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Índice

Sinopse
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Final
Epílogo
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autorização escrita da autora.

Esta é uma obra de ficção. Os fatos aqui narrados são


produto da imaginação. Qualquer semelhança com nomes,
pessoas, fatos ou situações da vida real deve ser considerado
mera coincidência.

Título: O filho que você não quis


Romance
ISBN – 9798366489980
Texto Copyright © 2023 por Josiane Biancon da Veiga
Sinopse
Um filho com ela seria apenas um bastardo...
Quando o conde Otávio Figueiredo se viu sozinho com duas
crianças, não teve escolha a não ser encontrar uma babá que
pudesse cuidar de seus filhos. Recém-divorciado e ainda apaixonado
pela ex-mulher, ele se viu chocado ao perceber que a nova babá era
muito parecida com Analy, a mãe das crianças.
Mas, por mais tentador que parecesse ter Maria Eduarda como
uma substituta, ela ainda não passava de uma empregada, e ter
filhos com ela estava fora dos planos.
Eu era apenas uma cópia barata da mulher que ele amou.
Maria Eduarda apaixonou-se pelo conde Otávio, e pelas duas
crianças carentes de atenção que ele tinha em casa. Assim, permitiu-
se ser seduzida. Contudo, cada ato tem consequências, e quando se
viu grávida, sabia que esse bebê era o filho que ele não queria.

Não posso te amar no escuro


Parece que estamos tão distantes
Há tanto espaço entre nós
Adele - Love in the dark
Capítulo 1

Ergui os olhos para o portão alto de ferro, com um brasão suntuoso


na parte superior, onde uma letra solitária, F, se destacava de forma
orgulhosa sobre as formas abaixo, que lembravam desde lobos e
dragões, até flores desabrochando.
Eu não entendia direito qual era a importância de um
sobrenome ou de um brasão até ver como aquele simples pedaço de
ferro me fez sentir pequena e sem importância.
Minha família não tinha um brasão. Bem da verdade, eu não
tinha sequer uma família. Era o estorvo que foi atirado para lá e para
cá entre os parentes, então não posso me considerar família de
ninguém.
— Olá — um homem alto e velho apareceu ao fundo do jardim.
Ele me encarou com simples curiosidade enquanto eu tentava
arrumar meus cabelos desalinhados atrás da orelha. — No que posso
ajudá-la?
— O SINE me mandou para a vaga de babá — disse a ele,
quase gritando, já que a distância entre nós permanecia maior que
minha força vocal.
O homem assentiu. Ele deu meia volta e, em seguida, o portão
começou a fazer barulho. Um ranger intimidante que fez meu coração
acelerar. Quase como num filme de terror, eu percebi que cada passo
que eu dava em direção à mansão parecia me levar a um filme
assombrado.
— Podia ter tocado o interfone — o homem sorriu para mim.
Percebi ser um senhor de sessenta ou setenta e poucos anos. Ele se
vestia como os mordomos de filmes que passavam na sessão da
tarde. — Se eu não a tivesse percebido parada ali, teria ficado
esperando por horas.
Eu sorri para ele, envergonhada em dizer que estava
pensando se devia tocar ou não o interfone. A verdade é que eu
precisava trabalhar, como sempre precisei desde que completei
dezoito anos e a pequena pensão que recebia de minha mãe foi
cortada pelo governo. Ainda assim, o lugar me enervou e eu quase
retrocedi.
— Como se chama? — ele indagou.
— Maria Eduarda — estendi a mão para cumprimentá-lo. —
Fiuza — completei. Quase não usava o sobrenome.
Aos quatro anos minha mãe sofreu um acidente de carro. Ela
ficou alguns dias internada no hospital, e depois faleceu. Meu pai
sumiu pouco depois, disse que não tinha como cuidar de uma criança
sozinho. Descobri anos depois que ele já tinha outra mulher, e ela
não quis a responsabilidade de uma criança. Eu fiquei na casa de
uma tia até os sete, quando ela se cansou e disse que os demais
parentes também tinham obrigação. Assim, eu zanzei durante toda a
infância e adolescência entre casas de tios que não me queriam.
Minhas mudanças prejudicaram meu aprendizado e eu não consegui
sequer me formar no ensino médio.
Quando completei dezoito, a tia que me acolheu depois dos
dezessete disse que eu precisava cuidar da minha vida. Então, eu
busquei um emprego. Fui doméstica por cinco anos de uma senhora
que tinha uma menina pequena. Eu não era paga para cuidar da
menina, mas cuidava porque descobri que amava crianças.
Ou talvez amasse a infância que não tive. Nunca vou saber
com certeza.
Quando a senhora foi embora para outra região do país, eu
comecei a procurar trabalho como babá. Trabalhei em várias casas,
conheci muitas crianças, e tudo foi muito especial para mim. No meu
último trabalho, cuidei do menino dos sete até a pré-adolescência,
quando a família me dispensou porque não precisavam mais de mim.
Durante os breves períodos de inatividade eu ficava em
pensões baratas, mas mesmo que fossem baratas, eu precisava do
trabalho para pagá-las. Então, eu praticamente aceitava qualquer
serviço, mesmo que fosse longe ou mesmo que fosse difícil.
— Certo, vamos entrar, Maria Eduarda — ele disse, me dando
as costas e volvendo para a mansão. — Eu sou Samuel, o mordomo.
A casa tinha mordomo! Eu fiquei sem palavras, não apenas
porque era a primeira vez que eu conhecia um mordomo, como era a
primeira vez que eu entrava numa mansão dessas.
Para começar, o lugar era antigo. Tinha um aspecto de castelo
rústico, com vários retratos na parede. O rol de entrada era alto, e
bem acima de nossas cabeças, um lustre claro iluminava o suficiente
para eu perceber ao fundo uma escadaria enorme que levava a um
segundo piso ricamente decorado.
Segui o mordomo mais adentro. Entramos em uma sala
espaçosa com lareira, mas foi tudo muito rápido e não pude observá-
la direito. Logo o mordomo me guiou até um corredor.
Havia pequenos bancos nesse corredor, e Samuel me indicou
que me sentasse em um deles.
— Aguarde, irei anunciá-la ao Sr. Figueiredo.
Ele sumiu, em direção a uma das salas. Imaginei que fosse um
escritório. Perdi o ar por alguns momentos, não sabia nada sobre a
casa, nem sobre o tal Figueiredo, e pensei que devia ter me
preparado melhor para essa entrevista.
Francamente, eu não combinava com esse lugar. Não com
minha saia laranja espalhafatosa de cigana e minha papete preta,
confortável. Como o lugar era muito longe, precisei pegar vários
ônibus para chegar, andar mais um tanto, assim me vesti o mais
confortável que pude. Até queria colocar uma calça jeans, mas eu
não tinha nenhuma limpa. Além disso, eu pensei que era apenas
mais uma família de classe média baixa precisando de babá
enquanto os pais trabalham. Não que fosse uma vaga em um castelo!
Ninguém comentou nada de especial no SINE.
Ouço passos. Volto meu rosto para Samuel e ele estende a
mão em direção à porta, uma clara indicação para que eu entrasse.
Alisei a saia como pude, assim como os cabelos desalinhados
e frisados pelo vento que peguei lá fora. Respirei fundo e comecei a
andar na direção da porta. Entrei. Foi quando meus olhos
perceberam um homem na faixa dos seus trinta e poucos anos, de
cabelos castanhos e olhos azuis, sentado atrás de uma escrivaninha
enorme de madeira.
Ele se levantou. Era alto. Mas, não um gigante. Era
discretamente bonito, mas nada que o destacasse como um modelo
ou ator.
— Bom dia, sou Otávio — ele me estendeu a mão com singela
educação e eu me apressei para aceitá-la.
— Maria Eduarda Fiuza, Sr. Figueiredo.
— Só Otávio, por favor — ele pediu, sorrindo diante do meu
cumprimento.
Seus dentes eram tão brancos e alinhados que eu sorri em
troca apenas porque foi assim que meu corpo reagiu. Era como se
seu sorriso despertasse em mim algo muito forte e bonito, que eu não
era acostumada a sentir.
— Trouxe seu curriculum?
— Sim, senhor — digo, apressando o papel em seus dedos.
Ele sorriu de novo. Meu coração errou batidas e eu sei que
enrubesci.
— Por favor, sente-se — ele me indicou uma cadeira diante da
escrivaninha. Quando ele se sentou atrás da mesa, reclinou-se na
poltrona, lendo o papel. — Tem bastante experiência, pelo jeito.
— Sim, senhor. Eu cuido de crianças há anos.
— E tem alguma qualificação na área? Pedagogia ou talvez
algo na saúde? Técnica de enfermagem ou coisa assim?
Como explicar a ele que nunca estudei porque era burra
demais para aprender algo?
— Não senhor. Apenas experiência.
Eu estava mortificada pela vergonha. Com certeza ele me
mandaria embora dizendo que iria avaliar.
— Experiência é tudo, senhorita Fiuza — ele sorriu de novo.
Senhorita Fiuza.
Ninguém nunca me chamou assim.
— Somos de uma família secular. Meus antepassados
herdaram essas terras do governo de Portugal logo após a
colonização e, independente das crises passadas, permanecemos
firmes e produtivos. Nós temos um título nobiliárquico que foi
concedido ao meu tataravô. Ele foi um conde, e hoje eu o sou. Mas,
títulos não mantêm heranças e fortunas. É trabalho duro que faz isso.
Eu gerencio várias empresas da família, quase não tenho tempo para
meus filhos.
Ele largou o papel em cima da mesa. Um dos seus dedos
subiu até sua face, e ele apoiou o rosto com o polegar e o indicador.
Pensativo, era como se eu o definiria.
— Tenho duas crianças. Igor e Ísis. São crianças adoráveis,
você vai gostar deles. Não é porque são meus filhos, mas realmente
são inteligentes e cheios de vida. Claro, um pouco bagunceiros, mas
nada que tire alguém do sério.
Assenti.
— Qual a idade?
— Ísis tem cinco e Igor tem sete.
— Estão na escola?
— Estavam, mas com o divórcio... Enfim, foi muito estressante
para eles, e acabaram faltando muitos dias. Como o ano está quase
no fim, combinei com a direção que eles vão reiniciar tudo ano que
vem.
Como eram muito pequenos, eu sabia que isso não seria um
problema.
Otávio se ergueu. Fiz menção de fazer o mesmo, imaginando
que a entrevista estivesse terminado, mas ele fez sinal para que eu
ficasse no lugar. Então, ele foi até a porta, e chamou pelo mordomo.
Eles conversaram baixo, e o homem mais velho logo saiu.
— Pedi para chamar as crianças — me contou. — Quero que
as conheça.
Acredito que não tenha se passado nem mesmo um minuto
até a porta abrir e eu ver duas pequenas miniaturas entrando no
lugar. Meu coração acelerou diante da beleza que vi nas duas
pequenas criaturas. Eu amava crianças. Amava porque elas nunca
fingiam ser o que não eram. Sempre se mostravam verdadeiramente.
Delas eu sempre podia esperar a verdade.
Igor era a cara do pai. Em tudo. Os mesmos olhos azuis e
cabelos castanhos escuros. Já a menina era loirinha, com cabelos
longos e cacheados. Pareceu retraída, e tentou se esconder de mim
atrás das pernas do pai.
— Essa é a Maria Eduarda. Ela vai ser a nova babá de vocês.
Foi tudo muito rápido, soube naquele instante que o conde
precisava de alguém com urgência. De qualquer maneira, não seria
do meu feitio questionar a decisão de um patrão. Assim, fiquei tão
feliz em conseguir o emprego, mas precisei reprimir isso na frente do
outro adulto do escritório. Contudo, quando ficasse a sós com as
crianças, deixaria claro que estava superanimada por estar perto
deles.
— Como se diz, Igor? — Otávio falou com o filho.
— É um prazer conhecê-la — o menino disse, me olhando, e
eu sorri porque ele parecia um pequeno príncipe falando daquela
forma.
— O prazer é meu, querido — sorri. — É um prazer conhecê-
la, também — observo a menininha que se esconde. — Você é Ísis,
não é? Não precisa ter medo de mim.
Ela não saiu de trás do pai.
— Ísis não é nenhum pouco... — Meu novo chefe não
completou a frase. — Enfim, não quero assustá-la, mas Ísis é uma
pequena capetinha. — Eu não pude esconder o sorriso. — Na casa
mora meus filhos e eu, além de Samuel, o mordomo, e Arlete, a
criada. Há diaristas que vem ajudar a manter a casa durante a
semana. Mas, residentes, é apenas nós. E você, agora. Li no seu
curriculum que não tem problema em morar no emprego.
— Não tenho.
— Bom... Vou pedir para Arlete nos trazer um café. Antes de
assinarmos o contrato de experiência, preciso que saiba de alguns
detalhes...
Eu não me importava com detalhes. Teria um emprego com
bom salário e uma casa para morar. Estava feliz por tudo que estava
acontecendo, mesmo que fosse rápido demais e eu mal conseguisse
respirar diante das novidades.
— Crianças, vão brincar. Papai precisa conversar com Maria
Eduarda.
Eles saíram quase imediatamente, o que me fez perceber que
as crianças obedeciam sem questionar ou reclamar. Era uma
surpresa porque eu não conhecia crianças assim.
— Como pode ver, as coisas aqui são simples, apesar da casa
suntuosa. Minha vida são meus filhos, e eu tento manter tudo em
ordem, educá-los da mesma forma que fui educado.
Assenti.
— Então, antes de você concordar em trabalhar para mim,
precisa saber que...
Alguém bateu na porta. Logo, uma senhora apareceu,
trazendo uma bandeja com duas xícaras e um bule de porcelana. Eu
me levantei rapidamente para ajudá-la a colocar tudo sobre a mesa.
O olhar de Otávio Figueiredo pesou sobre mim. Meu coração
acelerou.
— Sou Arlete — a mulher me disse, assim que teve as mãos
livres.
Apertei seus dedos, dizendo meu próprio nome. Depois, ela
saiu. Quando volvi para meu novo patrão novamente, meu coração
acelerou. O olhar dele queimou. O que significava?
Capítulo 2

Quando a agência de empregos me disse que encaminharia alguém


para uma entrevista, eu esperava uma jovem senhora com seus
quarenta e poucos, de rosto sério e roupas discretas. Mas, quando
essa garota entrou no meu escritório, perdi um pouco o ar.
Talvez porque ela me lembrasse Analy, minha ex-esposa, na
época que a conheci. Já se passaram quase dez anos, mas a
experiência de me apaixonar pelo seu jeito extravagante e livre, ainda
fazia meu coração acelerar.
Tudo aconteceu na Argentina. Em Buenos Aires. Estava
jantando com um amigo e parceiro de negócios, quando a garçonete
apareceu com seu sorriso lindo e espontâneo. Nós trocamos telefone
e, no tempo que fiquei na Argentina a passeio, saímos e ficamos
algumas vezes. Quando voltei ao Brasil, já estava apaixonado. Então
a trouxe para mim. A pedi em casamento. E acreditei que seria
eterno, até perceber que minha linda esposa era livre demais para
ficar amarrada a um homem que precisava trabalhar para manter seu
estilo de vida.
A mansão afastada demais da cidade para ser movimentada,
mas próxima demais para ser considerada uma fazenda, a
massacrou. Analy gostava de gente, gostava de festas. Aos poucos,
ela foi definhando. Quando eu lhe perguntei se ela queria o divórcio,
ela quase me agradeceu.
E, desde então, eu tento manter a serenidade por conta de
Igor e Ísis. Eles eram apenas crianças e já estavam vivendo longe da
mãe. Entretanto, não posso negar que quando vi Maria Eduarda
Fiuza entrando na minha sala, algo cravou na minha na minha carne.
O que por si só já era loucura.
O fato de ela me lembrar Analy mais jovem só devia coroar
minha iniciativa de pedir aquela jovem de cabelos esvoaçantes para
sair. Mas, ainda assim eu pedi para ver seu curriculum. A tratei bem.
Mesmo com a justificativa de sua falta de qualificação bailando na
minha boca, eu lhe dei o emprego.
Por quê?
Ela me atraía. Como Analy um dia me atraiu.
Só que havia algo que as diferenciava. Analy estava
trabalhando de garçonete naquela noite apenas como um extra para
seu curso de moda. Ela vinha de uma boa família e tinha um bom
sobrenome na Argentina. Quando meu avô soube dela, ele lhe fez
uma série de perguntas sobre sua linhagem e só ficou satisfeito após
descobrir tudo que pôde dela.
Meu avô morreu cinco anos antes, mas eu me lembro de jurar
a ele que jamais desonraria os Figueiredo ficando com qualquer uma.
Qualquer uma...
Eu não preciso ver o curriculum de Maria Eduarda para saber
que ela é pobre. Sua pele, seus cabelos sem corte, suas sandálias
empoeiradas e sua saia velha mostram isso para mim. E ela sempre
trabalhou, já que tem muita experiência e pouco estudo. No papel
está claro que ela sequer concluiu o ensino médio.
Ergo meus olhos para ela. O café a minha frente está servido.
Ela bebe em sua própria xícara como se estivesse muito
constrangida em estar na minha frente.
Certo. Ela me atrai. Mas, eu nunca ficaria com ela.
— Bom, Maria Eduarda. Como eu já te disse, seu curriculum é
ótimo e tenho certeza de que já cuidou e educou muitas crianças,
mas preciso que saiba que meus filhos são diferentes. Igor será o
próximo conde. Ter um título traz muita honra, mas também muita
responsabilidade. Meu avô me ensinou que não podemos nos deixar
guiar por sentimentalismos, precisamos sermos firmes e justos.
Eu sabia que ela não fazia ideia do que eu estava falando.
— Ok — disse, apesar de tudo.
— Não quero que você o encha de mimos, e o trate como um
reizinho. Precisa ser rígida com ele.
— Mas, ele tem sete anos.
— Já está na idade de saber se portar. Não quero que você
seja muito afetuosa com Igor. Ao contrário, quero que seja dura e
exija dele sempre o melhor.
Ela assentiu. Sabia que não estava de acordo, mas
aparentemente precisava do emprego.
— Outra coisa. Se tiver namorado ou marido, só poderá vê-lo
em dias de folga e fora do ambiente de trabalho. Não quero homens
estranhos perto dos meus filhos.
Ela enrubesceu.
— Não tenho...
Meu coração acelerou. Solteira, eu sabia que era porque ela
colocou isso no curriculum, e me alegrou que não tivesse um
namorado. Contudo, essa alegria era incômoda, porque não devia me
alterar.
Ela terminou o café. Ficou um ralo rastro do líquido em seus
lábios e eu senti vontade de lambê-lo. Desviei o olhar, volvendo ao
papel. Eu precisava de uma babá porque tinha muito trabalho para
fazer, e não tinha tempo de ficar procurando outra pessoa. Além
disso, ela era perfeita para o cargo.
Eu apenas precisava manter as bolas dentro da calça.
O problema é que fazia muito tempo que eu não tinha uma
mulher. Analy e eu não transávamos a meses, antes mesmo do
divórcio. E, mesmo quando ela se foi, eu estava machucado demais
para procurar uma mulher.
Agora, sentia que o corpo reagia a falta.
— Bom, então é isso — finalizei. — Pode começar amanhã?
— Posso sim, senhor.
— Me mande seu endereço, vou pedir para um dos motoristas
da minha empresa pegar suas coisas para trazer à casa. Arlete vai
preparar um quarto.
— Sou muita grata, Sr. Otávio.
Ela se levantou pouco depois, despediu-se e se foi. Seu
perfume suave permaneceu no ambiente por um tempo, até se tornar
apenas um rastro invisível de uma presença provocadora.

✽✽✽

— Simpática a moça — Arlete me disse, enquanto me servia o


jantar.
Igor estava à minha direita, e Ísis do outro lado. Eu era menos
exigente com Ísis, então ela comia usando o garfo e a mão. Contudo,
Igor lutava bravamente com uma faca sobre o pedaço de bife.
— Muito simpática — afirmei.
Arlete tirou a faca da mão de Igor e o ajudou a cortar. Ela sabia
que eu não gostava que o ajudassem, mas Arlete foi minha babá na
infância e quase uma segunda mãe, eu não tinha coragem de dizer-
lhe nada.
— Quantos anos ela tem?
— Quase trinta — destaquei. — Se veste bem mal —
Observei. — Pedirei que use uniforme.
Arlete me dá um sorriso estranho, como se quisesse me dizer
algo, e eu quase a interpelei, mas Ísis chamou minha atenção.
— Ela parece a princesa Merida, papai.
— Merida?
Eu não sabia nada sobre as princesas. Tentei puxar pela
mente. A Bela Adormecida era Aurora, a Branca de Neve era Branca.
Qual era o nome da Cinderela?
— De Valente — Arlete me socorreu. — Mas, ela não é ruiva,
Ísis.
— Só a cor diferente. O cabelo dela é cheio de cachos.
Eu sorri porque tinha um pouco de verdade.
— Você gostou dela?
— Eu gostei. E você, papai?
— Eu também.
Minha resposta foi tão automática que me assustei.
— Será que mamãe gostaria dela? — Ísis indagou.
Mais uma vez, a semelhança me tocou. Ambas eram cheias
de vida, espirituosas. Eu pouco vi de Maria Eduarda, mas a forma
como ela sorria, como ela tentava não transparecer a personalidade
alegre parecia com Analy.
— Eu acho que sim, Ísis...
A resposta encerrou a conversa. Falar sobre Analy, ou sentir a
ausência dela, sempre afundava todos nós num ninho de dor.
Capítulo 3

— Você vai voltar?


Sorri, dobrando a camisa e a colocando na mala. Volvi meu rosto e
encarei a morena que vivia na pensão, no quarto ao lado do meu.
— Se Deus quiser, não. Vou passar muitos anos cuidando das
crianças.
— Mas, a gente ainda vai ser amiga? — ela curvou um pouco
a face enquanto perguntava e meu coração lacrimejou.
Quando somos solitários, ansiamos por amizade, ou qualquer
coisa que lembre segurança. Salete e eu nos conhecemos aqui na
pensão, eu estava sendo diarista na época, e ela trabalhava na rua,
fazendo pinturas e vendendo nas calçadas da cidade. Assim como
eu, ela era órfã, e como eu ela se virava como podia.
— Claro que sim, Salete. Até porque, quem vou ver nas
folgas? Vamos sempre conversar pelo WhatsApp.
Seu sorriso me fez novamente me focar em guardar minhas
coisas. Eu não tinha muito. Mas, com o valor do contrato que recebi
naquela tarde, mostrando meu novo salário, claramente viver com
pouco seria passado. Eu já começava a planejar comprar algumas
coisas, guardar o dinheiro para quando saísse da casa... Deus, seria
incrível poder alugar um apartamento, ter uma cozinha só minha, um
banheiro só meu!
— Então, me fala... Como é a casa?
Parei novamente de arrumar as coisas. Dessa vez sentei-me
na cama porque queria conversar. Queria compartilhar toda a minha
expectativa.
— É uma casa de sonhos, daquelas que a gente vê em filmes
— contei.
— E as crianças?
— São... bem-educadas — apontei. — A menina eu não
consegui conversar direito, parecia tímida, mas o menino era... —
meu coração acelerou diante da lembrança. — Ele era tão...
— Tão o quê?
— Eu não sei dizer. O pai me disse que ele precisa ser
educado com rigidez porque será um conde e, acredito, é assim que
se educam todos os homens da casa. Creio que o pai foi educado
assim também.
— Parece triste — a voz dela ficou baixa.
Sim, era triste. O olhar do garoto trazia uma carência que
tocou meu coração. Eu reprimi o sentimento porque eu precisava
desesperadamente desse trabalho, mas seria difícil manter uma
relação afastada com Igor. Ele parecia sentir falta de amor, e eu
estava disposta a dar isso a ele. Contudo, não podia ir contra as
vontades paternas.
— E a mãe? — Salete prosseguiu. — Como é?
— Não a vi. Pelo que entendi, são divorciados.
— E o pai?
Quando chegou a essa questão, meu coração acelerou de um
jeito que eu não queria que ocorresse. Aquele homem era bonito de
uma forma que mexia demais comigo. Lembrava-me os modelos dos
romances de banca que eu leio escondida em noites chuvosas,
quando sonho que vou encontrar um grande amor.
Mas, grandes amores não existiam, e se existissem não eram
para gente como eu.
— Ele é bonito — contei a ela. — Foi extremamente educado e
gentil comigo. Mas, tem um olhar firme que dá medo.
— Medo no sentido de causar calafrios? — ela me deu um
sorriso bobo que me fez perceber exatamente aonde queria chegar.
— Não esse tipo de calafrios — eu ri. — De jeito nenhum. Ele
é meu chefe, pai das crianças que vou cuidar. E o cara é um conde!
Imagina o tipo de mulher com quem ele anda! Eu nem tenho onde
morar...
A lembrança do olhar que ele me deu enquanto julgava minha
roupa caiu sobre mim. Eu sei que ele julgou, mesmo não falando
nada. Ignorei a sensação de humilhação, porque eu era acostumada
a fazer isso. As pessoas costumavam olhar meu cabelo cacheado
demais com um peso que me massacrava. A verdade é que eu não
tinha dinheiro para fazer um tratamento para baixar as madeixas,
então eu tentava mantê-los presos num coque. Eu também não tinha
dinheiro para roupas chiques, então comprava de segunda mão, em
brechós do centro da cidade. Mesmo sapatos, eram comprados os
mais baratos e confortáveis que eu conseguia, porque usaria por
muito tempo, já que não podia trocá-los com frequência.
— Sei lá, Maria Eduarda... Sonhe um pouco — ela suspirou. —
Você vai trabalhar com um conde, então tipo... se imagine como a
cinderela...
Eu ri.
— Salete, é muito arriscado — neguei. — Eu não posso perder
esse emprego — disse, firme. — É minha chance de ter um futuro.
Eu estou quase com trinta anos.
O olhar dela abateu.
— Eu sei. Eu também.
Salete caminhou até a cama e sentou-se ao meu lado.
— Jonas me convidou para sair sexta — ela me disse, citando
um dos caras que trabalhava na padaria perto da pensão. Salete e eu
costumávamos ir lá tomar café. — O que você acha?
— Você gosta dele?
Salete deu os ombros.
— Talvez eu aprenda a gostar. Ele tem casa, tem estabilidade.
E me disse que está procurando uma mulher para começar uma
família. — Ela me encarou. — Você recusaria?
Francamente? Sim.
Não consigo me imaginar ao lado de um cara que eu não
esteja apaixonada. Por minha vida difícil e cheia de trabalho, nunca
me apaixonei. Mas, eu entendia Salete. Ter alguém em quem se
apoiar quando os dias são mais difíceis é algo a se pensar.
— Não é no que eu faria que você deve pensar. Olhe para
dentro de si, e pense se é isso mesmo que você quer.
— O que eu queria era encontrar um cara que virasse meu
mundo do avesso, que fizesse borboletas no meu estômago, que me
fizesse pensar nele o tempo inteiro. Mas, isso não vai acontecer.
Todos os caras com quem me envolvi não fizeram isso. Isso é coisa
de novela, não da vida real. Porque na realidade o que existe é
chatice, sujeira, dor...
Segurei os dedos dela, compartilhando esse momento. Meu
pensamento volveu ao conde, e em como ele parecia exatamente a
descrição de tudo que Salete ansiava.
Que eu também ansiava...
Acho que mulheres são seres mais simples do que se
imaginam.
— Acho que vou aceitar. Pelo menos vou sair com ele na
sexta, e ver no que vai dar.
Ela estava desistindo dos seus sonhos românticos naquele
momento. Pensei que havia um momento na vida de cada uma de
nós, rica ou pobre, que chegávamos ao ponto da mesma desistência.
Não sei por que, pensei na esposa de Otávio. Ela também
desistiu.
O que será que aconteceu que a fez ir embora, deixando para
trás duas crianças pequenas e um marido tão bonito?
Salete deitou a cabeça no meu ombro e ficamos assim por
tempo, compartilhando o silêncio singelo de nossa amizade. Cada
qual absorvida em seus próprios medos.
Salete, de viver. Meus, de acabar me encantando por um
homem que fez outra mulher partir de tal forma que deixou seus
filhos.
Fechei os olhos e neguei os pensamentos. Nada disso tinha
importância.
Não nesse momento.
Não na minha nova vida.
Até porque, eu jamais teria qualquer relação com o Conde
Otávio Figueiredo.
Capítulo 4

O quadro de Analy permanecia sobre a lareira, um retrato que


encomendei de um artista francês em uma de nossas viagens a
Europa. Baixei meus olhos para a construção em tijolos maciços
abaixo, vendo o resto de carvão que permaneceu ali do inverno longo
que tivemos no ano anterior.
Tão longo e tão duro...
— Você devia mandar tirar o quadro.
A voz de Arlete, as minhas costas, me fez arquear as
sobrancelhas. O que diria meu avô, ao ver o neto que ele criou com
tanto esmero, sofrendo por uma mulher que não o quis?
— Ela é a mãe das crianças. O quadro deve trazer algum
conforto.
Eu não me voltei para Arlete, mas sei que ela moveu sua face
recriminadora, num balanço negativo. Estava certa, claro. Eu devia
mandar tirar o quadro, assim como devia esquecer meu casamento
que já acabou.
Nós já assinamos o divórcio.
Eu não queria, mas assinei sem reclamar.
Porque meu amor por Analy era tão grande que aceitei perdê-
la apenas para vê-la feliz.
— Já começou errado, menino. Nunca devia ter se apaixonado
por uma estrangeira. Ainda mais uma castelhana.
O “castelhana” foi pejorativo. Analy não era de Castela, na
Espanha. Eu entendia que o tom de Arlete era quase como um
deboche por causa da origem argentina. Minha antiga babá - e agora
governanta - nunca gostou de Analy. Dizia aos meus ouvidos que
minha ex-esposa era uma aventureira. Não era mentira, Analy queria
viver tudo que pudesse, experimentar todas as sensações, parecia
não entender que a vida ao meu lado exigiria calma e retitude.
Ouço passos e vejo Samuel entrando na enorme sala que era
decorada da mesma forma há mais de cem anos.
— Bernardo ligou — citou o gerente de uma das minhas
empresas. — Perguntou se o senhor gostaria de jantar com ele para
discutir alguns contratos.
Concordo.
— Por favor, diga a ele que me encontre no restaurante de
sempre.
Samuel se afastou em seguida. Meu mordomo era sempre
discreto e direto. Volto meu rosto para Arlete, e vejo nela um pouco
de alegria.
— Faz bem em sair com seu amigo, meu filho — ela disse. —
Vai ser bom respirar outros ares e...
— Vai ser só um jantar, Arlete.
— Precisa parar de se sentir culpado, Tavinho — ela me
chamou como chamava quando eu tinha cinco anos. — Você é um
bom homem e não tem culpa do que aconteceu.
— Nunca houve um divórcio entre os Figueiredo — murmurei.
— Eu sinto como se meu avô estivesse muito decepcionado por eu
não ter lutado para manter Analy comigo.
— Lutado, como? Forçando a moça a ficar, algo que ela não
queria?
Dei os ombros. Talvez essa fosse a resposta.
— Pode ficar com as crianças para eu sair à noite?
— Claro que sim. A babá chega quando?
— Amanhã vou pedir para Gustavo buscá-la. Ela me passou o
endereço de uma pensão na zona norte.
— Ela não tem casa? Mora numa pensão?
O olhar de Arlete ficou arregalado, mas não havia julgamento.
— Pelo jeito a moça é bem pobre — destaquei.
— Vou preparar um quarto lindo para ela! — Arlete exclamou.
— Para ela sentir que tem um lugar bonito para ficar. Gostei do olhar
sincero dela, acho que vai ser uma ótima babá.
Também achava, especialmente pelas recomendações em seu
curriculum.
— Algumas coisas... Você pode pedir para ela prender os
cabelos? — indaguei. — Acho estranho eu mesmo falar, já que sou
homem. Esse devia ser o papel da patroa.
— É claro, querido. Mas, por que te incomoda? Analy também
tinha grandes e cacheados como os dela, e vivia com seus cabelos
longos soltos por aí.
— Talvez por isso — admiti.
Arlete deu três passos na minha direção. Logo, seus braços
me cercaram. Aceitei seu abraço porque estávamos sozinhos, e
ninguém veria o quanto eu estava fraco e sensível.
Um Figueiredo nunca demonstra fragilidade.

