesmo que não precisava…
— Não tem problema, pode ir tranquila e, se precisar
de alguma coisa, manda uma mensagem.

Aquiesço e deixo a cozinha pelos fundos. Helder não


está mais à vista, mas dona Clarissa sim e ela me grita. Com

certeza essa não é uma boa hora, mas não posso


simplesmente ignorar, coitada. Ela não tem culpa de nada.

Eu me certifico de que meu rosto não está mesmo


molhado, antes de me virar para vê-la, e mais uma vez sinto

que tudo ao meu redor está girando. Definitivamente, não


estou me sentindo bem.

— Como você está? — ela pergunta, segurando meus


braços com preocupação.

— Estou bem — minto, ainda que nós duas saibamos


que não estou sendo sincera. — Foi um mal-entendido, eu

juro.

— Eu sei disso, querida — ela diz, segurando em

minhas mãos. — Matteo tem um trauma e isso não tem


nada a ver com você. — Ela suspira, pensativa. — Nenhum

de nós está em seu juízo perfeito depois de tudo o que


aconteceu, essa é a verdade. Há dois dias meu filho estava

morto e agora ele está aqui, sinto que estou em um sonho e


tenho medo de acordar. — Clarissa sorri e seus olhos brilham
ao falar sobre o retorno de Miguel. — Mas ver Matteo assim

me destrói, Leônidas também está muito abatido, e eu não


sei o que fazer.

Eu entendo o que ela quer dizer, está dividida entre os


dois e, como mãe, essa deve ser uma situação muito difícil.

— Não acho que Matteo odeie o irmão a ponto de


preferir que não tivesse voltado, se quer saber — falo, dando

minha opinião —, acho que ele sofreu muito com a ausência


dele e com o passado e agora está com raiva porque Miguel

mentiu.

— Mat amava muito o irmão e sabe o que é o pior?


Miguel também era louco por ele, não sei como algo assim

foi acontecer. Gostaria de dizer que a culpa foi de Sofia, mas


não posso isentar Miguel do que fez.

— Só não carregue mais este fardo — falo, pensando


sobre o que ela diz —, deixe o destino definir o rumo das
coisas.

Clarissa assente e parece pensar sobre o que estou


dizendo, mas Maitê sai da cozinha correndo e se coloca
entre nós duas, abraçando minhas pernas.
— Onde você estava? Sumiu de mim. — A pequena faz
uma careta, como se estivesse muito zangada.

— Sinto muito, princesa, estava resolvendo alguns


problemas.
— Vamos brincar? — ela pergunta, animada,
ignorando os problemas dos quais falei.

Tudo o que eu queria agora era poder voltar a ser


criança, percebo olhando para Maitê o quanto elas são
alheias às coisas que tanto ferem os adultos, vivem em um
mundo só delas.

— Quero que você fique com sua vovó hoje e, se


precisar de qualquer coisa, peça a Elis, Suzi ou Helena, tá
bom? Preciso descansar um pouco.

Maitê não parece gostar da ideia, mas faz que sim


com a cabeça, e eu a envolvo em um abraço apertado. Nós
passamos as últimas semanas juntas e eu cuidei dela como
se fosse minha filha, me apeguei à Maitê e sei que ficar
longe dessa garotinha vai ser doloroso, só de pensar nisso

sinto um nó se formar em minha garganta.


— Se comporte. Tá bom?
— Sim. — Ela fica na ponta dos pés para beijar minha
bochecha.

Eu as deixo com a sensação de estar deixando uma


vida inteira para trás. Me apaixonei por Matteo e tive
esperança de que pudesse salvá-lo, mas a verdade é que o
processo de cura é individual e só depende dele mesmo, ele

tem seus motivos mais que válidos para se sentir impotente


e desconfiado, e precisa de ajuda. O amor nos faz desejar
sermos melhores, mas ele não cura sozinho as feridas da
alma.

Matteo ainda está preso no passado, no casamento


conturbado, na traição, na morte e nas mentiras do irmão e
o que ele sente por mim não foi o suficiente para fazer com
que aquela porta se fechasse.

Desço até o chalé e começo a guardar minhas coisas


na mala, não disse nada a ninguém, mas não posso
continuar trabalhando aqui depois de tudo. Eu não poderia
olhar para ele sem poder tocar sua pele depois de conhecer

seus beijos, não poderia simplesmente fingir que nunca


aconteceu, porque nossos momentos foram muito reais para
mim.
É hora de voltar para casa, ficar perto dos meus pais e

de Julieta vai me ajudar a esquecer o que vivi aqui, o


dinheiro vai fazer falta, é claro, mas posso conseguir outro
emprego e continuar estudando.

Minha vida vai seguir sem Matteo.

O dia passa devagar e ficar aqui sozinha, sem uma


ocupação, só faz tudo piorar, fico remoendo a minha raiva e
repassando as palavras de Matteo em minha cabeça. Essas
mudanças de humor dele acabam comigo.

Não quis me arriscar pedindo uma carona para o


Timóteo, porque com certeza ele contaria tudo ao Matteo.
Por isso, espero até que todas as luzes da casa estejam
apagadas, e só então saio do chalé.

Trago comigo uma mochila nas costas e minha mala


na mão. Sinto muito por sair assim, sem me despedir de
ninguém, mas não quero dar a Matteo a chance de voltar
atrás só para repetir todo o processo outra vez, ele foi

sincero desde o começo, disse que era instável, deixou bem


claro seus objetivos, eu é que me enganei quando acreditei
que poderia me envolver sexualmente, sem me apaixonar
por ele.
Olho uma última vez para a casa que aprendi a amar e

que, com muito trabalho e carinho, se transformou em um


lar. Penso em Elis, Suzi e o Senhor Helder, me paparicando
em troca de uma garrafa de chocolate quente. Eles me
receberam bem desde o primeiro dia e sei que vão fazer

falta.

Penso em Maitê dormindo em seu quartinho, ela vai


sofrer quando souber que fui embora. Sei que pode se sentir
abandonada outra vez e queria poder evitar isso, mas

infelizmente não há outro jeito, não sou a mãe dela, mesmo


que por um momento tenha me permitido essa ilusão.
Não posso ficar aqui à disposição do senhor
Presidente, buscando migalhas do amor dele, esperando

ansiosamente pelos dias bons. E, por fim, penso nele,


acordado, sentado no canto do quarto escuro, bebendo seu
uísque e, como sempre, pensando no passado.

Enquanto me afasto da casa, descendo pela estrada

principal, me lembro do nosso primeiro beijo na biblioteca e


de quando o encontrei nu no banheiro, me lembro da nossa
primeira vez e daquele dia no ringue da academia. Meus
olhos ficam marejados e começo a chorar de novo, eu nunca
deveria ter aceitado esse emprego, queria nunca ter

conhecido Matteo.

Minhas botas escorregam um pouco sobre as pedras


da estrada íngreme e preciso parar algumas vezes para

descansar. Quando chego à estrada principal sinto minhas


pernas tremendo devido à caminhada e os nós dos meus
dedos estão doloridos pelo peso da mala, mas essa é uma
estrada movimentada, já que dá acesso a vários chalés e

pousadas na serra, o que me faz sentir mais segura.


Um carro vem devagar, seguindo para a cidade, duas
mulheres muito bem-vestidas me cumprimentam, e
imagino que estejam indo passear na cidade, apesar de já
ser meio tarde.

— Está tudo bem? — a mulher que está dirigindo é


quem pergunta.
— Sim, obrigada. — Me aproximo da janela. — Vocês

podem me dar uma carona até a cidade?

— Claro. Pode entrar, estou vendo que essa mala está


pesada — ela diz, destravando as portas.
— Muito obrigada mesmo!
Eu me sento no banco de trás e fecho a porta outra
vez. Respiro fundo, tentando manter a calma, sei que devo ir
embora, mas a culpa me machuca como dor física. Tudo em
meu corpo dói.

Tiro o celular do bolso do meu sobretudo e envio uma


mensagem para Julieta, avisando que estou indo para casa e
que gostaria que ela me esperasse acordada.
As mulheres me deixam em um ponto de táxi e

agradeço a generosidade. Um senhor baixinho e muito


educado aceita fazer a corrida e me levar até São Paulo,
apesar da hora. A educação é para compensar o preço
absurdo da viagem, mas eu não reclamo, dormir em algum

hotel aqui no centro também me custaria e amanhã eu


ainda precisaria da corrida.

Além disso, não vejo a hora de estar em casa e poder


desabafar com a minha irmã.

Coloco fones de ouvido para me distrair durante a


viagem, mesmo assim meus pensamentos voltam para
Matteo.

Já passa das três horas da manhã quando o táxi


estaciona em frente à minha casa, a luz do quarto de Julieta
está acesa e um minuto depois ela abre o portão e vem me
ajudar com as malas. Ela me abraça forte e toda a dor
retorna. Julieta já sabe que alguma coisa aconteceu e seu
abraço quer dizer que terei seu apoio, independente de qual

seja o problema.

— Que saudade! — Ela esfrega minhas costas. — Você


está bem?

Balanço a cabeça, segurando o choro. Acho que ainda


não consigo falar sobre tudo o que aconteceu.

— Está tudo bem, vamos entrar.


Pago a corrida para o taxista antes de seguir minha

irmã para dentro, e só quando estamos dentro do quarto


que costumávamos dividir é que me permito chorar.
Não dá para dizer que tive uma noite reparadora de
sono, não depois de tudo que aconteceu, primeiro com

Miguel e depois com Anabela. Fiz uma besteira grande ao

me envolver, porque agora não paro de pensar nela e

também porque sei que a magoei por não estar pronto. Eu


deveria saber que o que houve comigo, Miguel e Sofia no

passado, era irreversível e não ter tentado encontrar uma

saída para algo que não vai me deixar nunca.

No entanto, Maitê está aqui, ela também é para


sempre e vou dedicar o resto dos meus dias para ao menos
ser um bom pai para ela, minha filha não tem culpa dos

meus erros e menos ainda dos erros da mãe que sequer

chegou a ter de verdade.

Por isso, ainda que sem disposição alguma, concordei

em ir com ela até o lago, para um piquenique. A


programação e o local me lembram do dia em que estive

aqui com Anabela, antes que o caos se instaurasse e antes

que Maitê chegasse, são memórias que agora são tristes,

porque sei que não vão mais se repetir, mas ainda assim, é

melhor estar aqui, sendo invadido por lembranças de


Anabela, do que estar na casa, tendo que lidar com Miguel e

com os olhares acusatórios ou pesarosos de todos ao meu

redor.

— Papaizinho — Maitê chama, e isso me arranca um

sorriso, apesar de tudo —, esse lugar é muito legal, a gente

devia ter chamado a Belinha.

Belinha. Maitê também se apegou demais a Anabela,

mas diferente de mim, elas ainda podem ser próximas.


— Você pode chamar a Bela pra vir outro dia, só vocês

duas, vai ser divertido.

Mas Maitê não parece compartilhar da mesma opinião.


— Tem que vier os três, eu gosto quando ficamos

assim.

É, eu também gosto.

— E que tal se você se sentar aqui comigo agora? —

chamo, apontando para a toalha sobre o gramado. — Vamos

comer esse bolo que o papai trouxe.

Maitê vem saltitante até onde estou e se senta, o


vestidinho rodado se ajeitando ao redor dela. Seus cabelos

claros estão presos em um rabinho no alto da cabeça e os

olhos claros me fitam com expectativa.

— Também tem chocolate quente?

— Não, mas tem refrigerante — falo.

Eu não teria coragem de pedir chocolate ou qualquer

coisa a Anabela depois de tudo que eu disse ontem, por

respeito, mas principalmente porque não me sinto pronto

para encará-la, sei que se a tiver a poucos metros de mim,

não vou resistir e vou acabar piorando nossa situação, vai


ser difícil me manter longe dela depois de tantos dias bons,

depois de ter o calor dela dormindo comigo, seus beijos

gostosos de manhã e a cabeleira espalhada pelo travesseiro.


Vai ser muito difícil abrir mão dela, mas não há outra

alternativa que não seja causar ainda mais sofrimento a

alguém que só me fez bem, então melhor que seja assim.

— Tá bom, eu gosto desse referijante.

Maitê aceita a garrafinha que ofereço a ela e coloca o

canudo dentro, tomando um longo gole em seguida. Ela

estala a língua e sua boquinha fica roxa, resultado do

corante de uva na bebida.

— Papai, as outras crianças quando ganham um pai,


também recebem uma mãe, não é?

Por Deus... O pior momento para esse tipo de

conversa.

— Hum, algumas vezes, sim. Mas as famílias são

compostas de diversas formas, filha. Uma criança pode ter

um papai e uma mamãe, mas também pode ter duas mães,

dois pais, ou só um dos dois, algumas não tem nenhum e

são criados por avós.

— Eu sou das que tem um só, né?

— Isso, você tem o papai, mas também tem avós e tia,

também tem o Helder que ama muito você.

— E a Belinha...
— É, e a Anabela que te adora.

— Ela parece uma mamãe, você não acha?

Porra...

— É, acho que parece sim.

— É, e vocês parecem namorados…

Nesse momento, com essa fala, eu me dou conta de

que não apenas fodi com a minha vida e a de Anabela, mas

também compliquei as coisas para Maitê, eu a expus ao

nosso relacionamento, ao invés de manter sua cabecinha

longe das coisas que ainda não eram definidas.

— Isso é meio complicado, filha. Acho que o papai não

está pronto para ter uma namorada, sabe? Quero me

dedicar a ser seu pai agora, recuperar o tempo que

perdemos.

— Mas os papais podem ser pais e namorados. — Os

olhinhos perspicazes me analisam e eu suspiro.

Queria poder explicar, mas se nem eu consigo me

entender, como vou fazer com que uma garotinha de cinco

anos entenda?

— Eu sei, mas comigo é diferente, filha.

— Mas eu amo a Anabela…


— Também sei disso, ela também te ama.

— E ela te ama, o senhor não ama ela?

O comentário tem o mesmo efeito de um soco na boca

do meu estômago, deveria ser uma resposta simples, sem

sentimentos, não foi o que eu ofereci? Mas infelizmente as

coisas não se desenrolaram dessa maneira.

— Por que você acha que ela me ama?

Maitê dá de ombros, como se não soubesse responder

a isso, mas parece pensativa.

— A Belinha me disse que quando amamos alguém


queremos ver a pessoa feliz e ela faz tudo pra gente ficar

feliz, então ela ama o papai e também me ama.

Apesar das palavras simplórias de uma criança, Maitê

mexe comigo de uma forma que nem consegue imaginar.

Quando alguém ama quer ver o outro feliz, talvez, de uma

forma muito deturpada, tenha sido exatamente o que eu fiz,

eu a afastei para que não sofresse com minhas mudanças

de humor e com meus surtos causados por situações do

passado sobre as quais ela não tem a menor culpa.

Eu fiz isso em uma tentativa de a proteger porque não


quero que se entristeça, porque quero que seja feliz, como
ela merece. Porque eu a amo.

Não respondo à pergunta de Maitê, porque estou

chocado demais com minha própria constatação, pensei

tanto em Anabela e em evitar que ela se envolvesse a fundo,

que não percebi o quanto eu mesmo já havia me entregado.

Eu a amo e é por isso que dói tanto, por isso que me senti

tão ameaçado pela proximidade de Miguel e por isso estou

me sentindo em frangalhos após ter terminado aquilo que

mal começamos.
Quando voltamos para casa já é quase hora do
almoço, e minha filha se despede de mim para ir atrás de

Anabela. Quero saber se está bem, se consegue lidar com


isso melhor que eu, se ela realmente me ama… Mas não

posso, não quando fui eu mesmo o causador de tudo isso.

Troco de roupas, preparado para trabalhar um pouco,


mas a porta do meu quarto se abre de repente e Maitê entra

correndo, seu rosto está todo vermelho e ela chora com


tanto sentimento que meu coração fica apertado.

Ela vem correndo para os meus braços, buscando


conforto e eu afago seus cabelos, apoiando sua cabeça em
meu peito.
— O que aconteceu? Por que está chorando assim? Se
machucou?

Maitê me fita com seus olhos azuis, agora


avermelhados, e meneia a cabeça.

— Ela foi embora, papai. Não achei a Anabela em


lugar nenhum!

Helena aparece à porta, no corredor, ela chama Maitê

e se desculpa.
— Perdão, senhor Presidente, ela fugiu de mim e
entrou de repente.

— Não tem problema. — Me ergo com Maitê nos

braços, ainda tentando entender o que está acontecendo. —


O que aconteceu? Onde a Anabela está?

Helena parece constrangida em portar as notícias,


mas ainda assim ela o faz.

— Não sabemos, senhor. O Timóteo e o Pedro estão


procurando por ela.

— Ela não apareceu hoje? Não veio preparar o café?

Não faz muito sentido, Anabela sempre está de pé


muito antes de nós.
— Não.
— Vocês foram ao chalé? Talvez ela não esteja se
sentindo bem… — sugiro, pensando nas palavras duras que

eu disse a ela na noite anterior.

Helena encara os próprios pés, como se evitasse


contar toda a verdade, mas Maitê não se contém.

— As roupas dela não estão lá, papai. Ela foi embora


mesmo e levou tudinho! — Maitê volta a chorar, afundando
seu rosto molhado em meu terno. — Por que ela deixou a

gente?

Não, isso parece um pesadelo que nunca tem fim. Ela


não pode ter ido embora.

Todas as coisas que eu disse foram apenas para


protegê-la, para poupar seu coração de um sofrimento ainda

maior do que o que já causei, nós não conseguimos cumprir


o nosso acordo como deveria ter sido e nos envolvemos

demais, e eu não posso dar a ela o que ela quer e merece


ter. Cheguei a pensar que conseguiria, mas os últimos
acontecimentos me provaram o contrário, agora entendo

que a afastei porque ela merece mais do que um homem


quebrado, ela merece alguém que possa se doar por inteiro.
— Ela não fez isso — falo, tentando convencer a mim

mesmo.

Talvez eu a tenha subestimado, acreditando que ela

concordaria com minhas decisões, mas é da Anabela que


estamos falando e ela nunca seguiu as ordens à risca.

Minha governanta trouxe estranhos para dentro da


minha casa, jogou uma botina na minha cabeça, colocou

perfumes nos meus livros e até me fez sentir alguma coisa


de novo, quando tudo o que eu queria e pedia era silêncio e

solidão. Anabela faz o que quer e o que acredita ser o certo,


e é por isso que eu sou louco por ela.

— Helena, fique com a Maitê. Vou sair com o Timóteo


para procurar por ela.

Maitê assente repetidas vezes, aprovando a ideia.

— Traz ela de volta, papai. — Sua voz está cheia de


esperança, e não quero decepcioná-la.

— Vou fazer o possível.

Meu peito fica apertado e meus sentimentos se

confundem, me sufocam. O medo me trava e tenta me


convencer de que desistir é o melhor caminho e também o

mais fácil, mas a raiva me faz seguir firme, porque é muito


injusto que ela simplesmente vá embora, sem ao menos me

dar uma satisfação, justo agora que o mundo está


desmoronando sobre a minha cabeça.

Encontro Timóteo sentado em um dos degraus da

escada, conversando com o Pedro e pigarreio para chamar


sua atenção, nunca o vi assim, tão distraído.
— Bom dia, Presidente. — Os dois ficam de pé em um

pulo, como se eu fosse criar caso por uma simples conversa.

Todos eles me veem como um troglodita, mesmo.


— Bom dia. Onde estão todos?

— Seus pais estão pescando, senhor, e a senhora


Catarina, o senhor Alberto e o senhor Miguel foram para a

cidade.
Pescaria e passeios pela cidade. As férias da família

Viturino não poderiam ser mais felizes!

— E eu sendo feito de prisioneiro dentro da minha


própria casa…
Timóteo e Pedro não dizem nada, é claro, apesar de

saberem muito bem do que estou falando. Por mais que eu


tenha tentado evitar, as conversas acontecem, e meus
empregados sabem de tudo o que acontece aqui, seria
inocência minha acreditar que não.

— Timóteo, quero que me leve até a casa da Anabela,


por favor — digo, já me aproximando do carro que está

estacionado há alguns metros de nós.


— Sim, senhor.

Nós dois entramos no carro e partimos imediatamente


para São Paulo. Preciso trazer Anabela de volta, me

desculpar por tudo o que aconteceu e oferecer minha


amizade. Vou engolir as acusações que inundam minha

boca e me humilhar, se for preciso, tenho que fazer com que


ela entenda meus motivos e meus medos e preciso fazer

isso com serenidade.


Não quero pensar na possibilidade de não ter Anabela

andando pelos corredores da casa e espalhando seu


perfume por onde passa, não quero deixar de ver seus olhos

todos os dias e admirar seu sorriso, mesmo que seja de


longe. Essa mulher governa a minha casa e conduz a minha

vida agora e, apesar de não ser como eu queria, espero que


isso não mude.
Já passa das doze horas quando chegamos a São
Paulo, não consigo evitar conferir meu reflexo no retrovisor,

mesmo sabendo que não preciso estar apresentável, não


para ela que se aproximou de mim quando eu era apenas

uma fera enjaulada naquela casa enorme.

Bato no portão da pequena residência onde Timóteo

disse que ela mora com a família. O sol forte do meio-dia


esquenta meus ombros sob o paletó e eu constato mais uma

vez que prefiro o frio das montanhas.


Ouço passos vindos do lado de dentro e me afasto. O

portão pequeno se abre e uma moça bonita me recebe, com


expressão de tédio no rosto. Imagino que seja Julieta, a irmã

de Anabela e parece que ela já não gosta de mim.

— Boa tarde. Meu nome é Matteo, a Anabela está?


A garota me olha dos pés à cabeça e franze

minimamente os olhos, definitivamente, ela me odeia.

— Não está. Sinto muito. — Ela me oferece um sorriso


forçado.

Merda, é óbvio que ela está mentindo e nem está se


esforçando para parecer o contrário.

— É Julieta seu nome, não é? Você é a irmã dela?


— Sim.

— Julieta, eu preciso muito falar com a Anabela.

— Acho que já falou o bastante, senhor Presidente.

O sarcasmo é óbvio, mas vim pronto para engolir meu


orgulho e é o que vou fazer.
— Por favor, quero me desculpar. — Sua atitude muda

um pouco e por isso insisto. — Estou preocupado, ela saiu


no meio da noite e eu não sei o que fazer.

Julieta olha para trás e então sai para fora da casa,

fechando o portão atrás de si.


— Minha irmã está aqui, mas não quer te ver.

— Por quê?
Ela revira os olhos, impaciente.

— Não acredito que esteja mesmo perguntando isso.


— A garota então começa a enumerar os motivos nos dedos.
— Você não queria um relacionamento, depois disse que
queria, agora está com ciúme do seu irmão, que até três

dias atrás estava morto e agora decidiu que não quer mais
ficar com ela, mas está aqui na minha frente porque não
quer perder sua governanta.
— Eu… Bom, você falando desse jeito parece horrível
mesmo.

Julieta levanta as sobrancelhas, como quem diz que já


sabe que está certa. Pelo jeito, a caçula é ainda mais
marrenta que a irmã.
— Eu preciso dela — confesso, tentando não soar tão

desesperado.

— Por que a ama ou para lavar suas roupas?


— Como é? Você nem me conhece, eu não sou assim

— respondo, começando a me irritar. — Tem muitas coisas


que você não sabe, não é como se eu tivesse a magoado de
propósito.

— Mas eu sei que minha irmã ficou do seu lado,

apesar de tudo, e você não sabe o que quer — ela diz com
certeza, apontando seu dedo para o meu peito.
Porra, o que me deixa mais puto é saber que essa
garota tem razão. Ela tem o quê? Uns vinte dois anos, talvez

e parece bem mais madura do que eu.

— Por favor, vá embora, senhor Viturino, não quero ser


grossa, mas preciso que respeite a decisão dela.
Julieta volta para dentro e fecha o portão na minha

cara, se Anabela está decidida e não quer nem falar comigo,


não há mais nada a ser feito. Eu vim até aqui, mesmo em
meio à bagunça que minha vida se transformou, e ela não
quis sequer me ouvir, então, que seja feita a vontade dela.

Timóteo encara a rua, olhando fixamente para frente,


ele já me conhece o suficiente para saber que estou furioso.
— Vim até aqui para falar com ela e é assim que sou
recebido… — Bato a porta do carro com força. — Eu sabia

que isso ia terminar desse jeito! Sabia que ela não


conseguiria separar a vida pessoal, da profissional. — Estou
falando alto e gesticulando, mas o silêncio me faz sentir
ainda mais ridículo. — Porra! O que eu fiz para merecer tudo
isso?

Timóteo me encara pelo retrovisor, acho que está


tentando descobrir se eu espero por uma resposta.
— Quando uma coisa boa acontece, outras dez ruins

vêm em seguida.

Abaixo a cabeça e pressiono entre minhas


sobrancelhas por alguns segundos, tentando controlar meus
impulsos.
— Timóteo, você pode dizer alguma coisa?

Ele levanta os ombros e acerta a gravata, acho que


essa é a primeira vez que peço a opinião dele para alguma
coisa.
— Se o problema é a casa, senhor, pode contratar

outra governanta.

Outra governanta…
Eu não quero outra governanta.

— Acho que a casa não é o problema, Timóteo —


assumo, afinal o problema sou sempre eu. — Eu quero que
seja ela.
— Então, nesse caso, o senhor também misturou as

coisas.

Mas que abusado! Prefiro não responder a isso, já que


não posso brigar por uma opinião que eu mesmo pedi, ao
invés disso eu fico em silêncio e reflito sobre tudo o que

aconteceu nos últimos dias.


Em outras circunstâncias, eu me trancaria na
biblioteca e beberia todo o meu estoque de destilados, mas
preciso me restabelecer por Maitê, coisa que não vai
acontecer enquanto Miguel estiver andando pela minha

casa como se fosse o dono dela, isso precisa acabar.

A partir de hoje seremos apenas eu e Maitê. Doa a


quem doer.

Fiquei tentando ouvir a conversa entre Julieta e


Matteo, mas não consegui. Não imaginei que ele viria, e

embora a atitude balance meu coração, não muda minha


decisão, não sou um brinquedo que ele decide onde deixar e
quando quer brincar, sou uma pessoa e tenho sentimentos.
Julieta empurra a porta e se apoia nela com os braços

cruzados e os lábios apertados em uma linha fina. Eu


conheço bem essa carinha e já sei que ele conseguiu
amolecer seu coração.
— O que foi? — pergunto. Estou lavando a louça do
café da manhã porque preciso desesperadamente me
ocupar. — O que ele disse?

— Disse que precisa de você. — Julieta tomba a

cabeça e fecha os olhos, sempre muito expressiva. — Ah! Ele


é tão bonito, Bela!
— Precisa como?

— Bom, ele não disse. Falou que não quis te magoar


de propósito...
— Ele não disse que quer ficar comigo, só está atrás
da governanta.

Por mais fofo que seja o fato de ele vir até aqui, eu
resisto. Matteo pode ser o sonho perfeito de qualquer
mulher quando baixa a guarda, mas não posso viver à
espreita esperando por esses momentos. Não posso estar ali

à disposição dele.
— Ele passou por muitas coisas nos últimos dias… —
ela defende.

— Julieta, foi ele que me dispensou. Depois do surto

de ciúme por causa do irmão, eu é que devia ter terminado


tudo, mas como sempre, ele decide as coisas como quer. —
Começo a esfregar o fundo de uma panela com a esponja de
aço, concentrando toda a minha raiva nela. — Eu não posso
continuar assim! Não quero gostar de alguém que vive no
passado, não quero ser usada para superar uma traição…

— Anabela, você vai abrir um buraco nessa panela.


— Você ontem estava xingando ele o tempo inteiro —
digo, ignorando o comentário —, agora está aí o

defendendo...

— Claro que não! Só estou falando o que ele disse,


mas lá fora, não dei abertura não, fiz minha cara de malvada
e botei ele pra correr, cheguei inclusive a ser mal-educada,

mesmo achando muito fofo o homem todo perdido por sua


causa.
— Perdido... Perdida fiquei eu.

— Você estava certa em não ir lá fora, não ia conseguir

resistir. Um homem daqueles, com cara de cachorrinho


pidão? Sem condições.
Ela meneia a cabeça, os cabelos pretos se balançam
de um lado para o outro.

— Mas você até foi firme, não o deixou entrar.


— É, mas eu não estou apaixonada. Tenho certeza de
que se o visse, ia ceder.

— Fala sério, acha que sou tão boba assim?

Ela não responde, mas de repente sinto alguma coisa


quente molhar minha calcinha, o que explica o estresse e a
vontade de chorar a cada minuto. Ótimo. Não podia ter hora
melhor!

Deixo a panela dentro da pia e lavo as mãos.


— Pode me dar um absorvente, por favor? E não fala
pra mamãe que ele veio aqui, ela ia ficar toda curiosa pra
saber o que aconteceu e não quero que nossos pais saibam

que fiquei de rolo com o patrão, pelo amor de Deus.

Minha irmã assente e corre para o quarto, enquanto


eu vou para o banheiro. No meio dessa confusão toda eu até

me esqueci da menstruação e, pensando bem, foram alguns


dias de atraso. Julieta bate na porta e me entrega o pacote
em seguida.
— Pode preparar o cobertor, o remédio para cólica e o
brigadeiro — peço, porque se em circunstâncias normais

esses dias já não são fáceis, depois de um rompimento serão


ainda piores.
— E um romance — ela completa do lado de fora.

— Não! De jeito nenhum vou ler um romance.

Minha vida vai voltar ao normal agora, ao que era


antes de conhecer Matteo e Maitê, minha história de amor
acabou antes mesmo de começar.
Maitê se prepara enquanto eu faço a contagem. Com
esse maiô de bolinhas e a touca emborrachada ela fica

ainda mais engraçadinha e está agindo como se fosse uma

nadadora profissional, fazendo gestos e poses, os olhos

cobertos pelos óculos de natação.

— Um, dois, três e já!


Ela pula para dentro da piscina, caindo no meu colo e

espalhando água por toda parte, já fizemos isso umas

cinquenta vezes, mas ela não se cansa nunca.


Uma semana se passou desde que Anabela e minha

família foram embora. Depois que cheguei de São Paulo tive

uma conversa difícil com meu pai, que entendeu meus

motivos e cuidou para que todos saíssem da minha casa.

Ainda que tenham sentido falta de Miguel, assim como eu


senti, eles sabem que não posso simplesmente esquecer o

que ele fez.

Anabela faz muita falta, mas Maitê e eu temos tido

dias bons, construí um galinheiro para ela, nos aproximamos

e minha filha tem me feito feliz, por vezes chego a pensar


que isso é o bastante.

Mas aí as noites chegam e, com elas, os pensamentos

que sempre se desviam para Anabela e para o buraco que

ela deixou no meu peito. Acabo bebendo bem mais do que

deveria e acordo com dor de cabeça, mas logo Maitê

aparece, Helder me traz analgésicos e café forte e me

concentro no trabalho e na minha filha, até o próximo pôr-


do-sol, a verdade é que se me mantiver ocupado, consigo

não pensar nela a cada segundo.

— Eu pulei bem alto dessa vez, papai! — Maitê diz, me

trazendo de volta.
— Pulou mesmo, foi incrível.

Helena passa pela porta, trazendo consigo o suco de

melancia que Maitê pediu.

— Que delícia, Heleninha. — A pequena esfrega as

mãozinhas, ansiosa.

— Como se diz? — Chega a ser engraçado, eu, que

nem sabia os nomes dos empregados, ensinando minha


filha a tratá-los como se deve.

— Muito obrigada, Heleninha!

— De nada, minha linda.

Nós três nos viramos ao ouvir os saltos que batem

sobre o piso molhado, e minha irmã sorri ao nos encontrar

em um momento descontraído como este. Infelizmente já

estou tão acostumado às más notícias que sinto meu

coração ficar apertado só em vê-la chegar.

— Titia! — Maitê abre os braços, comemorando.

— Oi, princesa! Você está nadando? Que delícia!

— Sim. O papai me trouxeu.


Catarina sabe que não gosto de receber visitas que

venham sem avisar, então nem disfarço minha preocupação.

— O que aconteceu?
Ela dá de ombros e arrasta uma espreguiçadeira para

se sentar.

— Nada, só queria ver minha sobrinha e conversar

com meu irmão.

— Você não tem tido conversas o suficiente com seu

outro irmão?

Ela balança a cabeça, incrédula, e estreita os olhos

para me encarar.

— Matteo…

Coloco Maitê para fora da piscina e ela bate o pé no

chão, contrariada.

— Eu volto logo, é só você se sentar ali na mesa para


beber seu suco. Você pode ficar com ela, Helena?

A moça concorda, e Maitê faz o que peço, mesmo não

gostando da ideia de sair da piscina. Catarina lhe dá um

beijo na bochecha ao mesmo tempo que Helena cobre seus

ombros com um roupão quente.

Pego a toalha sobre a mesa e me enrolo nela, me

afastando, Catarina me segue de perto, e o som dos saltos

de suas botas continuam ecoando pela área de piscina.


— Vocês precisam resolver isso, Matteo — ela diz, e

não preciso ser um gênio para saber que está se referindo a

Miguel.

— Se foi para isso que veio, perdeu seu tempo.

Catarina segura meu braço e me faz olhar para ela.

— Nosso irmão voltou, Matteo, acorda! Você passou

cinco anos sofrendo com a morte dele e agora não quer nem

escutar o que ele tem a dizer.

— É exatamente por esse motivo que eu quero

distância dele e de qualquer pessoa que insista nesse

assunto. — Talvez assim eu seja mais claro.

Ela meneia a cabeça outra vez, como se eu fosse um

caso perdido.

— Eu sei, tá bom? Sei que o Miguel te magoou muito,

eu também fiquei arrasada que ele tenha feito o que fez,

mas quando ele… morreu, nós sofremos muito com isso.

Mas já se passaram cinco anos, você não ama a Sofia, nem

sei se a amava assim, mas sei que você e Miguel se

amavam, e ele está de volta. Seria bom dar uma chance a

vocês dois…
— Ele se fingiu de morto, Cat. Como pode aceitar isso

bem?

— Não aceito, Miguel fez coisas inexplicáveis, mas

está vivo. Não sei por que ele fez o que fez, mas sei que se

arrepende e acho que vocês dois precisam de ajuda

profissional.

— Terapia? Era só o que me faltava…

Entro na casa, deixando Cat para trás. Subo a escada

para o meu quarto e quando estou quase alcançando o

corredor ouço as botas dela sobre os degraus, me seguindo.

Droga. Ela não desiste de me encher o saco!

