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Sinopse:
Prólogo
UM
DOIS
TRÊS
QUATRO
CINCO
SEIS
SETE
OITO
NOVE
DEZ
ONZE
DOZE
TREZE
CATORZE
QUINZE
DEZESSEIS
DEZESSETE
DEZOITO
DEZENOVE
VINTE
VINTE E UM
VINTE E DOIS
VINTE E TRÊS
VINTE E QUATRO
VINTE E CINCO
VINTE E SEIS
VINTE E SETE
VINTE E OITO
VINTE E NOVE
TRINTA
EPÍLOGO
Em Agosto, na Amazon...
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✽✽✽
Nívea era família. Família é tudo. Além disso, minha prima era
uma mulher incrível. Doce, responsável, trabalhadora... Por que eu
não a amava? Tudo seria mais fácil se...
Claro, não era. Mas, nosso dever como sociedade era não
permitir que situações assim ocorressem. Aprendi isso com meu pai,
que era um homem muito bom. Então comecei a rumar na direção da
menina apavorada e dos garotos abusivos.
— Você está bem? — Ela deve ter uns dezesseis anos. Talvez
um pouco mais. — Quer que eu ligue para os seus pais?
✽✽✽
— Como se chama?
Ela recusou, seu rosto trazendo um horror que não podia ser
escondido.
Liliana negou.
— Não sou ruim — sorri, meio sem jeito. — Vem — disse, pela
segunda vez. — Vou comprar umas roupas novas para você, e te
levarei para tomar um banho e dormir num lugar seguro.
Ele tinha poderosos olhos azuis. Era alto, quase como um armário.
Seus músculos me deram certeza de que ele poderia me proteger
naquela noite terrível.
Faz uma semana que eu fugi de casa. Caminhei, me
esgueirando pela estrada, com medo de ser pega por algum
malfeitor ou ser recapturada pela minha mãe. Bebi água de um rio e
comi restos de uma lanchonete de estrada. Foram dias
aterrorizantes, onde meus pés formaram bolhas e meu corpo parecia
implorar por descanso.
No dia anterior, eu encontrei um pacote velho de bolachas
atirado na beira da estrada. Alguém comeu a metade e não gostou.
Mas, para mim, pareceu um manjar dos deuses. Ainda assim, eram
apenas pequenas e poucas bolachinhas, que mal conseguiram
aliviar minha fome. Depois delas, veio a sede. Terrível. Eu havia
trazido comigo uma garrafinha de água, mas ela pouco fez pela
minha necessidade.
Então, hoje, eu cheguei nessa cidade do interior. Havia muito
movimento nas ruas, e eu pensei que ficaria em segurança por estar
num local público e com várias mulheres ao redor. Mas, ninguém
parecia me ver ou prestar atenção em mim. Quando fui interceptada
por três garotos bêbados, as pessoas olhavam-me com puro
desdém, e não importava para onde eu corresse, não estava em
segurança.
O mundo é um lugar complicado. Não havia lugar seguro.
Até ele aparecer...
Lorenzo. Eu gostei do nome dele. Da personalidade. Da forma
como ele pareceu doce em me proteger, me alimentar. Pela primeira
vez na vida, recebi um mísero de bondade e nem sabia como
agradecê-lo.
— Acho que essas roupas vão servir — ele disse, enquanto
pegava duas calças jeans e duas blusas em uma lojinha aberta na
esquina da rua principal. — Você vai precisar de um casaco também.
Ele não olhou o preço, ou se importou. Parecia um homem com
muito dinheiro, porque simplesmente pegou as roupas, uma bolsa de
viagem para guardá-las e foi ao caixa pagar. Depois, ele segurou
meu braço e me guiou para um hotel chique, já fora da área do
evento.
— Você vai tomar um banho — ele disse. — Depois vai jantar
comida de verdade.
Eu me comovi com as palavras, não apenas por elas, mas pelo
tom que ele usou: afetuoso, delicado e protetor. Então, fui com ele,
até porque, francamente, o que eu tinha a perder? Seja o que for que
esse homem planeje ou o que quer que ele pense em fazer comigo,
nada poderia ser pior do que as outras pessoas já fizeram.
Nós entramos em um quarto bonito, um ambiente tão
requintado quanto o que eu via na televisão, nas novelas da noite,
tão limpo e cheio de adornos, tão perfeito que quase machuca os
olhos.
