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Índice

Sinopse:
Prólogo
UM
DOIS
TRÊS
QUATRO
CINCO
SEIS
SETE
OITO
NOVE
DEZ
ONZE
DOZE
TREZE
CATORZE
QUINZE
DEZESSEIS
DEZESSETE
DEZOITO
DEZENOVE
VINTE
VINTE E UM
VINTE E DOIS
VINTE E TRÊS
VINTE E QUATRO
VINTE E CINCO
VINTE E SEIS
VINTE E SETE
VINTE E OITO
VINTE E NOVE
TRINTA
EPÍLOGO
Em Agosto, na Amazon...
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autorização escrita da autora.

Esta é uma obra de ficção. Os fatos aqui narrados são


produto da imaginação. Qualquer semelhança com nomes,
pessoas, fatos ou situações da vida real deve ser considerado
mera coincidência.

Título: A filha que rejeitei


Romance
ISBN – 9798396356009
Texto Copyright © 2023 por Josiane Biancon da Veiga
Sinopse:
Liliana tinha dezoito anos, estava grávida e sozinha...

E nem assim ela conseguia odiar o pai de sua bebê.

Meses antes, Liliana conheceu o poderoso CEO da Colombo


quando ele a salvou nas ruas de uma pequena cidade do interior. A
ligação foi imediata, e eles passaram a noite juntos. Quando tudo
terminou, ela foi dispensada como uma prostituta, e poderia mastigar
sua raiva e mágoa pelo resto da vida, não fosse o fato de descobrir,
tempos depois, que havia engravidado de Lorenzo.

Quando o procurou, descobriu que ele não estava interessado em


sua bebê.

Então decidiu, heroicamente, seguir a vida, e lutar pela criança.

O que ela não esperava é que, tempos depois, Lorenzo batesse a


sua porta, buscando-a. E dizendo-lhe que jamais soube que ela
havia engravidado.
Prólogo

Ao longe eu posso ouvir o som seco e ritmado do relógio de parede.


Desde que eu me lembre, ele está ali, cumprindo pontualmente suas
obrigações nessa casa. É velho, fadigado, às vezes até arrasta seus
ponteiros como se o tempo o fizesse sofrer, mas, ainda assim,
cumpre com o seu propósito.
Eu acho que o relógio é a única coisa com propósito nesse
lugar perdido.
— Por sua causa, eu não tive vida — minha mãe reclamou, as
mesmas palavras que eu ouvia desde minha infância.
Não sei se alguma vez ela me disse outra coisa, além de
despejar sobre mim sua amargura e raiva. Eu não a encaro,
enquanto ela zanza de um lado para o outro, suas mãos contorcidas,
buscando encontrar as palavras – não certas –, depois me encarava
com legítima raiva.
— Você acha que é fácil para mim? — ela indagou.
Não é fácil para mim também.
Minha mãe foi, como diziam algumas vizinhas, sempre a porra
de uma louca. Gostava das madrugadas, de beber, sair com os
amigos, sumia por semanas e me deixava atirada em qualquer canto
que conseguisse. Sempre usava um discurso meio ensaiado sobre
liberdade sexual e feminina, enquanto tentava me convencer que ela
não tinha obrigação de ficar enfurnada em casa para cuidar da filha
que fez com um cara que nem lembrava o nome.
— Não! Não é fácil para mim! — ela mesma respondeu,
enquanto continuava a andar. — Mas, você vai fazer isso! Vai fazer!
Uma única vez na vida, fará algo para deixar sua mãe feliz.
Era quase engraçado que ela realmente acreditava que eu
tinha essa responsabilidade. Eu suspiro, enquanto penso no
montante de fetos que ela expulsou de si durante todos esses anos,
em abortos feitos de qualquer jeito, na cozinha da nossa pequena
casa. Como ela conseguia fazer isso e não sofrer consequências
físicas era um mistério.
Ela nunca respeitou nenhuma daquelas pessoinhas, da mesma
forma que nunca me respeitou. Mas, não sei por que, eu não tive o
mesmo destino dos meus irmãos, sangrando até parar de me mover
em bacias de plástico.
Outro suspiro.
Morávamos no interior. Nosso vizinho mais próximo ficava
quase um quilômetro afastado. Ninguém ouvia seus gemidos
enquanto enfiava agulhas de crochê dentro da vagina e cutucava até
matar a criança. Era fria como uma geladeira, e praticava aquilo
tantas e tantas vezes que eu até perdi a conta.
Havia dias que eu implorava a Deus que a matasse. Mas, o
diabo é o senhor do mundo, e minha mãe parecia cada vez mais
forte enquanto aprendia melhores técnicas de se livrar dos filhos.
Desvio meus olhos dela e observo a janela de madeira perto da
pia. Adiante, no quintal, eu enterrava os pequenos, às vezes apenas
manchas de carne, às vezes pessoinhas quase perfeitas, com mãos
e pés, olhinhos, nariz...
— Você entende? — Minha mãe perguntou.
Ela era um monstro. Não havia como tentar argumentar com
ela.
Ela era um monstro. Eu só perderia tempo tentando dissuadi-la.
Eu tenho dezessete anos. Farei dezoito em duas semanas. Eu
podia fugir. Eu devia fugir.
— Por que está fazendo isso comigo, mãe? — ainda
argumentei.
Nem sei por quê. Talvez minha patética figura ainda nutria
alguma esperança.
Minha mãe travou diante de mim, seu olhar transbordava
indignação e ódio.
— Vai ser só uma vez. Meu homem quer.
Ela estava com meu novo padrasto fazia seis meses. Por
algum motivo, ela o adorava, mesmo ele sendo nojento e bêbado, e
me encarasse lascivamente sempre que vinha até nossa casa. No
começo, eu pensei que isso duraria pouco, como com todos os
homens que ela já teve, mas os dias foram passando e ele
continuava a vir.
Duas semanas, e eu teria dezoito anos. E poderia fugir. Eu só
precisava aguentar duas semanas.
— Você vai fazer — ela disse, dessa vez não mais um pedido,
e sim uma ordem.
— Não. Ele não vai me estuprar.
— Não é estupro. Ele vai só tirar sua virgindade. Ele nunca
comeu uma virgem. E ele me pediu você como prova de amor. E
você vai ser útil para mim ao menos uma vez nessa vida, pois mora
na minha casa e come da minha comida há dezessete anos. Você
tem obrigação comigo! — Ela respirou fundo, duas vezes, antes de
comunicar: — tome um banho, lave bem a xana, porque ele vai te
comer hoje à noite, quando vier.
Enquanto o choque do tempo curto tomava conta de mim, eu
raciocinei que não tinha mais duas semanas. Eu precisava fugir
imediatamente.

✽✽✽

Por sorte, minha mãe sempre ia até a rodoviária da cidade


esperar pelo “seu homem”. Era o tempo que eu precisava para
arrumar poucas roupas em uma sacola e escapar enquanto tirava o
ferrolho da porta. Ela sempre me deixava trancada e não fazia ideia
de que eu sabia me libertar. Foi uma das muitas coisas que aprendi
durante os anos presa em casa.
Eu frequentei a escola somente até a quarta série. Depois
disso, minha mãe me arrancou de lá porque precisava de mim em
casa para lavar, limpar, passar e fazer comida. Quando o Conselho
Tutelar veio até minha casa, ela disse que eu andava saindo com um
cara e que não queria mais estudar. Eu tinha dez anos e ninguém
questionou nada além. Foram embora e nunca mais voltaram.
Quando eu tinha doze, uma das velas da casa caiu em cima de
um pano de prato, e pegou fogo. Foi assim que eu aprendi a tirar o
ferrolho, não porque houve risco real de incêndio, já que eu vi a
queda da vela e interceptei o fogo de queimar o pano, mas porque o
pano de prato ficou chamuscado e eu temia que minha mãe visse e
me batesse por causa dele. Então eu lutei uma madrugada inteira
para tirar o ferrolho e ir até o quintal enterrar o pano no mesmo lugar
que estavam os bebês mortos.
Esse aprendizado estava valendo minha vida.
Agora, perto das dezoito horas, eu consegui escapar da casa.
Então, rumei até um mato perto e me escondi entre as árvores,
torcendo para que escurecesse logo e eu pudesse fugir pela estrada
sem ser vista. Sabia que quando minha mãe chegasse em casa, ela
ficaria louca por eu ter escapado. E o homem dela não desistiria até
arrancar minha virgindade de mim.
Foi assim que eu percebi que provavelmente eles me
encontrariam mais cedo ou mais tarde. Mas, ainda tinha a chance de
escolher para quem eu entregaria a minha primeira vez, antes que
ele me violentasse.
Eu não sabia para quem, óbvio, mas tinha algumas horas, com
sorte alguns dias, para conhecer alguém bom e estragar o plano
deles. Quem sabe, se ficasse usada, estragasse o desejo do homem
de minha mãe.
Escorei-me em uma árvore, e respirei fundo. É claro que eu
estava surtando, com medo e temendo o tanto de traumas que
aquele homem iria me dar quando ficasse em cima de mim. Eu já era
toda quebrada, mais essa desgraça terminaria por arruinar a minha
cabeça.
Ao longe, um grilo estridula. O silêncio da noite caí sobre mim
como orvalho solitário.
Eu tinha tanto medo da vida.
Mas, eu tinha mais medo ainda de minha mãe.
UM

O local estava cheio, quase uma infinidade de gente zanzando de


um lado para o outro, sorrisos falsos e conversas sem propósito. Eu
suspiro um pouco irritado, mas entendo os motivos de Nívea ter me
trazido aqui nessa noite.
Foi uma longa viagem até aqui. Um voo cansativo até Porto
Alegre, e duas horas de carro até essa pequena cidade. O festival
anual da agroindústria era um bom local para contatos, para rever
parceiros comerciais e fazer novos acordos. E, apesar de saber que
eu poderia ter enviado funcionários para essa incumbência, acabei
por vir pessoalmente falar sobre nossa nova colheitadeira,
completamente tecnológica, que vai cortar pela metade o tempo e os
custos de uma colheita.

A colheitadeira Plus 3000 era meu novo bebê. Sou engenheiro


por vocação e formação, e dono da Colombo Máquinas e
Implementos Agrícolas por herança. Meu pai fundou a empresa que
empregava mais de três mil funcionários e vários parentes. Nívea, ao
meu lado, era minha prima de segundo grau e a pessoa mais
próxima que eu tinha.

Eu não sei como aconteceu. Simplesmente, meus pais


morreram com um ano de diferença e eu fiquei num estado
depressivo e solitário por um tempo, até ela decidir tomar conta de
tudo, especialmente de mim.

— Você quer beber alguma coisa? — ela perguntou, segurando


minhas mãos, parando perto de um quiosque.

Encarei minha prima, um pouco incomodado com aquele toque.


Ela era linda, e era apaixonada por mim, sabia. Mas, eu
definitivamente não sentia nada além de amizade por ela. Não que
eu fosse um celibatário, mas não tinha clima nenhum rolando da
minha parte. E toda vez que ela avançava, mesmo que pouco,
mesmo que lentamente, eu me sentia sufocado.

— Não. Está com sede?

— Preciso de água — ela me contou, e eu acenei.

— Entre, beba algo. Vou ficar por aqui — disse, mas em


seguida mudei de ideia. — Está vendo aquela empresa ali — apontei
um estande de peças agrícolas. — Vou dar uma olhada. Você pode
me encontrar depois — sugeri.

Ela acenou, e nos afastamos. Foi quase um alívio respirar


longe de Nívea. No pavilhão onde estava nosso estande com nossas
peças e máquinas, vivia fugindo dela, mas minha prima sempre dava
um jeito de ficar por perto. Uma parte de mim me dizia que talvez eu
devesse colocá-la para gerenciar alguma das filiais em outra cidade,
mudá-la de setor, ou qualquer coisa que a mantivesse longe de mim,
todavia, quando eu pensava isso me sentia muito culpado.

Nívea era família. Família é tudo. Além disso, minha prima era
uma mulher incrível. Doce, responsável, trabalhadora... Por que eu
não a amava? Tudo seria mais fácil se...

Subitamente, eu vejo uma jovem andando na direção contrária.


Ela está malvestida, roupas velhas e gastas, chinelos de dedos, o
cabelo desgrenhado e o rosto assustado. Na cola dela, tem três
garotos de dezessete ou dezoito anos, provocando-a num bullying
assustadoramente violento. Ao redor, as pessoas apenas olhavam e
depois desviavam o olhar, como se aquela não fosse a visão que
alguém desejasse ter numa noite festiva.

Claro, não era. Mas, nosso dever como sociedade era não
permitir que situações assim ocorressem. Aprendi isso com meu pai,
que era um homem muito bom. Então comecei a rumar na direção da
menina apavorada e dos garotos abusivos.

— Ei! O que está acontecendo? — disse, de um jeito firme e


duro.

Pus a mão no ombro da menina, que se encolheu. Seus olhos


castanhos delicados me encaram como se implorasse por algo, e
meu coração erra uma batida, enquanto sou absorvido por algum
tipo de aura.

É como se eu a conhecesse a vida toda, mesmo nunca a tendo


visto antes. Então eu a puxo levemente para mim, e me coloco entre
os rapazes e ela:

— Algum problema? — indago, e eles trocam olhares.

São moleques bêbados, mas não tão idiotas de tentar intimidar


um homem do meu tamanho. Então eles simplesmente se afastam,
enquanto eu volvo para a garota.

— Você está bem? — Ela deve ter uns dezesseis anos. Talvez
um pouco mais. — Quer que eu ligue para os seus pais?

Ela negou, apavorada. Eu vi o tamanho do horror em seus


olhos e não pude resistir em lhe tocar os braços num conforto mudo.

— Você está com fome? — indago, porque posso ver a


magreza.

— Sim, senhor — ela admite, sem pestanejar.

Deve estar sem comer há dias, porque não há nenhum traço de


orgulho nela, algo que possa fazê-la recusar o que estou oferecendo.

— Eu sou Lorenzo Colombo — me apresento, tentando


destacar meu nome para que ela se sinta segura de com quem está,
mas a garota não faz menção de ter reconhecido a alcunha. Parece
que ela está por fora das notícias e fofocas, já que eu estou sempre
nos sites de entretenimento, manchetes como “herdeiro é visto com
atriz X ou Y” faz parte da minha vida. — Venha, vou te pagar alguma
comida.

✽✽✽

Ela estava suja e malvestida, então eu não podia colocá-la


dentro de um restaurante, não apenas por conta das demais
pessoas, mas especialmente por ela que se sentiria muito deslocada.
Assim, comprei um lanche de rua, e me sentei ao seu lado na
calçada, três quarteirões abaixo de onde a havia conhecido.

— Como se chama?

Ela pareceu pensar no que responder, mas também pareceu


sincera ao expor:
— Liliana.

— Você está longe de casa? Quer ajuda para voltar?

Ela recusou, seu rosto trazendo um horror que não podia ser
escondido.

— Quantos anos você têm?

— Dezoito — ela disse, mas eu não tinha certeza.

— Não parece ter dezoito.

— Vou fazer semana que vem — admitiu. Outra mordida no


cachorro-quente, a maionese sujou seu queixo e eu sorri. — Semana
que vem ninguém mais poderá fazer mal para mim.

Sua frase ecoou na minha alma. Eu queria estender minhas


mãos para ela, dizer-lhe que ficaria bem, e que eu a protegeria de
todo mal, mas só o pensamento por si só era ridículo. Eu nem a
conhecia, e devia me afastar agora que havia expulsado os garotos e
lhe pagado algo para comer, mas sua dor me alçou de algum jeito.
Parecia cravada em seu olhar, seu rosto. Ela era uma menina, mas
parecia tão vivida, com tantas experiências horríveis...

Ergui a mão, num gesto automático. Fiz um carinho gentil e


inocente no seu queixo, tirando a maionese de lá. Ela me encarou
com surpresa.

— Você tem onde ficar?

Liliana negou.

Eu pensei um pouco. Não era problema meu, e a ajudei como


um homem devia ajudar. Fiz mais que qualquer outra pessoa aqui.
Assim, devia pegar alguns trocados, dar para ela e voltar para minha
vida, esquecendo que um dia eu a encontrei.
Apesar disso, quando me coloquei em pé, estendi a mão para
ela.

— Vem comigo — disse.

— Você é um homem bom, não é? — ela indagou, como se


quisesse ter certeza.

Uma certeza que eu mesmo não tinha.

— Não sou ruim — sorri, meio sem jeito. — Vem — disse, pela
segunda vez. — Vou comprar umas roupas novas para você, e te
levarei para tomar um banho e dormir num lugar seguro.

Ela pareceu temerosa por alguns segundos. Eu podia ver como


calculava seus passos, se devia ou não vir comigo. Por fim, Liliana
me estendeu a mão. Acho que, no fundo, ela não tinha nada a
perder.
DOIS

Ele tinha poderosos olhos azuis. Era alto, quase como um armário.
Seus músculos me deram certeza de que ele poderia me proteger
naquela noite terrível.
Faz uma semana que eu fugi de casa. Caminhei, me
esgueirando pela estrada, com medo de ser pega por algum
malfeitor ou ser recapturada pela minha mãe. Bebi água de um rio e
comi restos de uma lanchonete de estrada. Foram dias
aterrorizantes, onde meus pés formaram bolhas e meu corpo parecia
implorar por descanso.
No dia anterior, eu encontrei um pacote velho de bolachas
atirado na beira da estrada. Alguém comeu a metade e não gostou.
Mas, para mim, pareceu um manjar dos deuses. Ainda assim, eram
apenas pequenas e poucas bolachinhas, que mal conseguiram
aliviar minha fome. Depois delas, veio a sede. Terrível. Eu havia
trazido comigo uma garrafinha de água, mas ela pouco fez pela
minha necessidade.
Então, hoje, eu cheguei nessa cidade do interior. Havia muito
movimento nas ruas, e eu pensei que ficaria em segurança por estar
num local público e com várias mulheres ao redor. Mas, ninguém
parecia me ver ou prestar atenção em mim. Quando fui interceptada
por três garotos bêbados, as pessoas olhavam-me com puro
desdém, e não importava para onde eu corresse, não estava em
segurança.
O mundo é um lugar complicado. Não havia lugar seguro.
Até ele aparecer...
Lorenzo. Eu gostei do nome dele. Da personalidade. Da forma
como ele pareceu doce em me proteger, me alimentar. Pela primeira
vez na vida, recebi um mísero de bondade e nem sabia como
agradecê-lo.
— Acho que essas roupas vão servir — ele disse, enquanto
pegava duas calças jeans e duas blusas em uma lojinha aberta na
esquina da rua principal. — Você vai precisar de um casaco também.
Ele não olhou o preço, ou se importou. Parecia um homem com
muito dinheiro, porque simplesmente pegou as roupas, uma bolsa de
viagem para guardá-las e foi ao caixa pagar. Depois, ele segurou
meu braço e me guiou para um hotel chique, já fora da área do
evento.
— Você vai tomar um banho — ele disse. — Depois vai jantar
comida de verdade.
Eu me comovi com as palavras, não apenas por elas, mas pelo
tom que ele usou: afetuoso, delicado e protetor. Então, fui com ele,
até porque, francamente, o que eu tinha a perder? Seja o que for que
esse homem planeje ou o que quer que ele pense em fazer comigo,
nada poderia ser pior do que as outras pessoas já fizeram.
Nós entramos em um quarto bonito, um ambiente tão
requintado quanto o que eu via na televisão, nas novelas da noite,
tão limpo e cheio de adornos, tão perfeito que quase machuca os
olhos.
— Aqui tem um banheiro — ele me guiou até um local anexo ao
enorme quarto. — Tem shampoo, condicionador, sabonete, toalhas...
Enfim, tem tudo.
Eu sabia que estava fedendo, mas ele não parecia estar me
julgando. A forma como ele mostrou o banheiro era mais como se
estivesse me estendendo a mão, me dando um espaço para que eu
pudesse me limpar e me tornar humana de novo, porque eu não
acreditava mais que era gente.
— Obrigada, Senhor Lorenzo.
Ele sorriu. Seus dentes tão brancos e seu olhar tão gentil.
Nesse momento, eu me perguntei a idade dele. Com certeza era
mais velho que minha mãe. Devia estar beirando os quarenta, talvez
até um pouco mais. Era um homem vivido, tinha um olhar experiente.
Repentinamente, eu me lembrei dos meus próprios
pensamentos dias antes. Eu queria encontrar um homem bom, que
pudesse arrancar de mim minha virgindade e me livrar da dor de ser
violada na minha primeira vez.
E então soube que estava exatamente diante do escolhido.
TRÊS

Enquanto abria a porta para o pessoal do hotel entrar com duas


bandejas com pratos perfumados com o nosso jantar, eu percebi que
não comprei nenhum pijama para a menina que salvei nessa noite
triste.
— Muito obrigado — eu disse ao homem do hotel, estendendo
a ele uma gorjeta, e então fechando a porta, perguntando-me o que
daria para Liliana vestir que também pudesse lhe servir de camisola.
Fui até meu próprio armário. Eu não havia trazido muitas
roupas comigo nessa viagem, mas eu tinha algumas camisas
grandes que ficariam enormes nela. Peguei uma delas, e a pus sobre
a cama. Só então reparei que o quarto tinha uma enorme cama de
casal, e eu teria que realocar Liliana em outro lugar, ou ceder o
espaço para ela e dormir no sofá.

Era o que um homem de verdade faria.

Subitamente, a porta do banheiro se abre. Eu a vejo, linda


como uma deusa absorvida pela névoa da manhã, surgindo entre a
fumaça do banho quente. Ela estava enrolada numa toalha, os
cabelos molhados e os olhos arregalados.

— Eu arrumei uma camisa — disse, apontando a cama. —


Você pode vesti-la para dormir. Por favor, depois de se vestir, venha
jantar — girei o dedo apontando a mesa perto da janela, onde dois
pratos e dois copos com sucos de laranja nos esperava.

Eu vi seus olhos. Eu vi a fome. Nunca a senti, mas sabia como


funcionava e me condói. Minha mãe costumava fazer trabalho
voluntário em abrigos de sem-teto. O mundo era um lugar injusto.

Meu telefone tocou no exato momento que Liliana pegou a


camisa. Ela voltou para o banheiro, enquanto eu ia verificar o visor.
Era Nívea, provavelmente querendo saber por que sumi.

Eu não o atendi. Não queria ouvir a voz dela. Odiava atender


seus telefonemas, porque ela nunca sabia ser breve. Então
simplesmente lhe mandei uma mensagem assim que o telefone
parou de chamar.

“Voltei ao hotel. Pode aproveitar a noite. Não vou voltar ao


evento”.

Tentei ser sucinto e claro. Aparentemente, não consegui.

“Estou indo até você”, ela respondeu.


“Não. Estou indo dormir. Não venha”.

Era desagradável ser assim com uma mulher, especialmente


uma parente que, claramente, gostava muito de você. O problema é
que a atenção de Nívea me sufocava. Ela nunca sabia parar. Nunca
parecia entender que eu não estava disposto.

Seu retorno foi um simples “Ok” magoado. O que não me


importou muito porque eu estava aliviado por Nívea me deixar em
paz. Quando a porta do banheiro voltou a abrir, eu já largava o
telefone devidamente desligado em cima da mesa.

Só então encarei Liliana. Simplesmente linda, sua juventude


adornada por seus longos cabelos castanhos e seus olhos de mel.
Ela tinha a pele pálida, e o olhar tão terno. Eu precisei de coragem
para não me guiar até ela e segurá-la em meus braços.

Nem sei o que estava pensando. Ela era uma menina, e eu um


homem maduro. Uma parte de mim estava com vergonha por esses
pensamentos, mas outra apenas justificava que eu nunca havia visto
algo tão belo assim. Claro, já tive muitas mulheres bonitas, mas
naturalmente belas como Liliana parecia algo fora do comum.

Eu me sentei à mesa, e ela me seguiu. Suas mãos estavam


baixas, sua tez delicada pareceu ainda mais pálida enquanto ela
apertava os lábios, como se simplesmente não soubesse o que fazer
diante dos pratos. Eu levei um tempo para perceber que Liliana
estava confusa com os talheres, então apontei um garfo e uma faca,
e comecei a mostrar como se fazia.

— Se quiser, pode simplesmente pegar a comida com as mãos.


Ninguém vai julgá-la. Não há ninguém aqui além de nós dois.

Era como se não houvesse mais ninguém no mundo.

— Eu preciso lhe dizer uma coisa, Sr. Lorenzo. E peço que não
me julgue. Não me condene. Não me entenda mal.
Arqueei minhas sobrancelhas curioso com as palavras.

— Pode dizer.

— Eu fugi de casa — ela contou. — Não posso voltar.

Claro que já imaginava aquilo. E pensei que devia convencê-la


a retornar, pois provavelmente havia um pai em desespero
preocupado com ela.

— Por que não pode? É por causa de um namoradinho?

O olhar dela pareceu em confusão por algum momento, mas


então ela foi esclarecedora.

Terrivelmente esclarecedora.

— Meu padrasto quer minha virgindade. Ele exigiu isso de


minha mãe como prova de amor, e ela quer me forçar a deitar com
aquele homem. Eu sei que será horrível, a pior coisa do mundo.
Então, não tive escolha, precisei fugir. E estarei fugindo até quando
puder. Mas, entenda, isso não vai acabar enquanto ele não
conseguir o que quer.

Eu fiquei em choque. Simplesmente não sabia o que dizer, só


queria matar o homem que fez tanto mal a essa menina.

— Liliana... A polícia...

— Irão chamar o Conselho Tutelar que vai me ignorar, como


sempre fizeram. Eu não estudei, senhor Lorenzo. Sempre fui uma
empregada em casa. O senhor acha que os conselheiros não
sabem? Acha que sou a primeira que é ignorada pelo sistema? O
sistema nunca fez nada por mim. Eu preciso fazer por mim. Por isso,
preciso de sua ajuda.

Eu assenti. Eu a ajudaria no que fosse preciso. Não tinha


dúvidas disso. Eu tinha dinheiro e tinha poder. Eu poderia...
— Por favor, tire o peso de minha virgindade. Tire esse fardo da
minha vida. Eu sei que vai acontecer um dia, algum homem maldito
vai me pegar. Escapei do meu padrasto e dos garotos essa noite,
mas vai acontecer uma hora, mais cedo ou mais tarde. E eu não vou
suportar que arranquem minha pureza de mim num estupro. Eu
quero escolher o homem com quem vou me deitar. Ao menos, uma
vez. Uma única escolha. Então, por favor, o senhor é um homem
bom e mostrou todo seu carinho e cuidado comigo nessa noite. Peço
que seja o homem que tire minha virgindade, para que eu não tenha
uma primeira vez traumática.