— Você falou com a Anabela?

— Não. Ela não quer falar comigo — respondo alto.

Catarina começa a correr pelo corredor e me alcança

antes que eu tranque a porta pelo lado de dentro. Ela faz

força comigo e a empurra de uma vez, entrando.

— Você devia insistir — fala, os olhos brilhando.

— Não.

— Por quê?

— Porque não, Catarina, não é da sua conta!

Ela apoia as mãos na cintura e me encara, irritada.


— Eu não acredito que você vai perder aquela mulher.

Ela é incrível, gosta de você e da sua filha, é linda, gentil e

faz chocolate quente!

Não consigo evitar uma risada.

Inferno! Isso faz Cat achar que estou aprovando a

conversa.

— Você devia assumir a relação de uma vez, sei bem


que está bebendo de novo e sei que é por causa dela.

— E você e o Helder — grito, para que ele saiba que


estou ciente de que anda passando informações. Como mais

ela saberia que estou bebendo? — deveriam parar de ser tão


intrometidos.

— Você sabe que Anabela e Miguel não tinha nada a


ver. O que aconteceu com Sofia foi algo horrível, mas não é

como se a personalidade do seu irmão fosse essa, de tentar


te roubar as mulheres com quem se envolve e, mesmo que

fosse, ela não teria culpa alguma.


— Eu sei, tá bom? Sei que ela não fez nada e que

surtei, mas isso é complicado, Catarina, eu estou só… —


Catarina se aproxima um passo, ouvindo com atenção —

estou a protegendo. — Desvio meus olhos dos dela e pego a


camiseta que deixei sobre a cama para me vestir. — Anabela
é tudo o que você disse e muito mais, merece alguém

melhor que eu, alguém completo, que não viva soterrado


por problemas do passado, que não desconfie até da própria

sombra e que não a culpe por coisas que não tem nada a ver
com ela.

— Você está apaixonado — ela diz, com um sorriso


bobo. — É tão fofo!

— Meu Deus! Me deixa em paz e vai cuidar do seu


filho!

Catarina começa a rir, mas dessa vez não me segue.


Acho que está pensando em sua próxima estratégia para me

infernizar, porque de jeito nenhum ela vai esquecer essa


história agora que sabe a verdade.
A sensação é de que abriram um buraco no meu
estômago, acho que nunca senti tanta fome na minha vida.

Pulo da cama e vou para a cozinha, revirar os armários.

A dor no estômago se transforma em enjoo e parece


mesmo que vou desmaiar se não engolir alguma coisa logo,

mas tudo o que encontro é amendoim torrado.


— O que você quer, Bela? — Meu pai está me olhando
com olhos arregalados, porque tirei a maioria dos

mantimentos do armário e agora eles estão espalhados pelo


chão.

Seus cabelos grisalhos estão desalinhados e ele tenta

arrumar a bagunça com os dedos.


— Comer, estou morrendo de fome, pai, e não tem

nada aqui — choramingo.

— Estou indo à padaria, meu bem — ele fala, com

calma —, posso trazer o que você quiser.


Assinto enquanto ele pega a sua carteira sobre a

mesa.

— Não sei se consigo esperar — falo, sendo sincera.

Ele ri, como se eu estivesse brincando, e sei que


parece mesmo exagero, mas minha barriga está roncando e
doendo.

— Sua mãe está na cama, mas vou trazê-la para baixo


assim que voltar e vocês comem juntas, que tal? Ela quer

bolo e você?
— Tudo bem. Quero pão com presunto e muçarela, na

verdade, o que eu queria mesmo era carne, mas o pão vai


servir. — Me sento em uma das cadeiras e apoio a cabeça

nas mãos trêmulas. O que está acontecendo comigo?

— Tudo bem, eu já volto então.

Durante os quinze minutos que meu pai leva para ir e


voltar da padaria, só consigo pensar nisso. Não sei o que

pode ter acontecido, já que jantei no horário habitual e


ainda comi torta de limão antes de dormir, mas as imagens

das delícias que eu poderia estar comendo agora não param


de passar pela minha cabeça e começo a imaginar que um

pão não vai ser o suficiente.

Quando meu pai chega e deixa as sacolas sobre a


mesa, preparo dois pães e os devoro em questão de
minutos, sentindo minhas forças voltarem quase que

imediatamente. Ele traz mamãe para se sentar comigo, mas


quando ela chega, já estou terminando o segundo pão.
— Querida, quer um pedaço de bolo? — ela questiona,

oferecendo.

Olho por sobre a mesa e avisto a cobertura de


chocolate em cima do bolo de cenoura. Eu não devia, mas

não resisto e também corto metade de uma fatia.


— Não sei o que houve hoje, mas acordei com uma
fome surreal.

— Hoje? — Mamãe ri. — Desde que voltou está

comendo mais que seu pai, eu e Julieta juntos, sorte nossa


que seu pagamento nos deixou tranquilos, porque se fosse

antes, como ia bancar esse seu estômago sem fundo?


— Mãe! Eu não estou comendo tanto assim — rebato,

me divertindo com o comentário dela.

Mas Julieta entra na cozinha nesse momento, se

manifestando.
— Ah, está sim! Eu comprei uma caixa de chocolates e

fui comer um hoje, adivinha mãe?

— Anabela comeu todos?

— Como foi que acertou?

E as duas caem na risada. Depois de tomar meu farto


café da manhã, preparo a mesa para meu pai e minha irmã
que ainda não comeram e ajudo mamãe a voltar para a
cadeira de rodas.

Sigo com ela pelo corredor, rumo ao quarto dos meus


pais, mas paro onde estou ao sentir meu café da manhã se

revirar dentro do meu estômago. Sinto a acidez subindo


rápido pelo esôfago e deixo a mamãe no caminho mesmo,

antes de cobrir a boca e correr para o banheiro.


Depois de vomitar tudo, constato o óbvio, uma virose

me pegou de jeito, só Deus sabe há quantos anos não fico


doente, mas dessa vez parece ser forte. Volto para terminar

de levar mamãe, mas pelo jeito ela mesma retornou para o


quarto e solicitou ajuda, porque a encontro já deitada.

— Está tudo bem, querida? Julieta me ajudou a me


deitar.

— Nem vou chegar muito perto, mãe, acho que peguei


uma virose.

Ela me olha de um jeito estranho, mas não diz mais


nada, e sigo então para o meu quarto, planejando me deitar,

mas isso só parece piorar tudo.


Julieta entra no quarto um pouco depois e me encara

por alguns segundos.


— O que você tem?

— Não sei, estou passando mal — respondo, sem abrir


os olhos.

— O que você está sentindo?

— Enjoo, vômito… Deve ser uma virose.

Julieta se senta na cama de uma vez e coloca uma


mecha de seu cabelo preto atrás da orelha.

— E também está com uma fome ridícula.


— Isso não tem nada a ver com a virose e você não

deveria ficar tão perto, vai pegar…

— E se você estiver grávida?


— Não diga bobagens, Julieta, eu fiquei menstruada,

lembra?

Mas ainda assim sinto meu coração disparar forte no

peito, a lembrança daquela vez na beira do lago e da


promessa de uma pílula que nunca veio volta à minha
mente com força. Abro os olhos, um pouco nervosa, e Julieta

parece considerar isso como um alarme.


— Mas existe a possibilidade?

— Não, semana passada — começo a dizer, me


apegando a ideia da menstruação.
— Você entendeu o que eu quis dizer — ela insiste —,
você transou alguma vez sem se prevenir?

Cubro meu rosto com o cobertor. Santo Deus, agora


estou me sentindo péssima, acho que vou vomitar de novo.
— Talvez existisse, mas não agora — falo, por fim,
quase ao ponto de chorar.

— Nesse caso, você precisa fazer um teste. — Julieta


se levanta imediatamente, o movimento da cama faz com
que eu descubra o rosto e a vejo amarrando os cabelos em
um rabo-de-cavalo. — Vou até a farmácia, comprar pra você.

— Ju, para com isso. — Meneio a cabeça, se eu não


fizer o teste, não vou descobrir nada demais e vou continuar
com a ideia da virose na cabeça.

— Trago alguma coisa para a náusea também, pode


deixar.
Com esse adendo eu paro de contrariar minha irmã,
porque preciso muito melhorar, e um remédio para o
estômago não seria nada ruim agora.

— Volto logo. — Julieta sai do quarto, me deixando


sozinha.
Começo a pensar na possibilidade e, quanto mais
penso, mais as evidências começam a surgir, o que é

psicológico, claro, sempre que nos apegamos a uma ideia as


confirmações surgem como mágica na nossa mente. Ainda
assim, não consigo não pensar no dia em que Matteo me
arrastou para fora da sala de música, nas tonturas que senti

e tem o enjoo, claro.

A fome não tem absolutamente nada a ver, claro. Pego


meu celular ao lado da cama e digito uma busca por
informações a respeito. Droga... Algumas mulheres alegam

que quando grávidas passaram a comer mais que uma


capivara raivosa, assim como eu.
Como isso pode estar acontecendo comigo? Uma
única vez sem preservativo e agora Matteo e eu não temos

mais nada, não que antes fosse fácil, mas isso torna as
coisas ainda mais difíceis. Não, eu não vou ter um filho, não
é possível que em uma única vez eu fosse engravidar.

Minha irmã volta meia hora depois, primeiro ela retira

da sacola uma cartela com alguns remédios bem pequenos


e me entrega um deles.
— Coloque debaixo da língua. — Faço o que ela pede.

— Este é para náusea.

Julieta se senta nos pés da minha cama e retira da


sacola uma caixinha com o teste de gravidez. Estou
passando muito mal para seguir negando a possibilidade,

por isso deixo que ela leia as instruções e apenas fico quieta.
— Você tem que fazer xixi no copinho e aí vamos
colocar esse palitinho dentro dele. Uma linha significa que
você não está grávida, duas linhas significam que vou ser

tia.

— Julieta, eu não vou sair dessa cama agora — falo —,


e não brinca com essa coisa de ser tia.
— Vai sair sim. Vem, eu te ajudo… — Ela fica de pé e

estende sua mão para mim. — Já foi ao banheiro hoje?

Faço que não.


— Levantei e fui atrás de comida imediatamente.

— Ótimo, o primeiro xixi é mais confiável, disse o


farmacêutico.
Ela continua com a mão estendida e acho que se eu
não for, não vai me deixar em paz, por isso aceito.

— Depois disso você me deixa quieta? É sério!


— Claro, se der negativo esqueço isso.

Conforme as instruções dela, entro no banheiro e


fecho a porta, faço xixi no potinho, ainda que minha mira
não seja das melhores e depois coloco o palitinho dentro, o
deixando sobre a pia e lavo as mãos antes de voltar para a

cama.
— Você não quer ver?

— Julieta, eu não posso estar grávida. Minha

menstruação já veio, você sabe. — Me deito de novo. — Mas


estou doente e não quero ficar conversando.
— Você sabe que isso não quer dizer…

— Sei, mas não quero nem pensar na possibilidade, o

que eu faria se estivesse esperando um filho dele? Não, eu


não posso ser a mulher mais azarada do mundo, perde a
virgindade e engravida do mesmo homem em tão pouco
tempo.

Julieta fica em silêncio por alguns minutos e por um


momento chego a pensar que ela desistiu de me infernizar
com essa ideia maluca. Mas de repente minha irmã grita e
vem pulando de volta para o quarto, com o bendito palitinho

na mão.
Meu coração volta a disparar.

Não.
Não tem como.

— Dois risquinhos! Dois! — Ela me entrega o teste.

Está nervosa, mas ainda assim parece eufórica, como


se fosse uma coisa boa.

— Mas como? Isso não faz sentido. — Encaro os dois

tracinhos diante de mim e tento piscar os olhos para


enxergar direito, mas eles ainda estão lá.
— Vou ser titia! Vou ser titia! — Julieta fica pulando
feito uma louca.

Grávida.
Minha mente é bombardeada por pensamentos
enquanto ouço a voz de Julieta ao fundo. Eu não estou
pronta para ser mãe, agora desempregada, sem estudos.

Como vou cuidar de uma criança?

— Ju… O que eu vou fazer?


Ela segura minhas mãos e sorri, animada, acho que
não está pensando direito.

— Está tudo bem. Vai ser perfeito, estou com você!


Mas se aquele sangue não era menstruação, então as
coisas não estão muito certas.

— Eu preciso ir ao hospital, sangrei por dois dias e se


não era menstruação tem alguma coisa muito errada.

A expressão no rosto de Julieta muda, ela ainda não


havia pensado sobre isso.

— Tem razão. Vou com você, mas fica calma, já ouvi

que algumas mulheres têm um alarme falso de


menstruação, mesmo estando grávidas.
Sim, mas o tal alarme não dura dois dias inteiros.

Nós duas saímos de casa cheias de incertezas e o

medo me faz sentir ainda pior, não digo nada aos meus pais
porque não quero preocupá-los e prefiro contar sobre o bebê
quando souber o que vou fazer e puder dar uma explicação
mais coerente das coisas.

Eu não queria ser mãe agora, mas me destruiria saber


que fui, mesmo que por poucos dias, e o perdi, não estava
nos planos, mas quando me lembro de Matteo e penso em
tudo que ele já passou, em como o aborto falso de Sofia o

destruiu, me sinto ainda pior com essa hipótese, ainda que


não seja culpa minha.
Agradeço a Deus por ter Julieta segurando minha mão
agora, porque sei que ainda que Matteo e eu não estejamos
juntos, ela nunca vai me abandonar.
Julieta e eu fomos até o pronto socorro primeiramente,
onde fizeram questão de antes confirmar a gravidez com

um teste de laboratório. Minha irmã me guiou o tempo todo,

já que minha mente não conseguia se concentrar nas

informações que me davam, apenas preocupada com a


repercussão e com o que viria depois.

Aquelas horas foram cruéis e passei por elas em modo

automático, fazendo o que era preciso apesar das náuseas,

do medo, das incertezas e da responsabilidade que recaiu


sobre mim sem aviso prévio.
O médico me examinou e explicou que o sangramento

era relativamente comum no primeiro trimestre de

gestação, por isso muitas mulheres confundem com a

menstruação, como foi no meu caso, mas ele também não

descartou a hipótese de ter sido um aborto, já que os testes


ainda poderiam detectar HCG no sangue e urina.

O Dr. Gusmão nos levou até uma sala conjugada ao

seu escritório e pediu que eu me trocasse no banheiro. Vesti

uma camisola meio aberta e voltei para a sala, onde os dois

me esperavam. Ele me ajudou a subir na maca enquanto


meu coração batia tão acelerado que eu conseguia ouvir os

ribombos. De qualquer forma, o resultado do ultrassom

mudaria a minha vida para sempre.

Julieta segurou minha mão, e o médico espalhou um

gel frio e incolor sobre a minha barriga. Quando ele apoiou o

transdutor bem abaixo do meu umbigo, uma imagem

borrada e confusa apareceu na tela, e, em seguida, o som


acelerado das batidas do coraçãozinho preencheu a sala. Só

então a ideia se fez real e eu me permiti viver aquele

momento único. Julieta e eu começamos a chorar e sorrir ao

mesmo tempo, enquanto ela me dizia que tudo ia ficar bem.


O Dr. Gusmão disse que não precisava me preocupar,

mas alertou que o sangramento pode ter ocorrido devido ao

estresse ou esforço físico. De qualquer forma, foi apenas um

susto.

Estamos em casa agora, no nosso quarto, e Julieta só

sabe falar sobre nomes e roupinhas para o bebê. Minhas

preocupações são bem maiores que essas, estou pensando


em como dar a notícia ao Matteo e aos meus pais.

— Você ouviu o que eu disse? — Ela está anotando

alguma coisa em um caderno, acho que são nomes e nós

nem sabemos ainda o sexo do bebê, já que obviamente

acabamos de descobrir sobre ele.

— Me desculpa.

Ela fecha o caderno e pula da sua cama para a minha,

sacolejando o colchão de molas.

— Em que está pensando?

Tantas coisas que nem sei por onde começar.

— Eu não sei como contar ao Matteo, não quero que


ele se sinta pressionado a ficar comigo ou sei lá — falo.

— Não vejo motivos para se preocupar tanto. Ele vai

ficar muito feliz, tenho certeza disso, você disse que ele é
um bom pai para a Maitê.

— É sim, eles se adoram agora.

— E vocês dois também se adoram — ela diz,

deixando no ar.

— Não é o que eu quero, Ju. Não quero um homem

que fique comigo por causa de uma gravidez, quero contar a

ele e dar essa chance de estar presente, mas não quero

impor um relacionamento, nem nada assim.

— E não deve mesmo querer isso, mas ele gosta de

você, veio te procurar.

— Para voltar ao trabalho, ele não me mandou uma

mensagem sequer depois daquilo e não ligou também.


— Tá, então não vamos pensar em vocês dois como

casal, mas ele, como pai, não vai ser um problema se ele se

dá tão bem com a Maitê.

Me lembro da primeira vez que a vi, no dia em que

Matteo a levou para casa, no começo ele não sabia o que

fazer. Como deve ter acontecido em todos os seus

relacionamentos após Sofia, ele teve medo de se envolver

demais, mas depois do dia em que Maitê se perdeu na mata,

alguma coisa mudou e ele se rendeu aos encantos da


menina. Espero que, depois do retorno de Miguel, Matteo

não tenha se isolado de novo e a deixado de lado, já me

sinto mal o bastante por tê-la deixado sem me despedir,

mas quero pensar que estão juntos e que ela não está

sofrendo muito com minha falta.

— Fica tranquila, tudo vai dar certo — Julieta insiste. —

Podemos ir até lá no início da próxima semana, depois do

Natal, e então você conta pessoalmente. — Ela sorri, me

tranquilizando.

— Certo, mas até que isso aconteça, não quero que

ninguém além de nós duas saiba do bebê.

— Tudo bem. Você conta ao papai e à mamãe quando

estiver pronta — ela concorda.

Isso vai ser difícil, mas sei que com Matteo vai ser pior,

porque nada com ele é fácil, ainda assim sei que é o certo.

Não espero nada dele, mas vou lhe dar a chance de

participar da vida dessa criança se assim ele desejar.

Eu estaria mentindo se dissesse que não preferia que

as coisas entre nós tivessem seguido outro rumo, que

estivéssemos juntos e, bem, antes de termos um filho.


Também seria mentira se eu dissesse que não choro todas
as noites no travesseiro, sentindo falta dele e de Maitê, mas

as coisas são como são e preciso me adaptar e trabalhar

com o que posso ter.

A casa está toda enfeitada para o Natal, com luzes,


guirlandas, meias penduradas nas lareiras e uma árvore

enorme no meio da sala, bem como Anabela tinha

planejado, mas ao contrário do que eu imaginava, seremos

apenas Maitê e eu. Helder e Helena também ficaram para

cear conosco, mas os outros foram comemorar com suas

famílias.

Isso já é muito mais do que nos últimos anos, mas

ainda não consegui inventar uma desculpa plausível que

justifique a ausência dos meus pais para a pequena.


Estamos na sala e, do sofá em que estou sentado,

observo Maitê correr ao redor da árvore de natal cantando

Jingle bells, Helena e Helder estão colocando a mesa,


preparando os detalhes finais para o jantar.

— Papai! — Maitê para onde está, ela está usando um

vestido vermelho rodado e tem um laço enorme na cabeça,

que não sei de onde saiu. — A Anabela não vem para o

Natal?

Ela ainda pergunta sobre Anabela todos os dias,


mesmo depois de duas semanas, eu também penso nela
todas as noites.

— Não vem, querida, sinto muito.

— Por que você não convidou? — ela pergunta, se


aproximando.

— Ela quer passar o Natal com o papai e a mamãe


dela — falo, simplificando tudo.

— É que eu sinto muita saudade — ela reclama,


encarando as sapatilhas.

— Eu também sinto — assumo.


Helena se aproxima de onde estamos e se abaixa um

pouco, ficando na altura de Maitê.


— E se depois que passar o Natal nós duas ligarmos
pra ela? Você pode conversar com ela no telefone.

Maitê comemora e eu até acho uma boa ideia, vai ser


uma forma de ter notícias dela, ainda que indiretamente.

Uma confusão de vozes conhecidas chega aos meus


ouvidos e por um momento me surpreendo, não acredito

que eles vieram mesmo depois que eu deixei bem claro que
não queria ver o Miguel!

Eu me levanto ao mesmo tempo que meus pais


passam pela porta, minha mãe está trazendo uma vasilha

grande e uma sacola com presentes, e meu pai está


carregando alguma carne assada envolvida por papel

alumínio. Catarina, Alberto e o bebê vem logo atrás deles e,


por último, Miguel.

Merda.

— Uhul! — Maitê grita e corre para os abraçar.


Pelo visto a minha vontade não vale de nada.

— Oi, meu amorzinho! — Minha mãe entrega a vasilha


para uma Helena muito sorridente.

— Pensei que não viriam, vovó.


— Mas o que é o Natal longe da família? — ela
pergunta para Maitê, me encarando.

Catarina me abraça e Alberto me cumprimenta. Isso

foi tudo planejado, e se eu não estiver enganado, Helder e


Helena fizeram parte do complô.

— Seu espírito natalino é contagiante, Matteo — Cat


provoca.

— Se eu resolver te mostrar o quanto posso ser


espirituoso, você vai ficar bem irritada, Cat.

Ela dá de ombros, limpando a boquinha do bebê com


uma toalha pequena.

— E o que você vai fazer? Nos expulsar outra vez?


Bem na noite de Natal? Isso seria muito cruel, até pra você.

Sou empurrado para uma reunião familiar ridícula,


realizada contra a minha vontade, mas suporto tudo por

Maitê. A alegria dela é o que me motiva, minha mãe faz até


uma oração ao redor da mesa, e acho que vou para o inferno

por achar tudo isso uma palhaçada sem limites.

Depois da meia-noite, peço licença para abandonar a

mesa, mas não acho que alguém tenha ouvido porque estão
muito ocupados se abraçando e desejando todas aquelas
coisas bonitas que só são ditas em datas comemorativas,

me sento outra vez no sofá da sala e fico observando as


luzes da árvore de Natal, sentindo o vazio que me assola em

meio às risadas de uma felicidade que não compartilho.

Miguel se senta ao meu lado e, antes que eu possa me

levantar, ele segura meu braço.


— Se não tirar a mão de mim agora eu acabo com a

porra do Natal — ameaço.

— Você parece o Grinch, cara.

Depois de tudo, ele acha mesmo que tem liberdade


para fazer piadas?

— Tudo bem, relaxa. É que você parece estar mal —

ele completa.
— Pareço? Você, por outro lado, parece muito bem.

Ele levanta as sobrancelhas e concorda com um


sorriso.

— E estou. Passei cinco anos longe da minha família,


me odiando pelo que fiz. Eu queria voltar, mas tinha medo

de encarar vocês, só que um dia percebi que minha situação


não podia piorar, então criei coragem e hoje estou aqui.

Então, sim, estou feliz ao menos hoje.


Tento me levantar outra vez, mas Miguel firma seu

braço sobre o meu de novo.

— Está assim por causa dela?


— Me deixa em paz.

— Escuta, Matteo, a garota não merece pagar por uma


coisa que aconteceu no passado, fique com raiva de mim,

cara, mas vai atrás dela.


Antes que eu faça alguma bobagem, Maitê aparece

diante de mim correndo, apontando o celular para o meu


rosto, me filmando ou tentando tirar uma foto.

— Papai, diga: Feliz Natal! — ela pede.


Miguel solta meu braço e parece segurar uma risada.

Idiota!

— Maitê, o que você está fazendo? Desliga esse flash.


— Tento esconder meu rosto, mas ela se aproxima.

— Por favor, papai, é um filme de Natal. Diz.

— Feliz Natal! — falo, a contragosto. — Pronto, agora

para de me filmar.
Maitê comemora, fazendo uma dancinha, e depois

volta a mexer no celular com uma habilidade


impressionante para a sua idade.
— Ela vai adorar!

Minha nossa senhora! Essa menina…

— Quem vai adorar? — pergunto, já imaginando qual


será a resposta.

— A Belinha. A gente tinha que desejar Feliz Natal pra


ela, papai.

Catarina está parada à porta, sorrindo de um jeito


maquiavélico, aposto que isso foi ideia dela.

— Ela já viu, tia Cat! — Maitê corre de volta para

entregar o celular à minha irmã.


Eles vão acabar comigo!

Mas essa coisa da filmagem não sai da minha cabeça


pelo resto da noite. Longe dos olhos espertos de Catarina,

verifico meu celular a cada minuto, esperando por uma


mensagem dela que não vem.

Depois de algumas horas de pura ansiedade, eu


escrevo uma mensagem e envio imediatamente, sem tempo

para me arrepender.

Mas Anabela não responde.


Passo pelo corredor estreito conduzindo a cadeira de

rodas da mamãe até a nossa mesa.

Julieta cozinhou, porque meu olfato está muito mais


sensível agora e os enjoos só parecem piorar. Eu e meu pai

decoramos a casa e a nossa pequena mesa no centro da


cozinha.

— Pronto! O que achou?


— Ficou lindo! Vocês capricharam — minha mãe

comenta, observando os enfeites de Natal.

— E eu coloquei uva-passas em tudo, do jeitinho que a


senhora gosta — Julieta fala.

Mamãe ri do entusiasmo dela e da careta que meu pai


faz.

— Em tudo? — ele questiona. — Até no arroz? Maria,

devia ter falado pra ela que não precisava exagerar, Anabela
e eu não gostamos dessa uva amassada.
É a minha vez de concordar, mas Julieta faz uma
carinha engraçada e se vira para a mesa, descobrindo uma

travessa cheia de arroz branco.

— E acha que eu não sei? Separei para os dois chatos,


seu Joaquim.
— Podemos comer então? — ele pergunta, sondando

as demais travessas.

— Só depois de agradecer. É Natal! — mamãe diz,


corrigindo.
Apesar da saudade que sinto de Matteo e Maitê e

também dos outros, fico feliz por estar aqui. Minha família é
o meu refúgio, o lugar para onde sempre poderei voltar. Não
importa aonde eu vá ou o que eu faça, eles sempre estarão
aqui, de braços abertos para me receber.

Julieta faz a oração e depois disso nós somos liberados


para cear, começamos a comer e ela coloca músicas
natalinas para tocar e papai começa a contar suas histórias
de antigamente, as mesmas que já ouvimos centenas de

vezes, mas que nunca perdem a magia.


— Uma vez, quando eu era pequeno, colocamos
nossas meias penduradas perto da janela, meus irmãos e eu
e dormimos, ansiosos pelo presente no dia seguinte.

Já é a quarta narrativa da noite, mas essa em


particular eu sei bem como termina.
— E o que o senhor recebeu? — Julieta pergunta,
como se não tivesse ouvido antes.

— Adivinhe só? Ganhei um sabonete! Na época eu


achei um presente muito bom, nós só tomávamos banho aos
sábados e ia durar muito tempo.
— Eca, pai! Como que morava na roça, suava o dia

todo e só tomava banho no fim de semana?

— Ju, precisa entender que não tinha energia lá em


casa, precisava esquentar a água no fogão a lenha, era uma
trabalheira só...

Meu celular vibra no bolso e, quando o pego, vejo que


é uma mensagem de Catarina, provavelmente alguma
corrente natalina, mas quando abro nossa conversa, um
vídeo com o rosto de Maitê paralisado na imagem aparece.

Meu coração fica apertado ao vê-la toda linda e sorridente


me desejando um feliz natal e dizendo que está morrendo
de saudade. Depois disso, ela corre pelo corredor,
chacoalhando a câmera, e então ela filma Matteo, meu
corpo todo acende e eu odeio que ele ainda tenha esse

efeito sobre mim.

Matteo se esconde, mas depois descobre o rosto e


deseja feliz natal também.
Ele é tão lindo…

Respondo a mensagem com uma foto da minha


família reunida e desejo boas festas a todos. Assisto o vídeo
pelo menos mais cinco vezes, procurando qualquer sinal
que revele os sentimentos de Matteo, mas acho que isso é

só uma desculpa para vê-lo de novo e de novo.


— O que você está fazendo aí? — Julieta pergunta,
espiando.

— É um vídeo da Maitê.

Meu pai esfrega uma mão na outra, depois abre a


travessa com o pavê.

— Finalmente a sobremesa…

De repente, sinto uma dor pontiaguda irromper de


dentro para fora de mim, e essa dor se transforma em uma
cólica forte. Pressiono a barriga com as duas mãos e
imediatamente sei que alguma coisa está errada.
— O que foi, Anabela? — mamãe pergunta,

preocupada.

— Não sei — falo, já me levantando —, preciso ir ao


banheiro.
Julieta afasta sua cadeira e me segue, eu só preciso

me deitar e ficar quietinha até a dor passar.

— Anabela! — ela me chama e seus olhos estão


arregalados. — Tem sangue na sua perna.

Olho para baixo e vejo a linha fina de sangue vermelho


vivo que escorre, passando pela curva do meu joelho.

Droga, droga, droga!


— Vem, você vai se sentar e eu vou chamar um táxi.

Não sei o que fazer ou como agir, mas Julieta parece


raciocinar bem melhor que eu, porque em alguns minutos
ela me chama e já está com minha bolsa nos ombros,
mamãe e papai nos encaram horrorizados, mas

estranhamente não questionam nada, e entendo que Julieta


pediu a eles que não tocassem no assunto.
— Você falou pra eles? — pergunto, me sentando no
banco traseiro do carro.
— Mamãe é esperta, acho que já deduziu sozinha, mas

eu não confirmei nada, só pedi que deixassem a gente ir e


disse que na volta você contaria tudo a eles.

Aquiesço, porque realmente não tenho mais como

evitar, com essas complicações eles vão mesmo ficar


sabendo e não há nada que possa ser feito.
Quando chegamos ao hospital, passamos direto para o
consultório, o que acende um alarme em minha mente

quanto a gravidade da situação.

O médico faz um ultrassom e constata que graças a


Deus o bebê está vivo, ouvimos os batimentos do seu
coraçãozinho em alto e bom som, mas os riscos são grandes.

— Anabela, aconselho você a procurar o seu obstetra


amanhã, vai precisar passar a noite aqui em observação e
ele vai poder te instruir melhor sobre o que fazer a seguir.
Seu bebê está bem, mas você precisa de repouso absoluto

para que tudo continue assim e não pode se estressar.

— O que exatamente ela não pode fazer? — Julieta


pergunta, nervosa.
— A princípio, melhor nem andar. Vai ficar aqui essa

noite e, pela manhã quando tiver alta, você deve ir até o seu
médico, o melhor a fazer é começar a tomar um
medicamento que a ajude a manter a gestação e ter muito
cuidado.

Suas palavras me assustam ainda mais. O médico nos

deixa sozinhas, e uma enfermeira chega em seguida, com


uma cadeira de rodas, com a qual me conduz até um dos
quartos. Julieta cuida da internação, mas ela volta pouco
depois.

— Bela, acho que não vai ter jeito, vamos ter que ligar
para a mamãe…

Fecho os olhos e assinto, não posso deixá-la


preocupada assim, sem informações.

— Você pode falar com ela? Tenho medo da reação


que vão ter…

— Posso, melhor que você não se preocupe com isso

agora. — Ela ajeita os travesseiros atrás de mim e me


oferece um sorriso. — E quanto ao Matteo? Quer que eu
ligue?
— Não — respondo, meneando a cabeça —, não posso

fazer isso com ele agora.


— Como assim? Você precisa dele, Bela. Ele pode
inclusive ajudar com os custos médicos.

— Não preciso de dinheiro imediatamente, o que

recebi lá é o suficiente e o Mat… A primeira esposa mentiu


pra ele sobre a Maitê, lembra? Disse que tinha abortado, ele
sofreu tanto, todo esse trauma, essa dor que ele não
consegue esquecer, em grande parte é por causa disso, ele

queria muito o bebê e ela fez com que ele passasse por todo
esse sofrimento dizendo que tinha tirado a criança.
— Mas não é a mesma coisa, você não está fazendo
algo contra seu bebê e, além disso, não vai acontecer nada,
vai dar tudo certo.

— Também quero pensar assim, mas não vou dar uma


notícia dessas sem antes ter certeza, eu não vou suportar
causar mais dor a ele, Julieta.

Ela me encara com seus olhos cheios de lágrimas, e


sei que está a ponto de chorar.

— Eu te admiro tanto, ver a forma como ama sem


reservas, mesmo em momento assim, se preocupando com

ele mais que com você.


— É que eu vi, estive lá enquanto ele sofria e quando
descobriu a verdade sobre a Maitê, só de pensar em Matteo
naquela casa, chorando e bebendo, isolado de todo mundo,

meu coração sangra. Não, vou esperar esses meses iniciais,


não dizem que os três primeiros meses da gestação são os
mais conturbados e perigosos? Quando passar por eles, vou
procurar Matteo e contar a ele que estou grávida.

— Você é quem sabe, eu entendo seu ponto, mas


ainda acho que precisa também pensar em você.
— Mas e se ele não quiser? Se tivermos uma
discussão? O médico também disse que preciso evitar me

estressar, então por enquanto vou tentar imaginar um


mundo em que ele vai aceitar bem a novidade e ser um pai
presente para o nosso bebê.

Acho que é algo instintivo, porque tão logo digo isso,

apoio a mão sobre o ventre ainda plano, acariciando. Estou


aqui pelo nosso filho e vou fazer o possível para proteger
essa criança por mim e pelo meu Presidente.
Maitê desce a escada puxando Matteo pela mão. Meu

irmão ainda nem tirou o pijama e o cabelo está todo


bagunçado.

— Devagar, Maitê! — ele pede, mas segura uma

risada.
Fico muito feliz por vê-lo melhor, apesar de Miguel e

de todos os problemas, consigo perceber uma mudança

significativa e isso se deve justamente à Maitê e, claro, à


Anabela.
— Vamos, papai, vamos abrir os presentes que o Papai

Noel deixou!

É manhã de Natal, e nós estamos tomando café da

manhã juntos, reunidos ao redor da mesa como uma grande

família feliz. Queria acreditar nisso como uma verdade, mas


Matteo está nos ignorando aqui, ainda que nenhum de nós

se importe com isso, não vamos desistir dele, mesmo que

ele desista de si mesmo.

Maitê o deixa diante da árvore e se ajoelha para abrir

os presentes e Matteo se senta no chão, ao lado dela.

— Essa garotinha está mudando-o. — Alberto está

atrás de mim, observando a cena também, ele apoia suas

mãos na minha cintura e beija minha bochecha. — Isso é

maravilhoso.