✽✽✽
Igor e Ísis estavam sentados à pequena mesa redonda cheia
de livros e lápis de colorir.
Eu caminhei até eles para observar as pinturas. Meus filhos
gostavam de pintar, e eu não reprimia esse sentimento, apesar de
achar que não era adequado a Igor. Lembro-me, de na infância, meu
avô me levar para andar a cavalo, ou para dirigir karts. Situações que
um homem deve vivenciar. Mas, Igor ainda era tão pequeno... então
eu fingia não ver o quanto ele gostava de coisas como pintura e arte
em geral.
— Papai — ele me disse, assim que ergueu seu pequeno rosto
em minha direção. — Quero mandar esse desenho para a mamãe. O
senhor acha que ela vai gostar?
Meu coração fraquejou porque eu vi, eu senti, a saudade no
tom da voz do meu filho.
— É claro que vai, Igor.
— Vou fazer outro para a babá — ele disse. — Ela virá morar
aqui, né?
— Sim, amanhã.
Ele aceitou facilmente a inclusão da nova babá em sua vida.
Então, voltei meu rosto para minha princesinha. Ísis pintava uma
princesa da Disney com um lápis cor de rosa. Reprimi um sorriso ao
perceber que ela pintava tudo na página de rosa, incluindo o rosto da
personagem.
— E você, amor? Vai mandar seu desenho para a mamãe
também.
Ísis deu os ombros.
— Mamãe não gosta. Uma vez entreguei um desenho para
ela, e ela jogou fora.
Arqueei minhas sobrancelhas, porque não conhecia essa
história.
— Quando foi isso?
— Mamãe estava nervosa — Igor defendeu a mãe. — Ela
disse que não queria ver o desenho naquele dia, mas você ficou
colocando o desenho na mão dela, então mamãe amassou e jogou
no lixo. Culpa sua!
Ísis fez cara de culpada, mas eu sabia que ela não tinha culpa.
Não sei quando foi, as crianças não disseram, mas acreditei que
fosse durante os meses em que falávamos sobre separação. A
verdade é que, desde que Igor nasceu, Analy não estava feliz. Ela
engravidou a segunda vez por descuido, e acreditou que estava
enterrando a vida dela por causa de Ísis.
Eu odeio essa menina, ela me disse uma vez.
Foi a única vez na minha vida que eu levantei a mão para uma
mulher. Foi muito rápido, a estapeei antes que pudesse me controlar.
Naquele momento, soube que estava acabado.
Ísis interrompeu meus pensamentos com uma breve canção
que Arlete lhe ensinou. Ela cantarolou baixinho, enquanto continuava
a esfregar o lápis no papel.
— Vou dar o desenho a Maria Eduarda — ela me disse, depois
de segundos.
Ela nem conhecia a babá, mas já estava se apegando a ela.
Eu fiquei um pouco envergonhado em colocar meus filhos nessa
situação, onde uma estranha seria um apoio, porque a mãe deles não
era.
Deixei o quarto porque não conseguia suportar a ideia.
Minha vida era um inferno...

✽✽✽

— Você não é culpado — Bernardo me disse.


O restaurante de sempre era um lugar requintado, caríssimo,
que servia frutos do mar e pratos típicos do litoral. Mas, naquela noite
eu não pedi nada para comer, apenas pedi uma garrafa de vinho para
acompanhar meu amigo de muitos anos, que degustava um prato
cheio de camarões.
— Não importa, porque é como me sinto.
Bernardo largou o garfo. Ele levou uma das mãos a taça de
vinho, e bebeu. Pareceu pensar nas palavras antes de pronunciá-las.
— Você levou muito tempo para conseguir assimilar a ideia de
um divórcio. Agora aconteceu. Analy está longe, mas você ainda está
aqui. Seus filhos ainda estão aqui. Precisa reconstruir sua vida. Me
disse que iria entrevistar uma nova babá, não é? Deu certo.
— Sim, ela começa amanhã.
— Ótimo, meu amigo. Terá alguém para ficar com as crianças
enquanto você sai e arruma algumas mulheres. Beba, faça festas,
divirta-se, aproveite sua solteirice novamente. Depois, quem sabe,
conheça alguma boa mulher e se case novamente.
Isso não iria acontecer.
— Deixar a babá cuidar de Ísis tudo bem, mas Igor precisa do
pai. Ele precisa ser educado...
— Você é muito duro com o garoto — Bernardo negou. — Não
consegue se lembrar de como era difícil a infância ao lado do seu
avô?
Bebi outro gole. Meus pais morreram num acidente
automobilístico quando eu era criança. Não sei como seria minha
vida se eles tivessem me criado, porque não importava. Meu avô
nunca me deixou chorar por quem já se foi.
Mesmo por ele, em seu leito de morte quando eu tinha vinte e
sete anos, ele não permitiu lágrimas.
— Meu avô criou um homem. Um conde.
— Ah, que inferno, Otávio. Só pare e pense: Você foi feliz?
Igor está sendo feliz?
Mesmo que ele dissesse isso, fugi dos pensamentos. Não
queria me focar nisso. Não importava. Igor carregaria o peso de uma
tradição secular, não teria tempo para se dedicar a sentimentalismo.
— Vamos falar dos negócios, motivo pelo qual estamos nos
encontrando?
Bernardo me encarou, como se não acreditasse que eu
realmente estava falando assim. Por fim, suspirou cansado, e disse:
— Estou viajando para o Catar no próximo mês. Teremos uma
reunião com investidores.
— Vai ser uma perda de tempo. O mercado reagiu muito
negativamente ao novo governo. Quem vai querer investir em ações
no Brasil depois da merda que está acontecendo?
— Meu trabalho é convencê-los.
— A perder dinheiro? — dou uma risada triste.
— Você é muito negativo. Como dizia aquele antigo ditado?
Com crise se cresce!
— Você acha que vai conseguir? — indago, porque o otimismo
dele me surpreende.
Bernardo é um excelente gerente da minha empresa de
investimentos. Nos últimos anos, os lucros foram astronômicos,
mesmo durante a pandemia, e eu devia isso a Bernardo. Mas, não
acreditava que as coisas iriam permanecer boas para o mercado
financeiro.
— Penso que só devemos desistir quando não há mais
nenhuma chance. Outro ditado: Se há um por cento de chances, há
noventa e nove de esperança.
— Você se tornou um maldito livro de autoajuda?
Ele riu baixinho.
— Devemos sempre estar abertos a novas oportunidades. E
você devia estar aberto, mais que tudo. É rico, jovem, bonito. Tenho
certeza de que essa melancolia por Analy vai passar.
Assenti, incerto. Duvidava muito. Analy foi a única mulher que
amei. A única que amaria. Mas, não disse isso a ele. Mesmo que
fosse meu melhor amigo, há coisas que um homem nunca deve
confessar em voz alta.
Capítulo 5

O carro era enorme. Um daqueles importados pretos que a gente


precisava subir como se estivesse indo em um caminhão. Eu sorri
para Gustavo, o motorista, e ele devolveu o sorriso me estendendo a
mão.
— Desculpe vir com esse veículo, mas achei que teria muita
bagagem — justificou.
Claro, devia ser uma surpresa para ele que tudo que eu
possuía cabia em duas malas e duas sacolas pequenas de lona. De
qualquer forma eu disse que estava tudo bem, e fui para o banco de
trás, enquanto ele ajeitava as coisas no porta-malas.
Pouco depois, Gustavo se sentou no banco do motorista.
— Podemos ir? — ele indagou.
— Sim — minha resposta era feliz.
Era sempre bom ir para uma casa. Mesmo que não fosse
minha. Um lugar seguro para morar, um ambiente onde eu não
precisaria esconder minhas coisas embaixo do colchão por medo de
que outro hóspede da pensão roubar.
E trabalhar com as crianças seria incrível. Estava ansiosa para
essa nova vida que mal percebi o quanto ela me deixava preocupada.
Temia que algo que eu fizesse incomodasse o conde. Não desejava
interferir na educação que ele estava dando aos filhos.
— O senhor Otávio é um bom patrão? — perguntei a Gustavo,
para puxar assunto e porque eu realmente queria saber.
Mesmo que eu tivesse acabado de conhecer o motorista, me
senti livre para interpelá-lo dessa forma. Empregados tinham uma
conexão inexplicável, especialmente os serviçais. Éramos parceiros
anônimos no mundo ricos.
— É sim — assentiu. — Eu trabalho há muitos anos para o Sr.
Figueiredo, e ele sempre foi justo e pagou em dia. Apenas...
— Apenas?
— Não é um cara de sorrir muito.
Bom, não seria o primeiro chefe que eu teria que evitava a
simpatia para a babá.
— Mas, você vai gostar de trabalhar na casa. Arlete é muito
legal — apontou.
Concordei. O pouco que vi dela, gostei.
Respirei fundo, deixando Gustavo se concentrar no trânsito.
Meu rosto girou para a janela e observei a cidade se movendo
rapidamente, enquanto cruzávamos por ela em direção ao interior.
Era uma nova vida...

✽✽✽
O veículo parou diante da enorme escadaria. A mansão se
erigia ao céu, reparei no quanto ela parecia quase fantasmagórica a
um fundo nublado de dia cinzento. Mas, logo meus olhos perderam o
medo pela presença das duas pequenas crianças paradas diante da
porta quatro vezes o tamanho delas.
Eram tão pequenas. E pareciam tão sérias. Eu senti vontade
de descer correndo daquele automóvel e correr até elas, pegá-las no
colo e dizer que estava tudo bem elas serem o que eram: crianças.
— Bom dia, pequenos — disse, assim que desci e caminhei
até eles.
— Bom dia — Igor me respondeu, enquanto Ísis sorriu, um
pouco acanhada. — Arlete disse para nós a recebermos. Bem-vinda
a sua nova casa.
Aquele menino era tão formal. Tão pequeno, e suas palavras
já eram tão calculadas.
— Muito obrigada, Igor — disse, porque eu não sabia
exatamente o que responder. Continuar a dança da formalidade ou
tentar ser mais maternal? — Gustavo está descarregando minhas
malas, será que podem me mostrar meu quarto?
A pergunta foi apenas uma tentativa de inclui-los na atividade.
Eu podia muito bem entrar na casa e perguntar para Arlete, mas eu
queria que as crianças soubessem que eu não as considerava
intocáveis ou que iria reprimi-las de irem até mim, no quarto que eu
tivesse.
No instante que vi o olhar de Igor se animando um pouco, eu
soube que iria contrariar o pai dele ao menos numa coisa: iria dar a
esse garoto um pouco de carinho, nem que fosse escondida, mesmo
que não pudesse demonstrar o quanto gostava dele em público.
Foi uma ligação imediata. Não que com Ísis não acontecesse
também. Apenas, a menina era mais infantil, mais criança, apesar de
também ser firme e não parecer sequer um pouco saltitante no
momento. Ainda assim, ela tinha aquele brilho animado nos olhos
que me aliviava. Mas, em Igor era apenas uma máscara inatingível,
que me causou profunda tristeza.
Talvez porque me identificava um pouco. Talvez porque na
infância também tive toda alegria roubada de mim.
De repente, senti um toque na mão. Desviei meu olhar de Igor
e percebi que a pequena mão que segurava a minha era de Ísis. Sorri
para ela, e recebi outro sorriso em resposta. Ela era linda, como um
anjo. Pensei que fosse parecida com a mãe, pois não tinha nada do
pai.
— Eu sei onde será seu quarto — ela disse. — Arlete me
mostrou ontem. Vai ser entre o meu e o de Igor — contou, como se
isso explicasse tudo e me localizasse.
— Nunca estive na parte superior da casa. Terá que me
mostrar onde fica — disse.
Ela assentiu e me puxou. Comecei a andar, minha mão firme
na dela. Estendi a mão para o outro lado, imaginando que Igor
também seguraria, mas ele não moveu seu braço para mim.
Quando ele baixou a face, envergonhado, eu retirei a mão.
Não queria forçá-lo.
Subimos em silêncio pelas escadas, e entramos em um
corredor longo. Eu não vi nenhum adulto e achei aquilo um pouco
estranho. Ainda assim, avancei. Podia ouvir os passos de Gustavo
atrás de mim, trazendo as malas.
Quando paramos diante da porta aberta, percebi Arlete ali,
terminando de arrumar as cobertas sobre a cama.
— Oh, Maria Eduarda! — ela exclamou. — Não a ouvi
chegando. Desculpe não a ter ido receber, estava terminando de
arrumar esse quarto.
— Bom dia — a cumprimentei, ignorando a frase de
justificativa, meus olhos vagando pela enorme suíte, quase sem
palavras diante da beleza do lugar.
O lugar era uns três quartos da pensão, fácil. Totalmente
luxuoso – demais, até, para uma criada –, tinha uma cama de dossel
no meio dele. Ao lado da cama, um tapete fofo de peles trazia
conforto. Havia armários de madeira compondo o ambiente. Para
quebrar o clima antigo, um aparelho de som e um televisor estava na
parede oposta a cama.
Gustavo passou por mim, colocando as malas em cima da
cama. Eu larguei a mão de Isis, enquanto andava pelo quarto.
Cheguei até uma porta. A abri. O banheiro ali era simplesmente
maravilhoso. Havia até mesmo uma banheira.
— Tem certeza de que esse é meu quarto? — perguntei a
Arlete.
— Fica entre o das crianças. Será mais fácil para você estar
perto deles — Arlete justificou. Depois ela volveu para Gustavo. —
Como vai sua mãe?
Eles começaram um diálogo que não me importou. Ignorei os
dois adultos enquanto entrava no banheiro. Meus dedos rasparam na
pia de algum tipo pedra e o frio me tomou.
— Você gostou?
A voz me fez girar em direção à porta.
— Eu amei — respondi a Igor. — Mas, é tão grande. Nunca
tive um quarto tão grande.
— O meu é maior ainda — ele rebateu. — Se sentir-se sozinha
poderá ficar comigo sempre que quiser.
Meu Deus... Esse garotinho era tão adorável. Ele percebeu
que eu estava entrando em pânico? E ele estava abrindo espaço na
sua vida para mim?
— Obrigada, querido... Você também pode vir ficar comigo
quando se sentir solitário.
— Homens não podem se sentir solitários. Nem ter medo —
ele negou. — Papai não permite.
Eu quero dizer algo que aliviasse a dor que vejo refletida na
criança. Mas, não consigo dizer nada, porque não sei quanto posso
avançar e o quanto posso me aproximar. Eu preciso seguir as regras
para não perder o emprego, mas como vou negar amor a uma
criança que, claramente, precisa tanto do sentimento?
— Onde ela está? — Ouço a voz masculina vindo do quarto.
Então começo a sair do banheiro. Igor me segue. Logo,
percebo ser Otávio Figueiredo, em sua costumeira roupa escura,
entrando no quarto.
Seus olhos cravam em mim e eu derreto em mil pedaços, sem
conseguir entender o motivo.
— Papai! — Ísis se aproximou dele.
Pela maneira como ele me disse que educava Igor, imaginei
que ele fosse reprimir a crescente alegria da menina, mas o vi a
levantando nos braços. Meus olhos desviaram um pouco para minha
lateral e percebi o rosto um pouco magoado de Igor.
O conde não percebia que a diferença que fazia entre os filhos
acabava com seu garotinho?
— Senhorita — ele me encarou. — Creio que gostou dos seus
novos aposentos.
— Sim, senhor. Eu amei — respondi.
Havia um veneno na minha voz que eu não consegui evitar.
Mas, Otávio nem percebeu.
— Coloquei vários cobertores nos armários — Arlete se
intrometeu. Naquele instante percebi que Gustavo já havia ido. —
Faz muito frio na casa quando anoitece.
— Muito obrigada — respondi a ela.
— Bom, isso é tudo — ele pareceu indiferente e querendo
cortar a conversa. — Vamos deixá-la se ajeitar — ele fez sinal com a
mão para que Igor o seguisse. — Ao meio-dia em ponto, almoçamos.
Por favor, nos dê o prazer de sua companhia.
Eu não sabia se devia comer com eles. Encarei Arlete, e ela
apenas assentiu.
— Muito obrigada, senhor. Farei isso.
Quando todos saíram, eu sentei-me na cama. Só nesse
momento eu percebi que minhas mãos estavam tremulas e meu
coração parecia prestes a arrebentar meu peito.
Capítulo 6

Ela sentou-se ao lado de Igor naquela refeição silenciosa. Almoços e


jantares na minha casa costumavam ser em silêncio, costume que
aprendi com meu avô e levei para a vida. Ainda assim, eu gostava
das vezes que Ísis quebrava o clima e dizia alguma coisa que não se
encaixava no ambiente, apenas para fazer as pessoas da mesa
sorrirem.
Aconteceu de novo, pouco depois de Maria Eduarda sentar-se
e servir-se com o arroz e as batatas.
— Papai, Igor quer um cachorrinho.
Eu ergui minha face e encarei minha filha. Vi seus olhos
brilhantes e alegres, Ísis nunca tinha medo de me pedir alguma coisa.
O mesmo não acontecia com Igor. Ele quase não falava comigo.
— É mesmo? — voltei meu rosto para Igor. — Você quer um
cachorro?
Ele baixou o rosto. Não gostava quando ele demonstrava
insegurança, mas aliviava suas reações porque me lembrava que eu
também era assim com meu avô.
— Igor? — insisti. — Nunca me disse que queria um cachorro.
Quando ele ergueu a face, não me olhou. Simplesmente girou
o rosto para Maria Eduarda, que assistia a tudo com um ar curioso.
Era como se ele buscasse nela algum tipo de segurança, e apenas
depois de ela assentir, quase imperceptivelmente, foi que me
respondeu:
— Sim, papai.
Era muito difícil criar um garoto. Eu não sabia o que dizer
diante da fragilidade e da busca que ele teve na babá que mal
conhecia. Uma parte de mim se ressentia, porque queria que ele
fosse forte e, mesmo quando não tão forte, fosse em mim que
buscasse segurança. Mas, então me lembrei de que Igor era só uma
criança, e na idade dele eu também me escondia entre os braços de
Arlete.
— Não sou contra você ter um cachorro, Igor, mas precisamos
conversar sobre isso. Sabe que um animal traz muita
responsabilidade.
Silêncio. Eu podia ouvir o som do vento frio ao lado de fora da
casa.
— Isso seria ótimo, não? — Maria Eduarda abriu a boca pela
primeira vez. Eu não sabia se era certo uma babá se intrometer no
meu assunto de pai, mas não a culpei pelo sorriso que ela deu para
Igor. — Seu pai está te dando a chance de ter um cachorrinho se
você mostrar que pode cuidar dele.
Então meu filho sorriu na minha direção. Eu senti alguma coisa
estranha no meu íntimo, porque eu não me lembrava quando Igor
havia sorriso para mim alguma vez.
— Obrigado, papai.
— Pense na raça. Quando estiver pronto, eu o comprarei —
disse, por fim, meu tom era de encerramento, e as três pessoas na
mesa o aceitaram sem questionar.

✽✽✽

O dia foi cheio. Entrei no meu escritório e estudei alguns


investimentos até a hora do jantar. Arlete havia me pedido folga
naquela noite porque queria ver algumas amigas da igreja, então
quando chegou a hora, pedi algumas pizzas e deixei que Maria
Eduarda acompanhasse as crianças numa noite divertida, como uma
espécie de comemoração pelo primeiro dia dela ali.
Quando saí do escritório, perto das nove, ouvi um som que
não era acostumado com tanta frequência. Os risos infantis se
mesclavam ao riso feminino como uma música doce de minha
infância. Minha memória voltou como um relâmpago, e pude
vislumbrar minha mãe dançando comigo diante da lareira, aos meus
cinco anos.
Espantei o pensamento, porque não gostava de pensar nela.
Mas, a lembrança me fez perceber que Analy nunca fez o mesmo
com os filhos. Deus, o quanto ela odiou ser mãe? Eu me culpava por
tê-la levado a uma vida enfadonha, quando tudo que ela queria era
emoção e paixão.
Eu amei demais aquela mulher, e talvez eu ainda a amasse.
Não posso mentir, se ela quisesse voltar para casa, eu a aceitaria de
braços abertos. Quem sabe esse fosse o maior motivo de eu ter
contratado Maria Eduarda?
Comecei a andar pelo corredor, e me aproximei da sala. Vi a
babá com seus cabelos esvoaçantes brincando de roda com as
crianças.
As duas eram tão parecidas, com seus cachos dourados, sua
pele clara, e a maneira vivaz de serem. Claro, nos últimos anos Analy
estava morrendo por ficar presa a uma família, mas antes de Igor
nascer, ela era como Maria Eduarda, alegre, divertida, de sorriso
franco e de alma leve.
A roda parou no momento que a babá percebeu que eu os
observava. Ela enrubesceu um pouco embaixo dos olhos, e então
voltou-se para as crianças.
— Acho que está na hora de subirmos. Que tal eu os colocar
na cama?
Provavelmente ela pensou que eu não gostei da cena. Não sei
como estava meu rosto, já que estava subjugado pelas lembranças
do meu amor perdido.
— Está tudo bem — disse a ela. — As crianças podem ficar
assistindo televisão. Quer me acompanhar? — Quando percebi seu
olhar curioso, expliquei: — Quer beber alguma coisa?
Eu caminhei até as garrafas de bebida em uma estante lateral,
enquanto percebia Maria Eduarda negando com a face.
— Não bebe?
— Talvez uma cerveja quando estou de folga. Tenho uma
amiga, e costumamos ir até um bar perto da pensão para
conversarmos.
Assenti, ficando de costas. Ouço o som da televisão e percebi
que meus filhos se sentaram no sofá. Eu tinha muitos filmes infantis
salvos no aparelho, já que precisava deles para manter as crianças
ocupadas quando estava sem babá.
— Vou te servir uma Margarita — disse a ela. — É doce, vai
gostar.
Ela não recusou uma segunda vez. Quando entreguei a bebida
a ela, Maria Eduarda sentou-se numa das poltronas perto da lareira e
eu me sentei na outra. O vento uivava lá fora, a casa parecia gemer.
Mas, o ambiente estava estranhamente confortador.
— Analy, minha ex-esposa, bebia Margarita toda noite — conto
a ela, que arqueia as sobrancelhas enquanto recebe a bebida. — Por
isso estou acostumado a preparar o drink.
Na minha mão, eu brinco um pouco com o copo de conhaque.
— Se me permite a indiscrição, sua ex-esposa tem contato
com as crianças?
— Ela liga, semana sim, semana não — murmuro, percebendo
que a “semana sim” não ocorre faz um tempo. — Disse que está
precisando de um tempo. Que quando conseguisse colocar a cabeça
em ordem, vai dar mais atenção as crianças. — Subitamente me dou
conta da questão. — Por quê? As crianças falaram algo?
— Não. Foi isso que eu estranhei. Nenhum comentário sobre a
mãe.
Era duro ouvir aquilo.
— Analy não queria ser mãe. Igor foi um acidente. Depois, veio
Ísis. As duas crianças não foram planejadas. No caso de Igor, houve
um erro de tabelinha, e no caso de Ísis, Analy esqueceu o
anticoncepcional.
Maria Eduarda não escondeu o quanto aquilo a deixou piedosa
com as crianças. Seu olhar se demorou nos meus filhos, que
estavam afastados, perto da televisão.
— Ainda assim, são bençãos. Crianças adoráveis. Nenhuma
criança deveria se sentir indesejada.
Uma parte de mim se perguntou se ela estava falando dos
meus filhos ou de si mesma.
— Me fale sobre você — pedi. — Não sei muito. É daqui da
capital?
— Sim. Nascida e criada.
— E sua família?
— Eu perdi minha mãe quando criança, e meu pai foi embora
e se casou de novo. Não tenho contato com ele.
— Quem te criou?
— Ah — ela suspirou, dando os ombros. Depois, bebeu mais
um gole da Margarita. — Uma tia aqui, uma prima acolá. Eu zanzei
de casa em casa de parentes, até completar dezoito anos e começar
a trabalhar.
Era uma história triste.
— Sem irmãos?
— Não. Filha única. E você?
— Meus pais morreram num acidente de carro quando eu era
criança e meu avô me criou. Ele era muito rígido, mas era justo e
bom homem. Eu sei que ele me amava, apesar de não gostar
demonstrar. É difícil para um homem ficar viúvo em um ano, e perder
seu filho e nora no ano seguinte, ainda ter de assumir a
responsabilidade por uma criança. Ele fez tudo que pôde.
Ela assentiu.
— Você não tem outros familiares?
Neguei.
— As crianças têm parentes do lado da mãe?
— Uma tia e os avós argentinos. Mas eles não tem muito
contato. Ainda assim, quando eles forem visitar seus parentes,
espero que possa ir junto para cuidar deles — disse, já que eu
mesmo não pretendia ver meus antigos sogros e cunhada.
— Na Argentina? É claro — ela abriu um sorriso enorme. —
Seria minha primeira viagem internacional.
Ela era fofa. Sim, era bonita, eu percebi desde o primeiro
contato, mas agora eu notei o quanto era fofa. Tinha um sorriso tão
aberto, como se não houvesse nada a esconder.
— Mais um drink? — perguntei, quando reparei que sua taça
estava vazia.
— Não. Acho melhor colocar as crianças na cama. Quero ler
para eles antes de dormirem. E também quero descansar, foi um
longo dia.
Ela se levantou. Naquele instante, notei como seus seios eram
bonitos, redondos, quase saltando pelos botões apertados de sua
camisa. Ela vestia o uniforme da antiga babá, mas seu corpo era
mais robusto. Coxas largas e seios grandes.
Minha cabeça automaticamente imaginou Maria Eduarda nua,
seus seios saltando enquanto ela afundava no meu pau.
Que merda de pensamento foi esse?
— Senhor?
Só então reparei que ela falava comigo.
— Sim?
— Apenas quero reforçar o quanto o agradeço pela
oportunidade. Espero ser uma boa funcionária.
Respiro fundo. Cruzo as pernas para esconder minha
inevitável ereção. Faz muito tempo que não transo, e tudo isso
explica minha reação.
— Claro... Boa noite.
Ela chama as crianças e eu afasto o copo de conhaque. Álcool
e abstinência explicam o quanto meu cacete reagiu diante dela.
— Boa noite, papai — Ísis diz, e Igor me encara como se as
palavras da irmã fossem pronunciadas por ele também.
— Boa noite, crianças. Durmam com Deus.
Quando eles se afastam, eu decido tomar um banho frio.
Banhos frios serão minha rotina com Maria Eduarda na casa.
Eu sei. Eu sinto. Preciso me conter de alguma forma.
Capítulo 7