Eu iria dizer que não podia fazer isso. Que era cruel e
desumano que uma menina tão doce fosse arrastada a um mundo
devasso dessa forma, mas então Liliana se colocou em pé e veio até
mim.

Minha mente gritava que a afastasse. Minha honra me dizia


que eu não podia ser mais um a machucar sua doce alma.

Todavia, vergonhosamente, meu corpo desgraçado falou por


mim, e então eu a tomei nos braços.
QUATRO

Uma parte de mim se perguntava o que eu estava fazendo. Outra,


antecipava que, uma única vez, eu seria a dona do meu destino. Não
seria roubada em minha pureza, eu a daria a quem escolhesse,
quisesse. Mesmo que não tivesse tempo de conhecer a pessoa
certa, mesmo que meu tempo com Lorenzo foi extremamente
limitado, eu estava usando todos os meus instintos em confiar nele.
Lorenzo cuidou de mim. Alimentou-me. Me deu sua camisa
para eu vestir. E não tentou, nenhuma vez, tomar-me à força. Então,
ele tinha que ser uma boa pessoa. E uma parte de mim sabia que,
por mais louco que fosse, era minha melhor opção.
Uma única vez...
E então eu não seria mais desejada pelo meu padrasto. Aquele
maldito me deixaria em paz. Minha mãe também não iria me querer
mais em casa. E, se algum outro cara me pegasse nas ruas, ele não
tiraria nada sagrado de mim.
Encaro Lorenzo. Seus frios olhos azuis estão fixos nos meus.
Seus braços me cercam, ele está em pé diante de mim, seu tamanho
é enorme, mas ele não me dá medo. A maneira como ele me segura
é tão doce.
— Você não precisa me recompensar... — ele murmura. — Não
posso fazer mal a uma menina como você.
— Mal?
— Você devia entregar sua primeira vez para um cara especial,
que a ame e que você ame.
— Pessoas quebradas como eu não encontram amor, Sr.
Lorenzo. Por favor, me ajude.
Não sei exatamente como soou meu pedido, mas sua boca
caiu na minha como uma resposta urgente. Era a primeira vez que
eu era beijada, o gosto de canela dele enche minha boca com um
sabor poderoso. Algo nesse beijo me desperta, e eu sinto meu corpo
estremecer, como se eu estivesse pronta para algo novo, algo que
eu nunca vivenciei antes.
— Eu me sinto tão culpado por estar vendo você dessa
maneira. Isso é errado de tantas formas — ele murmura, suas
palavras de encontro a minha boca. Sua voz profunda faz meus
mamilos apertarem. — Liliana, saiba que você pode me parar, dizer
não, ou desistir no momento que quiser.
Eu quase sorri. Ele era tão delicado na forma como passava
suas mãos pelas minhas costas, como deslizava seus lábios pelo
meu rosto, que eu quase me senti importante, única.
De repente, ele dá um passo para trás. Me estende sua mão.
Eu seguro seus dedos, enquanto ele me guia até a cama. Ele me faz
sentar lá, e fica em pé diante de mim. Lorenzo começa a desabotoar
a camisa, meu coração palpita quando vejo quão bonito ele é.
Másculo, musculoso, seu peito é enevoado por pelos escuros
que parecem brilhar à luz dos abajures daquele quarto de hotel.
De repente, ele se ajoelha aos meus pés. Ele segura uma das
minhas pernas e a ergue, deixando com que minha coxa fique à
altura dos seus lábios. Quando ele me beija ali, eu sinto meu corpo
inteiro sendo tomado por um calor desesperado, algo que nunca
experimentei antes.
— Você é tão bonita — ele murmura.
Ele suga minha pele, deixando uma mancha vermelha na parte
interna da minha coxa. Então suas mãos sobem, eu não uso calcinha
porque a única que tinha comigo lavei no banheiro quando tomei
banho. Assim, Lorenzo tem liberdade completa para estender seus
dedos, e me tocar de uma forma completamente íntima. Eu suspiro,
enquanto seus dedos deslizam pelo meio das minhas pernas,
resvalando nas minhas dobras. Sinto-me tímida, mas acredito que é
assim que o contato sexual funciona, então eu não recuso seus
avanços.
Seus olhos encaram os meus, enquanto ele observa minha
reação. Em seguida, se movem lentamente pelo meu corpo até
fixarem entre minhas coxas abertas.
O tempo para alguns segundos, meu coração erra uma batida,
enquanto eu me sinto queimar pelo seu olhar.
Então a roda da vida volta a girar, e os movimentos são
intensos. Deixo escapar um pequeno gemido de surpresa quando ele
me agarra pelo quadril, me puxando contra ele. Lorenzo cai de boca
na minha parte mais sensível, me fazendo gritar com a sensação
poderosa de sua língua raspando, sua boca chupando. Eu quase
tento fugir, diante dessa sensação inacreditável, mas sua mão me
mantêm parada.
Então vem o primeiro prazer da minha vida, em ondas quentes
que descem como lavas pelo meu corpo. Eu reajo, convulsionando,
enquanto ele suga meu clitóris em sua boca.
— Você é tão gostosa — ele murmura, e a frase me desperta
mais.
Eu nunca me senti assim antes. Eu sei que jamais me sentirei
assim com outro homem além dele.
— Senhor Lorenzo...
— Só Lorenzo, querida... Não me chame de senhor enquanto
eu mamo sua bocetinha... — Ele geme contra mim, sua língua
circulando meu clitóris antes de sugá-lo de volta em sua boca.
Minha respiração acelera. Subitamente, eu estou sendo
carregada para as nuvens, tão rápido, tão rápido. Meu corpo cai para
trás na cama, estou explodindo em pedaços, a camisa de algodão
raspa em meus seios, e eu sinto mais prazer.
O orgasmo me atinge. Eu nem sabia direito o que era. Ouvia
falar na televisão, mas não imaginava que era assim, como se eu
estivesse subindo e depois caindo do céu. Sinto minhas partes
baixas molharem e Lorenzo me bebe, enquanto empurra sua boca
mais e mais fundo, até o ponto de me arrastar para o paraíso.
Então ele se coloca em pé. Arranca sua calça, eu vejo seu
pênis poderoso surgir diante dos meus olhos. Penso que deveria
estar com medo, mas não sinto isso. Por mais ameaçador que sua
carne seja, por maior que seja, eu ainda sinto seus olhos doces
sobre mim.
— Querida, você pode desistir — ele diz.
Eu nego.
Eu o quero mais que tudo nessa noite.
CINCO

Ele desliza para dentro de mim como uma espada banhada em mel.
É tão delicado que faz meus olhos lacrimejarem, pois a cada avanço,
percebo seu cuidado, a forma como ele me alonga a cada
centímetro, me fazendo sentir única e especial.
Eu sei que não teria isso com outra pessoa. Não faço ideia de
como é um estupro, mas entendia que quando os ameaçadores
homens com quem cruzei me tomassem, não seria com essa
delicadeza que eles agiriam.
— Você é tão apertada — ele murmura contra meus ouvidos, e
não sei se é seu tom, ou pela forma quente como seu hálito toma
minha face, eu queimo em mil pedaços.
Então, de repente, ele me beija. Doce e suavemente nos lábios,
como se percebesse que por mais desejosa que eu esteja, ainda há
certa ardência em sua entrada. Eu gosto da forma como ele me
aconchega entre seu corpo e a cama, e a forma como seus dedos
enroscam nos meus cabelos, enquanto ele me mantêm no lugar.
Eu gemo quando ele empurra de novo, um grito interrompido
trava na minha garganta.
— Liliana?
Eu sei que ele está preocupado em me machucar, mas eu só
quero que ele faça completamente o que tem que fazer.
— Não pare — imploro.
— Você é tão linda — ele murmura. — Eu não sei se
conseguirei parar algum dia — admite e eu não entendo exatamente
o que ele quer dizer.
Só sei que seu calor é bom. Sua segurança. A maneira
respeitosa como ele me toma. Eu sei que sou quebrada, mas ele
parece disposto a unir esses cacos. E, conforme essa consciência
me toma, o ardor e a dor começam a ser substituídos por um tipo de
calor novo, algo que mais se assemelha ao prazer que ele me deu
momentos antes.
Eu nem conheço Lorenzo. Estou em sua presença a menos de
seis horas. Mas, eu sei que ele está me preenchendo com algo além
do físico. Era como se nosso encontro fosse para ser, como se
estivéssemos para nos conhecer, e nos conectar, de uma forma ou
outra.
E estou tão aliviada por ele estar em mim.
É como se... eu tivesse sentido tanto a sua falta.
— Lorenzo — eu murmuro, gemo, e ele me toma novamente
com seus lábios.
Então o movimento se torna uma sucessão de investidas.
Estou cercada por sua carne, preenchida por sua alma. Até esse
momento, sempre me senti tão sozinha. Agora eu o tinha... Oh,
Deus, estava tão feliz.
Todo o meu corpo está vivo. Eu estou viva. Pela primeira vez,
eu respiro após estar submersa em dor por tanto tempo. Então meu
corpo vem, fagulhas de calor me levando até a borda do universo, e
me jogando de lá. Eu vejo estrelas, convulsionando em ondas
quentes. Lorenzo me segura, cuidadoso, enquanto posso sentir ele
se derramando em jatos poderosos e quentes dentro de mim.
Eu estou tão feliz. Eu o seguro enquanto seu corpo caí sobre o
meu, sua respiração quente no meu pescoço. Eu poderia ficar assim
para o resto da minha vida.

✽✽✽

O ar está frio naquela manhã. Eu me acomodo entre os


cobertores, enquanto meus olhos vão abrindo lentamente, a luz do
abajur iluminando o quarto. Meus olhos rolam pelo ambiente, e eu
vejo a escuridão na janela. Perto dela, na parede, posso ver um
relógio.
Seis horas da manhã.
Estou dolorida, mas aliviada. Agora eu estava estragada para
os homens que desejavam me submeter.
Subitamente, a porta do banheiro se abre. Eu vejo Lorenzo
entrando no quarto, seu corpo nu parece vermelho, provavelmente
ele tomou um banho quente nessa manhã. Ele cheira a sabonete.
Sei que enrubesço diante da visão majestosa de sua nudez.
Mas, ele não parece incomodado em escondê-la de mim.
— Você já acordou? — ele indaga, sorrindo.
Eu aceno.
— Pode ficar dormindo. Ainda é cedo. Eu estou acordado
porque tenho uma reunião às sete, com investidores. Um café da
manhã regado a contratos e acordos — ele explica. — Mas, você
não precisa estar de pé tão cedo. Descanse, tome um banho, e
depois peça um café da manhã no quarto. Estarei de volta antes do
meio-dia — ele diz.
Não sei bem se ele quer que eu esteja aqui ao meio-dia.
Apesar de toda intimidade que partilhamos, estou com vergonha de
perguntar.
— Aqui — ele se aproxima da mesa perto da janela, a mesma
onde ele me alimentou no dia anterior e apontou um envelope —, eu
deixei dinheiro. Aqui também está um cartão de visitas, com meus
dados. Eu quero que você guarde bem.
Ele não explicou mais nada. Ele estava me dispensando ou era
apenas uma precaução? Eu me sento na cama, o lençol caindo do
meu peito, deixando meus mamilos à mostra. Os olhos de Lorenzo
brilham enquanto ele parece lutar contra si mesmo.
— Não me faça querer ficar — ele disse, me fazendo
estremecer. — Eu preciso ir trabalhar.
Eu sorrio. Quero que ele fique, mas respeito o fato de ele ser
um homem claramente atarefado. Então simplesmente ergo o lençol,
aguardando pelo beijo de despedida que ele me dá em seguida.
É um beijo tão doce. Eu sinto vontade de me afundar nele
novamente, mas Lorenzo se afasta.
Ele me dá um último olhar antes de sair. Eu guardaria aquele
olhar para sempre no meu coração.
SEIS

Eu fiquei na cama cerca de uma hora a mais depois da saída de


Lorenzo. Nunca havia dormido em algo tão confortável, e havia um
cheiro – o cheiro dele – nos lençóis que me traziam tanta paz. Meus
olhos estavam pesados e eu relaxei. Não dormi, mas fiquei naquele
estado tranquilo, em que você se permite apenas escutar o som da
própria respiração.
Subitamente, contudo, o som do barulho da porta me fez
arregalar os olhos. Uma parte de mim imaginou que Lorenzo estava
voltando, apesar de ele ter me dito que não voltaria tão cedo. É que,
apesar da dor no meio das minhas pernas, eu queria que ele me
jogasse novamente na ponta do universo. Eu sorri, antecipando sua
presença, mas foi uma mulher que vi surgindo aos pés da cama.
Era bonita. Muito bonita. Cabelos escuros cortados à altura dos
ombros, maquiagem bem-feita, corpo magro e perfume marcante.
Ela vestia um terninho claro que realçava seus olhos
inacreditavelmente expressivos.
A mulher me encarou, e eu não sabia direito como reagir. Não
sabia quem ela era, e uma parte de mim se perguntou se não era
alguma namorada – ou talvez esposa – de Lorenzo. Deus, eu não
sabia nada sobre ele.
— Quem é você? — ela indagou, mas parecia entender o que
estava acontecendo, já que suspirou desanimadamente enquanto
olhava para a cama desarrumada.
— Eu sou Liliana — disse.
— Passou a noite com Lorenzo?
Me senti tão envergonhada que queria me esconder.
Entretanto, acabei assentindo.
Observei seu rosto. Ela mastigava a informação como se fosse
algo amargo, então aguardei. E pareceram longos minutos até ela
sorrir, meio desajeitada.
— Oh, me desculpe aparecer assim. Sou prima de Lorenzo,
Nívea. E sou eu que limpo a bagunça depois — ela tentou ser
simpática. — Não estou chamando você de bagunça, mas Lorenzo é
acostumado a levar garotas para o quarto para passar a noite, e
deixar para mim a incumbência de me livrar delas depois.
“Me livrar delas...”
Eu achei... achei que ele quisesse que eu ficasse...
Então, meus olhos perceberam o cartão e o dinheiro atrás de
Nívea, e soube que – o que imaginei ser apenas um cuidado – era
um pagamento. Não sou uma prostituta, assim isso doeu demais.
— Eu posso tomar um banho antes de ir? — indaguei e ela
sorriu.
— Sim, querida, claro. Ele volta ao meio-dia de uma reunião,
então você... se possível... saía antes das onze para dar tempo de
limpar o quarto — explicou.
Ela se afastou, e eu me senti a coisa mais suja e pequena do
mundo. Ainda assim, não me arrependia, porque eu sabia que agora
meu padrasto não conseguiria arrancar de mim minha virgindade. Eu
a perdi com quem quis, eles não me tomaram.
Pus-me de pé. Antes de ir ao banheiro, recolhi as roupas que
ganhei – sim, eu não me desfaria de um presente. Seriam úteis
agora que eu tentaria buscar um emprego. Eu faria dezoito anos em
poucos dias, e poderia ter um futuro. — Então eu vejo o dinheiro
novamente ali. Era uma quantia substancial, que me ajudaria a virar-
me nos primeiros meses.
Ainda assim, se eu o pegasse, seria como se realmente eu
houvesse me vendido.
Suspirei novamente. De que adianta orgulho agora? E quem se
importa com a honra? Então, eu pus o dinheiro na sacola das roupas
e fui para o banheiro tomar um banho. Ao menos, eu teria um
começo.
SETE

Nívea me seguia pelos corredores do hotel. Eu tentei me desfazer


dela antes de chegar ao meu quarto, mas minha prima não parecia
entender minhas indiretas, e simplesmente me seguiu enquanto eu
abria a porta.
A reunião havia sido perfeita e fechei muitos novos acordos.
Nossa indústria iria crescer ao menos dez por cento no próximo
trimestre com esses contratos, então eu devia estar comemorando.
Mas, ao encarar o quarto vazio, eu não senti nada além de
desespero e tristeza.
— O que foi? — Nívea indagou às minhas costas.
Eu não devia contar, mas ela era minha família, então achei
que entenderia.
— Eu conheci uma jovem ontem e passamos à noite juntos. Eu
pensei... que ela estaria aqui.
Nívea não pareceu surpresa. Apenas, decepcionada.
— Estamos na cidade a trabalho, Lorenzo. Não para diversão.
— Não foi exatamente uma diversão — eu rebati, enquanto
caminhava pelo quarto, tentando encontrar alguma pista, algo que
Liliana pudesse ter deixado que me explicasse sua ausência. — Foi
especial.
— Especial? Você transou com uma mulher que veio para o
seu quarto na mesma noite que o conheceu...? Desde quando
vagabundas tem algo de especial com qualquer homem? — eu travei
com meu olhar sobre a mesa nesse instante, exatamente o local
onde coloquei o dinheiro naquela manhã. — Lorenzo? — a voz de
Nívea me tirou da letargia.
— Eu deixei um valor aqui... Uma parte de mim acreditou que
ela não pegaria.
— Ela era uma prostituta? — Nivea pareceu chocada. — Primo,
o que deu em você?
Eu neguei.
— Ela não me pediu dinheiro. Apenas, parecia desesperada e
sem recursos, então eu mesmo lhe dei uma quantia...
— Lorenzo, você não está conseguindo ver claramente as
coisas. Que idade tinha essa mulher? Você tem sorte que essa
golpista apenas pegou um dinheiro que você deixou. Ela podia ter te
roubado enquanto dormia. Pegado seus documentos, seus cartões,
a carteira inteira! Sabe o trabalho que daria para evitar que
clonassem seus cartões ou usassem seus documentos?
Nívea estava sendo racional. Eu sabia e devia aceitar isso, mas
havia um peso no meu coração que ansiava por recusar a ideia.
Caminhei até a cama arrumada. O quarto inteiro estava limpo e
o perfume suave de Liliana desapareceu entre o cheiro de
desinfetante e alvejante que vinha do banheiro.
— Qual o nome dela? Podemos recuperar o dinheiro — Nivea
disse, mas eu recusei.
Eu dei o dinheiro, e não era nele que estava pensando.
— O nome dela é Liliana — eu murmurei, só então me dando
conta de que não sabia seu sobrenome.
Era assim que eu a perderia? Sem seu nome completo, como a
encontraria? Quantas Lilianas existiam no mundo?
— Enfim — o suspiro alto de Nívea pareceu encerrar o assunto.
— Passou. É algo para esquecer.
Eu sabia que jamais a esqueceria.
OITO

Havia um cheiro forte de incenso naquele longo corredor, um aroma


que me lembrava as rosas em dias de primavera. Eu gostava do
cheiro, ele me acalmava de alguma forma. Sempre gostei de odores
doces, brandos e gentis. Suspirei, pensando que esse seria um
ótimo lugar para recomeçar.
Eu me acomodo melhor na cadeira enquanto escuto sons de
saltos se aproximando. Faz dois meses que eu tive aquele encontro
com o empresário Lorenzo, e o dinheiro que ele me deu já estava
acabando. Por sorte, com a idade e meus poucos documentos, eu
consegui me atualizar e fazer minha carteira de trabalho. Eu também
aluguei um quartinho em uma pensão no centro de Porto Alegre. Se
eu conseguisse esse emprego, eu teria a minha nova vida
completamente a minha disposição.
— Gorda — a mulher alta, loira e magra entrou no corredor
onde eu aguardava, e me encarou com olhos frios e calculistas.
Eu levei um tempo para entender que o apontamento de
“gorda” era para mim. E realmente fiquei surpresa porque “gorda” eu
não era. Claro, eu engordei nos últimos meses, fruto de ter comida
disponível, mas definitivamente eu não era gorda. Não que me
importasse de ser, mas ainda havia ossos aparentes no meu corpo,
resultado da desnutrição que minha mãe me submetia desde a
infância.
— É uma boa coisa — ela destacou. — Não quero uma mulher
mais magra que eu trabalhando para mim. Pode ficar bonita demais
perante as câmeras e chamar a atenção para si.
A loira então sorriu, e eu fiquei aliviada com essa breve
demonstração de simpatia, já que ela claramente parecia uma
pessoa difícil.
— Nem mais bonita. Nada de mulheres bonitas roubando
minha estrela. Venha, vamos ao meu escritório conversar.
Eu soube que Catarina de Vaz estava com uma vaga de
assistente disponível por outra garota que trabalhava na área da
maquiagem e que morava na pensão. A moça me destacou que
Catarina era insuportável e grosseira, o que eu não duvidava ser
verdade. Mas, eu tinha um histórico com pessoas difíceis e Catarina
não me dava medo.
Eu a segui até seu escritório. Sabia pouco sobre ela. Era uma
influencer famosa do ramo da beleza, ganhava muito dinheiro tirando
fotos com lançamentos de maquiagem, e atualmente estava com um
novo canal num site chamado Youtube, onde mostrava as roupas
que usava, todas de grife. Ela tinha muitos fãs, descobri na minha
pesquisa, e milhares de seguidores no mundo todo. Mesmo assim,
era difícil conseguir trabalhar com ela, já que Catarina expulsava
todos as assistentes.
— Eu trabalho muito — ela me disse, tão logo se sentou. — E
se você estiver disposta a trabalhar duro também, poderá crescer ao
meu lado. Mas, se for preguiçosa, é melhor dar o fora agora —
apontou.
Era uma mulher dura. Mais dura do que aparentava, com seus
vinte e poucos anos.
— Eu posso trabalhar, senhora — digo.
Catarina ergueu suas sobrancelhas bem delineadas, enquanto
parecia pensar se eu parecia esforçada ou não.
— Mora onde?
— Numa pensão no centro histórico.
— Aquele lugar é horrível — ela fez um bico com os lábios, e
eu me surpreendi por ela saber isso. Não que fosse mentira, mas ela
não parecia o tipo de pessoa que frequentava esse lado da cidade.
— Não tem família em Porto Alegre?
— Não.
— Então precisará viajar para rever sua família no interior?
— Não, senhora. Não tenho família.
Catarina tamborilou os dedos na mesa, enquanto absorvia
minha resposta. Uma parte de mim me dizia que ela era capaz de
me ler, e isso me assustava.
— É... Eu também não tenho. Minha mãe era uma vadia
desgraçada — deu os ombros. — Meu pai nem vou comentar. Pelo
menos morreu e me deixou herança. — suspirou. — Tem namorado?
Neguei.
— Bom... — Catarina pegou meu curriculum. — Você não tem
estudo...
— Eu já me matriculei no EAD...
— Não me interrompa — ela rebateu. — Eu não terminei de
falar. — Seu tom me fez enrubescer. — Como eu ia dizendo, você
não tem estudo, mas para esse trabalho não precisa. Você só
precisa estar comigo nos eventos, buscar água para mim, cuidar das
minhas roupas, do meu celular, fazer meu café, enfim... uma
assistente pessoal, pau para toda obra. Eu pago dois salários, mais
adicional para hora extra. E terá que dormir aqui. Tenho um quarto
de empregados perto da cozinha.
Aquilo parecia maravilhoso para mim.
— Então, te interessa? — ela indagou.
— Muito, senhora.
— Hum. Como estou com pressa de encontrar alguém, não vou
ficar investigando sua vida. Três meses de experiência será o
suficiente para eu saber se pode ficar ou...
Subitamente, eu me sinto mal. Um tipo de tontura, e uma
vontade louca de vomitar. Rapidamente, eu busco em minha mente o
que posso ter comido estragado que me fizesse tão mal nessa
manhã, mas a única coisa que tenho no estômago é uma banana e
um copo de água.
— Ei! — Percebo um tom estranho em Catarina, mas minhas
vistas estão nubladas e não a vejo. — O banheiro é por aqui — ela
está ao meu lado, segurando meu braço e me guiando.
Em segundos, estou ajoelhada diante do vaso sanitário,
vomitando um líquido branco. Quase na mesma proporção que
aquela água saí de mim, eu vou melhorando. Porém, quando encaro
Catarina, eu sei que perderei o trabalho. Quem vai querer empregar
alguém que vomita na entrevista de emprego?
— Você está grávida? — ela pergunta, à queima roupa.
Uma parte do meu corpo nega totalmente a informação, mas
outra começa a juntar pistas. Eu perdi minha virgindade sem
camisinha, eu não menstruei desde então, eu estava engordando, e
sentia meu corpo doendo em alguns lugares, como meus seios. Eu vi
essa cena diversas vezes com minha mãe.
— Meu Deus... — foi minha resposta, em choque.
Eu imaginei que Catarina fosse me expulsar nesse momento.
Pelo temperamento dela, imaginei que não teria nenhum
acanhamento em fazer isso. Mas, ela permanecia com seus olhos
arregalados, me encarando.
— E o pai?
— Eu... Oh, o que eu vou fazer?
— Ele sumiu, né?
Nunca mais havia visto Lorenzo, então a resposta era
afirmativa.
— Homens... — ela suspirou. — Tudo bem, Liliana. Isso
acontece — sua voz trazia um estranho conforto, e isso me
surpreendeu, porque eu não sabia que Catarina podia ser capaz
disso. — Vamos, vou te servir um chá de camomila, vai ajudar a
acalmar seu estômago.
Puxei a descarga, então fui até a pia lavar a boca. Quando me
voltei para Catarina, não pude deixar de perguntar:
— Ainda vai me dar o emprego?
— Se eu não te der, vai fazer o quê? Não tem família,
provavelmente não tem como sustentar um bebê, né? E pelo que sei,
ninguém dá emprego a grávida.
Assenti.
— Isso me lembra de quando eu estive grávida. Aquela puta da
minha mãe me forçou a abortar — ela me disse, havia um traço tão
melancólico na sua voz que eu precisei me segurar para não a
abraçar. — Ah, com o tempo você esquece do macho que aprontou
com você. Esquece da sua burrice em confiar nele. Esquece da vida
que tinha, da mãe narcisista. Esquece de tudo. Menos do bebê que
não nasceu.
Um suspiro pesado. Meus olhos se enchem de lágrimas.
— Enfim, vamos fazer um teste para ter certeza… De qualquer
maneira, eu vou te dar o emprego.
Eu concordei. Claro, eu estava apavorada em estar grávida.
Apavorada e completamente em choque, ainda sem entender o que
aconteceria comigo. Mas, havia também alívio pelo emprego, e
esperança por um futuro melhor.
Um dia após o outro. É assim que eu iria viver.
NOVE