— Falta uma coisa. — Me viro para encarar meu

marido. — A Anabela — cochicho.

Alberto sorri e levanta as sobrancelhas, admirado com

a descoberta.
— Ah, sim! Então ele estava na dela? — pergunta, em

tom de voz baixo.


— Ainda está, conheço meu irmão, ele pode ser durão,

mas a mim não engana.

Maitê vem correndo até onde estamos, com duas

sacolas nas mãos, os pacotes são quase do tamanho dela.

— Tia Cat, esse é pra você, e esse aqui é pro Otavinho

— ela diz, estendendo as sacolas.

— Obrigada, meu amor! — Abraço minha sobrinha.


— Esses aqui não são do Papai Noel, são do Papai

Matteo mesmo. — Ela me entrega os presentes antes de

voltar correndo para perto da árvore.

— Quem está com o Otávio? — pergunto, sondando

por trás do ombro de Alberto.

— Ele está com a sua mãe, mas antes estava com o

Miguel. Acredita que ele leva jeito?

— Ah é? — Deixo os presentes sobre a cadeira onde

estava sentada.

— Sim. Eu havia me esquecido de como ele gosta de

crianças, uma pena que não possa se aproximar da Maitê —


Alberto comenta.

Matteo está dificultando qualquer aproximação dele,

por isso Miguel está sempre afastado de nós, em algum


canto, assistindo tudo como um espectador, respeitando os

limites que Matteo impõe. Eu não sei o que fazer para

consertar isso, para ter meus dois irmãos de volta, mas sei
que será uma tarefa difícil, os dois são orgulhosos na mesma

medida e Matteo realmente tem seus motivos.

— Matteo vai superar isso, amor, eu sei que vai, veja

só o que essa garotinha já fez.

Miguel pigarreia atrás de nós e balança uma sacola

grande na mão. Ele está usando terno outra vez e a cada dia

se parece mais com o Miguel de que me lembro, mas apesar

da aparência, ele ainda está muito deslocado em nosso


meio.

— Feliz Natal, Catcat, comprei para você!

Alberto nos deixa a sós, seguindo para onde estão

meu pai e Helder, e Miguel me entrega a sacola com certo

entusiasmo, gosto muito de ver que ele está ao menos

tentando, se esforçando para permanecer.

— Espero que goste.

Abro a embalagem devagar, cuidando para não rasgar

muito o papel e encaro um porta-retrato grande, com uma


foto de nós três na infância, abraçados, na Praia de Maresias,

em São Sebastião.

Nós éramos tão unidos e felizes, Matteo e Miguel eram

melhores amigos e eu era a garotinha deles. Quando

fazíamos planos para o nosso futuro, nos separar nunca

havia sido uma opção. Tudo o que eu queria era poder voltar

no tempo e mudar o passado.

— Ah! Isso é tão fofo! Eu amo essa foto — falo,

sentindo as lágrimas nos olhos. — Obrigada, Miguel, eu

adorei.

— Que bom que gostou.


Nós seguimos de volta para a mesa e nos sentamos

nas últimas cadeiras, afastados dos outros.

— Eu queria alguma coisa que te marcasse de uma

maneira especial, fiz um para o Matteo também, mas não

vou entregar — ele conta, pesaroso.

Não digo que ele deve tentar, porque sei bem como

isso iria terminar, ele precisa ir devagar se quiser recuperar

a confiança de Matteo.

Seguro sua mão com carinho e Miguel parece ficar um

pouco constrangido. É como se tivéssemos perdido o


costume e a intimidade que compartilhamos antes, como se

uma barreira tivesse se erguido entre nós.

— Depois que tudo passar você pode entregar — digo.

Ele assente, decidido. Não há vitimismo em seu rosto,

só uma pessoa tentando corrigir seus erros.

— Sim, farei isso.

Maitê está colocando o gorro do Papai Noel na cabeça

de Matteo agora e minha mãe está sorrindo enquanto os

observa, com Otávio nos braços.

— Acho que estamos indo bem, Cat. Olhe só para


eles… — ela diz, toda contente.

Eu me lembro de como eram os nossos natais antes

de Sofia aparecer, a casa sempre cheia, a ceia farta, as fotos

na parede acima do sofá da sala e as revelações dos cartões

postais que papai enviava para os amigos com as

felicitações dos Viturino. Estamos longe de ser o que

éramos, mas nos aproximando, devagar.

— Ele está babando pela Maitê, não é? — Miguel

aponta com a cabeça para um Matteo apaixonado,

admirando a filha girar pela sala.


— Está sim. Apesar do tumulto, ela era tudo de que

precisávamos.

Miguel apoia os cotovelos na mesa e se aproxima, para

deixar nossa conversa mais privada.

— Mas e a governanta? Matteo demitiu a garota

depois daquele dia?

Eu me certifico de que Matteo não está perto o


suficiente para ouvir sobre isso. Ele ficaria furioso.

— Não foi bem isso, pelo que entendi. Acho que ele
terminou com ela e Anabela foi embora porque quis —

explico.

— Não aconteceu absolutamente nada, Cat.

— Não precisa dizer isso, é claro que eu acredito e


sinceramente acho que Matteo também acredita — falo.

Miguel solta um suspiro triste, depois estica o braço

sobre a mesa para pegar a garrafa com café e serve sua


xícara.

— Eu não imaginava chegar aqui e ser recebido de


braços abertos por ele, mas confesso que está sendo muito
difícil.
Minha mãe se aproxima de nós e faz um carinho no
cabelo dele, depois beija o topo de sua cabeça. Otávio, pelo

que parece, já está no colo de outra pessoa.

— Está tudo bem? — ela pergunta, preocupada, ela

tem feito isso o tempo todo.


— Tudo ótimo — ele responde, com um sorriso.

Quando ela se afasta outra vez, faço a pergunta que

vem martelando em minha cabeça desde o dia em que ele


voltou.
— Por que você não voltou antes? O que mudou?

Miguel assopra o café, ganhando tempo para formular

sua resposta.
— Eu havia mentido e traído meu irmão, lógico que

não fiz por crueldade, porque queria ferrar com Matteo, eu


era um idiota e achava que estava apaixonado, ela dizia que

também estava e que iam terminar e acabei cedendo, não


estava pensando direito, porque nem analisei como uma

relação com Sofia seria insustentável. Mas aí ela engravidou


e disse que não iria terminar, comecei a ver que ela nunca
teve essa intenção, que não gostava de mim e que Matteo

nem fazia ideia de quem ela era.


— Uma vaca…

— É, mas não me isenta da culpa, eu sou irmão dele e


deveria ter me afastado quando percebi que estava atraído

por ela, mas eu era moleque — ele diz, dando de ombros —,


um idiota, como já disse. Só que por covardia menti de novo

e quando me arrependi, já era tarde, e fui covarde mais uma


vez — ele faz uma pausa, como se tentasse se lembrar da
ordem dos fatos. — Eu ficava viajando, de uma cidade para

outra, fiz documentos falsos, pegava carona, mas não ficava


mais de um mês no mesmo lugar.

— Uau.

— Pois é. Eu estava em Imbituba, fica perto de


Florianópolis. Estava trabalhando como barman à noite e

durante o dia aproveitava as belezas naturais da cidade:


praias bonitas, lagoas, dunas, piscinas naturais…

— Você sempre gostou de aventuras — comento.

— Conheci uma garota maravilhosa e depois de um

tempo ela me convidou para ir até a casa dela. — Percebo


que a lembrança faz seus olhos brilharem.

— Conhecer a família, é? Que sério.


— Mais ou menos isso. Ela tem dois irmãos com a

mesma idade minha e do Mat, muito parecidos, melhores


amigos, sabe? E os pais dela me faziam lembrar os meus.

Comecei a perceber que estava me apegando a eles porque


me lembravam de vocês.

— Entendi. E se ela não está aqui com você, imagino


que não acabou bem…

— Não sei, Cat. Ela sabia que havia algo errado, mas
nunca soube sobre tudo. A verdade é que ela tem a alma

leve de verdade e percebeu que eu só estava fingindo ser


assim. — Miguel começa a rir, mas não acho que realmente

veja graça nisso. — O estopim foi quando vi uma matéria no


jornal sobre a Prover. Era só uma matéria comum, mas para

mim foi como um sinal, alguma coisa estava acontecendo.


Eu já estava naquela cidade há uns quatro meses,

apaixonado, e a saudade de casa só crescia…

— E você fugiu de novo? — Não resisto à pergunta,

mas Miguel não parece ofendido.


— Eu tinha que resolver minha vida, Cat, por isso

voltei. O amor não é o bastante para mudar alguém, mas foi


o pontapé inicial para que isso acontecesse comigo.
Olho para Matteo, abrindo presentes com Maitê e

penso sobre o que Miguel diz. Decido que preciso fazer


alguma coisa por meu irmão, o mais velho a princípio, um

de cada vez, claro. E faço.

Encontro minha mãe na cozinha, ajudando as


meninas com a louça e fofocando, o que seria estranho para
outra ricaça, mas Dona Clarissa sempre adorou fazer parte

da equipe e se misturar, agora mesmo está rindo tanto que


mal consegue ficar de pé e eu tento pegar parte da conversa

para entender o que é tão engraçado.


— Para com isso, Elis! Eu não aguento mais, você está

vendo coisas! — Minha mãe seca os olhos, literalmente


chorando de tanto rir.

— Dona Clarissa, eu juro por Deus! Não era um aperto

de mão, não!
Até Helena, que é sempre muito discreta, está rindo
um pouco, ao passo que Suzi pede para a outra ficar quieta.

— O que aconteceu, Elis? — pergunto, a curiosidade

me vencendo.
— Eu cheguei aqui na cozinha e encontrei o Timóteo e

o senhor Pedro de mãos dadas. Até aí tudo bem, né? O que


tem de mais nisso se eles se gostam? A parte engraçada é
que eles ficaram totalmente sem jeito e emendaram um

aperto de mão para disfarçar.

— Vocês são muito linguarudas! Santo Deus! Talvez

fosse mesmo um aperto de mão — falo, rindo da fofoca.


Elis meneia a cabeça, decidida.

— Não. Eles estavam de lado, apoiados aqui na pia.


Mão direita e mão esquerda. Aí o aperto de mão saiu ao

contrário, sabe?
— Elis, você é maluca — minha mãe fala. — Timóteo

trabalha aqui já tem cinco anos, ele teve muitas namoradas.

— Só estou falando o que vi — ela insiste na história.


Minha mãe seca as mãos em um pano de prato e se

aproxima de onde estou. Eu apoio minha mão em suas


costas e a sigo pelo corredor.

— O Otávio dormiu?
— Sim. Está dormindo com o Alberto.

Pelo que parece, todos os homens dessa casa


resolveram tirar um cochilo após o almoço de Natal. Maitê

também dormiu, abraçada ao coelho de pelúcia.


Mamãe e eu nos sentamos no sofá perto da árvore.
— Mamãe, amanhã vou procurar a Anabela, tentar
convencê-la a voltar — falo de uma vez.

— Catarina, Catarina… Não vá ficar se metendo na

vida do seu irmão. Você o conhece e sabe como ele é.


— Quero que a senhora vá comigo.

Mamãe sacode a cabeça e faz uma careta, como se a


minha ideia fosse absurda.

— De jeito nenhum. Não vou fazer isso, ele é adulto e


sabe bem o que faz.

— Confia em mim. Vai dar certo, ele quer muito que


ela volte, mas tem medo de ser rejeitado. Eu só quero

ajudar.
Minha mãe parece pensar a respeito, está inclinada a

aceitar.

— Você viu aquele dia com o Miguel… E se acontecer


de novo?
— Matteo e Miguel precisam de ajuda profissional para
se curarem. Talvez Anabela consiga convencê-lo disso. Ela

conseguiu tudo — digo.

Apesar da relutância, mamãe acaba concordando. Ela


sabe que estou dizendo a verdade, Matteo era outra pessoa
antes de Anabela.

O próximo passo é descobrir onde ela mora e já que

Matteo não pode me dizer, decido perguntar para Timóteo,


eu o encontro na varanda, fumando um cigarro.
— Timóteo, com licença.

Ele fica de pé imediatamente e apaga o cigarro no

latão de lixo antes de o jogar lá dentro.


— Pois não, senhora.

— Você sabe onde a Anabela mora? Quero muito fazer

uma visita, nós nos tornamos amigas e estou com saudade.


Ele faz que sim com a cabeça, Timóteo cai como um
patinho, a história não é exatamente mentira, mas meu
objetivo é outro.

— Eu tenho o endereço, posso enviar para a senhora.


— Obrigada pela gentileza, Timóteo, fico te devendo
uma, tá?

Ele faz um gesto de desdém com a mão e emenda

que isso não é nada demais.


— Qualquer coisa. Se precisar conversar com alguém,
sei lá, falar sobre a vida, namorados... Estou aqui.

— Tudo bem.
Começo a andar de costas, acho que ele entendeu o
que quero dizer com isso.

— Pode me procurar. Eu estou à disposição para te


ouvir…
Trombo com um peito rígido e me viro para encontrar
um Alberto muito confuso.

— Oi, amor, você acordou!


Por sorte Alberto conhece bem a esposa que tem, ele
sabe que estou armando alguma coisa só de olhar para mim

e se der uma de curioso, coloco ele no esquema.

Todos nós voltamos para São Paulo ainda no dia vinte


e cinco, e minha mãe e eu decidimos ir até a casa de
Anabela no dia seguinte, de manhã, mas não tão cedo.

Nós duas descemos do carro na rua estreita onde


Anabela mora com os pais, não resisti a bancar a espiã e
acabei vestindo um casaco bege na altura dos joelhos e
providenciei outro para mamãe, usamos também óculos

escuros e arrumei até um chapéu.

A ideia é passar despercebida a princípio, sondar


Anabela e ter certeza de que está aberta a uma
aproximação. A casa é pequena, pelo lado de fora só se vê

um muro pintado de branco e um portão grande azul.

— Acho que é aqui — falo, conferindo o número no


celular.
Eu me inclino para sondar melhor, talvez consiga ver

do lado de dentro. Mamãe se recosta no muro, olhando para


os lados para ver se não vamos ser pegas, mas então
acontece.

Um senhor baixinho, de cabelos grisalhos, abre o

portão por dentro e dá de cara comigo, ele nos cumprimenta


com gentileza e preciso improvisar.
— Bom dia, senhor, meu nome é Catarina e essa é a
minha mãe, Clarissa. Nós somos amigas da Anabela.

— Joaquim Gonzales, pai da Bela. Querem entrar?


Fito minha mãe que está toda vermelha por termos
sido pegas assim e acabamos por aceitar o convite. Nós
cruzamos a área de entrada da casa e entramos pela porta

da cozinha, apesar de pequena, a casa é muito


aconchegante e organizada.

— Vieram pelo que aconteceu, não é? A Julieta me

ligou agora a pouco e disse que ela teve alta. Logo, logo, vão
estar em casa. Vocês podem esperar, se quiserem.

Encaro minha mãe por alguns segundos, não faço


ideia do que ele está falando.
— Podem esperar aqui na sala. Maria — ele segue na
frente falando com uma mulher sentada em uma cadeira de

rodas, assistindo televisão —, temos visitas.

— Olá! Muito prazer! Sejam bem-vindas! — ela diz,


sorridente, nós duas apertamos sua mão trêmula antes de

nos sentarmos.
— Elas são amigas da Bela. — Então ele se vira para
nós outra vez. — Essa é Maria, minha esposa e mãe da
Anabela.

— Me desculpe, senhor, mas eu não sei o que


aconteceu. Ela está bem? Está no hospital? — pergunto.
— Nós também não sabíamos, nos pegou de surpresa,
sabe? Mas ela está grávida e teve uma ameaça de aborto —

ele fala.

— Mas o bebê está bem, graças a Deus — completa


Maria.
Minha mãe se recosta no sofá e leva a mão ao coração,

eu fico em estado de choque por alguns segundos, sem


conseguir dizer qualquer coisa, Anabela está grávida e

Matteo ainda não sabe disso.

Ouvimos um barulho no portão e a dona Maria avisa


que elas devem ter chegado, mamãe e eu nos levantamos,

aflitas.
— Oi, pai. — Ouço a voz embargada de Anabela da
cozinha.

— Não pode chorar. Papai, não diga nada que possa

deixar a Bela nervosa, tá? Lembra do que o Dr. Gusmão


disse. — É a voz de uma outra mulher, provavelmente sua
irmã.
— Por que não contou, meu amor? Você sabe que

estamos aqui por você, para te apoiar — ele diz, parecendo


emocionado também.

— Eu sei. Só queria organizar a minha cabeça primeiro


— ela fala. — E a mamãe? Ela está bem? Está brava?

— Estamos felizes, é claro, e muito preocupados com


você, nos deu um baita susto. Ela está aqui na sala, está te
esperando junto com as suas amigas. — As vozes ficam mais
altas à medida que eles se aproximam.

— Que amigas?
Anabela nos vê e seus olhos se arregalam. Ela apoia
um braço na cadeira de rodas da mãe, que segura sua mão
livre e a beija.

— Oi, Anabela — digo. — Como você está?

— Oi, Cat e senhora Viturino — Anabela está pálida


feito um papel, pobrezinha.

— Ah, não! Não, não, não! Sinto muito, não quero ser

mal-educada, mas minha irmã não pode se estressar, ter


fortes emoções e coisas do tipo — a outra moça fala.
— Ju, estou bem. — Anabela faz sinal para que a irmã
se cale.

— Nós entendemos, fica tranquila, tá bom? Só viemos


fazer uma visita — falo.
A irmã de Anabela cruza os braços e dá de ombros
antes de passar por ela e segurar a cadeira de rodas da mãe.

— Vamos deixar que elas conversem a sós então,


mamãe. — Ela empurra a cadeira para fora da sala ao
mesmo tempo que Anabela se senta.
— Me desculpe por vir assim sem avisar, talvez não

tenha sido uma boa hora…


Anabela respira fundo e coloca um fio solto de seu
cabelo atrás da orelha.

— Tudo bem. Tive motivos para não querer contar

agora, mas estão aqui, não há outro jeito.


— Por que, querida? Por que não queria contar? —
mamãe pergunta, se aproximando dela.

— Eu queria contar, já tinha decidido ir até lá após o

Natal, porque acabei de descobrir também, mas tive dois


sangramentos em um intervalo curto de tempo. — Ela
encara suas mãos sobre as pernas, está envergonhada. — É
uma gravidez de risco, o médico pediu repouso absoluto

pelos próximos meses e vou precisar tomar remédio para…


— Não chora, Anabela, vai ficar tudo bem. — Me
levanto de onde estou e me sento ao lado dela, seguro suas
mãos nas minhas. — Estamos com você.

— A questão é que eu queria ter certeza primeiro,


porque não quero que o Matteo sofra de novo. Imaginem só,
se eu não conseguir… Ele não merece passar por isso pela
segunda vez. — Ela respira fundo, tentando se manter forte,

meu coração está quebrado. Não consigo nem imaginar a


tormenta que deve ser passar por uma coisa dessas, ainda
mais sozinha.

— E você não merece passar por isso sem ele.

— O médico me explicou tudo, como isso acontece e


sobre as possibilidades. Eu vi nos olhos dele, Cat. Ele acha
que é só questão de tempo.

— Minha filha, só Deus determina isso. Fique com o


coração em paz, eu passei cinco anos pensando que meu
filho estava morto e agora Ele me devolveu. Quem somos
nós para ter certeza de alguma coisa? Faça o que é preciso e
tenha fé. Vai dar certo — minha mãe fala com convicção e

Anabela se emociona.
— Obrigada. Obrigada por estarem aqui e por não
brigarem comigo.

— Anabela. Você precisa contar pra ele, isso é uma


coisa que vocês precisam enfrentar juntos — falo, olhando
nos olhos dela. — Tudo bem?
Anabela faz que sim com a cabeça e seca os olhos
molhados pelas lágrimas.

— Eu sei, mas não vamos deixar Matteo preocupado


agora, esperem mais um pouco, quando tivermos certeza.
Não tenho coragem de concordar, porque sei que não vou
cumprir essa promessa, então apenas a abraço outra vez.
Não tive nem um sinal dela. Acordei ontem
desesperado e fui conferir o celular, como um homem

sedento por água no deserto, ansiando por uma mísera

mensagem de Anabela, algum sinal de que também tem

pensado em mim como tenho pensado nela, mas não houve


resposta.

Provavelmente a magoei muito quando a afastei e,

agora, Anabela está disposta a me riscar da sua vida e

seguir em frente. Nem posso imaginar que ela realmente vá


fazer isso, se envolver com outra pessoa e me esquecer. Eu
fiz uma merda sem fim, terminando tudo, quando deveria

ter aproveitado a crise de ciúmes e assumido o que sinto e

definido nossa relação. Agora não paro de pensar em como

as coisas estariam diferentes se eu tivesse feito isso.

Ainda assim, os motivos que me levaram a agir assim


ainda estão presentes e, talvez, mesmo que eu não admita

para outras pessoas, Catarina tenha razão e eu precise de

um profissional pra me ajudar com essa coisa com Miguel e

o passado.

Se Anabela me quisesse de volta, se ela desse


qualquer indício de que ainda sente alguma coisa por mim,

eu faria isso, por ela, me sujeitaria à terapia.

— Presidente, sua família voltou.

Helder passa pela porta do escritório apressado.

— De novo? Foram embora ontem.

— Sim, mas dona Clarissa e a menina Cat estão aqui e

disseram que precisam falar com o senhor com urgência.

Noto que ele apenas mencionou as duas, mas acho


por bem confirmar.

— Miguel está com elas?

— Não, dessa vez estão sozinhas.


— Tá bom, deixe as duas entrarem então.

Ele sai do escritório e espero pacientemente que

retorne com as duas, mas logo Catarina passa pela porta e

atrás dela vem minha mãe, elas parecem meio

desesperadas e…

— Por que estão usando essas roupas? — Noto os

casacos longos que estão vestindo e os óculos escuros,


Catarina traz até mesmo um chapéu sobre os cabelos

escuros. — Parecem detetives secretos.

— É porque saímos em uma missão secreta! — ela diz,

agitada.

— Helder, pode nos trazer água? — mamãe pede, se

aproximando da minha mesa.

Ela se joga em uma das cadeiras e começa a se

abanar, mas está frio, não estou entendendo o que está

acontecendo.

— Missão? O que estavam fazendo vestidas assim? —


questiono, observando enquanto Helder deixa o cômodo

para buscar a água. — E por que vieram aqui de repente?

— Você disse que amava a Anabela — Catarina

começa.
Ergo a mão, a interrompendo.

— Quando foi que disse isso?

Ela para, colocando as mãos na cintura.

— Não ama?

— Não disse que não amo, mas não me lembro de ter

dito que amava também.

— Bom, disse nas entrelinhas, e eu sei ler bem.

— Tá bom, mas o que isso tem a ver com essas

fantasias? — Gesticulo, apontando para suas roupas.

Ela sorri, animada.

— Viu, mamãe? Eu disse que ele a amava, pode ficar

tranquila.

— Graças a Deus! — Minha mãe ergue as mãos para o


alto, exagerada.

Olho de uma para a outra, ainda tentando entender

que loucura está acontecendo aqui.

— Podem se explicar?

— Bom, se a ama por que ainda está sentado aqui e

não vai atrás dela?

— Eu fui, se querem saber — admito, ciente de que

não vou ter paz se não responder as perguntas das duas —,


semanas atrás, e ela não quis me ver, na época não estava

decidido a lidar com nosso relacionamento.

— Mas agora está?

Catarina e mamãe me encaram, em expectativa. Mas

como foi que sai na mesma família dessas duas fofoqueiras

intrometidas?

— Sinto falta dela — assumo, a contragosto —, mas

não vem ao caso, fiquei esperando algum sinal de que ela

ainda quer ficar comigo, mas Anabela nem respondeu

minha mensagem na noite de Natal. Acho que ela já seguiu

em frente.
— Nem que ela quisesse! — Catarina fala, agitando as

mãos.

— Como assim?

— Bom, não quero e não vou complicar as coisas pra

ela, então antes de te contar o que viemos contar, preciso

me certificar de algumas coisas.

— Desembucha logo, Catarina — me exaspero, esse

suspense já está me matando.

— Você vai assumir o relacionamento? Vai dizer que a

ama e que quer ficar com ela?


— Que porra de interrogatório é esse?

— Responde, filho! E olha essa boca… — mamãe

resmunga, me corrigindo.

Suspiro, me dando por vencido.

— Se ela me quiser sim, eu estou disposto a fazer

qualquer coisa.

— E não vai voltar atrás e se fechar? — Cat insiste.

Quero me irritar, mas sei que ela não diz isso sem

motivo.

— Eu vou fazer a terapia que vocês tanto querem, se


isso fizer Anabela voltar, estou disposto a tentar.

Cararina saltita, comemorando, e minha mãe ergue as

mãos para o céu outra vez, pelo modo como agem até

parece que sou muito complicado.

— Ela não pode ser contrariada e nem passar por

nenhuma situação tensa, Mat. Acha que consegue lidar com

isso?

— Como assim? Do que estão falando? — Me inclino

um pouco, instantaneamente ficando nervoso. Ela está

bem?
— Como eu dizia — continuo —, nós fomos procurar

por ela, mas quando chegamos na casa, ela não estava.

Seus pais nos deixaram entrar…

— Claro que deixaram, e eu fui posto pra correr.

— E com razão. Mas eles não sabiam quem nós

éramos, eu disse que era amiga dela e perguntei onde

estava. O pai dela estava preocupado, Anabela passou o dia

de Natal no hospital, em observação e ainda não tinha

voltado.

Eu me levanto em um pulo.

— Não achou que deveria dizer isso antes, Catarina? O


que aconteceu com ela?

— Calma, ela está relativamente bem.


— O que isso quer dizer?

As duas se entreolham e vejo minha mãe aquiescer,

como se desse permissão para que Catarina diga logo o que


está havendo.

— Eles nos disseram que ela teve um sangramento e


foi ao obstetra.

— Obstetra?
Nunca me julguei lento no raciocínio, mas por algum
motivo a informação não se encaixa de imediato.

— Sim, ela e o bebê estão bem, mas Anabela precisa


de repouso absoluto e cuidados médicos, ao menos até

passar o primeiro trimestre e ela ficar livre do perigo de um


aborto espontâneo.

— Bebê? Está dizendo que ela está grávida? —


pergunto, tentando organizar as falas dela em ordem, para

compreender tudo.

— Estamos! — minha mãe grita, comemorando. —

Nem posso acreditar que vou ser avó de novo!


— Avó? Meu Deus do céu… — Me sento de novo,

assimilando a informação. — Ela está esperando um filho


meu?

— Sim, esse é o ponto! Sei que deve querer saber por

que ela não te disse e acho que cabe a ela te contar, mesmo
que eu já tenha falado demais, mas precisa se lembrar de

que Anabela não pode passar por estresse, então tenha


paciência e converse com ela direito.
— Certo — concordo, aquiescendo —, isso não

importa. Ela vai ter um bebê, um filho meu — falo,


começando a entender a dimensão de tudo isso.

Abro um sorriso, o primeiro sincero desde que ela se


foi.

— Não acredito nisso…

— Ele está feliz, não está? — minha mãe pergunta a

Catarina, como se eu não estivesse ouvindo tudo.


— Claro que está! Vai ter um bebê com a mulher que

ama, vai buscar ela e vai fazer terapia!

Não é bem como se esse último motivo fosse razão

para alegria, mas não vou discordar de Cat agora, preciso


sair imediatamente.

— Vou falar com ela, podem tomar conta da Maitê? Ou


melhor, vou levar Maitê! Ela não vai dizer não pra ela…

— Ótima ideia!

— Peçam a Elis e as outras pra prepararem um quarto,


ao lado do meu. Melhor, só peçam que limpem meu quarto,

vou levar ela pra lá.

— Não é melhor falar com ela antes? — mamãe

questiona, sempre sensata.


Mas eu não sou assim.
— Mesmo que ela diga não, vou acampar na porta

dela e só saio de lá quando Anabela vier comigo.

— Ahhh que dia feliz — Catarina comemora —, vou

cuidar de tudo aqui, pode ir! E vou marcar sua primeira


sessão também — ela diz, parecendo temer que eu desista.

— Tá bom.

Encontro Maitê na sala de televisão. Ela está deitada


sobre o tapete de bruços, as mãos apoiadas no queixo
enquanto encara a tela sem piscar.

— Filha, vou sair e queria que você viesse comigo.

— Obaaa! — Ela se levanta animada. — Aonde nós


vamos?

— Ver a Anabela.

— O quê? — Seus olhos se arregalam de surpresa. —

Jura, juradinho? Vamos mesmo ver a Belinha?


— Vamos, vem comigo que vou te contar tudo,

precisamos de um plano.

Maitê não se faz de rogada, segura minha mão e sai


me arrastando para fora da casa. Timóteo está do lado de
fora, com o carro, mas decido fazer diferente hoje, não sei
quanto tempo vou levar para a convencer e talvez tenhamos

que passar a noite, então opto por ir dirigindo.

Abro a porta da garagem e Maitê fica olhando tudo de


queixo caído. Ela nunca havia entrado aqui e com certeza

não sabia da existência dos outros carros. Timóteo também


vem correndo, querendo entender o que está havendo.
— Presidente? Vai sair?

— Vou atrás da Anabela.

— De novo? — Como eu o encaro com uma expressão


irritada, ele logo tenta se corrigir. — Quer dizer, quer ir em

outro carro?

— Vamos apenas Maitê e eu, você pode descansar

hoje.
— Mas…

— Não sei quanto tempo vou demorar, porque só vou

voltar com ela — digo, ainda que não precise dar


explicações.
— Certo.

— Meu carro está limpo? Faz séculos que não o dirijo.

— Sim, senhor. Mantive todos limpos — ele diz,


orgulhoso.
— Pegue a cadeirinha da Maitê então, por favor. Vou
na Panamera.

Se ele estranha minha decisão, não demonstra.


Timóteo está comigo há bastante tempo e nunca me viu

dirigir o carro, ele é meu xodó, mas também me lembra de


uma outra vida, quando eu ainda saía de casa, ia a empresa

e morava na capital.
Mas é isso, o passado já me roubou tempo demais,

não vou mais deixar minha vida pegando poeira em uma


garagem qualquer. Vou retomar o controle e dirigir, com o

perdão das analogias.

Quando Timóteo volta, instalo Maitê no banco traseiro

e depois entro no carro. É como andar de bicicleta, não se


esquece nem mesmo em cinco anos, ligo logo o carro e saio

com ele da garagem e em pouco tempo, estamos descendo


a encosta na direção da cidade.

— Eu amei esse carro, papai. E eu não sabia que o


senhor sabia dirigir.

— Pois eu sei, vamos sair bastante de agora em diante


— falo, determinado a cumprir com essa promessa.

— Obaaa! Nós vamos sempre ir ver a Belinha?


— Nós vamos trazer a Anabela de volta, Maitê, mas
preciso da sua ajuda pra isso.

— Ela vai voltar? Ai, papaizinho, eu vou estourar de

alegria — ela comemora, erguendo os bracinhos para o alto.


A empolgação dela me faz sorrir.

— É, só que ela ainda não concordou, por isso preciso


de você. Acha que consegue me ajudar?

— Eu consigo!

Então é isso. Maitê e eu vamos resgatar nossa família.

Horas mais tarde quando estacionamos diante da


casa, me deparo com Julieta, que vem a passos lentos pela

calçada, carregando uma sacola.

— Boa tarde — cumprimento, tentando soar amável.


— Então sua irmã contou tudo — ela constata.

— Em minha defesa, eu já queria muito vir, mandei


mensagem e Anabela não me respondeu.
— Mandou mensagem, foi? Ela não me contou. —

Julieta parece curiosa com essa informação.

Maitê pula do carro para a calçada e encara Julieta,


abrindo um sorriso banguela.

— Oi! Eu sou a Maitê!


— Ah! Que linda você é! — Ela se abaixa até ficar da
altura da minha filha. — Seu pai te trouxe pra usar artilharia

pesada, não foi?

— Não sei o que é isso, ele me trouxe pra buscarmos


nossa Belinha — Maitê diz, revelando o plano já de cara.
Julieta me encara com um sorriso cínico nos lábios.

— Ah, é mesmo? Então o senhor Presidente quer levar


minha irmã embora?
— Você sabe que posso cuidar dela, lá ela vai ter todo
conforto do mundo.

A garota ergue a sobrancelha e me encara como se


aguardasse alguma coisa mais.
— Ela só vai ter isso? Conforto?

— Ela vai ter a mim, se me quiser.


— Por causa do bebê? — insiste.

Sei bem o que quer ouvir e não me importo de dizer,


porque é a verdade.

— Porque eu a amo.

Isso faz com que ela assinta, satisfeita.

— Bom, porque ela também te ama. Mas não vai ser

tão fácil assim depois do que você fez.


— Não tem que ser fácil. Vou dar um jeito em tudo.

— Fico feliz em ver que se decidiu, vamos entrar.


Ela abre o portão e eu sorrio. A primeira batalha foi
vencida, agora falta só todo o resto.

Entramos na casa e me vejo dentro de uma cozinha

pequena, mas bem arrumada. Um senhor me encara com o


cenho franzido, sentado em uma cadeira no canto.
— Papai, esse é o homem que engravidou sua filha —
Julieta fala, me causando um acesso de tosse.

Deus meu! O que passa na cabeça dessa garota?


O velho continua me encarando, mas não faz menção
de se levantar para avançar sobre mim, então tento ser
coerente.

— Eu sou Matteo Viturino, senhor Gonzales. Acho que


não foi uma das melhores apresentações a que sua filha fez,
e sei que as circunstâncias também não foram as melhores,
mas juro que minhas intenções são ótimas.

Ele parece pensativo, me encarando, mas desvia os


olhos para Julieta.

— Com ótimas ele quer dizer que vai assumir o bebê

ou que vai se casar com ela?


— Acho que ele vai fazer o que ela quiser — Julieta

constata, com toda razão.

— Sim, nós queremos casar com ela — Maitê diz, se


intrometendo.
Santo Deus…

— Ótimo, se ela quiser, claro — o homem concorda —,


ela tem pai e mãe, sabe? Vamos cuidar dela e do bebê se for
preciso.
— Eu sei disso, não estou aqui pra cumprir uma

obrigação.

— Ele diz que a ama — Julieta se intromete outra vez.


Mas que porra de cunhada eu fui arrumar...

— Ama sim — Maitê concorda.


O velho finalmente desvia os olhos para minha filha.

— E você é quem, pequenina?


— Sou a Maitê, a filha dele — ela diz, apontando para

mim.