Eu entendia que uma casa como aquela rangia. Especialmente por


ser antiga, com suas esquadrias em madeira, janelas tão velhas que
eu juro que têm vida.
Sento-me na cama. Faz meia hora que pus as crianças para
dormir. Meus pensamentos estão afundados na experiência do
primeiro dia.
Ísis é cheia de vida, energia e alegria. Ela fala mais que a
boca. Tem muita confiança e, claramente, é o xodó do pai. Já Igor me
preocupa. Ele é muito retraído, e eu sinto como se ele me pedisse
algo, como se seu olhar me clamasse por alguma coisa que eu não
sou capaz de alçar.
Um dia... E eu já amava aquelas crianças...
Meu apego talvez se explicasse pela certeza de que eu jamais
teria meus próprios filhos. Nunca namorei, sempre trabalhando
demais, sem tempo para nada, mesmo para flertar. Então eu meio
que desviava todo meu instinto maternal aos filhos de outros...
Meu pensamento volve a mãe das crianças. Eu vi um retrato
dela na sala. Enorme, sobre a lareira. Eu quis perguntar se era
mesmo ela, mas acabou que Ísis me contou antes de começarmos a
brincar de roda. Assim, nem precisei inquirir. A mulher era a dona da
casa, mesmo que não morasse mais aqui. O fato de conde manter
seu retrato sobre a lareira, intocável, denotava seu amor.
Suspiro, minhas mãos sobre os joelhos.
Como ele é bonito... E ele foi tão agradável. Nunca pensei que
um patrão me convidasse para uma bebida. Pensei em insistir na
recusa, mas percebi que o Sr. Otávio se sentia muito sozinho.
Então, por que não um único drink?
Na hora, nem pensei que isso poderia ser um teste. De
qualquer forma, ele não pareceu me julgar. E enquanto
conversávamos, ele foi franco a respeito de tudo, me deixando saber
mais ainda das crianças.
Aperto meus joelhos.
Não foi tudo que ele me fez saber.
Meu corpo ficou tão ciente dele, mesmo que eu recusasse ou
tentasse afastar os pensamentos. O conde era um homem tão...
Nego com a face. Eu não posso, não devo...
Mas, o cheiro dele é tão bom. É preciso muito controle para
não abraçá-lo e afundar o rosto em seu peito, apenas para aspirar
sua colônia.
Pego meu celular. Abro o aplicativo de mensagens e envio
uma para Salete. Espero alguns segundos, mas ela não visualiza. Me
jogo para trás na cama. Quero conversar com alguém sobre o que
está acontecendo. Preciso saber se esse tipo de reação em meu
corpo é normal ou estou ficando louca.
O celular vibra. Olho a tela e Salete me mandou um emoji
sorrindo.
Eu ergo o celular para digitar sobre as sensações que ele me
faz sentir, mas não consigo. Não consigo nem colocar minha cabeça
em ordem para desabafar com a minha amiga.
“Desculpe a hora, só queria dizer que o primeiro dia foi
tranquilo e acho que o trabalho será bom”.
Não era verdade. Eu estava preocupada com as emoções que
estavam brotando. Eu precisava ser profissional, mas estava me
sentindo a beira de um precipício, a segundos de pular.
“Você vai arrasar!”, ela respondeu, e depois mandou um
coração.
Largo o celular de lado. A casa range de novo, o vento aqui
nessa colina é forte e parece retorcer as portas e janelas. Está um
pouco frio e a costumeira dor de cabeça que eu sinto a noite voltou.
Me levanto, buscando a caixinha de chá de hortelã que tenho sempre
comigo. Beber chá de hortelã é a única coisa que a alivia minha
mente quando estou estressada.
Saio do quarto em direção à cozinha. Desço as escadas e
deixo a sala de lado. O piso range conforme vou andando. A casa
parece querer me assustar, mas não é dela que tenho medo. Tenho
um sachê de chá nas mãos enquanto empurro a porta da cozinha.
A luz está acesa e Otávio está lá. Eu arregalo os olhos ao vê-
lo.
— Chá de hortelã — ele me diz, enquanto ergue uma xícara.
— Para minha enxaqueca.
Abro a boca, surpresa, enquanto ergo o sachê do mesmo chá.
Ele me encara curioso, e então ri.
— Você também tem?
— Às vezes, à noite.
— Tenho desde que Analy foi embora — ele admitiu e eu senti
muita piedade no meu coração.
— Sinto muito, senhor...
Ele sorri. Seus dentes brancos surgem em seu rosto quadrado.
Meu coração acelera porque é impossível conter essa sensação. Eu
devia me afastar e sair agora, fugir do que ele provoca, mas quando
Otávio se sentou à mesa, deixando a chaleira livre, eu fui preparar
meu chá.
E, depois, sentei-me diante dele. Não era capaz de deixá-lo
sozinho.
— Eu vi o retrato dela na sala. Era lindíssima.
Ele riu baixinho.
— Você é muito parecida com ela.
Arqueei as sobrancelhas. Era um elogio?
— Fisicamente? Acho que temos o mesmo cabelo...
— Você também tem esse jeito... sei lá...
— Jeito?
— Quando você estava brincando com as crianças, mais cedo,
e estava rindo alto... Quando conheci Analy ela também era assim,
cheia de vida, cheia de alegria...
Aparentemente, isso não durou muito.
— Desculpe estar desabafando com você — ele murmurou, e
eu tomei a atitude mais impensada da minha vida.
Ergui minha mão e segurei a dele. Seus olhos encontraram os
meus naquele instante, e eu senti fogos de artificio explodindo na
minha mente.
O que está acontecendo comigo?
Afastei minha mão.
— Bom, vou levar meu chá para meu quarto. Já está tarde,
vou tentar dormir — digo, me levantando.
Ele sorriu para mim, de novo. Será que sabia o que
despertava?
— Boa noite, Maria Eduarda.
— Boa noite, senhor — respondi e me afastei.
A casa rangia. Meu coração rangia.
Eu estava perdida.
Capítulo 8

O leve e simpático toque dela queimou em minha pele. Mesmo após


sua saída repentina da cozinha, quase uma fuga desesperada,
minhas mãos ainda estavam quentes e meu corpo reagia como se eu
fosse um adolescente deslumbrado.
Eu tenho tanta coisa para pensar desde que Analy se foi...
desde que perdi o amor da minha vida... Eu tinha filhos para criar,
empresas para administrar... Eu não podia desviar minha atenção
para uma babá, por mais atraente que ela fosse.
Mas, não era só a coisa física. Eu me abri com essa garota
duas vezes em uma única noite. E eu não costumava fazer isso com
ninguém, nem mesmo com Arlete ou Bernardo. Meu melhor amigo,
por exemplo, só soube que estava me separando de minha esposa
quando Analy foi embora de casa. Meus problemas conjugais
mantive sobre a máscara da aparência social.
Mas, com Maria Eduarda... Eu me abria. Não devia, mas me
abria.
Talvez eu apenas estivesse procurando uma amizade sem
riscos, já que como ela fazia parte do meu núcleo social, não havia
perigo de ela contar meus problemas ou minhas fraquezas para
algúem importante. O fato de ela me despertar sexualmente era
apenas o que qualquer mulher faria a um homem muito tempo sem
sexo.
Não era como se eu fosse dormir com a empregada. Meu avô
sempre me disse para manter-me longe da criadagem. Eu sempre
cumpri isso, não importava o quão belas eram as bundas das garotas
que limpavam o casarão ou quão espirituosas as criadas se
mostrassem.
Suspiro, lembrando-me de como, na infância, eu pensei que
Arlete e meu avô eram namorados. Eles se davam muito bem. Mais
tarde, quando eu já era um homem e meu avô já havia falecido,
Arlete me confessou que o amou em segredo por muitos anos, mas
eles nunca tiveram nada.
Meu avô representou a nobreza até o fim. Não importava o
quão forte era o laço que o unia a Arlete.
Larguei a xícara sobre a pia e decidi ir dormir. A dor de cabeça
passou e eu precisava de uma noite de sono para o dia que viria.
Muito trabalho e a presença tentadora de Maria Eduarda parecia um
aviso de que noites sem sossego seriam minha rotina dali em diante.

✽✽✽
Ela estava na cozinha quando eu entrei. Preparava uma
bandeja com pães, ovos e frutas. Percebi que eram para as crianças.
Ela desenhou um rostinho sorridente com ketchup em cima da
omelete.
— O senhor quer que eu prepare algo para comer? — ela me
indagou, quando me percebeu girando os olhos e procurando Arlete.
— Eu não costumo tomar café da manhã. Apenas bebo café
preto, mas Arlete deve ter colocado um bule no meu escritório.
— Sim, ela acabou de ir para lá.
— Ótimo...
Eu devia dar meia volta agora, mas não conseguia desviar
meus olhos dela.
— Passou bem a noite? A cama era confortável?
— Sim, muito. O quarto é maravilhoso. Apenas...
— Apenas?
— A casa faz barulho — ela murmurou e eu precisei conter um
sorriso.
— É uma casa velha.
— Lembra filmes de casas mal-assombradas — disse.
— Garanto que não há fantasmas aqui. Apenas, talvez, algum
sentimento de insatisfação.
O que eu estava dizendo? Seus olhos brilharam, curiosos, e
eu soube que precisava me afastar antes de avançar e levá-la de
volta a cama.
— Bom, vou deixá-la com as crianças e o café da manhã
divertido — apontei a omelete. — Tenho muito trabalho.
Ela assentiu, gentil. Ela inteira era doce. Delicada. Não
maliciosa. É verdade que ela lembrava muito Analy fisicamente, mas
agora que estava a conhecendo melhor, percebia a diferença gritante.
Minha ex jamais perdia a oportunidade de flertar. Maria Eduarda era
avessa a isso. Mesmo na noite anterior, quando, por impulso, ela
segurou minha mão, eu vi a culpa resplandecendo nela logo em
seguida. Quando ela fugiu de mim, e do que estava cada vez mais
forte sendo despertado em nós, a comparação com Analy se tornou
intensa.
Analy não fugiria. Ela gostava da arte da sedução.
Mas, Maria Eduarda parecia tão inocente e...
Será que já teve um homem? Não devia ser virgem, claro... já
tinha quase trinta anos. Mas, o quão experiente ela era?
Eu saí da cozinha, passos reticentes. Não queria me afastar
dela, estar perto dela parecia tão... tão bom. Mas, era tão perigoso,
também. O melhor seria me manter o mais longe possível, até porque
não queria criar nela qualquer tipo de sentimento.
Mais uma vez, me lembrei de que um conde não fica com uma
empregada.
Na porta do escritório, esbarrei em Arlete.
— Bom dia — disse a ela.
— Sr. Bernardo ligou. Disse que precisa ir até o escritório para
resolver algumas pendências inesperadas com dois ou três contratos,
e que Gustavo viria pegá-lo em uma hora.
Eu sabia quais eram as pendências inesperadas. Alguns
investimentos entraram em retrocesso com a queda da bolsa na noite
anterior.
— Ok. Quando Gustavo chegar me avise.
Arlete saiu do escritório fechando a porta atrás de si. Me servi
de uma xícara de café, enquanto ligava o computador e verificava os
e-mails.
No fundo, era uma sorte. Um bom dia de trabalho longe de
casa me manteria afastado da babá dos meus filhos e,
consequentemente, me colocaria nos eixos, novamente.

✽✽✽

— Quer um café? — Bernardo indagou, enquanto eu me


sentava diante dele.
— Tomei um litro de café hoje de manhã.
— Vai infartar antes dos cinquenta — ele riu, naquele tipo de
conselho bobo que só ele me dava.
O escritório dele permanecia igual. Nada mudou nesses
muitos anos que Bernardo assumiu a cadeira gerencial. Desviei meus
olhos para alguns quadros na parede, e demorei-me um pouco em
analisar que apenas a cor da parede estava diferente do que me
lembrava.
— O que você tem, Otávio?
Volvi meus olhos para Bernardo, sem entender.
— O quê?
— Está diferente. Parece mais... sei lá... É como quando
conheceu Analy. Tinha uma alegria inexplicável. — De repente, ele
pareceu entender muita coisa. — Ei! É mulher! Com certeza está
saindo com alguém!
Neguei com a face, um sorriso idiota na cara.
— Não, não estou.
— E por que não? Meu amigo, precisa conhecer alguma
mulher! Não queria ser injusto ou indelicado, mas quando liguei para
Analy a seu pedido para agendar uma reunião sobre a partilha de
bens do divórcio, ela me deu a entender que já estava saindo com
alguém.
Eu sabia disso, apesar de não querer pensar. Quando ela saiu
de casa, soube por uma rede social que ficou com outro homem na
mesma noite. Talvez ela até me traísse durante o casamento, mas
não era sua falta de lealdade que me massacrava. De alguma
maneira, a culpa recaía sobre mim. Eu não fui um marido capaz de
manter sua atenção, e mesmo quando ela reclamou sobre Ísis, eu
não a deixei abortar.
— Não importa, Bernardo. Eu tenho duas crianças para criar.
— A mãe é cinquenta por cento responsável. Você devia exigir
que Analy cumprisse suas obrigações.
— Ela o fará quando estiver pronta.
— Por que é tão compreensivo?
Dei os ombros.
— Suponho que a amei demais e a quero feliz, mesmo que
não seja comigo.
Bernardo negou com a face.
— Apenas encontre uma mulher gostosa e a foda. Talvez isso
cure a lembrança de Analy.
— É... farei isso — assenti. — No momento estou ocupado.
Mas, agora que as crianças têm uma babá, eu poderei sair mais à
noite.
O olhar de Bernardo brilhou.
— Uma babá? Quero conhecer.
— Fique fora do caminho dela, entendeu?
Bernardo bateu as mãos.
— Ora, ora... Alguém já está de olho?
Neguei com a face, mas não pude negar em palavras.
— Você me fez sair de casa para trabalhar ou para ficar
bisbilhotando minha vida?
A risada do meu amigo invadiu o escritório. Mas, não o
acompanhei na risada. Sentia como se ele houvesse tocado em um
ponto sensível de mim.
Talvez tivesse...
— Vou dar um jantar antes da minha viagem. Faça o favor de
levar uma mulher, lá.
Neguei. Mas, não tão certo.
Voltar a viver, apesar de assustador, era necessário.
Capítulo 9

Nas duas primeiras semanas eu entrei em uma rotina


agradável com as crianças. Elas acordavam às sete, tomavam café
da manhã, e então faziam exercícios educativos que eu aprendi
quando auxiliei uma professora particular de uma criança que cuidei
anos atrás.
Mesmo que eles ainda fossem pequenos e que não tivessem
começado oficialmente na escola, era importante já terem uma ideia
sobre as letras e a sonoridade delas. Nós montávamos palavras e a
cada descoberta eu vivenciava a alegria de Ísis e a admiração de
Igor.
À tarde, eu costumava dar passeios com os pequenos. Perto
da mansão, em uma estrada de terra, havia diversos arbustos de
framboesa. Nós colhíamos para lanchar ou simplesmente para levar
para Arlete. Eles adoravam os passeios, corriam e riam como as
crianças que eram. Foi aí que Igor me surpreendeu. Longe das vistas
do pai, se permitia ser infantil.
— Eu adoro você, Duda — ele me disse, certa vez, usando de
um apelido que a irmã me deu.
Segurei suas mãos entre as minhas e a apertei.
Eu o amava. Amava Ísis também, mas com Igor a relação era
tão complexa. Era como se ele só se deixasse ser criança perto de
mim.
E eu sabia que essa confiança que ele depositava em mim era
muito importante.
Não vi Otávio muitas vezes nos dias que se passaram. Ele
acordava cedo, se enfiava no seu escritório, e só saia de lá tarde da
noite. Ouvia seus passos pesados no corredor, e sentia muita
vontade de ir conversar com ele, mas sabia que não era adequado,
então reprimia minhas necessidades.
— Você está ouvindo, Duda? — Ísis me tirou do devaneio,
enquanto inclinava a cabeça para o lado, tentando escutar melhor.
Eu segurava sua mão, enquanto Igor andava um pouco mais a
frente, cutucando a estrada de terra com um galho de madeira
enorme. Ele parou e se voltou para mim.
O silêncio só era cortado pelo vento que balançava minhas
madeixas presas, com sua força outonal.
— Parece um bebê — Igor disse, e eu agucei mais os ouvidos.
Só então eu ouvi, aquele chorinho bem baixinho, tão fraquinho,
que meu coração arrebentou em mil pedaços. As crianças
perceberam primeiro de onde vinha, e correram naquela direção. Eu
os segui, meu coração ansioso, temeroso pelo que veria.
E era um bebê. Não humano. Um pequeno filhotinho de
cachorro preto choramingando de fome e sede, dentro de uma caixa
alta, entre os arbustos daquela estrada abandonada.
— Oh, Deus... Quanta crueldade — murmurei, enquanto o
pegava no colo, seu rabinho batendo rapidamente, o pequeno
parecia extremamente grato por ser tirado dali.
— Cadê a mãe dele, Duda? — Igor perguntou.
Eu me inclinei um pouco para permitir que Ísis pegasse o
pequeno nas suas pequenas mãos. Ela foi tão gentil que meu
coração acelerou. Ísis sempre parecia tão saltitante e cheia de
energia, mas agora ela estava quietinha, pequeninha, quase triste e
irreconhecível.
— Não sei, meu amor — disse.
Não sabia também se podia falar sobre as maldades do
mundo para as crianças, mas achei que saber que havia pessoas que
abandonavam filhotes era parte do aprendizado. O mal existia, fazia
parte da sociedade, e eles precisavam saber que gente assim
precisava ser evitada.
— Provavelmente a mãe ficou na casa do dono. Tiraram o
filhote dela e abandonaram aqui.
— Por quê? Ele não vai sentir saudades da mamãe? A gente
sente — Ísis me contou, e eu senti lágrimas nos olhos.
— Eu sei, querida. Há pessoas que não se importam com a
dor nos animais, nem com a dor nas crianças.
Eu não sabia se eles iriam me entender, mas por fim,
assentiram. A primeira lição de vida era muito difícil.

✽✽✽

Arlete negou com a face, enquanto me olhava como se não


acreditasse no que via.
— Já vi cachorros aqui no casarão. Alguns Golden, Cane... até
Boiadeiros. Mas, um vira-latas vai ser o primeiro.
Eu sabia o que ela estava tentando dizer. Quando Igor pediu
um cachorro, o pai disse que o compraria. Nem cogitou adotar.
Pessoas de certa classe só querem sangue azul, mesmo em seus
animais.
— Falarei com o conde — indiquei, e Arlete colocou as mãos
nos quadris como se isso a ajudasse a pensar melhor.
O cachorrinho choramingou e Ísis o apertou contra o rosto.
Aquela cena foi tão doce e tocante que amoleceu até Arlete.
— Vou esquentar um pouco de leite para ele. Deve estar com
fome.
Ela nem esperou pela minha resposta. Entrou na casa com
pressa, e eu encarei as crianças paradas na escadaria com um
sorriso animado.
— Arlete já derreteu por ele — disse. — Seu pai também vai.
— Papai não gosta de cachorros — Igor me contou.
Como alguém podia não gostar de cachorros?
— Por que não?
— Não sei. Arlete me contou que quando era criança, ele
queria um, mas vovô disse que cães eram apenas para fazer a
guarda.
O conde era duro porque foi criado para ser. Eu imaginava que
muito do que ele espelhava era porque assim aprendeu. Entendia
mais que ninguém, já que eu também tinha minhas defesas por conta
da minha infância.
Meu coração ficou triste pelo menino que ele foi. Eu sabia
como era a solidão, e entendia quão difícil é se sentir sozinho.
— Se seu pai não deixar ficarmos com ele, vou colocá-lo para
adoção nos grupos do Facebook da cidade. Prometo que ele não vai
voltar para a rua — disse as crianças e elas pareceram ficar bastante
aliviadas.

✽✽✽

Foi muito difícil convencer as crianças a deixarem o


cachorrinho em paz para irem tomar banho e jantarem. Eles
passaram o resto da tarde com a pequena criatura em meu quarto, o
admirando tomando leite ou dormindo entre as cobertas.
— Como vamos chamá-lo? — Ísis perguntou ao irmão.
— Não vamos chamar de nada, para não nos apegar. Só se
papai deixar, daí a gente o nomeia.
Ele era só uma pequena criança, mas tinha tanto medo do
sofrimento da separação. Eu imaginei então como ele se sentia sobre
sua mãe. Nenhum deles falava sobre Analy. Mesmo o nome dela só
descobri por que escapou dos lábios de Ísis certa vez.
Na hora do jantar, eu percebi as crianças trocando olhares,
mas não sabia se devemos esperar até o final do jantar, ou dizermos
logo o que precisávamos.
— Como foi seu dia? — Otávio indagou, me encarando.
— Incrível — respondi. — As crianças e eu fomos colher
framboesas na estrada velha.
— Eu fazia isso quando era criança. Vocês já foram muito
longe?
— Não, alguns metros do portão de entrada.
— Ao final da estrada tem uma cachoeira. É muito seguro,
muito afastado de tudo. As terras são do condado, então podem ir lá
quando quiserem.
Acenei, agradecida. As crianças me olharam, havia súplica em
seus olhos.
— Aconteceu uma coisa hoje, quando estávamos caminhando.
Otávio ergueu a face do prato e me encarou.
— Sim?
— Encontramos um filhote de cachorro. Ele estava
abandonado em uma caixa. Como não podia ficar sozinho, o
trouxemos para casa. — Pigarreei. — As crianças, eu... Até Arlete...
Todos queremos saber se o senhor aceita...
Samuel entrou nesse instante trazendo uma garrafa de vidro
com vinho. Eu travei as palavras, enquanto o mordomo enchia a taça
diária de Otávio.
— Continue — Otávio pediu, assim que Samuel se afastou a
um canto da sala.
— Bom, o cachorrinho precisa de um lar e...
— Quer saber se ele pode ficar na casa?
— Isso.
Otávio pegou a taça e a levou aos lábios. Ele parecia pensar,
mas também parecia afundado em lembranças. Ficava tão bonito
assim, sério. Eu precisei lutar para desviar meus olhos de seus lábios
molhados de vermelho.
— Meu avô jamais permitiria.
Não era uma negativa, ele estava se lembrando de quando era
criança. Eu senti vontade de ir até ele e ampará-los nos braços. A
criança que ele já foi resplandecia em seus olhos brilhantes.
— Tudo bem — ele disse, enfim. Eu pude ver a alegria
estampada nas crianças, e me animei também. — Mas, tenho uma
condição: preciso de uma companhia para um encontro entre amigos
mais tarde.
Sei que a incerteza cruzou minha face, já que ele explicou em
seguida:
— Meu amigo Bernardo vai dar um jantar essa noite para
celebrar um novo acordo com novos investidores. Ele pediu minha
presença, mas não quero ir sozinho para não ficar levantando
comentários. Então, gostaria de ir comigo?
Isso era certo? Correto? Adequado a minha condição?
— Eu não sei o que responder — murmurei.
— Apenas diga que sim.
Ele era charmoso como o diabo. Uma parte de mim dizia que
precisava mandar certa reserva, mas outra subitamente quis ir.
— Por favor, Maria Eduarda — Igor pediu, ao meu lado. —
Pelo cachorrinho.
Encarei o menino e então soube que não conseguiria negar
nada a ele.

✽✽✽

Eu não tinha roupa para ir a um jantar de negócios. Abri meu


guarda-roupa e me senti completamente deslocada. O que eu
vestiria? Além de três peças do uniforme de trabalho, tinha uma ou
duas saias velhas, e três calças jeans. Minhas blusas coloridas não
combinavam com um jantar de negócios. Quando aceitei o convite de
Otávio, não pensei nisso.
O certo era eu ir até ele e explicar por que mudei de ideia.
Seria melhor que envergonhá-lo diante dos seus amigos.
Uma batida na porta me fez olhar naquela direção. Eu estava
enrolada em uma toalha. Era nove horas da noite, e as crianças já
haviam deitado. Pensei que fosse o conde, então me virei em direção
ao robe para me cobrir, mas outra voz soou.
— Sou eu, Maria Eduarda — era Arlete.
Sem precisar de muito pudor, fui até a porta e a abri. A mulher
mais velha estava parada diante de mim com um vestido creme,
adornado de tule e rosas bordadas, claramente feito à mão.
— Era da senhora Analy. O patrão mandou te entregar.
Mais uma vez a recusa passou pelos meus lábios, mas se não
fosse pela bondade de Otávio, eu iria vestida como a pobretona que
eu era.
— Está me julgando, Arlete? Eu aceitei porque... não sei por
que... — balbuciei, pegando o vestido.
— Não estou pensando nada, criança. Apenas vim te trazer o
vestido.
O olhar dela quase era piedoso.
— É errado a babá sair com o patrão, mas Igor pediu...
— Maria Eduarda, sr. Otávio é um cavalheiro. Se ele te pediu
esse favor, sou grata por estar ajudando-o. Depois que Analy foi
embora, é muito difícil para ele enfrentar a sociedade sem que todos
o estejam julgando. O que um homem fez para uma mulher que a
obriga a abandonar os próprios filhos? — ela indagou, em terceira
pessoa. — Ah, menina... Sr. Otávio sempre foi bom para a esposa,
ele a amava mais que tudo nessa vida... Não merecia isso.
Depois disso, Arlete saiu. Meu coração ficou mais tranquilo
pelo que Arlete pensava. Mas, não podia negar que havia certa
tristeza pela lembrança massacrante de que o Sr. Otávio já amou e
talvez ainda amasse a mãe de seus filhos.

✽✽✽

Ele estava parado ao final das escadarias. Vestia um terno


caro e escuro, e seu porte parecia mais e mais tentador. Por um
segundo, eu me permiti sonhar de que ele era um príncipe encantado
me levando ao primeiro baile.
— Você está linda — ele disse.
Senti meu rosto esquentar. Senti-me muito idiota pela reação.
— Obrigada, senhor.
— Já lhe disse uma vez, chame-me de Otávio.
Ele estendeu a mão para mim. Eu a segurei. Meu coração
parecia flutuar por alguns segundos, mas então eu vislumbrei o
quadro sobre a lareira, e pela primeira vez notei que a mulher do
retrato estava usando o mesmo vestido que eu.
Eu não era só uma companhia social. Era a imitação patética
de seu amor perdido.
Capítulo 10

É claro que eu não precisava de uma companhia para o jantar de


Bernardo. O convite veio a meus lábios de repente, durante a
refeição, algo inesperado até mesmo para mim.
Talvez eu me sentisse muito sozinho. E ela estava sempre na
casa, com as crianças. Foi essa justificativa que dei a Arlete, quando
lhe pedi que entregasse o vestido a Maria Eduarda.
— Você precisa separar a semelhança com Analy, do fato de
ela ser uma jovem disponível — Arlete aconselhou. — Não vá
machucar a moça. Apesar de ela ter esse jeito espontâneo, ela não é
Analy, não tem as mesmas defesas de Analy...
Era um conselho sábio, reconhecia. Mas, quando a vi
descendo as escadas, esqueci-me completamente dele.
Maria Eduarda não era Analy, mas por alguns segundos eu vi
minha ex esposa. Dez anos voltaram-se a minha mente enquanto a
observava no vestido claro, seus cabelos descendo em cachos por
seus ombros, os olhos alegres e a beleza estonteante adornada pela
roupa que caia perfeita pelo seu corpo.
Ela era linda... toda linda...
Meus olhos passearam por seus seios grandes, desceram até
seus quadris largos.
Então, de repente, seus olhos obscureceram. Foi exatamente
como no filme de minha vida. Minha belíssima esposa que eu amava
mais que tudo perdendo o brilho. Com Analy levou anos, mas com
Maria Eduarda aconteceu em segundos.
— Vamos? — indaguei, tentando ignorar aquela tristeza que vi
nela.
Porque realmente não importava. Ela era apenas uma
companhia substituta.
— Claro — ela respondeu.

✽✽✽

O jantar devia ter sido algo íntimo, apenas para alguns


convidados, mas a casa de Bernardo estava cheia de gente, ao ponto
de eu sequer enxergar meu amigo em algum canto.
— Ele subiu a um dos quartos com uma mulher atraente — um
dos homens me contou, um sorriso malicioso nos lábios.
Isso era a cara de Bernardo! Um evento cheio de gente
desconhecida, várias modelos e influenciadoras que ninguém sabia o
nome, e ele deixar tudo para se esgueirar com alguma mulher
enquanto negócios importantes acontecem.
Era um pouco insultante, especialmente porque havia outra
classe de mulheres ali. Esposas. Não era certo ele fazer esse tipo de
coisa, era uma desfeita com os investidores. Esforcei-me então numa
das aptidões que mais me faltava: a social. Levei Maria Eduarda até
um grupo e começamos a conversar com eles. A conversa era leve,
em torno da política e economia, nunca aprofundando demais.
Ficamos assim por um bom tempo, ela foi muito educada e
gentil em me acompanhar em tal coisa.
— Você quer comer alguma coisa? — perguntei a minha
acompanhante quando enfim parecia que tínhamos falado com todos.
— Sim...
Segurei sua mão e a levei até uma mesa, onde várias coisas
estavam sendo servidas.
— Você conhece toda essa gente? — ela perguntou, enquanto
segurava um prato.
Começamos a zanzar entre o buffet. Havia muita comida ali,
de vários tipos, mas tanto Maria Eduarda quanto eu optamos por
salada e carne.
— Só conheço dois ou três investidores. Os demais, só Deus
sabe quem são. Bernardo faria as apresentações, mas sumiu. Se ele
não fosse meu melhor gerente, estaria despedido agora.
Ela sorriu. Era fofa quando sorria.
— Ele parece ser muito corajoso em fazer isso na noite que o
chefe viria a sua casa.
— Ele é maluco — eu concordei. — Mas, é um cara legal.
Você vai gostar dele quando o conhecer.
A levei até uma das mesas no lado externo da casa. Havia
várias postas no jardim, e a noite estava agradável. Nos sentamos
perto das luzes de canto, a música estava mais suave ali, e o
ambiente lembrava um encontro.
Mas não era um encontro, fortaleci.
— Você gosta de festas? — ela me perguntou, talvez meu
semblante esteja fechado demais e eu tenha transparecido meu
incômodo em estar aqui.
— Você me pegou — brinquei. — Não, não gosto. Hoje,
quando Bernardo me pediu para vir, eu recusei, mas ele insistiu,
disse que é bom ser visto para ser lembrado. Normalmente me sinto
deslocado em lugares assim.
— Deslocado?
— É como se não fosse meu lugar.
Eu sorri, triste.
— O que foi?
— Lembrei-me de Analy. Ela dizia que lugares assim são meu
lugar, já que um homem rico tem seu lugar em qualquer ambiente.
Ela gostava de festas. Ela gostava de movimento. Se ela estivesse
aqui, já teria chamado a atenção para si e se cercado de gente para
conversar.
Ela enrubesceu.
— Não quis dizer que você está falhando ou algo assim. Na
verdade, estou aliviado por você ser um pouco como eu — admiti. —
Assim eu tenho uma companhia para ficar de canto, não sendo o
centro das atenções.
Ela pegou o garfo e levou um pedaço de brócolis a boca. O
mastigou em silêncio, como se estivesse meditando no que dizer:
— As crianças sentem a falta dela — me contou. — Elas não
falam, mas eu sei.
Acenei.
— Analy não liga a semanas — contei. — Francamente, não
sei o que fazer.
— Por Ísis, já faz tudo. Mas, Igor... ele precisa... — ela voltou a
enrubescer. — Oh, me desculpe a intromissão. Vou ficar quieta...
— Não, por favor — insisti. — O que quer dizer?
Era importante para mim saber sobre meu filho.
— Igor precisa entender que é amado. Ele sabe que é, mas
precisa sentir que é. Saber e experimentar amor são coisas
diferentes. As crianças precisam do tato, da demonstração.
Meus olhos se encheram de lágrimas, mas eu desviei o olhar
dela e encarei o jardim. A noite aqui na cidade era cheia de luzes e
vozes. Havia o som de carros cruzando a avenida próxima. A
agitação me deixava tonto.
— Eu não posso porquê...
— Por causa de um título?
— É importante que ele saiba... Meu avô disse que...
— Você não é seu avô. O que é mais importante: o condado
ou seu filho?
Silêncio. Eu estava mastigando as palavras. Ela foi corajosa
em me dizer tudo isso, outra pessoa não teria tanto atrevimento.
— Eu quero te agradecer...
A frase dela me fez volver novamente em sua direção. A luz
atrás dela brilhou, resplandecendo seus cachos loiros escuros.
Naquele instante, percebi que seu olhar era esverdeado. Um escuro
esverdeado que quase se confundia com o preto.
— Agradecer?
— Obrigada por ter deixado Igor ficar com o cachorrinho. Foi
muito importante para ele.
Eu fiquei submerso nela por alguns segundos. Ela era incrível.
Seu agradecimento agora era tão sincero e real. Nunca conheci uma
mulher que se importasse com algo tão simples dessa forma.
— Me fale sobre você, Maria Eduarda — pedi.
— Eu? — seus ombros tremeram. — O que quer saber?
— Já amou alguém?
Ela pareceu tão surpresa pela pergunta, como se nunca
alguém tivesse questionado isso. Ela era honesta em sua reação, e
eu me senti mais uma vez embevecido, mole, por causa dela. Talvez
porque Maria Eduarda era gritantemente humana. Tão humana que
doía. Sem máscaras ou perfeição. E isso aliviava a mim também,
porque eu não precisava ser o conde durão perto dela.
— Não — ela disse, simples, e isso não me surpreendeu
nenhum pouco.
Voltamos a comer. Não que houvesse qualquer
constrangimento, apenas a comida estava esfriando.
— Semana que vem irei conversar com a escola das crianças
para eles retomarem os estudos em ambiente físico. O que acha?
— Acho muito bom. Sei que sentem saudades dos
coleguinhas.
Voltamos a comer em silêncio. Ao fundo, pude ouvir Tim Maia
com sua voz rouca declarando:
“Todo pranto sumiu, um encanto surgiu, meu amor”
Sorri.
Pela primeira vez em meses, eu me sentia em paz.
✽✽✽