Ergo o cartão, o nome de Lorenzo Colombo ilumina abaixo de uma


lâmpada da rua. São apenas dezesseis horas, mas o dia já está
escurecendo nesse inverno sem fim. Eu suspiro longamente,
levantando os olhos e observando o prédio alto e chique, um hotel
cinco estrelas na zona sul.
Foi Catarina que soube que ele estava na cidade. Um novo
contrato com um grupo de produtores de soja do noroeste. Ele
forneceria todo o novo maquinário, em financiamentos próprios.
— Já que ele nunca atendeu uma ligação — Catarina
comentou no dia anterior —, você deve ir pessoalmente procurá-lo.
Ele tem que saber que será pai.
Minha chefe se tornou minha melhor amiga nos meses que se
passaram. Minha única amiga, aliás. Eu estava com uma barriga de
cinco meses, e a gestação acabou algo em conjunto, já que Catarina
era muito amável com o bebê, apesar da personalidade irascível
dela. Eu levei semanas para entender que seu jeito meio estúpido
era uma defesa. Não imaginava as dores que ela sentia, mas sabia
que deviam ser terríveis, porque as vezes eu a pegava olhando para
o nada, como se lembranças fossem dolorosas demais e ela
precisasse simplesmente se afastar de tudo, até mesmo dos seus
pensamentos.
Eu entendia esse limbo. Às vezes também fingia que estava em
branco, sem passado. Apenas o presente. O bebê que eu lutaria
para sustentar e criar.
Eu entro no hotel. Como estou bem-vestida – eu ficava com as
roupas que minha chefe não queria mais, então eu tinha boas roupas
– os funcionários não torceram o nariz, nem me expulsam. O
recepcionista me recebe com um sorriso enquanto eu me aproximo.
— Preciso falar com o Senhor Lorenzo Colombo — digo. —
Pode, por favor, anunciar que Liliana está aqui?
Ele acena, enquanto busca o telefone. Eu giro meu corpo, e
caminho até o rol, onde poltronas confortáveis estão à disposição de
hóspedes. Eu me sento, porque ficar em pé sempre é
desconfortável.
Suspiro, minha mão sobre a barriga. O bebê começou a se
mexer recentemente. Basicamente, não sei como me sentir sobre
meu bebê. Eu sei que vou lutar por ele e criá-lo com todo amor, mas
quando começo a imaginar o dia a dia, os gastos, despesas com
médico, exames, alimentação, depois creche e escola, eu entro em
pânico. Catarina já disse que não vai me despedir, e terei apoio
financeiro já que, assim que passei pelo período de experiência, ela
aumentou meu salário, mas, ainda assim, estou apavorada.
Por isso, torço para que Lorenzo aceite a gravidez. Mesmo que
ele pouco ajude, já será alguma ajuda.
— Liliana? — uma voz feminina me faz levantar.
Eu reconheço Nívea porque ela é difícil de esquecer, tão
elegante e de olhos tão marcantes.
— Oi — eu digo, colocando-me em pé com um pouco de
dificuldade. Sei que ela está fixa na minha barriga, e me sinto muito
envergonhada. — Eu não sei se você se lembra de mim... Eu
estava...
— Sim, na feira de eventos agroindustriais — destacou. — O
que faz em Porto Alegre?
— Eu consegui um emprego na cidade — expliquei. — Soube
que o Senhor Lorenzo está na cidade.
— Provisoriamente.
Seu tom parecia tão frio.
— O bebê é dele? — ela indagou, depois de um tempo.
Assenti.
— Ele não está aqui no hotel agora, mas posso avisá-lo assim
que chegar. Me deixe seu telefone que entregarei a ele para que ele
ligue para você e conversem.
Eu não tinha uma caneta, então fui até à recepção e pedi ao
moço de lá que me emprestasse uma. Anotei meu número de celular
num papel e o dei para Nivea.
— Por favor, diga a ele que não se sinta culpado de nada.
Aconteceu. Eu não quero forçá-lo a ser pai, apenas...
— Vou falar a ele — cortou. — Não se sinta mal, acidentes
acontecem — ela destacou. — Com quantos meses está?
— Cinco.
— Hum — ela fez um muxoxo com os lábios. — Bom, tenho
que ir preparar muitos contratos para serem assinados.
Provavelmente a noite conseguirei falar com Lorenzo e passar o
recado.
Agradeci. Apesar de ser uma mulher um tanta seca no jeito de
falar, ela parecia gentil e solícita.

✽✽✽
— Não forçá-lo a ser pai? — Catarina reclamou, suas mãos
balançando no ar. — Você tem que arrancar até as calças dele num
pedido de pensão.
Gustavo, o maquiador, riu alto, enquanto deslizava um pincel
sobre o rosto de Catarina.
— Se eu engravidasse de um ricaço, eu o faria comer nas
minhas mãos — ele disse, fazendo meu olhar cair em sua figura
jeitosamente feminina. — Arranque o que puder dele, querida.
Homens não prestam — ele destacou.
— Ele parece prestar — eu neguei. — Sei que é difícil explicar,
mas...
— Ele é um homem de quase quarenta anos que pegou uma
menina menor de idade, na época — Catarina ralhou. — Eu fiz os
cálculos, eu sei que você era menor quando dormiu com ele. Não,
ele não presta. E você tem que meter um pau tão grande na bunda
dele, que esse homem nunca mais irá olhar para outra menor de
idade na vida dele.
Não consegui dizer a ela que Lorenzo me fez um favor quando
dormiu comigo. Claro, eu não sabia sobre essas coisas de
preservativo, e ele devia ter se protegido. Mas, estava tão feliz por
ele ter me dado uma boa primeira vez que não era capaz de culpá-lo.
E, apesar de eu ter seguidos momentos de pânico quando olhava a
barriga, eu também já amava meu bebê e estava disposta a ser a
melhor mãe que pudesse.
Subitamente, o celular em cima da mesinha de vidro vibrou.
Encarei meu aparelho, percebendo que era um número
desconhecido. Eu estava aguardando a ligação de Lorenzo desde o
dia anterior, então meu coração pulsou com força, quase
dolorosamente, quando percebi que era ele entrando em contato.
Depois de tantos meses, eu o veria novamente? Como seria
esse reencontro? Ele ficaria enojado por eu estar com a barriga
dilatada, ou ficaria feliz em ser pai?
— Atenda, mulher! — Catarina quase gritou, e eu obedeci,
pegando o celular.
Gustavo e Catarina ficaram em silêncio, me encarando,
enquanto eu aceitava a ligação.
— Sim?
— Liliana?
A voz era feminina. Eu levei alguns segundos para perceber
que era de Nívea.
— Sim? — repeti.
Por que ela estava me ligando? Meu assunto era com Lorenzo!
Por que ele estava colocando sua prima para resolver esse
problema?
— Falei com Lorenzo na noite passada — ela me contou. —
Ah, Liliana... Foi uma conversa difícil. Eu não vou amenizar ou florear
a coisa toda — sua voz era tão fria que eu senti meu corpo se
arrepiando. — Resumindo: Lorenzo me pediu para entregar um valor
para você, a fim de realizar um aborto. Ele espera que você não o
procure mais.
Eu sinto as lágrimas invadindo meus olhos, minha garganta
ardendo, meu coração dolorosamente machucado.
— De verdade, eu sinto muito, Liliana. Mas, espero que você
entenda que Lorenzo e você foi coisa de uma noite. Ele não tem
qualquer interesse em você. E forçá-lo a ser pai de um filho que ele
não quer, só vai piorar as coisas.
Eu não conseguia ouvir mais nada, então eu desliguei.
Imaginei que Catarina e Gustavo fossem inquirir o que haviam
me dito, e torci para que não questionassem nada, porque eu não
aguentaria falar sobre o tanto que ouvir aquilo me feriu.
— Oh, Lili... — ouvi a voz de Catarina, e logo senti os braços
dela ao meu redor.
O abraço de minha patroa trouxe um pouco de conforto sobre a
realidade que agora me acometia:
Lorenzo rejeitou meu bebê.
DEZ

2 MESES DEPOIS

Nívea caminha pelo meu escritório, indo da impressora até minha


mesa, e depois até o armário para pegar mais papeis. Ela é tão ereta
e profissional que uma parte de mim se sente inútil aqui. Nívea
negocia os contratos, fecha acordos, participa das longas
negociações, e a mim cabe apenas a assinatura final.
Eu confio nela. Ok, ela me deixa estranhamente nervoso e
sufocado, mas eu sei que é a melhor assistente que um executivo
pode ter.
— Acredito que se conseguirmos as peças de ligação da China,
entraremos no mercado asiático. Temos preço, qualidade... Só
precisamos da matéria prima barata. Você conseguiu falar com
aquele deputado, seu amigo, para verificar se o presidente pode
assinar uma medida provisória para liberar as peças com um imposto
diferenciado?
Vergonhosamente, eu neguei. Uma parte de mim estava
cansado e não queria crescer mais. Já éramos o maior fornecedor da
América, e eu já trabalhava até a exaustão. Se tornar a maior
empresa do mundo em peças agrícolas terminaria com meus dias.
Eu estava ficando velho. Precisava de um tempo para mim.
Conhecer alguém, casar-me, ter filhos. Nívea parecia empenhada
em não me deixar respirar.
— Precisa fazer isso — o tom dela era um tanto recriminatório.
Desviei meus olhos de minha prima e olho para a tela do meu
celular. A falta de notificações me carrega de frustração.
Liliana...
O detetive não tinha novidades. Sem o sobrenome e nenhuma
informação sobre a garota, eu não sabia por onde começar. Onde ela
podia estar? Por que nunca entrou em contato comigo, nem que
fosse apenas para pedir mais dinheiro? O que eu lhe dei não era
tanto assim, e ela precisaria de mais se não tivesse conseguido um
trabalho.
Quando ela sumiu do meu quarto, eu passei alguns dias num
misto de tristeza e decepção. Depois, eu tentei superar, mas o rosto
pacífico e doloroso dela ainda inundava meus sonhos, então eu
decidi agir. Contratei um ex-policial para conseguir qualquer
informação que pudesse.
“Onde você acha que ela pode estar?”
“Você sabe onde ela nasceu?”
“Você sabe o sobrenome?”
“Algum dado que possa me ajudar na pesquisa?”
Eu não tinha nada. E o detetive estava no escuro. Depois de
um mês, ele quis entregar o caso porque era causa perdida. “Ela
pode ter mentido o nome”, ele comentou. Ainda assim, eu recusei
sua saída. Ordenei que continuasse, nem que fosse apenas para
manter minha esperança acesa.
De verdade, eu não sei se ela mentiu o nome. Eu só sei que,
independentemente disso, seu corpo não mentiu sua reação ao meu.
O que rolou entre nós foi especial.
— Deise, onde está o relatório que te pedi? — eu me assustei
com o berro de Nívea.
Minha prima estava agora na porta, chamando minha
secretária. Eu realmente não sei qual a necessidade que ela tinha de
tratar tão mal Deise, mas eu era tão merda que não conseguia pedir
para ela parar. Simplesmente, depois de Nívea sair, eu me
desculparia.
— Já estou terminando, Sra. — escuto o som de Deise e sinto
pena.
Nívea podia massacrar quando queria. Certa vez, ela me disse
que não achava que Deise fosse a secretária certa, porque estava
acima do peso e era “lerda” para fazer o que se pedisse.
Sinceramente, para mim, Deise era perfeita. Sempre que eu chegava
de manhã, meu café estava pronto, e nós costumávamos conversar
muito sobre amenidades. Também gostava que, em dias corridos,
nós dividíamos o almoço. Deise era uma mulher simples, e eu
achava que eu também era uma pessoa comum.
Acho que por isso Nívea assustava. Ela era tão dura. Difícil.
— Terminando? Você devia ter aprontado ontem! — Nívea se
vira para mim. — Já disse para você dispensá-la. Posso conseguir
uma secretária mais competente e...
— Deixe Deise em paz — reclamei, e acho que meu tom foi
meio bruto porque vi Nívea enrubescer e parar de falar.
Então minha prima voltou para perto, e sentou-se diante da
minha mesa. Não levou dois minutos e Deise entrou, com seus
passos um tanto vagarosos e suas coxas roliças, a me trazer os
papeis.
— Obrigado, Deise.
— De nada, senhor — ela respondeu antes de sair.
Quando a porta se fechou, eu disse:
— Você sabe que falar nesse tom com um funcionário pode
configurar assédio?
— Você é o dono e administrador da maior indústria de
maquinários agrícolas do país, e sua secretária não está à sua
altura.
— Para mim, ela está.
— Você é um homem sem ambição, primo. Por isso que uma
gorda descompensada não te incomoda. Se estivesse preocupado
com seu crescimento, saberia que precisa de uma secretária que
faça com que seus parceiros comerciais percam o fôlego.
— Eles já perdem por você — amenizei aquela discussão com
um sorriso.
Busquei os papeis que Deise me trouxe, e me afundei na leitura
por um momento. Mas, meu pensamento continuou no que disse
minha prima. Era verdade que eu não tinha ambição e que estava
centrado apenas em encontrar novamente a garota que me levou ao
paraíso meses antes. Porque, na verdade, eu só queria coisas
simples como um bom salário que pagasse minhas contas, e uma
mulher que fizesse meu coração bater tão intensamente quanto meu
pau.
E, sim, eu já havia encontrado essa mulher. Apenas não sabia
onde ela estava.
Eu suspiro, virando a página do novo contrato. Meus olhos
correm pelas palavras, mas meu pensamento está longe. Eu também
sentia uma espécie de culpa sobre Liliana. Ela era uma garota, uma
menina, eu nunca devia tê-la levado para a cama. Ou, ao menos,
devia ter esperado algumas semanas, até ela fazer dezoito anos.
Acontece que eu me senti tão conectado a ela. Só queria abraçá-la e
afundá-la em mim, dizer-lhe que a protegeria do mundo todo após
conhecê-la.
Mas, eu não disse isso, e ela se foi. Se eu nunca mais a
encontrasse, talvez nunca me perdoasse.
— Acho que está tudo ok — digo, finalizando a leitura. — Vou
assinar os papeis e os deixo com você.
Nívea assente, e então se levanta. Ela sai pelo escritório, e a
manhã poderia transcorrer normalmente não fosse a voz alta de
minha prima recriminando Deise.
— Você é paga para trabalhar!
Eu me levanto para ver o que está acontecendo dessa vez.
Deise não é empregada de Nívea e eu estou chegando ao meu limite
pela forma como minha prima está tratando a minha secretária.
— O que está acontecendo? — indago, à porta.
— Ela não está trabalhando. Está assistindo vídeos no TikTok
— minha prima me diz, como se o fato de Deise estar com a tela do
celular ligada em sua mesa fosse um crime.
— É mesmo? — encaro Deise. — Eu também passo horas
matando o tempo vendo vídeos engraçados — digo, e Deise sorri
para mim, aliviada.
— Desculpe, Senhor. É que minha influencer favorita acabou
de entrar ao vivo e...
— Sem problemas — rebato.
— Sem problemas? — Nívea repete, atônita. — Ela é paga
para...
— Quem é a moça na tela? — eu pergunto, observando a
mulher loira, extremamente linda, que está mostrando como aplicar
maquiagem.
— Catarina de Vaz — Deise me mostra. — Ela é tão legal.
Aprendi a me maquiar com ela.
— Então por que não se maquia? — Nívea parece tão azeda,
mas nós simplesmente a ignoramos.
— Eu nunca a vi na rede — comentei. — Eu sigo mais os caras
que falam de carros, essas coisas.
— Oh, sim — Deise acena. — Eu sigo mais quem faz vídeos
engraçados. Mas, Catarina é tão linda... ela parece uma boneca, tão
perfeita. E ela é tão simpática e doce.
O vídeo continua a correr. Catarina mostra como aplicar
sombra sobre os olhos de um jeito prático. Ela faz isso tão facilmente
que parece levar menos de cinco segundos. Eu fico surpreso com a
técnica. Lembro-me de minha mãe levando horas para se arrumar,
era uma boa lembrança da infância.
— Você vai ficar perdendo o tempo vendo essas bobagens? —
Nívea questiona.
Eu me recuso a tirar os olhos do telefone, não sei bem se para
irritar minha prima, ou porque o vídeo realmente é bem interessante.
E eu nem ligo para maquiagem.
Deise e eu trocamos um sorriso quando Nívea se vai, bufando.
Somos cúmplices de uma inocente traquinagem. Então, eu me volto
para minha porta, disposto a voltar a trabalhar.
Porém, segundos depois eu travo. Do telefone, eu ouço a voz
de Catarina dizer, para alguém ao seu lado:
— Liliana, pegue a água micelar, por favor.
Eu me volto. Catarina está falando com uma assistente
pessoal. Eu sei que pode ser qualquer Liliana do mundo, mas eu...
eu só quero ter uma esperança.
O vídeo termina sem aparecer nenhuma outra pessoa.
— Essa Liliana que ela falou — comento com Deise. — É
influencer também?
— Não. É funcionária de Catarina de Vaz.
— Hum? Tem algum vídeo dela?
Deise nega. Então eu tento me conformar e volto para minha
mesa. Porém, segundos depois, estou com a tela do meu MAC
aberta, procurando por Catarina Vaz. Busco imagens de sua equipe.
Posso ver um cabelereiro gay que aparentemente trabalha com ela.
Ela teve algumas assistentes que, segundo os canais de fofoca, não
aguentaram sua personalidade forte.
Subitamente, eu travo.
Sem que eu esperasse, mesmo que fosse isso que eu
buscasse, uma das fotos mais recentes é Catarina ao lado de minha
Liliana. Eu sei que é a minha Liliana, porque eu nunca esqueceria
seus olhos, sua boca, sua pele...
Ela parece... feliz.
Meu coração dispara, conforme vou tomando consciência de
que, de alguma maneira, Liliana estava em Porto Alegre, trabalhando
com uma influencer de mídias sociais.
Eu me levanto. Pego as chaves do meu carro e saio da minha
sala.
— Cancele todas as minhas reuniões até o final do mês — digo
a Deise.
— O quê? — ela parece assustada. — Senhora Nívea vai...
— Eu ainda sou o dono da empresa, Deise. Diga a Nívea que
quem manda sou eu.
— Ela vai me colocar na rua se eu me atrever.
— Ela não tem poder de dispensar ninguém — afirmo. — Fique
tranquila. Reagende minhas reuniões.
— Mas, onde está indo, Senhor Lorenzo?
Caminho até a porta do elevador. Aperto o botão que ilumina ao
toque.
— Estou indo buscar o amor da minha vida.
Então o elevador se abre. Entro nele e o fecho sem pestanejar.
ONZE

— Faça um favor a todos nós e morra! — Catarina gritou ao


telefone, antes de desligá-lo.
Ela tinha uma personalidade difícil. Aliás, difícil era eufemismo.
Catarina tinha um jeito que beirava a brutalidade. Ainda assim, eu a
amava e idolatrava. Lembro-me claramente o que aconteceu quando
eu fui avisada por Nívea que Lorenzo queria que eu abortasse.
“Que ele enfie o dinheiro do aborto no cu — Catarina negou. —
Vou mandar uma mensagem a esse número dizendo que, se receber
outro pedido para que você aborte, vou procurar a polícia. Ah, Lili...
deixe-me colocar um advogado nos calcanhares desse filho da puta!
Eu quero fodê-lo demais num processo de pensão”.
Eu sorri diante da lembrança. A verdade é que eu não sabia
como reagir a rejeição de Lorenzo. Minha primeira reação foi chorar,
e isso causou o ódio de Catarina. Mas, agora eu só estava tentando
viver um dia após o outro. Eu não seria a primeira mulher que criaria
uma bebê sozinha. E eu estava em vantagem a muitas: eu tinha um
emprego, e amigos valiosos que seriam meu suporte.
— É brincadeira! — Catarina disse, naquele tom que deixava
claro que o que quer que fosse que a situação era, brincadeira não
fazia parte disso.
Gustavo a ajuda a espalhar a maquiagem.
— Calma, Catarina...
— Lili vai parir em talvez dois meses, e eu ainda não consegui
uma assistente que a substitua durante a Licença Maternidade.
Como pode ser tão difícil encontrar alguém para me servir.
— É que você gosta de ser tratada como uma rainha, e só Lili
te considera uma — Gustavo disse, me fazendo rir.
— Não é verdade — Catarina negou. — Lili, diga a ele que não
é verdade — ela mandou.
Eu soltei outro riso, antes de completar.
— Eu não preciso tirar Licença Maternidade. Posso cuidar de
você e do bebê...
— Mulher! Tem aquele evento em São Paulo! Como você irá
recém-parida? — Catarina indagou. — Além disso, a bebê terá que
ter sua total atenção. Não quero que minha afilhada seja
negligenciada por trabalho.
Eu havia convidado Catarina e Gustavo para serem padrinhos
da minha bebê no dia que descobri que seria uma menina. Catarina
havia me levado ao médico, e Gustavo apareceu lá quando a
consulta atrasou. Eles estavam ao meu lado quando o médico me
disse o sexo. Provavelmente, foi o momento mais emocionante da
minha vida.
Eu sabia que ser mulher nesse mundo era terrível, mas
também sabia que faria tudo para proteger minha filha. Foi a primeira
vez que realmente me senti conectada com ela, pois agora ela não
era só um corpo no meu corpo. Ela era um indivíduo próprio, tinha
mãos, olhos, boca... Meu coração se encheu de puro amor.
— Eu só preciso de alguém por uns quatro meses — Catarina
murmurou, de um jeito engraçado, pois Gustavo passava batom
nela. — A agência disse que é difícil conseguir alguém porque eu
sou insuportável e eles tem medo de que isso se torne um escândalo
se meu temperamento vazar.
— Que mentira! — Gustavo ironizou.
— Pois quando contratei Lili foi sem a autorização da agência e
ela está ao meu lado até hoje! Sei entrevistar um funcionário melhor
do que todo o RH da agência.
Minha mão caí para o meu estômago, enquanto a conversa
entre Gustavo e Catarina prossegue. Eu sorrio, olhando para minha
barriga redonda. Minha bebê se mexe como se soubesse que a mãe
estava lhe dando atenção, e não posso deixar de sentir meus olhos
lacrimejarem.
É tanto amor por ela que não sei o que fazer com isso.
Como minha mãe não me amou? Como uma mulher pode ter
uma criança no ventre e não sentir nada?
A campainha toca, e eu me levanto. Caminho lentamente até a
porta do Studio, e abro para que o fotógrafo e sua assistente entrem.
Catarina é a garota propaganda de uma nova marca de shampoos.
Seria um dia cheio, e ela havia me dispensado nos últimos meses da
gestação, mas eu recusei, afinal, ela precisava de mim, e ela havia
sido a melhor pessoa comigo, em ainda me dar um emprego, mesmo
confirmando que eu estava grávida.
Era incrível como Cat tinha um coração de ouro por baixo de
uma couraça carregada de palavras duras.
— Você pode me arrumar um café? — a assistente do fotógrafo
me perguntou e eu esperei pelo furacão que viria.
E veio.
— Não está vendo que ela está grávida? Ou está achando que
essa barriga é de pizza? Pegue você mesma! — Catarina gritou do
outro lado da sala, apontando uma cafeteira num dos cantos. Ela
tinha olhos e ouvidos de águia.
Eu dei um sorriso constrangedor para a assistente, e fui me
sentar.
— Desculpe — a assistente me disse, quando cruzou por mim
mais tarde. — É que minha gravidez foi tão difícil que eu nem liguei
os pontos de que não precisa ser assim para todas. Eu trabalhei até
o último dia, e voltei a trabalhar dois dias depois de parir, porque a
casa estava imunda e meu marido reclamava que não tinha comida
pronta, essas coisas. Homens são tão difíceis. Como é seu marido?
— Eu não tenho — respondi.
— Ah — ela pareceu piedosa, mas na verdade eu pensei que
estava melhor que ela.
Se o marido era cruel assim, era melhor ficar sozinha. Eu não
entendia direito os homens, o pouco que vi de Lorenzo foi incrível,
mas ele me dispensou como uma prostituta e depois tentou me fazer
abortar. Então eu nunca saberia.
Claro que, até um ano antes, eu tinha sonhos de ter uma
família. Me casar como nas novelas, com vestido, padre, tudo...,
mas, a realidade era quase assustadora. Eu tinha dezoito anos e
estava à beira de um parto, sem sequer um namorado para segurar
minha mão.
Catarina gritou do outro lado. Eu sorri, porque eu era muito
sortuda. Ao menos, eu tinha a melhor amiga que uma garota poderia
ter.
O trabalho continuou no estúdio. Eu fiquei esquecida num
canto, apenas ajudando quando precisavam de mim. Ainda assim,
sem excessos, pois Catarina tinha ataques sempre que me via de
pé.
A vida tinha que continuar...
DOZE

Para encontrar Liliana, eu precisava encontrar Catarina de Vaz, o


que por si só não era a mais fácil das tarefas. É claro que a agência
de Catarina não me forneceria o endereço, por mais dinheiro que eu
oferecesse, então, ainda no avião, eu solicitei ao meu departamento
de marketing que agendasse uma reunião com Catarina para
tentarmos um contrato de publicidade.
O que uma patricinha loira de unhas compridas tinha a ver com
maquinários agrícolas, eu não fazia ideia. Mas, eu precisava de uma
desculpa para ver Liliana. Qualquer coisa.
Cheguei a Porto Alegre no final da tarde. Meu telefone
começou a tocar assim que entrei no rol de saída do Salgado Filho.
Eu ignorei as ligações de Nívea, especialmente porque queria focar
no que mais me importava agora.
Não sei direito o que estava buscando. Liliana iria querer me
ver? Francamente, ela tinha meus dados, e poderia ter entrado em
contato comigo se desejasse, mas ela nunca o fez. Claro, o telefone
que constava no cartão não era meu número pessoal, mas qualquer
dos meus funcionários que o atendesse, entregaria o recado.
Se ela nunca o fez, era porque não tinha interesse. Ainda
assim, aqui estou, desesperado por qualquer sinal de que a noite
que tive ao lado dela é mais do que o sexo prazeroso compartilhado.
Oh, Deus... Eu me senti conectado àquela garota no exato
instante que a vi pela primeira vez. Chame de amor à primeira vista
ou dê qualquer outro título bobo... Mas, sim, era real. E agora ela
estava em algum lugar dessa enorme cidade. E eu só precisava
encontrá-la.
Estou cansado do voo. E quero colocar meus pensamentos em
ordem. Então eu chego à área dos táxis e pego o primeiro que abre a
porta. Lhe forneço o nome do hotel que tenho o costume de ficar, e
espero que ele entre no trânsito antes de puxar o celular novamente
e verificar as mensagens.
Quando saí de Mato Grosso, eu forneci um nome ao
investigador que anteriormente procurou por Liliana. Assim, ignorei
as diversas mensagens de Nívea e foquei no contato do detetive, e
em qualquer coisa que ele pudesse me fornecer sobre Catarina.
Um número de telefone ou um endereço.
Ele me deu ambos.
Meu primeiro impulso foi trocar o endereço ao taxista e ir direto
para a casa de Catarina, mas optei por segurar meu temperamento,
e decidi que era melhor ir para o hotel, deixar minhas coisas num
quarto e tomar um banho. Só depois, rumar para encontrar Liliana.
Eu esperava que ela não me expulsasse de sua vida. Uma
única chance de mostrar que eu era o homem certo, era tudo que eu
precisava.
Claro, havia nossa diferença de idade. Mas, eu sabia que
podíamos superar isso se pudéssemos construir algo. Estava mais
que disposto, só precisava que Liliana também quisesse.