— Ah! Anabela fala muito de você, ela está louca pra


te ver.

— Eu também fali dela o tempo todo. Cadê a Belinha?


— No quarto. Podem ir falar com ela — o senhor

Gonzales diz, me encarando outra vez.

Agradeço ao homem e comemoro mais uma vitória,


mas agora vem a parte mais difícil.
Julieta nos conduz até a porta do quarto e então a

abre, mas fica parada impedindo nossa entrada.

— Ju? Quem está aí?


Ouço a voz dela e apenas isso já faz com que meu

coração dispare no peito, nem acredito que ela esteja do


outro lado dessa porta, depois de tantos dias longe.

— Bom, acho que você consegue adivinhar essa.


— O Matteo veio? Santo Deus! O que eu vou fazer?

Sorrio com sua voz preocupada, ela é incrível.


— Vai falar com ele, mas fica calma, tá bom? Se
lembre que não pode ficar nervosa por conta do bebê.

— E como não vou ficar? A Catarina também, viu? Eu


disse que não era pra falar por enquanto.
Só de escutar a conversa entre elas já me sinto
melhor, que saudades eu senti dessa mulher.

— Vou deixar que eles entrem agora, se precisar de


mim é só gritar.
— Eles?

Maitê não espera segundo convite, passa pela porta


gritando e correndo.
— Belinha! Que saudade de você!

— Ah! — Anabela solta um grito. — Maitê!


Aproveito o momento de euforia e também entro no
quarto. Maitê e Anabela estão agarradas em um abraço
apertado e me aproximo da cama sorrateiramente. Ouço a

porta se fechar, ao mesmo tempo que os olhos dela


encontram os meus.

— Oi, Bela…
Maitê se afasta e se coloca ao meu lado, Anabela por

outro lado se recosta nos travesseiros e fecha os olhos,


respirando devagar.

— Que foi? Está se sentindo mal?

— Não, só não posso ficar nervosa, estou me


acalmando.

— Eu te deixo nervosa? — pergunto, sorrindo.


— Que pergunta… — Ela abre os olhos. — Olha, não

posso me estressar por causa… você sabe. Então se estiver


muito bravo porque não contei, pode esperar uns meses pra
brigar comigo?

— Não estou bravo. — Meneio a cabeça.


— Não está? Mas…

— Você teve seus motivos, eu fui um idiota, afastei


você, desconfiei de você e disse que não estava pronto. Não
tinha razão pra que confiasse em mim e me contasse.

Ela nega e me oferece um sorriso triste.

— Não foi isso, eu jamais esconderia uma coisa assim


por razões egoístas como essas, tudo que você citou, me
magoou sim, mas não me faria esconder uma gravidez, eu

fiz isso por você.


— Por mim? — Agora eu é que a encaro, confuso.

— A Catarina disse que a gravidez é de risco? —


pergunta, receosa e de repente eu compreendo. — Tive

ameaças de aborto e não queria que você soubesse até que


a gestação se estabilizasse. Você já sofreu muito, não queria
dar uma notícia como essa sem ter certeza de que o bebê
iria sobreviver. Com aquela história — Ela desvia os olhos

para Maitê —, você sabe, não achei justo te fazer sofrer algo
assim outra vez.
Também fito minha filha, que olha de Anabela para
mim sem entender a conversa.

— As duas situações não podem sequer serem

comparadas. Você não tem culpa e nem poder de decisão


sobre o desenrolar das coisas — falo, emocionado por
entender o quanto ela pensou em mim esse tempo todo,
quando imaginei que nem mais passasse por sua mente.

— Eu sei, mas ainda assim…

— Ainda seria triste, mas não é a mesma coisa nem de


longe.
— Mas entende por que fiz isso?

— Porque você é maravilhosa e está sempre pensando


nos outros, quando deveria se preocupar com você.
— Matteo… — Seus olhos estão marejados, mas ela
me encara com hesitação, como se pedisse para que eu me

afastasse.

— Quero cuidar de você, prometo que vai ter o melhor


tratamento e cuidados médicos e tudo que precisar. Não vai

erguer um dedo sequer pra pegar água.


— Eu sei que suas intenções são as melhores, mas
estou bem cuidada aqui. Julieta me ajuda com tudo.
— Estou preocupado.

— Eu sei, mas vamos fazer tudo para que o bebê fique


bem — ela diz, soando confiante.

— Me preocupo com o bebê, mas também com você.


Quero que fique perto dos meus olhos, Bela. — Me abaixo ao
lado da cama e capturo sua mão. — Volta comigo, por favor.

— Matteo, as coisas não funcionam assim.


Ela desvia os olhos dos meus, mas não retira a mão.

— Me perdoa por todas aquelas besteiras que eu disse,


eu estou melhorando, de verdade. Quero ficar com você,

sinto tanto a sua falta…


— Eu também! — Maitê se ajoelha do outro lado, me
arrancando uma risada.

Anabela também ri, mas se volta para mim logo

depois, com seriedade.


— Me desculpe, mas não posso. Você disse que não
estava pronto e não está e isso não muda só porque vamos
ter um filho, não quero voltar e ver você me afastar de novo

depois.

— Não vou fazer isso.


— Infelizmente eu não acredito e agora não sou só eu.
Preciso pensar no bebê, prometo que você vai ter livre
acesso a ele sempre, mas isso não quer dizer que tenhamos

que ficar juntos.

— Eu vou provar que mereço essa confiança, não tem


problema. Se não quer voltar pra mim agora, volte pra casa

comigo, por enquanto vai ser o suficiente.


— Matteo…

— Por favor, Belinha! Nós precisamos muito de você,


eu sinto tanta saudade. Chorei muito quando você fazeu as

malas e sumiu de mim.


— Ah, meu anjo… Você chorou? — ela pergunta,
emotiva. — Perdoa a Belinha, eu queria ter ficado com você,
mas…

— Então volta! Se você queria ficar comigo, volta com


a gente. Eu prometo que vou ser boazinha com você e o
meu irmãozinho.
Essa cartada foi ótima, já posso ver os olhos dela

brilhando de emoção com o comentário de Maitê e acho que


vamos vencer a última batalha de hoje. De hoje, porque
ainda terei muitas pela frente até reconquistar a confiança
de Anabela.

— Ôh, meu amor, você é sempre boazinha.


— E vou vigiar o papai pra ele não ser malvado com
você.

— O papai não é malvado… — Anabela diz, um pouco


mais maleável.
— Oba! Ela dizeu que vai, papai — Maitê comemora
antes da hora.

— Espera, Maitê, eu não disse…


— Ela pode dormir comigo? Eu vou cuidar dela bem
direitinho e vigiar o bebê! — Maitê para de falar e olha de
Anabela para mim. — Lembra que eu queria que a Belinha

fosse minha mamãe?

Cacete, por essa eu não esperava, não fazia parte do


plano. Olho para Anabela, que agora nem disfarça mais as
lágrimas. Bom, talvez tenha surtido efeito ao menos.

— Ah, Maitê… — Ela chora e eu beijo o dorso da sua


mão.

— Vem com a gente, Bela. Prometo me comportar e


cuidar de você e só ir até onde você estiver disposta a me
deixar entrar.

Observo seus olhos, meu mel líquido e aguardo sua


resposta, cheio de expectativa.
Capítulo 31
Anabela
Maitê e eu nos ajeitamos no banco de trás do carro.

Não sei exatamente como aconteceu e como me

convenceram a voltar, só sei que de repente ela estava

comemorando meu retorno e dizendo que sempre quis que


eu fosse sua mãe, comecei a chorar e pouco depois estava

vendo Julieta arrumar minhas coisas nas malas e chamar

nossos pais para se despedirem.

Matteo prometeu cuidar de mim diversas vezes para


fazer com que minha mãe aceitasse minha partida e deixou
o endereço com eles para que fossem me visitar,

prometendo também mandar Timóteo para os buscar.

Dessa vez estou indo como moradora e por tempo

indeterminado, então todas as minhas coisas vão junto,

incluindo meus livros perfumados que tanto amo.


Quando deixamos a cidade e pegamos a estrada,

Maitê deixa de se distrair com os prédios e se volta para

mim.

— Sabia que eu vou começar a estudar? — pergunta,

animada.
— É mesmo, meu amor?

— Sim! Na escola que é do meu pai, mas ele não é

professor.

— Não, claro que não — concordo, sorrindo.

— A gente teve um Natal em família e o papai disse

que você quis passar com seus pais…

— Ele disse, foi?

— Eu tinha que dizer alguma coisa — Matteo

responde, atrás do volante —, não dava pra dizer que na


noite de Natal te mandei mensagem e você me ignorou.
— Não diz de propósito, passei mal durante a ceia e

fui para o hospital.

Ele crispa os lábios e aquiesce, acho que quer dizer

que eu deveria ter contado a ele, mas prefere não falar por

conta do meu estado.

— Você já sabe de quantas semanas está? —

pergunta, me fitando pelo retrovisor. — Pelos meus cálculos,


acho que são umas sete semanas, oito talvez.

— Isso… — concordo, meio sem jeito ao perceber que

ele também está pensando naquele dia.

— Já fez o ultrassom?

— Fiz um para ouvir o coração do bebê, mas o sexo

ainda é cedo para saber, vamos descobrir com doze

semanas.

— O que você acha que é?

— Não faço a menor ideia, pra falar a verdade, com

tudo isso, só quero que tenha saúde.

— Eu também.

— Eu também — Maitê concorda.

— Meu chalé ainda está esperando por mim? —

pergunto, apesar da resistência, estou feliz em voltar.


— Quanto a isso, acho que vai concordar que não seria

sensato ficar lá sozinha, pode precisar de ajuda.

— Bom…

— Vai ficar na casa, onde posso ficar de olho em você

— ele diz, sem esperar que eu discorde.

Quando chegamos à mansão, Catarina e dona Clarissa

vêm correndo até a porta me receber. Elas me abraçam

felizes em me ter de volta e preciso explicar que não voltei

com Matteo, antes que saiam preparando uma festa de

casamento.

Helder, Elis, Suzi, Helena, Timóteo e Pedro, estão todos

aqui e saem para me receber. Nunca fui tão bem acolhida na

vida.

— Anabela precisa se deitar — Matteo diz, cortando o

barato de todo mundo. —, o quarto está pronto?

— Sim, Presidente. Limpei tudo como pediu — Helena

responde.

Matteo não faz cerimônia antes de se abaixar e me

erguer no colo, assim, na frente de todos. Eu contesto, mas

não adianta, ele parece levar a sério essa coisa de que não

posso fazer esforço.


Subindo as escadas ele segue pelo corredor dos

quartos e imagino que tenha me reservado um ao lado do

de Maitê, mas ele passa reto pela suíte da pequena e abre a

porta do próprio quarto.

— Matteo!

— O quê? — questiona, se fazendo de desentendido.

— Não vou dormir com você!

— Mas só assim vou poder te vigiar a noite toda —

fala, como se fosse óbvio.

— Não precisa me vigiar a noite toda.

— Preciso sim, não vou pregar o olho, velando seu

sono.

— Isso não é reconfortante, é assustador. Nem adianta

pensar que se dormirmos juntos as coisas vão mudar.

Ele meneia a cabeça, como se não tivesse pensado

nisso.

— Pra começar, você não pode fazer nada

remotamente divertido, amor… — Meu coração estremece

quando o escuto me chamar assim. — Vamos só dormir lado

a lado e vou cuidar de você. Se te incomodar muito, coloco

um colchão no chão e durmo aos pés da cama.


— Não posso te arrancar da sua cama!

— Ótimo! Então estamos decididos.

Matteo me coloca sobre a cama e Maitê sobe nela pelo

outro lado, depois desse tempo longe de mim, acho que

ganhei um grudinho.

— Está confortável? — ele pergunta, afofando os

travesseiros sob a minha cabeça.

Talvez ele esteja exagerando um pouco, mas por mais

que negue, a verdade é que estou adorando. Me faz lembrar

de quando meu tornozelo ficou daquele jeito e ele ficou o

tempo todo me paparicando, quando as coisas ainda não

estavam tão complicadas.

— Estou, sim.

Matteo me encara por um instante, todo sorridente.

Quero comentar que nem sabia que ele tinha tantos dentes

assim, mas me contenho porque gosto de vê-lo feliz.

— Tudo bem, então, vou pedir que tragam o café — ele

fala, já começando a sair do quarto.

Agradeço aos céus por não precisar pedir, meu

estômago já está roncando de fome. Eu, sinceramente, não


sei mais o que fazer com essa fome ridícula, só piora a cada
dia e, mesmo depois que como, ela retorna cada vez mais

rápido.

— Matteo, pode trazer um pão? Ou um bife? — peço,

já imaginando a delícia que vai ser devorar tudo.

Ele me olha de um jeito engraçado, estranhando o

pedido.

— Um bife? Agora?
— É, não quero chás, suquinhos, essas coisas. É que

estou com muita fome, quero algo mais consistente.

Matteo começa a rir, mas concorda.


— Claro. Então o papo de comer por dois é verdade?

— Tecnicamente o bebê não precisa que eu coma


mais, mas você vai ver só, eu sinto fome o tempo inteiro. —

Espero que ele continue sorrindo quando o acordar de


madrugada pedindo comida. Quem mandou me colocar

aqui ao lado dele?


— Tudo bem, melhor comer muito do que perder o

apetite — ele diz, talvez até tenha razão. — Eu volto logo.

Maitê pega o controle sobre a mesinha de canto e

começa a procurar um filme para assistirmos juntas. Ela


abre a plataforma de streaming e muda de um filme para o
outro, tentando encontrar algo que agrade ao seu gosto
infantil.

— Você sabia que o papai fez um galinheiro pra mim?


— pergunta, me olhando de repente.

— Não acredito! — Nunca pensei que uma coisa desse


tipo fosse me deixar tão feliz. — É sério?

A pequena se vira na cama, para ficar de frente para

mim e sorri, empolgada ao perceber que gostei da notícia.


— Sim! Tem algumas galinhas e pintinhos também,
que vão virar galinhas depois. Belinha, eles são tão fofos e

bem pequenininhos, são os bebês das galinhas — ela


explica.

— Isso mesmo, amor.

— E o papai me deixou colocar nomes nelas, sabia?

— Quais são?

— Rosinha, Pintada, Cantorzinho barato...

— O quê? — pergunto, me surpreendendo com esse


último.

— Esse foi o papai quem escolheu, é para o galo,


porque ele canta muito mal, sabe?

— Entendi. — Começo a rir.


— E elas botam ovos, que a gente come de almoço.
São os melhores do mundo!

Fico imaginando como deve ter sido divertido esse

momento, Matteo se esforçou para se aproximar dela nesses


dias que estive fora e isso me enche de orgulho e de

esperança, um sentimento que eu não deveria ter, mas que


é impossível evitar.
— Então vocês se divertiram nesses últimos dias? —

pergunto.

— Sim, mas a mamãe dos pintinhos está brava


comigo, então dei um tempo, sabe?

Caio numa gargalhada sincera, Maitê me mata de rir


com suas histórias.

— Eu estava falando de você e seu papai, Maitê.


— Ah, sim! A gente nadou na piscina, brincamos e

fizemos piquenique — ela diz, animada, — mas senti sua


falta, muito.

— Também senti a sua, muito — falo a verdade.


Maitê alisa meu cabelo com carinho. Como eu amo

essa garota…
— Estou muito feliz pelo irmãozinho. Eu amo bebês —

ela diz, com um sorriso enorme no rosto.

Fico muito contente por isso, me lembro de quando o

filho de Catarina nasceu e de como ela teve receio de que se


preocupassem mais com o bebê que com ela e tive medo de

que se sentisse enciumada, mas até agora ela parece estar


adorando a novidade

— Posso pôr a mão nele? — pede, se colocando de


joelhos sobre a cama.

— Claro que pode, linda, vem cá.


Estico minhas pernas e subo minha blusa até embaixo

dos seios.

— Ele ainda é bem pequeno, tem o tamanho de um


mirtilo. Assim… — Faço a representação do tamanho com os

dedos.
— Eu não sei o que é mirtinho.

Sorrindo, conduzo a mãozinha de Maitê sobre a minha


barriga e ela toca minha pele com cuidado.

— Será que ele está sentindo? — fala, sussurrando,


como se fosse acordar o bebê.

— Aposto que sim.


Matteo anuncia sua presença e traz consigo uma

bandeja com pães, bolo, rosquinhas, suco e café. Me levanto


na cama e cubro a barriga outra vez, acho que ele me viu

com Maitê, porque está todo abobalhado, mas não comenta


nada sobre isso.

— A Helena está passando seu bife, com arroz e já vai


trazer.

Graças a Deus, porque eu já estava triste em ver só os


bolinhos e o pão. Maitê pega uma rosquinha na bandeja e

morde, depois fala com a boca cheia:

— Papai, eu toquei no bebê.


— Que legal, filha. Você o sentiu?

— Não, porque ele é do tamanho de um mirtinho, mas


a Belinha disse que ele me sentiu — ela fala, toda dengosa.

— Belinha, deixa o bebê sentir o papai também?


Ai, meu Deus! Só de pensar na possibilidade já sinto

um frio na barriga. Matteo me encara com um sorriso


abusado no rosto. Isso não é justo, eles estão combinados,

só pode!

— Você não quer, papai? — ela pergunta, animada.

Matteo balança a cabeça, assentindo e sorri.


— É, eu realmente adoraria.

Dou de ombros, porque não tem nada de mais nisso.

Ele é o pai, tem todo direito e não posso negar isso a ele.
— Tudo bem. — Levanto minha blusa outra vez,

enquanto Matteo se aproxima de mim na cama.

Ele me encara, e em seguida fita minha barriga com

adoração, mesmo que, obviamente, ela não tenha crescido


nada ainda. Matteo coloca sua mão espalmada sobre o meu

ventre plano, em um toque delicado, e sinto minha pele


arder por ele.

Um arrepio forte percorre todo meu corpo e me


denuncia quando os pelinhos perto do meu umbigo ficam

eriçados. Ele não diz nada, mas o sorriso no canto dos lábios
é a certeza de que percebeu o que seu toque ainda faz

comigo.

— Pronto. Agora o bebê conhece o papai também —

Maitê fala, sem se dar conta do que acontece dentro de mim


com esse momento tão rápido.

Matteo aproxima o rosto devagar, mas se vira para me


olhar por um instante.

— Posso?
Faço que sim com a cabeça, porque as palavras
simplesmente desapareceram.

Então ele beija minha barriga demoradamente, com

carinho e sorri de um jeito tão doce que balança cada uma


das barreiras que eu cuidadosamente ergui entre nós.
— Minha vez! — Maitê também beija minha barriga, e

me sinto adorável. A sensação é indescritível.

Helena bate na porta aberta e Matteo se levanta, mas


ele está muito mais leve e despreocupado, o que me faz

sentir mais segura. Ele não parece se incomodar nada com o


fato de nos encontrarem em um momento íntimo.

— Muito obrigado, Helena.

— Às ordens, Presidente.

— Obrigada, Helena, você é um anjo — digo, sentindo

minha boca ficar cheia d'água ao avistar o prato de comida.

— Esquentei o arroz do almoço, mas o jantar fica


pronto logo — ela diz, em tom de desculpas.
— Não se preocupe, eu que estou comendo mais do

que de costume.

— É por causa do bebê — Matteo diz, e sorri ao ver


Helena arregalar os olhos.
— Matteo!

— O quê? — Ele me encara fingindo inocência. —

Acha que não vão ver sua barriga crescendo? Todo mundo
vai saber de qualquer jeito!
— Eu sei, mas…

— Você vai ter um bebê? — Helena pergunta, abrindo

um sorriso alegre.
— Nós vamos ter, eu sou o pai — ele diz, como se
alguém não pudesse adivinhar isso.

Cubro o rosto com as mãos, constrangida, porque não


quero que pensem que dei um golpe da barriga ou coisa
parecida.
— Parabéns aos dois — ela diz, seu tom parece

genuinamente feliz —, que nasça com muita saúde e que


essa família seja muito abençoada.

— Obrigada, Helena — respondo, voltando a encará-la


—, mas não somos uma família, só vamos…

— Lógico que somos uma família — Matteo me


interrompe, ele parece determinado a me provar o quanto
está disposto. —, pode contar para os outros, Helena. O
Helder vai adorar a novidade. A propósito, avise a ele que
Anabela voltou, mas não para trabalhar, ela precisa de
repouso absoluto.

— Minha gravidez é de risco, Helena — conto,


aproveitando a deixa. Vai que a garota acha que estou aqui
me esbaldando nos cuidados de todos e folgando.
— Ah, sério? Vamos cuidar muito bem de você, então,

vai dar tudo certo!

Ela deixa a comida sobre a bandeja que Matteo trouxe


anteriormente e depois sai do quarto. Matteo a observa se

afastar por um momento e depois se vira para mim.


— Essa garota foi um achado…

Por algum motivo me sinto um pouco enciumada, é


uma besteira, claro. Helena é um amor e nunca a vi desviar

uma atenção além da necessária para Matteo, apesar do


espetáculo que ele é, mas ela é muito bonita, muito mais
que eu, com certeza, e também é gentil e educada, duvido
muito que ela tivesse a audácia de atirar um par de botinas

na cabeça do chefe.
— É linda também — comento, atenta às reações dele.

Por que mesmo estou fazendo isso? Matteo e eu não


temos mais nada e eu garanti que continuasse assim. Ele
desvia os olhos para mim, parecendo confuso por um

momento, mas então sorri e aquiesce.

— Sim, muito bonita, não é? Por que será que está


solteira?
— Como é que é? — pergunto, me ajeitando na cama

para o encarar.

Matteo tem um ataque de riso e faz um gesto com a


mão, dispensando meu comentário.
— Você… Desculpe, Bela, é que nunca te vi com

ciúmes, quis aproveitar um pouquinho.

— Eu? Com ciúmes? Não sei de onde foi que tirou essa
ideia. Nunca aconteceu e agora também não estou me
sentindo assim, eu adoro a Helena.

— Eu também — ele diz, mas dessa vez estreito os


olhos, ciente de que está me provocando. — Ah, como é
bom ter você de volta — ele diz, se inclinando para pegar
meu prato —, e agora, pode comer seu jantar.

— Meu primeiro jantar, porque vou comer de novo pra


acompanhar você e a Maitê mais tarde.
Matteo chega a arregalar os olhos e me faz rir com sua

reação.
— Santo Deus!

Ainda que assustado, ele faz questão de cortar um


pedaço de carne e me oferecer com o garfo, colocando na
minha boca. Não é como se eu não pudesse fazer isso, mas
não recuso porque gosto da sensação de ser cuidada por ele,

mesmo que não deva.


Matteo continua me servindo até o fim, e Maitê come
dois pedaços de bolo, além das rosquinhas, afirmando que
vai jantar depois. Olho para Matteo e dou de ombros, como

quem diz que se ela pode, eu também posso.

Estou terminando meu delicioso bife quando Catarina


e dona Clarissa passam pela porta.
— Oi, querida! Vamos embora, mas queríamos nos

despedir antes, está confortável?

— Sim, estou. Obrigada por tudo.


Catarina dispensa meu agradecimento, meneando a

cabeça.

— Me desculpe por dizer a ele, mesmo que tenha me


pedido para não contar. Eu não podia te deixar lá, sem o
Matteo…

— Está tudo bem, ele disse que prefere assim.


— Prefiro — Matteo afirma, colocando o último pedaço

de carne na minha boca.

Catarina sorri, e a mãe dele também parece muito


feliz em me ver aqui, então relaxo quanto a imagem que

estou passando, elas não parecem achar que sou uma


interesseira e isso por hora é o bastante.
— Sabem o que estive pensando? Sei que Matteo
odeia festividades e comemorar as coisas, mas penso que

você seja diferente, então vim sugerir perto de você pra que
ele não possa negar.

— Lá vem ela… — Matteo reclama, já prevendo que a


irmã irá sugerir algo de que ele não goste.

— O que acham de fazermos um chá revelação?


Vamos saber o sexo do bebê em algumas semanas e
podemos chamar sua família para vir até aqui, Anabela,
seria uma ótima oportunidade de estarmos todos juntos,

Matteo pode chamar o Greg e aquele irmão dele, reunimos


os funcionários e a nossa família.

— Se por família, você quer dizer…


— Eu acho uma ótima ideia — interrompo o que sei

que ele ia dizer —, inclusive tenho certeza de que o Matteo


não me negaria isso, Cat, ele sabe o quanto me deixaria
feliz.

— Mas… Até o Miguel? — ele questiona, sem se conter.


Apenas ergo a sobrancelha, esperando que ele mude

de ideia e ele o faz, me tranquilizando.

— Tudo bem, Bela, se você quer, você vai ter todos


aqui. E eu sei que você e Miguel não têm nada a ver, só

estava refletindo coisas do passado quando explodi daquele


jeito.
— Isso mesmo — concordo, satisfeita que ele tenha
ciência disso.

— Ahhh, que notícia ótima! — Catarina comemora. —


Agora mamãe e eu já vamos, mas voltamos mais perto para
cuidar de tudo então. E Matteo, a propósito, marquei sua
consulta com o psicólogo, vai ser online, ele se chama

Dominic Duarte e é muito bem recomendado.


— Você já marcou? — ele pergunta e fico apenas
olhando de um para o outro, sem acreditar que isso vá
acontecer.

— Sim, você disse que iria e não podia dar tempo para
que mudasse de ideia — ela diz, sem nem disfarçar.
— Não acredito que você vai mesmo fazer isso… —
comento, ainda em choque.

— Por você, por Maitê e pelo bebê, Bela, eu faço tudo.

Até ficar falando com esse velho chato.


— E quem disse que é um velho chato? — Cat
argumenta. — Na verdade ele tem mais ou menos a sua
idade e é famoso por usar textos e reflexões nas sessões,

você gosta de livros, vai ser perfeito!

Matteo não parece tão convencido disso, mas não


discorda, o que deixa claro que está mesmo disposto a
tentar.

E, outra vez, me permito ter esperanças.


A respiração de Maitê fica mais pesada e sua
mãozinha perde a força com que segura a minha. Também

pudera, já passa das onze horas da noite e normalmente ela

dorme às nove, acho que a volta de Anabela a deixou muito

agitada.

Apago a luz do quarto e encosto a porta, deixando só


uma pequena abertura para que a luz do corredor entre,

Maitê ainda tem medo do escuro.

Ao invés de ir para o quarto, desço a escada e sigo até


a biblioteca. Quero escolher um livro para ler com minha
Bela. Acendo as luzes e caminho até as estantes, tocando as

lombadas dos livros e lendo os títulos em voz baixa.

— Para Viver Com Poesia, Mário Quintana.

Pego o livro nas mãos e o folheio. Eu até marquei as

minhas frases preferidas com marca-texto. Com certeza ela


vai gostar de ver isso.

Subo de volta para o quarto e não consigo deixar de

me sentir ansioso por estar a sós com ela de novo, Anabela

tem o dom de transformar tudo à minha volta e despertar o

melhor de mim e por, mais que eu tente resistir, acontece


mesmo sem que eu perceba.

Ela está deitada na cama, vestindo um pijama que

cobre seu corpo todo e está mexendo em seu celular, mas o

deixa de lado quando me aproximo dela.

— Maitê dormiu?

— Sim. Foi difícil, mas consegui — falo, pensando na

energia inesgotável dela.

Eu me deito na cama ao lado de Anabela e começo a


ler o livro, esperando que ela pergunte do que se trata. Não

demora mais que um minuto.


— Então você lê poesia? — questiona, espiando o

título.

— Leio quase de tudo, depende muito do meu humor

no dia.

— E hoje seu humor o levou a ler poesia?

— É, você pode imaginar o motivo sem me obrigar a

dizer.
Ela se remexe um pouco e sorri, dando de ombros.

— Na verdade não sei, quero ouvir o que melhorou seu

humor a esse ponto… imagino que seja o bebê.

Espertinha.

— Claro que o bebê me deixou feliz, mas estou lendo

poesia, porque a única mulher para quem eu comporia

versos e sonetos, está na minha cama — respondo, sem

meias palavras.

— Caramba! Você não está para brincadeira! — ela

exclama, arfando.

Fico satisfeito ao perceber suas bochechas rosadas e o


modo como sua respiração muda. Vai ser uma lenta tortura,

passar dias e talvez meses sem poder tocá-la, sem poder me

enterrar nela e matar a saudade que sinto do seu corpo, mas


tudo bem, nosso bebê merece esse sossego e talvez a

expectativa torne as coisas ainda melhores.

Anabela tenta ignorar o que eu disse e seu dedo

percorre uma página do livro, sobre algumas frases e

trechos que estão marcadas.

— São as suas preferidas? — pergunta, curiosa.

— Isso. Quer que eu leia pra você?

— Por favor.

Bela fecha seus olhos para absorver melhor as

palavras e então começo a ler.

— Não desças os degraus do sonho

Para não despertar os monstros.

Não subas aos sótãos - onde

Os deuses, por trás das suas máscaras,

Ocultam o próprio enigma.

Não desças, não subas, fica.

O mistério está é na tua vida!

E é um sonho louco este nosso mundo…

— Eu gosto desse — ela diz, suspirando. — Leia mais

um…
Folheio o livro, à procura de algo que ela vá gostar, e

encontro um dos meus preferidos, simplesmente pelo jogo

de palavras, nada mais.

— Em cima do meu telhado

Pirulin, lulin, lulin

Um anjo, todo molhado

Soluça no seu flautim.

O relógio vai bater

As molas rangem sem fim.

O retrato na parede

Fica olhando pra mim

E chove sem saber por quê

E tudo foi sempre assim!

Parece que vou sofrer

Pirulin, lulin, lulin…

— Esse é engraçado, não sei se entendi bem o que

quer dizer.

— É mais um trocadilho do que algo profundo, mas eu

gosto, nunca soube bem o motivo.

— Também gostei… Acho que vou dormir, Matteo.


Eu a encaro por um momento, sedento de vontade de

me inclinar e beijar sua boca, mesmo que brevemente, mas

não o faço, ainda é cedo.

— Boa noite, minha Bela.

Ela sorri.

— Boa noite.

Acordo abraçado a ela e não há melhor sensação no

mundo. Meu rosto está afundado em um emaranhado de

cabelos castanhos e sua mão delicada está sobre a minha,

nossos dedos entrelaçados. Anabela se remexe e me afasto

devagar, retornando para o meu travesseiro antes que ela

termine de despertar e fique constrangida com nossa

proximidade.

Eu me levanto e sigo para o banheiro, faço a barba e

lavo o rosto, escovo os dentes e me visto, antes de voltar até

o quarto. Eu a encontro com os olhos abertos e uma

expressão desanimada no rosto.

— Bom dia. O que foi?

— Enjoo…

— Do que precisa?
— Remédio pra náusea, na minha bolsa, e comida,

urgente.

Não espero segunda ordem, abro a porta do quarto e

desço as escadas rapidamente, entro na cozinha assustando

todo mundo, e saio pegando várias coisas na geladeira e nos

armários, me explicando às pressas.

— Anabela acordou, está passando mal e precisa

comer rápido.

Não preciso dizer mais nada, Elis já trata de pegar um


copo de suco na geladeira e uma bandeja para que eu

coloque tudo em cima, depois se oferece para levar, mas


prefiro eu mesmo cuidar dela.

Volto para o quarto e ofereço a comida à Anabela, que


a ataca sem cerimônia. Enquanto ela come pego o remédio

que me pediu e assisto enquanto coloca um comprimido sob


a língua.

Aos poucos ela começa a respirar mais tranquila e a


cor volta ao seu rosto.

— Obrigada… Eu odeio muito vomitar, evito como


posso.
— Pode deixar comigo, de hoje em diante a comida vai
estar ao lado da cama quando acordar e o remédio em

mãos.

— Não precisa se preocupar assim, é normal da

gravidez.
— Mas se podemos fazer alguma coisa pra evitar ou

melhorar, vamos fazer.

— Ah, foi tão bom antes de dormir, você lendo


poesias, esqueci do enjoo que viria pela manhã…
Sorrio com o comentário dela, fico satisfeito em saber

que ela também gostou do tempo que passamos juntos.

— Gostou do livro?
— Eu amei!

— Então me conta — peço, me sentando ao lado dela


na beirada da cama —, que cheiro você daria a esses

poemas?
Anabela sorri com a pergunta e fecha os olhos,

pensativa. Ela parece analisar a fundo e abre um sorrisinho


quando chega a uma conclusão.

— Tem cheiro de mar, eu colocaria as tirinhas na água


do mar e depois de secas as colocaria dentro dele. Teria
sempre o cheiro da água salgada.

— E eu pensando em te agradar, descer na cozinha e


preparar o aroma que você escolhesse, mas você dificultou

as coisas agora. Não tenho mar por aqui.


Anabela dá de ombros.

— O livro já tem um cheiro próprio na minha mente,


não posso mudar pra facilitar, Presidente, sinto muito.

— Mar… Que seja então.

— Sim. Você podia ter pegado um livro com cheiro de

pimenta ou açúcar, não foi culpa minha. — Ela me encara


por um momento e morde o lábio, depois balança a cabeça.

— Não queria comentar pra não ficar se achando, dizendo


que reparo em tudo, mas a barba aparada assim, ficou

ótima.
Passo a mão pelo queixo, satisfeito com o elogio.

— Da pra ver que existe uma pessoa aqui embaixo,

não?
— E que pessoa… — ela comenta, em meio a uma
risada. Apesar da sua resistência, Anabela está mais solta

comigo, acho que está considerando me aceitar de volta e


não vou desistir até que ela faça isso. — É marketing, sabe?

Agora parece um homem mais bem resolvido, decidido.

— Porque me sinto assim — respondo, pegando a mão

dela na minha.
Bela olha nossos dedos unidos e assiste quando

deposito um beijo em seu dorso.

— Por falar em marketing, como vai a faculdade? —


pergunto, porque desde que ela entrou, não falamos mais a
respeito.

— Comecei bem, as matérias não eram tão difíceis e


eu estava mesmo gostando, o fato de as aulas serem a

distância também facilitou muito, mas agora, com a


gravidez, acho que vou precisar trancar. Mal comecei...

— Talvez seja melhor, mas não por toda a gestação, o

primeiro trimestre ao menos, para não se preocupar com


mais nada. Mas fique tranquila quanto a isso, assim que

quiser retomar, vou te apoiar de todas as formas, fico com o


bebê para que possa estudar, vai dar tudo certo.
— Você tem a empresa, não é como se tivesse todo o

tempo do mundo disponível.