— Foi uma noite muito agradável. Pena que não pude


conhecer seu amigo — Maria Eduarda disse, parada à porta de casa,
seu rosto tão bonito parecia resplandecer uma paz que me fez ansiar
por experimentá-la.
Seus lábios estão tão perto dos meus. Era só me abaixar um
pouco e capturar sua boca. Eu queria isso com muita ansiedade.
— Muito obrigado por ter me acompanhado.
Ela fez menção de entrar, mas repentinamente eu segurei seu
braço. Nosso olhar se encontrou.
Eu devia soltá-la agora. Porém, não consegui.
Capítulo 11

Sinto como se uma parte de mim estivesse submersa no mar. Eu


posso sentir a falta de oxigênio me tomando desde que eu era
criança, me afogando na desesperança, bolhas de felicidades se
espalhando ao redor de mim, mas jamais me tocando.
Estou caindo... tão fundo. As crianças com quem convivi eram
restos de ar no meu pulmão. A saudade da minha mãe, o abandono
de meu pai, o desamor dos meus tios apenas puxavam-me para mais
e mais abaixo.
Estou me afogando...
E então sinto Otávio aproximando seu rosto. Sua boca
resvalando levemente contra minha bochecha. Depois de tantos anos
afundada em dor, eu me sinto respirar pela primeira vez.
Otávio está me salvando. Eu nem sabia que estava morrendo,
mas, pela primeira vez, ao sentir meu coração acelerando enquanto
sua boca desce até a minha, percebo que nem existi até esse
momento.
Subo minhas mãos inexperientes. Só quero segurá-lo para ter
certeza de que é real. Mas, inconsciente, minhas mãos agarram seus
cabelos, enquanto meu rosto inclina para que sua boca possa
afundar mais.
É tão incrível. Tão maravilhoso. Otávio é tão quente, sua
língua é tão atrevida em minha boca, abrindo passagem para tocar a
minha língua, nossos dentes batem um no outro enquanto a
inclinação muda para que novas texturas possam ser testadas.
Eu sinto meu corpo reagir com fogo. Não consigo evitar. As
mãos masculinas me abraçam e Otávio me puxa contra ele. Seu
corpo é tão grande, tão firme. Há outro tipo de dureza que me toca e
eu gemo contra sua boca, querendo mais e mais.
“Ele não está vendo você, e sim a esposa perdida”, o
pensamento me toma.
Eu estou vestida como ela. E eu reconheço a semelhança.
Sou apenas uma cópia nessa noite. Quero me afastar, lágrimas
surgem em meus olhos, mas a cada carinho eu me aperto mais
contra ele. Eu nunca tive nada, mesmo pouco, o que ele está me
dando é tudo...
Seus dedos sobem pelo meu vestido. Ele toca a ponta de um
dos meus seios. Estou tão dolorida que não posso evitar o gemido
contra seus lábios.
— Você é tão gostosa... Eu quero muito foder você...
A frase me incendiou, lavas ardentes descendo e molhando
minha calcinha. Eu me apertei mais, pude sentir seu pau apertando
minha barriga e tentei ficar na ponta dos pés para esfregar aquela
ponta contra meu centro.
Porém, o som de passos me fez recuar automaticamente.
Por alguns segundos, Otávio me encarou com tanta surpresa
que parecia que só então se dava conta de que era eu, a babá dos
seus filhos, que estava ali naquele instante.
— Maria Eduarda — ele sussurrou meu nome exatamente
quando a porta se abriu.
Encaramos Arlete como se nunca a tivéssemos visto. Claro,
ela deixou visível o quão surpresa ficou em nos ver parados no lado
externo do casarão, mas logo sua reação foi substituída por um
aceno com a face.
— As crianças estão acordadas, assistindo televisão na sala.
Concordei, enquanto entrava na mansão. Estava inteira
sensível, meu corpo mole, quente e molhado. A sensação era tão
perigosa, que tudo que eu queria era me esconder no quarto e fugir
do olhar de Otávio que queimava em minhas costas.
— O que vocês estão fazendo acordados? — disse aos dois
pequenos, que sorriram para mim.
Eu os levei para cima, e os coloquei na cama novamente. Meu
corpo estava beirando ao desespero, uma insatisfação louca
tomando conta de mim. Mas, tentei ser paciente com as crianças
porque sabiam que elas estavam acordadas porque queria me ver
antes de dormir.
O amor delas era importante. Era tudo. Eu não podia colocar
em risco meu emprego nem minha posição de babá por causa de
sensações desconhecidas que eu nem sabia mesurar.
Fui para cama naquela noite lutando contra meu corpo e
contra os desejos recém-descobertos. Dúvidas pairavam sobre mim:
como eu reagiria diante de Otávio depois do que aconteceu? E
Arlete? Ela viu alguma coisa?

✽✽✽

— Já escolheram um nome? — perguntei a Igor, que estava


sentado à mesa do café da manhã com o cachorrinho nos braços.
— Ainda não sabemos, Duda — ele disse. — Eu estava
pensando que podia ser o nome do personagem do livro que você lê
para nós?
— Bilbo? — indaguei, surpresa. — Sério?
Eu estava tão orgulhosa deles. Não apenas porque O Hobbit
era meu livro favorito, mas também porque eles estavam abrindo
espaço para algo especial meu em suas vidas.
— Você gosta, Duda? — Ísis indagou, comendo um pedaço da
omelete.
— Eu adoro.
Meu coração disparou em ver ambos sorrindo para mim. A
presença deles era tão reconfortante. Tanto Igor quanto Ísis estavam
sendo generosos em dar sua amizade e respeito para a simples
babá. O amor deles era sincero.
— Bom dia.
Eu sei que enrubesci à entrada de Otávio. Não consegui
levantar meus olhos para ele, e apenas respondi ao seu cumprimento
com formalidade.
— Papai, o cachorrinho se chamará Bilbo — Ísis contou a
novidade para o pai.
Arlete entrou na sala naquele instante, trazendo outra jarra de
suco. Ela serviu o copo de Otávio, e eu reparei que eles trocaram um
olhar cúmplice.
— É mesmo? Quem escolheu o nome?
— Igor.
Meu olhar cruzou com o de Igor. Eu sabia que ele estava
inseguro sobre a opinião do pai. Otávio era tão duro com ele, sempre
exigindo mais e mais.
— É um nome incrível, Igor.
Meu olhar saiu do menino e caiu no pai. Eu sabia que não
escondia a surpresa, especialmente porque o pedido para que Otávio
pegasse mais leve partiu de mim, uma leviana intromissão na
educação que ele dava ao filho.
Disse um milhão de vezes para mim mesma que eu era só a
babá e que não devia intervir, mas não consegui manter isso para
mim. Eu queria tanto que Igor se sentisse confiante e amado. Ele era
tão especial, tão doce, tão gentil.
— É mesmo?
O som de assombro veio do menino. Aos meus olhos, percebi
Otávio enrubescendo, como se só então se desse conta do que
estava diante de si o tempo inteiro: Igor não se sentia amado, e sim
cobrado.
— Sim, filho — ele murmurou.
Arlete abriu um sorriso enorme diante do fato. Nós duas nos
olhamos, e não conseguimos esconder a alegria. Por algum
momento, o constrangimento da noite anterior caiu.
— Viu Bernardo ontem? — Arlete perguntou ao patrão. — Ele
me disse que vai viajar para o Oriente. Quero que me traga perfumes
— riu.
— Não, ele sumiu. Dizem que estava namorando — Otávio
contou.
— Na festa? — sua voz era mais uma exclamação que
pergunta.
— Bernardo é um idiota — Otávio deu os ombros. Ele bebeu
outro gole do suco e então disse: — Estava pensando... Acho que
vou levar as crianças hoje até o parque de diversões que abriu na
cidade.
Ísis pulou na cadeira, estava tão animada que mal conseguia
se conter.
— Um parque? Não sabia que havia aberto um - Arlete disse.
— Eu vi o anúncio nas redes sociais hoje de manhã. Vão
inaugurar à tarde. — Seu olhar então volveu para mim. Queimou. —
Tudo bem para você, Maria Eduarda?
Engoli em seco. Acenei, porque não sabia se conseguiria
formar palavras diante da forma como ele me olhava.
— Espero que não esteja cansada da noite anterior.
Ele estava me provocando. De propósito. Parecia querer me
envolver novamente nesse jogo onde a perdedora seria eu, com
certeza.
— Não, foi muito agradável.
Arlete saiu da sala, em busca de mais bandejas. Eu voltei
minha atenção ao prato, mexendo no queijo com o garfo.
— Toda a noite foi agradável?
Senti meu rosto queimar. Arlete entrou novamente na sala.
Agora ela trazia um bolo redondo de laranja. Logo ela o cortava e
servia fatias as crianças. Quando ela foi colocar um pedaço no meu
prato, me encarou de um jeito que eu sabia que havia reprimenda.
Ela estava certa. Como funcionária responsável pelas
crianças, eu não devia estar flertando com o patrão. Mas, como eu
fugiria dele? Otávio estava criando situações para ficar por perto, e
eu não sabia o quanto seria capaz de resistir.
Capítulo 12

Há uma leve batida na porta do meu escritório. Pedi para Samuel


não me interromper nessa manhã, já que queria terminar todo o
trabalho do dia, para ter a tarde livre com as crianças.
E com Maria Eduarda.
Suspiro, quando a porta se abre e não é Samuel que eu vejo.
Arlete entra, seu jeito matrona avança na minha direção. Sem pedir,
ela se senta na cadeira à minha frente, me encarando.
Curvo minha face, um pouco envergonhado, um pouco
constrangido. Eu sei que estou errado, mas... só quero... sair desse
buraco que me enfiei, só quero reagir, só quero viver um pouquinho.
— Você sabe... Seu avô nunca permitiria que um Figueiredo se
engraçasse para a criadagem.
Sinto-me enrubescer.
— Eu sei, Arlete.
— E o que está fazendo? Maria Eduarda é uma jovem
trabalhadora, muito boa pessoa. Mas não é alguém com quem você
pode ter um relacionamento. Já foi demais tê-la levado a uma festa, e
eu sei que a beijou quando a trouxe para casa.
— Foi só um beijo... — balbuciei.
— Para você. E para ela? Se não tem nenhuma pretensão de
levar a menina a sério, não lhe dê falsas esperanças.
Arlete se levantou e deixou o escritório. Encarei o computador,
tentando voltar a me concentrar nos números e na bolsa. Não
conseguia.
Arlete estava certa, mas...

✽✽✽

— Papai! Posso ir na roda gigante? — Ísis pede.


O parque estava quase vazio. As pessoas costumavam ir a
esse tipo de lugar à noite e eu não pensei que as crianças seriam
privadas de ver as luzes dos brinquedos.
Eu não pensei...
Não penso em nada desde que me atrevi a me aproximar da
babá dos meus filhos. Só consigo sentir seu cheiro, ansioso por tocar
sua pele.
E, depois da noite passada, a luz do sol era bem-vinda a esse
passeio. Eu temia o que poderia fazer nos cantos escuros do lugar.
— Sim. Igor, vá com sua irmã — digo ao meu filho que acena,
feliz.
Faz muito tempo que não vejo Igor feliz. Provavelmente a
última vez foi quando ainda era bem pequeno, quase um bebê,
quando eu ainda não tinha começado minhas cobranças por sua
educação.
As crianças se afastaram. Ficamos Maria Eduarda e eu lado a
lado, observando Igor e Ísis se sentando no balanço e a roda
começando a subir.
Eles riam, tão felizes. Era uma coisa tão simples levar meus
filhos para algo diferente, dar a eles um dia especial, eu quase não
conseguia acreditar que havia passado tanto tempo privando-os de
diversão por causa do fundo do poço que me encontrava.
— Maria Eduarda — sussurrei.
Ela ouviu. Não olhou para mim, mas senti pela maneira que
ela entreabriu os lábios que escutou minha voz.
— Você sabe... quando falei de Analy para meu avô, a primeira
coisa que ele me perguntou dela foi o sobrenome. Ele só ficou
tranquilo e satisfeito quando soube que ela tinha uma boa origem.
Para nossa família, tradições são muito importantes.
Ela me encarou. Eu não sei se conseguia alçar exatamente o
que eu queria dizer: quero ficar com você, mas não posso assumir
você.
Todavia, não tinha coragem suficiente para expressar isso em
palavras.
— Nesses poucos dias que convivemos, você se mostrou
incrível. Até conseguiu aproximar meu filho de mim.
— Igor é um garoto maravilhoso.
— Você também é maravilhosa, Maria Eduarda. Se fosse em
outra situação...
— Se eu não fosse quem sou? — ela foi corajosa em
perguntar.
— Ou eu não fosse quem eu sou — completei.
Pensei que ela iria se irritar ou me xingar, mas tudo que fez foi
sorrir gentilmente para mim, como se pudesse me abraçar com seu
sorriso. Inconsequente, levei minha mão a dela e segurei seus dedos.
O calor que senti abrandou meu coração e minha alma temerosa.
Maria Eduarda parecia um porto seguro em um mar de vida
revirado e revoltado.
— Papai! — Ísis gritou da roda e erguemos nossos olhos para
eles. — É muito legal, papai!
Eu sorri. A tarde calma de um parque vazio subitamente me
trouxe paz. Muita paz.

✽✽✽

As crianças estavam na área infantil daquela lanchonete


simples, mas confortável, perto do parque. Havíamos ido ali para
comer alguma coisa depois de várias horas em que Igor e Ísis se
revezavam entre montanha russa ou jogos de tiro ao alvo.
— Você é um bom pai.
Eu encarei Maria Eduarda, e a vi sorrindo com um cachorro-
quente nas mãos.
— Não sei se sou. Eu fui educado diferente. Sabe? Meu avô
não permitia momentos como esse...
— Diz: brincar? Toda criança precisa brincar.
— Minha infância não foi tão simples.
Ela acenou. Parecia compartilhar do mesmo trauma.
— A minha foi difícil, também.
Nós podíamos conversar sobre isso. Se fazer ouvir, trocar
experiências, mas havia muita dor envolvida, então jogamos os
sentimentos para debaixo do tapete. Era uma reação comum a
ambos, percebi.
— Mas, o importante é que vencemos a infância — ela
destacou.
Será mesmo?
— Otávio, acredite em mim: você é um bom homem e um bom
pai. Precisa deixar isso claro para seus filhos. Sempre. Obrigada por
ter dado um momento as crianças, especialmente a Igor.
Ela se importava com meus filhos, isso ficou muito claro. A
comparação gritante de Analy, que nunca ligou, me tocou. Sem
conseguir me conter, eu ergui minha mão e segurei seu queixo. Logo,
minha boca a tomava, de novo. Eu não sabia se as crianças iriam ver,
e uma parte de mim nem ligou.
Eu precisava beijá-la, senão morreria. Maria Eduarda era meu
único oxigênio nesse momento.
Nossos lábios se descolaram. Ela olhou rapidamente para o
lado, para as crianças, e eu segui seu olhar. Igor e Ísis estavam rindo
enquanto pulavam no pula-pula, inocentes ao encontro de emoções
que envolviam sua babá e seu pai.
Capítulo 13

Bilbo bateu seu rabinho rapidamente, enquanto eu entrava no quarto


carregando Ísis enrolada em uma toalha. Tem coisas que são simples
as crianças: depois de um dia cheio de animação, se você der banho
nelas, elas caem no sono. Enquanto ajudava Igor a colocar o pijama
e recolhia Ísis da banheira com uma toalha enorme, eu pude notar os
olhos apagados e mal contidos dos meus pequenos.
Disse para Igor ir deitar-se enquanto eu ajeitava sua irmã. Pus
uma camisola em Ísis e a ajeitei embaixo das cobertas o mais rápido
que pude, e depois fui ao quarto do garotinho. Igor já dormia com
Bilbo ao seu lado, e eu sorri enquanto lhe dava um rápido beijo na
testa e fazia cafuné no cachorrinho.
Apaguei as luzes de ambos os quartos, fechei as portas, e me
preparei para ir ao meu próprio quarto. A costumeira dor de cabeça
que vinha todas as noites chegou mais cedo hoje, e sequer entrei no
banheiro, buscando antes um sachê de chá para fazer minha bebida
de hortelã.
Foi um dia cheio. Mais que pela visita ao parque, e sim pelas
coisas que ocorreram entre Otávio e eu.
Ele deixou claro que não podia me amar. Que era errado. Não
que eu já não soubesse, mas doeu muito ouvir de sua boca.
Se eu fosse outra pessoa...
Mas, eu não era. Conto de fadas não existiam e o príncipe não
se apaixonava pela empregada.
Ainda assim, eu aceitei seu beijo. Subitamente, não importava
o quão longe estávamos socialmente, ninguém nunca despertou em
mim o que ele despertava. E eu preferia sofrer a experiência do que
jamais prová-la.
Cheguei à cozinha para fazer meu chá. Não foi surpresa ver
Otavio ali. Ele e eu tínhamos a ligação da enxaqueca compartilhada,
e ele sorriu enquanto aguardava a chaleira chiar.
— Eu li em algum lugar que colocar camomila junto a hortelã
potencializa o efeito — me contou.
Ergui minhas sobrancelhas, curiosa.
— Você gosta dessa coisa de medicina natural?
— Para falar a verdade, eu tomei tantos remédios para dor de
cabeça que não fizeram efeito que acabei correndo para qualquer
coisa que encontrava na internet. Experimentei colocar gelo na testa,
até meditação — ele riu baixinho. — Não sirvo para meditar.
A chaleira apitou e ele a pegou. Encheu uma xícara e me deu,
enquanto servia outra para si.
Sentamo-nos a mesa, lado a lado. A casa estava silenciosa
demais, especialmente porque não era tão tarde.
— E Arlete? Samuel?
— Ela vai à missa nas quartas à noite. Samuel deve estar no
quarto dele. O velho insiste em não se aposentar, chega perto da
noite e ele está tão exausto que dorme com as galinhas.
— Ele é mordomo da mansão a muito tempo?
— Desde a época que meu vô recebeu o título de seu pai.
Vovô me contava que Samuel já era mordomo quando ele ainda nem
havia se casado.
Silêncio. Era confortável ficar perto dele, mesmo quando não
dizíamos nada um ao outro. Eu nunca me senti assim com mais
ninguém nessa vida
Bebi um gole do chá. Eu gostava de pôr açúcar, mas deixava
minha pressão muito baixa, então o estava bebendo amargo mesmo.
Percebi que Otávio também. O encarei para comentar aquilo, quando
reparei que seus olhos estavam em meus lábios.
Olhei para a frente. Não queria as sensações que ele
provocava, mas não podia negar que elas eram incrivelmente e
dolorosamente deliciosas.
— Amanhã irei até a cidade vizinha para uma reunião com um
novo investidor. Bernardo viajou e eu precisarei assumir algumas
responsabilidades...
— Hum — assenti.
— Se tudo der certo volto no fim da tarde. Se precisar insistir
mais, talvez fique alguns dias... Sei que tem tudo que precisa na
casa, mas vou deixar uma quantia na minha gaveta do escritório,
caso necessite de algo.
Eu tinha certeza de que Arlete tinha a chave do cofre da casa,
mas achei fofo ele me avisar sobre isso.
Silêncio de novo. Eu podia ouvir os grilos no lado externo, até
mesmo uma coruja perto da casa. O casarão também me avisava
que estava vivo, rangendo como sempre rangia à noite quando o
vento batia em sua construção.
Bebi o resto do chá, e me levantei. Caminhei até a pia, peguei
uma esponja e lavei a xícara. Sequei-a e me virei para guardá-la,
quando dei de cara com Otávio atrás de mim, seus olhos turvos por
algo que reconheci como desejo.
Eu estava perdida. Não há como escapar. Mesmo que não
aconteça agora, vai acontecer em algum momento.
— Eu lavo sua xícara também — disse, pegando o objeto.
Nossos dedos se tocaram. Meu corpo inteiro estava quente,
languido, desejoso. Eu tentei pensar rapidamente, tentei colocar
minha razão acima da carne, mas estava difícil até mesmo respirar.
— Você é maravilhosa com meus filhos — ele murmurou.
Ele também estava lutando. Era tão palpável.
— Eles são maravilhosos...
Meu coração estava batendo tão alto. Havia sinos tocando no
fundo da minha mente.
Então Otávio se curvou. O inevitável. Sua boca tocou a minha
de um jeito tão gentil, doce... Mal dava para acreditar que todas
aquelas histórias que eu lia em livros de banca eram reais. Havia sim
fogos de artíficio explodindo em sua mente quando o homem certo te
beija.
Mas, ele não era o homem certo.
Ele era o homem proibido.
Senti minha boceta latejar. Foi uma reação automática que me
fez gemer. Mais uma vez, e de novo. Otávio me puxou para mais
perto dele, seu pau batendo na minha barriga. Minhas mãos
desceram pelo seu peito, os músculos firmes da sua barriga entre
meus dedos. Então me apertei mais nele.
— Suba comigo para meu quarto — ele pediu.
Eu não devia.
Eu não devia!
Mas, eu assenti.

✽✽✽

Eu sinto o cheiro dele em seus lençóis. Estou nua, meu corpo


deitado na cama dele. Acima de mim, pairando sobre minha pele
arrepiada, Otávio toca a si mesmo, seu órgão grande surgindo
através de nós, mostrando-me do que um homem é feito.
Eu nunca vi um homem nu, assim. Já cuidei de um senhor
idoso certa vez, e o ajudei a tomar banho, mas eu evitei olhar lá
embaixo. Agora, eu estava com os olhos fixos do seu cacete surgindo
na semiescuridão.
— O quanto você é experiente? — ele perguntou.
Neguei com a face.
— Nada? Nunca?
Eu senti que ele queria parar agora. Lutar contra o desejo que
o tomava. Mas, eu já havia ido longe demais para recuar, e atrasar o
ato só seria atrasar algo que aconteceria cedo ou tarde.
— Por favor — eu peço, abrindo minhas pernas.
Ele perde as forças para lutar, nesse exato instante. Então
posiciona-se à minha entrada. Lágrimas surgem nos meus olhos
quando a cabeça grossa de sua rola pressiona.
— Tudo bem? — ele indaga. — Foi só a cabeça.
Eu sinceramente não sei por que ele estava narrando.
Provavelmente, para me acalmar, me explicar que tudo era natural.
Fecho meus olhos enquanto ele desliza mais fundo, esticando
minhas paredes internas. Ele vai até o final, e para.
Nós ficamos assim alguns segundos, eu me acostumando ao
seu tamanho, as mãos de Otávio deslizando pela minha pele. O
tempo pareceu parar. E então ele se afastou, e voltou, me enchendo
tão perfeitamente consigo mesmo que não pude evitar um rouco grito
em meus lábios.
Foi aí que as coisas mudaram de ritmo. Quando começou o
prazer? Não sei. Mas, uma parte de mim sofria de dor, enquanto a
outra aceitava os beijos de Otávio, seus toques quentes, e a forma
voluptuosa com que ele metia, movendo juntos e lentos numa dança
deliciosa.
Porque ficou delicioso. Era um impulso profundo, que me
arrebatava na forma como ele se movia, na maneira como ele me
abraçava, como ele me fazia sentir-me amada.
Amada...
Não era real, mas... estava acontecendo.
— Otávio! — eu gritei.
— Ah, Maria Eduarda... você vai gozar gostoso...
Seu pau bate em mim, raspa em meu clitóris, meu corpo se
contraindo em ondas, movendo-se rápido contra ele. Seus dedos se
enroscam nos meus quando ele pressiona minha mão no colchão,
me prensando, me prendendo, mantendo um ritmo que não sou
capaz de conter.
De súbito, ele tira o pau. Eu não sei como reagir a perca
porque rapidamente Otávio me gira na cama. Ele levanta minha
bunda com uma mão, enquanto a outra agarra meus cabelos em
punho. Eu suspiro de prazer com a dor, a selvageria.
Ele mete na minha boceta de novo, por trás, o barulho das
estocadas invadindo o quarto, soando como música sensual. A mão
que estava no meu quadril sobe até meus lábios, ele a enfia na minha
boca.
E bate, bate... bate de novo... Soca tão fundo que eu mal
consigo aguentar.
Vou subindo, meu corpo seguindo o próprio e cadenciado
ritmo, até que explodo em mil estrelas.
Perdida, apaixonada... entregue.
Um caminho sem volta que só vai me levar a dor.
Capítulo 14

O sangue dela ainda está no meu pau.


Quando acordei de manhã e a vi dormindo em minha cama, senti
algo profundo cavando em minha alma, a docilidade de Maria
Eduarda resplandecia em seu sexo. Ela era tão gostosa, ela me fez
ver estrelas na noite anterior.
Mas, a luz do dia chegou e eu precisava ir viajar.
Não sei se isso seria bom. Não sei se me afastar dela
colocaria um pouco de juízo em mim, mas esperava profundamente
que o fizesse.
Não fui tomar banho como de costume. Não queria tirar o suor
e a umidade dela do meu corpo. Seu perfume inebriante ficou
marcado em minha pele, enquanto eu via aquela réstia vermelha em
meu pau.
Me vesti assim, querendo que Maria Eduarda ficasse em mim
mais um tempo. E então parti.
Pensei que devia acordá-la antes de ir, mas não tive coragem
de enfrentá-la à luz do dia. O que eu diria a ela? Que não poderia lhe
dar promessas apesar de não resistir a sua essência? Que eu
pensava nela dia e noite, mas não a amava?
O dia ainda não havia raiado quando cheguei a parte externa
do casarão. Uma das SUVs da minha empresa estava ali. Gustavo
havia deixado o carro como ordenado no dia anterior. Com a chave já
na ignição, eu apenas tive o trabalho de entrar e acomodar minha
pequena mala no banco ao lado.
Respirar longe de Maria Eduarda poderia ser benéfico a nós
dois.
Ela era inocente, claro. Virgem, até ontem à noite. Se deixou
levar porque era sensível e provavelmente estava romantizando
nossa situação. Mas, eu precisava de juízo. Precisa colocar as coisas
em ordem e então...
E então o quê?
O que eu faria com ela? Dispensá-la? Seria crueldade. Para
ela, que precisava do trabalho, e para minhas crianças, que já a
amavam. Além disso, ela era muito competente em sua ocupação de
babá.
Se eu não podia dispensá-la, a manteria como empregada,
mas ficaria longe dela?
Como eu faria isso se eu não conseguia pensar nela sem
vislumbrar seu rosto ardendo de prazer enquanto seu quadril batia
em encontro ao meu.
Fiquei duro enquanto a imagem da noite anterior, de Maria
Eduarda com as costas arqueadas balançava em minha cama, seus
cabelos sedosos envolta dos meus dedos.
Tentei respirar fundo e afastar a lembrança. Eu precisava
pegar a estrada e não seria nada fácil com a vontade louca de voltar
para casa e meter nela até esfolar.
Capítulo 15

Eu abri os olhos quando ele saiu do quarto.


Havia acordado no mesmo instante que Otávio se levantou, mas não
tive coragem de dizer-lhe que havia despertado. Eu sentia tanta
vergonha pelo que fiz, não sabia como encarar um homem depois de
fazer sexo ardente com ele, já que nunca me aconteceu isso antes.
Quando ouvi o som do carro partindo, enfim consegui me
colocar em pé. Estava nua quando cheguei a janela e o observei se
distanciando da casa, cruzando o enorme portão em direção à
estrada.
Talvez ele ficasse fora dois ou três dias, tempo suficiente para
eu conseguir colocar minha cabeça em ordem.
Otávio não me prometeu nada. E eu estava muito consciente
disso. Ainda assim, me entreguei. E teria me entregado novamente,
se o tempo voltasse e eu tivesse que tomar a mesma decisão.
Não havia arrependimentos. Somente uma dor estranha no
meio das pernas, e outra pior, machucando o coração. Abandonei a
janela e fui até o banheiro dele. Tomei uma ducha antes de recolher
minhas roupas do chão e sair do quarto.
Às sete e meia, terminei o café da manhã das crianças.
Depois, subi até seus quartos para acordá-las e começar o dia. Ísis
choramingou de sono, enquanto Igor apenas concordou e desceu até
a cozinha sem reclamações.
— Seu pai foi viajar — disse a eles. Não sabia se Otávio havia
se despedido das crianças. — Vamos aprender algumas palavras
novas para mostrar a ele quando voltar?
A ideia pareceu fabulosa para eles. Nos dois dias que se
seguiram, eu os ensinei o alfabeto e algumas sílabas. Eu sabia que a
escola faria um trabalho melhor, mas não queria que as crianças,
especialmente Igor, se sentisse deslocado quando começasse o ano
letivo e estivesse em desvantagem.
Bilbo acompanhou esses dias dormindo aos pés da mesa
onde os livros estavam distribuídos, e Arlete passou seus dias me
destinando olhares que eu não conseguia decifrar.
Ela sabia? O quanto sabia?
Ela me culpava?
Otávio não ligou nenhuma vez. Meu coração estava ansioso,
mas prometi não entrar em contato com ele, porque estava nítido que
se ele quisesse falar comigo já teria ligado.
No quarto dia, enquanto as crianças tiravam uma soneca
depois do almoço, ouvi uma conversa ríspida na parte inferior da
casa. Não queria bisbilhotar em assuntos que não me envolviam,
mas enquanto cruzava pelo corredor, ouvi a voz de um homem que
não conhecia:
— Ele precisa saber!
— Ele não precisa saber! — era Arlete. — Ele já sofreu muito.
E o que passou, passou.
— Protegê-lo não vai adiantar de nada...
Voltei ao meu quarto. Tentei não pensar no diálogo. Eu
precisava saber qual era meu lugar na casa, e não era cuidando da
vida dos outros.