✽✽✽

O porteiro me encarou com as sobrancelhas erguidas,


avaliando minhas roupas e minha cara, provavelmente pensando
que eu era um dos muitos homens interessados em Catarina de Vaz.
— A senhora Catarina é uma mulher difícil — ele me
confidenciou, depois de tudo. E isso me surpreendeu, porque eu
quase senti medo na voz dele. — Ela vai me matar se eu ligar para
seu apartamento fora do horário comercial...
— Mas, e no caso de ser algo urgente ou...
— Não há exceções. Dona Catarina é muito... louca.
Senti pena dele, porque realmente havia um pavor explícito no
homem.
— Eu não quero falar com ela e sim com a moça que trabalha
com ela. Liliana, conhece? Se você puder me dizer onde Liliana
mora, eu vou embora.
— Liliana mora com dona Catarina. É sua assistente pessoal.
Nós ficamos parados, encarando um ao outro naquela portaria
pequena e bonita.
— Por favor? — eu peço.
Seus olhos disparam para a direita e para a esquerda,
claramente ele está pensando em algo que possa me dispensar.
Mas, eu não vou sair daqui sem falar com Liliana. Nem que seja para
fazê-la entender que eu estava de volta a sua vida e que eu queria
uma chance.
Se ela não me quisesse, eu respeitaria. Mas, antes, eu queria
que ela me dissesse cara a cara que não havia oportunidades.
— Vou ligar para ela, ok? Mas, se a senhora Catarina começar
a gritar ou vier berrando do seu apartamento, precisará dizer que
insistiu que era um caso de vida ou morte.
Eu concordei.
Naquele curto espaço de tempo em que o homem se aproxima
do interfone e liga, eu observo o rol de entrada. É um lugar chique e
ricamente decorado. Claramente esse prédio é de alta classe, o que
não me surpreende nenhum pouco. Pelo que li, Catarina era uma
das mais ricas influencers do momento.
— Oh — o homem fez com a boca, chamando minha atenção.
— Senhora Catarina disse que pode subir — ele realmente parecia
surpreso.
E me encarou como se eu fosse direto à uma forca. Uma parte
de mim gritou que era uma armadilha e Catarina era algum tipo de
serial killer que estava prestes a me matar.
— Ela nunca deixa ninguém subir além dos funcionários — ele
murmurou, e eu quase saí correndo.
Mas, Catarina nem me conhecia. Não havia como ela ter
qualquer coisa contra mim. Então, segui em frente. Enquanto
esperava o elevador chegar para me levar ao quinto andar, andar de
Catarina, segundo o porteiro, eu observei uma placa ao lado.
— Há unidades a venda?
— Sim — o porteiro confirmou. — É um prédio caro.
Eu não sei bem se ele pensou que eu fosse pobre ou sei lá o
quê, mas a verdade é que a opinião pouco me importava. Se eu
tivesse um apartamento aqui, eu teria um lugar onde poderia ficar
perto de Liliana. Ou talvez eu pudesse lhe dar o apartamento de
presente e ela moraria perto do trabalho.
O ideal era levá-la para Mato Grosso, mas eu imaginava que
isso não seria tão rápido ou fácil.
A porta abriu, e eu entrei. O porteiro acenou para mim antes da
porta se fechar novamente, e eu quase pude ler um “Deus o proteja”
nos lábios.
Enquanto o elevador sobe, escrevo algumas mensagens para
meu contador e para o gerente de finanças. Passo o endereço, peço
que verifiquem preços e façam uma proposta. A porta se abre antes
que eu receba alguma resposta.
Meu coração acelera enquanto eu ando pelo corredor. Liliana
está tão perto agora. Alguns passos e eu posso tê-la novamente em
meus braços.
Há uma única porta, então eu rumo à ela. Bato. A porta se abre
tão rápido que eu quase fico zonzo. E, antes que eu possa esperar,
estou no chão, meu maxilar doendo e minha cabeça girando pelo
soco que recebi na cara.
— Mas é muita cara de pau desse filho da puta bater na minha
porta — ouço uma voz feminina e mal posso acreditar que esse soco
veio de uma mulher.
Onde está Liliana?
O que diabos está acontecendo?
TREZE

O porteiro tinha razão. Catarina era o próprio demônio. Enquanto eu


me erguia e a encarava, eu tentava entender como a doce e
adorável influencer que conheci na tela do celular e esse capeta
raivoso eram a mesma pessoa.
— Por que você me bateu? — eu gritei, enquanto a encarava.
— Ainda tem a cara de pau de perguntar?
Subitamente, ouço som de passos. Atrás de Catarina, eu vejo
minha Liliana, exatamente a mesma e delicada jovem que resgatei
naquela noite, quase um ano antes. Ela estava mais cheia, o rosto
redondo, e parecia maior por baixo do robe de lã que usava. Mas,
ainda tinha os mesmos olhos castanhos que me viciaram, e as ondas
dos seus cabelos ainda desciam por seus ombros como mel. Eu
quase sorri. Quase.
Porque, tão logo a percebi, o monte sobre seu ventre também
se destacou. Não que ela tentasse escondê-lo, já que sua mão
pousava suavemente sobre a barriga avantajada, mas o robe grande
podia enganar.
Ainda assim, estava lá. E, pelo tamanho, tinha provavelmente o
tempo de nossa separação.
Eu fiz os cálculos rapidamente. Liliana era virgem quando ficou
comigo. Se ela não tivesse tido outro homem ao mesmo tempo, tinha
que ser meu.
Era meu.
Eu seria pai.
Por que eu não soube disso antes? Como ela pôde ter ficado
longe de mim durante todo esse tempo?
— Lorenzo? — Ela me tirou do torpor.
O som da sua voz cruzou por mim, me fazendo reagir. Eu
passei por Catarina – e a influencer não me impediria, mesmo que
quisesse – e me aproximei de Liliana. Por alguns segundos, eu
apenas observei seus olhos fixos no meu. Então, meu olhar caiu em
seu ventre, minhas mãos se ergueram e eu segurei sua barriga,
sentindo o peso do bebê nela.
Meus olhos sobem novamente. Eu a encaro, tão perfeita, suas
sobrancelhas unidas numa dúvida que também corria em mim.
— Eu... — tento começar uma frase, mas meu corpo reagiu as
minhas próprias palavras.
Eu não podia dizer nada. Porque nada havia para ser dito antes
de eu sentir o gosto doce de Liliana. Assim, a puxo em meus braços
e selo minha boca nela.
Oh, Deus... eu senti tanto a sua falta...
Sua barriga redonda toca a minha. Ela não tenta fugir, apesar
de eu não sentir que esteja correspondendo. É como se ela apenas
estivesse carregada em dúvidas. E eu me sinto o maior homem do
mundo, o cara pronto para responder a cada uma delas.
— Liliana — eu murmuro quando nossa boca se separa. Minha
voz sai tão saudosa. — Liliana... eu te procurei por todo lugar...
— Mas, a cara de pau nem treme! — o som do outro lado da
sala me causa um arrepio na espinha.
E então eu me lembro de Catarina. Viro-me para a loira. Por
que ela parece me odiar?
CATORZE

Lorenzo está aqui. Aqui. Ao alcance das minhas mãos. Eu sempre


pensei que nunca mais o veria, e não entendo o que faz diante de
mim, não entendo seu beijo apaixonado e saudoso, e não consigo
formular nenhuma ideia enquanto minha mente vai captando a
mensagem de que o homem que rejeitou minha filha e tentou me
pagar para abortar está tão apaixonadamente perto.
— Qual é o seu problema comigo? — ele pergunta para
Catarina, mas eu não consigo prestar atenção neles.
Ergo minha mão. Eu toco os músculos dos seus braços,
tentando ter certeza de que não é um fantasma ou uma alucinação.
Pedaços das lembranças dele empurrando sua língua na minha
boca, da forma como ele me amou tão carinhosamente, da maneira
como ele foi gentil em me livrar do fardo da minha virgindade gritam
em minha mente. Meu corpo quase avança para ele, buscando um
pouco daquela satisfação.
... Mas, então a minha barriga vibra, meu bebê chuta, e eu
penso na minha filha, que só está viva porque eu tive Catarina ao
meu lado.
— Meu problema? — ela grita.
Catarina é assustadora quando quer.
— O que eu te fiz?
— Olha para Lili agora, e veja o que fez.
Ele gira para mim, talvez esperando ver mágoa ou ódio em
mim, mas eu nunca fui capaz de nutrir esses sentimentos. Eu não
sou como Catarina, que consegue mastigar a raiva e o rancor por
tanto tempo... Ela nunca esqueceu o rapaz que a deixou grávida e da
mãe que a forçou a um aborto. Ela os odeia e os mataria se isso não
a levasse a cadeia.
Mas, no meu caso... Minha mente grita para eu simplesmente
abraçá-lo. Eu quero tanto conhecê-lo, porque eu não sei nada sobre
ele. E Lorenzo é o pai da minha filha. Talvez, se eu desse uma única
chance a ele para falar...
— Você está aqui porque está com medo de Lili pedir pensão,
não? — Catarina pergunta e eu não posso deixar de me contaminar
pelas palavras.
Seria isso?
— Do que está falando?
— Ora... Não se preocupou com a gravidez dela até agora. E
logo quando Lili está prestes a parir, você aparece todo saudoso e
gentil. Acha que tem alguma trouxa aqui? Está com medo de um
escândalo com o magnata dos equipamentos agrícolas!
Ele volve seus olhos para mim. Sua mão se ergue novamente,
e Lorenzo esfrega meu estômago.
— Eu não sabia... — ele murmura.
— Mentira!
A frase enérgica exala de mim. Ele me encara profundamente,
e eu me afasto do seu olhar. Não havia como ele não saber, eu
contei a Nívea e ela entregou o recado.
— Eu não sabia, Liliana — ele insiste.
— Se não sabia, o que está fazendo aqui? — Catarina indaga.
— Eu vim por Liliana.
— E como descobriu onde ela estava? — Catarina persiste. —
Ah, não tente nos enganar, ninguém aqui é idiota.
— Eu juro... Eu... Eu vi um vídeo seu por acaso — ele volveu
seus olhos a loira, sua mão ainda no meu ventre. — E você disse o
nome dela... E isso, enfim, eu fui procurar por informações e achei
uma foto de vocês duas no Google.
Catarina desvia seus olhos de Lorenzo e caí em mim. Ela
parece me perguntar o que eu acho, e sinceramente eu não sei.
Lorenzo parece tão sincero, mas eu mesma avisei sua prima. Além
disso, ele me dispensou como uma prostituta. Na época, eu fiquei
com o dinheiro porque era a única coisa que eu tinha para não ficar
na rua, fato que deve ter reforçado a ele o ato de que eu me vendi.
Meus olhos ardem com lágrimas porque é uma lembrança
dolorosa. O peso da humilhação é profundo. Catarina costumava
dizer que não chorava porque já secou as lágrimas de tanto que
chorou na sua vida, mas eu parecia um poço sem fundo.
Talvez porque, ao contrário dela, eu ainda tinha sonhos de
menina. Uma família, um marido, a cerca branca em volta da casa.
Algo que eu nunca tive, apenas a vontade da felicidade que eu vi em
filmes na televisão.
O bebê se move de novo, apertando minha bexiga. Desde o
quinto mês isso acontece com tanta frequência que é difícil até de
sair de casa, já que eu preciso ir ao banheiro o tempo todo.
— Com licença, vou à toalete — digo, já girando o corpo.
— Agora? — Lorenzo indaga, deixando claro que quer
continuar a conversa.
— Ela está quase parindo, seu retardado! Não sabe que
grávidas precisam mijar o tempo todo, pau no cu — ouço Catarina ao
fundo, enquanto rumo para o corredor.
Eu quase sorrio com o jeito delicado de minha amiga lidar com
as coisas.
— Qual é seu problema comigo? — ele repete a pergunta de
antes.
— Eu odeio covardes. Eu castraria você agora, se pudesse,
para nunca mais engravidar mulher nenhuma e depois abandoná-la
sozinha com o bebê.
— Eu não fiz isso! — ele insiste.
Subitamente, passos atrás de mim. Eu chego na porta do
banheiro, e giro para entrar, mas quando me dou conta, Lorenzo está
ao meu lado.
— Liliana, eu não fiz isso — ele repete. — Eu não te
abandonei. Eu realmente não sabia. Precisa acreditar em mim, com
certeza houve algum mal-entendido.
Ele estava com meio corpo sobre a porta, e eu precisava entrar.
— Com licença — digo, acredito que há aflição na minha voz.
— Liliana, por favor, acredite em mim.
— Sai da frente dela, imbecil! Ou ela vai mijar nos teus pés.
Eu posso dizer que ele obedece de má vontade. Eu cruzo por
ele, e entro no banheiro. Mal posso acreditar quando ele faz menção
de entrar junto. Por sorte, eu sou mais rápida e estendo a mão para
a porta, fechando-a na cara dele.
Catarina e ele estão no corredor, diante da porta. Eu poderia
pedir para eles saírem dali, porque é constrangedor que alguém te
ouça fazer xixi, mas eu estou quase vazando, então me sento no
vaso.
Do lado de fora eu posso ouvir as vozes alteradas, e a
conversa não tão animada. Catarina ofende, e Lorenzo se defende.
“Lorenzo me pediu para entregar um valor para você, a fim de
realizar um aborto. Ele espera que você não o procure mais. Eu sinto
muito Liliana”, a voz de Nívea nunca sairia da minha cabeça.
— Você nunca atendeu um telefonema — Catarina acusou. —
Então...
— Eu dei a Liliana meu número comercial, meu cartão. É minha
prima que cuida desse número. Foi um erro, realmente...
— Então Lili o procurou no hotel que esteve uns dois meses
atrás.
— Lili me procurou? Eu nunca soube disso... Por que os
recepcionistas não me avisaram? — ele parecia questionar a si
mesmo.
— Eles avisaram. Sua prima veio até Lili.
— O quê? Nívea?
Me seco, e me levanto do vaso nesse instante. Puxo a
descarga, lavo minhas mãos. Do lado de fora, há silêncio. Quando
eu saio do banheiro, dou de cara com os olhos arregalados de
Lorenzo.
— Liliana, Nívea nunca me disse...
— Por que você mente? — me sinto exausta. — Sua prima
entregou meu recado. Ela até me ligou depois dizendo que você
estava me oferecendo dinheiro para tirar.
Ele parecia tão chocado. E talvez foi a forma como sua boca se
abriu, num “O” absoluto, ou a maneira como seus olhos cravaram em
mim... era difícil acreditar que ele estava mentindo agora para mim.
QUINZE

Eu quase não consigo acreditar. Claro, eu não duvidava de Liliana,


muito menos do ódio que via nos olhos de Catarina..., mas, Nívea?
Minha prima, a pessoa que mais esteve ao meu lado durante toda a
minha vida?
Eu pensei nas minhas tias e tios. Nos meus primos. Na minha
vasta família que não só aprovava como torcia para que nós dois nos
apaixonássemos e ficássemos juntos. Subitamente, percebi que
Nívea podia, sim, ter um tipo de possessividade sobre mim,
acreditando que, um dia, eu olharia para ela e aceitaria seu amor.
Estou inclinado a ir embora agora, enfrentar Nívea. Como ela
pôde fazer isso comigo? Era indesculpável. Minha prima era minha
melhor amiga, mas isso não lhe dava o direito de interferir assim na
minha vida. Eu simplesmente perdi todo o início da gravidez de
Liliana... E eu podia ter perdido o bebê se Liliana não tivesse o
mínimo apoio para manter a gravidez.
— Nívea nunca me disse nada. Acredite em mim... Eu não fazia
a menor ideia.
Liliana desviou os olhos de mim, buscando Catarina. A loira
deu os ombros.
— Eu acho que ele está falando a verdade, mas nunca posso
me esquecer que homens mentem com a mesma naturalidade que
mulheres passam batom.
— Eu não estou mentindo. Eu nunca... nunca teria rejeitado um
filho.
— É filha. Lili já fez o ultrassom — Catarina contou.
Só então eu me dei conta de que havia realmente uma
menininha no ventre de Liliana. Eu volto a segurar sua barriga, e a
despeito de suas dúvidas, Liliana não foge de mim. Ela permite que
eu tenha contato com a minha filha.
— Eu não rejeitei você, meu amor — eu digo, baixo, para a
barriga, enquanto sinto lágrimas transbordando em meus olhos.
Eu nem acreditava mais que um dia teria filhos. Eu estava a
semanas dos quarenta anos, e esse tipo de sonho já estava se
tornando vago. Até encontrar Liliana naquela rua, eu nunca pensei
que poderia...
Ergo meus olhos. Eu a encaro.
Nunca pensei que poderia gostar de alguém assim. Com toda
essa intensidade.
— Eu acho que vocês devem conversar a sós — Catarina me
surpreende com as palavras.
Até então ela parecia uma leoa protegendo sua cria. Mas,
nesse momento, ela foi apenas humana e sensível. Eu a agradeci,
enquanto ela abria caminho e nos guiava até seu bonito escritório.
Depois que entramos, Catarina fechou a porta atrás de nós.
Liliana foi direto até um sofá embaixo de uma janela que dava
para uma movimentada avenida de Porto Alegre. Ela parecia exausta
em segurar o peso da barriga, e eu entendi isso. Sentei-me ao seu
lado, tentando buscar palavras que pudessem provar que eu dizia a
verdade.
— O que eu posso fazer para que acredite em mim?
— Eu não sei — ela foi tão sincera. — É difícil acreditar, já que
você me dispensou de uma forma tão...
— Dispensei? O que está dizendo?
— No hotel. Depois de termos feito amor.
Como assim, dispensei? Ela sumiu sem qualquer explicação.
— Liliana, eu disse que voltaria ao meio-dia. Quando voltei,
você já não estava mais.
— Sim, porque Nívea me disse que era o que você queria. Que
você costumava levar garotas como eu para o quarto, e ela
precisava “limpar a bagunça” depois. Ela até me pediu para sair
antes das onze para as arrumadeiras limparem tudo e trocarem os
lençóis da cama.
Novamente, eu estava em choque. Nunca levei mulheres para
o quarto. Meus poucos namoros sempre foram comprometidos pela
minha família, que nunca aprovavam ninguém. Eu tive casos que
eles não sabiam, mas as mulheres desapareciam em pouco tempo.
Sempre acreditei que havia algum problema comigo, nunca pensei
que esse problema era Nívea.
— Liliana... eu... Não tenho palavras — balbucio. — Nívea não
me falou que havia te conhecido e eu nunca pedi para ela te mandar
embora. Eu não sou esse tipo de homem. Realmente, fiquei
encantado por você, e queria ficar com você...
— Você me deu dinheiro, como a uma prostituta. — Ela baixou
a face. — E eu peguei, porque estava desesperada...
Pouso minha mão sobre a dela.
— Eu não te paguei pela noite. Só queria te ajudar. Mas nem
pensava que necessitasse do dinheiro, porque na minha cabeça, eu
cuidaria de você dali em diante. Te levaria comigo para Mato Grosso,
e nós... — ela ergue a face e me encara. — Se desse certo, eu acho
que nos casaríamos.
Ela abriu um sorriso tão doce que meu coração doeu por ela.
— Era um bom plano — ela murmurou. — Eu teria adorado.
Teria. No passado.
— Não há chances, mais?
— Sofri e chorei muito quando você não atendeu minhas
ligações, e depois pelo que disse sua prima. Eu até acredito em
você, de que não sabia. Eu entendo que também foi enganado. Mas,
agora há muita dor envolvida, e eu estou com sete meses, e não
posso... Não quero... passar por todo lance da questão familiar, da
sua prima me detestar, nem sei pelo quê.
— Não vai passar. Eu vou despedi-la assim que voltar para
casa. Quero que venha comigo. Que me dê a chance de estar
presente com você na hora do parto, e depois, quando nossa menina
nascer. Eu quero ser um pai. E talvez, se um dia conseguir perdoar...
Eu quero...
Eu não terminei. Faltou-me coragem para insistir no lance
romântico, porque entendia que ela estava grávida e magoada. E
isso seria apenas colocar fogo num palheiro, poderia ter o efeito
contrário ao meu desejo. Liliana poderia fugir de mim, ao invés de
entregar-se ao calor que havia entre nós.
— Ir com você? — ela repetiu a ideia. — Não sei se devo...
— Claro que vamos falar com o médico para saber se ele te
libera para uma viagem. E também pegaremos um voo particular,
vou pedir para mandarem um jato da empresa vir me buscar em
Porto Alegre. É mais rápido e você ficará mais confortável.
— Mas, Catarina está aqui.
Eu imaginava que a melhor amiga era a pessoa que ela queria
ao lado quando chegasse o momento do parto.
— Ela pode ir vê-la na hora que quiser. Será muito bem-vinda
na minha casa.
Respiro fundo, então jogo a cartada final.
— Liliana, eu sou o pai, e a bebê precisa de mim. Eu quero
estar ao seu lado, mas trabalhando em Mato Grosso, será difícil vir a
Porto Alegre toda semana. Eu farei isso se você não quiser ir, mas...
eu quero estar ao seu lado em cada momento. Eu perdi todos os
momentos até agora por culpa de Nívea, não me faça perder o resto
da gravidez. Por favor.
Ela demora a responder. Parece pensar e pensar, e eu acho
que a resposta será negativa, porque ela não tem um mísero motivo
para me dar uma chance.
Contudo, logo em seguida, meu coração cai em nuvens quando
a percebo assentir.
Liliana tinha um coração de ouro.
DEZESSEIS

Eu cresci sem pai. Catarina até teve um, mas que nunca se
importou em protegê-la. E nós duas fomos vítimas do destino. A vida
não era fácil para as mulheres, especialmente as que não tem quem
as proteja, e eu disse a mim mesma que o motivo de estar
concordando é porque queria que minha bebê tivesse alguém para
cuidá-la se algo, por acaso, me ocorresse.
Se eu tivesse um pai, meu padrasto nunca teria se atrevido a
tentar me estuprar.
Se eu tivesse um pai eu não teria ido para as ruas.
Ao menos eu imaginava isso. Não tinha como ter certeza.
Catarina diz que homens não são confiáveis.
Então, tentei me convencer, e a Catarina, sobre esse
argumento, mesmo sabendo que não era totalmente verdade.
E minha amiga também parecia entender que meus motivos
eram outros. Ela suspirou pesadamente enquanto eu arrumava
minhas roupas.
— Eu entendo você — ela disse, meu coração ficou pequeno
diante das suas palavras. — Eu já amei, sabia?
Sim, eu sabia. E esse amor foi tão grande... tão grande... que
marcou Catarina de um jeito que, agora, ela era incapaz de amar
outra pessoa. Especialmente porque ela foi machucada demais.
Ferida demais.
Observei minhas roupas dobradas na minha mala. Eu estava
levando quase todas que me serviam, e algumas para depois do
parto. Não sei exatamente o que estou fazendo, mas acredito que
ficarei com Lorenzo até um mês ou dois após o nascimento da bebê.
Depois, só Deus sabia.
Não estava esperando romance ou amor. Paixão ou essas
coisas. Só estava esperando que ele agisse como o homem que me
salvou naquela noite. E estava lhe dando uma chance para que ele
pudesse vivenciar um pouco a gravidez.
— Se alguém te magoar, você pode voltar, Lili. Minha porta
sempre estará aberta.
Senti lágrimas nos olhos, e então avancei para Catarina. Eu
nem acreditava que Deus foi tão bom em fazer meu caminho cruzar
com o dela. Catarina era tão dura no trato, que provavelmente não
fosse a necessidade, eu nunca teria me aproximado. E eu nunca
teria descoberto a pessoa incrível que ela era por baixo da casca
grossa.
— Confronte a tal Nívea e descubra quem está falando a
verdade — minha amiga aconselhou.
— Sinceramente, nem sei como fazer isso.
— Precisa fazer. Se ela mentiu, não permita que se aproxime.
— Sim. Eu quero ter um parto tranquilo.
— Quando chegar a hora, me avise. E me mande mensagens
todos os dias, quero saber como está.
Assenti.
Depois, rumei a porta do meu quarto, e a abri. Lorenzo estava
do lado de fora, mãos nos bolsos, parecia me esperar.
— Pegue a mala — Catarina disse a ele. — Não está
esperando que uma grávida erga peso, está?
Ele a fuzilou com os olhos, e eu quase ri.
— Se não cuidar da minha amiga, eu juro que destruo você —
ela continuou, ameaçadora, quando ele cruzou por nós.
— Vou cuidar. Vou me casar com ela.
Eu sei que a frase escapou de seus lábios, porque ele
enrubesceu como um garoto. Catarina também pareceu em choque
por alguns segundos, então retrucou.
— Você não vai forçá-la a um casamento. Não é porque ela é
jovem que será...
— Não farei isso. Eu juro — ele rebateu.
— Não é porque tem dinheiro que pode tudo. Eu tenho
influência, eu destruo sua imagem no país inteiro estalando os
dedos.
— Não vou forçar Liliana. Jamais faria isso. Apenas, se ela
quiser... Nossa filha pode nascer numa família tradicional.
Era impressionante que eles discutiam um casamento tão
naturalmente. As coisas não deviam acontecer assim. Lorenzo nem
me conhecia, eu também não sabia nada dele. Precisávamos
conviver para, ao menos, sermos amigos.
— Família tradicional? Olhe a barriga dela! Que noiva
tradicional casa quase parindo?
— As coisas não deviam ser assim. Eu contratei o melhor
investigador do país para encontrá-la, mas como o cara conseguiria
alguma informação apenas com um primeiro nome. Aliás, qual seu
sobrenome? — ele girou para mim, e eu pareci surpresa. Era a
primeira vez que me perguntava isso.
— Silva. Liliana da Silva.
— Você pode se tornar Liliana Colombo a hora que quiser,
querida — ele disse.
Eu quase sorri em retribuição ao seu próprio sorriso. Lorenzo
era sempre tão doce quando falava comigo.
— Nossa, que vantagem! Casar-se com um velho como você.
Eu sabia que Catarina estava provocando-o apenas para
despertar a raiva de Lorenzo, talvez fazê-lo explodir, e assim ter um
bom argumento para não deixá-lo me levar. Eu esperei para ver a
reação, porque se ele explodisse com ela, eu não iria. Não estava
disposta a viver ao lado de um homem agressivo depois de tudo que
passei.
— Eu vou fazer quarenta.
— Jura? Tem cara de, pelo menos, sessenta.
Houve um breve silêncio, e então Lorenzo explodiu... Numa
gargalhada. Nós duas nos encaramos, surpresas.
— Você vai cuidar dela, não vai? — Catarina indagou,
parecendo enfim vencida.
— Com a minha vida. Não se preocupe. Te dou minha palavra.
— E o que fará com a sua prima?
— Ainda não sei. Minha família... — ele emudeceu por alguns
segundos. — Eu vivo numa enorme propriedade em Chapada dos
Guimarães, perto de Cuiabá. Meus pais morreram há muitos anos...
E meus tios e primos moram todos perto, na mesma propriedade. A
casa principal é minha, e moro sozinho com a governanta. Mas...
Meus parentes estão ao meu redor o tempo todo. Não será fácil
confrontar Nívea, mas eu devia ter feito isso há muito tempo, desde
que percebi seus sentimentos por mim.
A situação era de fato complicada, mas há coisas na vida de
que não há como escapar.
DEZESSETE