— Eu tenho que trabalhar, mas não quero ficar por

conta disso o dia todo, quero me dedicar a vocês também —


falo e percebo o quanto estou sendo sincero, eu quero mais

da vida que apenas trabalhar.

— Obrigada.
— Pelo quê? É a minha obrigação, amor. Não que eu
esteja fazendo por isso, mas não tem o que me agradecer.

Seus dedos apertam os meus de leve e percebo o

quanto ela sente a palavra amor, mas não vou deixar de


usar, porque é isso, Anabela é meu amor e me sinto muito

melhor com o fato de que ela está aqui, comigo, ainda que
não exatamente como quero que seja.

Maitê aparece pouco depois, ela sobe na cama,


animada, e mostra os dentes para provar que os escovou.

— Juro, juradinho, papai. Agora quero contar o sonho


que eu tiveu...

— Tive, filha.

— Isso. O bebê nasceu, mas ele era muito carequinha

e eu dei um gorro meu pra ele não ficar com frio na


cabeça…
— Ele era bonitinho, Maitê? — Bela pergunta, sorrindo
ao ouvir o sonho dela.

— Um pouco — ela responde, nos fazendo rir —, mas


era bem fofinho. Ele chamava Arthurrrr — diz, puxando o

último r.
— É um nome bonito, querida. Eu gosto — Bela diz,

acariciando os cabelos loiros de Maitê.

— Eu também!

Nós ficamos na cama conversando e rindo até a hora


do almoço, quando sobem com as bandejas e comemos os

três juntos.

Tirei os próximos dias de folga e só volto ao trabalho


no início de janeiro, então a tarde passa tranquilamente

enquanto aproveito a companhia das duas, já são mais de


quatro horas quando ouço as batidas na porta.
— Presidente, o senhor tem visitas. — Elis aparece

logo depois, avisando.

— Não me diga que minha irmã…


— Não senhor, seu amigo, o Sr. Mackintosh e o irmão

dele.

— Onde estão? No escritório?


— O senhor Greg disse que vieram treinar boxe, foram
para a academia.

Olho para Anabela primeiro, estou animado com a

ideia de ter companhia para o treino, mas se ela precisar de


mim eu mando os dois lutarem um contra o outro.
— Pode ir — ela diz, entendendo meu dilema —, Maitê

e eu vamos ficar bem aqui, vendo filmes.

Eu me levanto da cama e pego um shorts, entro no


banheiro e me troco rapidamente. Desço as escadas e sigo

para o porão, onde os encontro à minha espera.


— E aí, Viturino? Pronto pra apanhar? — Greg

pergunta, provocando.

— E quem é que vai me bater?

Eu os cumprimento, antes de pular as cordas para

dentro do ringue.

— Vieram mesmo pra isso?


— Pelo menos é um esporte, Yan já estava cansado de
ficar na cidade, reclamou a semana inteira.

— Então você é que vai me enfrentar? — pergunto ao


Mackintosh mais jovem.
Ele sorri de um jeito meio cínico, acho que pensa
mesmo que vai me vencer. Ofereço um par de luvas a ele e

assisto enquanto arranca os sapatos e depois as coloca nas


mãos, pulando também para sobre o tablado.

Greg fica como juiz, mas ao final da luta declara que


Yan foi o vencedor. Como não aceito isso, lutamos outra vez

e preparo os melhores socos e faço investidas menos


previsíveis e, quando terminamos, Greg julga que venci.
No fim das contas ainda foi um empate e preciso
admitir que o cara bate forte. Greg não quis entrar nessa,

porque de acordo com ele só estava me provocando e


apenas imbecis brincam de apanhar.

Helder entra com algumas garrafas de água e nos


sentamos no chão mesmo, bebendo enquanto conversamos.

— E aí? Como estão as coisas? Confesso que apesar de


termos vindo pra isso, fiquei meio preocupado com tudo que
aconteceu, com Miguel.

— Eu estou bem, ao menos agora estou.

— E o que houve nesse meio tempo? Conversou com


ele? — Greg indaga, preocupado.
— Ainda não, mas sinceramente? Acho que não estou
com tanta raiva quanto estava quando ele voltou.

— E por que isso?


— Sei lá, aconteceu tanta coisa, acabou perdendo a
relevância. Ficar com tanta raiva por uma coisa que já foi e
uma mulher que não me interessa em mais nada, não faz

mais tanto sentido.

— Por falar nela, fiquei sabendo que morreu — ele


conta, assim de supetão.

— Sério?

A informação me pega de surpresa.


— É, Yan e eu estávamos na casa de uma prima da
nossa mãe, Ana e ela disse que ficou sabendo por alto.

— A ex-mulher? — Yan questiona, entrando na


conversa depois de um tempão apenas observando.
— A própria.

— Que foda… Ouvi a Ana falando, mas não estava


atento, não saquei que era sobre essa mulher que falavam.
Não respondo porque nem sei o que dizer, desde que
vi Sofia naquele estado, soube que aconteceria logo. Não
quero parecer insensível, mas não sinto nada ao ouvir isso,

então prefiro ficar quieto.

— Eu tive uma briga feia com Miguel porque peguei


ele de conversa com a Anabela — conto, mudando o rumo
da conversa.

— Porra! Sério?

Greg me olha feio.


— Não era nada, estavam só conversando, mas eu
surtei, você sabe…

— É o histórico — Yan aponta.


— Isso, tive o maior problemão com ela por isso, decidi
que não estava pronto e fiz merda, como podem imaginar.

— Ah, cara! Não acredito nisso, parecia estar indo bem


com a garota — Greg lamenta.
Tomo um longo gole de água antes de terminar de
contar os últimos acontecimentos.

— Pois é, ela foi embora, fiquei mal com isso e a Maitê


também.
— Se arrependeu, seu idiota? — Não prevejo o tapa
até ele acertar minha nuca com força.
Estreito os olhos para encarar meu amigo, mas não

revido.

— E como não ia me arrepender? Você sabe, eu estava


morto antes dela.
— Credo, vocês são muito bregas. — Yan ri, fazendo

uma careta.

— Ei! Eu aconselho os outros, cara. No meu caso é


diferente, tenho um rodízio de mulheres na semana, mas o

Viturino não sabe fazer isso. — Greg está sempre contando


vantagem quanto a isso, mas não acho que seja mulherengo
por escolha, ele tem aquela crença idiota de que nunca vai
ser feliz no amor e por isso prefere não se apegar. — Mas e
aí? Foi atrás dela?

— A Cat foi, e descobriu que ela estava grávida.

— Quê? Engravidou a governanta? — Yan pergunta, se


levantando em um pulo.

Apesar de achar graça no susto do escocês, meneio a


cabeça ao ouvir as palavras dele.

— Merda, não fala assim dela.


Ele ri e me encara com sarcasmo.
— Não é o trabalho dela? Até parece que eu ofendi a

moça.

— Era o trabalho dela, agora não é mais.


— O que vai fazer? — Greg quer saber.

— Já fiz, fui lá e busquei ela, está lá em cima com a


Maitê agora.
— Então vocês estão juntos e vão ter um filho? —
pergunta, tentando se localizar na novela mexicana que se

tornou minha vida.

— Mais ou menos, vamos ter um filho e vamos ficar


juntos. Ela ainda não perdoou minha babaquice.
— Com toda razão, você a mandou embora, porra!

— Eu não mandei, terminei com ela e disse que podia


continuar aqui…
— Como se não significasse nada, você é mesmo um

idiota.

Isso me faz rir, não é como se Greg estivesse em


posição de julgar e aconselhar.
— E você entende muito dessas merdas, né? Fica na

sua que vou resolver as coisas.


— Tá certo, se conseguir se resolver com a garota e
voltar a ser gente, quero receber vocês lá em casa.

Ergo as sobrancelhas diante do convite inesperado.


— Nunca me chamou antes.

— E como? Você não saía dessa casa, porra! Que dirá


do país.
— Faz sentido, mas tem espaço pra nós? Com a Maitê?

Yan ri e balança a cabeça, como se não acreditasse na


minha pergunta.
— Sério? É um castelo.

— Eu sei, o lar de um homem é seu próprio castelo e


tal.
— Não, idiota. Esse tempo todo achou que fosse uma
espécie de expressão? É literalmente um castelo.

— Caralho, tá falando sério? Por isso o Yan gosta de


ficar por lá, então. Acho que devia fazer o que disse antes,
vender a empresa aqui e ficar com o castelo lá.
— É, estou pensando seriamente nisso, precisamos de

um sócio para a destilaria porque pretendo entregar ela ao


Yan e focar em outros negócios. E por falar nisso, agora que
está melhor e com os planos para o futuro, pretende voltar a
empresa? Ao escritório.

— Gosto mais daqui, das montanhas, não quero voltar

a morar na cidade, mas se as coisas seguirem como estão,


vou voltar a aparecer por lá ao menos uma vez na semana.
Não conte a ninguém que eu disse isso, ainda não tenho
certeza.

— Boa, cara, é um ótimo plano.

— Estou com umas ideias martelando na minha


cabeça, Anabela tem um plano de negócios bem diferente e
quero investir nela, na ideia… Mas ainda não disse nada.

— Uma coisa de cada vez, não é?

— Isso, primeiro a família, depois os negócios.


As semanas que se seguiram foram como estar em um
paraíso, apesar de todas as preocupações, Matteo me mima
o tempo todo e Maitê não sai do meu lado nunca. Os outros

também estão sempre por perto, trazendo comidas e


bebidas para mim.

Matteo e eu estamos cada vez mais próximos, mas ele


não tentou conversar e me convencer a aceitá-lo de volta,

ainda que sempre faça isso com suas atitudes, cuidando de


mim e me chamando de amor, o que acaba com minhas
estruturas totalmente. Estamos perto das doze semanas e
quanto mais se aproxima o momento em que vou descobrir

enfim o sexo do bebê e também o fim do primeiro trimestre,


mais alegre e confiante me sinto.
O médico veio me ver várias vezes, Matteo cuidou de
pagar ao homem para me atender em domicílio, o que foi

ótimo, assim não preciso sair de casa e evito qualquer


esforço. Na última semana já comecei a andar pela
propriedade ao menos duas vezes no dia, mas distâncias
curtas e a passos de tartaruga, a cada dia que passa tenho a
certeza de que tudo vai ficar bem.
Agora mesmo, estamos no quarto, Maitê, Elis, Suzi,
Helena e eu, elas vieram com um mega café da tarde, que
agora inclui bifes sempre e ficaram para conversarmos.

— Eu não vejo a hora! Quando nascer, vou fazer


gorrinhos de lã e meias para o bebê, vai ficar quentinho e
estiloso — Suzi fala, se sentando na beirada da cama.

— Já pensou nos nomes? — Elis se inclina um pouco


para perto de mim. — Acho que podia se chamar Elis, o que
acha? É diferente.

As outras começam a rir e nem eu resisto.

— Nem sabemos se é menina ou menino ainda, e com


essa coisa da gravidez de risco, eu não quis pensar em
nomes até ter certeza… Vocês sabem.

— Para de bobagem — é Helena quem me repreende

—, vai ficar tudo bem, tenho certeza.


Como todas a encaramos, aguardando que explique
sua convicção, ela suspira e continua:

— Eu tenho uma crença, de que quando a pessoa


sofreu muito na vida, algo bom acontece, ninguém veio ao
mundo para sofrer, precisamos dos respiros, do fôlego. —
Continuamos a encarando, sem entender aonde quer
chegar, e ela dá de ombros. — O Presidente já sofreu demais
e ele te ama muito, a Maitê e ao bebê, vocês são o respiro

dele, Deus não faria algo assim.

Elis e Suzi se entreolham e eu chego a marejar os


olhos com a percepção dela. Helena é sempre muito quieta
e misteriosa, mas é nítido que está atenta a tudo e se

preocupa com todos nós.


— Essa crença é com base em algo pessoal? —
pergunto, a observando com atenção.

— Sim, de certa forma, vocês todos, essa casa e esse

trabalho, são o meu respiro também.


— Misericórdia! — Elis faz o sinal da cruz. — Se
trabalhar desse jeito é seu fôlego, não quero nem ouvir pelo
que já passou na vida.

— Ah, não queira — ela concorda e desvia os olhos, se


calando em seguida.
Fico curiosa, quero saber mais, mas não posso ser
invasiva, então não pergunto.

— O que importa é que agora está aqui, se encaixou


muito bem na equipe e ainda aprendeu a fazer meu
chocolate quente — comento, bebericando um gole do
líquido espesso.

— Graças a Deus — Maitê suspira, mordiscando um


marshmallow —, não aguentava mais ficar sem o chocolate.
— É, e a Anabela não volta mais para a cozinha, foi

muito bom você chegar, Helena. — Suzi me encara,


esperando uma confirmação.

— Anabela, mata a nossa curiosidade pelo amor de


Deus… — Elis ergue as mãos em súplica e arranca risadas

das outras. — Vai se casar com o Presidente, não vai?


— Ah, diz que vai, Belinha! — Maitê se une a ela,
implorando.

— Pelo amor de Deus, quem disse a vocês que ele me

pediu em casamento?
— Ele disse ao seu papai que casava e eu disse que
casava também.

— Santo Deus… olha gente, eu não sei como as coisas

vão ficar, eu disse que não iria voltar para ele, mas é lógico
que minha resistência não é assim tão inabalável quanto eu
pensava, e ele está sendo maravilhoso, começou a terapia e
tem cuidado tão bem de mim, talvez as coisas acabem se

resolvendo entre nós.

Elas comemoram, animadas com a perspectiva, e já


começam a pedir aumento de salário imediatamente, essas
doidas…
Estou de pé, no meio do quarto, tentando não me
mexer, enquanto Leonel espeta alfinetes no vestido que

escolhi. Ele é maravilhoso, furta-cor, de manguinhas e na

altura dos joelhos, dependendo da luz do ambiente ele fica

rosa ou azul, ideal para um chá revelação.

— Prontinho, amiga, agora é só fazer os ajustes. Vai


ficar perfeito! — ele comenta, se levantando e analisando o

trabalho que fez.

Essa é mais uma das extravagâncias de Matteo. Eu


disse a ele que não sabia o que usar na festa e então, no dia
seguinte, no caso hoje, o homem já estava aqui na porta,

com sacolas e mais sacolas de vestidos feitos por ele à

minha disposição.

— Você está tão linda, Belinha! — Maitê comenta, me

olhando com admiração.


— Muito obrigada, amor. — Vindo dela, eu acredito,

porque crianças são sempre sinceras.

Suzi bate na porta em seguida e, quando me vê,

coloca as duas mãos no rosto, sorrindo também.

— Uau! Você ficou perfeita! — ela diz, entrando no


quarto. — Pode dar uma voltinha?

— Nãããão! Tem alfinetes em toda parte! — Leonel

alerta, com um grito agudo de pavor.

— É maravilhoso — Suzi fala, ignorando o estilista.

— E ainda nem está pronto! — Leonel se aproxima de

mim outra vez. — Vamos lá, meu bem, vamos tirar esse

vestido antes que seu homem te veja e acabe com a

surpresa.
Meu homem, e que homem!

Minha nossa, como adoro ouvir isso e pensar que

Matteo realmente é meu. Levanto meus braços e Leonel me


ajuda a tirar o vestido, o guardando na sacola em seguida.

— Obrigada pelo elogio, Suzi, também gostei muito —

agradeço, procurando minhas roupas pelo quarto.

— Vim avisar que a senhora Catarina e os pais do

Presidente acabaram de chegar.

Maitê passa correndo por Suzi e quase derruba a

coitada pelo caminho ao ouvir a notícia. Ela adora os avós, a


tia e, é claro, o priminho.

— Não corra na escada, Maitê! — grito, mas nem sei se

ela me ouve. — Tudo bem, Suzi, eu já vou descer.

Suzi nos deixa a sós e Leonel pega uma agenda dentro

de sua pasta para anotar alguma coisa. Finalmente encontro

minha calça e a blusa que estava vestindo antes da prova do

vestido, mas sou interrompida por Matteo à porta.

Ele para onde está, com a mão no ar mesmo e me

encara por um instante, vestindo apenas calcinha e sutiã, eu

o vejo engolir a seco, admirado. Desde que voltei ele não viu
mais que minhas pernas ou alguns centímetros de pele

exposta, também sinto meu corpo todo se acender diante do

seu olhar.
Mas então ele encara Leonel, que está distraído com

suas anotações. Era só o que me faltava ter ciúmes do

estilista…

Leonel levanta os olhos da agenda e encara Matteo

por uns dois segundos bem constrangedores, antes de olhar

para mim e entender o que está acontecendo aqui. Ele ri e

levanta as mãos em sua defesa.

— Tudo bem, tudo bem! Eu gosto da mesma coisa que

ela — ele diz, emendando uma piscadinha com um sorriso

abusado, deixando Matteo completamente sem graça.

Eu começo a rir, porque é muito bem-feito para ele

aprender. Visto minha blusa, enquanto Matteo tenta se

lembrar à que veio, suas bochechas estão coradas e ele fica

ainda mais lindo desse jeito.

— Eu já vou descer, seus pais chegaram, né? —

pergunto.

— É… Isso — Ele coça a cabeça, se decidindo entre

olhar ou não para mim. Tão fofo… — Seus pais e a Julieta

também, acabaram de chegar.

Meu coração dispara no peito, estou sentindo tanta

saudade que chega a doer. Já faz mais de um mês que não


os vejo, desde o dia em que voltei para Campos do Jordão

com Matteo. Visto a calça jeans com agilidade e cambaleio

um pouco, tentando me equilibrar em uma perna só, vejo

Matteo ficar branco feito um papel e me repreender pelo

descuido com os olhos.

— Eu também vou indo. Trago o vestido na sexta,

Anabela — Leonel comenta, pegando suas coisas.

— Muito obrigada pela atenção e por vir até aqui —

agradeço. Leonel deixou seu ateliê na cidade para me

atender em domicílio.

— Eu é que agradeço a oportunidade.


Nós três descemos para o andar de baixo e

encontramos o hall de entrada da casa abarrotado de gente:

dona Clarissa e o senhor Leônidas estão conversando com

meus pais, minha mãe está linda com o vestido rosa que lhe

dei em seu último aniversário e parece feliz por estar aqui,

sem se importar muito com a cadeira de rodas. Catarina

está conversando com Julieta perto da porta e na varanda,

do lado de fora estão Alberto e Miguel, vejo Leonel passar

por eles e acenar, fazendo um charme.


Matteo me ajuda a descer a escada apenas por

preocupação, minha barriga nem cresceu tanto assim e,

quando alcanço o último degrau, sou envolvida pelo abraço

caloroso da minha irmã.

— Você está tão bonita, Bela! — Isso porque eu nem

me arrumei. Ela, por outro lado, está mesmo linda, com os

cabelos pretos soltos e a maquiagem delicada.

— Ju, eu nem mesmo me troquei — falo, apontando

para as minhas roupas velhas.

— Não estou falando das roupas e sim de você, do seu

brilho, a gravidez te fez bem.

Essa história de brilho sempre me faz rir, é difícil você

ter brilho vomitando constantemente e com uma vida

crescendo dentro de si.

Meu pai me abraça em seguida, cumprimentando

Matteo também, e por fim mamãe se estica para me

envolver em seus braços, beijando meu rosto com carinho.

— Você está bem, meu amor? — ela pergunta,

analisando meu rosto.

— Sim, mamãe, está tudo bem. — Seco meus olhos


marejados e respiro fundo para não chorar, malditos
hormônios. — Que bom que estão aqui…

— Que bom que você está aqui, filha. — Ela encara

Matteo por um momento. — Obrigada por cuidar tão bem da

minha menina, não sei se longe de vocês ela teria… Você

sabe, saído do momento mais arriscado.

— Ela cuidou de mim primeiro, dona Maria.

— Vocês também cuidavam bem de mim em casa,


mãe — respondo, tentando não dar muita importância ao

que ele diz.


Mas mamãe balança a cabeça e faz questão de me

deixar constrangida em seguida.

— Mesmo assim, o emocional influencia muito e você

estava sofrendo longe dele e da Maitê.


Saio de fininho para cumprimentar os pais de Matteo,

propositalmente ignorando o comentário de mamãe, mas


ouço a risada baixa de Matteo, que obviamente percebe que

estou me desviando de dar uma resposta a isso.

Julieta vai para a cozinha com Helena, Suzi e Elis,


ajudar nos preparativos da revelação, ainda faltam alguns
dias, mas eles vieram antes justamente com essa intenção,
já que ao invés de comprar, decidiram fazer toda a
decoração.

Meu pai aceita o convite do senhor Leônidas para ir


pescar no lago e fico feliz que eles estejam se entendendo

tão bem. Mamãe fica com dona Clarissa e Maitê, porque nós
temos hora marcada com o médico, dessa vez em seu

próprio consultório, na cidade, para a entrega do resultado


do exame de sexagem fetal e um ultrassom de rotina. Acho

que Matteo nem conseguiu dormir à noite, de tanta


ansiedade, Catarina vem conosco, é claro, porque o

resultado vai ser entregue diretamente para ela.


Nós aguardamos na recepção da clínica e Matteo

balança as pernas sem parar. Ele olha de um lado para o


outro e tenta encarar as recepcionistas, sem sucesso,

porque elas já estão mais que treinadas para lidar com o


tipo de cliente apressadinho.

De repente, depois de alguns minutos, Catarina


avança sobre Matteo sem aviso e segura os joelhos do irmão

com as duas mãos.


— Para com isso, Matteo! Sua ansiedade vai deixar a

Anabela nervosa também, e está me irritando — ela ergue


as sobrancelhas, como se fosse óbvio.

Seguro uma risada, mas Matteo para de sacudir as


pernas imediatamente, soltando o ar de seus pulmões com

impaciência.
Finalmente o Dr. Genivaldo, o médico que tem me

atendido na mansão, chama meu nome e os dois me


seguem para dentro do consultório. Ele faz algumas
perguntas de rotina sobre os enjoos, as vitaminas e

principalmente sobre o repouso, depois me dá algumas


instruções sobre os próximos exames.

Enquanto me troco no banheiro, vestindo outra vez

aquela camisola aberta, Matteo e Catarina tomam seus


lugares ao lado da maca, subo os degraus da escadinha e

me acomodo, e Matteo segura minha mão, mas mantém


seus olhos azuis fixos na tela, esperando.

O médico espalha o gel frio sobre a minha barriga,


que agora está mais arredondada que da primeira vez que
fiz isso, e em seguida vem com o transdutor.

— Vejam só, essa é a coluna do bebê e desse lado aqui

temos uma perninha. — O médico pausa a imagem, como


em uma foto, apontando para a tela e medindo as

extremidades.

Matteo sorri, animado, e aponta para o lado inferior da

tela, acho que ele viu alguma coisa, ou pelo menos pensa
que viu.

— Espera um minuto. Acho que estou vendo, ali é o pé


do bebê?

O médico assente, satisfeito por alguém enxergar o


que ele está tentando nos mostrar.

— Exatamente.

Catarina franze o cenho e meneia a cabeça, ao mesmo


tempo que Matteo comemora.

— Sim, sim, agora estou vendo tudo. É perfeito!

O Dr. Garcia mexe em alguma outra configuração do

aparelho e o som das batidas do coração do nosso filho


começa a tocar alto, por toda a sala.

— Santo Deus! Como bate rápido! — Matteo está tão


admirado e feliz que não consigo segurar o choro, ele beija

minha cabeça e me abraça pelos ombros.

É tanta felicidade que sinto transbordar de mim, nem

sei se mereço tanto. No primeiro ultrassom, estava tomada


pelo medo e acreditando que não chegaríamos a isso, mas

agora estou aqui, estamos bem, não tive mais sangramentos


e, o melhor, ele está comigo.

Quando a consulta termina, o Dr. Genivaldo entrega o

resultado do exame para Catarina, com um sorriso sabichão


nos lábios, estou com medo de que Matteo tome o envelope
das mãos dela e saia correndo por aí, mas ele está se

esforçando para participar da brincadeira.


Quando saímos da clínica, Matteo decide parar em

uma chocolateria que está no caminho antes de voltar para


casa, eu é que não vou recusar o convite.

Nós três descemos do carro e entramos na loja, que

mais parece um chalé enorme com a sua arquitetura no


estilo europeu, o assoalho de madeira lustrado dá um ar

sofisticado à loja, e no centro dela há uma fonte de


chocolate que desperta o interesse dos clientes, muitos
tiram fotos diante dela.

Nós nos espalhamos dentro da loja, e um vendedor


educado me oferece alguns produtos, mas acabo me

decidindo sozinha mesmo. Escolho uma cartela de bombons


sortidos com embalagem colorida para levar para Maitê.
Aposto que ela vai gostar disso, ainda mais porque
acompanha um brinquedinho, para Julieta eu compro uma

caixinha com trufas e três barras de chocolate ao leite, uma


para mamãe, uma para Cat e outra para a dona Clarissa.

No corredor seguinte compro um tambor grande com


cinquenta bombons, porque assim as meninas e Helder

também poderão experimentar, me viro então, carregando


todas as caixas que escolhi, e dou de cara com uma rosa

oferecida a mim e os olhos azuis mais lindos que já vi.


— Para você, Bela. — Matteo sorri e se aproxima um

passo, pegando os chocolates das minhas mãos.

Percebo que no miolo da rosa há um bombom

pequeno.
— Ah, que fofo! Muito obrigada!

— Comprei chocolate-quente também, para tomarmos


no caminho, uma caixa de bombons de cereja e creme de

avelã — ele diz, orgulhoso.


— Também peguei alguns presentes, para Maitê e os

outros…

Catarina entra no corredor onde estamos e percebo


que o exagero é de família, porque ela está levando
praticamente a loja inteira.

— Pronto, já escolhi os meus.


— Vou passar tudo no caixa então.

— Eu vou com você, preciso pagar também.


— Não precisa, não. Já volto, linda. — Matteo segue

com Cat para os fundos da loja, onde ficam os caixas.

Eu deveria insistir em pagar pelos doces, mas ao invés

disso me lembro daquele dia no lago, quando o bebê foi


concebido, a conversa entre Matteo e eu, sobre a mocinha e

o vendedor de chocolates, acabo ficando de pé, perto da


fonte, observando o fluxo do chocolate que cai e é sugado

para dentro outra vez, em um ciclo repetitivo.


Matteo me segura por trás, de repente, apoiando suas

mãos na minha cintura, nós não conversamos mais a

respeito e não estamos juntos de verdade, mas também não


conseguimos mais ficar longe um do outro, então perdemos
o controle desses toques mais sutis. Tudo para ter um pouco
mais um do outro.

— Prontinho — ele diz, e eu me viro para o encarar.


— Fiquem assim, não se mexam! — Catarina tira o
celular do bolso do casaco e bate uma foto, é a nossa
primeira juntos.

Depois disso, voltamos para casa, levando conosco

todos os chocolates que escolhemos na loja. Matteo está


tentando trocar chocolate pelo resultado da sexagem com
Catarina, o que não vai funcionar, obviamente, até porque
ela comprou mais que nós dois juntos.

Nós rimos e conversamos muito durante o caminho de


volta, Matteo está muito mais solto, conversando e até
fazendo piadinhas com Catarina. Poder acompanhar sua
evolução é maravilhoso, a cada dia que passa ele está mais

próximo de sua redenção.

Anabela está conversando com os pais na sala de

televisão e Maitê está sentada perto dela, sobre o tapete,


com a boca toda lambuzada de chocolate.
Encontro Catarina e Julieta na cozinha, preparando
alguma coisa para o chá revelação. Elas escondem tudo

quando me aproximo, como se eu já não soubesse do que se


trata.

— Julieta — cumprimento.
— Matteo — ela responde de volta.

Coloco a bandeja de brigadeiros que comprei na


chocolateria sobre a mesa e empurro até estar diante dela.
— Acho que começamos com o pé esquerdo e quero

consertar isso — falo, tentando soar gentil.

Ela encara a bandeja e depois curva a cabeça,


intrigada.
— Por acaso está tentando me comprar com

brigadeiro?

Dou de ombros, nunca fui bom em fingir e inventar


desculpas.
— Na verdade, sim.

Catarina revira os olhos, impaciente.


— Tá bom, escolheu bem então, funciona comigo —
ela diz, com a expressão mais leve, pegando um doce e

levando a boca. — Não pelo brigadeiro — diz, depois de


devorar metade dele —, mas porque você cuidou dela,

minha irmã parece muito feliz aqui, com vocês. Obrigada


por isso.

— Não precisa agradecer, ela me faz feliz.


Julieta assente, satisfeita com a resposta.

— Nesse caso, já que não me perdoou pelos


brigadeiros, posso os levar de volta?
Julieta agarra a bandeja e a levanta sobre a cabeça.

— Nem pensar, você me deu. Não dá pra pegar um


presente de volta, sinto muito.
— É, e você deveria ir logo — Cat diz, fazendo um
gesto como se me enxotasse da cozinha —, sua sessão não é
agora?

— Ah, merda… — Confiro as horas no relógio de pulso.


— Não posso deixar o cara esperando.
Sigo para o escritório e tranco a porta, esse é o único

momento em que tenho me isolado, desde que Anabela


retornou, não por tristeza, mas porque preciso de um pouco
de privacidade.

Ligo o computador e me sento diante dele, na

poltrona. Já recebi o link para a videochamada pelo e-mail e


faltam menos de dois minutos para o horário, então clico

nele e a tela se abre na câmera. Solicito participar da


chamada e logo recebo a aprovação, a câmera do psicólogo
também se abre e vejo o cara aparecer do outro lado.

Dr. Dominic realmente tem quase a minha idade, ao

menos é o que imagino pela aparência dele. Os olhos


castanhos em encaram pela câmera e ele abre um sorriso.
— Boa tarde, Matteo. Como passou desde a última vez
em que nos falamos?

— Tudo bem. Na verdade, mais do que bem. Fui com


Anabela hoje em um ultrassom e cara, que coisa louca ouvir
o coração do bebê e acompanhar essa evolução.
— Fico feliz que esteja bem e participando tão

ativamente da gravidez, tem alguma coisa em particular


sobre o que gostaria de me contar hoje?

— Não, está tudo ótimo.

Dominic franze o cenho e aquiesce, em seguida ele se


recosta na cadeira e me dirige aquele olhar de quem sabe
das coisas.

— Você mencionou na última sessão que sua família

iria para a sua casa, para um chá revelação. Eles já


chegaram?

— Chegaram hoje de manhã, a família da Anabela


também.
— E seu irmão?

Meneio a cabeça, ainda não contei a ele sobre o real


motivo pelo qual estou fazendo terapia, mas como sempre
me esquivo quando ele menciona Miguel, acho que já
entendeu que meu problema é com ele.

— Ainda não chegou, mas deve vir porque ele agora


está sempre aparecendo…

— Agora? — questiona, perspicaz.


— É — suspiro, me recostando na poltrona e fecho os

olhos, talvez assim eu consiga falar —, ele estava morto, eu


não disse isso?

— Não, não disse.

— Miguel fingiu que estava morto e sumiu por cinco


anos, agora está de volta.

— É por isso que tem raiva dele?


Meneio a cabeça.

— Não. Quer dizer, não só por isso. Miguel me


apunhalou pelas costas, e agora quer que eu o perdoe.
— E você não quer perdoar?

— Eu não sei — respondo, com sinceridade —, não


queria, estava puto com ele, porque apesar de tudo, sofri
muito quando foi dado como morto… Mas acho que não

sinto tanta raiva mais.


— Quer me contar o que realmente aconteceu?

— Não quero — falo, abrindo um sorriso em seguida

—, mas acho que vou ter que fazer isso, já que é o motivo de
estar aqui.
Dominic não diz nada, ele apenas espera que eu
coloque as ideias no lugar, e comece a falar.

— Miguel era meu melhor amigo, além de meu irmão,


nós trabalhávamos juntos e nos dávamos muito bem, eu era
casado…
— Com a mãe da sua filha?

— Isso, Sofia. Era uma mulher bonita, sua única


qualidade. Nós não tínhamos um bom relacionamento de
verdade, mas aí ela descobriu que estava grávida e pensei
que as coisas fossem melhorar…

— O que aconteceu?
— Voltei pra casa um dia e escutei uma conversa dela
ao telefone, falando com alguém que não iria terminar
comigo para ficar com essa pessoa, ainda que o bebê não
fosse meu.

Como ele não interrompe, imagino que esteja


impactado com a história. Não é do feitio de um psicólogo
ficar opinando ou xingando as pessoas, então ele se

mantém em silêncio.
— Saí de casa arrasado, eu estava muito feliz pelo
bebê — conto, e as lembranças retornam com força —, mas
pelos próximos dias, não disse nada a ela.

— Não contou que sabia?


— Não. Eu queria descobrir com quem ela estava
saindo e decidi ficar quieto. Esperei que ela saísse de casa
para seguir seu carro, ou que desse algum deslize, mas não

aconteceu. Até que no momento em que eu menos


esperava, descobri tudo… — Levo a mão ao rosto, tentando
organizar as memórias em ordem, aquelas que tentei
sufocar por tanto tempo. — Eu queria conversar com
alguém, desabafar sobre o que tinha descoberto e, apesar

de não estarmos tão próximos naqueles dias, resolvi falar


com Miguel. Fui até a casa em que ele morava, a porta
estava destrancada, então eu entrei, como sempre fazia.

Penso ouvir um xingamento e isso me faz sorrir,

mesmo diante dessa merda toda. Nem o psicólogo consegue


se controlar diante da facada que levei.
— Pois é, eles estavam na cama, não estavam
transando ou eu teria arrancado meus olhos, mas ela vestia

só a lingerie e estavam abraçados, conversando e rindo. Um


pós-sexo perfeito.

Abro os olhos e encaro Dominic, ele suspira e abre os


braços.

— Eu não esperava por isso, achei que fosse uma briga


pela empresa ou uma coisa assim. Que merda!

— Uma briga pela empresa não teria nos afastado.

— E como ficaram as coisas depois disso?

— Entrei no quarto, Miguel me viu e se assustou, me


lembro até hoje da expressão de culpa no rosto dele. Sofia
ficou branca feito papel, tinha a questão do status,

estávamos casados, ela grávida e Sofia não queria que a


vida perfeita que tinha montado acabasse assim. Eu bati
nele, Miguel nem revidou, Sofia chorava e gritava… Miguel
pedia perdão e dizia que a amava, que não tinha planejado
aquilo e que sentia muito.

— Você acreditou nele?


Aquiesço, meu estômago está embrulhado, odeio me
lembrar desse dia.

— Eu acho que já sabia a algum tempo que ele estava

apaixonado, eu via o modo como olhava pra ela, sei que não
foi deliberadamente pra me ferrar, ele só foi fraco e não
resistiu. Se fosse comigo e sentisse algo assim por quem
não deveria, me afastaria, Miguel não fez isso.