✽✽✽

Uma semana depois da ida de Otávio para outra cidade, eu


ouvi o som de um carro se aproximando do casarão. Meu coração
disparou, e minhas pernas me levaram até a entrada. As crianças
estavam por perto e correram também para verem se era o pai que
chegava.
Todavia, quando a porta se abriu, percebi ser uma mulher loira
de cabelos cacheados, usando um terninho preto com sapatos de
salto alto.
Ela era linda... linda...
— Ah, caral... — a voz de Arlete interrompeu atrás de mim, eu
soube que ela havia cortado o palavrão pela presença das duas
crianças.
Claro que eu sabia quem era. Eu via aquele quadro em cima
da lareira todos os dias. Mas, nenhum retrato fazia jus a beleza de
Analy.
— Ei! ¿Dónde está mi abrazo? – a voz soou, e era tão
feminina que me corroeu a alma.

A primeira a se mexer foi Ísis. Docemente, ela foi até a mãe,


que abriu os braços e a recebeu entre eles. Meus olhos ficaram um
pouco lacrimejantes, eu sei que estava com ciúmes, mas não
conseguia evitar.
Era mais um sentimento que eu precisava, desesperadamente,
reprimir.
— Mi hijo – ela chamou Igor.
Ele me encarou, como se precisasse que eu aprovasse.
Assenti com a face, incentivando-o a ir até a mãe. Analy o apertou no
seu peito, enchendo de beijos estralados sua face.
— Não sou seu pai, não precisa se fazer de difícil para mim —
ela disse em português e sorriu, e então ele respondeu seu sorriso
timidamente.
Foi só então que os olhos dela cravaram em nós duas, as
empregadas, à porta.
— Arlete — Analy disse, em cumprimento. — E você é a nova
babá?
Assenti.
— Me chamo Maria Eduarda. Muito prazer.
Ela subiu as escadas. Seus olhos me estudaram
demoradamente.
— Otávio encontrou uma sósia minha? — riu, voltando seus
olhos para Arlete. — A garota é minha cara, quando tinha vinte e
poucos.
— Não é tão parecida assim com a senhora — Arlete rebateu
e eu não sei direito que jogo elas estavam jogando.
Depois disso ela não me olhou mais. Entrou na casa e foi até a
sala. As crianças estavam perto dela, e eu fiquei esquecida em meu
canto. Porque essa é a vida de toda babá: você pode criar uma
criança com todo amor, mas quando a mãe chega, o olhar da criança
é arrebatado pela genitora.
— Maria Eduarda, está dispensada hoje. Vou ficar com meus
filhos.
Se a mulher podia ficar na casa sem a presença de Otávio,
isso não era problema meu. Como eles levaram o divórcio era um
assunto do conde. Os ricos tinham suas próprias regras. Então
simplesmente assenti, retirando-me.

✽✽✽

Olhei para o relógio ao lado da cama. Duas horas da manhã e


eu não havia pregado o olho. Eu chorei um pouco antes de Arlete me
trazer o jantar. Nós trocamos um olhar cúmplice, mas nenhuma de
nós comentou nada sobre a presença de Analy no Casarão.
Mais uma vez, entendia que não direito meu sentir nada. Nem
mesmo ciúmes. Eu era paga para cuidar das crianças, e elas me
tratavam muito bem. Otávio nunca me prometeu nada, e caso sua
esposa e ele se reconciliassem, eu devia apenas ficar em silêncio em
meu próprio canto, aceitando o papel que fui destinada desde que
nasci.
A porta do meu quarto se abriu. Eu me sentei na cama,
surpresa por ver duas pequenas figuras entrando, tão tarde.
— O que estão fazendo acordados tão tarde? — indaguei, ao
ver Ísis e Igor ali.
— Duda, você não passou o dia conosco. Você vai embora? —
Igor perguntou.
Eu neguei com a face.
— Querido, só me afastei para dar espaço para curtirem sua
mãe.
Os dois trocaram aquele costumeiro olhar que dizia muito e
não dizia nada.
— A gente prefere ficar com você — Ísis me confessou.
Eu não aguentei mais. Naquele instante eu a trouxe para os
braços, apertando-a contra meu peito. Igor também se achegou, e eu
chorei abraçada às crianças.
Uma babá... era só o que eu era. Uma criada que amava
demais aquelas crianças, mas que um dia teria que ir embora. E isso
parecia mais perto do que eu imaginava.

✽✽✽

— Bom dia — disse, aproximando-me da mesa.


Analy estava sentada na ponta, no lugar que Otávio
costumava se sentar. Eu não sabia se devia me sentar ali como fazia
todas as manhãs com meu patrão, ou se devia ir para a cozinha. De
qualquer maneira, eu ajeitei Ísis num das cadeiras e arrumei o
guardanapo no colo de Igor. Quando me preparei para me retirar, ouvi
a mulher me dizendo.
— Você está dispensada.
Volvi para ela, minhas sobrancelhas arqueadas.
— O quê?
— Dispensada só hoje — ela corrigiu, rindo. — Calma, não
está despedida. Só vou passear com meus filhos e você pode usar o
dia como quiser.
Eu queria dizer que meu patrão era Otávio, e que só ele podia
me dar folga ou não, mas Arlete cortou qualquer conversa, entrando
na sala.
— Perdoe Maria Eduarda, Sra. Analy. Ela ainda não entendeu
que os criados não questionam, só obedecem.
A mensagem era tão chocante que arregalei os olhos. Arlete
estava me repreendendo, mas também queria dizer outra coisa:
Analy era a patroa.
Não só foi. Era. No presente.
— Desculpe-me — murmurei.
— Não precisa se desculpar — Analy manteve o sorriso, muito
simpática. — Eu só quis dizer que poderá curtir o dia, fazer suas
coisas. Não era uma recriminação. Eu não seria cruel com minha
gêmea perdida — ela brincou.
Sorri, sem jeito. Então, fui para a cozinha. Cruzei com o
mordomo no caminho. Samuel me olhou com piedade, e eu precisei
conter o choro.
Era ridículo chorar por algo que nunca tive. Por que diabos me
deixei levar por sonhos de Cinderela?
Capítulo 16

O ruim de você ter muitos encontros com investidores e não ter


habilidade social nenhuma é ficar preso em discussões sem sentido
algum, e não chegar ao ponto na apresentação dos projetos.
No primeiro dia, um dos homens da reunião começou a falar
de futebol e perdemos um tempo precioso analisando sobre a nova
contratação de tal time, ou como Neymar se saiu na última copa. Por
fim, não consegui dizer nem metade do que eu precisava, e quando
tentei levar a reunião para os negócios no dia seguinte, foi mais uma
perda de tempo, porque só Deus sabe como gráficos do mercado
financeiro se tornaram tema de como o país vai afundar em miséria
nos próximos anos, ou de como uma nova pandemia destruiria tudo
em seis meses.
Por fim, eu levei três dias apenas para a primeira reunião. O
que era uma semana de trabalho, se tornou duas, três. Mesmo
assim, não maldisse a situação, porque era um alívio ficar longe de
casa, longe de Maria Eduarda e do que diabos ela provocava em
mim.
Todavia, eu tinha filhos, e eu precisava saber como eles
estavam. Então, aproveitei o intervalo de uma das reuniões da sexta
para ligar para casa.
— Samuel? — chamei, assim que a voz masculina do outro
lado saudou. — Como estão as coisas?
— Boa tarde, Senhor — ele foi formal, como sempre. — As
crianças estão bem. Está tudo bem.
Não era tudo que eu queria saber. Mastiguei as palavras em
silêncio, e então comecei pelas beiradas.
— Arlete está?
— Está nesse momento arrumando seu quarto, senhor, já que
a Sra. Analy não gostou dos novos lençóis.
Eu tinha quase certeza de que ele falou Analy, e acreditei ser
um engano.
— Maria Eduarda está no meu quarto?
Aquilo era uma situação quase vexatória, pois deixei claro para
ela que não iríamos ter um compromisso, e não a autorizei que se
mudasse para meu quarto. Ainda assim, imaginá-la nua entre meus
lençóis me causou um aquecimento desesperador.
— Por que a babá estaria no seu quarto, senhor? Estou
falando da Sra. Analy.
Mil pensamentos cruzaram minha cabeça nesse momento.
Será que entrei em uma realidade alternativa onde minha ex-mulher
não era ex? Talvez nunca nos separemos e eu apenas delirei sobre
aquela ótica.
— Quero falar com Analy. A chame, por favor.
— Ela não se encontra. Saiu num passeio com Igor e Ísis.
Aquilo devia ser um pesadelo.
— Certo, chame Maria Eduarda.
— Ela não está em casa. Foi caminhar na trilha de
framboesas.
Ok. Não era uma realidade alternativa, já que Maria Eduarda
estava na casa.
— Peça para ela me ligar assim que chegar — digo a Samuel.
Ele concorda e eu desliguei.
Começo a andar de um lado para o outro no quarto do hotel.
De qualquer maneira, eu estava irritado. Quem quis o divórcio foi
Analy, e agora que o conseguiu ela voltava para casa sem me avisar
e ainda ia dormir no meu quarto? Claro que eu não era contra ela ter
contato com os filhos, mas crianças não são brinquedos que você
ignora por semanas, sequer liga para dar sinal de vida, e então surge
como se nada tivesse acontecido.
Exatamente como eu fiz nas últimas semanas...
Mas, o pior para mim - por mais cruel que parecesse com
meus filhos - era ela estar dormindo na minha cama!
Quem autorizou?
O telefone tocou enquanto eu divagava. Olhei o visor e vi que
era o número do casarão.
— Alô.
— Senhor... — a voz de Maria Eduarda surgiu ao longe. Ela
parecia tão triste. — Queria falar comigo?
— Ahn... sim — murmuro. O que eu devo dizer? — Você está
bem?
— Sim. As crianças estão bem também, estão com a mãe.
Ela estava machucada. E isso me cortou o coração.
— Eu não sabia que ela iria voltar para casa. Eu sinto muito
que isso tenha acontecido sem que eu estivesse aí para resolver.
— Ela está dormindo no seu quarto — sua voz parecia
carregada.
— Pois é. Não sei quem autorizou.
— Ninguém autorizou. Ela entrou e tomou conta, porque se
sente sua esposa.
A pouco tempo atrás, tudo que eu queria era que Analy
voltasse para casa, para mim e para as crianças. Mas, agora tudo
mudou. Foi Maria Eduarda a responsável de toda essa mudança.
— As coisas são confusas... — admito.
No fundo, bem no fundo, eu não sabia o que fazer. Porque eu
amei Analy por muitos anos, eu fui um marido leal e apaixonado, e
você não desaprende a gostar de alguém tão facilmente. Ainda
assim, foi muito custoso aceitar que ela não me queria mais, aceitar o
divórcio, e a partida dela.
Eu sofri muito, e me forcei a tentar esquecê-la. Quando eu
conheci Maria Eduarda, mesmo que eu jurasse a mim mesmo que
não significava nada, ainda assim significava tudo.
Se Analy quisesse reatar, o que eu faria? Escolheria o
passado feliz ou o presente incerto?
— Vou cancelar as reuniões de hoje, e voltar para casa.
Ela não comentou minha decisão.
— Você quer que eu vá embora? — indagou, depois de um
breve silêncio.
— Não. — Minha resposta foi automática.
— Você não ligou nenhum dia desde que se foi — ela
sussurrou.
Meu coração sangrou.
— Eu não sabia o que dizer se ligasse.
Apertei o telefone enquanto o som da respiração dela. Em
nenhum momento eu quis feri-la, mas era o estava acontecendo.
Capítulo 17

Analy ergueu a xícara de café até os lábios e sorveu um gole longo


antes de baixar novamente a peça de porcelana no pires e falar:
— Você está diferente, Igor.
O café da manhã desde a chegada dela se tornou distante
entre mim e as crianças. Até porque, eu não ficava mais na sala de
jantar com eles. Era horrível pensar assim, mas eu e a mãe das
crianças não estávamos no mesmo ritmo. Talvez, se ela voltasse, eu
teria que partir.
— Eu cresci, mamãe? — ele perguntou, tão inocente que fez
meu coração balançar.
— Não é isso.
Então ela ergueu os olhos para mim. Eu fiquei imediatamente
apavorada e ajeitei melhor Ísis, antes de tentar fugir.
— Fique conosco, Maria Eduarda. Ontem minha filha disse
que você sempre toma café da manhã com eles.
Tentei justificar o ato para não parecer...
Não parecer o quê?
— É para ajudar melhor as crianças.
Ela assentiu, mas não parecia convencida.
— Sente-se, querida — apesar do jeito carinhoso, não me
sentia como se fosse desejada ali. — Me fale sobre tú.
Eu sinto o som das batidas no meu coração ecoando no meu
ouvido. Mesmo assim, tentei parecer tranquila e me sentei ao lado de
Igor.
— Eu sou daqui mesmo. Trabalho há muitos anos como babá.
Peguei uma torrada e comecei a passar a manteiga para Igor.
Ele aguardava com seus costumeiros olhos doces.
— As crianças gostam muito de você. Me diga: como está
conseguindo se manter no posto? A maioria das babás não aguenta
uma semana.
Aquilo me surpreendeu.
— As crianças são adoráveis — disse.
— As crianças são, mas Otávio é... — Ela fez um sinal
negativo com a mão. — Ele é um homem muito complicado.
O que ela queria dizer com isso.
— É um homem firme, mas justo — apontei, porque não
aguentava ouvi-la falar assim do conde.
— Justo — ela repetiu a palavra, outro gole de café. — É
assim que as pessoas o veem, certo?
— Não o vê assim, senhora?
— Dentro de um quarto, entre quatro paredes, é que um
homem se mostra como é de verdade.
O que diabos ela queria me dizer com isso? Eu quase
indaguei, mas Arlete entrou trazendo duas garrafas com suco de
frutas, e eu acabei simplesmente comendo o restante do tempo em
silêncio.

✽✽✽

Otávio disse no dia anterior que estava voltando para casa.


Desde então eu aguardei com a ansiedade a entrada dele no
casarão. Inferno, eu era só a simples babá, não tínhamos nada,
nenhum compromisso, mas uma parte de mim ansiava que ele
assumisse o que quer que estava ocorrendo entre nós.
Analy não devia ser uma rival. Ela já era divorciada do conde,
e em nenhum momento se mostrou grosseira ou ofensiva. Mas, havia
algo... eu não sei o quê... algo que me incomodava e me deixava
alerta.
Eu tentei falar com Arlete para ver a opinião dela. Mas, Arlete
parecia querer não se envolver:
— Sabe como consegui me manter no emprego nessa casa?
A resposta é nunca, jamais, me envolver demais nos assuntos dos
patrões. Eu criei Otávio, mas quando ele quis se casar com Analy, eu
não disse uma palavra. Se quer saber minha opinião: se quiser
manter esse trabalho, se quiser ficar até depois das crianças
crescerem, se mantenha longe de Otávio e Analy. Até porque, pelo
que parece, ela está voltando para a vida dele, e ele foi apaixonado
demais pela esposa para simplesmente recusá-la, não importa o quê.
Arlete não estava mentindo. Eu tentei esconder minhas
lágrimas, e voltei a trabalhar focada nos pequenos.
Durante a tarde, eu convidei Igor e Ísis para caminhar no
nosso bosque. Mas, a mãe os havia convidado para um chá da tarde,
e eles foram obrigados a recusar.
Sim, a palavra é OBRIGADOS.
Eu via em seus pequenos olhos como eles gostavam de ir
comigo colher framboesas e correr com Bilbo pela estrada. Mas, eles
se sentiram forçados a ficar perto da genitora, e não quis criar
conflitos.
Para não ficar na casa enquanto eles viviam um momento com
a mãe, eu fui sozinha colher as framboesas. Peguei uma cesta, e
comecei a percorrer a estrada de terra. O tempo nublado parecia
perfeito ao meu estado de espírito.
Bilbo estava comigo. Analy não gostava do cachorrinho porque
não tinha raça, então eu tentava mantê-lo longe dos olhos dela.
Joguei gravetos adiante, só para vê-lo correr até os pedaços de
madeira, mas ele era muito pequeno para saber que devia pegá-los e
trazer para mim.
— Somos dois sem raça, querido. Nunca sabemos o que fazer
— disse a ele, enquanto me curvava para fazer um carinho.
— Todos temos raça, Maria Eduarda. Você é raça humana e
ele é cachorro. O tipo de cachorro que ele é, não importa.
Eu me voltei rapidamente pela estrada. Otávio estava parado
perto de mim, suas mãos em seus bolsos, o vento frio balançando
suas madeixas escuras.
— Você voltou? — disse, não conseguindo esconder o alívio.
— Evidente, não está me vendo? — brincou.
Eu queria correr até ele, abraçá-lo, beijá-lo, mas eu não tinha
coragem de dar nenhum passo.
— Onde estão as crianças? — ele indagou, avançando em
minha direção.
— Com a mãe — apontei.
— Analy está cuidando dos filhos? — a indagação parecia
cheia de surpresa.
Eu respirei fundo, em muito tentando acalmar meu tremor, em
muito porque o cheiro do perfume dele invadiu meu corpo inteiro.
— Eu não sabia que ela viria — ele me disse, numa explicação
que parecia esclarecer tudo.
Se ele soubesse, teria me contado. Me preparado. A simples
demonstração de que ele se importava em como eu estava me
sentindo me fez desmanchar em amor. Eu precisei cruzar o espaço
que nos separava. Abracei-o, e o beijei nos lábios, como um faminto
que precisava de alimento.
— Lembra-se que eu te contei que há uma cachoeira no final
da estrada? — ele murmurou contra meus lábios. Concordei. — O
que eu não te disse é que há um pequeno casebre de caça um pouco
além dela.
Otávio pegou minha mão. Eu sabia o que ele queria, e eu
estava mais que disposta a me entregar a ele novamente.

✽✽✽

Estava inundada de emoções. Não havia promessas entre


nós, mas havia algo que não conseguia esconder. Paixão. Desejo. Eu
sentia nele, mesmo que não restasse nada no futuro. Talvez apenas
desgosto e arrependimento.
Mas, agora havia paixão. E meu desejo desesperado.
Precisava sentir o calor dele que batia entre minha pele nua
arrepiada pelo frio daquela tarde.
Eu montei nele. Otávio e eu estavamos no chão do casebre,
nossas roupas jogadas pelo lugar sujo. Puxo sua cabeça e me perco
em seu beijo. Ele me pega, segurando-me com força, seus braços
em volta de mim, me firmando para que eu me sentisse protegida de
uma forma que nunca estive antes.
Otávio afastou a boca da minha, seus lábios indo para minha
garganta, sua língua acariciando minha pele.
Sinto uma onda de prazer estremecer desde minha cabeça até
meu núcleo.
— Me fode, Otávio — sussurro enquanto segurava a cabeça
dele no meu pescoço, meu rosto inclinando-se levemente contra o
cabelo dele.
Ele segurou minhas duas coxas enquanto me deitou para trás.
Sinto a pressão do chão de madeira nas minhas costas, e do seu
corpo musculoso na minha frente.
— Você sentiu minha falta?
— Muito...
— O que você sente por mim, Maria Eduarda?
O encarei. Não queria pensar porque pensar me colocaria em
apuros.
— O que você sente por mim, Otávio? — devolvi a questão.
Vi a culpa e a dúvida trazendo a tona a realidade em seus
olhos. Eu sabia que o certo agora seria me afastar e ir embora. Mas,
eu não conseguia. Estava tão apaixonada por ele que o aceitava
mesmo que ele não me amasse.
Quantas vezes eu culpei as mulheres que se deixavam levar
por esse tipo de paixão? E agora eu estava vivendo a mesma coisa!
Era tão vergonhoso pensar que eu colocaria minha conciência para
longe apenas para ter Otávio em mim, me fodendo, metendo,
enquanto meu corpo exalava o gozo da paixão.
Eu o ouvi respirar fundo, então ele voltou a me beijar, dessa
vez mais profundo. E então eu me perdi no seu calor, na forma como
ele me olhava em brasa.
Logo, ele baixou-se. Contorci-me de prazer quando ele brincou
com o interior da minha coxa com a língua, me molhando, me
deixando em um fogo acesso e avassalador.
— Por favor — eu implorei quando comecei a empurrar meus
quadris, tentando fazê-lo começar, mas ele se recusou a se mover.
Otávio balançou minha perna, inclinando-a para o lado. Só
então ele subiu, colocando a minha perna por cima da sua, de modo
que eu tivesse uma visão dos nossos corpos unidos, antes que ele
começasse a se mover.
E quando ele o fez, um prazer explodiu de mim de um modo
que nunca tinha experimentado antes.
Eu toquei seu pênis, sentindo a carne dura lambuzando-se
sobre minha pélvis. Ele se moveu lentamente, distribuindo o prazer
em medidas que me fizeram nadar em êxtase quando sua dureza me
tocou de uma forma que eu nunca havia sido tocada antes.
— Mete — eu implorei, alcançando o orgasmo. – Mete em
mim...
O gemido que escapou de Otávio quando começou a entrar
em mim foi o som mais erótico que eu já tinha ouvido. Comecei a
queimar em fogo orgásmico, minha pele quente como se estivesse
sofrendo, exposta ao sol em uma altura assustadora e imponente.
— Oh, céus – eu murmurei.
Eu queria gritar de prazer. Era tão incrível. Era tão impactante.
Com Otávio sempre era especial.
— Mais duro — implorei, instigando-o, tentando levá-lo ao
orgasmo. – Mais rápido.
— Eu vou gozar — ele engasgou, seus golpes se tornando
ainda mais e mais rápidos.
— Deixa vir — eu comecei, mas antes que eu pudesse
completar o pensamento, ele estremeceu forte, segurando-se dentro
enquanto ele grunhiu suavemente com cada gota de sêmen que senti
dentro de mim.

✽✽✽

— Você está tremendo.


Encarei sua face sorridente, e tentei conter o sorriso que me
tomava também. Andávamos lentamente em direção ao Casarão,
como se quiséssemos atrasar o inevitável. Nas minhas mãos Bilbo
dormia, e nas mãos de Otávio, a cesta de Framboesas estava vazia.
— O que sente por Analy? — indaguei.
Ele não respondeu, talvez não pudesse.
Então ficamos o resto do trajeto naquele silêncio incômodo,
como se palavras fossem crimes e nós dois tivéssemos fadados a
prisão.

✽✽✽

Otávio estava curvado ao chão, abraçando a filha pequena


que correu até ele. Igor, um pouco atrás, parecia sem saber que
atitude tomar.
— Bem-vindo, papai — ele disse, por fim, antes de me encarar
com desespero e fazer meu coração balançar.
O que estava acontecendo?
Um pouco atrás dele, Analy estava ereta, suas mãos juntas,
como se ela fosse uma dama esperando o cavalheiro chegar até ela.
— Bem-vindo, querido — ela disse.
Então me encarou. Ela sabia que eu estava transando com
seu ex-marido? O que ela via? Eu tentei me arrumar o melhor que
pude antes de voltar para a casa, mas talvez meu cabelo estivesse
desgrenhado e meu rosto vermelho. Encarei Arlete pouco atrás dela,
tentando ver nela qualquer sinal de desaprovação. Não havia nada.
— Peça para Samuel buscar o carro que ficou na estrada. Eu
voltei andando com Maria Eduarda — ele disse a Arlete que assentiu
e se afastou em seguida.
Sem a outra serva da casa, fiquei deslocada em ficar ali. Não
era meu lugar.
— Bom, vou me retirar para deixar a família a sós — comentei,
as palavras queimando na minha garganta.
— Obrigada, Maria Eduarda — Analy me disse.
Então rumei até meu quarto. A culpa e a dor massacrando
minha alma.
Capítulo 18

Durante a viagem, disse mil vezes a mim mesmo que o que


aconteceu entre Maria Eduarda e eu era apenas fruto da solidão, e
que não se repetiria.
A primeira coisa que fiz ao vê-la na estrada foi parar o carro e
ir até ela. Depois, eu a amei. Mais uma vez. Eu não sei como
conseguiria parar porque simplesmente eu não queria parar.
Encarei a loira à minha frente. Minha ex-esposa parecia saber
o que estava acontecendo mesmo que eu não dissesse uma palavra.
— Essas coisas acontecem — ela murmurou, depois de
alguns minutos em que nós nos encaramos como se Analy pudesse
simplesmente decifrar tudo que estava envolvido em nosso silêncio.
— O que quer dizer? — indaguei, enquanto Ísis me puxava
pela mão e me levava até o sofá para me mostrar o desenho que fez.
— Você sabe o que eu quero dizer.
Analy foi até o outro sofá e sentou-se, encarando os filhos.
Havia tanto constrangimento entre nós que eu não conseguia dizer
uma palavra. Nesse instante, eu soube que Analy sabia o que estava
ocorrendo entre a babá e eu. Mais uma vez, a culpa me corroeu. A
visão de meu avô surgiu, pesada em minha consciência. Meu avô
jamais permitiria. Eu quase podia enxergá-lo me reprimindo porque
eu não era o neto perfeito.
— Você parece bem, Otávio – a voz dela me tirou do torpor.
— Você também.
Era um pouco dolorido dizer isso. Ela estava apagada nos
últimos meses do nosso casamento. Saber que Analy renasceu longe
de mim só destacava o quanto eu fui péssimo como marido. Mais
uma vez, lá estava meu avô, dizendo que tudo era por minha causa.
— Eu precisava do tempo que nos demos, Otávio.
— Nós não nos demos um tempo. Nós nos divorciamos.
Ela deu os ombros.
— Papeis... No que são importantes?
Contratos eram tudo para mim. Mas, Analy sempre teve esse
espírito livre que não precisava de amarras.
— Onde estava?
Ela me encarou como se uma nuvem negra passasse pelos
seus olhos. Por um momento, vi a antiga Analy ali, minha antiga
namorada pela qual fui tremendamente apaixonado. A garota que me
queria e que ansiava por minha proteção num mundo onde tudo era
tão vazio e inconstante.
— Eu preciso falar com você, Otávio, mas não na frente das
crianças.
Assenti, e então encarei Igor.
— Leve sua irmã para cima. Vão até Maria Eduarda.
Como sempre, meu filho mais velho não retrucou nenhuma de
minhas palavras. Ele simplesmente segurou a mão da irmã menor e
se afastou. Analy os observou subindo as escadas com um sorriso no
rosto.
— Como cresceram — ela murmurou.
— Muito, desde que os viu pela última vez. Por que não ligou
para eles? Por que não apareceu para vê-los? As crianças sentiram
demais a sua falta.
Ela volveu seu rosto para mim.
— Me serve um martini?
Senti como se ela estivesse jogando novamente, a forma
como seu pedido soou parecendo parte do seu plano. Ainda assim,
dancei conforme sua música. Fui até as bebidas e a preparei o drink.
Trouxe até ela e a vi bebendo um gole com um sorriso satisfeito.
— Ninguém prepara como você...
Não queria beber, mas imaginava o quanto essa conversa
seria difícil, então acabei preparando um conhaque. Bebi tudo num
único gole, e então andei novamente até o sofá. Sentei-me diante
dela, e aguardei.
— Eu estava tão afogada em nosso casamento, Otávio. Você
é tão... tão difícil de lidar. Sempre tão firme, tão rígido com Igor...
— Você nunca pareceu se importar — murmurei.
Porque só com Maria Eduarda em casa foi que reparei no
quanto estava subjugando meu filho.
— Eu me importava sim, mas não sabia como falar isso para
você. Ficamos casados por dez anos, você não me conhece? Como
pode achar que não me importo com as crianças?
— Porque foi o que disse, Analy. Muitas vezes. Esqueceu que
queria abortar Ísis?
— Foi injusto da sua parte me forçar a ter uma criança que eu
não queria — ela falou, alto e claro, e eu baixei a face.
Analy sempre conseguia reverter a culpa.
— Eu odiei você, Otávio.
— É nossa filha, Analy. Ela tem olhos, tem boca, tem os
dedinhos dos pés e das mãos completinhos. Tem a personalidade
forte e tem tanta coisa para viver. Como pode dizer algo assim?
Ela não pareceu envergonhada.
— Eu odiei você, Otávio — repetiu. — Fui presa fácil.
O que ela queria dizer?
— Você jurou há muitos anos me amar e me proteger, mas
não fez isso. Você nem ligava para como eu estava infeliz.
Eu precisava de outro conhaque. Olhei para a bancada de
bebidas, pensando que devia levantar e preparar outra dose. Dupla,
dessa vez. Mas, a voz de Analy me manteve no lugar.
— Por que não cumpriu sua promessa, Otávio?
— O que você quer? — rebati. — Que eu peça perdão porque
salvei minha filha?
— Você não me protegeu — ela insistiu.
— Proteger de quê?
— Não vê? — estendeu as mãos. — Estou aqui, Otávio,
completamente aberta sobre tudo que aconteceu. Disposta a colocar
tudo em pratos limpos para que possamos seguir em frente. Juntos.
Mas, para que eu peça perdão pelo que fiz, você tem obrigação de
me pedir perdão também. Eu estava infeliz e você não me apoiou.
A culpa recaiu sobre mim com o peso de toleradas. Eu amei
aquela mulher mais que a vida, e de bom grato me desculparia
porque qualquer coisa que não envolvesse Ísis.
— Nunca vou me arrepender de tê-la impedido de ir até aquela
clínica abortar. Nunca vou me arrepender de ter denunciado aqueles
assassinos à polícia.
Ela negou com a face, suspirando cansada. Terminou o martini
e então pousou o copo sobre a mesinha de centro.
— Quer saber onde eu estava? Mesmo? Pois eu estava aqui
na cidade. Às suas vistas.
Absorvi a informação por alguns segundos.
— Por que não ligou para seus filhos, então?
— Não estava pronta para falar com eles. Estava magoada
com você. Como disse, fui presa fácil.
— Presa fácil do quê?
— Lembra-se de ter ido a uma festa semanas atrás?
A imagem de Maria Eduarda de vestido creme me tomou.
Naquela noite trocamos nosso primeiro beijo.
— Você está lá?
— No quarto acima. Com Bernardo.
De repente, tudo começou a ficar claro para mim. Os sumiços
de Bernardo, a insistência dele que eu superasse Analy.
Ele era meu melhor amigo, mas me traiu dentro de minha
casa.
— Eu cometi um erro, Otávio. Estou sendo sincera com você,
dizendo toda a verdade de uma vez porque eu sei que é um homem
justo, você é um conde não apenas num título de nobreza. Bernardo
me seduziu quando eu estava infeliz, me prometeu amor e me tirou
de casa.
Eu não conseguia me mexer. Era uma traição tão inesperada.
Eu sabia que devia ir até Bernardo nesse momento e tirar satisfação,
mas ele estava no Catar e eu... eu nem conseguia me mexer.
— Mas, Bernardo não tem culpa. Eu tenho culpa. Acima de
tudo, você tem culpa. É sua responsabilidade. Se não tivesse me
afundado nessa vida, eu teria recusado Bernardo. Mas, você... você
acabou comigo.
Meus olhos caíram nela. Eu pude ver como ela tremia numa
raiva e choro que mal conseguia segurar.
— O que você quer de mim?
— Eu não sei — Analy admitiu. — Quando me dei conta do
que fiz, eu voltei para casa. Voltei para as crianças. O que você vai
fazer? Me expulsar? A mãe dos seus filhos?
Isso era um pesadelo.
— Isso não vai dar certo, Analy.
— Por quê? É incapaz de perdoar um erro? Logo você, que já
cometeu tantos?
Eu estava muito confuso, minha cabeça girava. Meu amigo de
infância era um traidor, minha esposa me deixou para ficar com ele.
E, de alguma maneira, tudo isso era culpa minha. De que jeito?
Me levantei do sofá e comecei a caminhar em direção à
escada. Precisava ir até meu quarto, ficar sozinho.
— Minhas coisas estão no seu quarto — ela disse. — Posso
dormir com você?
Novamente, o jogo da sedução. Mas, eu não estava em clima
nenhum. Eu simplesmente volvi na direção oposta as escadas, em
direção a área externa. Meu carro de viagem ainda estava ali. Sem
pensar muito, entrei nele e dirigi para longe.
✽✽✽