Eu estendi a mão para a mulher que me aguardava no hangar. Não


foi difícil conseguir uma enfermeira para nos acompanhar na viagem.
Bastou ligar para o hospital mais próximo e oferecer uma alta
quantia.
Depois de saímos da casa de Catarina, passamos por uma
UPA para um médico avaliar Liliana. E então buscamos minhas
coisas no hotel. Em duas horas e meia chegamos no Aeroporto.
— Essa é Liliana — eu apontei para a jovem atrás de mim. —
Ela é... — As palavras se perderam em meus pensamentos. Por fim,
completei: — a mãe do meu filho.
— Oh, muito prazer — a mulher estendeu a mão para Liliana
também. — Sou Nadir. Trabalho na área de obstetrícia do Santa
Casa. Qualquer coisa que sentir durante o voo, poderá falar comigo.
Liliana sorriu, aceitando a oferta com a sua eterna doçura. Eu
amava a forma como ela sempre parecia disposta a acreditar nas
pessoas, apesar do passado difícil que a acometeu. Eu me
perguntava se a mãe ou o padrasto conseguiram encontrá-la, apesar
da resposta ser claramente negativa. Catarina colocaria qualquer
coitado para correr.
E com a maioridade, Liliana claramente se sentia livre. Quão
difícil foi sua vida até então?
Nós cruzamos o hangar, enquanto nos aproximamos do jatinho
que nos levaria para casa. Até então, eu sempre pensei que a minha
vida havia sido complicada, por conta do falecimento dos meus pais.
Meu pai foi primeiro. Um homem tão valoroso, e com tanta bondade
no coração, ficou doente por meses. E então simplesmente apagou
numa noite. Foi dormir e não acordou. Minha mãe, tão voluntariosa e
humana, logo o seguiu, não conseguindo superar o luto. Certa
manhã, a encontrei com a cabeça deitada na mesa do café da
manhã. Eu tinha quinze anos. Foi simplesmente desesperador.
A princípio, a polícia acreditou que eles haviam sido
envenenados. Eu fui o principal suspeito por meses, até os exames
finais virem e decretarem que não era possível averiguar que havia
algum composto químico no corpo de meus pais, especialmente meu
pai, que já havia falecido a mais tempo.
Meus tios então conseguiram apaziguar tudo. E a polícia
encerrou o caso como morte natural. Eu segui minha vida, sendo
cuidado pela minha família, especialmente Nívea que sempre esteve
ao meu lado.
O tempo passou. E o tempo amenizou as fofocas. Aos poucos,
as pessoas da cidade foram me conhecendo melhor, e começaram a
duvidar da primeira tese. Assim como eu tive que aceitar que a vida
é curta e seu final inesperado, o mesmo ocorreu as demais pessoas.
A vida é curta. Por isso eu não queria perder nenhum pedaço
dos dias da minha filha. Eu sorri para Liliana, enquanto a ajudava a
entrar na aeronave. Quando a auxiliei a sentar-se numa das
poltronas, me acomodei ao seu lado.
— Já escolheu um nome? — perguntei a ela.
— Não — ela pousou a mão em cima do ventre. — Queria que
fosse um nome com significado especial, então pensei em Catarina,
mas a própria odiou a ideia, já que odeia o próprio nome e tudo que
venha de sua mãe.
Eu não duvidava daquilo.
— Que tal Maria Elena?
Ela pareceu pensar.
— É um lindo nome.
— Era o nome da minha mãe — contei. — Eu acho que ela
ficaria tão feliz em conhecer a neta.
— Ficaria?
— Ela morreu.
— Faz muito tempo que ela morreu?
— Mais de vinte anos.
— Ela morreu antes de eu nascer — Liliana pareceu
assombrada pelo tempo.
A diferença de idade pesou de uma forma absurda. O que
diabos eu estava fazendo? O que eu fiz? Ela era uma menina,
praticamente uma adolescente. E estava grávida de um bebê meu.
Pensei em como minhas tias reagiriam, e imaginei que não seria da
melhor forma.
Ainda assim, eu protegeria Liliana a qualquer custo. Ela era a
pessoa mais importante da minha vida, já que carregava meu bebê
em seu ventre.
... Nem só por isso. Desde aquela noite que a tive nos braços,
nunca mais pensei em nenhuma outra mulher além dela.
Eu coloco meu cinto de segurança após a instrução do piloto.
Então, vou ajudar Liliana. Eu sorrio ao perceber que seus quadris
preenchem todo o espaço da poltrona. Ela engordou desde que a vi
pela primeira vez. E sua barriga a iluminou de uma forma que jamais
imaginei que veria.
Um pensamento obtuso me corrói. Teríamos uma chance como
homem e mulher, além de pais? Eu conseguiria mostrar a ela que
não havia apenas desejo carnal em meu ser. Que eu queria
conhecê-la melhor, saber qual sua comida favorita, suas cores
favoritas... Que eu queria me tornar seu amigo além de seu amante?
O jato se movimenta, e logo decola. Ela arregala os olhos, e eu
preciso conter um sorriso.
— Eu sempre vivo coisas novas com você — ela me diz, e eu
sorrio, porque a lembrança daquela outra coisa nova me toma de
repente.
Minha língua queima com a memória de traçar o interior de
Liliana. Céus, quando ela gemeu enquanto eu afundei minha boca
em sua boceta. Eu usei um linguajar que não devia com ela, mas
estava perdido na intensidade do sexo. Lembro-me de quase ter
gozado nas calças como se fosse um menino.
Fazia muito tempo que eu não me sentia assim. Na verdade,
nunca havia me sentido assim. Sexo sempre foi algo mecânico, para
satisfação pessoal. Algo que você quer limpar depois do clímax,
torcendo para a mulher ir embora o mais rápido possível para que
pudesse tomar um banho.
Mas, com Liliana... Lembro-me de ter dormido abraçado a ela,
nosso gozo entre nós.
Minha mão segura a dela, enquanto o jato sobe mais, e faz
uma curva. A noite parece escura e tranquila lá fora, e eu sinto que
Liliana está exausta, então ela aceita meu carinho com aquiescência
e depois se acomoda melhor para cochilar.

✽✽✽

Cuiabá estava queimando, como era todos os dias. Eu mal


conseguia acreditar como estava quente e abafado, o ar tão úmido, e
imaginei que Liliana sentiria a diferença imediatamente.
Nós cruzamos pelo Marechal Rondon, Nadir segurando a mão
de Liliana apenas como medida de segurança, já que,
surpreendentemente, Liliana não parecia estar estranhando o ar
diferente.
Talvez seja a juventude, ou apenas a sua forte característica de
sobrevivente. Ela realmente se adaptava o melhor que pudesse.
Eu vi José ao longe. Havia ligado para minha secretária Deise e
pedido que providenciasse o motorista. Deise era sempre tão
eficiente, o que me aliviou.
Eu apresentei José a Liliana, e pedi que ele sempre estivesse à
sua disposição. O homem sorriu para mim, ansioso para talvez
perguntar quem era a grávida, mas ele foi discreto o suficiente para
não fazer isso.
Depois de acomodar Liliana na Suv, eu chamei Nadir de um
canto.
— Sei que lhe prometi que o piloto a levaria imediatamente
para Porto Alegre, mas se quiser passar a noite em minha casa será
bem-vinda — disse a Nadir.
A mulher sorriu.
— Eu aceito, senhor. Além disso, depois de um voo de cinco
horas, acho que seria melhor eu estar por perto caso ocorra algo
durante a noite. Depois, acredito, a levará a um médico para
encaminhar o acompanhamento aqui em Mato Grosso, não?
Eu assenti.
— Sobre a vida sexual de vocês — a mulher foi tão profissional
na colocação que eu quase não me envergonhei sobre o assunto ter
sido trazido à tona de uma forma tão obtusa. — É melhor esperar até
o médico vê-la. Sempre dizemos que não há problema que as
mamães façam sexo, mas pelo tempo de gestação de Liliana, acho
que isso possa ser desconfortável.
Assenti novamente. É verdade que eu pensava em Liliana
desde o momento que eu a perdi. Eu imaginava suas pernas
cruzadas na minha cintura, seu corpo quicando sobre o meu..., mas,
não... não estava pensando em forçar nada a ela.
No momento, eu só queria tê-la por perto. Só respirar o mesmo
ar que ela.
Meu celular vibrou, interrompendo nossa conversa. Nadir foi em
direção ao carro, enquanto eu puxava o aparelho do bolso e via o
nome de Catarina iluminando a tela. Eu havia dado meu número a
ela, mas não esperava suas ligações tão cedo.
— Como foi o voo?
— Foi tudo tranquilo — disse, me acomodando no banco ao
lado de José. — Estamos saindo do aeroporto agora.
Há um breve silêncio, seguido por uma frase que já se tornou
um mantra vindo de Catarina:
— Cuide dela.
— Eu vou cuidar. Com minha vida. — Jurei.
Nunca pensei que isso seria tão real.
DEZOITO

Apesar da escuridão reinante, eu pude ver a enorme mansão que


se erigia ao céu. Era tão grande que, à entrada da propriedade, eu
quase acreditava que tocava as nuvens.
Eu estava tão cansada, mas ainda assim não conseguia deixar
de me focar na beleza do lugar. A localidade estava no cerrado, mas
era possível ver as enormes montanhas de pedra adiante, e as
muitas árvores que a cercavam.
Era quase um paraíso. Eu mal podia esperar para vê-la a luz do
sol.
O carro estacionou diante da enorme escadaria da mansão.
Mesmo sendo perto das três da manhã – acreditava eu – uma
mulher aguardava na entrada. Ela me encarou com assombro
quando eu desci, seus olhos focados na minha barriga. Então,
volveu-se para Lorenzo.
— Liliana — ele me apresentou. — O bebê... é meu filho.
O fato de ele jogar de supetão me fez arregalar os olhos. A
mulher torceu as mãos em um avental, enquanto parecia meditar em
tudo que estava acontecendo.
— Seus tios não vão gostar — ela cochichou para ele, o que
me entristeceu, mas eu não estava aqui pelos tios de Lorenzo. Meu
propósito era dar a Lorenzo a chance de ser pai, e a minha bebê a
chance de ter um homem que a protegesse.
— Isso não me importa, Shirley.
A mulher pareceu meditar nas palavras. Então, ela suspirou
pesadamente, e se aproximou de mim. A esse momento, Nadir já
estava ao meu lado, e nem nos permitiu conversar.
— Ela precisa descansar — disse a outra. — Está grávida de
sete meses, e encarou um voo de mais de cinco horas.
— Oh Deus! — Shirley imediatamente percebeu a urgência, e
delicadamente me segurou nos braços. — Venha, criança, vou te
arrumar um quarto confortável.
— Coloque-a no meu quarto, Shirley — Lorenzo interveio. — É
o lugar mais confortável da casa.
Eu não sei direito o que a tal Shirley pensou diante das
palavras, e sinceramente eu não estava com disposição de negar
nada. Estava exausta, e simplesmente caminhei para dentro da
mansão.
O bebê se mexeu e eu segurei minha barriga com as duas
mãos. Isso pouco antes de erguer meus olhos e dar de cara com
uma enorme escadaria que levava ao andar superior. Ao redor, havia
um rol com lustre de cristal, e muitos moveis antigos, quase
assemelhando-se a um hotel histórico.
Era um lugar imenso. Com certeza iria querer conhecê-lo
simplesmente porque gostava de ver coisas bonitas, mas agora tudo
que eu pensava era em como eu subiria as escadas.
Subitamente, minha cabeça gira. Levo cinco segundos para
perceber que o chão mudou de lado porque Lorenzo me ergueu em
seus braços. Ele era tão grande que meu peso não pareceu um
problema. Eu nem reclamei da cena, simplesmente pus um dos
meus braços no pescoço dele e deixei que ele me levasse.
— O que você tem na cabeça de colocar uma menina para
voar, grávida de sete meses? — ouvi a reclamação de Shirley.
— Eu só soube que ela estava grávida depois de reencontrá-la
— ele contou, e a mulher ergueu as sobrancelhas.
Com o canto dos olhos, vi Nadir e José – este, carregando
minha mala – encarando um ao outro.
— Ela é a mulher de quem me contou?
— Sim.
— Não me disse que era tão nova — Shirley ralhou. — Não é
menor de idade, é?
— Não.
Nós entramos em um quarto enorme, extremamente luxuoso. O
quarto por si só parecia um apartamento. Havia uma antessala com
um bonito sofá branco. Um pouco à frente, uma mesa redonda
adornada com flores e algumas cadeiras que davam de frente a uma
enorme janela com vista para as montanhas. No fundo, uma cama
em dossel com lençóis claros.
Lorenzo me pôs no sofá. Nadir sentou-se ao meu lado,
pegando meu pulso e me observando. Vi José colocando a mala em
cima da mesa, e pedindo licença. Shirley foi direto para a cama,
arrumar os lençóis.
— Gostaria de tomar um banho — disse a Nadir. — Estou
suando. O lugar é quente.
— Vou ligar o ar-condicionado — Shirley comentou. — Como
Lorenzo não estava na cidade, não deixei ligado para recebê-lo.
Shirley era tão rápida que eu quase fiquei tonta. Ela zanzava de
um lado para o outro, fazendo tudo ao mesmo tempo. As roupas
começaram a sair da mala e irem para um closet, enquanto toalhas
brancas eram levadas ao banheiro. Lorenzo e ela cochichavam
sempre que cruzavam um pelo outro, eu não podia ouvir o que
diziam.
— Nívea ficará louca — por fim, a voz de Shirley pareceu me
alçar.
Eu senti meu coração acelerar. Era um problema que eu não
queria enfrentar. Não agora. Eu só queria ter um momento tranquilo
com Lorenzo, conhecer o pai da minha filha, e depois ter um parto
pacífico.
— Eu não quero causar problemas — disse, fazendo com que
ambos me encarassem, como que só agora lembrassem da minha
presença.
Houve um breve silêncio constrangedor.
— Não teremos nenhum problema, Liliana — Lorenzo
assegurou.
Foi um alívio quando Nadir me ajudou a ir ao banheiro para que
eu pudesse me banhar. Lá, encontrei uma banheira com água morna
e perfumada.
— Vou te dar privacidade — Lorenzo disse, e só então percebi
que ele estava no banheiro conosco. — Você quer algo para comer,
quando terminar de tomar banho?
Neguei. Eu só precisava da cama.
Quando a porta do banheiro se fechou, encarei Nadir. Ela
parecia solidária, enquanto me ajudava a tirar a calça.
— Criança — murmurou. — Parece que você vai enfrentar uma
guerra por aqui.
— A prima dele nos separou, meses atrás. Eu não sabia disso
— contei. — E pensei que ele havia rejeitado nosso bebê. Foi isso
que ela me disse. Sinceramente, não sei como vou encará-la.
— Encará-la? Deve colocar essa mulher para correr da casa.
Que cretina!
— Eu não quero problemas — repeti. — Além disso, Lorenzo é
próximo da prima. Eles trabalham juntos.
— Ah, menina... Eu ficaria por aqui se pudesse. E te ajudaria.
Por Deus, eu expulsaria essa prima da vida dele estalando os
dedos...
Eu sorri para Nadir. Sei que esse instinto protetor vinha,
principalmente, porque eu parecia ter menos idade do que eu
realmente tinha. Mas, eu não era mais uma criança. Nunca fui uma
criança. Minha infância foi roubada, e minha juventude dificultada. E
ainda assim eu estava aqui. Eu era forte e valente. Sobrevivente.
No fundo, tinha até pena de Nívea, se ela tentasse novamente
cruzar meu caminho. Agora eu era mãe. Que ninguém se enganasse
com meu temperamento brando, eu faria tudo para proteger meu
bebê.
DEZENOVE

Senti um déjà-vu ao sair do banheiro e ver Lorenzo sentado à mesa,


me aguardando. Dessa vez não havia comida ali, mas ele parecia ter
a mesma ansiedade no olhar enquanto esperava-me.
— Eu vou dormir no mesmo quarto — ele me contou, e eu
arqueei minhas sobrancelhas porque realmente não esperava isso.
— Assim, estarei aqui se precisar ir ao banheiro, ou sentir algum
enjoo... Também sei que não foi uma noite fácil, acho que é mais
seguro manter meus olhos em você.
Não sabia direito o que dizer. Normalmente, pediria por
privacidade. Mas, com toda sinceridade, não me incomodava
Lorenzo estar tão perto.
— Onde você vai dormir? — indaguei, querendo saber se ele
iria se deitar na enorme cama comigo.
Isso também não me incomodava. Na verdade, eu até queria.
Precisei conter minha língua ansiosa em pedir-lhe que se deitasse ao
meu lado, e simplesmente assenti quando ele e respondeu que se
deitaria no sofá.
Eu estava nua por debaixo do robe atoalhado que Shirley havia
colocado no banheiro. Eu não estava com disposição para procurar
uma camisola, e o tecido desse robe parecia tão macio e confortável
que eu simplesmente puxei as cobertas, e resvalei para debaixo
delas.
— Shirley é alguma parente? — indaguei, enquanto ele se
movia até uma parede e desligava as luzes.
Apenas a luz lateral e amarelada de um abajur tomou conta do
ambiente. Eu senti meus olhos pesarem pelo cansaço.
— Não. Ela é a governanta. Já o era quando minha mãe ainda
vivia. Ficou comigo depois de tudo.
— Tudo?
— Da morte dos meus pais.
Ele já havia falado disso. Eu não lembrava direito da história.
— Hum... — murmurei. — Como eles morreram?
— Meu pai ficou doente, e depois se foi. Minha mãe
simplesmente apagou depois disso.
Isso... ele já tinha me falado. Fazia mais de vinte anos, mas a
dor ainda era latente em seu tom de voz.
— Eu sinto muito.
Escuto o som de Lorenzo mexendo-se no sofá. Está quente,
mas pelo canto dos olhos eu o percebo estendendo a coberta sobre
suas pernas.
— Eu tenho uma família muito grande, então tive muito apoio.
Tenho tios, tias, primos e primas... Você conhecerá alguns, amanhã.
Eu não sabia se estava preparada para um encontro.
— Pelo tom de Shirley, quando falou com você, eu não acho
que sua família irá me aceitar.
Houve um breve silêncio.
— Quem perderá é eles. Você é a mãe da minha filha, então...
é prioridade agora.
A mãe da filha dele. Estranhamente, sua frase me deixou triste.
Parecia que a única coisa que importava agora era o fato de eu ser
uma incubadora. Lorenzo foi gentil e delicado comigo desde que me
conheceu, mas eu não imaginava que ele tivesse qualquer
sentimento por mim.
Claro que não teria. Nós nem nos conhecemos direito. E, ainda
assim, isso me deixava infeliz. Uma parte de mim, provavelmente,
ainda tinha sonhos românticos, de que ele se apaixonasse por mim e
tivéssemos uma vida junto ao nosso bebê. Catarina dizia que eu era
assim porque era jovem demais, e isso iria passar.
A realidade me faria acordar. A vida não era uma novela das
nove.
— Liliana — a voz dele emergiu no quarto escurecido. —
Obrigado por estar aqui.
Meus mamilos endurecem num clamor estranho. Não sei por
quê. Talvez tenha sido o tom grave com que ele chamou meu nome.
Talvez tenha sido a maneira como ele colocou as palavras. Apenas,
um latejar se forma entre minhas pernas, num desejo incontido que
só vivenciei uma vez antes.
Com ele. Naquela noite.
Eu tentei me livrar dos pensamentos, mas a memória da forma
como Lorenzo fez amor comigo me tomou de assalto. Eu quase
podia sentir a carne dele afundando-se em mim mais uma vez.
Devem ser os hormônios...
— É o certo — respondi. — Maria Elena precisa do pai.
Houve uma suspensão de respiração de ambos.
Repentinamente, todavia, ele deu um salto do sofá e correu até a
cama. Eu me sentei no exato instante que ele também se sentava ao
meu lado.
— Está falando sério? Escolheu esse nome?
Reviro os olhos, porque ele parece um garotinho.
— Sim. Era o nome que você queria, não era?
Então as mãos dele seguram meu rosto, e logo ele me puxa
para si. Sua boca toma a minha, e todo meu corpo clama pelo
contato.
É tão bom que eu quero que dure para sempre. Mas, a culpa
parece assolar Lorenzo, que me solta em seguida, e se afasta.
— Eu sinto muito... eu...
Ele se levanta, e começa a caminhar para longe. Eu quero
dizer que estou feliz, que quero seus beijos, que anseio por uma vida
ao seu lado, mas Lorenzo sai do quarto antes que eu consiga dizer
qualquer coisa.
E, nessa primeira noite, ele não retorna.
VINTE