— Aqui tem um banheiro — ele me guiou até um local anexo ao
enorme quarto. — Tem shampoo, condicionador, sabonete, toalhas...
Enfim, tem tudo.
Eu sabia que estava fedendo, mas ele não parecia estar me
julgando. A forma como ele mostrou o banheiro era mais como se
estivesse me estendendo a mão, me dando um espaço para que eu
pudesse me limpar e me tornar humana de novo, porque eu não
acreditava mais que era gente.
— Obrigada, Senhor Lorenzo.
Ele sorriu. Seus dentes tão brancos e seu olhar tão gentil.
Nesse momento, eu me perguntei a idade dele. Com certeza era
mais velho que minha mãe. Devia estar beirando os quarenta, talvez
até um pouco mais. Era um homem vivido, tinha um olhar experiente.
Repentinamente, eu me lembrei dos meus próprios
pensamentos dias antes. Eu queria encontrar um homem bom, que
pudesse arrancar de mim minha virgindade e me livrar da dor de ser
violada na minha primeira vez.
E então soube que estava exatamente diante do escolhido.
TRÊS
— Eu preciso lhe dizer uma coisa, Sr. Lorenzo. E peço que não
me julgue. Não me condene. Não me entenda mal.
Arqueei minhas sobrancelhas curioso com as palavras.
— Pode dizer.
Terrivelmente esclarecedora.
— Liliana... A polícia...
Eu iria dizer que não podia fazer isso. Que era cruel e
desumano que uma menina tão doce fosse arrastada a um mundo
devasso dessa forma, mas então Liliana se colocou em pé e veio até
mim.
Ele desliza para dentro de mim como uma espada banhada em mel.
É tão delicado que faz meus olhos lacrimejarem, pois a cada avanço,
percebo seu cuidado, a forma como ele me alonga a cada
centímetro, me fazendo sentir única e especial.
Eu sei que não teria isso com outra pessoa. Não faço ideia de
como é um estupro, mas entendia que quando os ameaçadores
homens com quem cruzei me tomassem, não seria com essa
delicadeza que eles agiriam.
— Você é tão apertada — ele murmura contra meus ouvidos, e
não sei se é seu tom, ou pela forma quente como seu hálito toma
minha face, eu queimo em mil pedaços.
Então, de repente, ele me beija. Doce e suavemente nos lábios,
como se percebesse que por mais desejosa que eu esteja, ainda há
certa ardência em sua entrada. Eu gosto da forma como ele me
aconchega entre seu corpo e a cama, e a forma como seus dedos
enroscam nos meus cabelos, enquanto ele me mantêm no lugar.
Eu gemo quando ele empurra de novo, um grito interrompido
trava na minha garganta.
— Liliana?
Eu sei que ele está preocupado em me machucar, mas eu só
quero que ele faça completamente o que tem que fazer.
— Não pare — imploro.
— Você é tão linda — ele murmura. — Eu não sei se
conseguirei parar algum dia — admite e eu não entendo exatamente
o que ele quer dizer.
Só sei que seu calor é bom. Sua segurança. A maneira
respeitosa como ele me toma. Eu sei que sou quebrada, mas ele
parece disposto a unir esses cacos. E, conforme essa consciência
me toma, o ardor e a dor começam a ser substituídos por um tipo de
calor novo, algo que mais se assemelha ao prazer que ele me deu
momentos antes.
Eu nem conheço Lorenzo. Estou em sua presença a menos de
seis horas. Mas, eu sei que ele está me preenchendo com algo além
do físico. Era como se nosso encontro fosse para ser, como se
estivéssemos para nos conhecer, e nos conectar, de uma forma ou
outra.
E estou tão aliviada por ele estar em mim.
É como se... eu tivesse sentido tanto a sua falta.
— Lorenzo — eu murmuro, gemo, e ele me toma novamente
com seus lábios.
Então o movimento se torna uma sucessão de investidas.
Estou cercada por sua carne, preenchida por sua alma. Até esse
momento, sempre me senti tão sozinha. Agora eu o tinha... Oh,
Deus, estava tão feliz.
Todo o meu corpo está vivo. Eu estou viva. Pela primeira vez,
eu respiro após estar submersa em dor por tanto tempo. Então meu
corpo vem, fagulhas de calor me levando até a borda do universo, e
me jogando de lá. Eu vejo estrelas, convulsionando em ondas
quentes. Lorenzo me segura, cuidadoso, enquanto posso sentir ele
se derramando em jatos poderosos e quentes dentro de mim.