— Então acha que ele agiu errado, mas que não fez
pra te afrontar…

— Não, ele não faria isso de propósito, apesar de tudo,


sei que ele me amava.

— E a Sofia?

— Ela deve ter ficado em cima dele, provocando e


testando os limites, com certeza não ajudou. Miguel tinha

uns vinte e dois anos, era moleque ainda e deslumbrado.


Claro que isso não o isenta da culpa e Sofia não pode ser a
única culpada nisso, mas sei que a iniciativa partiu dela.
Penso que achava divertido ficar com meu irmão mais novo
nas minhas costas e com certeza ria dele por estar
apaixonado, por acreditar que ela um dia ficaria com ele…

— Miguel foi embora depois disso?


— Ele disse que iria viajar, porque não podia ficar
perto de mim e da nossa família depois do que fez, mas aí
chegou a notícia de que o avião tinha caído.

— E ele mentiu sobre isso.


— Sim, como eu disse, era um garoto e não suportou o
peso das suas atitudes. Só que agora, isso já tem cinco anos,
descobri que o bebê que Sofia disse ter abortado, estava

vivo e abandonado em um abrigo. Minha filha, Maitê.

Ele suspira, pensativo e me pego pensando em como


deve ser uma profissão difícil, ter que ouvir tanta coisa e

tentar se manter imparcial, na superfície.


— E como lidou com isso?

— Fiquei muito mal, as coisas começavam a melhorar


quando isso aconteceu, já tinha anos que eu não saia de

casa, não via as pessoas e nem falava direito com ninguém,


mas Anabela apareceu, começamos a nos envolver e eu
conseguia ver uma luz pra mim, uma saída, e então
descobri sobre Maitê.
— Imagino que deve ter sido muito complicado.

— Foi, mas Anabela me apoiou em tudo, as duas se


aproximaram também e minha filha foi um ponto
importante na mudança que aconteceu em mim. Mas aí
Miguel voltou, e de repente e me vi de volta ao que

aconteceu cinco anos atrás.


— Ele disse por que voltou?

— Quer meu perdão e o da nossa família, cansou de


fugir e de se esconder.

— E você disse não?

— Várias vezes, mas ele não parece querer desistir.


— E como se sente com isso? — Sempre essa maldita
pergunta.

— Porra… Sabe que eu não sei de verdade como me


sinto?
Dominic aquiesce, compreendendo meu dilema.

— Bom, Matteo, nossa sessão está acabando por hoje,


mas acho que evoluímos muito, conseguiu me contar sobre
seu passado e posso ver que está pronto para seguir em
frente. Pense sobre isso essa semana, sobre o que sente com

relação ao seu irmão e vamos conversar sobre depois.


— Já terminou? Não vai ler uma das suas reflexões

hoje?

Ele ri e destampa o pote sobre a mesa, de acordo com


Dominic a ideia é que o próprio paciente pegue o bilhete,
sortido e leia, mas como nossas conversas são online, isso

não é possível. No entanto, quando ele lê as palavras


escritas no pequeno papel, confirmo a teoria que venho
construindo, de que esse pote é meio mágico ou vidente,
porque só isso justificaria a pontaria certeira que as

mensagens têm.
"Se o futuro lhe sorrir, sorria de volta. Se o passado te
chamar, apenas ignore."
Finalmente chegou o dia. Estou mais nervosa do que
no ultrassom, porque agora sei que vamos descobrir o sexo.

Não é importante de verdade, ser menino ou menina, o mais

relevante é o fato de que passamos o primeiro trimestre e a

gravidez agora é mais estável, o que me deixa muito feliz,


ainda assim, estou ansiosa para saber.

Minha barriga também está aparecendo mais agora,

não é enorme, mas já despontou e é visível que estou

grávida. Me sinto bem com isso.


— Ahhh, Bela! Eu amei o vestido — Catarina elogia,

passando pela porta.

Julieta está com ela e leva a mão até o rosto, em um

gesto de surpresa.

— Está tão maravilhosa! Não vejo a hora de ver sua


barriga enorme, você pode por favor aproveitar que seu

homem tem dinheiro e fazer um ensaio lindo de gestante?

— Ju! Quero sim fazer um ensaio desses e registrar o

momento, mas ele não é meu homem — respondo, sem

jeito por estar perto de Catarina —, é só o pai do meu filho.


— Só — Catarina repete, frisando e as duas começam

a rir —, até quando vão ficar enrolando pra assumirem que

se amam e tudo mais?

— Falta de amor não é o problema aqui, quero ter

certeza de que ele sabe o que quer e que não vai voltar

atrás — respondo, me explicando.

— Sabe de uma coisa? Você tem razão, mas sei que

ele vai te provar isso muito em breve — ela diz, sorrindo.

— Agora vamos?

Aquiesço, concordando com a chamada de minha

irmã.
— Vamos!

Desço com as duas as escadas, e saímos para o jardim

aos fundos da casa. O espaço foi tomado por muitas flores —

além das que já estavam ali, plantadas —, algumas mesas

foram espalhadas pelo lugar e nossas famílias estão

reunidas e já sentadas.

À frente de todos há uma mesa grande, cheia de


doces e bebidas coloridas, tudo em rosa e azul e, no centro

dela, um bolo grande, que mescla as duas cores na

cobertura.

Matteo está usando uma camisa rosa e jeans azul, e

parece mais informal do que já o vi em todo esse tempo,

nem mesmo os cabelos estão penteados de maneira tão

austera, a aparência confere a ele um ar mais leve.

Nossos pais estão sentados lado a lado e uma equipe

de buffet trabalha servindo a comida, já que hoje os

funcionários da casa também são nossos convidados.

— Como vai ser? Vamos cortar o bolo? — pergunto a

Catarina, tentando imaginar o que ela planejou.

— Muito comum, Anabela. Deveria saber que eu seria

mais criativa…
— Huum… Uma caixa com balões, então?

— Não, mas até gosto da ideia. — Ela me encara com

os olhos brilhando, cheios de expectativa. — Pedi pra todos

se vestirem de acordo com suas apostas e até fiz umas

tatuagens para se marcarem com o que acham que vai ser.

— Meu Deus! — exclamo, vendo a tatuagem no pulso

de Julieta. Está escrito: “É uma menina”.

— Aí você e o Matteo vão até à frente e serão feitas

perguntas para cada um, sobre o outro, se acertarem,

passamos adiante, e assim seguimos até um de vocês errar.

Quem errar leva torta na cara e dentro da torta temos o

corante, vão descobrir assim, não é demais?

— Vai lambuzar nosso rosto com a cor certa, é isso? —

tento entender.

— Sim! Agora vai, estamos todos esperando.

Acho a ideia no mínimo suja, mas não me nego a

participar, claro. Apesar disso vai ser divertido. Sigo até

onde está Matteo, mais à frente, conversando com Greg, e

ele sorri ao me ver, está louco para agilizar as coisas

também e descobrir logo, provavelmente mais ansioso que

eu.
— Pronta?

— O máximo que posso estar.

— Então vamos — Greg chama, abrindo um sorriso

empolgado.

— Você vai fazer a brincadeira? — Estranho a escolha,

mas ele parece mesmo preparado para isso.

— E acha que eu perderia essa oportunidade? Estou

torcendo pro Viturino errar antes, então não me decepcione,

Anabela.

Matteo só parece entender de que se trata quando vê

as tortas enfileiradas sobre a mesa, mas não acho que se

incomode.

Paramos os dois um em frente ao outro e nossas

famílias nos observam, animados. Maitê está no colo do meu

pai, sondando tudo com curiosidade.

— Vamos lá, vou fazer uma pergunta para cada e,

depois, digo se acertaram ou não. Quem errar, já sabem,

torta na cara…

— Tá bom — concordo, o instigando a prosseguir.

— Viturino, a Anabela quebrou um dente quando

criança. Onde isso aconteceu e quantos anos ela tinha?


— Merda… Nunca me contou essa história. — Matteo

me encara com os olhos acusatórios e prendo os lábios,

contendo o riso porque sei que ele vai errar. — Bom, tinha

uns cinco, suponho. — Ele chuta certeiro, provavelmente

porque se fossem dentes permanentes eu teria um implante

ou algo assim hoje em dia.

— E o lugar? — Greg instiga, nada satisfeito com o

acerto dele.

— Hum… um parquinho?

Greg não se digna a responder, mas se vira para mim.

— Anabela, quando criança Matteo sonhava com outra

profissão. Que profissão era essa?

Ah, meu Deus! Como vou saber?

— Acho que ele queria… ser médico?

O escocês sorri, contente em nos assistir errar as

respostas. Ele pega uma torta em cada mão e as ergue até a

altura do próprio rosto.

— Anabela, onde você quebrou o dente? — pergunta,

se dirigindo a mim agora.

— Na igreja, caí do banco — conto, e Matteo meneia a

cabeça.
Coitado, quem poderia imaginar?

— E Viturino, qual a profissão que queria seguir

quando criança?

— Chefe de cozinha, na minha cabeça eles comiam a

hora que quisessem e antes de todos os outros — Matteo

responde, fazendo com que as demais pessoas também

caiam na risada.

Greg não se faz se rogado e vira as tortas sobre os

nossos rostos simultaneamente. Demoro um pouco para


conseguir enxergar, ouço a algazarra e as pessoas

comemorando, mas Matteo e eu levamos alguns instantes


para nos livrarmos do glacê sobre nossos olhos e

conseguirmos enxergar a cor no rosto do outro.


Quando vejo as bochechas e a testa dele cobertos de

azul, também solto um grito e começo a pular,


comemorando. Matteo percebe no mesmo instante e

comemora junto comigo, a verdade é que por mais que o


sexo não importe, temos Maitê e será incrível viver a

experiência com um garotinho também.

Matteo me pega nos braços e me gira no ar, ouço os

aplausos dos outros, mas estou concentrada no homem que


eu amo e que me proporcionou esse momento, essa
sensação indescritível de realização.

Para completar, ele passa o dedo na minha bochecha


e leva ele até a boca, sorrindo em seguida.

— Tem gosto de felicidade, Bela.

Ele se inclina um pouco, como se fosse me beijar e


sinto meu coração acelerar no peito, minhas mãos agarram

a camisa dele sobre os ombros e umedeço os lábios, pronta


para aceitar o beijo, apesar de todas as minhas ressalvas
anteriores.

Matteo abre um sorriso de canto, que faz com que


meu estômago fique gelado, estou sonhando com a boca

dele na minha outra vez, mas ele simplesmente me coloca


no chão e se afasta, fazendo com que eu fique em dúvida

sobre o momento ter mesmo acontecido, ou ter sido fruto da


minha imaginação desesperada.

— Você disse que não quer voltar pra mim, Bela. Agora

vai ter que pedir — provoca.


Esse idiota, ele sabe muito bem o que está fazendo.

— Disse mesmo, não sei sobre o que estamos falando.


Depois disso damos a volta atrás da mesa e, juntos,
cortamos o bolo, que tem o recheio azul. É só o primeiro

pedaço, para as fotos, porque depois a equipe do buffet


assume e começam a distribuir o bolo e os docinhos para

todos.

Helder parece exultante, ouço daqui sua voz alegre,


contando sobre como ajudou a criar Matteo, Catarina e
Miguel e agora vai ajudar com Maitê e o nosso bebê.

Matteo está sorrindo, escutando o que ele diz, mas


quando ergue os olhos se depara com Miguel, que acaba de

chegar, um pouco atrasado, e seu sorriso desaparece


devagar.

— Viturino, vamos jogar sinuca? Falta um e vai ser

você. — Greg para ao nosso lado e abraça Matteo pelo


pescoço.

— Sinuca? — ele pergunta, sem entender direito. —


Eu não tenho mesa de sinuca.

— É, eu trouxe a mesa — Greg fala, como se aquilo


não pesasse um absurdo, deve pesar uma tonelada.

— Jura? Cara, tem uma vida que não jogo!


Ele não aceita de primeira, mas por suas palavras e

pela expressão, é bem óbvio que quer ir. Ele se vira para me
encarar, aguardando que eu diga algo, mas ao contrário do

que imagina, esses pequenos momentos me deixam ainda


mais contente, percebo o quanto ele está melhorando, está

mais sociável e se divertindo mais.

— Vai lá, vou conversar com as nossas mães um

pouco.
— Então vamos… — Greg faz menção de o arrastar,

mas Matteo olha para onde Yan está parado, conversando


com Alberto e depois desvia os olhos para Miguel, sentado

sozinho em um canto.

— Quem vai jogar?

— Alberto, Yan, você e eu.

— Tá bom, chama o Miguel — ele diz, e sua voz não


passa de um sussurro.

Greg parece tão espantado quanto eu.

— Sério?

— É, o cara vai ficar aí sozinho? Pode chamar.

— Certeza? Não vai brigar com ele, nem nada assim?


— Não — Matteo ri da preocupação do outro —, vou

me comportar, mãe.

Os dois saem de perto de mim e Matteo ruma para


onde estão os outros, enquanto Greg vai na direção de

Miguel.
Assisto ao rosto dele se acender com o convite e,
apesar de tudo, chego a sentir pena. Deve ser difícil lidar

com o que fez e encarar a família, mas, ainda que haja


bastante resistência por parte de Matteo, ele parece

disposto a insistir e ficar.

— Oi…
Eu me viro e encontro Julieta parada atrás de mim.

— Oi!
— Vai ser um menininho, Bela! Ahhh que coisa mais

fofa!

Sorrio, animada com a novidade.


— Estou tão feliz, Ju! Nem acredito que as coisas estão
dando tão certo e se ajustando, devagar.

— Também estou, sua futura sogra e mamãe estão

comemorando ali, pegaram uma garrafa de champanhe e


nem quero ver o que vai ser de nós mais tarde, pra aguentar
as duas bêbedas falando sem parar.

— Deus nos ajude.


— E pra onde foi meu novo cunhado favorito?

O comentário me arranca uma risada alta.


— Então agora você gosta dele assumidamente? Achei

que ainda estava naquele plano de fingir que detesta o


Matteo e pelas costas dele tentar me convencer a voltar pra

ele.

— Isso era até ele me dar uma caixa de brigadeiros,


me comprou com chocolate.

— Típico dele.

— Mas também pediu desculpas, então pude aceitar o

suborno sem me sentir mal.


Meneio a cabeça, esses dois acabam comigo.

— Ele foi jogar sinuca em algum canto, com o Greg e


os outros.

Julieta arregala os olhos e se aproxima um pouco mais.

— Greg é aquele deus que fez a brincadeira da


revelação, não é?

— Julieta!
— O quê? O homem é um espetáculo, você não pode
fingir que não viu só porque está apaixonada. Anabela, eu,

aquele homem, um cobertor pra forrar o chão e uma jarra de


água? Passaria muito bem.

— Mas que… Você é a virgem mais safada da história!


— Sou, mas por falta de opção, fico sempre em casa

por conta da mamãe, mas vou dar um jeito de mudar isso


logo, você vai ver.

— Julieta! Não pode apressar as coisas assim, uma

hora vai conhecer alguém e…


— Nem vem com esse papo. Em que século acha que

estamos? Não estou falando de me apaixonar, você deu


sorte, mas pode demorar uma eternidade pra acontecer

comigo, estou falando de sexo, de saber como é, só isso.

— Eu sei, mas não pode ser com qualquer um


também, é um momento meio difícil e…
— Ele é solteiro?

— Quem? — pergunto, tentando acompanhar o

raciocínio dela.
— Como quem? O escocês!
— Ah, meu Deus! Ele é solteiro sim, mas é muito mais
velho que você e, de acordo com o Matteo, não está

buscando um relacionamento.

— Eu também não, é perfeito e ainda é experiente.


— Para de falar bobagem.

— Bom, sempre tem o Miguel — ela diz, como se o

considerasse uma opção.


— Pelo amor de Deus! Fica longe do Miguel, agora que
ele está se reestabelecendo aqui, com a família, não vai me
causar mais confusão.

Ela ri, se divertindo às minhas custas.


— É brincadeira, ele não faz o meu tipo, quero o Greg
mesmo. Você vai me ajudar?

— Claro que não vou!


Para minha sorte, Catarina escolhe esse momento
para se aproximar. Ela sorri e me abraça, comemorando a
novidade, e Julieta é obrigada a encerrar o assunto

totalmente absurdo.
Greg está fazendo par com Miguel e Alberto comigo,
Yan decidiu que vai entrar na próxima, quando um de nós
desistir. Quando Greg encaçapa uma bola e comemora,
Alberto bate o taco na mesa, irritado.

— Mas que droga! Eu não sou bom nisso — reclama —,


devíamos jogar baralho.

— Não sabia que era um mau perdedor, cunhado —


Miguel fala, rindo, e Alberto bufa.

Acabo rindo, porque eu também não conhecia esse


lado de Alberto, sempre educado e prestativo, mas pelo jeito
é competitivo.

— Calma, deixa eles contarem vantagem, vamos virar


o jogo — prometo, vendo Greg errar a bola seguinte.

É a minha vez. Apoio o taco sobre a mesa e miro com


calma, antes de acertar em cheio meu alvo e encaçapar a

bola.
Alberto comemora, mas não me distraio, já analisando
meu jogo à procura da próxima bola.
— Tá todo felizinho, hein, Miguel? — Mesmo de cabeça

baixa, mirando, sei que foi Alberto quem falou. — Aposto


que é porque o Matteo te chamou pra jogar.

— Cala a boca, porra! — sibila Miguel.


Sinto vontade de rir da discussão idiota deles, mas me

controlo e mantenho a pose. Acerto a bola e depois o


abdômen de Greg com a ponta do taco.

— Não comemore vitória antes da hora e, você —


aponto para Alberto —, não enche o saco ou eu te

desconvido.
Os outros três começam a rir da careta que ele faz e o
jogo segue assim, permeado por piadinhas e brincadeiras da
quinta série que nunca nos abandona. É a primeira vez que

fico perto de Miguel desde que ele voltou e não sinto ódio ou
vontade de sair de perto imediatamente, estou me
divertindo até.

— E aí, Viturino? Já se resolveu com a sua garota? —

Yan pergunta, curioso.


Ele se jogou no sofá que colocaram no canto da
academia e está com uma cerveja nas mãos. Os aparelhos
foram empurrados para o canto.
— Estamos quase lá, me dê mais um ou dois meses.

— Mas por que isso? — Greg quer saber. — Já deu pra


ver que você está indo bem, cuidando dela e tudo, acho que
está faltando atitude, mané.
— Não é isso, eu sei que Anabela está bem mais

disposta do que quando eu a trouxe de volta, mas não quero


só chegar e falar meia dúzia de palavras, quero acompanhar
a gestação enquanto ela vai me observando e percebendo
que não estou brincando, fazer uma construção mais lenta

pra uma coisa que vai durar pra sempre.

— Caralho! Ele amadureceu, gente.


Encaro Greg com uma leve vontade de socar a cara
dele, é, meu amigo, claro, mas ele consegue ser chato pra

cacete.

— Imbecil. E já que fica me enchendo, saiba que


quando estiver tudo certo, vou aceitar seu convite e ir com

minha família passar uns dias na Escócia, quero só ver se vai


estar de pé a proposta.
— Claro que vai, uísque não vai te faltar, prometo.

— Já é alguma coisa.
— E você, Greg? Desde que te conheci através dos

Viturino, nunca te vi com mulher nenhuma — Alberto sonda.

Isso faz bastante tempo, na verdade. Alberto era meu


amigo na infância e na adolescência, sua família foi vizinha

da minha por muitos anos, quando comecei a estudar, não


tinha mais tanto tempo e quase não o via mais, foi aí que o
safado se aproximou da minha irmã e não desgrudou mais.
— Larga de ser mentiroso, já me viu sim, com várias —

Greg retruca, contando vantagem.

— Que você nem se deu ao trabalho de apresentar.


Estou falando de uma namorada de verdade, nunca teve
uma.

— Eu não namoro, o Matteo nunca te contou? —


Alberto acerta a bola dessa vez e me deixa mais perto da
minha vitória.

— Lá vai ele começar com essa história…

Yan ri, balançando a cabeça.

— Não adianta, Matteo. Ele acredita mesmo nessa


merda.

— Que merda? — Miguel é quem pergunta, é a vez


dele agora de jogar e está reclinado sobre a mesa, mirando
seu alvo.

— Os Mackintosh são amaldiçoados — Greg começa a


contar —, desde nossos tataravôs, se não antes.
— E que maldição é essa? — Alberto parece segurar a

risada.

— Todas as pessoas da família que se casaram foram


infelizes, os relacionamentos terminam sempre em divórcio,

morte ou traição. Não é que não exista amor, é que a


maldição sempre age e ferra com tudo.
Alberto olha dele para mim e depois para Yan.

— É sério que ele acredita nisso?

— Eu sei que parece idiota — Greg retoma a


explicação —, mas se tivessem visto tudo que eu vi,
entenderiam meu ponto. Com nossos pais não foi diferente,
nem com nossos avós e menos ainda com minha tia que

resolveu se casar porque achava que isso era bobagem.


Todos se ferraram, então decidi que vou viver pegando
várias, não me apegando a nenhuma e me esquivando da
porra da maldição.

— Cara, você é doido. — Nem Miguel dá crédito a ele.


— Quero só ver como ele vai convencer o vovô disso —
Yan fala, ainda se divertindo às custas do irmão.

— Como assim? Seu avô não foi amaldiçoado

também? — pergunto, achando graça na história que já ouvi


dezenas de vezes.
— A maldição é por parte de pai, a família da mamãe
não entende nada sobre ela e, agora, o Greg é o herdeiro da

empresa e nosso avô quer que ele case.

— Com quem?
— Ah, ele não liga muito pra isso. Está ficando velho e
quer um herdeiro para a empresa, coisa de gente das

antigas e que preza por isso de deixar os negócios na


família.

— Tá ferrado, então, Greg — respondo, encarando meu


amigo.

— Eu vou achar uma solução, talvez enrole ele até o


final. Ou então arrumo uma namoradinha pro Yan e jogo a
empresa pra ele.

— Nem vem, já disse que vou trabalhar com a


destilaria, você que se vire pra enganar o velho.
— Não quero falar disso hoje, é um dia feliz, o Matteo
vai ter um Matteozinho, estamos nos divertindo aqui, pra
que falar nessa bobagem? Deixem os problemas pra

amanhã.

E ele tem razão. Minha filha está comigo, a mulher


que eu amo também, e vamos ter um garotão. As coisas não
poderiam ser melhores.
Deslizo o rolo pela parede outra vez e uma camada de
tinta verde menta preenche o espaço em branco à minha

frente, estou de pé em cima da escada, pintando o

quartinho do bebê.

Anabela e eu escolhemos um papel de parede que

retrata os animaizinhos da selva na internet para cobrir uma


das paredes e decidi fazer, eu mesmo, todo o trabalho com

a pintura, a colagem e até a montagem dos móveis.

Ela achou engraçada minha decisão, justamente


porque não a deixo fazer nada sozinha e sempre alego que
podemos pagar alguém que faça, mas isso porque prefiro

que não faça esforço, ainda que o maior perigo tenha

passado. Eu, por outro lado, não pude participar da gestação

de Maitê e quero aproveitar cada oportunidade agora,

fazendo o que for possível por conta própria, criando


memórias e participando.

Tirei a camiseta, para não manchá-la com tinta e já

estou acabando a primeira demão. Pela janela, vejo Maitê

correndo atrás de uma bola lá fora, com a Suzi, e ao me ver,

ela acena para mim de onde está.


— Está ficando tão lindo! — A voz de Anabela me pega

de surpresa e me viro na escada para vê-la.

Agora, com dezesseis semanas, sua barriga já está

bem visível. Ela está vestindo um vestido florido, rodado e

curto, aproveitando o verão e as temperaturas mais altas na

serra, além do calor próprio da gravidez. Seus cabelos estão

presos em um coque no alto da cabeça e a cada dia que

passa, ela parece ficar mais linda.


— Também estou gostando muito — respondo,

analisando o trabalho.
— Você está todo sujo de tinta! — Anabela aponta o

dedo para as manchas em meu peito, e não consigo evitar

um sorriso de provocação.

— E você está olhando muito.

A verdade é que já faz tempo que ela retornou, e

durante algumas semanas lutei para reconquistá-la com

meus gestos e com paciência, ciente de que, mesmo que


estivesse disposta, fisicamente Anabela e eu estávamos

restritos, com os riscos da gravidez não podíamos ir além

nem mesmo que estivéssemos juntos, de fato.

Mas agora, o médico liberou as atividades sexuais, eu

estava junto na consulta quando ele disse isso e, desde

então, não consigo pensar em outra coisa. O celibato e essa

pequena distância entre nós estão consumindo todos os

meus pensamentos.

Anabela dá de ombros, não se importando por ser

pega em flagrante.

— Estou olhando mesmo, você parece um modelo de

cuecas aí em cima, e não sou cega — ela diz, fazendo com

que eu me lembre da nossa primeira conversa, ou a


segunda, se uma mulher atirando coisas e gritando puder

contar como a primeira.

Desço os degraus da escada e pego o pincel sujo sobre

o jornal.

— Para parecer um modelo de cuecas eu deveria estar

usando cueca, não acha?

Anabela segura uma risada, mas volta logo a

personagem sedutora e atrevida.

— E não está usando?

Fico um pouco confuso com a pergunta, e Anabela

começa a rir descontroladamente, ela se apoia em meu

ombro com uma mão e segura a barriga com a outra, me


fazendo sorrir, amo essa sua versão grávida.

— Estou, é claro, sua doidinha. Quis dizer que deveria

estar usando só cueca e você entendeu.

— Sim, eu entendi. — Ela ainda está tentando se

recuperar da crise de riso.

— Você estragou minha performance, inclusive. Era

pra ser um flerte e virou piada — falo.

De repente, Anabela arregala os olhos e o sorriso em

seu rosto desaparece, meu coração dispara imediatamente


e seguro seus braços. Depois dos sangramentos e da

ameaça de aborto, me tornei um pouco paranoico com essas

suas reações.

— O que foi, Bela?

— Ele se mexeu — ela fala e só então abre um sorriso

nervoso. — Ah, meu Deus! Ele se mexeu mesmo!

Relaxo imediatamente, graças a Deus está tudo bem

com os dois.

— Sério? — A novidade me deixa animado, talvez eu

também possa sentir. — Como foi?

— Eu já havia sentido uns tremores, mas dessa vez foi

mais perceptível. — Ela fica parada, como se qualquer

movimento pudesse fazê-lo parar. — De novo! — Anabela

começa a sorrir e pega minha mão, a colocando sobre sua

barriga, abaixo do umbigo, meio de lado.

Nós dois ficamos nos olhando por alguns segundos

enquanto esperamos em silêncio, e então acontece. É

surreal!

— Mexeu! — Nós falamos juntos. Isso é perfeito!

Trago Anabela para perto de uma cadeira e me sento

nela, depois envolvo sua cintura, apoiando minha cabeça no


exato local onde o sentimos segundos antes.

— Oi, meu amor, meu filho, aqui é o papai. Você está

me ouvindo aí? — pergunto. Anabela começa a rir,

provavelmente me achando um bobo. — Eu te amo muito e

sei que é uma delícia ficar assim, juntinho da sua mãe,

também amo a sensação, mas estou muito ansioso pra te

ver.

Sinto o toque dos dedos de Anabela por entre os fios

do meu cabelo, e levanto meu rosto para encará-la. Ela é


perfeita, e não aguento mais esperar pelo momento certo,

nada pode ser melhor que isso.

Eu me levanto devagar, temendo a assustar, e seguro

seu queixo, trazendo seu rosto para mais perto. Não consigo

mais resistir a isso, não consigo mais evitar e espero que ela

esteja pronta, porque estou prestes a me arriscar de novo.

Anabela não faz menção de se afastar, ao contrário

disso, ela fecha os olhos e seus lábios entreabertos são o

convite para os meus. Nós nos beijamos, sem pressa,

desfrutando da sensação de completude que envolve nossos


corpos.
Seguro sua nuca e avanço, indo mais fundo, porque

estive guardando esse desejo por muito tempo, minha

língua desliza por entre seus lábios e ela espalma as mãos

em meu peito, aceitando o beijo. Ouço seu suspiro e me

sinto enrijecer. Droga, pareço um menino de treze anos, mas

tem meses que não a toco.

Estou prestes a erguê-la no colo e a levar para a cama,

mas ouvimos passos correndo pelo corredor e nos afastamos

instantes antes de Maitê entrar correndo no quarto. Anabela


morde os lábios e respira fundo enquanto me viro de costas,
andando sem rumo. Maitê olha de mim, para Anabela,

desconfiada. Essa menina é muito esperta.


— O que aconteceu? — ela pergunta.

— Nada, só estamos conversando sobre o quartinho do

seu irmão — ela explica.


— Ah, tá! — Maitê coloca as mãos na cintura e anda

pelo quarto, observando a pintura como se fosse expert no


assunto.

Encaro Anabela por sobre o ombro e ela desvia seus


olhos dos meus, constrangida. Essa mulher nem deve ser

real.
— É. Está muito bonito e acho que o Arthurzinho vai
gostar.

— Arthurzinho? — pergunto, me surpreendendo com


sua resposta.

— É, papai. Eu gosto de chamar ele assim por


enquanto, já que ainda não tem nome — ela explica —, não

ia gostar que me chamassem só de menina, ter nome é


legal.

Encaro Anabela por alguns segundos e ela abre um


sorriso, assentindo em seguida.

— Por mim, tudo bem, gosto de Arthur.

— Arthur… — repito, considerando a pronúncia forte.


— Arthur Viturino, está decidido, então.

Maitê começa a pular.

— Sério, papai? Pode ser Arthur? — ela pergunta,

empolgada.
Pego minha pequena no colo e Maitê enlaça seus

bracinhos ao redor do meu pescoço.

— Pode, meu amor! Nós adoramos — falo, beijando


sua bochecha com carinho.
Anabela se aproxima de nós e passo o braço ao redor
de sua cintura, fazendo com que faça parte do nosso abraço.

Beijo sua cabeça com carinho, e Maitê se estica para abraçá-


la também.

Depois de tantos dias difíceis, ser recompensado com

momentos felizes como este me faz valorizá-los ainda mais.


Maitê leva o indicador aos lábios, em um gesto que
mostra que está pensando.

— Ou pode ser Zetinho — diz, como se fosse a melhor

ideia do século. Acho que agora que sabe que demos a ela
essa liberdade, um leque de opções se abriu em sua mente,

e ela vai tentar tirar proveito disso.


Anabela e eu nos entreolhamos e balançamos a

cabeça juntos.

— Não, não, Arthur já está bom.

Maitê se contenta no fim das contas, meu coração está


transbordando de alegria e sei que nunca, em toda minha

vida, experimentei tamanha felicidade.


Entro no escritório e tranco a porta por dentro. Por

mais feliz e apaixonado que eu esteja, ainda não estou nem


perto de ser um cara romântico e especialista em surpresas,

mas Anabela merece e quero que ela se sinta especial, por


isso, ligo para a pessoa mais romântica e criativa que

conheço: minha irmã.

Cat atende no terceiro toque.

— Boa tarde, maninho.

— Boa tarde, Cat. Como vocês estão? — Me sento na

poltrona atrás da minha mesa.


— Estamos muito bem. Otávio está muito esperto,

virando sozinho na cama.


Penso que daqui a alguns meses seremos Anabela e
eu contando vantagem por um simples movimento novo do

Arthur. Pais são assim, faço o mesmo com Maitê, que


começou na escola agora e pra mim já é superdotada.

— Um prodígio esse meu sobrinho — falo, trabalhando


no ego de Catarina.

— Mas e a Maitê, Anabela e o bebê?


— Tudo perfeito, Cat, as coisas estão tão boas que fico

até desconfiado.
— Ai, para com isso! Depois de tanto sofrimento, você

merece isso e as coisas vão continuar assim eternamente.


Encaro a propriedade pela janela e o céu azul do lado
de fora. Estou decidido, quero reaver a minha vida, ou

melhor, quero viver uma vida feliz de um jeito que nunca


tive, ao lado da mulher que amo e dos meus filhos. Nenhum
sentimento ruim vai me aprisionar de novo.

— Catarina, eu quero me casar com a Anabela — digo,


soltando logo de uma vez.

Catarina dá um grito do outro lado da linha e preciso

afastar o celular da orelha ou vou encerrar a ligação com o


tímpano estourado.

— Sim, sim, sim!

Começo a rir da empolgação dela.

— Ótimo que concorde com isso, mas não precisa


aceitar meu pedido. Preciso da sua ajuda.

— Pode contar comigo, é claro. Quer preparar uma


surpresa?
— Isso. Quero que seja especial, um momento que ela
jamais vai esquecer.
— Um jantar, talvez? — Cat sugere. Pelo jeito, está
adorando isso, não que eu esperasse outra coisa.

— Simples demais, Cat. Jantamos juntos todos os dias.


— Então você pode fazer o pedido em algum outdoor!

Aí leva ela e passa bem na frente.


— Aí já é exagerado demais, Catarina. — Ela tem cada

ideia… — Quero que seja restrito, íntimo, mas não apenas


um jantar, entende? Especial e marcante, mas não ridículo.

Catarina fica em silêncio por alguns segundos, acho


que está pensando.

— Tudo bem. Vou pensar em alguma coisa e


conversamos depois, pode ser?
— Certo. Obrigado!

— Sempre às ordens.
Catarina desliga, e começo também a pensar em

alguma coisa que Anabela vá gostar muito, uma coisa


nossa, que demonstre todo meu amor por ela. Algo que seja

a nossa cara.

Então tenho uma ideia. E estou ansioso para colocar

em prática o quanto antes.


Estico minhas costas sobre o colchão e movimento

meus ombros, girando devagar. Sinto os músculos tensos e


uma dor na lombar que arde sem pausa. Está incomodando

muito.

Matteo entra no quarto e fecha a porta atrás de si.

Seus olhos encontram os meus enquanto ele se aproxima da


cama, e um arrepio percorre todo meu corpo.

Ele põe Maitê para dormir todas as noites e depois


disso vem para a cama. Nós conversamos, assistimos a
algum filme, ouvimos música ou lemos um para o outro,

mas hoje tudo está diferente, porque depois de todo esse


tempo resistindo ao desejo, nós nos beijamos de novo e as
coisas teriam ido além se Maitê não tivesse chegado.

— Maitê disse que quer aprender a ler, para contar

histórias para o irmão — ele comenta, erguendo os


cobertores para se cobrir.