Eu queria partir para outro lugar, mas eu tinha dois filhos


pequenos em casa, e não podia abandoná-los. Então, eu voltei perto
da meia-noite. Entrei no Casarão, o vi vazio e escuro, e fiquei
aliviado. Minhas pernas estavam meio bambas da quantidade de
álcool que bebi na cidade. Eu não era capaz de encarar minha
situação sóbrio.
Sentei-me no sofá, e resvalei para trás. Estava tão sufocado,
que lutei contra a gravata que parecia apertar minha garganta. Logo,
tirei minha camisa também, meu sangue queimando.
Era de raiva. Vergonha.
Eu liguei para Bernardo, mas ele não me atendeu. Como eu
não o via a dias, provavelmente ele já sabia que Analy me contaria a
verdade.
Covarde... covarde...
Por que não me encara?
— Otávio?
Uma voz feminina me fez olhar na direção da escada. A loira
descia com seus cabelos volumosos em uma delicada camisola. Uma
parte de mim pensou ser Maria Eduarda, mas outra me lembrou que
Maria Eduarda não tinha peças tão refinadas de seda, nem usava um
perfume tão doce e forte.
— Otávio... Eu sinto muito, querido... — ela murmurou, se
aproximando.
Logo ela estava ao meu lado. Sua mão gentil segurando a
minha, seus cabelos lindos e compridos descansando sobre seus
seios. Ela era tão linda. Quase me trazia a lembrança de nossa lua-
de-mel, dois jovens apaixonados acreditando que havíamos
encontrado o final feliz.
A tornei infeliz. E ela me destruiu.
— Estou bêbado — disse a ela. — É melhor você ir.
— Otávio, me perdoa — ela murmurou, se aproximando mais.
Logo, sua boca provocava a minha. Eu mal conseguia abrir os
olhos, mas sabia que isso era errado. Pior, eu não queria.
— Por que está recuando? Está transando com a babá?
Citar Maria Eduarda me trouxe calafrios. A imagem da doçura
de Maria Eduarda se confundia a sensualidade de Analy.
— Acha que ela pode te dar filhos como eu? Você, um conde,
teria filhos de uma serva?
Então a imagem do meu avô me tomou. Não, eu nunca
poderia ter uma vida com Maria Eduarda, nem filhos com ela. Seria
desonrar minha família, seria vergonhoso demais...
— Você quer mais filhos? Quer que eu tenha mais um para
provar que não vou tentar tirar dessa vez? — ela sussurrou.
Então, rapidamente, Analy estava sobre mim. Meu corpo
reagiu quase que no automático, como se recordasse dos encontros
que nós costumávamos ter em noites como essa.
— Não está certo, Analy.
— Por quê? Eu sei que está fodendo a babá. Eu vi na cara
dela. Mas, me diga, você vai se casar com ela? Vai assumi-la?
Neguei com a face.
— Ela é uma boa garota.
— Mas, é só uma empregada doméstica. Eu li o curriculum
dela, nem estudo tem. Você teria vergonha de apresentá-la, não é?
Já imaginou alguém descobrir que a nova condessa limpa banheiros?
A pergunta mergulhou em mim e eu não pude conter minha
reação. Havia vergonha nos meus sentimentos, e a constatação do
óbvio: Maria Eduarda não era a pessoa certa para mim.
— Responda: você vai ficar com ela?
Senti lágrimas nos meus olhos.
— Não. — Assumi, derrotado.
— Você quer filhos dela?
— Não. Seriam bastardos...
Então Analy me agarrou. Suas coxas estavam abertas em meu
colo e tudo que precisei fazer foi erguer a barra da sua camisola e
abrir o zíper da minha calça.
O som dos gemidos dela caiu sobre a noite.
Eu bombeei até sentir o clímax chegar rápido, quase nojento.
Capítulo 19

Ouvi o som do carro de Otávio partindo da casa enquanto entretinha


as crianças no quarto delas.
— Por que papai saiu, Duda? — Ísis me perguntou, mas seu olhar
era como se sabia a resposta. — Papai e mamãe se odeiam, não é?
É tudo por nossa causa...
Eu neguei com a face.
— Claro que não, meu amor. Eles fizeram vocês, que são as
crianças mais especiais do mundo. Mesmo que não fiquem mais
juntos, ainda assim, tem um laço que nunca vai se partir.
Igor me encarou como se eu tivesse acabado de proferir uma
mentira, e eu senti que aquilo tudo era injusto para as crianças. Eles
estavam aflitos pelos pais, e talvez a resolução de tudo seria os pais
reatarem para poder criar as crianças num ambiente seguro e feliz.
Pensei na minha própria infância sem amor, questionando por
que não podia ter uma casa normal com pais que me amavam. Eu
entendia minha mãe, entendia que ela foi forçada a partir desse
mundo, mas meu pai... Por que ele não voltou?
Por que ele não ligou? Anos depois eu soube que ele teve
outros filhos e que era amoroso com eles. Por que não foi comigo?
A mão de Igor tocou a minha.
Por que Analy nunca ligou, desde que eu cheguei?
Deus, como aquilo doía. Talvez as pessoas pensassem que
Ísis e Igor não se importavam, mas eu sabia a verdade. Eu vivi a
verdade.
Já havia colocado as crianças para dormir quando ouvi o carro
retornando. Já era quase meia noite, e fui até às escadas para ir de
encontro a Otávio. Eu precisava falar com ele, ouvir o que ele sentia,
e saber qual decisão eu devia tomar.
Quando eu estava chegando na escadaria, ouvi o começo de
uma conversa que me destruiu:
— Responda: você vai ficar com ela?
Eu dei dois passos em direção às escadas. Senti lágrimas nos
meus olhos quando vi Analy montada em um Otávio esparramado no
sofá grande.
— Não.
— Você quer filhos dela?
— Não. Seriam bastardos...
Eu fiquei travada na escada. O olhar de Analy me encontrou, e
então eu soube que ela fez essas perguntas de propósito, para me
fazer entender que eu não tinha lugar ali, além da casual amante que
o conde foderia enquanto sua esposa estava fora.
Os ricos são mesmo muito cruéis...
Eu não me movi mesmo quando eles começaram a transar,
Analy raspando e resvalando para frente e para trás sobre o corpo de
Otávio. Os gemidos dela eram necessários para me fazer entender a
realidade. Eu demorei para alçá-la, mas agora ela estava
escancarada na minha cara.
Nós havíamos feito amor de tarde. Agora, ele estava
transando com a ex-mulher. Ele nem se importava com quem faria
sexo, contanto que o fizesse. E eu, a idiota, acreditei que comigo era
especial.
Eu não fui especial nem para meu pai, quiçá para um homem
com título de nobreza.
O erotismo da cena abaixo se intensificou e os gemidos de
Analy invadiram minha cabeça, me fizeram enfim recuar. Eu não era
capaz de ver a bombada final, não era capaz de ouvir Otávio
chegando lá. Simplesmente andei por onde vim, até conseguir chegar
no quarto.
Eu só reparei que meu rosto estava totalmente molhado de
lágrimas quando entrei no aposento e reparei no espelho ao lado da
cama.
Só então os primeiros soluços vieram. Meu joelho dobrou e eu
caí no chão.
Usada... Como uma vagabunda...
Mas, a verdade é que eu havia me apaixonado perdidamente.
Eu o amava... havia amado... Não sei mais o que pensar.
Eu me abracei, tentando me confortar. Eu sou humana, afinal
de contas... Quem nunca cometeu um erro? Quem nunca se deixou
levar pelos sentimentos?
Não eu... Eu jamais me envolvi com um patrão...
E agora eu estava perdidamente apaixonada pelo meu patrão.
Eu chorei tanto que perdi o tempo. Fiquei talvez horas assim,
pensando no que eu devia fazer. Eu não podia mais ficar aqui, não
conseguiria, mas para onde eu iria?
Otávio pagava o salário direto na conta do banco, e eu não
mexi nele desde que entrei nesse emprego. Talvez eu tivesse o
suficiente para alugar um apartamento até conseguir outro emprego,
ou talvez eu tivesse para ficar algum tempo parada em uma pensão.
Talvez pudesse recolher meus cacos por um período, até ter
coragem de seguir em frente.

✽✽✽

Quando o relógio soou seis horas da manhã, eu o encarei com


as vistas nubladas. Não havia dormido a noite toda, meus olhos
estavam inchados de chorar, a dor não parecia ter amenizado nem
com o nascer do sol.
Mas, eu precisava acordar as crianças e prepará-las para o
dia. Mesmo que eu pedisse demissão hoje, eu não podia deixá-los
sem ajuda porque ninguém faria isso por eles. O pai só exigia e mãe
nem ligava.
O choro de dor voltou, porque na minha decisão de ir embora
agora se confrontava com o abandono de Ísis e Igor. Eles não eram
meus filhos, eles tinham pai e mãe, mas eu sabia que quando eu
fosse, eles estariam a própria sorte.
Eu sentia que foi assim antes de mim, e seria assim depois
que eu me fosse.
Cheguei ao banheiro no mesmo instante que um vômito de
revolta surgiu. Meu corpo, provavelmente, estava reagindo a tanta
dor. Me curvei no vaso sanitário, no mesmo momento que retorci de
ânsia. Um líquido amarelo caiu no vaso, saindo direto da minha
garganta.
Mais uma vez, outra. Quando passou, eu caí de lado, estava
tão exausta que quase não conseguia me mexer.
Mas, eu precisava. Sofrer de amor era privilégio dos ricos.

✽✽✽

— Sente-se ereto, Igor — disse, enquanto o garotinho parecia


ansioso nessa manhã.
Ele sorriu para mim, me mostrando todos os seus dentinhos
perfeitos.
— Onde estão papai e mamãe? — ele me perguntou.
Arlete entrou na sala de jantar naquele momento. Como
sempre, ela trazia bandejas com alimentos. Fiquei nauseada com a
simples visão.
— Maria Eduarda — a velha empregada me encarou. — Analy
está no escritório de Otávio e pediu para que você fosse até ela.
Encarei as crianças, e pedi que começassem a comer.
— Logo eu volto — disse a eles, e então me afastei.

✽✽✽

— Bom dia, Maria Eduarda — ela me cumprimentou, assim


que me aproximei. — Sente-se querida, você não parece bem...
Eu não estava bem, realmente. Eu sentia como se algo
estivesse entalado na minha garganta. Queria dizer isso a ela,
também com o aviso de que eu estava indo e eles precisavam
arrumar uma nova babá. Mas, Analy se antecipou.
— Eu te chamei aqui porque Otávio não tem coragem de falar
cara-a-cara. Eu acho que você já sabe que estou voltando.
Assenti.
— E sabe que não vamos mais precisar de uma babá. Eu vou
cuidar dos meus filhos.
Eu não sei que cara eu fiz, porque ela logo fortaleceu de uma
forma que quase me tirou o oxigênio.
— São meus filhos, Maria Eduarda. Meus. Eu os tive nove
meses no ventre, eu os pari. Acredito que você entende isso? Aqui —
ela estendeu um cheque para mim. — É um valor pelo contrato
quebrado, também do aviso prévio. Espero que possa pegar suas
coisas e ir embora sem problemas. Vou pedir um táxi para daqui uma
hora. Peço que não fale com as crianças sobre isso, não quero
drama, já que eles gostam muito de você. Mas, como qualquer
empregada, logo será esquecida.
Ela suspirou pausadamente.
— Eu não sou uma bruxa cretina, só estou lutando pela minha
família. Não acho que é uma sem-vergonha, apenas se deixou levar
pelo conde bonito e recém-divorciado. Homens como Otávio são
assim, eles... ah, você sabe... — ela pareceu compreensiva e doce
naquele instante. Eu quase fiquei triste por ela. Também não devia
ser fácil para Analy. — Só estou pegando minha família de volta,
Maria Eduarda.
Acenei.
— Sim, eu entendo.
Depois disso, me levantei e fui até meu quarto arrumar minhas
malas.

✽✽✽

A porta do metrô se abriu e eu vi Jonas do outro da estação,


abrindo um espaçoso sorriso na minha direção. Eu trazia duas
sacolas e uma mala comigo, meus parcos pertences. Quando o táxi
me deixou no centro da cidade, eu mandei uma mensagem para
Salete, contando tudo. Ela me disse que estava morando com o
padeiro, de quem ela me disse há tanto tempo que não sabia se
amava ou não, e falou que eu podia ficar com eles por um período,
até colocar minha cabeça em ordem.
— Ei, Maria Eduarda — ele disse, se aproximando. — Faz
muito tempo que eu não vejo você!
Eu sorri, triste. Parecia uma outra vida o tempo que Salete e
eu íamos lanchar na padaria que ele trabalhava.
Subitamente, eu comecei a chorar. Estava tão humilhada, tão
ressentida, mas feliz porque estava vendo um rosto amigo. Jonas se
aproximou de mim e me deu um abraço.
— Vai ficar tudo bem — ele garantiu. — Você não está
sozinha.
Capítulo 20

A minha cabeça parecia prestes a explodir quando acordei na


manhã seguinte ao meu retorno, deitado no sofá, com uma garrafa de
uísque ao lado, o corpo meio desnudo e o zíper da calça aberto.
Eu tentei me recompor enquanto as imagens iam surgindo na
minha mente. Primeiro, o sexo de tarde com Maria Eduarda. Depois,
com Analy. Desde quando eu era tão filho da puta assim?
Talvez tenha sido pela conversa. Analy me fez perguntas
difíceis que me fez encarar o fato de que Maria Eduarda e eu não
tínhamos um futuro. Ainda assim, falar sobre isso me incomodava,
porque eu gostava de ignorar o fato, e pensava só no quanto Maria
Eduarda e eu éramos tão... tão perfeitos juntos. Tirando a parte
social, como o mundo veria nossa relação, nós dois nos dávamos
bem. Éramos amigos e ótimos parceiros na cama. Se ela tivesse, ao
menos, um pouco de estudo ou coisa assim, nós poderíamos até
levar adiante esse...
Sentimento.
A palavra me incomoda, porque não gosto de pensar que
tenho sentimentos por ela. Emoções são coisas de moleque, de
quem tem a vida pela frente e de quem tem sonhos românticos. A
realidade é que um casamento não era nada fácil, manter uma
mulher feliz era complicado, e eu já havia fracassado uma vez.
Isso trouxe Analy de volta a minha mente.
Eu não estava preparado para encontrá-la. Não queria que ela
me exigisse algo ou apontasse como foi fácil transar com ela. Eu
estava bêbado e não pensei. Simplesmente isso.
Levantei do sofá e me ajeitei o melhor que pude. Eu precisava
de um banho, mas não tinha coragem de ir até meu quarto.
Normalmente em dias como esse, eu iria até Bernardo. Mas, agora, a
única coisa que eu queria era encontrar aquele falso para acabar com
ele!
Saí para fora do casarão. Meu carro favorito estava no mesmo
lugar onde eu – inconsequentemente – o coloquei, mesmo estando
bêbado. Eu fui tão irresponsável, eu tinha dois filhos para criar, e me
dei ao luxo de pegar um veículo e andar com ele mesmo sabendo
que não tinha condições de dirigir.
Droga..., mas, eu sou humano. Eu cometo erros, merda.
Ainda assim, quase podia ver meu avô às minhas costas
criticando tudo que eu faço.
Dormiu com uma mulher que te traiu!
Dormiu com uma empregada!
Seu filho não está se tornando um homem forte!
— Me deixe em paz, vô — murmurei, antes de entrar no
veículo.
Parti novamente, dessa vez em direção a um hotelzinho barato
perto dali. Um banho e um café me colocaria novamente nos eixos.

✽✽✽

— Onde está Maria Eduarda?


Arlete ergueu sua face para mim. A cozinha cheirava a pão
assado e a infância. Ainda assim, eu ignorei o odor agradável,
tentando não jogar em Arlete meu temperamento difícil.
— Eu não sei — ela disse, simplesmente.
— Como não sabe?
— Eu não cuido da vida da babá. Não é minha
responsabilidade.
Respirei fundo, irritado.
— Onde estão as crianças?
— Analy as levou até o bosque para brincarem no balancinho.
— Analy?
Analy nunca levava as crianças para brincarem. Isso começou
a me dar nos nervos.
— Por que ela está fazendo isso?
— Não vê? Ela quer reconquistar o marido.
— Não tem volta, Arlete.
— Por que ela te traiu? Sim, eu sei da história — disse diante
do meu olhar assombrado. — Não seria o primeiro homem a perdoar
uma traição.
— Eu não vou perdoar — afirmo.
— Eu acho que vai — Arlete deu os ombros. — Sempre foi
apaixonado pela esposa. E os filhos vão ficar felizes pela mãe estar
novamente em casa. Essa é a desculpa que você vai dar.
— É mais complicado que isso — admito.
— Por causa de Maria Eduarda? Você escolheria a babá? Eu
duvido. Um Figueiredo nunca escolheria a empregada.
Ela estava sendo cruel, mas eu sabia que ela estava, na
mesma medida, me fazendo ver a situação por uma ótica que eu não
poderia ignorar. Sem coragem de rebatê-la, eu zanzei pela casa
procurando por Maria Eduarda. Liguei no número dela depois de
percorrer todo andar superior, entrar em todos os quartos e não a ver.
O telefone sequer chamou, caiu direto na caixa de mensagens.
Então eu saí da casa e fui até o bosque frutífero. Peguei uma
maça no pé enquanto sorria para meus filhos que eram empurrados
pela mãe nos dois balanços.
— Papai, vê como vou alto — Ísis gritou.
Bilbo veio aos meus pés e pulou, como se quisesse me dizer
algo. Eu fiz um carinho rápido no cachorro, antes de me voltar para
Analy.
— Podemos conversar?
— É claro, amor — ela disse e aquilo me enervou, porque eu
sabia que ela estava falando na frente das crianças para me
encurralar.
Nós nos afastamos um pouco dos meus filhos. Eu podia sentir
o olhar das crianças queimando nas minhas costas. Ísis estava louca
para perguntar se voltamos, e Igor parecia aflito.
— Por que me chamou assim? — indaguei, ríspido, apesar de
em tom baixo.
— Não posso te chamar de amor?
— Você perdeu esse direito com o divórcio.
Analy deslizou a mão pelo meu braço.
— Otávio... Só estou lutando pela minha família.
— É tarde demais, Analy.
— Eu cometi um erro. Me perdoa. Eu sou humana, imperfeita.
Não foi por maldade, foi por solidão. Mas, por que não mereço uma
segunda chance? Por que nossa família não merece uma segunda
chance? Você ainda me quer, ontem provou isso.
— Eu estava bêbado — justifiquei.
— E ainda assim ficou duro como uma rocha.
Aquilo me enojou.
— Francamente, Analy, qualquer mulher me deixaria duro.
Ficar duro é a natureza de um homem. Agora, respeitar e amar
alguém é diferente que simplesmente desejar.
Ela engoliu em seco.
— Você lembra quando vínhamos aqui quando éramos recém-
casados. Você fez esses balanços para mim e hoje nossos filhos os
usam. Eles são frutos do nosso amor.
— Você esqueceu que os “frutos do nosso amor” só estão
vivos e se balançando aqui porque eu não deixei você abortar! Analy,
pare de tentar trazer à tona emoções falsas, porque só eu tentei fazer
esse casamento dar certo. Eu te dei tudo que quis, e você nem
pestanejou em me trair com meu melhor amigo.
— Ele me seduziu.
— Ele é um canalha, de fato. Mas, você não é melhor que ele.
Depois disso, me afastei novamente. Eu iria perguntar para
Analy onde estava Maria Eduarda, mas acabei me irritando mais e
mais com ela e o assunto ficou esquecido. Agora, estava eu
novamente com o celular na mão, tentando mandar alguma
mensagem.
“Onde diabos você está?”
A mensagem sequer saiu do meu aparelho.
Travei.
Era impressão minha ou Maria Eduarda me bloqueou?
Capítulo 21

— É tudo simples, mas fique o tempo que precisar — Salete disse,


às minhas costas.
Eu entrei no pequeno quartinho daquela casa humilde na
periferia da cidade. Jonas e Salete não tinham muito, mas a
generosidade deles em me acolher ficaria para sempre marcada em
minha mente.
— Obrigada — murmurei a ela. — Fiquei surpresa quando me
contou que estava morando com ele — forcei um sorriso, tentando
mostrar qualquer animação.
Ela me encarou como se soubesse exatamente o que eu
estava vivendo. Ainda assim, permaneceu na sua história.
— Você lembra quando te contei que não sabia se gostava ou
não dele. Pois bem, a vida estava cada vez mais difícil na pensão.
Depois que você saiu, um homem foi morar no seu quarto e eu não
me sentia segura. De madrugada ele ficava andando no corredor e
ficava perto da minha porta... Ele me olhava estranho, e uma noite
juro que ele tentou forçar a maçaneta. Então, eu decidi aceitar o
convite de Jonas e vim morar com ele. Não sei explicar o que
aconteceu depois. Ele é tão gentil e bom que o sentimento foi
surgindo. Eu acho que o amo, agora. Nós temos planos de termos
um filho. Ele é muito trabalhador.
Eu me aproximei dela e segurei suas mãos. Jonas havia me
deixado na casa pouco antes de voltar ao trabalho. Ele me contou
que estava guardando dinheiro para abrir sua própria padaria ali
naquela região carente de comércios.
— Que bom que deu tudo certo, amiga — afirmei, sincera.
— Mas, e você? O que aconteceu?
Eu volvi novamente de costas para ela, e caminhei até a cama
de solteiro com colchas floreadas. Larguei minha mala em cima da
cama, e então suspirei, cansada.
— Eu me apaixonei — confessei, porque sabia que podia
confiar nela. — Eu me apaixonei pelo meu patrão.
— O duque divorciado?
— É conde — eu ri, contendo as lágrimas. — Não importa o
que ele é. Ele não...
Dessa vez não pude conter as lágrimas. Escondi meu rosto
com as mãos enquanto Salete se aproximava e me confortava.
— Ricos são como estrelas no céu — disse a ela. — E
empregadas são apenas porcos que observam as constelações,
enquanto chafurdam na lama.
A mão de Salete se mexeu para cima e para baixo nas minhas
costas, como se ela quisesse me aquecer.
— Não pode se culpar... Essas coisas acontecem — disse.
— Eu dormi com ele.
— Todo mundo comete um erro.
— Duas vezes — completei.
— Ok. Dois erros. E daí? — ela bateu no meu ombro. — Você
acha que nenhuma outra mulher já passou por isso? Acontece.
— Já aconteceu com você?
— Como você acha que eu perdi minha virgindade?
Não sei por que, aquele relato desgraçado me animou e eu me
vi rindo.
— A esposa dele voltou, e me mandou embora. Claro, ela está
certa...
— Mas, eles não são divorciados?
— Pelo que eu entendi, ela está tentando reatar.
— E ele?
— Eu não sei. Mas, isso importa?
— Claro que importa. Pode ser que ele queira ficar com você.
“Você vai ficar com ela?”
“Não.”
— Ele disse para a esposa que não ficaria comigo. Eu ouvi
escondida, e não foi só as palavras. O jeito que ele disse... Ele me
considera tão pouca coisa, Salete...
Soluços me tomaram e eu precisei me esconder nos braços
dela. Salete é a irmã e a família que eu nunca tive. A dor era
tremenda, e eu precisava dela como nunca precisei de ninguém
antes.
— Eu nem pude me despedir das crianças. Eu precisei deixá-
las sozinhas. Ísis vai se sair bem, mas eu temo por Igor... Meu
garotinho... Ele é tão sozinho, Salete...
Eu não consegui dizer mais nada. Só conseguia chorar,
minhas lágrimas caindo quente sobre minha face cansada. Aliás,
nunca estive mais cansada em minha vida. Estava exausta ao ponto
de só pensar em me deitar.
E morrer, se tivesse sorte.
Mas, antes disso, o vômito me fez arquear. Eu pedi por
banheiro, e Salete me guiou até um pequeno cômodo sanitário ao
lado do quarto.
— Estou com problema no estômago. Deve ser estresse.
Ela assentiu.
— Sim, deve ser.
Mas, havia algo em seus olhos que Salete não me disse. De
qualquer maneira, eu não questionei. Apenas lavei a boca e voltei
para o quarto, a fim de guardar minhas coisas e me ajeitar o melhor
que pudesse.
Por mais gentil que seja Salete e Jonas, eu não pretendo ficar
muito tempo aqui. Eles são um novo casal e precisam de espaço e
privacidade.

✽✽✽

A casa estava silenciosa e escura. Na rua ao lado, eu ouvia


um bêbado cantar alguma canção sertaneja e um ou outro carro
passar. Me revirei nos lençóis perfumados. Salete colocou talco
neles, para que eu ficasse o mais confortável. Ela sempre foi tão
cuidadosa e caprichosa. Eu aspirei o perfume com um sorriso,
pensando no quanto minha amiga era gentil.
De repente, sem pensar, peguei meu celular. Queria apenas
ver as horas, mas me dei conta da falta de mensagens nele durante o
dia. Então me lembrei que bloqueei Otávio para que ele não pudesse
me dizer nada. Ainda assim, será que tentou ao menos entrar em
contato?
Meu coração sangrava pela dor e decepção, e ainda assim eu
queria saber se pelo menos ele teve uma réstia de...
De o quê?
Amor?
Eu era tão patética. Mesmo assim, não resisti. Simplesmente
fui nas configurações e desbloqueei Otávio, apenas para ver se ele
me mandou alguma mensagem.
Eu sorri como uma idiota quando vi várias mensagens: “Onde
você está?”, “Por que não atende o telefone?”. Arqueei as
sobrancelhas pensando que talvez ele não tivesse me despedido, e
tudo tenha sido uma armação de Analy.
Mas, Analy não o estuprou. Ele fez sexo com ela porque quis.
E Analy não o forçou a dizer que não me queria. Que não me
assumiria.
“Eu preciso falar com você,” dizia a última mensagem.
Eu levei meus dedos ao teclado da tela.
“Eu amei você”.
Digitei e enviei. Uma parte de mim só queria que ele soubesse.
Pensei em bloqueá-lo de imediato novamente, mas ao
perceber que ele visualizou a mensagem, não consegui. Um segundo
depois, meu telefone vibrou. Ele estava ligando. Não atendi. Não
apenas porque não queria ouvir a voz dele, mas também porque a
casa era pequena e eu não queria incomodar os donos.
“Maria Eduarda”, Otávio digitou depois de perceber que eu não
iria atender. “Muitas coisas aconteceram, mas não estou disposto a
renunciar você”.
Eu li aquilo, meu coração aos pedaços. Ainda assim, tentei
manter a razão. Eu ouvi da boca dele a verdade, não importa o
quanto aquelas palavras seriam enganosas.
“O que quer dizer? Você vai se casar comigo?”
Eu só queria saber até onde ele iria. Uma parte de mim quase
pôde visualizá-lo com o olhar confuso diante da questão.
“Eu acabei de me divorciar e... ainda não estou pronto para...”
Eu não li mais nada, porque não dava para aguentar. Apertei
meus olhos, tentando conter a raiva, a decepção, a dor da certeza de
que eu era apenas um objeto para ele transar.
Enquanto abri meu coração e entreguei a Otávio algo que
jamais dei a outro homem, ele apenas aliviou suas insatisfações
sexuais com meu corpo. A mim, apenas uma cópia da sua linda
esposa.
Bloqueei-o novamente.
Eu não sou um objeto.
Eu nunca vou deixar mais ninguém no mundo me tratar como
um.
Capítulo 22

Um ano depois

Entro no casarão e a primeira imagem que vejo é a de Arlete,


segurando uma garrafa de suco de morango, trazendo no semblante
a pura indignação.
— O que aconteceu agora?
— Analy está aí. De novo.
Há um ano, quando Maria Eduarda foi embora, eu expulsei
Analy da minha vida. Não exatamente no mesmo dia, ainda precisei
de um tempo para ter forças de mandá-la embora, mas enfim, eu
consegui.
Foi mais ou menos assim: Maria Eduarda me bloqueou uma
segunda vez e, por mais que eu ligasse ou mandasse mensagens,
nunca tive um retorno. Depois de quinze dias, alguém atendeu minha
ligação, e descobri que ela vendeu o número e o celular para uma
pessoa qualquer.
Ela cortou os laços. Aquilo me arrasou. No mesmo dia, quando
cheguei em casa, dei de cara com Igor amuado em um canto.
“Eu sinto falta da Duda, pai” — ele me confessou, como se
sentisse muita culpa por ter sentimentos.
Pela primeira vez na minha vida eu abracei meu filho. Disse a
ele que eu também sentia falta dela. Maria Eduarda foi a responsável
por quebrar essa barreira entre Igor e eu. Provavelmente, se ela
nunca tivesse surgido em nossas vidas, eu passaria meus dias
mantendo meu filho afastado, cobrando dele atitudes “de homem”
como meu avô fez comigo, sem saber que o estaria condenando as
mesmas inseguranças que me avassalavam.
As mesmas inseguranças que me fizeram recusar o amor puro
daquela mulher.
“Por que a mamãe não gosta de mim?” — ele perguntou tão
logo nós desfazemos o abraço.
“Como assim, filho? Claro que sua mãe gosta de você!”.
“Antes de ela ir embora, ela não nos queria perto. Depois que
voltou, ficava insistindo para que ficássemos o tempo todo perto dela.
Depois que Duda se foi, ela manda Ísis e eu nos afastarmos e a
deixarmos em paz”.
Foi por causa disso que eu também quebrei de uma vez
aquela relação doentia.
Analy gritou, chorou, esperneou, mas ordenei a Samuel
recolher suas coisas e depois Gustavo a levou embora.
“Eu vou ficar com as crianças” ela me ameaçou.
“Tudo bem, você quer levá-las agora?” eu perguntei, só para
ver o que ela faria.
Claro que eu não entregaria meus filhos a mãe relapsa deles,
mas ver como ela perdeu a pose diante da minha concordância só
destacou que ela nunca se importou com os filhos, apenas pensava
que poderia usá-los para me chantagear.
Então ela se foi. Para voltar várias vezes nos meses que se
seguiram, a fim de visitar os filhos e tentar me seduzir de novo.
Mas, algo se quebrou em nosso casamento. Não teríamos
volta.
Com toda essa tragédia, eu quase me esqueci de Maria
Eduarda. Quase. Porque havia dias que eu apenas pensava que ela
foi um sonho romântico bobo que passou. Mas, nas noites, enquanto
deitava minha cabeça no travesseiro, eu me lembrava de como se
entregava a mim com tanta paixão.
E tinha mais: nós nos tornamos amigos. Eu adorava conversar
com ela nas noites que tomávamos chá de hortelã.
Mas, eu não tinha nada dela, nem mesmo uma foto. E a
lembrança dela começou a se esvair na minha mente, até que decidi
esquecê-la.
— Você a deixou entrar? — Perguntei a Arlete.
— Ela disse que está aqui para ver os filhos — minha
governanta deu os ombros, como se não houvesse nada que ela
pudesse fazer.
Acenei. Então rumei até o quarto deles, apenas para encontrar
a mulher loira de cabelos esvoaçantes sorrindo falsamente.
Analy perdeu o encanto. Para mim, ela nunca mais seria a
mesma.
— Oi, amor — ela me disse assim que entrei no quarto.
Ísis correu até mim. Eu a peguei nos braços e lhe dei um beijo
estralado na bochecha. Depois, a soltei e fui até Igor. Memórias de
Maria Eduarda me dizendo para me aproximar do meu filho cravando
na minha mente. Nos primeiros meses, Igor se esquivava dos meus
toques, mas agora ele já aceitava o cafuné com um sorriso.
— Quanto tempo você vai ficar? — perguntei a ela.
— Quanto tempo posso ficar? — ela devolveu, tentando
pareceu sensual.
— Até as 18 horas — adverti. — Gustavo virá nesse horário
para te levar a cidade.
— Não posso passar a noite aqui?
Eu estava cada vez odiando mais esses joguinhos.
— Não.
Então saí do quarto. Estava tentado a ir tomar um banho e
descansar, quando Arlete surgiu diante dos meus olhos, parecendo
apavorada.
— O que aconteceu?
— Bernardo está aí.