Depois de uma noite difícil em que me forcei a ficar no quarto de


hóspedes porque não confiava em mim mesmo perto de Liliana,
desci as escadas naquela manhã com a cabeça doendo, como se
estivesse em uma ressaca de álcool. Suspirei enquanto arrumava as
abotoaduras e caminhava em direção à mesa de jantar, onde meu
café da manhã costumava ser posto com regularidade por Shirley.
Eu sei que não foi ela que o fez nessa manhã, porque Shirley
ficou boa parte da noite acordada, e eu lhe dei o dia de folga para
descansar. Shirley era como uma mãe, eu sei que não precisava lhe
oferecer folgas, ela podia tirá-las à sua vontade, mas tentei destacar
o quanto estava grato por ela ter levantado da cama e arrumado tudo
tarde da noite para receber Liliana.
Quando desci naquela manhã, tive a oportunidade de me
despedir de Nadir e agradecê-la por tudo. José a levou até o
Aeroporto, enquanto eu sentava-me à mesa e a neta de José, que
trabalhava aqui nas folgas da faculdade, trazia um bule de café. Ela
me serviu, enquanto me cumprimentava e dizia que a manhã estava
linda. Eu sorri meio sem jeito, enquanto a jovem se afastava.
A manhã estava linda, sim. Mas, não pelo sol costumeiro que
invadia a sala. Era outra luz irradiada em minha casa que aquecia
minha alma.
Ok, eu estava com as bolas doendo, fruto de meu esforço em
me afastar do corpo quente de Liliana. Na noite anterior, quando ela
não recusou meu beijo, eu quase caí em tentação. Precisei de um
esforço sobre-humano para não resvalar minha boca por toda sua
pele.
Ah, Deus... Eu sentia tanta saudade... Eu a tive apenas numa
única noite, mas ela me preencheu de uma forma que nunca mais a
tirei da cabeça. E agora ela estava tão perto, tão indefesa...
Ainda assim, eu precisava respeitá-la. Não apenas por ela, mas
também pela nossa filha. Trouxe Liliana para casa com a desculpa
de cuidar dela e da bebê, e isso não incluía sexo selvagem, por mais
tentado que eu estivesse.
— Lorenzo! — ouço a voz de minha tia Verônica emergindo na
sala. Posso antever sua entrada pelo som alto de seus sapatos de
salto. — É verdade?
Verônica não era parente de sangue. Ela havia se casado com
meu tio Augusto – irmão caçula de meu pai – e era mãe de Nívea.
Desde a morte de minha mãe, tia Verônica estava sempre dentro da
minha casa, e já havia sugerido se mudar para cá, algo que eu
recusei.
Toda a família paterna morava em casas perto da propriedade
principal. Já estavam perto demais, e eu precisava de um mínimo de
privacidade.
— O quê? — questionei, mas no fundo sabia do que ela estava
falando.
Mais sons de saltos. Pude ver tia Tereza e tia Elsa surgindo ao
fundo. Eram as gêmeas do meio, meu pai sempre diziam que eram
uma cópia uma da outra, mas eu via diferenças apesar da
semelhança.
— Oh, Lorenzo... É uma golpista, eu tenho certeza — tia Elsa
destacou e eu neguei com a face.
Pelo jeito as notícias se espalharam enquanto eu dormia. Claro,
José deve ter contado a esposa assim que foi para casa, e ela se
incumbiu de dizer a todos os demais.
— Podem parar. Não sou um garoto. Sou um homem de quase
quarenta anos, e Liliana está grávida de um bebê meu. E ela não é
nenhuma golpista, não vou admitir que a tratem assim. Lembrem-se
de que ela está esperando minha filha no ventre e, agora, é da
família.
— É uma menina? — Tia Tereza bateu palmas em animação,
enquanto se sentava ao meu lado na mesa. — Já sabem o sexo?
Nem poderei preparar uma festa de revelação.
— Quer parar com isso, Tereza? — Elsa lhe deu um tapinha no
ombro. — Sempre tão tonta e emocionada. — Depois, voltou-se para
mim. — Lorenzo, como sabe que o bebê é seu? Precisa pedir um
exame de DNA e...
— Eu já disse para parar — fui firme. — Liliana irá descer para
o café em breve, e eu exijo que tenham respeito por ela.
— Respeito? — Verônica repetiu. — E Nívea? Como pôde
fazer isso a minha filhinha?
A citação do nome me trouxe uma sensação ruim. Eu estava
tentando conter minha raiva por tudo que Nívea fez. Além disso,
prometi a Liliana que não haveria conflitos. Mas, na mesma medida,
não poderia deixar passar em branco tamanha maldade.
Eu até podia entender o despeito. A posse. O amor platônico.
Mas, não alçava a crueldade.
Ela me tirou basicamente toda a gestação de Liliana. Eu não
pude estar nas consultas médicas, nem nos primeiros enjoos. Não
pude segurar nas mãos de Liliana quando ela sentiu medo ou
quando esteve feliz. Não estive lá quando Maria Elena chutou pela
primeira vez. Eu perdi tudo.
Por culpa de minha prima.
Era algo sem perdão.
— Falando em Nívea, onde ela está? Mandei-lhe uma
mensagem ontem à noite para vir até a propriedade hoje.
— Está na Colombo, trabalhando. Porque alguém tem que ter
juízo nessa família!
Eu iria retrucar, mas o som de passos na escada me fez correr
naquela direção. Cheguei a tempo de ver Liliana no terceiro degrau,
e subi rapidamente para ajudá-la.
— Como passou a noite? — perguntei.
— Eu dormi bem — ela respondeu, com um sorriso.
Meu coração transbordou diante disso. Eu realmente pensei
que pudesse tê-la incomodado com meu interesse na noite anterior,
mas Liliana estava claramente disposta a me perdoar por ter forçado
a barra.
Ah, céus... Não importa o quê... eu não vou deixar você ir
embora nunca mais...
Eu segurei seu braço, enquanto descíamos vagarosamente as
escadas. A barriga de Liliana era pontuda e enorme, e como ela
usava um vestido solto de algodão, pareceu ainda maior.
Quando chegamos aos pés da escada, pude ver as três
mulheres nos encarando. Resolvi apresentá-las:
— Liliana, essas são minhas tias: Tereza e Elsa. E essa é
Verônica.
Vi Tereza sorrir e dar um passo para cumprimentar Liliana, mas
acabou travando depois de receber um cutucão da irmã. Era uma
estranha relação, a das duas. Era como se tia Elsa estivesse o
tempo todo segurando a irmã de ser espontânea.
— Então você está esperando um filho de Lorenzo? —
Verônica se antecipou. — Nos explique isso, já que nunca ouvimos
falar de você antes.
O tom era tão agressivo que eu intervi imediatamente.
— Liliana não tem que dar explicações.
— Somos sua família, Lorenzo — Verônica retrucou.
— Liliana também é — apontei. — É a mãe da minha filha.
Peço que respeitem isso, ou pedirei que saíam.
Elsa e Tereza abriram a boca, chocadas, enquanto Verônica
parecia mastigar a informação como se fosse um alimento
estragado. Por fim, ela suspirou pesadamente, antes de dar meia
volta.
— Falarei ao seu tio — ameaçou, indo embora, como se eu
ainda tivesse quinze anos e morresse de medo dos mais velhos.
Quando seu perfume forte deixou o recinto, eu me voltei para
Liliana. Para meu pânico, seu lábio inferior começou a tremer, e
começo a acreditar que ela vai chorar. O que eu faço?
— Não fique assim, meu bem — Tereza disse, indo até ela e
segurando suas mãos. — Somos apenas tias preocupadas.
Para minha surpresa, isso parece amenizar os sentimentos de
Liliana, que aceita caminhar com Tereza até a mesa.
— Então, nos conte como se conhecerem — Tereza pediu de
um jeito muito gentil.
— Foi no Sul — Liliana disse. — Numa pequena cidade do
interior.
Ela não quis dizer mais. Vi a vergonha em seus olhos.
— Eu estava a negócios na cidade — disse, enquanto voltava a
mesa. Tia Elsa sentou-se ao meu lado, e me arrumou um copo de
suco de laranja enquanto Tereza fez o mesmo por Liliana. — Nós
nos conhecemos, e... enfim... Ela está grávida.
— E por que não nos contou isso antes? — Elsa voltou ao tom
urgente, e eu tentei respirar fundo para não perder a paciência com
minha tia.
— Ele não sabia — Liliana disse. — Houve alguns
desencontros.
Elsa desviou seus olhos de Liliana e me encarou, exigindo que
eu explicasse melhor. Mas, o que eu diria? Transamos em uma noite,
quando Liliana ainda era menor de idade, e por causa de Nívea eu
fiquei fora de sua vida até a noite passada?
— Alguns desencontros... — Elsa repetiu. — Como ficará Nívea
nessa história toda?
Puta que pariu! Minha tia não tinha realmente papas na língua.
— Como ela ficaria? O que importa?
Eu não olhei para Liliana porque não queria ver seus olhos
agora. Era uma merda que toda família realmente acreditava que
Nívea e eu nos casaríamos e teríamos uma vida juntos. Eu devia tê-
la afastado antes, e não aceitado aquele tipo de sugestão.
— Nívea não merecia isso — Tereza destacou e eu pigarreei,
completamente irritado.
— Merecia o quê? Eu nunca tive nenhum romance com Nívea.
Isso foi coisa que vocês colocaram na cabeça, e ela também. Aliás,
eu me lembro de, na infância, ela ser namoradinha de seu filho,
Henrique. E a senhora os separou. Por que não a quer como nora,
mas a quer como minha esposa?
Tereza pareceu chocada pelas palavras.
— Não os separei. Eles eram só crianças, e logo Nívea se
descobriu apaixonada por você.
Eu exalei, irritado, enquanto Elsa completava:
— Ela esteve ao seu lado todos esses anos.
— Como minha funcionária! E foi bem paga para isso. — Eu
respirei fundo novamente, tentando obter novamente o controle. —
Tia Elsa, não quero mais que traga esse assunto. Eu sou adulto, e eu
já tomei minha decisão. O mesmo vale para você, tia Tereza.
O peso das minhas palavras caiu como uma bomba. Elsa
levantou-se num salto, quase derrubando tudo no meu colo. Eu
pensei que ela gritaria comigo, mas seu olhar caiu em uma Liliana
obviamente receosa.
— Você nunca será aceita como uma de nós! — Elsa afirmou, e
então se afastou, em passos firmes e pesados.
Eu estava chocado. Claro, eu não esperava que a família
recebesse Liliana de braços abertos, mas achei que todos teriam um
mínimo de compaixão por seu estado avançado. Ou que ao menos
fingiriam na sua frente, e me cobrariam nas suas costas.
Mas, que a tratassem dessa forma... Era revoltante. Eu estava
prestes a me levantar e ir expulsar todos os meus parentes das
minhas terras, quando meu olhar encontrou o de Liliana. Ela pareceu
abrandar tudo.
— Com certeza, deve ter sido muito chocante para todos —
amenizou.
— Ninguém tem o direito de falar assim com você.
— Está tudo bem, Lorenzo. Não sou feita de açúcar.
Eu sabia que não. Ela era forte, mais do que sua aparência
delicada mostrava.
— Eu sinto muito — as palavras de Tereza por fim me
mantiveram no lugar. — Isso vai passar e a família vai te aceitar.
Questão de tempo. Aliás, tenho um filho, Henrique, ele vai adorar
você. E meu marido, João, também ficará tão feliz de tê-la aqui.
Estamos ficando velhos e Henrique ainda não nos deu um neto...
Poderemos considerar sua menininha como nossa netinha?
Ela acena com a cabeça.
— Ótimo. E não deixe que a família amedronte você. Eles
devem estar magoados e desconfiados, mas vai passar. Minha irmã,
Elsa, especialmente, tem um temperamento muito difícil, mas é uma
pessoa maravilhosa.
Aquilo era verdade. Eu estava muito triste pela maneira que tia
Elsa tratou Liliana, especialmente porque ela era minha tia favorita.
— Minha melhor amiga também é temperamental, mas é
incrível. Então, estou acostumada a rompantes — Liliana comentou.
Tereza acenou.
— Diga-me... E o enxoval?
— Eu ainda não comprei muita coisa...
— Ah, mas sua bebê será uma Colombo, e precisa se vestir
como uma rainha. — Ela pareceu pensar. — Ah, vamos juntas fazer
compras?
Liliana me encarou. Eu assenti, mas isso não pareceu
tranquilizá-la.
— Desculpe... Eu não tenho muito dinheiro, e estou
economizando para depois da bebê nascer — Liliana disse, por fim,
encarando Tereza.
Minha tia volveu seus olhos para mim, espantada. Depois, riu.
— Meu amor, se tem algo que você não precisa mais fazer
nessa vida é economizar. Sua bebê será a herdeira de um império.
Agora, tome seu café da manhã e depois vamos para Cuiabá.
Liliana voltou a olhar para mim como se esperasse que eu
decidisse por ela.
— Compre coisas lindas para nossa filha — eu disse.
E, enfim, ela concordou.
VINTE E UM

Eu ainda estava cansada da viagem, mas não quis ser


desagradável com a única pessoa da família de Lorenzo que não
pareceu me odiar. Claro, eu esperava que a família tivesse certa
estranheza a minha presença, mas que fossem tão claramente
desagradáveis foi algo que me chocou.
Ainda assim, conforme prometeu, Lorenzo ficou do meu lado.
Isso apenas reforçava meu instinto de que ele também havia sido
enganado pela prima.
E isso poderia mudar tudo, não poderia? Lembro-me de minhas
conversas noturnas com Catarina, onde ela me garantia que odiava
o ex-namorado, o homem que a abandonou grávida. E eu realmente
quis odiar Lorenzo, quando ele não quis saber do bebê. Contudo,
nunca aconteceu, mesmo que eu tenha me esforçado pelo
sentimento.
A verdade é que só de pensar nele, meu coração disparava. As
memórias de sua gentileza quando me desvirginou ainda aquecia
meu corpo. Eu estava enorme, grávida e toda dolorida pelo peso da
barriga, e ainda assim eu adoraria que ele me tocasse como fez
naquela noite, sete meses atrás.
— O que você acha desse vestidinho cor-de-rosa?
Olhei Tereza e sorri, estendendo a mão para a peça. Meus
dedos acariciaram o tecido, eu podia ver minha filhinha usando.
— Eu adorei.
— Vamos levar, então.
José, o motorista, já estava cheio de sacolas. E ele já havia ido
ao carro três vezes, para desabastecer as sacolas lá. Compramos
lençóis, roupas... até mesmo um berço. Foi emocionante comprar
sem me preocupar em gastar, apesar de estar preocupada de como
Lorenzo ficaria quando visse o valor de tudo.
Mas, Tereza insistiu que eu não economizasse. E Maria Elena
realmente precisava de um enxoval.
— Vamos tomar um refresco? — Tereza indagou, quando
saímos de uma das lojas daquele enorme shopping.
— Oh, sim, por favor — eu respondi, ansiosa por um suco de
laranja.
Enquanto nos sentávamos e éramos atendidas por uma
garçonete, eu olhei em volta, aquelas muitas pessoas de roupas
curtas – pelo calor da cidade – zanzando de um lado para o outro,
felizes.
— Você gostou daqui?
— Sim, é tudo muito bonito — respondi. Acreditei que ela
estava falando do shopping, mas quando a encarei, percebi que a
pergunta tinha outro significado. — A casa é linda. Estou ansiosa
para ver a propriedade, porque ontem, no escuro, eu pouco vi...
Contudo, não posso negar que sua irmã e a outra tia de Lorenzo me
assustaram um pouco.
— Oh, não fique assim... — Tereza estendeu a mão pela mesa
e segurou a minha. — Elsa é meio... direta. E Verônica não é uma
má pessoa. Aliás, Verônica é muito amiga minha. Nós até
sonhávamos, anos antes, que Nívea e Henrique se apaixonassem e
se casassem, mas quando cresceram, Nívea se apaixonou por
Lorenzo. Então, os planos mudaram. E, francamente, toda a família
acreditava que eles ficariam juntos. Assim, eu peço desculpas pela
reação delas, mas... foi muito surpreendente, porque Lorenzo nunca
falou nada sobre você.
A frase final me tocou muito. Lorenzo nunca falou sobre mim.
Eu sempre falei dele a Catarina. Acho que aí está a diferença entre
nós, sobre o que sentimos. Quando ele me procurou e viu minha
barriga, decidiu que eu devia voltar a sua vida. Por causa da barriga,
provavelmente. Não significava que ele era um homem mau, apenas
era prático e sabia o que queria. Era eu que estava uma bagunça
emocional.
— Explique melhor sobre como se conheceram? Nívea nunca
deixa Lorenzo sozinho...
— Nós nos encontramos num evento, e passamos a noite
juntos — contei.
— Um caso de uma noite... — ela mordiscou as palavras, e eu
fiquei com vergonha disso.
Com certeza ela acreditava que eu iria a cama com qualquer
um.
— Sim..., mas, foi... diferente.
Céus, eu estava lívida de vergonha. Não sabia direito como
usar as palavras. E não estava disposta a contar a ela que eu havia
sofrido diversos abusos emocionais de minha mãe e fugia de um
estupro do meu padrasto.
— Sei... — balbuciou. — E por que não ficou com ele no dia
seguinte?
— Nívea me encontrou no quarto e disse que... ah, desculpe...
Eu não quero falar disso.
Eu não estava aqui para causar intrigas, nem problemas. Eu só
queria a chance de minha filha ter uma família.
— Ok. Me fale sobre você... Tem alguma profissão? No que é
formada?
— Eu só estudei até o quarto ano do ensino fundamental.
Era tanta vergonha que eu nem sabia onde me enfiar. O lance
de uma noite, com uma quase analfabeta. E quando eles soubessem
do meu passado...? Não teria como eu esconder quando
perguntassem sobre meus pais.
— Ah — ela também pareceu muito constrangida. — Bom,
vamos voltar?
A mudança de assunto foi um alívio. Eu concordei rapidamente
e, após tomar meu suco, eu deixei que Tereza me guiasse para o
estacionamento.
VINTE E DOIS

Eu queria um tempo sozinho com Liliana, mas com a família por


perto era difícil. Havia sempre uma tia zanzando pela casa,
recriminando-me pelas minhas escolhas. Dois dos meus tios
voltaram de seus trabalhos na fábrica à tarde, e se uniram no ritual
de insinuações que eu estava recebendo um golpe. Para coroar a
embaraçosa situação, Henrique, meu primo, surgiu na hora do jantar,
pronto para apontar que Liliana era jovem demais e que eu era idiota
de cair em sua conversa.
— Já chega disso tudo! Era para ser o melhor dia da minha
vida, mas o passei tentando esconder Liliana das maledicências de
minha família! Vocês todos deviam estar ao meu lado! — Eu disse a
eles, depois do jantar, quando Shirley acompanhou Liliana para o
quarto.
— Filho... Essa garota... Com certeza é um golpe — tia Tereza,
a única que foi gentil de manhã, agora parecia minada pela maldade
ao redor. — Ela nem tem estudo. É uma coitada. E está grávida?
Como você pode ter certeza de que é seu? Devia sim fazer um
exame de DNA.
— Eu não vou pedir um DNA para ela — reforcei.
— Por que não? Vocês nem se conhecem. Foi caso de uma
noite, ela mesma me contou. Não pode confiar tão cegamente assim.
Havia racionalidade nas palavras, mas também havia a
sensação poderosa em meu peito, algo que eles nunca entenderiam.
É verdade, eu mal conhecia Liliana. E, na mesma medida, eu a
conhecia melhor que todos os outros. Era um encontro de almas, eu
podia lê-la, cada olhar seu. E eu sabia que era o pai do bebê que ela
esperava.
— Eu quero que todos vocês saíam da minha casa, agora —
disse. — A única pessoa autorizada a vir é Nívea. — Estranhamente,
era a única que não colocou os pés aqui. — Preciso de um tempo a
sós com Liliana e o bebê. Não estou expulsando vocês da minha
vida, mas preciso de privacidade.
Houve olhares apavorados no rosto das minhas tias. Meu tio,
Nelson, se ergueu do sofá.
— Sua tia Elsa te criou como um filho — ele declarou,
revoltado, enquanto encarava a esposa. Eu entendia a proteção,
especialmente porque tia Elsa não tinha filhos, e focou-se em me
amar desde que perdi minha mãe. — E agora você a proíbe de estar
na sua casa? Não se preocupe, não voltaremos mais!
Ele saiu pisando duro, e Elsa o seguiu. Era uma sorte que
meus demais tios – por parte de mãe —, e primos, não morassem
tão perto, assim eu precisei aguentar apenas aqueles olhares
avassaladores, mas limitados.
Eu falaria com tio Nelson e tia Elsa mais tarde. Explicaria a
questão. Mas, agora, definitivamente, precisava de um tempo.
Acreditei que poderia aguentar a pressão e proteger Liliana, mas isso
não estava ficando bom. Foi um dia extremamente desgastante, ao
ponto de eu nem conseguir trabalhar em home office. E era apenas o
primeiro dia.
— Você está bem? — Liliana pergunta, assim que entro no
quarto.
Eu é que devia estar perguntando isso a ela.
— Sim.
— Eu ouvi a conversa — ela me contou. — Shirley desceu para
buscar chá, e eu havia esquecido de lhe pedir mel, então tentei ir
atrás dela no corredor, mas acabei ouvindo demais. Não era minha
intenção, mas aconteceu. Quero dizer que se você quiser um exame
de DNA, eu não vejo problemas. Podemos fazer isso assim que o
bebê nascer, e você vai tranquilizar suas tias.
Eu não iria submetê-la a essa humilhação. E não permitiria que
arrancassem sangue de minha filha, a não ser que fosse necessário.
— Eu sei que a bebê é minha, Liliana. E não tenho que provar
nada a ninguém.
Há uma batida na porta, e vejo Shirley entrando com uma
bandeja. O cheiro de chá parece doce e reconfortante, então após
Shirley servir uma xícara para Liliana, eu pego uma para mim.
— Dia difícil — a governanta comenta, seu tom me faz sorrir.
— Apenas muitas mulheres achando que são minha mãe.
Ela negou com a face.
— Maria Elena era única. Elas podem te amar, mas nunca
serão sua mãe. Aliás, sua mãe teria adorado Liliana — Shirley
afirma. — E a teria aceitado de braços abertos porque era doce e
gentil.
Era verdade.
— Querido, você precisa impor limites.
— Estou tentando.
Ela suspirou.
— Deise ligou. Disse que conseguiu agendar uma obstetra para
amanhã.
Aquilo era um alívio.
— Agradeça a ela por mim. E peça para mandar os dados do
consultório para meu Email.
Shirley assentiu, e depois nos deu licença. Quando a porta se
fechou, eu encarei Liliana. Ela ainda parecia cansada, mas não
estava completamente acabada. Era mais um tipo de dia difícil, mas
não impossível, algo que ela podia enfrentar.
— Eu falei com Catarina de tarde — contou.
— É mesmo?
— Sim. Ela me disse que falou com um massoterapeuta daqui
da cidade pela internet, e me indicou uma massagem para o inchaço
nas pernas.
Eu nem sabia que ela estava inchada, já que o vestido cobria
boa parte da pele. Observei seus tornozelos, e realmente pareciam
estar retendo líquidos.
— Catarina sabe tudo sobre você. Acho que estou um pouco
enciumado — admiti.
Ela sorriu. O simples gesto me fez sentar ao seu lado na cama.
— Ela é minha melhor amiga. Esteve ao meu lado nos
momentos difíceis.
Coisa que eu devia ter feito. Céus, eu estava começando a ter
imagens de minhas mãos agarrando a garganta de Nívea por tudo
que me fez.
— Foi uma gestação difícil?
— Nos primeiros meses, eu não conseguia ter nada no
estômago. Depois, começou a retenção de líquido. Mas, no geral,
não foi difícil. Eu tive uma boa amiga que massageava meus pés à
noite, e me dava chocolate para aliviar a vontade de doce.
— Você quer que eu massageie seus pés? — me ofereci.
Ela inclinou a cabeça para um lado, como se estivesse
pensando. Seu cabelo está preso em um coque desleixado, e ele
parece prestes a desabar para um lado. Eu preciso conter minhas
mãos para não enfiar meus dedos entre suas madeixas para sentir
sua suavidade.
Ontem à noite, quase caí em tentação. Mas, eu não era um
moleque e ela precisava de mim de muitas maneiras que não sexual.
— Liliana, sua mãe a encontrou? Sei que ficou morando com
Catarina, mas queria saber se conseguiu se livrar da sua família
terrível?
Ela negou.
— Nunca me achou. Nem sei se procurou. Provavelmente ficou
aliviada por não ter mais uma boca para alimentar. Não que isso lhe
custasse muito. Ela nunca se importou se eu comia ou não.
— Já passou fome?
Liliana assentiu.
— Nunca mais vai passar, Liliana. Eu prometo que vou cuidar
de você.
— Se cuidar de Maria Elena já sou grata. Eu mesma cuido de
mim.
Ela tinha, claramente, receio de entregar-se a mim, de alguma
maneira.
— Liliana, eu... — mordi o lábio inferior. — Eu nunca te esqueci.
A pequena boca adorável e vermelha abriu-se de espanto.
— Não acho que devemos falar sobre isso — ela murmurou,
envergonhada.
— Entenda, eu procurei você. Eu contratei um detetive, mas eu
não tinha um sobrenome. Ele foi àquela cidade e procurou por
alguma pista sobre alguma Liliana, mas ninguém te conhecia. Nem
nos arredores. Procurou na delegacia se alguém havia prestado
queixa sobre uma filha desaparecida. Pensamos que você podia ter
mentido o nome, então procuramos por qualquer jovem de quinze a
vinte anos que sumiu. Mas, nada...
Seus olhos se ergueram para mim. Pareciam, agora,
carregados de uma esperança que eu não podia resistir.
Baixo minha face e encontro seus lábios com os meus. Era um
beijo doce, sem nenhuma outra intenção que não fosse demonstrar a
ela o quanto eu senti sua falta.
VINTE E TRÊS

Meu Deus... Meu Deus...


Por que meu coração batia tão forte e apressadamente?
Oh, Meu Deus... nesse beijo... eu sabia que o amava. Eu mal o
conhecia, mas o amava como se estivéssemos juntos desde o início
dos tempos.
Abri mais meus lábios, permitindo que Lorenzo se afundasse
em minha boca. A língua dele era tão quente, e o toque dela na
minha fez meu corpo inteiro entrar numa fusão de desejo e calor. Eu
precisava das mãos dele tocando meus seios, espalhando-se pelo
meu corpo. E eu quase pedi, não fosse a forma como, obtusamente,
ele se afastou.
Meus olhos resvalaram no monte em suas calças, e eu soube
que ele também me desejava. Mas, por algum motivo, ele se
conteve. E eu não tinha coragem de pedir. Então, por mais que meu
corpo gritasse e que minhas partes baixas estivessem molhadas, eu
o deixei voltar ao sofá onde passaria a noite.
Dois insatisfeitos nesse quarto bonito.
Mas, era assim que as coisas deviam seguir. Não estávamos
dividindo um teto por sentimentos. Era apenas pela nossa filha.
Deite-me sozinha, minha respiração buscando se equilibrar ao
clima ameno.
Foi então que percebi... Desde que eu vim com ele, estava
certa de que essa atitude era por Maria Elena. Mas agora eu sabia
que era por mim. Eu queria ter uma chance com Lorenzo. Eu queria
que ele me amasse. Eu sempre mantive esperanças de que um dia
ele mudasse de ideia e me quisesse, e a filha que ele fez em mim.
Nas noites solitárias em Porto Alegre, eu ainda sonhava com os
beijos dele, e fingia que jamais houve uma rejeição.
Toquei meu ventre.
Eu não podia colocar o futuro de Maria Elena em risco,
forçando um momento com o pai dela. Até porque... a família dele
estava certa em algo: eu era uma ignorante, sem estudo, sem
família... Como ele poderia manter o interesse depois de um tempo?
Haveria um dia que ele teria vergonha de mim.
Com uma família tão rica, será que haveria um dia que minha
filha também teria vergonha de mim? Eu quase podia ver as tias dele
jogando-a contra mim. Esfrego minha mão no ventre, pensando na
burrice que fiz em vir para cá.
Apavorei-me com a ideia de uma rejeição de Maria Elena.
Penso em Catarina, e quero voltar para perto da minha amiga. Ela
colocaria toda essa gente no devido lugar.
Respiro pausadamente, tentando conter as ideias apavorantes.
Maria Elena nem nasceu, e eu já estou pensando em vergonha e
rejeição. Preciso dominar meus hormônios, o pânico que me toma.
Isso não vai acontecer, porque eu vou criar minha filha para ser
alguém que olhe para o caráter, não para a conta bancária ou
aparência.
Os parentes de Lorenzo não iriam tomar minha menina de mim.
Eu aguentava as pedradas que eles me deram desde que vim para
cá, mas se eles tentassem algo contra minha filha, eles veriam tudo
que aprendi com Catarina.
Eu também podia ser forte e irascível.
— Liliana...
A voz profunda de Lorenzo interrompe meus devaneios.
— Sim?
— Eu acho que amo você.
Eu preciso cobrir minha boca com as mãos, para que ele não
ouça os soluços que acompanham minhas lágrimas.