— Ela é maravilhosa. Não vai demorar, está se saindo

muito bem na escola.


— Está mesmo, o orgulho da família.

Sorrio diante do tom dele, fico tão feliz em assistir ao


amor e à relação deles crescer a cada dia.

— Sabe que você é um pai babão? Maitê e o bebê têm


sorte.

— Têm mesmo, uma mãe como você…

Sorrio ao perceber que indiretamente ele me incluiu


como mãe de Maitê, e não há nada que eu queira mais, é a
família que o acaso me deu e quero mantê-la para sempre
comigo.

— E um pai como você — revido, apalpando meus


ombros em busca de alívio.
Ele se aproxima de mim na cama e repousa sua mão
sobre a minha.

— O que foi? Está com dor?


— Sim, bastante. Não acho que vou conseguir dormir.

Matteo se aproxima ainda mais e, com delicadeza,

desce as alças da minha blusa, me causando arrepios.


Prendo a respiração por alguns segundos, porque seus
dedos sobre a minha pele são como fogo, incendiando por

onde passam.

— Vou te fazer uma massagem. Deita direitinho…


Faço o que ele pede, me deitando de lado por causa
da barriga e Matteo começa a apertar meus ombros,

massagear minhas costas, descendo lentamente pela linha


da coluna. Relaxo instantaneamente sob seus toques firmes
e me permito aproveitar o momento, fecho os olhos, tombo
a cabeça e me entrego nas mãos dele.

Matteo acaricia minha nuca e minha cabeça, por entre


meus cabelos soltos, depois ele pressiona os polegares pelo
meu pescoço e me sinto flutuar. Devagar, ele desce outra
vez e coloca firmeza na minha lombar, me fazendo relaxar,

suas mãos sobem lentamente, por toda a minha coluna e


suspiro, sem conseguir me conter.
— Está gostoso? — ele pergunta ao pé do meu ouvido,
me causando outro arrepio.

— Maravilhoso.
— A dor passou?
Dor? Eu já nem me lembro mais disso, o que sinto

agora é um pulsar constante entre as minhas pernas. Eu


poderia culpar os hormônios por esse fogo todo, mas a
verdade é que cultivamos essa tensão por tempo demais e
agora, estamos prestes a colidir ao menor contato físico.

— Ainda não — minto —, por favor, continue.


Matteo puxa minha blusa até o pescoço e faz com que
eu me erga para a arrancar, sei muito bem que o que
começou como uma massagem despretensiosa, não vai

terminar assim. Ele aproxima sua boca da minha nuca e


deposita um beijo lento ali. Um calafrio me faz baixar a
guarda, e Matteo me beija outra vez no pescoço, e outra no
ombro.

Sua mão, que agora está segurando meu pescoço


contra sua boca, desce até estar sobre meus seios. Suas
carícias são intensas e demonstram a urgência de seu
desejo por mim.

— Eu não aguento mais dormir do seu lado todas as


noites sem poder te tocar assim — ele fala, mordiscando
minha orelha.
Matteo segura minha cintura e me ajuda a me virar.

Seus olhos recaem sobre meus seios, que agora estão bem
maiores, e a forma como ele me olha me faz sentir perfeita.

Matteo beija minha boca e suga meu lábio,


mordiscando com delicadeza. Em um impulso desesperado

ele me leva para o seu colo e envolvo minhas pernas ao


redor de sua cintura. Santo Deus, como eu quero este
homem! Matteo abocanha um de meus mamilos, agora que
estão tão perto de sua boca, e depois dá a mesma atenção

ao outro. Eu o sinto tão duro sob as camadas de roupa que


ainda nos separam que não posso mais resistir, deslizo
minha mão sobre seu abdômen até conseguir o tocar.
Envolvo sua rigidez em minha mão, sob as roupas

mesmo, e faço movimentos afoitos de vai e vem, sem


interromper nosso beijo. Matteo segura minha mão e a
direciona para dentro da calça que está usando. Eu não
preciso de um convite maior que esse e sinto uma pontada

de desejo em meu âmago quando encontro a pele macia.

Ele volta a me beijar, mas suas mãos passeiam pela


minha cintura, na linha da calcinha. Quero o mesmo que
ele, por isso levanto um pouco meu corpo, para lhe dar
acesso. Nós ficamos ali, nos tocando e nos beijando, em

uma dança ritmada e excitante, a cada minuto indo um


pouco mais além.

Matteo me deita na cama e se encaixa entre as

minhas pernas. Ele me encara com seus lindos olhos azuis,


brilhando em desejo, e seus cabelos caem sobre seu rosto,
um pouco bagunçados. Sinto minha boca se encher d’água
apenas por vê-lo assim, ele me fita como se quisesse me

devorar. Lentamente, retira minha calcinha e depois Matteo


desce o corpo, até que seu rosto esteja entre as minhas
pernas, e estremeço de ansiedade.
Ele abre minhas pernas e as afasta, e devagar leva a
língua até minha entrada e me lambe, um gemido me

escapa. Matteo vai ainda mais fundo e me chupa com


vontade, mordiscando, beijando e me enlouquecendo.

Sua atenção está toda focada em mim, ele continua

me chupando por um bom tempo e, quando estou prestes a


gozar, Matteo se ergue nos braços e sobe, voltando sua
atenção para devorar meus seios e depois segue para os
meus lábios.
Ele usa as mãos habilmente, tocando meu corpo
enquanto me beija e conduz seu membro duro para o
posicionar entre as minhas pernas.

Matteo leva o pau para dentro de mim, devagar,

mergulhando em meu corpo. Fecho os olhos quando o sinto


dentro de mim, é tão bom que um gemido me escapa, faz
tanto tempo que não o tenho assim… Seu pau desliza mais
para o fundo e me seguro ao máximo para não chegar ao

clímax em questão de segundos.


Matteo se mantém parado por um momento, me
encarando, ele acaricia meu rosto e depois beija minha
boca, antes de se afundar em mim outra vez. Seus

movimentos são ritmados e ele entra e sai de dentro de


mim, me levando à beira do penhasco.

— Minha Bela… Não vai fugir de mim outra vez, vai?


Meneio a cabeça, sem conseguir sequer formular uma

frase coerente.

— Nunca mais? — ele insiste.


— Nunca. Eu amo você, Matteo.

Seu sorriso poderia iluminar o mundo inteiro, mas o


que importa é que ele ilumina o meu mundo, tudo que eu
sou se acende quando Matteo sorri, quando percebo que as
trevas se foram, dando lugar à luz.

— Também te amo, linda.

Ele fica mais intenso depois disso, o vem e vai me


deixa mais molhada, e Matteo desliza ainda mais
facilmente. Sinto o êxtase crescer, se acumular dentro de
mim, como se eu fosse uma represa, antes contida, e que

agora transborda sobre ele.

Matteo transborda comigo.


Minha sessão com o psicólogo hoje é pela manhã,
então me levanto e deixo Bela dormindo na cama. Tivemos

uma noite fantástica e minha vontade é acordá-la com

beijos e me enterrar nela outra vez, mas talvez parte dessa

alegria que estou sentindo se deva justamente ao fato de


estar me tratando. Não vou parar agora.

Tomo um banho rápido e pego a bandeja com o café

de Anabela na cozinha, depois subo e a coloco ao lado da

cama, como tenho feito desde o início, para que ela possa se
alimentar imediatamente após acordar.
Desço para o escritório e fecho a porta, mas quando

estou caminhando para minha mesa, uma coisa me chama

a atenção. Há um porta-retrato sobre ela, que não estava ali

antes.

Eu o pego e vejo que há nela uma foto antiga, na qual


estamos Catarina, Miguel e eu, felizes. Em uma época em

que as coisas eram bem mais fáceis. A imagem me traz

nostalgia e chego a sorrir, antes de me sentar na poltrona e

clicar no link para a sessão.

— Bom dia, Matteo — Dominic cumprimenta,


acenando do outro lado da tela do computador.

— Bom dia!

Eu me recosto em minha poltrona, mais leve do que

me sinto a séculos.

— E como foi sua semana? — Suas perguntas são

sempre assim, despretensiosas, mas que na verdade têm

um objetivo muito mais sagaz.

— Muito boa, na verdade. Pintei o quarto do bebê —


conto, sem conseguir segurar o sorriso.

— Que ótimo, não sei se te dei os parabéns pelo

garoto, também ganhei um pequeno um tempo atrás.


— Deu sim, na semana que descobrimos. Mas você e

sua esposa tiveram um bebê?

Ele sorri e aquiesce.

— Recentemente, uma menina. O meu Minduim veio

de brinde junto com a Robin, minha esposa.

— Assim como Anabela ganhou a Maitê? — É

engraçado como nos falamos já faz bastante tempo e sei tão


pouco sobre ele.

— Exatamente assim, ele chegou e foi transformando

tudo.

— Que massa, cara. Parabéns pela família.

— Obrigado. E além disso? Novidades?

— Anabela e eu nos entendemos ontem, estamos

juntos agora e decidi que vou fazer o pedido de casamento.

— É mesmo? Pelo jeito foi uma ótima semana,

conseguiram se resolver e isso é maravilhoso,

principalmente com o bebê a caminho. E seu irmão? — ele

pergunta, como se não fosse a questão pairando aqui o


tempo todo.

Sutilmente, Dominic sempre consegue chegar no

ponto que quer e tocar nos assuntos relevantes.


— Acho que permiti uma pequena aproximação

aquele dia do chá revelação, te disse isso. Eu, devo ser

muito burro, mas gosto dele.

— Você não é burro, isso faz de você alguém que está

disposto a seguir em frente e deixar esses problemas para

trás.

— Talvez. Depois disso não nos falamos, mas hoje

entrei aqui no escritório para nossa sessão e encontrei isso.

— Pego o porta-retratos sobre a mesa e mostro para ele, na

câmera. — Somos Miguel, Catarina e eu, na praia. Me

lembro que estávamos muito felizes nesse dia e acho…


Acho que foi ele quem deixou isso aqui.

— Interessante, ele esteve aí por esses dias? Disse que

não se falaram mais.

— Não que eu saiba, mas Cat também não esteve e só

pode ser obra de um deles.

— O que importa é que é uma lembrança feliz, você

diria que tiveram muitos momentos bons?

— Com certeza foram mais dias bons que ruins, e

Sofia morreu. Acho que está na hora de deixar essa situação

entre nós morrer também.


— Dar uma chance a ele, não faz de você fraco, Matteo

— ele diz, em apoio a minha decisão —, pelo contrário,

mostra que tem coragem de arriscar e se colocar em uma

posição de vulnerabilidade, porque você sabe que, apesar

do risco, a recompensa pode valer a pena. Sua família vale.

— Acho que tem razão. — Dou de ombros e avisto o

livro de Miguel, aquele que Anabela impregnou com seu

perfume. — Ele está vivo, é o que importa e quero meu

irmão de volta.

— Isso é ótimo. E você acha que pode lidar com essa

sua nova vida e as novas decisões aí de dentro dessa casa?

Mais uma vez uma pergunta perspicaz.

— Não é o que eu quero, quero morar aqui, mas

pretendo voltar ao mundo real.

— Como pretende fazer isso?

— Anabela tem uma ideia de negócio que pretendo

apoiar e vou voltar ao trabalho na empresa também, de

maneira presencial.

— Perfeito, Matteo. Você está deixando o casulo.

— Acho que chegou a hora.


Olhamos um par o outro por um instante e sei que

posso estar sendo idiota em pensar assim, mas sinto que

aos poucos estabelecemos uma espécie de amizade, ainda

que não devêssemos. Não é um tipo de regra dos

psicólogos? Não manter amizade com os pacientes?

— Pode me encaminhar seu endereço por e-mail?

Quero enviar um presente para vocês, pelo bebê — ele diz,

confirmando minha suspeita. Não é uma amizade unilateral.

— Não precisa fazer isso, mas agradeço.

Quando encerramos a sessão, saio à procura de Helder

e o encontro na cozinha, em meio a uma fofoca sussurrada.

Elis e ele estão cochichando e olham para os lados tentando

analisar se estão prestes a serem pegos.

Eles não olham para trás.

— Bom dia, o que está acontecendo?

— Bom dia, Presidente — Elis cumprimenta.

Eles se entreolham e ela dá de ombros, deixando a

decisão de me contar ou não nas mãos do mordomo.

— É o Timóteo, ele e o Pedro finalmente assumiram o

que nós já sabíamos.


— O que eles assumiram? — pergunto, apesar de já

ter percebido a proximidade entre eles, sempre pensei que

fosse apenas amizade.

— Eles estão namorando. Vão morar juntos e tudo —

Elis conta, toda sorridente.

Ergo as sobrancelhas, surpreso. Percebo outra vez

como eu os conhecia pouco.

— Estão mesmo namorando?

— Estão, vão morar juntos e tudo — Elis conta, toda


sorridente.

— Isso é bom, um chalé a menos pra eu manter —


respondo em tom de brincadeira. — Helder, encontrei uma

foto no escritório, Miguel ou Catarina estiveram por aqui?


— O menino Miguel, na verdade ele ainda está. Eu o vi

falando com a Maitê agora a pouco, devem estar na sala de


música.

Sigo na direção que ele menciona e ao chegar mais

perto já consigo ouvir o som das teclas do piano. Miguel


sempre amou tocar e a julgar pelas risadas, Maitê também
está adorando ouvir.
Abro a porta devagar, mas Miguel me vê. Ele para de
tocar na mesma hora.

— Te incomodamos?
— Não, tudo bem. Foi você quem colocou aquela foto

na minha mesa?

Ele desvia os olhos dos meus de volta para o piano,


meio constrangido.

— Dei uma cópia pra Catcat no Natal, estava


guardando a sua.

— E veio aqui só por isso?


Miguel bagunça os cabelos de Maitê que está de pé ao

seu lado.

— Queria ver vocês, então aproveitei. Será que… Acha

que consegue uns minutos pra conversarmos?


Eu o encaro por um momento, mas acho que já tomei

essa decisão a algum tempo.

— Pode ser.
Dou as costas a eles e sigo de volta para a biblioteca,

ciente de que ele virá atrás.

Miguel não demora a entrar e fecha a porta em

seguida.
— Então… Sei que já fiz isso antes, mas pretendo de
tempos em tempos reformular meu pedido de desculpas, na

esperança de que um dia você aceite.

Balanço a cabeça, dispensando suas palavras.


— Já chega, não precisa mais fazer isso…

— Você não entende? Não posso desistir de você, Mat.


Fiz a pior coisa do mundo a pessoa que eu mais amava, sei

que pode nunca conseguir me perdoar, mas não posso


deixar de tentar…

— Não foi o que quis dizer. Não precisa mais se


desculpar, porque quero deixar isso no passado, no começo

vai ser esquisito, mas… estou feliz que esteja vivo, acho que
nunca te disse isso.

— Merda…
Encaro meu irmão e vejo quando seca o canto do olho,

ele funga em seguida.

— Eu não estava preparado pra isso, achei que ia me


enxotar como sempre.
— Quer saber? Cansei disso. Apesar de tudo, eu amo

você, Miguel, e acho que já deu, Sofia nem está mais nesse
mundo, não tem por que ficar entre nós.
— Nem acredito nisso, se eu também estivesse

morrendo, diria que agora posso descansar em paz.

— Péssima piada, inclusive.

— Eu sempre fui péssimo. Mat, eu amo você, cara.


Prometo que não precisa sequer pensar nesse tipo de coisa

sobre mim, nunca mais, eu não sou mais o homem que fui
um dia, só quero ficar perto de você, dos meus sobrinhos.

Anabela vai ter um lugar de irmã na minha vida.

— Não precisa dizer isso, primeiro porque sei que não

fez o que fez de propósito, você achava…


— Eu estava apaixonado. E cego.

— Isso, mas principalmente porque Anabela não é

como Sofia, na verdade é uma comparação que sequer pode


ser feita. E quero que essa seja a última vez que falamos

nisso, Miguel.
— Com certeza! Por mim é vida nova de agora em

diante.

Aquiesço, porque também quero isso.

— Muito cedo pra um abraço? — ele pede,


envergonhado, já esperando por uma recusa.
— Na verdade é o momento ideal, depois pode deixar

pra datas comemorativas e felicitações, por favor. — Que se


foda tudo então. Vou colocar uma pedra no passado, de uma

vez por todas. — Vem cá, irmão.

Miguel me abraça apertado, ele está chorando e acho


que isso me contagia, porque logo choramos como dois
garotos. Meu peito dói, e não sei se o que estou sentindo é

felicidade, alívio ou saudade. Provavelmente são todos os


sentimentos juntos.

— Perdão, meu irmão, eu sinto muito por tudo o que


te fiz. Vou viver o resto da minha vida carregando essa culpa

e tentando te recompensar — ele diz por entre os soluços.

O afasto um passo e seguro seu rosto molhado em


minhas mãos, encarando os olhos azuis de nosso pai.

— Não carregue essa culpa, se cure disso também.


Essa é a recompensa que eu quero.

Ele me abraça outra vez e bate nas minhas costas


repetidas vezes, nem acredito que isso esteja mesmo

acontecendo, o momento nem parece ser real.


— Obrigado, Matteo.
Depois de nos recuperarmos do momento, Miguel se
senta no sofá que fica perto das estantes e arrasto minha

poltrona até estar diante dele. Não vou mais perder tempo e
quero que ele entenda que isso é definitivo.

— Miguel, está pensando em voltar pra empresa?


— Eu… — Ele coça a cabeça, pensativo. — Quero

retomar minha vida aqui, Matteo. Minha identidade, e


depois tem mais uma coisa que preciso fazer.

— O quê?
— Deixei alguém pra trás quando voltei.

— Uma mulher?

— É, eu estava apaixonado, mas fugindo e vivendo


uma vida que não era minha, com um nome que não era

meu… Não queria construir nada com mentiras, mas não


tive coragem de contar a ela quem eu era e o que tinha
feito.

— E aí veio embora?

— Foi mais que isso. Ela me fez querer ter a minha


família de novo e decidi lutar por vocês, mesmo sabendo

que não os merecia. Eu precisava ter coragem e ser… digno.


Quero procurar por ela depois, mas não sei se ainda vai
estar lá pra mim.

— Acho que fez bem, não dá pra segurar um

relacionamento cheio de mentiras. Está retomando sua vida


e acho que deve voltar para a empresa também.
— Você está precisando de ajuda?

— Quero voltar a ir ao escritório, mas também preciso

diminuir meu ritmo de trabalho.


— Por causa do bebê?

— Também, vou pedir Anabela em casamento hoje, já


planejei tudo. Inclusive você poderia ficar aqui mais um

tempo e tomar conta de Maitê enquanto faço o que


planejei…

Miguel parece um pouco surpreso, mas sorri e nem

chega a me interromper.

— Além disso, Anabela teve uma ideia para edições de


livros meio personalizadas. Ela ainda não sabe, mas quero
investir na ideia dela, publicar os títulos, que são clássicos

em sua maioria, pela editora da Prover. Temos a gráfica e o


pessoal necessário, vai ser um braço novo, um selo em uma
editora que até então só publicou títulos didáticos e
material escolar.

— Por que isso? A ideia é boa assim?


— É ótima, mas mesmo que não fosse eu faria, porque
é o sonho dela, Anabela mudou a minha vida, não me custa
fazer algo que vai alegrar um pouco mais a dela.

— Se me aceitar, claro que estou disposto a te ajudar.


— Ótimo, vamos trabalhar nisso então. Seja bem-
vindo de volta — falo, com um sorriso sincero.

— Você não vai se arrepender de me dar essa


oportunidade, irmão, vou te deixar orgulhoso.
Finalmente posso recomeçar sem nada que me
prenda ao passado. Posso seguir livre, atravessei a porta e

saí daquele maldito lugar.

Eu me vejo do lado de fora e é lindo aqui.


Quando acordo, espreguiço meu corpo e olho para o
lado procurando por Matteo, mas ele não está. À minha
direita, no entanto, está ela, a bandeja com meu farto café
da manhã de cada dia.
Eu a coloco sobre o colo e belisco algumas coisas,

tomo um gole do suco de laranja e me concentro em forrar o


estômago para não me sentir mal.

Depois disso, coloco a comida de lado e sigo até o

banheiro, onde tomo meu banho sem pressa, lavo meus


cabelos e penso na noite que tivemos, em como as coisas
estão perfeitas e em como quero que permaneçam assim.
Matteo já colocou todas as minhas roupas no closet,
então escolho um dos vestidos que ainda não fica curto na

frente — a barriga tende a erguer o tecido e deixa minhas


coxas de fora, um par de sapatilhas confortáveis e sorrio
com minha imagem no espelho. Estou mesmo parecendo
bem grávida.

Passo as mãos pelos cabides pendurados e as pilhas


de roupas dobradas nas prateleiras. Observo meus sapatos
na sapateira e concluo que nossas vidas já se fundiram em

uma, estamos juntos e graças a Deus é definitivo.

Matteo pediu que eu fizesse uma lista com os


clássicos que eu adoraria perfumar, os livros que já têm um
cheiro específico para mim. Não entendi direito o motivo,

mas a ideia me deixou animada, então deixo logo o quarto e


desço para a sala de visitas.
Estou fazendo as anotações, deitada no sofá, quando
vejo Matteo e Miguel vindo do escritório, conversando

amigavelmente.

Eu não esperava ver uma coisa dessas e não sei


exatamente como me sinto, mas Matteo parece feliz e acho
que Miguel era a última ponta solta, o detalhe final que o

prendia ao passado e, se fizeram as pazes, o tormento


chegou ao fim.
Eu me sento e olho de um para o outro quando
passam por mim, Miguel acena com a mão direita, de onde

está mesmo.

— Bom dia, Anabela — ele diz, contido.


— Bom dia, rapazes — cumprimento.
— Tudo bem com você e o bebê? — ele pergunta, meio

sem jeito, é como se tivesse sido pego fazendo algo errado,


só que dessa vez, está tudo muito certo.

— Tudo ótimo. E com vocês?


Matteo começa a rir ao perceber o quanto estou

desconcertada com a cena e passa o braço pelo ombro do


irmão. Vê-lo assim, tão leve, faz meu coração transbordar de
alegria.

— Tudo bem, nós conversamos e nos entendemos.


— Fico feliz, amor. — Me levanto, deixando a agenda
de lado e corro até onde eles estão. Abraço Matteo pela
cintura. — Ele sentia muito a sua falta, Miguel.

— E eu a dele.
— Bela? Falei com Miguel e ele disse que pode ficar
aqui, com Maitê. Quero saber se não quer ir comigo ao lago,
um piquenique…

— Ao lago, é? — questiono, me lembrando da última


vez.
— Sem más intenções — ele diz, erguendo as mãos
em sinal de defesa —, só quero passar um tempo com você,
não sei se comeu muito, mas podemos levar uma cesta e

aproveitar um pouco.

— Eu topo… Não comi muito, estava animada pra


começar a lista que me pediu.

— Ótimo! Vou arrumar as coisas e falamos sobre isso


também.

Matteo e eu descemos para o lago um pouco depois,


caminhando devagar. Ele carrega a cesta em uma mão e

segura a minha com a outra. Sinto a brisa agitando meus


cabelos soltos e vejo Matteo respirar fundo. Ele não diz
nada, mas acho que está sentindo a mesma paz que eu.
Ele me ajuda a descer no trecho mais íngreme, tirando

as pedras do meu caminho, depois Matteo procura por uma


árvore grande que faça uma sombra boa para estender a
toalha e nos sentarmos.

— Aqui está bom — ele fala, deixando a cesta no chão,

perto das raízes da árvore alta.


— Depois que eu me sentar aí, como vou conseguir
ficar de pé outra vez com essa barriga? — pergunto, porque
já não tenho mais a flexibilidade de antes.
— Eu vou te levantar — ele fala, achando graça da
minha pergunta.

Matteo estende a toalha e em seguida me ajuda a


sentar sobre ela, apoiando minhas mãos enquanto deslizo

devagar, até estar recostada ao tronco.


Ao invés de se sentar ao meu lado, ele se deita, com a
cabeça no meu colo.

— Você está bem? — pergunto, observando seu rosto.


Ele faz que sim com a cabeça e abre um sorriso,
começo a acariciar seu rosto.

— Esse é o melhor dia desde que minha vida se


transformou naquele inferno.
— Como você se sente? — Quero ouvir o que ele tem a
dizer.

— Você até parece meu psicólogo falando — ele


comenta, com um sorrisinho. — Tudo bem, estou ficando
muito bom em descrever meus sentimentos. — Matteo fecha
os olhos, sentindo meu toque sobre sua pele macia e a

barba recém aparada. — Me sinto leve, como essa brisa que


está soprando agora. Antes eu buscava a felicidade em
outras pessoas, como em você e Maitê, mas agora posso
encontrá-la em mim mesmo, e isso é maravilhoso.

Seu relato me emociona, porque esperei por isso

desde que me vi apaixonada por ele. Eu queria que ele se


curasse, queria que pudesse recomeçar e se sentir inteiro.
— Estou muito orgulhosa de você.

Ele segura minha mão, entrelaçando nossos dedos.

— Obrigado por tudo, por me salvar. Nunca poderei


agradecer o bastante. Você transformou tudo, amou minha
filha como se fosse sua e trouxe luz para os meus dias
escuros.

Aproximo meu rosto do dele e beijo sua boca


demoradamente. Matteo abre seus olhos e fita os meus por
alguns segundos, eles são como espelhos, refletindo meu
amor e a minha felicidade.

— Vamos comer? — ele pergunta de repente. Devido


ao horário, imagino que esteja com fome.

— Vamos.

Matteo se senta outra vez enquanto eu pego a cesta


ao meu lado e a deixo entre nós dois, mas em meio aos
pães, o bolo e as frutas, uma bolsinha azul de veludo me
chama atenção.

— O que tem aqui dentro? — seguro a bolsinha nas

mãos.
— Manjar Turco. Comprei ontem, na cidade, pensei
que fosse gostar.

— Nunca comi Manjar Turco. Me faz lembrar…


— As Crônicas de Nárnia — Matteo completa.

— Isso.
Desamarro o lacinho de cetim e observo os cubinhos

lá dentro. São vermelhos, envoltos numa camada de açúcar


de confeiteiro. Sinto o aroma adocicado dos doces e assinto,
constatando o óbvio.

— Sim. Tem cheiro de Nárnia. Vou acrescentar o livro à

lista que me pediu para fazer. Aliás, qual é o objetivo dela?


Matteo sorri, me observando e meneia a cabeça.

— Eu te amo muito, Bela. Você não existe, sabia?

Decidi que quero construir com você a empresa que sempre


quis, temos uma editora na Prover, sabia? Só que o foco são
livros mais técnicos, mas agora também vamos trabalhar
com um selo especial, voltando para clássicos, serão edições
limitadas e perfumadas, e você será a desenvolvedora do
projeto, a empresa é sua, vou apenas auxiliar.

Eu o encaro, boquiaberta, não acreditando que isso


esteja acontecendo.
— Está falando sério?

— Muito, não faz ideia do quanto. Inclusive já tem

uma empresa preparando o projeto para o local em que vai


funcionar a sede.
— Meu Deus! Mas, eu nem estudei!

— Vai fazer isso também, vamos dar um jeito em tudo,

Bela. Você pode tudo.


Aquiesço, emocionada, e me inclino para dar um beijo
nele.

— Obrigada por acreditar em mim, Matteo.


Ele sorri e aponta outra vez para o saquinho, me
incitando a abrir. Primeiro avisto os docinhos outra vez, mas,
depois, vejo uma fita preta no meio deles e, em seguida,

uma pedrinha brilhante aparece. Encaro Matteo, a ideia


passa pela minha cabeça, mas não acredito que seja o que
estou pensando.
O sorriso dele fica ainda maior e ele levanta as
sobrancelhas, me incentivando.

— O que é isso?
— Veja você mesma, amor.

Mergulho a mão dentro da bolsinha e pego a fita

preta, nela está gravado o nome da joalheria, Gracy's. Meu


Deus! Eu sou apaixonada pelas joias deles, mas claro, nunca
pude ter uma. A fita está amarrada a um anel solitário
deslumbrante, com um diamante no centro.
— Você… Isso é para mim?

— É claro. Para quem mais seria? — Matteo se


aproxima de mim e abre sua mão, deixo o anel sobre seus
dedos, sentindo meu corpo todo tremer.

Ele desamarra a fita e a deixa sobre o joelho enquanto


fala:

— Quero passar cada dia ao seu lado, dormir e acordar


com você, sonhar os seus sonhos e te amar por toda a minha

vida.
— Matteo…

Ele segura o anel nos dedos, mas olha diretamente


para mim agora.
— Minha Bela, por favor, seja minha para sempre.
Você aceita se casar comigo?

Meus olhos ficam marejados. Eu não acredito que ele


esteja me pedindo em casamento. Matteo não queria se
envolver comigo, ele não queria nem tentar, e agora está

dizendo que me quer por toda vida.


Nos últimos dois meses eu conheci um Matteo
diferente, que lutava dia após dia para se libertar e me
reconquistar, e agora, depois de tudo, sua redenção está
completa. Não existe mais medo ou insegurança. Não existe

tristeza e nenhuma raiva. Só existe o amor, superando todos


os obstáculos.

Eu quero muito ser sua esposa e quero que ele seja

meu, inteiramente meu.


— Sim, Matteo, eu aceito — falo, com certeza.

Ele segura meu rosto e me beija repetidas vezes. Seu


sorriso me faz sorrir também.

— Obrigado. Prometo te fazer feliz, meu anjo.

Ele se afasta e segura minha mão trêmula. Matteo


desliza o anel sobre meu dedo anelar e deposita um beijo
carinhoso sobre ele.
— Agora você é minha noiva, mãe dos meus filhos e a

mulher da minha vida.

Ele me abraça e retrubuo, e passamos horas assim,


trocando carícias, beijos e declarações de amor.
Dessa vez é definitivo.

Matteo e eu, até o fim.


É o dia do meu casamento, simplesmente o dia mais
especial da minha vida, ao menos até então, já que em

menos de um mês Arthur vai chegar ao mundo.

Catarina está tão agitada quanto eu, ela anda de um

lado para o outro ao meu redor, deixando a mim, a

cabelereira e a todos os outros ainda mais nervosos.


Nossos pais estão aqui, eles vieram e foram embora

após o chá revelação, mas agora retornaram para ajudar no

casamento.
Matteo teve a brilhante ideia de trazer meus pais e

Julieta para perto de nós definitivamente, não pude me opor

porque a distância realmente estava acabando comigo e,

assim, minha mão vai ser bem cuidada e Julieta vai ter um

respiro, já que ele decidiu contratar pessoas para que a


ajudem em casa.

Não deve demorar muito, o chalé que foi meu por

algum tempo está sendo reformado para os receber, alguns

cômodos foram adicionados a ele e logo eles poderão estar

aqui, perto de mim.


As coisas mudaram muito nos últimos meses, no

último ano, eu diria. Matteo veio como uma tempestade na

minha vida, movendo as coisas de lugar com seu vento

impetuoso e ressignificando tudo.

Ele trouxe o amor, uma nova vida, me deu Maitê e nós

nos demos esse bebê, que vem para somar. Nossa família

hoje é o que há de mais especial no meu mundo.

Maitê passa correndo pela porta, ela está usando seu


vestido pérola, abaixo dos joelhos. A saia é bem rodada e

deixa ver os sapatos delicados. Seus cabelos loiros estão


presos em um coque e alguns cachos caem dele,

emoldurando seu rostinho alegre.

— Já está na hora de ir, o tio Miguel disse que o papai

vai abrir um buraco no chão, mas não vi nenhuma

fernamenta.
Encaro minha imagem uma última vez no espelho.

Meu vestido é no mesmo tom do que Maitê está usando, o


corpete tem algum brilho e se ajusta perfeitamente aos

meus seios, abaixo dele, a saia desce leve, diáfana, deixando

minha barriga protuberante e livre. Pensamos em esperar o

bebê nascer, mas não há razão para isso, quero me lembrar

desse dia exatamente como ele é.

Prenderam meus cabelos em uma longa trança, que

passa por minha fronte e desce pela lateral do meu ombro,

pequenas flores foram presas nela. A maquiagem é bonita e

sutil e, nos pés, sapatilhas, porque de jeito nenhum vou me

aguentar em cima de saltos aos oito meses de gestação.


Alguém abre a porta e me viro, encontrando Julieta.

— Vamos?

Estou nervosa. Alguém segura minha mão, Cat... Maitê

segue à minha frente, e a cerimonialista a detêm aos pés da


escada para a instruir sobre sua entrada.

Catarina e Julieta se despedem de mim e me deixam

sozinha, de pé atrás da cortina. Respiro fundo e fecho os

olhos, me acalmando.

— Seu buquê, Anabela. — A mulher me entrega.

Ela tem um fone no ouvido e parece controlar tudo

com perfeição. É um belíssimo buquê de rosas vermelhas, o

mais comum de todos, também o mais lindo.

Percebo um movimento ao meu lado e me viro,

deparando-me com meu pai. Ele sorri e esfrega as mãos,

nervoso.

— Parece que é agora, Bela.


— Estou nervosa…

— Vai dar tudo certo, estou me livrando de uma filha e

logo, se Deus quiser, me livro da outra.

Meneio a cabeça, rindo do comentário feito em tom de

brincadeira.

— Isso é hora de fazer piadas?

— Pensei que fosse, o alívio da tensão…

A cerimonialista dá o sinal para que Maitê entre, ela

não leva flores, como de costume, mas um frasco com


aroma de laranjeiras, que ela irá borrifar pelo caminho. Esse

é o cheiro oficial do casamento, a fragrância que escolhi

para nós após as coisas terem se resolvido, somos leves,

alegres e um pouco cítricos e eu amo muito que sejamos

assim.

Minha pequena passa por entre as cortinas, mas não

consigo ver muito do que há atrás delas.

Matteo decidiu que a decoração seria surpresa, claro

que sei que ele não faria tudo sozinho, teve o dedo de

Catarina na organização com toda certeza. Decidimos nos

casar nos jardins, assim como o chá revelação foi feito aqui.

Para isso, foi colocado um cortinado do lado de fora da

cozinha, dividindo o ambiente. É atrás desse tecido que me

encontro agora, aguardando minha vez.

Ainda que no último ano não tenhamos convivido com

muitas pessoas, o lugar parece estar cheio. Minhas amigas

de infância foram convidadas, nossos parentes mais

distantes e todas as pessoas que um dia foram amigas de

Matteo e que ele achou que era relevante chamar.

— Sua vez, querida — a mulher diz, e ouço a marcha


nupcial começar a tocar no mesmo instante.
Papai me oferece o braço e respira fundo, junto

comigo.