✽✽✽

Eu não via Bernardo há mais de um ano, e não sabia como


reagir diante dele depois de tudo. Entrei no meu escritório com
passos retos até minha cadeira, ele levantou-se, culpado, mas não
parecia ter medo de mim.
Quando meu ex-melhor amigo viajou para o Catar, foi com a
desculpa que iria atrás de novos investidores. Depois, descobri que
na verdade ele estava fugindo de mim e da minha reação ao
descobrir sobre ele e Analy.
— Como vai, Otávio? — Bernardo indagou, sentando-se diante
de mim.
Fiz o mesmo, resvalando na minha cadeira inclinável. O
observei atentamente, tentando descobrir o que ele queria comigo.
Há um ano, eu acreditava que o mataria se o encontrasse. Agora,
não sentia nada.
— O que está fazendo aqui?
— Eu... eu precisava...
Eu mal conseguia olhar para ele.
— Quando eu fui embora, fui um covarde. Mas, precisava te
dizer que...
— O quê?
— Que eu sinto muito por tudo que aconteceu.
Eu soltei um riso irônico, carregado de deboche. Nem me
reconheci nesse momento.
— Fala sério. O que você quer?
— Eu não... eu não quis te ferir. Você sempre foi meu amigo. E
eu... aconteceu.
— Aconteceu de você transar com a minha esposa ? – resumi.
— Analy e eu começamos a conversar quando você não
estava. No começo eram coisas sem importância, mas depois
trocamos telefone e ela reclamava tanto da vida aqui no Casarão e
de como você não lhe dava atenção.
— E ao invés de você me contar isso, preferiu dar a atenção
que ela precisava?
— Ela veio uma tarde até mim. Estava chorando. Havia
descoberto que estava grávida de Ísis. Ela tentou me convencer a
levá-la a uma clínica. Disse que não tinha o dinheiro para o aborto e
que você não lhe daria. Ela não entendia por que você era tão
indiferente a dor dela. Preciso confessar que eu também não
entendia. Você já tinha um filho, por que exigir que sua esposa
ficasse grávida de novo?
— Eu não estava exigindo que ela ficasse! Ela já estava!
— Era fácil de resolver. Um bom médico faria o serviço.
Bom médico...
— Por que não a levou, então?
— Eles queriam quinze mil à vista. Eu não tinha o dinheiro na
época e não conseguiria tirar da conta da empresa sem que o
contador te avisasse.
— Como um pedido para ir a uma clínica de aborto se tornou
sexo?
— Quando vim avisá-la que não consegui, ela chorou. Você
não estava, e nós acabamos... Eu acabei consolando-a. Juramos que
isso não aconteceria de novo, mas aconteceu.
Dentro da minha casa. Com minha filha na barriga dela. Talvez
até na minha cama.
— Quem mais sabia?
— Arlete. Eu queria te contar antes de ir para o Catar, mas
Arlete não deixou. Ela disse que você estava depressivo. Isso foi
mais ou menos na época que você contratou a babá nova.
Ele se lembrava de Maria Eduarda.
— Na minha festa de despedida, quando você levou a babá...
Analy viu tudo. Nós já estávamos em crise, ela queria a mesma vida
de luxos que você dava a ela, mas eu era... bom... um assalariado. O
pouco que eu tinha eu gastava em coisas para mim... Então, sei lá...
ela viu que estava perdendo você e decidiu me abandonar e voltar
para casa.
Eu conseguia visualizar uma Analy irritada porque queria uma
vida de aventuras, mas descobrindo que precisava de um trouxa para
bancá-la por trás.
— Eu sei que ela está vendo um advogado para te processar e
conseguir uma pensão. Então, para se defender, eu vim te confessar
a verdade e trazer algumas fotos — ele tirou um envelope do bolso
da camisa e me deu. — Provas da infidelidade dela. Não precisa ver
as fotos, mas as entregue a seu advogado.
Eu aceitei o envelope porque eu sabia que isso era bem
possível. Analy já devia ter torrado tudo que tinha no banco. E eu não
estava disposto a me matar de trabalhar para dar para ela. Claro, não
a deixaria passar fome, porque apesar de tudo, ela era a mãe dos
meus filhos, mas isso não quer dizer que iria prejudicar a herança das
crianças por causa de sua fome de vida.
— Obrigado por ter vindo confessar tudo — disse.
Ele concordou. Levantou-se e saiu. Era a última vez que o
veria.

✽✽✽

Eu fiquei no escritório até depois das 18 horas. Vi pela minha


janela Gustavo levando Analy embora. Só então eu abri o envelope,
temendo que se o fizesse antes, esganasse o pescoço altivo daquela
vadia.
Apesar de tudo, não fiquei surpreso com as fotos sexuais.
Analy parecia feliz como nos primeiros meses do nosso casamento. E
Bernardo estava apaixonado.
Eu também já estive apaixonado.
Por Maria Eduarda.
Era óbvio que eu ainda estava, por mais que eu não quisesse
admitir isso no começo. Por mais que eu tenha dito a mim mesmo
várias vezes que era apenas uma coisa passageira, a verdade é que
um ano se passou e eu ainda pensava nela.
Quando ela me perguntou se eu a assumiria, eu devia ter
confirmado. Eu devia tê-la pedido em casamento. Eu devia ter dito
que a amava.
Mas, eu sou um covarde. E então eu a perdi.
Guardei as fotos no envelope e caminhei até um dos armários
para colocar o material em uma caixa até poder ir ao advogado.
Nesse momento, meus dedos resvalaram em um papel esquecido a
muito tempo.
Era o curriculum de Maria Eduarda.
Eu havia me esquecido desse papel. O peguei na mão e o
levei até minha mesa. Talvez eu pudesse encontrar algo aqui que me
ajudasse localizar Maria Eduarda.
Quando a empreguei, no contrato de serviço ela forneceu o
endereço da minha casa como nova residência. Depois, disse a
minha secretária que o fez porque não tinha uma casa própria, vivia
em pensões. O telefone era o mesmo que ela me bloqueou.
Maria Eduarda Fiuza.
Data de Nascimento, filiação, documentos, referencias...
Dados sem importância eram lidos por mim em voz alta.
Quando subitamente, percebi algo.
Endereço?
Havia um outro endereço ali. Joguei no Google e pelo mapa vi
ser uma pensão na área central da cidade. Sem pensar muito, peguei
meu casaco e fui até lá.

✽✽✽

— Claro que eu me lembro da Maria Eduarda — uma senhora


meio gordinha me disse, enquanto me servia um café. — Moça muito
trabalhadora, sem família. Ela sempre ficava conosco entre um
trabalho e outro. Mas, depois do último, ela nunca mais apareceu.
— Pois é... Eu fui seu último empregador, e quero contratá-la
de novo, mas não a encontro — dei de desculpa.
A mulher me encarou como se me estudasse bem. Claro,
minha aparência era impecável e isso pareceu deixá-la confortável.
— Maria Eduarda não tem parentes, mas tinha uma amiga...
Salete. As duas viviam juntas, como irmãs. Se alguém sabe dela, é
Salete.
A mulher se levantou.
— Salete foi morar com um rapaz que trabalhava na padaria
aqui da área. Ela me deixou um endereço, vou procurar...
Capítulo 23

Segurei Isabella com um braço, enquanto com a mão livre mexia na


minha sacola preta, buscando as chaves. Respirei aliviada por
encontrar logo o que procurava, já que, apesar de ter apenas quatro
meses, Isabella estava a cada dia pesando mais.
Graças a Deus. Porque eu temi desnutrição em algum
momento dessa etapa, já que meus peitos secaram logo no primeiro
mês.
Entro na pequena quitinete alugada perto da casa de Salete,
deixando a sacola com as fraldas de lado e indo direto até o berço,
para colocar a bebê ali até eu providenciar a banheira para lhe dar
banho.
Apesar do dia hoje ter sido difícil, uma maratona no posto de
saúde para ela tomar as gotinhas, e uma visita até a creche
comunitária, eu estava feliz porque tudo deu certo. Há um ano,
quando descobri estar grávida, pensei que nada daria.
Encho a banheirinha de plástico com água quente do chuveiro
elétrico, e coloco a mão, medindo a temperatura. Espero um pouco
antes de ir buscar Isabella porque não quero que ela se queime.
Enquanto isso vou tirando a roupa, sabendo que vou tomar banho
assim que ajeitar Isabella. O dia está quente e estou cansada.
Mas, feliz. É bom destacar.
Há um ano, meus enjoos se tornaram tão frequentes que
pensei estar doente. Foi Salete que desconfiou que minha doença
tinha outro nome. O médico confirmou uma gravidez que me deixou
apavorada. Como eu cuidaria de uma criança se não tinha nem onde
morar?
O bom de você ter amigos verdadeiros é que não fiquei
desamparada. Vendi meu celular no primeiro mês para pagar o
primeiro aluguel, e o dinheiro que ganhei na casa do conde eu
guardei para os meses que viriam. Jonas me convidou para trabalhar
com ele na padaria, até assinou minha carteira como assistente de
padeiro. Graças a Deus, o negócio progrediu e eu pude permanecer
no trabalho até Isabella nascer.
Agora, o auxílio maternidade estava terminando e eu precisava
voltar ao trabalho. Jonas disse que eu poderia ficar mais um mês,
mas não era justo ele ter que pagar alguém para ajudá-lo e a mim,
em casa. Então, estava na correria pela creche. Por sorte, tinha uma
vaga e as moças do lugar aceitaram Isabella.
Vou até o berço e sorrio para minha filhinha. Ela devolve o
sorriso, estendendo as mãozinhas para mim. Isso era tão mágico, tão
especial. Eu não sei como conseguiria ficar longe dela oito horas por
dia, já que só de pensar em me afastar, meu sangue gelava. Mas,
não iria pensar nisso. Não agora.
Comecei a tirar as roupinhas e quando ela estava nua, peguei-
a no colo e a levei ao banheiro. Pus a mão na água, e estava morna
e agradável. Coloquei um pouquinho de sabonete líquido ali antes de
colocar minha filhinha.
A minha vida seria mais fácil se eu ao menos tivesse o apoio
financeiro de Otávio. Mas, ele não quis a filha. E, como sempre, foi
covarde em me dizer isso pessoalmente.
Quando eu descobri que estava grávida, liguei para o Casarão.
Eu não tinha mais celular, e não tinha como avisar Otávio de outra
forma. Também não teria coragem de pisar na casa, temendo ver Igor
e Ísis, o apego que eu tinha pelos filhos dele poderia me destruir.
Então eu liguei. Não foi surpresa Analy atender.
Eu tinha certeza que eles voltariam assim que eu saísse de
cena.
Com a voz embargada, eu contei a verdade. Ela, como
sempre, foi muito compreensiva, e me disse que falaria com Otávio.
Pediu que eu ligasse alguns dias depois para falar diretamente com
ele. Até marcou o horário que ele atenderia.
Eu fiz isso. Quando ela atendeu de novo, soube que ele não
estava interessado.
“Otávio disse que não pode ter filhos fora do casamento.
Seriam bastardos”, ela destacou a palavra que eu já tinha ouvido dos
lábios dele. “Mas, ele não vai te desamparar. Pediu que eu a
acompanhasse até uma clínica para tirar a criança”.
Eu desliguei naquela hora porque não era capaz de ouvir mais.
Salete me disse que eu devia exigir na justiça o reconhecimento da
paternidade e fodê-lo num processo, mas eu só queria esquecer de
Otávio, de Analy e de todos. Eu estava ferida demais. E eu tinha uma
criança na barriga que precisava de mim.
Lavei as dobrinhas gordinhas de Isabella, e ela sorriu para
mim.
— Eu te amo — disse a ela.
Ela balbuciou alguma coisa. O som preenchendo o vazio que
eu tinha no coração.

✽✽✽
Limpei as lágrimas com um lenço de papel, antes de voltar
para a cozinha.
— A deixou na creche? — Salete me perguntou.
Assenti. Era muito difícil.
— Ela vai ficar bem, Maria Eduarda — me garantiu, apertando
meus braços tentando me animar.
O dia se arrastou. Por mais que eu me esforçasse em servir
bem os clientes da padaria, estava com minha cabeça em Isabella. E
se ela chorasse? Sentisse minha falta? E se as meninas da creche a
deixassem sozinha e houvesse um acidente?
Eu não sei por que estava sendo tão trágica. E, sinceramente,
nesse momento, pensei em como Analy teve coragem de deixar os
próprios filhos sozinhos por tanto tempo? Eu jamais deixaria.
Evitava pensar em Ísis e Igor, mas as crianças sempre vinham
em minha mente. Eu queria ter dito adeus a eles, ter me despedido,
ter dito que os amava. Mas, eu era apenas a babá e talvez eles já
houvessem esquecido de mim.
— Ei! — Jonas me cumprimentou, enquanto entrava na
padaria. — Bem-vinda de volta.
Ele era sempre o primeiro a chegar, em torno das 4 horas da
manhã, para colocar o pão para assar. Então, quando eu chegava as
oito para abrir a padaria, ele ia para casa dormir. Ele voltava perto do
meio-dia para as fornadas da tarde. Era uma vida exaustiva, mas
Jonas me confessou que não trocaria ela para voltar a ser
assalariado. Salete ainda trabalhava numa casa de família três vezes
na semana, mas se a padaria continuasse a ir tão bem, ela estava
pensando em vir trabalhar aqui também.
— Aconteceu uma coisa — ele me disse. — Um cara bateu lá
em casa, dizendo que estava procurando você. Ele disse que era seu
patrão, acho que quer que volte a trabalhar para ele.
Arqueei as sobrancelhas.
— Quem?
— Ah... droga... eu não lembro o nome. Ele disse que
conseguiu meu endereço na pensão. — Jonas bateu na cabeça. —
Acho que ele não me disse o nome — justificou, mudando a frase. —
Eu falei que você trabalhava aqui e ele poderia vir conversar
pessoalmente à tarde.
Acenei.
De qualquer maneira, eu não sabia se poderia voltar a cuidar
de crianças. Depois de Ísis e Igor, era muito difícil encarar o
sentimento pelos pequenos sem me comprometer demais.
Capítulo 24

Estendi a xícara de café para o senhor Jorge, que sorriu agradecido.


O pão de queijo esfumaçava em seu prato, e ele parecia mais feliz
que de costume.
— Vou ser avô — ele me contou, e eu sorri em resposta.
— Meus parabéns. Uma criança é uma benção.
Sempre que alguém falava em crianças, Isabella aparecia de
imediato na minha mente. A forma como ela sorria para mim. A
maneira como estendia suas mãozinhas em minha direção. Eu sei
que minha gravidez foi difícil, e sei que mais difícil ainda é ser mãe
solo, mas em nenhum momento desde que o teste deu positivo, eu
me arrependi de ter Isabella.
Eu me arrependia de ter ficado com Otávio sim, mas jamais de
ter engravidado.
Um barulho na cozinha chama minha atenção. Algo caindo no
chão, o som provavelmente de alguma forma de pão. Começo a
andar para lá, quando travo e sinto todo ar sumindo dos meus
pulmões, todo sangue gelando em minhas veias, meu coração
errando o compasso por um segundo.
— Maria Eduarda.
Eu giro para a porta, onde posso ver um homem alto parado. É
claro que eu o reconheci apenas pelo tom da voz, mas
aparentemente fiz algum semblante de dúvida, pois ele completou em
seguida:
— Sou eu, Otávio.
Era quase insuportável vê-lo. Não depois de eu ter me
machucado tanto por causa dele. O que diabos ele estava fazendo
aqui? Ele não me tirou de sua vida? Não tentou me subornar para
abortar?
— O que você está fazendo aqui? — perguntei, talvez um
pouco alto demais, pois vi de relance senhor Jorge virar para nós e
Jonas sair na porta da cozinha.
— Algum problema? — meu chefe perguntou, parecendo
interessado.
Otávio me encarou como se esperasse que eu negasse. Eu
devia pedir ajuda e pedir que Jonas o expulsasse dali, porque depois
de tudo que ele me fez, aceitar que ele estivesse diante de mim era
mais que humilhante.
Neguei para Jonas. Apesar de desejar ver o conde com a cara
no asfalto, eu não queria envolver o marido de minha melhor amiga
em uma briga.
— Está tudo bem — disse a ele. Depois, voltei para Otávio. —
O que quer?
— Podemos conversar?
Pensei muito no que fazer. Por fim, tirei meu avental e disse a
Jonas que eu já voltava. Depois, saí da padaria em direção a um
muro que ficava ao lado. Cruzei os braços e encarei o homem alto
mais uma vez.
Eu não lembrava que ele era tão bonito. Especialmente
quando os olhos dele brilhavam como agora.
— Estou escutando — disse, depois de algum tempo, em
silêncio.
Uma parte de mim esperou pelo pedido de desculpas. Porque
eu merecia um pedido de desculpas, depois de tudo que ele fez.
— Por que foi embora? — ele indagou, e eu fiquei
decepcionada. — Achei que me amava — ele completou, e eu
precisei respirar profundamente para não voar na cara dele.
— Eu te amava — afirmei. — Mas, amo muito mais a mim
mesma.
A mão de Otávio ergueu, ele quase tocou meu rosto, mas eu
estapeei seus dedos antes. Eu não queria nenhum gesto carinhoso,
só queria que ele dissesse de uma vez o que desejava e me deixasse
em paz.
— As crianças sentem sua falta — ele usou da arma mais suja
que pôde comigo.
— As crianças têm mãe — devolvi, na mesma moeda.
— Uma mãe que não está nem aí para elas. Ah, Maria
Eduarda... Eu não entendo por que você deixou a casa.
— Você é idiota? Acha que não sei que transou com sua
mulher no mesmo dia que fez sexo comigo? Você é um porco
nojento!
Droga. Minha voz embargou. Por mais que eu dissesse a mim
mesma que eu já havia superado, ali estava a prova de que tudo
ainda doía demasiadamente.
— Como você sabe disso? — ele balbuciou, e só então notei
que estava incrédulo.
— O que isso importa? Eu sei que dormiu. E eu sei que disse
que jamais me assumiria.
Ele baixou a face. Seus braços caíram e eu o percebi
envergonhado.
— Eu... eu fui tão idiota.
— Sim, foi. Mas, é passado. O que você quer de mim, agora?
Ele ergueu a face. Abriu a boca. Fechou. Depois, respirou
fundo novamente e teve coragem de pedir:
— Volte para mim.
Eu quase ri. Sério, acho que a gargalhada se ajuntou na minha
garganta, mas ela não saiu. Ao invés disso, me asfixiou, causando
uma dor tão profunda que eu quase chorei.
— Para quê? Analy, você e eu vamos brincar de casinha?
— Não. Está certa quando disse que transei com ela. Eu
estava bêbado...
— Isso não é desculpa.
— Estava confuso. Não importa. Eu errei, mas ela não é parte
da minha vida a muito tempo.
— Eu também não. — Dei um passo para frente. Queria ficar
cara a cara com ele, para que ele entendesse o tamanho do meu
ódio. — O que você fez para mim, não tem perdão.
— Por Deus, Maria Eduarda. Foi só sexo. Eu sei que te
machucou, mas eu me arrependi e não tenho mais nada com Analy.
Eu estava bêbado e não foi algo premeditado. Nunca mais
aconteceu.
— Você é idiota? — indaguei. — Você acha que estou com
raiva porque trepou com sua ex? Por mim, que dois morram em cima
de uma cama. Eu odeio você. Eu odeio você mais que tudo nessa
vida.
Ele tentou erguer a mão novamente para me tocar.
Novamente, a afastei com um tapa.
— Eu te amo — ele murmurou.
Dessa vez a gargalhada emergiu da minha garganta. Ainda
doía, ainda me fazia querer chorar.
— Até parece — debochei.
— Eu te amo — ele repetiu. — Eu demorei para entender por
que nunca recebi amor. Mas, eu tenho certeza de que te amo. Eu
senti sua falta desde o momento que você partiu e eu nunca deixei de
pensar em você.
— Meu Deus, como você pode ser tão falso?
— Precisa entender: Analy me pegou bêbado. Eu nem sabia
direito o que estava fazendo.
— Nossa, que mulher cruel! Basicamente uma estupradora. —
Suspirei. — O que isso importa? Eu perdoaria uma traição desse tipo,
mas você...
Eu precisei me afastar um pouco. Eu sentia que poderia voar
na cara dele em segundos. Havia tanta dor, tanta mágoa, tanto ódio.
— Por que você está aqui? — perguntei pela última vez,
querendo encerar o assunto.
— Porque estou apaixonado por você. Porque te quero de
volta na minha vida e na vida dos meus filhos.
Eu neguei. Ele não usaria as crianças contra mim. Eu amava
Igor e Ísis, mas eu não permitiria que ele usasse aqueles inocentes
contra mim.
— Preste bem atenção, Conde Otávio Figueiredo: nunca,
nunca e nunca vou te perdoar. Jamais, entendeu.
Ele negou. Parecia alheio aos próprios erros.
— O que eu fiz não foi tão ruim assim. Eu não sou um
monstro.
— Você é sim. A partir do momento que tentou me fazer
abortar seu “bastardo”, você se tornou o pior dos homens para mim.
E então eu me afasto.
Otávio não me segue. Era um alívio. Esperava nunca mais vê-
lo.
Capítulo 25

Estou sentado no chão daquela calçada de periferia desde que


Maria Eduarda se foi. Fiquei ali, as costas no muro, o joelho dobrado
e as mãos sobre minhas pernas, sem acreditar no que eu acabei de
ouvir.
Eu gostei dela desde o primeiro dia que a vi. Ela parecia gentil
e sincera. Depois, ela me lembrava Analy. Na época, a dor do
divórcio ainda era grande, e olhar para ela me trazia conforto. Mas, o
tempo foi passando, e o que era um relacionamento impessoal se
tornou amizade, e depois paixão.
Uma parte de mim se apegou a ela. Eu tentei fugir, mas
pensava nela demais para conseguir me afastar de verdade. Então,
quando ela se foi, começou os confrontos na minha mente, de todas
as coisas que eu vivi até então.
Eu era reflexo da criação do meu avô. E eu estava tratando
Igor da mesma forma como fui tratado. Então, quando mudei a
maneira de lidar com meu filho, eu percebi que ele estava mais feliz e
confiante, uma criança mais segura de si.
Se eu mudasse... Se eu tirasse de mim os pensamentos
preconceituosos ou esnobes, talvez eu também pudesse ser feliz.
De alguma forma, eu sabia que essa felicidade estaria
vinculada a Maria Eduarda, porque foi ela que me mudou. Foi ela que
me mostrou que as coisas podiam ser diferentes. Pelos céus, até
mesmo na cama, ela me fez perceber que o sexo não precisava ser
tão carnal e podia ser mais sentimental.
Que não era vergonha eu ter sentimentos.
Todavia, até vê-la, eu não havia confessado para mim mesmo
que eu a amava. Sim, eu disse que era apaixonado, mas não amor.
Até vê-la, até perceber a dor em seus olhos, eu não entendi o quanto
ela importava.
“A partir do momento que tentou me fazer abortar seu
bastardo...”.
Eu me levantei.
Analy...