✽✽✽

Ele está tão bonito nessa manhã. E a forma como ele sorri para
mim, parece inundar minha alma com um tipo de alegria que mal
consigo acreditar que existe.
— Está pronta?
— Não consigo calçar as sandálias — expliquei.
A enorme barriga não me deixava fazer muitas coisas.
Lorenzo se curvou diante de mim. Eu estava sentada na cama,
e podia ver seus cabelos castanhos escuros caírem sobre seus olhos
enquanto ele observavas as tiras da sandália. Parecia um trabalho
difícil, e eu sorri.
No café da manhã, ele me lembrou da consulta. Eu estava com
chinelos no momento, e usava uma roupa confortável que, com
certeza, não sairia na rua. Então subi para o quarto me arrumar. Ele
veio em seguida, me auxiliar.
Shirley era a única pessoa que estava na casa naquela hora.
Foi um alívio que a família dele não aparecesse. Era sempre tão
difícil encarar aquela gente. E a vida era bem mais fácil apenas com
Lorenzo. Eu sabia que ele amava o bebê, e depois do que disse na
noite anterior, talvez me amasse também.
Ele não deu certeza, e eu não inquiri nada. Estava emocionada
demais para falar, então apenas nutrimos o silêncio pelo resto da
madrugada.
— Vocês vão demorar? — Shirley indagou.
— Não — Lorenzo negou. — Por quê?
— Eu vi a Toyota preta chegando hoje de manhã na casa de
Verônica.
Eu não sabia de quem era a Toyota, mas pela frieza no olhar de
Lorenzo, desconfiei que se tratava de Nívea.
VINTE E QUATRO

A minha vontade era de ir atrás de Nívea imediatamente, torcer o


pescoço dela. Mas, eu perdi todas as consultas até então do meu
bebê, e não perderia nem mais um instante da vida de Maria Elena
por causa de minha prima.
Então eu simplesmente me sentei ao lado de Liliana no carro,
tentando acalmar a raiva iminente que surgia no meu âmago. O que
não era difícil, já que Liliana tinha a capacidade de acalmar meu
ânimo com um simples olhar.
Lembrei-me da noite anterior, das palavras de amor que disse a
ela. Sei que a surpreendi pela rapidez com quais os sentimentos
apareceram. Não fazia uma semana que ela estava na minha casa, e
eu já lhe dizia que a amava. Mas, era tudo real. A coisa mais real
que já senti em toda minha existência.
— Estou nervosa — ela me confidenciou assim que chegamos
à clínica. — Por causa da viagem, essas coisas. Tenho medo de ter
prejudicado Maria Elena.
— Não aconteceu. Você teve uma ótima enfermeira ao lado, e
agora apenas saberá que nossa filha está bem. Garanto.
Depois do cadastro na recepção, nós nos sentamos num longo
corredor, esperando para sermos chamados. Eu olhei o folder que
me deram, algo sobre bebês e gravidez, e sobre como a vida sexual
do casal pode mudar. O papel insinuava que era natural o homem
perder um pouco do interesse pela esposa, nos momentos finais da
gravidez, algo quase da nossa natureza, para permitir a fêmea paz
enquanto se preparava para o parto. Não era explícito, mas estava
ali.
Cara... isso estava tão longe da minha realidade. A imagem de
Liliana deitada com sua barriga dilatada e seus cabelos castanhos
esparramados pelo travesseiro está gravado na minha mente. Eu a
foderia se ela me permitisse. Estava louco por isso.
Não estava pensando em fazer amor. Eu queria algo selvagem.
Subir nela e bater e bater até que a exaustão me destruísse. Isso
talvez acalmasse um pouco a sensação de perda que eu tinha.
Meu celular vibrou. Encarei a tela. Era uma mensagem de tia
Tereza. Eu não queria ler, mas a culpa por estar me afastando da
família que me criou dominou meu coração.
“Verônica e eu conversamos com Nívea. Querido, não
fazíamos ideia. Estamos nos sentindo muito culpadas pela forma que
reagimos a Liliana. Você nos perdoa? Nos dá outra chance de
estarmos perto dela e da sua filhinha que já amamos como se fosse
nossa netinha?”.
Eu encarei as palavras com um peso absurdo. Claramente, o
trecho era sobre tia Tereza e tia Verônica. Nada sobre tia Elsa, que
eu amava como uma mãe. Meu humor fica péssimo diante da
verdade de que eu não teria o apoio familiar de quem mais me
importava.
O celular vibra de novo. Eu encaro o visor e vejo o nome de
Catarina surgindo.
“Ei, imbecil... Como ela está?”
Eu sorri porque era difícil não sorrir com aquela maluca.
“Estamos no médico. Ela vai fazer uma consulta de rotina.
Vamos ver como está o bebê”.
“Certo, cuzão. Cuide dela.”
É incrível como a frase me faz sorrir mais.
— Sabe... acho que gosto daquela sua amiga maluca — digo a
Liliana, que me encara.
— Mesmo?
— Ela assustou de início, mas parece ser boa gente.
O sorriso mais adorável do mundo aparece diante de mim.
— Ela é incrível. E é amada na internet. Tem milhares de
seguidores, é um sucesso. As pessoas devem achar que é porque
ela é linda, mas na verdade é porque tem muito carisma. E tem um
coração enorme.
— Apesar da boca suja? — provoquei.
— É uma defesa. Ela xinga e grita para ninguém perceber
como é frágil e doce.
Aquilo me surpreendeu. Mas, não tive tempo de continuar a
conversa, já que fomos chamados para uma sala. Uma enfermeira
nos acompanhou, enquanto dava direcionamentos sobre como o
exame seria feito.
— Você é o pai? — a mulher perguntou, enquanto apontava
uma cadeira ao lado da mesa onde Liliana se deitaria.
— Sim — respondi, tomado de orgulho.
Eu era um pai. E veria a imagem da minha filha pela primeira
vez.
Definitivamente, eu era o homem mais sortudo do mundo.

✽✽✽
— Olhe só... — a médica sorriu, enquanto passava um
aparelho sobre o ventre de Liliana. Eu precisei conter as lágrimas
quando vi uma imagem em 3d de um bebê. — É uma meninona. E
está tudo bem com ela.
Quando mais jovem, eu sonhava em me casar aos trinta e ter
dois filhos aos trinta e cinco. O tempo passou, e eu percebi que não
conseguiria uma família e tentei me convencer de que estava tudo
bem.
Nem tudo na vida é como a gente quer.
Mas, então Liliana apareceu, e agora eu vivia esse milagre.
Minha filha.
Minha.
Meu milagre.
O destino é surpreendente.
VINTE E CINCO

Minha garganta arde numa ânsia de choro que me surpreende.


Eu sou o tipo de casca grossa que acha que já chorou tudo que tinha
para lamentar na vida, e já entendia que lágrimas não mudavam
nada. E ainda assim, aqui estou, sentindo os olhos arderem.
— Liliana, pode nos dar licença? — Lorenzo pediu, e uma parte
de mim sabe que ele está pedindo isso para que as palavras de
Nívea não me desestabilizem nos meus momentos finais da
gestação.
Era doce sua proteção, mas não era bem-vinda. Eu queria
entender por que essa mulher fez tudo que fez. Levanto minha mão,
deixando claro que não darei um passo. Lorenzo me encara com
nítida surpresa, mas não insiste para que eu saia.
Nós acabamos de chegar do médico. De um momento mágico,
em que Lorenzo viu a filha pela primeira vez. Nada de bom acontece,
sem algo ruim acontecer em seguida.
Lorenzo se volta em direção à prima, que está parada na sala,
os ombros caídos e o semblante carregado de culpa. Atrás dela,
Tereza segura seus ombros, como se estivesse tentando lhe dar
forças. Verônica também está ali.
— Por que você me odeia, Nívea?
A pergunta, surpreendentemente, não saiu de mim.
— Eu não odeio você, Lorenzo.
— Você tentou destruir minhas chances de felicidade. Se o
acaso não tivesse intervindo, eu jamais saberia que seria pai.
A forma como Lorenzo falou fez meu coração bater tão forte.
— Vamos começar do início... Você mandou Liliana embora, e
a fez acreditar que era eu que a expulsei do quarto do hotel. Depois,
você fingiu para mim que não sabia nada dela. E, quando Liliana
soube que estava grávida e me procurou, você não entregou o
recado. Pior que isso, mentiu para ela, disse-lhe para matar meu
filho. Que tipo de monstro você é?
Diante do olhar derrotado de Nívea, eu vi todas as peças se
encaixando. Lorenzo nunca mentiu para mim. Realmente, ambos,
havíamos sido manipulados por sua prima.
— Eu te amo... Eu sempre te amei... — ela disse.
Eu não fiquei surpresa pelas palavras, mas não via qualquer
traço de sentimentos naquela mulher. Ela era um monstro capaz de
tudo para ter o que queria.
— Como você se atreve a dizer isso depois de tudo que me
fez?
— Eu esperei você — ela persistiu. — Anos e anos ao seu
lado, esperando o seu tempo. E então você simplesmente arruma
uma garota qualquer e a engravida. Por que ela? Por que não eu?
Fui sua parceira, amiga...
Corri meus olhos de Nívea para Lorenzo, percebendo o
espanto.
— Nunca te dei a menor esperança, Nívea...
— Ainda assim, eu te amei. Eu só queria... uma chance... E eu
achava que um dia você fosse perceber que eu era a pessoa certa.
Porque, francamente, eu sou! Quem mais ficaria ao seu lado desde
que seus pais morreram?
A menção dos pais causa um conflito em Lorenzo. Parece ser
um ponto fraco, e eu sei que ele está sofrendo. Seus olhos,
subitamente, encontram os meus e eu vejo que ele espera algum
tipo de ajuda. Então eu dou dois passos para frente, e seguro seu
braço.
— Nós somos uma família, Lorenzo — Tereza afirma. —
Perdoe sua prima. Todos nós somos falhos, e é natural cometermos
erros...
O fato de Maria Elena só estar viva porque eu fui forte o
bastante para dizer não a um aborto, mesmo desesperada e sozinha,
me dizia que nem todos os erros tinham perdão.
— Não — eu respondo.
Há um silêncio escatológico, que quase fede. A sensação de
todos os olhos sobre mim parece pesar como toneladas.
— Esse é um assunto de família — Tereza aponta.
— Sim, e eu falo pela filha de Lorenzo, que tenho no ventre.
— Só saberemos disso com um exame de DNA — Verônica
adverte.
— Lorenzo sabe que o exame poderá ser feito na hora que ele
quiser. A bebê é dele. Nunca menti sobre isso. Aliás, as mentiras
nunca vieram do meu lado. — Respiro fundo. — Desde que cheguei,
vocês se esforçam para que eu me sinta mal por estar aqui. Era
difícil entender os motivos, por eu ser pobre ou jovem demais, sem
estudo, ou seja lá o que for. Contudo, agora está claro que todas
esperam que Nívea se casasse com Lorenzo, e me veem como uma
rival. E eu não estou disposta a ficar enfrentando os parentes de
Lorenzo. Se ele me quer aqui, com ele, nenhuma de vocês é bem-
vinda à casa, especialmente você, Nívea — a encaro. — O que você
fez comigo, mulher nenhuma devia fazer a outra. Então eu peço que
se retirem agora. Porque se não forem embora, eu vou.
Depois disso, as três mulheres começaram a falar ao mesmo
tempo. Eu quase fiquei tonta, não fosse a presença de Lorenzo, que
me manteve segura, enquanto sua mão tocava minha barriga com
carinho.
— Tem horas que um homem tem que deixar “sua casa” para
ter uma nova família. Vocês sempre serão minhas tias e eu sempre
vou amá-las, mas está na hora de me deixarem seguir em frente. Eu
vou ser pai, e quero aproveitar isso. Eu perdi muito por conta de
Nívea, não vou deixar espaço para que ela faça mais nada.
Diante disso, as tias dele entenderam que era inútil insistir.
Então, elas se afastaram em passos lentos, como se esperassem
que Lorenzo mudasse de ideia. Ele não o fez.
Nívea foi a última a sair. Ela me deu um olhar de puro ódio
antes de deixar a casa. Quando a presença delas desapareceu, era
como se até o ar ficasse mais puro.
— Você está bem? — perguntei a Lorenzo.
— Eu me sinto um pouco ingrato depois de tudo que elas
fizeram por mim, mas... — ele me encarou. — Você vem em primeiro
lugar, Liliana.
Sua mão desce suavemente para o meu estômago. Minha
respiração para por um segundo, enquanto o carinho de Lorenzo me
toma.
— Você disse que me amava — eu lembrei. — Você tem
certeza?
— Sim.
— Eu... eu também — contei.
Não era o momento para compartilhar nossos sentimentos,
mas eu precisava que ele soubesse. Então, as mãos de Lorenzo
seguraram minha face, e sua boca se aproximou de minha. O beijo
não foi gentil, era carregado de um tipo de paixão que eu só senti
uma única vez, com ele, na noite que fizemos nossa filha.
— Liliana... — ele gemeu meu nome.
— Lorenzo... Eu não posso... você sabe... Porque estou muito
adiantada..., mas... ainda assim estou queimando... estou
queimando...
Ele me encarou. Subitamente, suas mãos desceram do meu
rosto, segurando meus dedos entre os dele. Lorenzo começou a me
puxar em direção ao quarto.
Não recusei. Eu precisava tanto dele.
VINTE E SEIS

A porta se fechou atrás de nós. O mundo lá fora pareceu apenas


uma figura em um quadro, algo irreal, que nós éramos capazes de
deixar para trás. A vida real estava aqui dentro. Entre nossa
respiração, nossa carne, em nosso corpo – especialmente no meu,
avantajado.
Lorenzo me sentou na cama. Ele se ajoelhou entre minhas
pernas, meu coração transbordando com a imagem de sua franja
escura caindo sobre seus olhos, arrepiando minha pele, meu corpo
inteiro, enquanto ele se curvava e pegava meu tornozelo nas mãos.
Eu fechei os olhos quando ele me beijou ali, o calor do seu
hálito arrepiando meu tornozelo e se espalhando pela minha perna.
Eu ri, quando a mão subiu na minha coxa, porque ela simplesmente
desapareceu por baixo da minha barriga.
— O que foi? — ele indagou, um sorriso no rosto.
— Eu não consigo ver sua mão.
Seus dentes brancos se mostraram mais enquanto seu sorriso
se alargou.
— Você está tão fofa que eu tenho medo de tomar forte demais
e quebrar você.
Eu respondi da forma mais sincera que pude. Abri minhas
pernas, puxando melhor o vestido e deixando-o ter uma visão da
minha umidade. Eu o queria tanto. Ele foi o único homem da minha
vida, e eu sabia que não haveria outro. Então, não me envergonhada
da minha reação a ele, especialmente porque agora tinha certeza do
quão verdadeiro era Lorenzo.
Tive tanta sorte de tê-lo conhecido naquela noite. Deus foi bom
para mim, quando fez meu caminho cruzar com o dele. Se havia
almas gêmeas nessa vida, Lorenzo era a minha.
Seus dedos deixam minha coxa e sobem. Meus olhos se
fecham, enquanto ele resvala a mão sobre minha calcinha, para
adentrar o elástico e tocar no meu ponto mais sensível. Lorenzo
acaricia, seus dedos se lambujando com meu sexo, cada vez mais
atrevidos, até que seu polegar chega ao ponto que me faz gemer
como se sentisse dor.
Mas, eu não sentia. Era algo além de qualquer outra coisa. Na
minha primeira vez com ele, eu senti dor, carinho e admiração.
Agora, eu o queria de outras maneiras. De todas as maneiras.
Ele continua a ação, acariciando meu clitóris. Eu sinto que
preciso de mais, e ele também sente isso, porque logo Lorenzo me
derruba delicadamente para trás, e então ergue minhas coxas sobre
seus ombros.
Eu não posso ver, mas eu sinto. Meus olhos se fecham
enquanto minha calcinha é retirada, e logo meu centro é preenchido
por sua boca.
Ah, como eu quero isso. Mais fundo... mais fundo...
Meus dedos se enroscam nos lençóis. Minha boca balbucia o
nome de Lorenzo, enquanto ele raspa sua língua mais e mais fundo,
cavando, depois apertando meu clitóris, e enfim, me levando até o
mais perfeito ritmo do prazer.
— Agora... agora — imploro.
Ele afasta a boca por um momento.
— Eu não posso fazer isso, querida. Eu posso te machucar.
Então, eu vou só te chupar...
— Mas... E você?
Eu me elevo um pouco, me colocando sobre os cotovelos,
apenas para ter uma imagem melhor dele. Então percebo Lorenzo
com o pênis para fora da calça, duro, sua mão direita segurando a
base enquanto ele massageia e resvala a mão para cima e para
baixo.
— Eu cuido de mim — ele diz, a voz sexy me fazendo gemer.
— Você vai cuidar de mim depois da bebê nascer. Não se preocupe
comigo, Liliana. Apenas feche os olhos e deixe que eu a faça gozar.
Eu grito quando sua boca me toma de novo. Caio para trás,
sentido sua língua traçando meu buraco, meu corpo convulsionando
magicamente no sexo. Me afundo nas sensações, ardendo,
queimando, ondas deliciosas cruzando da minha vulva até minha
espinha.
E, por fim, eu consigo chegar aonde só ele pode me levar.
VINTE E SETE

Eu sorri quando uma arara vermelha cruzou pelo alto da minha


cabeça, gritando com sua parceira que voava logo atrás dela,
naquela dança perfeita de voo. Liliana, ao meu lado, apertou minha
mão, enquanto apontava para o céu. Na nossa frente, podíamos ver
a cachoeira véu de noiva – que era uma visão incrível – mas Liliana
parecia mais empolgada em olhar os animais.
Nós saímos cedo naquele dia para passear. O dia se tornava
abafado rapidamente naquele canto de Mato Grosso, então
queríamos aproveitar um pouco o sol antes de ele começar a
queimar.
Encarei Liliana. Ela estava prestes a dar à luz. Caminhadas de
manhã eram boas, disse a médica. Então eu sempre a colocava no
carro de manhã bem cedo, e íamos até algum lugar bonito daquela
localidade.
Nada que a forçasse muito. Apenas algo que a alegrasse e
ajudasse a apressar a hora.
— Depois do bebê nascer, você me leva para conhecer a
cidade de pedra? — ela indagou, sabendo que não conseguiria
chegar muito alto com aquela barriga.
Eu assenti.
Uma ideia se forma naquele instante. Eu poderia pedi-la em
casamento naquele lugar. Eu o faria agora se quisesse, já que o anel
vivia no meu bolso, mas queria algo mais romântico. E também
queria fazer amor com ela após o pedido, o que não aconteceria com
oito meses e meio de gestação.
Subitamente, ouço um pigarrear nas minhas costas. Volto em
direção ao deque, me deparando com as minhas tias gêmeas me
encarando.
— Como vai, Lorenzo? — tia Tereza indagou. — Está
chegando a hora, Liliana? — ela continuou, sem me dar tempo de
respondê-la.
Tia Elsa estava com a cara azeda, o que me fez perceber logo
que estava ali forçada pela irmã, que tentava aparentar doçura e
gentileza.
— Filho, sentimos tanto sua falta — continuou. — Como vocês
estão?
— Estamos bem — eu respondi. — O que fazem aqui tão
cedo?
— Não é tão cedo. Já são nove horas. E está muito quente, a
grávida devia estar em casa, num lugar mais ameno — tia Elsa
recriminou, e eu enrubesci porque era verdade.
— Bom, então vamos indo? — eu giro para Liliana, que está
com uma das mãos pousada sobre o ventre.
Ela acena, e eu dou um passo, quando tia Tereza me
intercepta.
— Lorenzo, como eu disse, sentimos muito a sua falta.
Sabemos que fomos cruéis quando Liliana chegou, mas entenda que
estávamos chocadas. Nós realmente acreditávamos que você se
casaria com Nívea.
Eu vi tia Elsa revirando os olhos, porque ela, especialmente,
sempre soube que eu não amava Nívea.
— Então, nós queremos nos desculpar por tudo. Liliana — ela
encarou a mulher ao meu lado. — Você pode nos perdoar?
Liliana parecia tão firme enquanto analisava a situação. Ela era
realmente uma garota em mil. Apesar de tanto sofrimento que já
passou, tinha uma forma incrível, especialmente enquanto respirava
fundo e acenava, concordando.
Eu fiquei aliviado, não vou negar. Tudo que eu mais queria era
que minha família e ela se dessem bem. Viver em paz era um luxo
que o dinheiro não podia comprar.
— Eu vou preparar um jantar em casa, essa noite. Quero
convidá-los — Tia Tereza disse.
— Não sei... Liliana está quase parindo e, à noite, gostamos de
descansar.
— Por favor, não faça essa desfeita comigo — Tia Tereza
insistiu. — Farei aquela carne de forno que você gosta tanto.
Encarei Liliana. Ela concordou novamente, apesar de eu ver
em seus olhos que não estava totalmente à vontade.
— Está certo. Esperarei vocês às sete.
Tia Tereza então se afastou. Elsa ficou observando a irmã ir,
havia uma incógnita nos seus olhos, algo que eu não era capaz de
alçar.
— Tia? — a chamei, quando notei que ela estava longe em
pensamentos.
— Tereza não me falou de nenhum jantar. Acho uma bobagem,
especialmente quando sua mulher já está quase explodindo. Não
deviam ir.
Era verdade, mas eu não queria magoar mais ninguém.
— Tudo bem. A gente vai, janta e volta para casa em seguida
— Liliana me tranquilizou e eu sorri para ela.
Sim, era o melhor a se fazer.

✽✽✽

Durante à tarde, Liliana foi descansar e eu passei horas no


escritório em Home Office, ligado direto com Deise, tentando resolver
pendências. Desde a saída de Nívea, as coisas ficaram cheias, e
havia muitos papeis para desenrolar. Ainda assim, era um alívio não
ter minha prima por perto, especialmente para minha equipe. Deise
me confessou que odiava ir trabalhar por causa de Nívea.
O ar parecia menos denso, e eu adorava o momento que vivia
na empresa. Deise estava se encarregando de contratar um novo
gerente, e eu planejava passar a presidência da Colombo para um
dos meus tios, provavelmente Nelson, o esposo de tia Elsa.
Desde que eu havia cortado contato com a família, ele era o
único com quem eu conversava, já que me trazia informações de
como o gerenciamento da Colombo estava indo. Meus outros tios
trabalhavam na parte industrial e de vendas, e meu primo Henrique
estava viajando para conseguir comprar novos insumos.
Subitamente, meu pensamento foge do trabalho. Eu vejo
Liliana entrando no escritório. Me coloco em pé e vou até ela, dando-
lhe um beijo doce nos lábios. O gosto do brilho labial dela me lembra
cerejas recém-colhidas.
— Descansou?
— Sim.
Eu volto a beijá-la porque nunca parecia o suficiente. A verdade
é que eu andava com uma ereção mal contida desde que a chupei
semanas atrás, no quarto. Eu queria tanto lavá-la com meu esperma,
mas sabia que teria que esperar. Liliana não parece surpresa com
meu segundo beijo mais exigente, e apenas me aceita, ofegando
quando meu corpo pressiona o dela.
— Eu te amo, Liliana.
Ela sorri, enquanto suas mãos descem pelo meu rosto.
— Eu também te amo.
Eu acho que encontrei o paraíso. Era o homem mais feliz do
mundo.
VINTE E OITO