E nós entramos.

Sou envolvida por um cenário que jamais imaginei

encontrar, nem em meus maiores sonhos.

No lugar de vasos de flores, temos pilhas e mais pilhas

de livros nas laterais do corredor e sobre elas, arranjos

florais delicados e bonitos. O cheiro de laranjeiras está por

toda parte e posso perceber que algumas velas queimam ao

ar livre, se mantendo decididamente acesas.

As pessoas sorriem e eu aceno, emocionada. Olho

para frente e, antes, vejo os padrinhos. Matteo escolheu

Greg, Miguel e Alberto para testemunharem o momento, e

eu, além de Catarina, também convidei minha irmã e Elis,

representando os outros funcionários.

As cadeiras dispostas pelo jardim estão ocupadas

pelos convidados. Helder está sentado bem à frente, ao lado

dos Viturino, Suzi e Helena também estão aqui,

acompanhadas de Timóteo e Pedro. Até mesmo o psicólogo

de Matteo apareceu, acho que ficou feliz com a evolução do

paciente, sem contar que nos forneceu o contato de sua


esposa, que cuidou dos doces e do bolo para a festa, nunca

comi nada tão delicioso.

Cheguei a essa casa como governanta, não que isso

algum dia tenha sido um problema para nós, mas é

estranho que agora vá me tornar esposa dele,

estranhamente maravilhoso.

Os padrinhos abrem espaço e eu o vejo, de pé junto ao

altar, Matteo está usando um terno branco, lindo. Em partes

porque escolhemos nos casar durante o dia, mas


principalmente porque a cor representa a mudança que
estamos vivendo em nossas vidas, sem mais dias sombrios,

tudo resplandece. Seus olhos azuis encontram os meus e ele


sorri, me fazendo sorrir em resposta.

Cada passo no corredor, é um passo para mais perto

dele, do homem que eu amo e da vida que me foi dada


como um presente.

Meus olhos se enchem de lágrimas, mas continuo


sorrindo. São lágrimas de alegria.

Chego diante do altar e meu pai cumprimenta Matteo,


antes de me dar um beijo carinhoso na fronte.
— Estou te entregando aqui, querida, mas você vai ser
sempre minha garotinha.

Eu o abraço apertado e já não estou mais contendo o


choro. Quando Matteo segura minha mão na sua e a beija, já

se tornou um pranto.
— Que foi, amor? Quer desistir de mim? — ele

pergunta, sorrindo.

— Desistir? — Eu o fito em meio às lágrimas. —


Nunca! Foi difícil demais resgatar você. Estou chorando de
alegria.

As palavras do religioso são repletas de emoção e


sentimentos e, após isso, é nossa vez de pronunciarmos

nossos votos de amor.

— Minha Bela, assim como no conto fantasioso, você


chegou aqui e encontrou uma fera, que se escondia nas

trevas. Com sua luz, foi mudando tudo, inundando a minha


alma e me ensinando o que é realmente o amor. Por isso,

vou ser grato a Deus eternamente, por ter me mostrado que


ainda que eu fosse apenas pedaços quebrados, estilhaços de
um homem, bastava uma emenda forte, uma liga. Você. —

Ele ergue a mão, enxugando meu rosto molhado. — Prometo


que vou te amar enquanto eu respirar e se eu tiver algum
poder no além vida, te amarei depois disso também, vou te

respeitar e cuidar de você, farei o que estiver ao meu


alcance para que nunca mais chore e para que seu sorriso

seja sempre meu guia.

O microfone muda para as minhas mãos, mas preciso


de alguns instantes para me recompor. Matteo está sempre
dizendo que me ama, constantemente, mas nunca havia

dito tantas coisas lindas em uma única fala. É difícil


controlar a emoção.

— Não sei se eu o chamaria de fera, mas bruto, ogro,


um pouco grosseiro... — As risadas enchem o jardim e acabo

sorrindo também. — Assim como a Fera, você me deu uma


biblioteca inteira, uma editora para apoiar minhas ideias e

ainda colocou livros para decorar a cerimônia, logo se vê


como foi que me ganhou.

Matteo sorri e balança a cabeça, sorrio percebendo


que seus votos me tiraram do foco do que eu tinha a dizer e

respiro fundo, voltando ao que planejei.


— Eu cheguei aqui como uma garota, que ansiava por

algumas coisas, mas que no decorrer do tempo, se viu


diante de sonhos muito maiores, eu me tornei mulher, não

apenas por causa da gravidez, mas porque conheci a vida


por outros olhos, os seus... Entendi que nem sempre as

coisas são um mar de rosas, mas pude ver claramente que,


com amor, um sentimento verdadeiro que nos faz muitas

vezes colocar o coração do outro acima do nosso, tudo é


possível. Obrigada por me amar e principalmente por me
permitir te amar, e prometo fazer uso dessa permissão para

sempre. Vou ser fiel e estarei ao seu lado em todo o tempo,


não apenas por respeito a você, mas porque também

respeito a minha alma, que é toda sua.

Quando a cerimônia tem fim, Matteo me beija,


tomando cuidado com nosso Arthur em minha barriga, e

depois rumamos juntos para o outro lado do jardim, onde


receberemos os convidados pelo resto do dia e parte da

noite.
Uma grande festa foi preparada, aos poucos as mesas
e cadeiras começam a encher, e Matteo e eu seguimos até a

mesa comprida na ponta, que nos foi reservada, juntamente


com nossos padrinhos, pais e Maitê.
Greg, sentado ao lado de Mat, se inclina um pouco

para que eu também o escute.

— Parabéns, Viturino e Anabela, que seja seu único


casamento e o último dele.

Eu o fito com um desejo comedido de assassinato.

— Acho que não é muito bacana mencionar o

casamento anterior, Greg.


— Realmente não foi legal, mas se puder esquecer a

gafe, tenho um presente a oferecer aos dois.

Matteo não parece animado com isso.

— E o que me vai me dar hoje? Uma garrafa de


uísque?

— Nada disso, a viagem sobre a qual já conversamos.

Quero que viagem comigo para a Escócia, conheçam minha


propriedade… Prometo que vou colocá-los em uma torre e

desaparecer, nem vão me ver.


— Seria incrível, mas o bebê está prestes a nascer,
decidimos fazer algo aqui mesmo — respondo, e sinto muito

mesmo por não poder aceitar o convite.

— Depois do nascimento, então.


— Ah! Isso seria ótimo, se Matteo topar e estiver tudo
bem, podemos ir um tempo depois.

Fito Matteo com curiosidade, mas ele também parece


animado agora.

— É uma excelente ideia, vamos ter o bebê, acertar as


coisas na empresa e dar andamento às primeiras

publicações da empresa de Anabela e, quando Arthur já


tiver alguns meses, vamos visitar você e seu castelo.

— Castelo? — Julieta questiona. Ela está sentada ao


lado de Greg, porque foi o par dele como madrinha. Ela acha

que sabe disfarçar as coisas, mas já percebi que está


sempre procurando uma forma de puxar assunto com ele.

Que Deus me ajude!


— Não sabia que ele tem um castelo na Escócia? —

Matteo questiona, o pobre não sabe que aumentar o


interesse de Julieta não é algo bom.

— Que incrível! Não sabia, não... Acho que se vão


partir com o Arthur tão pequeno, vão precisar de uma babá.

Eu deveria ir para ajudar vocês com ele e Maitê.


— Está se convidando, Ju? — Eu olho para ela,

tentando demonstrar minha intenção de que desista desse


plano absurdo, mas sou ignorada.

— Estou oferecendo ajuda. Aposto que meu cunhado


vai adorar passar mais tempo com você.

— Vou mesmo, está decidido! Julieta vai com a gente.

Santo Deus...

Chegou a hora e não sei mais o que fazer para ajudar.


Eu deveria ter impedido essa insanidade de parto normal.
Por que falam que é normal? Anabela não para de gritar,

xingar todo mundo — e isso me inclui — e chorar em


desespero.
Quando as dores começaram, ela estava bem
tranquila.

— Calma, amor. Vai levar horas até que eu esteja


dilatada o bastante para que ele nasça, não precisa ter
pressa...

Foi o que ela disse e tinha razão. Almoçamos

tranquilamente e as contrações iam e vinham bem


espaçadas. Anabela pegou a bolsa, com as roupas que
havíamos separado antes para ela e o bebê, deixamos Maitê
com Catarina, que veio para nos ajudar por alguns dias e só

então fomos para o hospital.


Chegamos e a bolsa ainda não havia estourado,
apenas cinco centímetros de dilatação e provavelmente
ainda algumas horas de dor pela frente.

Só que as coisas foram piorando, a dor ficando mais


forte e enquanto o médico a instigava a se acalmar, Anabela
ia ficando mais tensa. Finalmente, cerca de doze horas após
o início do trabalho de parto, a bolsa estourou. O médico

sorriu, satisfeito e entendi que esse seria o fim do


sofrimento da minha Bela.
Mas não foi. Nos deixando sozinhos, ele pediu licença
para preparar a cama onde faria o parto e os aparatos

médicos necessários.

Anabela agora está andando de um lado para o outro,


as mãos apoiadas nas costas e uma expressão de ódio no
rosto.

— Você aproveite bem, Matteo! Porque não vou passar


por isso outra vez...
— Tá bom, amor.

Aprendi que o melhor a fazer é concordar com tudo,

assim eu a irrito menos.


— Enquanto eu morro de dor aqui, você fica aí, com
essa carinha de modelo de cuecas intacta! Isso é injusto,
não acha? Eu por acaso fiz esse bebê sozinha?

— Muito injusto, queria poder arrancar essa dor de


você.
— Ah queria? Diz isso porque não está sentindo
alguém te rasgar de dentro pra fora. Duvido que continuaria

querendo isso...

Ela me dá as costas e caminha para o outro lado, mas


de repente se vira e sua expressão de raiva dá lugar a uma
assustada, e me coloco de pé, alarmado.

— Que foi?

— Eu... Quero ir ao banheiro.


— Agora?
— É, quero fazer, você sabe, o número dois — fala,

meio constrangida.

— Mas Anabela...
— Matteo! Se eu não fizer agora, vou fazer na maca,
na frente do médico! Vai me deixar passar por essa

vergonha? De jeito nenhum. Vou ao banheiro, você vigia a


porta pra ninguém me ver.

— Bela, não quero te deixar sozinha no banheiro —


insisto.

— E vai me ver fazendo cocô? Cada uma...

Ela entra e fecha a porta, mas fico encostado nela,


atento a qualquer palavra da minha esposa, a qualquer sinal
de que precise de mim.

Não demora muito.

— MATTEO!
Abro a porta em um rompante e me deparo com

Anabela meio sentada, meio de pé, olhando entre as


próprias pernas.

— Que foi?
— Tive uma sensação esquisita...
Ela me olha de um jeito estranho, é uma mistura de

medo e surpresa.

— Como assim?
Seus olhos demonstram puro pavor.

— Será que é o bebê?


— Como assim o bebê? Você não ia fazer cocô?

— Então... Achei que fosse, mas agora acho que estou


fazendo o bebê, no vaso. Santo Deus — ela choraminga.

— Amor, eu sei que é chato e constrangedor, mas vou


ter que olhar, tá bom? Prometo esquecer essa cena um dia.

Nem em mil anos eu poderia esquecer!

Anabela aquiesce, desolada e fecha os olhos. Me


inclino um pouco e coloco a cabeça entre suas pernas, mas
o que vejo me deixa apavorado.

— Ai meu Deus! É o Arthur! — Abro a porta

rapidamente e Anabela parece prestes a desmaiar de terror.


— Socorrooooooo, meu filho vai cair no vaso! Socorro!
Graças a Deus o médico vem rápido, as enfermeiras
também correm para dentro do quarto e ajudam Anabela a

sair do banheiro. Elas a conduzem para o cômodo ao lado,


as pressas e a auxiliam para subir na cama.
— O bebê está coroando!

Me entregam um negócio estranho, acho que é um


leque e eu o uso para abanar diante do meu rosto.
— Pode fazer força, senhora Viturino. Seu bebê vai

nascer agora!

O grito dela é a última coisa que ouço, antes do


barulho do meu corpo batendo no chão.
4 anos depois…

Dobro o papel azul da embalagem dos dois lados


sobre o livro, antes de colar as bordas e finalmente colocar o

botão de rosa artificial no centro, com o selo da nossa

coleção.

Este foi o último dessa tiragem. Eu o coloco dentro da

caixa de papelão e a deixo junto com as outras, sobre as


mesas de uma das salas da editora. Amanhã elas serão

enviadas para as livrarias de todo país.

Poder trabalhar com o que amo e realizar este sonho

ainda não parece realidade para mim, mas isso está mesmo
acontecendo. Os leitores estão comprando e presenteando

com os livros da minha coleção, os estoques das lojas online

esgotam ainda em pré-venda e já li vários relatos de pessoas

que compraram e garantem que a ideia funciona,

despertando a memória olfativa e fazendo com que a leitura


e os sentimentos que ela transmite sejam sempre

lembrados.

Já foram dezenas de títulos publicados pelo selo Bela

Essência, o nome foi ideia do Matteo. A cada lançamento,

trabalhamos uma capa especial e o design dos exemplares,


de modo geral, assim como seus perfumes. A coisa toda tem

sido um sucesso!

Checo as horas no celular e confirmo que já estou

muito atrasada, como imaginei que aconteceria, eu poderia

muito bem deixar que os funcionários da editora fizessem

esse trabalho sozinhos, mas amo muito fazer parte do

processo. Por isso mesmo, ciente de que acabaria perdendo


a hora, trouxe minhas roupas e acessórios comigo, já a

maquiagem e o cabelo foram feitos mais cedo, no salão de

beleza.
Eu me troco no banheiro mesmo, para a cerimônia

desta noite vou usar calça e blusa social, mas caprichei nos

detalhes, coloco o par de brincos que Matteo me deu em

meu último aniversário, retoco o batom e calço os scarpins

antes de sair.

Enquanto apago as luzes do escritório e pego minha

bolsa sobre a mesa, Catarina aparece à porta, ela está linda


usando uma saia cinza de corte elegante, pronta para

prestigiar meu grande dia.

— Não acredito que você ainda está aqui. Está

atrasada, Bela!

— Eu sei, eu sei, já estou pronta — falo, saindo da sala.

— Onde estão as crianças?

Maitê e Arthur ficaram com ela, Alberto e Otávio,

porque Matteo está ocupado com coisas referentes a

cerimônia, e já estou morrendo de saudade daqueles dois.

— No carro, com o Alberto.


Nós descemos pelo elevador. Já passa das dezenove e

trinta e o prédio todo está vazio, exceto pelos seguranças no

andar de baixo.
Catarina e eu chegamos ao estacionamento e, de

onde estou, á consigo ver Maitê, seus cabelos loiros são

visíveis pela janela, Arthur está sentado no colo dela, e os


dois estão me chamando e acenando.

— Mamãe! Mamãe!

Sigo na frente de Catarina e beijo meus filhos pela

janela do carro de Alberto. Otávio está com eles, e ganha

um beijinho também.

— Oi, Bela! Ansiosa? — Alberto pergunta.

— Um pouco, para ser sincera.

— Você está linda, mamãe! — Maitê elogia.

Depois de Arthur, Maitê também passou a me chamar


de mãe, o que foi uma grande alegria para Matteo e eu, ela

sonhava com isso e eu já me via dessa forma, então

oficializamos.

— Obrigada, meu amor, você também está.

Catarina abre a porta ao lado do carona, entrando no

carro.

— Nos vemos lá no campus, então?

— Sim. Estou bem atrás de vocês — digo, me

afastando da janela.
Desativo o alarme do meu carro e entro nele, seguindo

Alberto para fora do estacionamento.

O campus não fica longe daqui, cerca de quinze

minutos de carro, mas nosso tempo está mesmo contado,

então espero que o trânsito não nos atrase ainda mais.

Alberto está logo na frente do meu carro e, quando

para no sinal, vejo Maitê, Arthur e Otávio acenando do banco

de trás e aceno de volta. Essas crianças devem deixar a

Catarina de cabelo em pé.

O sinal abre, e Alberto avança pela avenida, sigo logo

atrás dele, mas de repente um carro desgovernado surge do


meu lado, atravessando mesmo com o sinal fechado. Eu

acelero para sair da mira dele, e o maldito passa a

centímetros de mim.

Teria sido uma batida muito feia.

Tento me recuperar do susto, mas minhas mãos não

param de tremer, respiro fundo porque meu dia especial

não pode ser destruído por uma coisa como essa. De todo

modo, agradeço a Deus pelo livramento.

Nós chegamos ao campus vinte minutos depois, e


Catarina fica com as crianças enquanto corro para dentro.
Quando passo pelas portas largas de madeira, meus olhos

encontram os de Matteo no palco. Como CEO da rede Vevet,

ele foi convidado a discursar na colação de grau, não que

antes ele se importasse com o que esperavam que fizesse,

mas agora, têm feito esses discursos de bom grado. Ele está

magnífico em seu terno perfeitamente alinhado e parece

relaxar no exato momento em que me vê.

Julieta se levanta da cadeira onde estava sentada, ao

lado de mamãe e papai. Eu os cumprimento de longe


mesmo, porque, pelo que parece, estão apenas esperando

por mim para começar.

— Peguei sua beca. Vai logo!

Eu a visto pelo caminho mesmo, enquanto me uno aos

outros formandos do curso de marketing e propaganda da

rede Vevet.

Matteo, como Presidente da rede de ensino, está

sentado à mesa de autoridades da colação de grau. O reitor

apresenta os membros da mesa, um a um, anunciando

também os seus títulos, e meu coração se enche de orgulho.

Nós nos preparamos para subir, ficando de pé no

corredor em fila, meus colegas me cumprimentam e Matteo


assente para mim de onde está, me incentivando.

Não sei explicar a sensação de estar realizando mais

este sonho. Cheguei a pensar que não conseguiria, com a

chegada de Arthur e o casamento, mas Matteo esteve

comigo todo tempo, me ajudou com os estudos e com as

crianças e isso só foi possível graças a ele.

Nós subimos para o palco e ficamos todos enfileirados

do lado esquerdo para cantarmos juntos o hino nacional.

Vejo todos eles de onde estou, meus pais, Julieta, Greg,


Catarina, Alberto, dona Clarissa e o senhor Leônidas, estão
todos aqui por mim, as pessoas que me incentivaram.

Meus olhos encontram Maitê erguendo Arthur para

que ele também me veja e as lágrimas começam a rolar


pelo meu rosto. Não pensei que algum dia isso fosse

possível, assim como o sucesso dos meus livros perfumados.


Depois do nosso juramento, o reitor convida Matteo

para ajudá-lo com a entrega dos diplomas. Não sei se isso já


estava combinado entre eles, mas acredito que não.

— Alice Moreira Cesarini — Matteo pronuncia


pausadamente, e a garota vai até a mesa. Ela pega seu
diploma com o reitor e cumprimenta Matteo com um aperto
de mão.

— Amanda Serrão... — Amanda é da minha turma, ela


pega o diploma e comemora, o levantando para cima, e é

aplaudida pela família.


Matteo faz uma pausa e abre um sorriso.

— Minha adorável esposa, Anabela Gonzales Viturino.

Os aplausos irrompem da plateia, e meu coração


dispara no peito, eu não imaginava que ele fosse me
anunciar desse jeito, mas deveria ter previsto. O reitor me

entrega o diploma e me parabeniza. Lá embaixo, Julieta se


esforça para conseguir erguer, Maitê nos braços, para que

ela veja, ainda que minha filha já esteja uma mocinha, e


dona Clarissa bate palmas com as mãozinhas de Arthur.

Matteo me abraça apertado e beija minhas bochechas,

eu já não consigo enxergar nada devido as lágrimas.


— Meus parabéns, amor, você merece! — Percebo que

ele também está emocionado.

Cumprimento às demais autoridades da mesa e os

homenageados. O fotógrafo registra o exato momento da


assinatura da ata.
Depois dos discursos e do encerramento da cerimônia,
Matteo, as crianças e eu voltamos para Campos do Jordão.

Depois de uma semana inteira em São Paulo, não vejo a


hora de estar em casa de novo.

Arthur e Maitê adormecem no carro, mas Matteo e eu

ficamos conversando sobre o trabalho e o jantar que ele


quer fazer no próximo final de semana para comemorar a
formatura. Para quem odiava estranhos e tinha zero vida

social, ele está gostando muito de festinhas.


Nossa vida segue tranquila, Matteo vai para a empresa

alguns dias na semana, mas passa a maior parte do tempo


conosco. Eu tenho feito o trabalho de marketing da rede

Vevet, do grupo Prover e da editora, enquanto Catarina,


Alberto e Miguel cuidam da prática, lidam com os

funcionários e as questões individuais de cada unidade de


ensino. Tudo vai bem.

Apesar dos nossos esforços, Maitê e Arthur acordam


quando descemos do carro. Elis vem nos receber à porta,

com um sorriso de orelha a orelha no rosto, eu estava


morrendo de saudade!
— Que bom que chegaram! Fizeram uma boa viagem?

— ela pergunta, abraçando Maitê primeiro.

Matteo pega o Arthur no colo, porque nosso pequeno

ainda está bastante sonolento. Ele deita a cabeça no ombro


do pai.

— Graças a Deus, sim — respondo, me afundando


dentro do casaco.

— Meus parabéns, Anabela, estou muito feliz por você!


— Ela me abraça apertado.

— Muito obrigada, Elis!

Nós subimos a escada e seguimos para o nosso


quarto, no final do corredor. Arthur está coçando os olhinhos

e se deita sobre meu travesseiro, mas agora já está bem


acordado.

— Quer ir para cama, amor?

— Não, mamãe — ele fala com a vozinha rouca,

emendando um bocejo preguiçoso.


Maitê passa pela porta, trazendo consigo um livro

infantil que pegou na estante do seu quarto, Matteo faz uma


careta quando ela o entrega nas mãos dele, porque está

cansado, mas ele nunca recusaria um pedido como este.


— Pode ler esse, pai? É o novo preferido do

Arthurzinho.

— Tudo bem, então. — Matteo encara as gravuras do


livro, constatando que ele é mesmo muito infantil. — E qual

o seu preferido agora, Maitê?


— Eu gosto de Diário de um Banana — ela diz.

— Acho que este não é da minha época — Matteo


comenta, pensando sobre o título.

Ele encara o livro em suas mãos.

— A Casa Sonolenta… É acho que este aqui é ideal

para o nosso momento.


Eu me sento na cama com eles ao mesmo tempo que

Matteo se acomoda na poltrona diante de nós. Coloco Arthur


sentado entre minhas pernas e Maitê se deita ao meu lado.

Matteo abre o livro e inicia a leitura, narrando as frases


como um verdadeiro contador de histórias faz:

— Era uma vez uma casa sonolenta…


— Onde todos viviam dormindo — Maitê completa

com um sorriso.

— Nessa casa tinha uma cama, uma cama


aconchegante, numa casa sonolenta…
— Onde todos viviam dormindo — eu e Maitê
completamos dessa vez, Arthur acha graça disso.

Matteo segue com a história. As crianças adoram este


livro, mas Arthur se diverte mesmo quando a pulga aparece,

acordando a família inteira. Hoje, em especial, ele não ri,


porque já está dormindo, Maitê também está morrendo de

sono.
— Eu vou dormir. Boa noite, mãe — ela diz, se

inclinando para me beijar. — E boa noite, pai — ela


completa, caminhando até Matteo e dando um beijo em seu

rosto.

Maitê acena e vai para o seu quarto. Agora, com nove

anos, ela não se importa mais em ir sozinha, mas a luz do


corredor permanece acesa.

— … Numa casa sonolenta, onde ninguém mais estava


dormindo — Matteo termina a história e fecha o livro. Ele
levanta seus olhos e então abre um sorriso. — Numa casa
sonolenta, onde mamãe e papai não estão dormindo.

Deixando seu lugar na poltrona, ele vem até a cama,


onde estamos Arthur e eu. Matteo beija minha boca, minhas

bochechas e meu pescoço, me fazendo sentir um arrepio.


— Pode parar com isso… — sussurro, temendo acordar
o pequeno.

— Por que? Estou com saudade.

— Saudade? Mas foi hoje de manhã!

— Não sei do que a senhorita Gonzales está falando.

— Ele me puxa pelas mãos e cobre Arthur, antes de me


arrastar para sairmos do quarto.

Seguimos para o corredor e de lá direto para o deck.

A noite está maravilhosa, a lua brilha, linda e várias

estrelas pintam o manto da noite. Matteo me beija com


amor e seus toques são sutis, mas óbvios.

— Quero entregar seu presente de formatura agora,


amor.

— Sério? — Estreito os olhos, desconfiada. — Pensei

que o jantar seria um presente.


— Não. Sabe que não é todo dia que se tem um
modelo de cuecas à sua disposição? Sou seu essa noite,
Bela. O que quer de mim?

Ele beija meu pescoço, me desarmando, mas Matteo


não conhece o monstro que criou.
— Acho que pra começar, uma massagem nas costas,
e depois, quem sabe eu peça algo mais?

Ele sorri, entendendo meu plano e aproxima os lábios


dos meus. A lua reflete sobre nossos corpos e esse poderia
ser facilmente o final dessa história, mas a verdade é que
nosso livro está apenas começando.
CHOCOLATE QUENTE DA ANABELA
2 xícaras (chá) de leite

1 colher (sopa) de amido de milho

3 colheres (sopa) de chocolate em pó

1 caixinha de leite condensado

1 canela em pau

1 caixinha de creme de leite

MODO DE PREPARO

Em um liquidificador, bata o leite, o amido de milho, o


chocolate em pó e o leite condensado.

Despeje a mistura em uma panela com a canela e leve ao

fogo baixo, mexendo sempre até ferver. Desligue, adicione o

creme de leite e mexa bem até obter uma mistura


homogênea. Retire a canela e sirva quente.
Dica da Maitê: Fica uma delicinha com marshmallow!

MANJAR TURCO DE NÁRNIA


5 colheres (sopa) de maisena

1/2 xícara de água fria


1/2 xícara de água quente

2 xícaras de açúcar

1/2 xícara de suco de laranja

1 colher de chá de água de rosas, ou suco de limão

O quanto baste de açúcar de confeiteiro e maisena (para

polvilhar)

MODO DE PREPARO

Misture a maisena com a água fria, reserve.

Misture a água quente, o suco de laranja e o açúcar, e leve

pra ferver.

Depois que ferver, junte a maisena dissolvida. Deixe ferver

em fogo brando por 15 minutos, mexendo sempre. Tire do

fogo e adicione a água de rosas, ou o suco de limão e


misture bem. Unte uma forma com manteiga e despeje a

mistura.

Quando esfriar (ele vai pegar consistência) corte em

cubinhos com uma faca molhada em água quente. Misture

duas partes de açúcar de confeiteiro para uma de maisena e

polvilhes os cubinhos de goma.

Dica da Anabela: Ótimo para acompanhar leituras doces e


também para pedidos de casamento, claro.

COOKIES DOS VITURINOS


125 g de manteiga sem sal em temperatura ambiente

3/4 xícara de açúcar

1/2 xícara de açúcar mascavo

1 ovo

1 e 3/4 de xícara de farinha de trigo

1 colher (chá) de fermento em pó

300 g de chocolate meio amargo picado

1 colher (chá) de essência de baunilha

MODO DE PREPARO
Misture a manteiga, açúcar mascavo, açúcar, essência de

baunilha (e chocolate em pó, se for fazer cookies com base

de chocolate).

Adicione o ovo batido aos poucos e misture bem.

Acrescente a farinha aos poucos e misture bem (pode ser na

mão ou na batedeira planetária)

Por último, adicione o fermento e misture só para incorporá-

lo à massa. Depois da massa bem misturada, adicione o

chocolate picado. Forme bolinhas pequenas e asse em forno

preaquecido, sobre papel manteiga, por aproximadamente

15 a 20 minutos (250° C).

Dica do Matteo: Um dia frio, um bom lugar para ler um livro

e de preferência, acompanhados do chocolate-quente.

RISOTO DE QUEIJO CREMOSO – O BRUTO AMA UMA


MASSA
350 g de arroz arbóreo

3 colheres de sopa de azeite de oliva

1 colher de sopa de manteiga sem sal

1 cebola picada

1 cálice de vinho branco


2 tomates cortados em pequenos cubos

1 litro de caldo para regar (água e caldo de galinha)

100 g de queijo parmesão em pequenos cubos

100 g de queijo muçarela em pequenos cubos

100 g de queijo fontina em pequenos cubos

1 caixa de creme de leite

Sal e pimenta-do-reino a gosto

MODO DE PREPARO

Em uma panela grande e larga coloque a cebola picada para

fritar no azeite de oliva,

juntamente com a manteiga.

Quando a cebola estiver murcha e levemente dourada

coloque o arroz arbóreo para fritar por 3 minutos, mexendo

sempre para não grudar.

Acrescente o vinho branco e mexa sempre.

Adicione os tomates.

Acrescente o caldo aos poucos, mexendo sempre, para o

risoto não grudar na panela.

Antes do arroz cozinhar por completo acrescente os queijos.

Depois que os queijos derreterem junte o creme de leite.


Corrija o sal e tempere com pimenta-do-reino a gosto.

Dica do Matteo: Acompanhado de vinho, fica ainda melhor.

AROMATIZADOR CÍTRICO DE LARANJA


500ml de água

Casca de 1 laranja

3 paus de canela quebrados

1 colher de chá de cravo

1 colher de chá de noz-moscada

Essência de baunilha

1 pote de vidro reaproveitado

Varetas para aromatizador ou um vidro borrifador

MODO DE PREPARO

Em uma panela, coloque a água, a casca de laranja, a

canela, o cravo, a noz-moscada, a essência de baunilha e

deixe ferver.

Quando começar a borbulhar, espere 3 minutos e apague o

fogo.

Transfira a mistura para o pote de vidro.


Coloque as varetas dentro e prontinho!

Dica da Anabela: Coloque em um vidro e borrife — de longe

— nos seus exemplares preferidos. Ah! Guarde um

pouquinho para quando essa história chegar em físico.


Agradeço, primeiramente ao meu Deus, que me deu
forças para lutar a cada adversidade e persistência para

lidar com os obstáculos, e principalmente, por ter me


agraciado com a capacidade para criar e contar histórias.

Quero agradecer ao meu pai, por me ensinar a ter


valores, me mostrar o caminho do amor e da perseverança,

mas, com esta realização em mente, quero agradecer

principalmente por ter me ensinado o amor aos livros, por


apoiar meus escritos desde sempre. Obrigada por ler meus

poemas desconexos aos seis anos e imprimir meu primeiro


livro aos sete, “Samy, a maléfica”. Queria eu que todos

tivessem pais como o senhor. Eu te amo.

Ao meu esposo, Gustavo, agradeço por todo incentivo,

por se orgulhar de mim e contar minhas realizações para o


mundo, por me amar sempre, descabelada ou em um dos

meus 365 pijamas e por ser sempre meu referencial de


amor. Você é a razão pela qual eu acredito em romances e

em finais felizes.

Aos meus filhos, Enzo e Théo, por serem a luz que

ilumina meus momentos sombrios e por completarem

minha felicidade, amo vocês.


Agradeço a todos os meus familiares, por me ajudarem

nos momentos em que necessitei, sou muito grata por todo

apoio e por acreditarem em mim.

E a cada um de vocês, leitores, porque isso não faria

nenhum sentido se não estivessem ao meu lado, são como


uma segunda família, aquela que me entende e acolhe.

Obrigada por cada comentário de incentivo, foram vocês o

meu combustível para chegar até o final. Aqui não vou citar

nomes, mas vocês sabem quem são. Todos que estão nos

grupos do Whatsapp e todos os outros, que em silêncio,

estão sempre ali. Agradeço principalmente porque sem

vocês, eu não teria escrito esse livro, se não fosse pelo amor

que demonstram sempre.


À minha agência, Increasy, por aceitar meu ritmo doido

de trabalho e embarcar nele, especialmente a Grazi, pelas

madrugadas e fins de semana em que se dedicou tanto.


Maria Vitória, minha assessora, pelo material incrível de

divulgação e pelo esforço para fazer tudo correr bem, pela

capa linda e que transmite exatamente o que eu queria!

Muito obrigada por fazer dela uma obra de arte e por se

superar a cada novo trabalho, você é maravilhosa!

Aos amigos que de alguma forma fizeram parte desse

processo, deixo aqui o meu muito obrigada também, pelo


apoio, a divulgação e o ânimo de cada um, que sempre faz

toda a diferença, mas nesse caso quero citar alguns nomes

em especial; desde já peço que me perdoem se esqueci

alguém.

Fernanda Santana, agradeço por todas as palavras nos

momentos difíceis que passei e por me ajudar a manter os

pés no chão mesmo sem deixar de sonhar. Por ser uma

amiga que vibra comigo e que já provou, mais de uma vez,

estar aqui para o que der e vier, durante a escrita desse


livro, surgiram problemas pessoas e agradeço por você ter

estado comigo e oferecido sua mão, sem que eu precisasse

pedir.

Ju Barbosa, obrigada por sempre dizer as palavras

certas quando preciso ouvir e pelos nossos papos


madrugada adentro. Obrigada pela amizade e por torcer

tanto por mim, quanto eu torço pelo seu sucesso.

Letti Oliver. Meu Deus, não sei nem mesmo o que dizer

de você, um presente que a vida me deu. Obrigada por ter

me ajudado desde o início, por todas as dicas, por todo o

trabalho gratuito. Obrigada por todo seu empenho para que

hoje eu estivesse aqui.

Rose e Lidiane, por lerem esse livro e se apaixonarem

pelo Bruto e sua Bela comigo, bem antes que essa história

pudesse chegar para todos os meus leitores. Obrigada por

me ajudarem, apoiarem, por vibrarem e fofocarem comigo,


pelo trabalho lindo no fã-clube, junto com a Vivi e pelas

canecas e camisetas infindáveis do Saraverso.

As parceiras, que me apoiam tanto, um muito obrigada

a todas vocês: Anathielle, Anna Bia, Anny, Cláudia, Emilly,

Hayane, Isabelle, Jessica, Lare, Laura, Majô, Rachel, Renata,

Thálita e Vivi. Obrigada Duda, por me ajudar e divulgar esse

livro até mais que eu — e sim, dessa vez é com você mesma.

April, arrasou na diagramação mais uma vez. Obrigada,

lindeza!
Bom, é isso. Se você chegou até aqui, agradeço em

particular a você, espero que tenha sido uma excelente

leitura e que eu te encontre aqui também nos próximos.

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