✽✽✽

Entrei no casarão e a primeira imagem que vi foi de minha ex-


esposa sentada na sala com meus dois filhos. Sempre que eu
chegava em casa, ou sempre que eu saía do escritório eu a via com
as crianças. Mas, Ísis me confessou que muitas vezes a mãe os
mandava brincar longe e ficava bebendo ou assistindo televisão, e só
os chamava quando eu estava me aproximando.
Então aquele teatro não surtiu nenhum efeito.
— Arlete — eu disse, alto, chamando a atenção de minha
governanta que logo apareceu. — Leve as crianças para cima, por
favor.
Quando Igor e Ísis sumiram escada acima, eu encarei Analy.
— A partir de agora, você não é mais bem vinda no Casarão.
Ela sorriu como se duvidasse muito que eu fosse cumprir
aquela ameaça.
— Não seja bobo.
— Estou falando sério. Você vai sair agora, e quando quiser
ver as crianças, irá ligar e Gustavo as levará para vê-la.
Ela abriu a boca completamente incrédula.
— Como se atreve? Eu vou à justiça e vou tirar as crianças de
você!
— Você foi infiel, eu tenho provas, fotos... E depois que foi
embora, sequer ligou para os filhos. Ísis e Igor podem testemunhar ao
juiz. Eu duvido que você consiga a guarda. E pense bem sobre o
assunto, Analy, porque eu estou te dando uma pequena pensão para
seus gastos principais por causa das crianças. Eu posso cortá-la a
qualquer momento e você terá que pleitear isso na justiça. Quando
eu mostrar fotos suas de quatro para Bernardo, duvido que qualquer
juiz te dê qualquer centavo. E, se ficar com as crianças, terá que
cobrir metade das despesas delas, ou seja, terá que começar a
trabalhar.
Eu vi, em seu olhar, os cálculos que ela começou a fazer. Não
parecia surpresa por eu ter fotos dela com Bernardo, talvez o ex-
amante tenha ameaçado antes entregá-las a mim. Mas, parecia
incrédula sobre eu deixá-la na miséria.
— Eu também te amo, Otávio — ela disse, talvez numa última
tentativa patética de me tocar.
— Você disse para Maria Eduarda tirar meu filho — apontei. —
Ela me disse que eu tentei obrigá-la a abortar, mas eu sequer sabia
que ela estava grávida. Então, é óbvio que você a manipulou.
— Otávio, claro que não fiz isso.
— Eu não vou cair nesse seu papo furaco. Saía agora da
minha casa. E quando quiser ver as crianças, ligue antes. Samuel
ficará incumbido de chamar a polícia se você forçar uma entrada.
Aliás, se eu fosse você, ficaria aguardando o contato de meu
advogado para um acordo formal sobre visitas e sobre uma singela –
veja bem, singela – pensão apenas porque não vou querer que as
crianças saibam que a mãe anda passando fome.
Naquele momento, a ficha de Analy caiu. Ela me encarou com
claro horror, antes de pegar sua bolsa no sofá e se afastar em
direção a saída.
Quando a imagem dela sumiu, outra feminina apareceu.
— Maria Eduarda teve um bebê? — Arlete perguntou.
Eu sorri.
— Sim.
Minha antiga babá desceu as escadas e me abraçou.
— É menino? Menina?
— Não sei.
— Não sabe nem o nome?
— Não. Maria Eduarda não me deixou aproximar-me muito.
Ela disse, e saiu e eu... eu fiquei travado no lugar.
— Você a encontrou onde?
— Trabalha numa padaria. O dono é marido de uma amiga
dela.
— Certo. Mande um detetive para descobrir o endereço dela.
Não pode deixá-la sozinha com um filho seu.
Assenti.
— Eu não sei se ela um dia vai me perdoar.
— Se você for sincero com ela e, acima de tudo, assumir seus
erros e pedir perdão com verdade, ela vai te perdoar. Porque ela te
ama e ama seus filhos. Aquele que ela cria, e esses que estão aqui,
tão carentes desde que ela se foi — Arlete apontou as escadas com
a face.
Ergui a face e encarei duas pequenas figuras agachadas na
parte superior da casa, ouvindo tudo quietinhas, temerosas, suas
faces não escondendo nada. Então eu deixei Arlete e subi as
escadas. Peguei Ísis no colo como sempre fazia, e puxei Igor para
um abraço. Ele ainda era reticente aos abraços, mas só tinha oito
anos e eu pretendia curar esse traço dele.
Ainda havia tempo de consertar as coisas.
Capítulo 26

Eu havia acabado de trocar as fraldas de Isabella e a colocado no


berço para dormir, quando o som de uma batida na porta me chamou
a atenção. Eu não era de receber visitas, já que meu espaço era
limitado. Meu contato com meus amigos, por exemplo, eram feitos na
padaria ou aos domingos, quando almoçava na casa deles.
Então arqueei as sobrancelhas um tanto curiosa. Caminhei até
a porta, uma parte de mim antecipando a visão que teria.
Eu sabia que Otávio viria atrás de mim. Eu só não sabia por
quê. Talvez ele pensasse que eu fosse entrar na justiça e manchasse
a imagem dos Figueiredo com uma criança fora do casamento, mas
eu não pretendia fazer isso. Desde que Analy me disse que ele
queria que eu tirasse a criança, algo em mim se partiu.
— O que você quer? — indaguei, assim que abri a porta e me
deparei com ele.
Era incrível como ainda achava que podia me manipular. Até
usou a palavra “amor” naquele nosso outro encontro. Não que eu
fosse acreditar nisso. Eu não era mais a garota tola que ele deixou
sozinha.
— Maria Eduarda, a gente precisa conversar.
— Eu não tenho nada para conversar com você.
— Ao contrário, nós temos muito a dizer um ao outro.
Ele avançou. Entrou no meu pequeno lar. Eu não fiz nenhum
escândalo, porque não queria incomodar o sono da minha filha.
— Ok. Fale — ordenei, os braços cruzados sobre os seios.
Eu não sei como minha postura parecia, mas ele se mostrou
arrasado diante de mim. Sei porque seus olhos não conseguiam
esconder o que fosse que estivesse se passando com ele. Otávio deu
dois passos em minha direção, e tocou meu rosto. Recuei.
— Eu nunca mandei você abortar. Eu nem sabia que estava
grávida.
Imaginei que ele fosse dizer isso, então minha expressão não
mudou.
— Por que sua esposa mentiria? — indaguei. — Ela sabia que
eu poderia entrar com um pedido na justiça a qualquer momento.
— Analy não é minha esposa a muito tempo — ele reforçou. —
E eu imagino que ela mentiu apenas para me destruir, porque ela
sabia que eu jamais permitiria que uma mulher tirasse um filho meu.
Esse foi o começo do fim do nosso casamento. Ela queria abortar e
eu não deixei. Talvez ela só quisesse me ferir. Talvez ela só quisesse
ver minha reação em descobrir que você abortou.
Podia ser. Talvez fosse. Uma parte de mim fraquejou naquele
instante, então suspirei profundamente tentando ser forte.
— Provavelmente. Até acredito em você — disse, e vi o sorriso
de alívio nele. Ainda assim, não amenizei. — Sua vida é uma
bagunça Otávio. Eu posso permitir que você reconheça o bebê que
tivemos, e até seja um pai presente. Mas, eu não vou voltar para
você e para toda a situação que você vive. Não posso te aceitar
sabendo que sua esposa entra na sua casa na hora que quer, que
usa seu quarto... Que transa com você.
— Analy está proibida de entrar na minha casa. Eu não posso
dizer que ela vai sumir de nossas vidas porque ela é mãe de dois de
meus filhos, mas eu prometo que não terei qualquer contato com ela,
que toda questão entre nós será tratada por advogados. Eu juro que
ela nunca mais vai voltar a pisar no Casarão. Por favor, Maria
Eduarda, eu preciso de você. Ísis precisa de você. Igor precisa de
você. Minha casa nunca mais foi a mesma desde que você se foi.
Eu não queria fraquejar. Eu queria ser forte e dizer não. Mas,
eu estava um bagaço, meu coração moído de dor a tanto tempo, que
simplesmente não consegui conter mais as lágrimas. Desviei meu
olhar dele, os braços firmes em volta de mim mesma, tentando me
dar qualquer força.
Dessa vez, quando Otávio deu um passo à frente, eu não
recuei. Ele ergueu minha face, eu sentia meus lábios molhados pelas
minhas lágrimas que caiam sem controle. Então, ele baixou o rosto e
beijou cada uma delas. Mais uma vez, meu coração acelerou diante
da lembrança do calor que ele emanava.
Eu não faço ideia se isso vai dar certo. Até porque eu só
queria odiá-lo com todo meu coração e nunca mais permitir que ele
invadisse minha alma, mas quando Otávio me beijou, eu soube que o
havia perdoado.

✽✽✽

— Oh meu Deus... Ela é a cara de Ísis quando nasceu — ele


sorriu, segurando Isabella nos braços.
Eu não sei o que sentir diante dessa visão. Sempre pensei que
se ele quisesse ver a filha, eu permitiria apenas por uma questão
legal. Mas, agora, eu mesma estava colocando Isabella nos braços
dele, transbordando de felicidade em saber que ela teria pai.
— Mas ela tem o temperamento calmo de Igor.
Ele ergueu os olhos para mim.
— Igor está mais apático e silencioso desde que você se foi.
Eu tento me aproximar dele, mas é como se ele... eu não sei... É
como se ele estivesse em depressão.
— Você procurou um médico?
— Não — admitiu. — Eu francamente não sei como fazer isso.
Não sei como reagir ao meu filho. Ele é uma criança, e seus
problemas hoje são por minha culpa. Ele devia ser feliz e brincalhão,
mas eu apaguei toda alegria nele.
Levei minha mão até a de Otávio. A apertei.
— Tudo bem, Otávio. Eu vou voltar para casa — disse. — Eu
cuido dele.
Ele suspirou de alívio. E uma parte de mim também estava tão
aliviada. Eu sentia tanta falta de Igor, eu sabia que podia ajudá-lo a
superar toda adversidade . Simplesmente porque eu o amava
demais, e ele confiava em mim.
— Você vai voltar para mim? — Otávio indagou.
— Eu não sei...
Estava sendo sincera. Eu o amava, eu o perdoava, mas ainda
não sabia se confiava nele o suficiente para ficar com ele.
— Tudo bem, Maria Eduarda. Se você voltar para casa com
nossa filha, eu já estou feliz. Eu sei que posso e vou te reconquistar.
Não sabia se ele cumpriria a promessa, mas estava disposta a
tentar descobrir.
Capítulo 27

Arlete tocou meu braço com carinho, enquanto observávamos a


cena que se desenrolava na sala. As duas crianças estavam
abraçadas a Maria Eduarda, que estava de joelhos no chão. Nos
braços dela, Isabella dormia em silêncio, parecendo confortável entre
os irmãos.
— Ela é tão lindinha, Duda — Ísis disse. — Eu posso pegar
ela?
— Claro que sim. Vamos sentar-nos no sofá? Assim eu a
coloco no seu colo.
— Posso pegar ela também? — Igor indagou.
— É claro, meu amor...
Meu coração balançou num ritmo calmo enquanto a cena
seguia. As crianças estavam tão felizes, eu não os via assim há
quase um ano. Enquanto se ajeitavam no sofá e Maria Eduarda,
cuidadosamente, colocava o bebê no colo de Ísis, a pergunta que
qualquer adulto teria vergonha de fazer, saiu naturalmente dos lábios
de Igor:
— Ela é nossa irmã?
— É sim — Maria Eduarda sequer titubeou em responder.
Eu entendi então porque as crianças confiavam tanto nela.
Maria Eduarda era sempre sincera com eles. Ela não mascarava ou
se envergonhava das situações.
— E você vai ser nossa mãe?
Eu aguardei a resposta com muita apreensão.
— Eu sempre serei uma segunda mãe para vocês.
A resposta pareceu abranger todas as questões das crianças,
mas nem de longe respondia as minhas. Arlete voltou a apertar meu
braço. A encarei.
— Tempo ao tempo — ela me aconselhou e eu assenti.
Eu tinha o resto da vida para provar a Maria Eduarda que eu a
amava.

✽✽✽

Na primeira noite que Maria Eduarda dormiu no Casarão,


depois de sua volta, eu a busquei de madrugada, ansioso por ter dela
qualquer coisa, mesmo que apenas um beijo. Mas, tão logo abri a
porta do quarto, vi a cena de Maria Eduarda dormindo na cama com
as três crianças que mais lhe importavam – e mais me importavam
também. Meu coração, mais uma vez, transbordou de amor.
Minha vontade era me juntar a eles, mas acabei retornando ao
meu próprio quarto. O ranger da casa dessa vez pareceu rir da minha
ridícula situação.
✽✽✽

Duas semanas depois, o quarto de Isabella estava pronto. Ele


era quase tão luxuoso quanto o de Igor ou de Ísis naquela idade, mas
não tinha muitas das coisas que Analy exigiu para os filhos.
Na verdade, Maria Eduarda disse que só precisávamos trazer
o berço de sua casa. A filha podia dormir no quarto que ela ocupava.
Eu neguei porque queria que Isa tivesse tudo que meus dois outros
filhos tiveram. Eu não pude dar tudo do bom e do melhor para meu
bebê até agora, mas a partir do nosso reencontro, isso aconteceria.
Entrei no quarto em tons rosa. As figuras de personagens de
desenho na parede foram escolhidas por Ísis, que estava mais que
feliz em ter uma irmãzinha. Eu temi que pudesse haver um pouco de
ciúmes nas crianças, mas isso se mostrou a coisa mais fora da
realidade que já pensei.
Igor e Ísis nunca estiveram mais felizes. O riso deles preenchia
o ambiente. Eles passavam o dia todo em volta da irmã, brincando
com ela, tentando-a ensinar a dizer a primeira palavra, e enchendo-a
de beijos. Não era surpresa que eles três costumavam tirar a soneca
da tarde juntos, deitados lado a lado junto com Bilbo, numa das
cenas mais fofas e incríveis que eu já vivenciei.
Avancei pelo quarto. Tudo estava silencioso. Igor e Ísis
estavam brincando no balanço do pomar, enquanto Maria Eduarda
estava perto deles, cuidando-os. Como eu tinha trabalho, fiquei na
casa com Isa, que antes cochilava, mas agora estava acordada, mas
não chorosa, apenas estendendo suas mãozinhas para os
brinquedos que circundavam seu berço, interessada na constelação
pendurada sobre ele.
— Você gosta de estrelas? — eu indaguei, colocando meu
dedo indicador entre as mãozinhas dela. — Papai vai te dar todas
elas — eu sorri e ela devolveu o sorriso.
— Não devia prometer o que não pode cumprir — ouvi uma
voz as minhas costas, e abri um sorriso enorme para Maria Eduarda.
— Quem disse que eu não posso?
— Dar estrelas a sua filha? — ela desdenhou.
— Ora, posso investir nessas viagens espaciais, e depois ela
se tornará astronauta.
Maria Eduarda abriu seu sorriso lindo para mim enquanto
ficava ao meu lado. Suas mãos seguraram o berço e ela encarou a
filha que tinha traços visíveis de Ísis.
— Eu notei que tirou o quadro de Analy da sala — ela
observou.
— Não fazia mais sentido aquilo. Eu não a amo mais. Eu amo
você — disse, e fui tão sincero que mal conseguia acreditar no
quanto meu coração acelerou diante daquela verdade.
Ainda assim, ela não pareceu tocada pelas palavras.
— Estava falando com Salete no telefone — me disse. — Ela
me convidou para almoçar no final de semana em sua casa. Você
quer ir comigo?
Eu sei que era uma chance. Uma em um milhão. Eu sorri
agradecido pela oportunidade.
— Você me perdoou?
— Sim.
— E vai voltar para mim?
Silêncio.
— Foi um ano muito difícil — ela me contou, lágrimas surgindo
nos seus lindos olhos.
Eu imaginava aquilo. Grávida, sem dinheiro, acreditando que o
pai da sua filha havia ordenado um aborto...
Estendi minha mão e pousei sobre a dela. Eu queria dizer
tantas coisas para ela, mas jurei que não iria pressioná-la. Não era
justo com Maria Eduarda. Ela tinha todo o direito de ter o tempo dela.
— Senhor? — Arlete apareceu na porta, seu rosto não
escondendo a surpresa.
Volvemos na sua direção. Percebi que ela tinha uma
mamadeira nas mãos, e estava vindo para alimentar Isa. Arlete era
louca pela menina.
— O que foi? Parece que viu um fantasma.
Seu sorriso aliviou a cena.
— Ah, é que as crianças estão sempre em volta de Isabella ou
da mãe — apontou Maria Eduarda. — Fiquei surpresa de vê-los
sozinhos perto do berço.
— Elas estão no pomar, brincando no balanço — Maria
Eduarda explicou.
Arlete negou.
— Não. Eu estava lá agora a pouco, e não tinha ninguém.
Era muito provável que Ísis e Igor estavam fazendo outra
coisa, mas uma sensação tão ruim tomou conta de mim, que eu não
conseguia evitar o pensamento. Encarei Maria Eduarda e vi o mesmo
pânico nela.
Então eu caminhei para fora do quarto. Rapidamente, desci as
escadas, saí pela porta da cozinha, meus olhos procurando sinal as
crianças na parte externa da casa. O vento uivou entre as
montanhas, e eu senti o ar sumindo dos meus pulmões.
— Otávio — Maria Eduarda murmurou às minhas costas.
— Foi Analy. Ela levou as crianças.
— De que jeito? — Arlete negou. — Ela nem queria os filhos.
— Ela não queria. Mas, quer me machucar. Ela vai levá-los
para a Argentina.
Eu não sei por que, nem como eu sabia, mas sabia.
— Ela não vai conseguir embarcar com as crianças. Nenhum
aeroporto permite que menores...
— Ela vai de carro — cortei Arlete. — Ela pode cruzar por
balsa em Porto Xavier sem apresentar nenhum documento.
Voltei-me para Maria Eduarda e segurei seus ombros.
— Sei que ainda não me aceitou, mas preciso que aja como
minha noiva, minha esposa. Por favor, ligue para a polícia e informe o
que aconteceu. Se preciso, ligue para Gustavo e ele vai levá-la a uma
delegacia. Eu vou pegar o carro e vou atrás de Analy. Se eu tiver
sorte, ela não está muito a minha frente.
Maria Eduarda assentiu. Eu a puxei contra mim e lhe dei um
beijo de despedida nos lábios. Depois, corri para a garagem. Eu
precisava cortar a distância que Analy já percorreu o mais rápido
possível.
Ela não iria tirar meus filhos de mim, não importava o quê.
Capítulo 28

Eu sabia claramente que o fato de Otávio ter pedido minha ajuda


indicava o quanto ele me colocava num papel de suma importância e
confiança em sua vida. Apesar do pânico que me tomava, da vontade
de chorar em desespero por conta das crianças, ainda assim eu me
mantive firme enquanto buscava minha bolsa no quarto.
— Cuide de Isabella — pedi a Arlete que assentiu.
O velho Samuel surgiu do corredor, trazendo o telefone nas
mãos. Ele me estendeu sem dizer uma palavra, e eu pensei que ele
já estava falando com a polícia. Estava pronta para ir até a delegacia,
mas se fosse mais rápido que os policiais aceitassem a queixa por
telefone, eu o faria.
— Alô — disse.
— Maria Eduarda — a voz feminina do outro lado da linha me
fez arregalar os olhos. — Estou num hotel da cidade. Por favor,
venha até mim.
Encarei Arlete com olhos arregalados, enquanto dizia o nome
mais inesperado a ela.
— Analy!

✽✽✽

Podia ser uma armadilha? Claro que sim. Eu sabia que o fato
de Analy ter me pedido que fosse sozinha encontrá-la poderia me
colocar em risco. Ela roubou os filhos, tentou me induzir a matar a
minha, o que mais ela faria?
Ainda assim eu entrei naquele quarto de hotel com a mesma
dignidade que tive quando me vi sozinha com Isabella e optei por
gerá-la e criá-la não importando as dificuldades. Eu não iria fugir nem
temer Analy. Especialmente porque eu queria e iria lutar pelas
crianças.
— Duda! — um gritinho infantil que me tocou o coração fez-me
ficar de joelhos no chão enquanto abraçava Ísis.
Igor veio logo depois. Nenhum dos dois pareceu assustado ou
vítima de maus-tratos.
— Mamãe nos levou para tomar sorvete — Igor me contou e
eu sorri, assentindo, tentando amenizar a situação com um aceno da
fronte.
Então encarei Analy. Ela me observava com o rosto
inexpressivo.
Não sabia o que sentir por ela. Já experimentei tantas
sensações com essa mulher. De começo, a invejei. Depois, tive
ciúmes. Raiva. Tristeza. Agora, nem sabia o que estava
experimentando.
— Venha, Maria Eduarda — ela me convidou para sentar-me
diante de uma mesa redonda no quarto.
As duas crianças, como era educadas para fazer, ao
perceberem que os adultos teriam uma conversa, se afastaram e
voltaram para perto da televisão. Então eu rumei para a mesa, sentei-
me e pus a bolsa no colo.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Eu ia levar as crianças para a Argentina.
— Por quê?
— Por vingança.
Neguei com a face, perplexa.
— Vingança de quê, Analy?
Ela tirou uma caixa de cigarros da bolsa. Puxou um e o levou a
boca. Acendeu tão rápido, como se dependesse da fumaça para
viver. Pela primeira vez, ela pareceu um pouco humana, longe
daquela postura sempre tão fingida, tão superficial. Agora ela tinha o
rosto apático, rastros de lágrimas vibrando no brilho de seus olhos.
— Otávio se apaixonou por mim no momento que me viu. O
achei meio... sei lá... deslumbrado demais. Foi divertido na primeira
noite, mas depois ele parecia apaixonado ao ponto de sufocar. Eu ia
dar um fora nele, quando descobri que era um conde. Nossa, achei
varonil — disse com seu sotaque em espanhol. — Macho —
completou. — Então aceitei os avanços dele, e me casei com ele
poucos meses depois. Ele me levou para o Casarão, uma casa dos
sueños, de filme.
Ela parou um pouco de falar. Tragou duas vezes, depois
apagou o cigarro num cinzeiro sujo sobre a mesa. Pareceu pensar.
— Ter um filho dele era o correto, então quando Igor nasceu,
eu estava satisfeita. Um filho hombre. Eu era a esposa perfeita e ele
tinha o filho perfeito. Mas, o tempo foi passando, Igor foi se tornando
quieto, enfadonho, e eu comecei a me sentir sufocada na casa. Então
descobri que estava grávida de novo, e me senti como se estivesse
presa. Eu não queria a criança porque ela iria atestar minha prisão.
Encarei Ísis. Eu não conseguia imaginar como ela se sentia,
porque eu amava Ísis, e amava Isabella, mesmo diante de todas as
dificuldades em tê-la.
— Quando decidi ir embora com Bernardo, eu sabia que
sempre poderia voltar caso não desse certo, porque Otávio sempre
me amaria. Contudo, você apareceu, e não importava o quanto eu
tentasse seduzi-lo, ele não me queria mais.
Não sabia o que responder a ela. Estava quase sentindo pena,
apesar de saber que ela era a maior responsável por sua própria
tragédia. Analy quis uma vida de princesa, sem as obrigações da
realeza. Isso não existia. Felicidade eterna não existia. O que existe
são momentos felizes numa família, e é nisso que você deve se
agarrar.
— O que você pretende fazer agora? — indaguei.
— Vou deixar as crianças com você e ir embora — ela
murmurou.
Senti muito alívio pelas palavras.
— O que te fez mudar de ideia em levá-las?
— Disse as crianças que íamos passear quando as peguei no
bosque. Então enquanto dirigia, Igor me contou sobre como estava
feliz com a nova irmãzinha. Encarei meu filho, e pela primeira vez na
minha vida, eu senti um amor tão grande por ele... Ele estava com os
olhos tão brilhantes e felizes, e eu pensei: Porque eu nunca lutei por
ele, para deixá-lo feliz? Eu deixei que Otávio o “educasse” sem
questionar nada, mesmo sendo a mãe. Eu o deixei a própria sorte.
Mas, você, apenas a babá, mudou tudo. Você lutou para mostrar para
Otávio que ele estava errado. E hoje meu filho é tão feliz.
Estendi minha mão pela mesa e toquei na mão dela. Analy me
encarou.
— Você não precisa desaparecer. É a mãe e sempre será.
Pode recomeçar. Pode dar amor a eles. Otávio é justo e você terá
seu tempo com as crianças sempre que quiser. Eu te prometo que
elas nunca saberão o que aconteceu, nem que as rejeitou.
Ela fungou, segurando as lágrimas.
— Eu não sei como começar — admitiu.
— Você fez faculdade de moda, não é? Comece buscando um
emprego. Depois, arrume um lugar seu. Não precisa ser aqui nessa
cidade, pode ser num lugar onde você se sinta bem. Quando estiver
estabelecida, as crianças podem ir te visitar. Ou você pode vir visitá-
las. Você pode encontrar o amor e ser feliz. Talvez até ter mais filhos.
Não é porque errou uma vez que está fadada ao inferno para sempre.
Se há arrependimento, há esperança.
Analy pareceu absorver as palavras. Então se levantou e foi
em direção aos filhos.
— Ísis — chamou. — Igor — se curvou e estendeu os braços.
— Venham dar um abraço de despedida na mamãe. — As crianças
obedeceram imediatamente. Então ela os beijou no rosto,
demorando-se um pouco mais em Ísis. — Vou ficar um tempo fora,
mas prometo que voltarei para vê-los. A outra mamãe vai cuidar bem
de vocês. Por favor, nunca deixem de acreditar que os amo. Porque
eu amo — admitiu, e eu sei que foi difícil para ela. — Cuidem da irmã
de vocês, ok? Especialmente você, Igor. É o mais velho, responsável
pelas suas irmãs.
Depois disso, ela se levantou, pegou a própria bolsa. Sem me
encarar, saiu pela porta. Eu não sabia quando a veria de novo, mas
entendia por que Analy precisava ir.
Esperava que ela encontrasse a felicidade que tanto
procurava.
Final

Estacionei na frente da casa, o som dos freios invadindo minha


mente, meu pensamento focado em sair logo do carro e ir até meus
filhos.
Há cerca de uma hora, Arlete me ligou dizendo que as
crianças estavam com Maria Eduarda, que Analy as entregou
espontaneamente, e que todos estavam bem. Eu não sei exatamente
qual foi o tipo de milagre que aconteceu, mas não estava disposto a
questionar o favor divino. Marchei em direção as escadas e entrei
pela porta da frente do Casarão, meus olhos focados nas duas
pequenas criaturas que – em algum momento nas últimas horas – eu
pensei que não veria mais.
Eu andei reto até eles. Sem dizer uma palavra, me ajoelhei
diante dos meus filhos e os puxei para braços. Eu mal conseguia
acreditar que eles estavam ali, bem, sem nenhum arranhão. A mãe
maluca deles ao menos não lhes fez nenhum mal.
— Eu vou denunciar Analy — disse, para a mulher na minha
frente.
Maria Eduarda estava em pé, embalando Isa nos braços. Ela
me olhou como se me compreendesse, mas negou com a face.
— As crianças estão bem. A mãe só quis levá-los para um
sorvete — ela disse, uma entonação que me indicava que não devia
questionar ou negar na frente das crianças.
Eu assenti, porque eu sabia que precisava.
— Vocês gostaram do sorvete? — perguntei, tentando
remediar o problema.
— Eu comi de cereja — Igor me contou, tão animado, um
sorriso tão bonito no rosto.
— É mesmo? Sabia que é meu sabor favorito? Você é
igualzinho a mim — disse, e percebi que ele ficou orgulhoso pela
frase. — Eu te amo, filho — segurei o rosto dele, meu coração
acelerado. Eu não costumava falar de sentimentos, mas sabia que de
alguma maneira tudo estava mudando. — E você, Ísis? — Olhei para
a outra criança. — Conte para o papai qual sabor você tomou.
— Azul! — ela exclamou, esquecendo-se de que azul não era
sabor.
Mesmo assim, assenti.
— Combina com você, princesinha. Agora, vão escovar os
dentes. Não esqueçam que açúcar dá cárie — ordenei, e só quando
eles correram escada acima em direção aos banheiros de seus
quartos, foi que encarei Maria Eduarda. — O que diabos aconteceu?
— Está certo. Ela iria levar as crianças para a Argentina.
— Eu vou matá-la — disse, baixo.
— Ela se arrependeu, Otávio. Ela teve tempo de pensar.
Agora, vai tentar melhorar como pessoa, vai ter um tempo para ela,
depois ela voltará para ver os filhos.
— Tempo para ela — ri. Era sempre a desculpa perfeita de
Analy. — Ela nunca mais vai colocar os olhos nos meus filhos —
ameacei.
Maria Eduarda negou.
— Você não tem esse direito. Ela é a mãe.
Pensava que Maria Eduarda ficaria ao meu lado. Mas,
claramente ela sabia coisas que eu desconhecia.
— Estou com raiva — disse, depois de tudo.
— Está tudo bem, Otávio. Ela pode ter feito tudo de ruim, mas
se arrependeu. Ela está perdida, precisa se encontrar. Eu espero de
coração que ela encontre o amor, e tenha paz. Assim, ela poderá
transmitir isso aos filhos. Na confusão que está a vida dela agora,
não sairia nada de bom.
— Você é tão compreensiva...
— Otávio... Eu amo demais essas crianças. Eu vou me doar
completamente a eles, serei a melhor mãe que puder. Mas, isso não
significa que Analy será anulada na vida deles. Por mim, há espaço
para as duas. Contanto que isso torne Igor e Ísis adultos confiantes,
felizes... O que importa se tivermos problemas antes? As crianças
não têm nada a ver com nossas questões.
Ela estava certa. Eu sabia disso.
— Como você pode perdoar? Ela fez tantas coisas horríveis...
ela é tão má e mesquinha...
— Essa é a questão. Eu posso alimentar a mágoa com as
lembranças e só ter raiva e ódio dela. Posso ficar desejando seu mal
e torcendo para que tudo dê errado na vida dela. Ou eu posso seguir
em frente, e torcer para que ela também siga. Eu não vou começar
uma nova vida ao seu lado nutrindo dia a dia mais e mais rancor.
Dou um passo a frente. Meus braços se erguem e eu toco
Maria Eduarda. Depois, me curvo e beijo o topo da cabeça de Isa.
— Você vai seguir em frente ao meu lado?
Maria Eduarda sorriu. O céu pareceu se abrir naquele instante.
Enfim, as nuvens pesadas e escuras se foram.
— Eu vou seguir em frente ao seu lado — ela confirmou. — O
que mais eu posso fazer da vida já que amo você?
Era a questão que definia tudo.
Epílogo

Dois anos depois

A casa rangeu às minhas costas, como sempre fazia em dias


nublados como esse, como se conversasse conosco em seu tom
agudo, como se tivesse algo a dizer sobre os dias que já se
passaram, ou aqueles que virão.
Estou em uma cadeira de balanço na varanda. Ao meu lado,
Arlete também se balança com suas gordas pernas cheias de veias.
No verão passado, ela foi consultar um médico que lhe disse que
precisaria operar as varizes, mas até então ela não decidiu o dia de
sua operação. Ela era teimosa em demonstrar fraqueza, mas tanto eu
quanto Otávio insistíamos que ela fizesse logo a cirurgia.
Destacamos que não era porque queríamos que ela voltasse ao
trabalho – Deus sabia que já estava na idade de se aposentar – mas
porque víamos como sofria de dores em dias quentes.
— Analy ligou? — ela me perguntou.
— Ontem. Falou com os filhos. Eles ficaram felizes — contei.
— Faz tempo que ela não aparece.
Estendi minha mão para o lado. Peguei o suco de laranja e
tomei um gole. Ísis e Igor estavam na escola, e Isa brincava no chão
com uma boneca. A vida estava muito calma e sossegada.
— Analy vai se mudar para a França. Parece que conseguiu
um emprego lá.
— Você falou com ela?
— Não. Mas, ela disse isso a Igor — contei.
— E o que as crianças disseram?
— Nada. Não parecem se incomodar. Acho que... — tentei
encontrar as melhores palavras — por mais que a mãe os queira
bem, o fato de ela ter se afastado, acabou os afastando também.
— Amor é algo que se constrói — Arlete disse e eu concordei.
Era uma frase enigmática e eu quase parei para pensar sobre
ela, mas o som de passos no interior da casa me fez volver e
levantar.
— Por favor, fique um pouquinho com Isa. Vou verificar se
Otávio precisa de algo.
Arlete concordou e eu me afastei. Como meu marido
trabalhava em casa, eu costumava ir até ele sempre que se dava
uma pausa nas suas ocupações. Otávio era incrivelmente ocupado
porque basicamente gerenciava sozinho todas as empresas da
família.
“Mas um dia essa tarefa será divida em três”, ele me disse, me
fazendo rir do trabalho que ele já estava dando a nossos filhos, que
ainda eram crianças.
— Está com fome? — indaguei, entrando na cozinha e o
encontrando abrindo um pote de bolachas.
— Um pouco. Onde estava?
— Na varanda, com Arlete. O dia está agradável, nublado,
fresco. Devia vir também.
Ele sorriu.
— Vou só terminar algumas planilhas e irei até as duas. As
crianças chegam às seis da escola, não?
Movi afirmativamente a cabeça.
— Então vamos fazer cachorro-quente de jantar?
Eu não escondi a surpresa. Otávio parecia feliz demais me
contando esses planos.
— Igor me disse ontem que quer ser como eu — ele explicou,
e percebi o tom de orgulho em sua voz. — Depois ele disse que quer
comer cachorro-quente, eu não sei bem se ele estava me
manipulando, mas o fato é que conseguiu.
Eu ri enquanto me aproximava dele. Puxei sua face para um
beijo. Era tão bom estar assim com Otávio. Era tão calmo e tranquila
a vida que tínhamos.
— Eu te amo — disse a ele.
— Eu também te amo — Otávio respondeu.
A casa rangeu de novo. Lá fora, Arlete exclamava algo sobre
Isa ser muito travessa. Nós sorrimos um para o outro e nos
afastamos. Otávio em direção ao escritório, e eu à saída, onde
encontrei o fruto do nosso amor sorrindo em minha direção enquanto
corria pela varanda com a velha Arlete atrás dela.
A felicidade era tão simples e tão perfeita ao mesmo tempo.
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