A carne era tão macia que parecia despedaçar diante dos meus
olhos. Eu sentei-me à ponta da mesa, não que eu sentisse que fosse
um lugar destinado a alguém especial, mas porque facilitava a
posição da minha barriga sem incomodar mais ninguém ao meu
lado.
— Eu estou tão feliz que vocês tenham vindo — Tereza disse,
enquanto ia colocando uma infinidade de pratos à mesa. — Estou
feliz porque a família está junta de novo.
— Está esquecendo que Henrique não está aqui — disse João,
o esposo de Tereza.
— Eu nunca esqueço de Henrique — ela afirmou, encarando o
marido.
Depois ela sorriu na minha direção. Eu sorri em resposta para,
em especial, ser cortês. Mas, a verdade é que eu não sentia vontade
de sorrir.
Pouso a mão sobre meu ventre. Há um certo desconforto, não
chega a ser dor, mas parece que algo está acontecendo na minha
barriga. Eu não disse nada a Lorenzo porque não queria apavorá-lo,
mas a verdade é que eu queria estar deitada na cama agora, e não
indo jantar numa das casas da fazenda.
— Liliana, você gosta de sucos? Eu fiz alguns, de frutas,
especialmente para você — ela comentou, e eu acenei, aceitando.
Eu não sei por que, mas, a única pessoa que sempre sorria
para mim daquela família, Tereza, era a que menos eu simpatizava.
Elsa, por exemplo, a tia irascível de Lorenzo, me lembrava Catarina,
sem eufemismos, mas com gritante sinceridade, então me deixava
menos...
Como se lesse meus pensamentos, subitamente Elsa aparece
na sala de jantar. Eu não sei se todos estão surpresos, mas com
certeza Tereza está, porque ela encara a irmã gêmea – que de tão
semelhante parece tão diferente – e indaga, quase aos berros:
— O que está fazendo aqui?
— Tereza! — João repreende a mulher, mas ela nem parece se
importar.
— Você não foi convidada — Tereza insiste, num tom de
expulsão.
— Eu preciso, irmã? Achei que sua casa é minha casa. A
família não é sempre tão importante para você?
O ar tem um cheiro diferente. Não é a comida. Ele quase reflete
um desconforto vergonhoso. Tensão. Eu encaro Lorenzo, como se
esperasse que ele fizesse alguma coisa, e ele prontamente me
responde, se colocando em pé e puxando uma cadeira.
— Claro, tia... Tenho certeza de que tia Tereza só está
preocupada se teremos comida o suficiente, mas eu tenho certeza
de que vai sobrar, porque tia Tereza cozinhou para um exército — ele
brincou tentando amenizar a situação.
Elsa aceitou a cadeira, e sentou-se ao lado do sobrinho. Ela me
encarou depois disso, e parecia estar me julgando com a mão no
ventre, ou estar me questionando algo, eu não sabia o quê, então
apenas baixei meus olhos e peguei o garfo e a faca.
— Vamos fazer uma oração? — Tereza indagou, me fazendo
soltar o garfo imediatamente. Eu não sabia que havia esse tipo de
ritual na família, e fiquei envergonhada de ser a única a não esperar
para comer.
Mas, eu estava com fome. E cansada. E com esse desconforto.
Eu só queria voltar para casa, dormir nos braços de Lorenzo.
— Oração? — Elsa indaga. — Desde quando você faz isso?
— Você não sabe nada sobre mim, irmã.
— Eu te conheço desde o ventre de nossa mãe. Se tem alguém
que sabe exatamente quem é você, sou eu.
Oh, Deus... isso era tão... tão... difícil. Eu sabia que as pessoas
vem com um pacote que normalmente incluem a família, mas eu
realmente não conseguia aguentar esse laço. Juro que eu preferia
estar em Porto Alegre do que conviver com as tias dele.
Por fim, João pigarreou e disse que faria a oração. Ele falou
meia dúzia de palavras agradecendo a comida, e depois nós
começamos a comer. Tereza cozinhava bem, e eu estava com fome,
então deixei-me afundar naquele silêncio, quase agradecendo por
ninguém falar nada e o constrangimento ir passando rapidamente.
Subitamente, porém, João comentou:
— Tereza, disse que fez sucos de frutas para Liliana. Vá pegar.
— Depois ele me encarou, sorrindo. — Tereza faz uma mistura de
abacaxi com hortelã e mel que parece um manjar dos deuses.
— É verdade. Eu lembro que meu pai adorava esse suco —
Lorenzo afirmou. — Ele dizia que não há bebida no mundo que se
compare.
Mais silêncio. Por algum motivo eu vi Tereza rígida, encarando
a irmã. Elas trocavam um olhar poderoso, e eu não fui a única que
reparei.
— O que está acontecendo? — Lorenzo perguntou.
— Nada — Elsa disse. — Vá pegar o suco irmã. Estamos todos
ansiosos para provar.
Eu olho para Tereza, e a vejo se colocando em pé.
— Está certo, vou pegar o suco.
— Vamos todos — Elsa diz, também se colocando em pé. —
Para a jarra não cair no chão, ou coisa assim, e nós dispensarmos
esse “manjar dos deuses”.
Lorenzo e João começaram a falar ao mesmo tempo. As
perguntas iam de “por que está falando isso?” ao “O que está
acontecendo entre vocês duas?”, mas eu sentia uma seriedade no
olhar que me fez colocar-me em pé. Por mais difícil que fosse me
levantar, algo em que Elsa disse me fez fazer isso.
Lorenzo logo estava ao meu lado.
— Querida, não precisa — ele disse.
— Eu vou — afirmei, sem pestanejar e sem estremecer a voz.
Nunca estive mais firme.
Foi então que eu vi o ódio em Tereza. Ela estava sempre
sorrindo, e conseguia esconder bem aquela atitude, mas me ver de
pé a fez queimar. O fogo quase se alastrava além dela.
— Elsa, explique agora! — João ordenou.
Ninguém ali era idiota. O que quer que estivesse acontecendo
incluía o suco que Tereza preparou.
— Há mais de vinte anos, meu amado irmão começou a
adoecer. Ele era saudável e forte, e nunca esteve doente. Mas,
adoeceu. Coisas da vida, não é? Uma hora a gente está bem, e
então começa as dores de cabeça, dores no corpo... Foram feitos
vários exames e nada foi diagnosticado. Ele não tinha nenhuma
doença que os médicos soubessem. Mas, eu sabia que não era
verdade. Ele tinha uma moléstia. Uma bem viva, de carne e osso,
com um metro e sessenta e que tem a mesma cara que eu.
— O que está dizendo, tia? — Lorenzo suspendeu o ar.
A implicação era clara.
— Tereza insistiu em ficar ao seu lado. Era ela que fazia seu
almoço e jantar. Quando ele morreu, eu já estava desconfiada dela,
mas não tinha provas. Então foi a vez de Maria Elena. Sua mãe era
uma mulher incrível, uma mulher valorosa e forte. E eu comentei com
ela minhas desconfianças, porque eu queria protegê-la de um futuro
igual ao do meu irmão. Por mais triste que sua mãe estivesse, ela
nunca caiu em depressão após a morte do marido, e sua saúde
estava excelente. Até aquele café da manhã. Ninguém soube, mas
eu vi Maria Elena naquela manhã e ela estava absolutamente
saudável.
— Do que está me acusando? — Tereza gritou. — De matar
meu irmão? Eu sou uma mulher temente a Deus!
— A que Deus? — Elsa retrucou. — Sua postura de pessoa
perfeita, sorridente, gentil, boazinha... nunca me enganou. Mas
enganou a polícia, não é? Quando Maria Elena caiu dura sobre a
mesa, eu comentei ao delegado que desconfiava de assassinato por
envenenamento. Mas, depois de conversarem com você, eles foram
manipulados, e passaram a desconfiar de Lorenzo. Eles quase
prenderam o menino! Era o que você queria, não é? Que ele fosse
deserdado, assim toda a herança viria para os demais parentes.
— Meu Deus, Elsa! — João se pôs de pé. — Como você pode
dizer algo tão horrível?
— Eu tenho certeza. Anos depois, Shirley me contou que, na
manhã da morte de Maria Elena, viu Tereza pela casa.
— Sim, eu estava lá. Havia ido para conversar com Maria Elena
sobre uma viagem que Henrique queria fazer e não tínhamos
condições de pagar. Iria pedir o dinheiro emprestado a ela!
— Essa pode ter sido sua desculpa, mas não é a realidade.
Você foi lá para envenenar Maria Elena.
— Irmã, nunca vou te perdoar por dizer isso — Tereza afirmou.
— Foram feitos exames e constataram que não havia indícios de
envenenamento. Lorenzo foi inocentado por causa disso. Então,
como pode falar coisas tão abomináveis?
— Eu sempre me perguntei como você fez — Elsa embargou a
voz. — Sempre me culpei por pensar tão mal de você. Mas, então
comecei a traçar paralelos. Você viajou ao Paraguai meses antes de
meu irmão morrer. Foi lá que comprou um veneno, não foi?
— Você é louca, Elsa.
— Eu comecei a procurar por algo na fazenda. Eu sabia que se
houvesse um veneno, você o usaria de novo. E, por anos, eu não
achei nada. Você matou nosso irmão e nossa cunhada para se tornar
herdeira. Como Lorenzo não foi acusado de assassinar os pais, você
desistiu desse plano e pensou em usar Nívea, afinal, ela é filha da
sua melhor amiga. Verônica não sabia, é claro, que seu apoio a uma
relação entre Nívea e Lorenzo era para tornar Nívea a herdeira. E
depois de um tempo casados, você mataria Lorenzo e faria Henrique
um pretendente a curar o coração de Nívea. Não era um plano
rápido, mas era efetivo, porque Nívea e Henrique se gostavam
quando eram adolescentes, e sem Lorenzo para separá-los, eles
poderiam voltar a viver juntos.
— Que ideia mirabolante!
— Mas Liliana apareceu. E grávida. Mesmo que Lorenzo não
se casasse com ela, a bebê será sua herdeira. Seus planos
acabaram! Ou não, se pudesse fazê-la abortar. Ou morrer. Como
Lorenzo expulsou todo mundo da casa, você precisava de um jeito
de fazer isso acontecer, rápido. A bebê vai nascer, e Lorenzo e
Liliana poderão ter outros filhos. Não dá pra matar todo mundo e a
polícia não desconfiar de nada.
Eu sinto que vou desmaiar a qualquer momento. Minha mão
aperta minha barriga, quase nunca tentativa louca de proteger Maria
Elena. Eu não posso deixar que ninguém lhe faça mal.
— Eu quero ver o suco, agora — digo.
— Isso mesmo! — Elsa concorda. — E para provar que eu
estou louca e mentindo, Tereza o beberá na nossa frente.
A máscara caiu naquele momento. Tereza deixou a mesa vazia,
enquanto corria em direção à cozinha. Eu não sei o que ela
planejava para livrar-se da culpa, talvez se livrar do suco, mas ela foi
seguida de perto pelas três outras pessoas da sala.
Eu não era capaz de ir com eles, então voltei a me sentar,
enquanto ouvia os berros do outro lado da casa. Minha mente tenta
juntar as peças de tudo que Elsa falou, e eu vi que ela estava certa.
— Liliana — Subitamente, Lorenzo está ao meu lado. — Vamos
para casa. Vou ligar para a polícia resolver tudo, mas antes vou te
deixar num lugar seguro.
Contudo, repentinamente, me vejo despejando. Minha bolsa
estourou e eu tentei não entrar em pânico, enquanto via o olhar de
Lorenzo arregalar mais e mais.
— Preciso ir ao hospital... — pedi.
VINTE E NOVE

Havia um pequeno espaço aberto, como uma janela de vidros um


pouco sujos, onde raios da lâmpada de um poste externo dançavam
suavemente nas paredes daquele quarto não tão bem iluminado.
Eu havia pagado antecipadamente um hospital particular para
que Liliana desse a luz com todo o conforto, mas Maria Elena
parecia prestes a nascer, e o hospital mais próximo era um público,
repleto de gente doente, e médicos atarefados. Ainda assim, havia
muita humanidade ali, em cada gesto gentil das enfermeiras até no
olhar solidário de um doutor jovem demais para ter passado pela
residência.
— Vai ficar tudo bem, querida — uma das enfermeiras disse
assim que eu estacionei o carro diante do hospital e abri a porta
lateral.
Maria Elena já estava coroando. Não pude deixar de ficar
impressionado, porque sempre ouvi falar que bebês demoravam
horas para nascer. Mas, Liliana parecia uma gata parindo. Então
fomos levados direto a uma sala de parto.
Segurei a mão de Liliana e todo momento, tentando transmitir
meu amor por ela e o quanto eu a considerava corajosa por estar
enfrentando a dor pela nossa bebê. Ela fez força, e em algum
momento eu senti o cheiro de rosas frescas preenchendo o
ambiente, quase como o perfume de minha mãe, e fiquei
emocionado porque, de alguma maneira, eu sabia que minha mãe
estava ali agora, me dando seu apoio.
Liliana não gritou. Claro, ela sofreu, lacrimejou, fez muita força,
mas não gritou em nenhum momento. A energia dela era algo fora
do comum. Seu rosto estava banhado por uma suave determinação
que emanava de seu interior.
E então aconteceu: o milagre da vida. O médico, tão jovem e,
igualmente, tão experiente, guiou Liliana até o momento final,
quando a força final foi feita, e a maternidade fluiu pela sala e
dominou a todos nós.
Mulheres eram um fenômeno da natureza.
Em meio a gemidos e suspiros de esforço, o choro forte de
Maria Elena me fez chorar de felicidade. A bebê foi erguida pelo
médico, que mostrou minha filha para mim. Linda, pequena, perfeita,
com todos os dedos dos pés e das mãos.
Eu encarei Liliana. Lágrimas de felicidade corriam por seu
rosto.
Eu a amava mais que tudo nessa vida. Esse momento único só
fortaleceu isso.

✽✽✽
Meu tio João se aproximou de mim no berçário. Ele trazia o
rosto pesado, de uma dor que eu nem conseguia decifrar.
— Eu não sabia de nada disso... — ele me disse e eu
concordei.
Meu pai confiava nele. E eu confiava em Henrique. Tínhamos
nossas diferenças, mas não tinha dúvida de que eram inocentes.
— Tereza é uma psicopata — murmurei.
Nunca mais conseguiria chamá-la de tia.
— Elsa está com a polícia na casa. Tereza ainda nega, mas é
muito claro que ela fez isso. Eu nunca vou entender aonde a
ambição pode chegar... Seu pai foi tão bom conosco, me deu um
ótimo emprego e nos deu a casa na propriedade. Como Tereza foi
capaz de fazer isso, meu Deus...?
— O que o senhor fará?
— Eu vou pedir o divórcio — ele me contou. — E peço que me
despeça, pois eu pretendo ir embora do Mato Grosso. Foi recomeçar
em outro, esquecer o que aconteceu... Não quero nunca mais ver
essa mulher enquanto eu viver.
Eu entendia. Pus a mão no ombro dele, apertando. Meu tio
estava tão arrasado em um momento que eu estava tão feliz. A vida
era algo complicado.
— Qual delas é a sua? — ele indagou, diante do vidro onde
vários bebês dormiam em pequenos berços.
— Aquela ali — apontei, a última da primeira fileira à direita.
— É linda.
Eu assenti. Essa era a maior das verdades.

✽✽✽

— Fluoroacetato de sódio — contei a Catarina, que me


encarava assombrada naquela pequena cafeteria hospitalar.
— Mesmo?
— Sim. É um sal sem cheiro ou gosto, e o corpo fica sem
vestígios depois de algumas horas. É letal e proibido no Brasil, mas
Tereza o comprou no Paraguai.
— Ela confessou à polícia?
— Sim. Ela achou que o assassinato prescreveria.
— E não prescreve? Já faz mais de vinte anos, não?
— A polícia vai indiciar, e só Deus sabe se o juiz vai aceitar,
mas... Não importa para mim, entende? O que me interessa é que a
verdade apareceu. E eu só quero essa mulher longe da minha filha e
de Liliana.
Catarina estava tão compreensiva. Eu não sei se foi por me
pegar chorando perto do berçário quando chegou de Porto Alegre,
ou por ser a primeira pessoa a me ver caindo a ficha de que meus
pais foram brutalmente assassinados.
Ela até me trouxe para tomar um café. Não queria que eu
aparecesse abalado diante de Liliana nesse momento, em que minha
futura esposa precisaria tanto me ver forte.
— E suas demais tias?
— Tia Elsa é incrível. Ela salvou nossa vida. E tia Verônica não
sabia. Nívea me ligou, disse que pode ter feito muita coisa ruim para
Liliana e para mim, mas nunca tentou me matar. Não sei se estou
inclinado a acreditar nela, por não importa. O que ela fez para mim e
para Liliana foi muito cruel, quase o mesmo que tia Tereza. Minha tia
matou meus pais, e Nívea tentou matar minha filha no ventre. Tem
coisas que não tem perdão, Catarina.
A loira assentiu.
— Acredite em mim, eu sei — ela concordou. — Mas, agora,
me leve para ver minha afilhada e minha amiga. Estou ansiosa para
conhecer Maria Elena e dar um abraço em Liliana.
TRINTA

— Ela é tão bonitinha — Catarina me disse, sentando-se ao meu


lado, no leito.
Sorri para a loira, enquanto via os seus dedos tocarem os de minha
filhinha, percebendo lágrimas nos seus olhos azuis, algo que não
conseguia esconder.
Havia dor ali. Uma dor tremenda. Catarina ainda pensava no
bebê que ela não teve, o bebê que mudou toda a sua vida. Foi a
perca do filho que a fez ter coragem de cortar qualquer relação com
a mãe narcisista.
— Um dia você vai ter uma assim, só para você — eu afirmei,
porque era meu profundo desejo que ela experimentasse esse tipo
de sentimento avassalador, o mesmo que eu estava sentindo desde
que vi os olhos de Maria Elena pela primeira vez.
— Você lembra quando pensávamos que Lorenzo rejeitou a
filha? — ela indagou. — Nós sabemos que ele não o fez. Mas, no
meu caso, meu ex-namorado com certeza me abandonou grávida e
sozinha. Eu nunca vou conseguir superar o ódio que sinto quando
me lembro que, por me deixar sem qualquer ajuda, eu perdi meu
filho.
Bati de leve minha testa na bochecha dela, num carinho
desengonçado, mas que queria expressar o quanto eu a amava e
sentia muito que ela passou por tudo isso. Eu diria palavras de
esperança se pudesse, mas a porta abriu e Lorenzo entrou junto com
um rosto conhecido.
Por um segundo, eu pensei ser Tereza, mas logo percebi que
não havia como aquela mulher se aproximar de mim. Nunca mais.
— Como você está? — Elsa indagou, e eu sorri.
— Foi um parto tranquilo, eu acho.
— E a bebê?
Ela sorriu para mim. Era a primeira vez que eu a vi sorrindo.
Uma parte de mim achou-a parecida com Catarina agora, sempre
irascível, mas que desmanchava diante de um bebê. Eu sabia o que
tornou Catarina assim, e imaginava o que fez o mesmo a Elsa.
Sempre a sombra de uma irmã simpática e manipuladora, que fazia
todos acreditarem que Tereza era maravilhosa, e que Elsa era
apenas a gêmea defeituosa, que não sabia amar.
— Você quer segurá-la? — perguntei.
— Eu posso?
Concordei. Logo Elsa pegava minha filha nos braços, e eu vi o
amor sincero na sua expressão.
— Ela é tão parecida com seu pai, Lorenzo — Elsa comentou,
encarando-o. — Ela tem a boca dele, e o os olhos dele... Ah, que
saudades do meu irmão.
— Ela me lembra minha mãe — Lorenzo negou.
— Ah, sim... tem o formato do rosto de sua mãe. Será uma
garotinha linda. — Depois ela me olhou. — Ela tem seu nariz
pequeno e arrebitado — me disse. — É uma sorte, porque todos os
Colombo tem o nariz grande. Graças a Deus, a saga dos narigudos
termina com ela.
Eu ri. Estava feliz porque, pelo jeito, as coisas com Elsa
melhorariam, e eu estava ansiosa para conhecê-la melhor. Pela
primeira vez, me vi aceita naquela família.

✽✽✽

Foi um dia movimentado, com a família de Lorenzo aparecendo


a cada hora. Primeiro foi o marido de Elsa, Nelson. Depois foram os
tios e primos por parte da mãe de Lorenzo. No final do dia, eu recebi
flores de Verônica e Augusto, mais uma vez se desculpando pela
filha.
Eu não sabia o que pensar. E nem queria me importar. Agora,
tudo que me interessava era Maria Elena, e eu disse isso a Lorenzo
quando ele se sentou ao meu lado enquanto eu amamentava nossa
bebê.
— Eu sei. Ninguém vai te forçar a aceitar desculpas, querida.
Até para mim é muito difícil. Nívea me mandou algumas mensagens
pedindo para que eu não a dispense do trabalho, porque ela acha
muito difícil recomeçar depois dos trinta em outra empresa. Eu disse
que iria pensar, mas a verdade é que não quero vê-la nunca mais.
— Ela pode trabalhar numa das filiais, bem longe...
Ele me encarou, com as sobrancelhas arqueadas. No meu
peito, minha filha sugou com força meu seio.
— Você é uma pessoa tão incrível, Liliana... Você é incapaz de
desejar vingança...
Os olhos de Lorenzo estão fixos nos meus. Um sorriso se
forma em meu rosto.
— Não sou tão boazinha assim.
Não sei porque a frase saiu tão carregada de malícia. Ainda
assim, Lorenzo riu, me dando um olhar que me dizia que ele mal
podia esperar para o resguardo terminar.
Maria Elena soltou um som de satisfação, quando largou o bico
dos meus seios. Lorenzo olhou para baixo e acariciou a bochecha da
nossa bebê. Eu observo a cena com amor e gratidão. A vida não foi
fácil para mim, mas valeu cada momento por esse, onde Lorenzo
circula meus ombros com seus braços, e minha Maria Elena
descansa em meu peito.
Estamos em um laço indissolúvel, nutrido pela união de nossas
almas.
É... eu sou a mulher mais sortuda do mundo.
EPÍLOGO

Nove meses Depois.

— Você pode tirar uma foto comigo? Sou muito fã sua.


Encarei a adolescente e sorri, enquanto me aproximava dela, que
erguia o celular para pegar nosso melhor ângulo.
Essa era uma das primas mais jovens de Lorenzo. Eu a
conheci na véspera, no jantar de ensaio do casamento, mas ela
apenas me cumprimentou deslumbrada, e não se aproximou
nenhuma vez. Eu imaginava que teve que ganhar uma coragem
tremenda e vencer sua timidez para vir pedir essa foto, então fui o
mais gentil que pude, enquanto ela ria feliz para o celular, e me
agradecia uma infinidade de vezes, até se afastar.
Depois disso, eu comecei a andar pelo evento. Ao longe, podia
ver Lili vestida de branco, aceitando os cumprimentos de alguns
homens que, imaginava eu, eram parceiros comerciais de Lorenzo.
Ergui a taça de champagne para ela, quando seu olhar cruzou
pelo meu, e ela sorriu. Estava tão linda, num vestido clássico, e com
uma coroa de flores brancas na cabeça. Parecia uma deusa numa
visão idílica, com as montanhas da Chapada dos Guimarães as suas
costas.
Meu celular vibrou na minha bolsinha, mas eu não o peguei.
Era uma festa, e eu não estava no clima de ficar vendo
trabalho. Além disso, acho, estava meio alta. Qual taça de
champagne era essa? Eu perdi a porra das contas na quinta.
Mas, me desculpei. Era um festa, repeti a mim mesma. O
casamento de Lili era algo especial. Anos atrás, eu jurei nunca mais
amar novamente. E estranhamente essa promessa se perdeu na
amizade que eu sentia por ela.
— Olhe só quem está aqui — ouvi Elsa se aproximando, com
Maria Elena nos braços. Ela falava com a menina. — É sua Dinda!
— Di...da! — minha pequena afilhada balbuciou, me
estendendo os bracinhos.
Eu sorri feliz, louca para pegá-la nos braços, mas Elsa negou.
— Quantas dessas você bebeu? — a mulher perguntou,
protetora.
E não estava errada.
— Eu acho que fico melancólica em eventos felizes — contei a
ela, porque sentia que podia. Nós tínhamos quase a mesma
personalidade.
Eu amo a tia de Lorenzo como se fosse minha. Não sei por
que, mas eu me apeguei a família dele – e Deus me perdoe, a ele
também – quando passei a visitar Lili com certa frequência. Talvez eu
sentisse falta de ter uma família, e o fato de eu considerar Lili minha
irmã causava isso.
— Não se culpe — ela murmurou. — Sabe que isso é mais
comum que parece. Os maiores índices de suicídio são em épocas
felizes, como Natal e Ano Novo.
— Eu não vou me matar — rebati.
— Claro que não. Você é como uma barata.
— Nossa, obrigada — ironizei, erguendo a taça e bebendo o
resto da bebida.
Comecei a procurar o garçom com os olhos, para pegar outra,
quando a voz de Elsa me acordou.
— O que eu quero dizer é que você é forte. Sabe, como as
baratas. Quando os americanos jogaram a bomba atômica em
Hiroshima, conta-se de que não sobrou nada em quilômetros,
nenhum humano ou prédio, tudo devastado pela força da explosão.
Mas, isso não é verdade. Algo restou: as baratas. Você é como uma
barata.
— Uma peste incontrolável?
— Uma sobrevivente.
Eu senti lágrimas nos olhos pelas palavras.
— Obrigada, Elsa.
— Oh, não vá chorar! Não falei para que chorasse.
— Quem vai chorar? — Lorenzo apareceu as minhas costas,
Liliana vinha ao seu lado. — Oh, Deus... Catarina está bêbada, não
está?
Eu não iria fazer uma cena, mas quase fiz, quando uma
gargalhada escapou dos meus lábios diante do temor dele.
— Maria Elena parece com sono... — Lili murmurou. — Por
favor, podem levá-la para cochilar? Vou conversar com Catarina.
Enquanto eles se afastavam, meu celular vibrou de novo. Eu
abri a bolsa e o segurei nos dedos, porque ele estava vibrando
desde a igreja, e isso me incomodava. Eu não queria ficar
respondendo a agência na festa de Lili, mas talvez uma resposta
atravessada faria com que me deixassem em paz.
— Por que está triste, Cat?
Cat...
Gata.
Eu sorri diante do apelido. Era raro alguém me chamar assim.
Lorenzo e Liliana às vezes falavam, sem saber o quanto esse
apelido me trazia más memorias.
Cat...
Eu não quero perder um segundo sequer com lembranças, mas
toda vez que alguém me chama assim, a imagem de um garoto de
dezoito anos aparece na minha mente.
Eu te amo, Cat... Vamos ficar juntos para sempre!
O para sempre dele durou até eu ficar grávida e ele me
abandonar. Nunca mais o vi, nem sequer ouvi falar dele. Não posso
negar que, às vezes, jogava o nome dele nas buscas das redes
sociais, mas nunca apertava o enter. Eu não queria ver como ele
estaria hoje. Talvez casado e feliz, com filhos que ele amaria.
— Minha mãe está me procurando — contei a ela, que arqueou
as sobrancelhas. — Ela entrou em contato com a agência e disse
que era um caso de vida ou morte. E a agência deu meu número
para ela.
Essa era outra coisa que me incomodava. O que aquela vaca
psicopata queria comigo?
— Ela não pode fazer nada contra você.
Acenei. Era verdade.
— Me desculpe por isso... Eu não vou deixar isso me abater.
Vou melhorar e aproveitar muito sua festa de casamento. Prometo.
Será que Lorenzo tem algum primo bonitão para dançar comigo?
— Henrique estava de olho em você — Lili sorriu, e eu fiz uma
cara feia.
Não estava interessada nele nem em homem nenhum. Mas, eu
podia dançar com um cara só pra descontrair, né?
— Eu prefiro dançar com você — disse a ela. — Isso me
deixaria com fama de sapatão?
A dúvida era legítima. Qualquer coisa que vazasse sobre minha
vida – boato ou não – sempre prejudicava minha carreira.
— Agora é moda — Lili riu.
Era verdade.
— Então me dê a honra? — pedi e ela assentiu, rindo.
Era tão bom estar com ela. Minha melhor amiga era a pessoa
que eu mais confiava nesse mundo. Segurei no braço de Liliana e
começamos a andar em direção a pista de dança, quando meus
olhos cravaram no celular.
“Cat...”
Só uma pessoa me chamava assim, além das duas que
estavam ali, naquela festa.
“Eu quero ver o meu filho”.
Minhas pernas travaram, enquanto meu coração pareceu
prestes a explodir.
Yan...
Yan Leziér estava de volta.
Em Agosto, na Amazon...

A Bela e a Fera

Essa história nunca foi um conto de fadas...

Dez anos atrás, ele me abandonou grávida nas mãos de uma


mãe narcisista. Agora, ele aparecia, exigindo o filho que fez. Quando
soube que a criança não havia sobrevivido, jurou vingança.

Mas, nunca pensei que ele levasse isso tão a sério.

Nos porões de um castelo em uma ilha abandonada, Yan me fez


provar o sabor da dor e do prazer. Eu sabia que jamais voltaria a ser
a mesma depois de estar nas mãos dessa fera ferida.
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