Eu estou tão feliz. Eu o seguro enquanto seu corpo caí sobre o
meu, sua respiração quente no meu pescoço. Eu poderia ficar assim
para o resto da minha vida.
✽✽✽
✽✽✽
— Não forçá-lo a ser pai? — Catarina reclamou, suas mãos
balançando no ar. — Você tem que arrancar até as calças dele num
pedido de pensão.
Gustavo, o maquiador, riu alto, enquanto deslizava um pincel
sobre o rosto de Catarina.
— Se eu engravidasse de um ricaço, eu o faria comer nas
minhas mãos — ele disse, fazendo meu olhar cair em sua figura
jeitosamente feminina. — Arranque o que puder dele, querida.
Homens não prestam — ele destacou.
— Ele parece prestar — eu neguei. — Sei que é difícil explicar,
mas...
— Ele é um homem de quase quarenta anos que pegou uma
menina menor de idade, na época — Catarina ralhou. — Eu fiz os
cálculos, eu sei que você era menor quando dormiu com ele. Não,
ele não presta. E você tem que meter um pau tão grande na bunda
dele, que esse homem nunca mais irá olhar para outra menor de
idade na vida dele.
Não consegui dizer a ela que Lorenzo me fez um favor quando
dormiu comigo. Claro, eu não sabia sobre essas coisas de
preservativo, e ele devia ter se protegido. Mas, estava tão feliz por
ele ter me dado uma boa primeira vez que não era capaz de culpá-lo.
E, apesar de eu ter seguidos momentos de pânico quando olhava a
barriga, eu também já amava meu bebê e estava disposta a ser a
melhor mãe que pudesse.
Subitamente, o celular em cima da mesinha de vidro vibrou.
Encarei meu aparelho, percebendo que era um número
desconhecido. Eu estava aguardando a ligação de Lorenzo desde o
dia anterior, então meu coração pulsou com força, quase
dolorosamente, quando percebi que era ele entrando em contato.
Depois de tantos meses, eu o veria novamente? Como seria
esse reencontro? Ele ficaria enojado por eu estar com a barriga
dilatada, ou ficaria feliz em ser pai?
— Atenda, mulher! — Catarina quase gritou, e eu obedeci,
pegando o celular.
Gustavo e Catarina ficaram em silêncio, me encarando,
enquanto eu aceitava a ligação.
— Sim?
— Liliana?
A voz era feminina. Eu levei alguns segundos para perceber
que era de Nívea.
— Sim? — repeti.
Por que ela estava me ligando? Meu assunto era com Lorenzo!
Por que ele estava colocando sua prima para resolver esse
problema?
— Falei com Lorenzo na noite passada — ela me contou. —
Ah, Liliana... Foi uma conversa difícil. Eu não vou amenizar ou florear
a coisa toda — sua voz era tão fria que eu senti meu corpo se
arrepiando. — Resumindo: Lorenzo me pediu para entregar um valor
para você, a fim de realizar um aborto. Ele espera que você não o
procure mais.
Eu sinto as lágrimas invadindo meus olhos, minha garganta
ardendo, meu coração dolorosamente machucado.
— De verdade, eu sinto muito, Liliana. Mas, espero que você
entenda que Lorenzo e você foi coisa de uma noite. Ele não tem
qualquer interesse em você. E forçá-lo a ser pai de um filho que ele
não quer, só vai piorar as coisas.
Eu não conseguia ouvir mais nada, então eu desliguei.
Imaginei que Catarina e Gustavo fossem inquirir o que haviam
me dito, e torci para que não questionassem nada, porque eu não
aguentaria falar sobre o tanto que ouvir aquilo me feriu.
— Oh, Lili... — ouvi a voz de Catarina, e logo senti os braços
dela ao meu redor.
O abraço de minha patroa trouxe um pouco de conforto sobre a
realidade que agora me acometia:
Lorenzo rejeitou meu bebê.
DEZ
2 MESES DEPOIS
✽✽✽
Eu cresci sem pai. Catarina até teve um, mas que nunca se
importou em protegê-la. E nós duas fomos vítimas do destino. A vida
não era fácil para as mulheres, especialmente as que não tem quem
as proteja, e eu disse a mim mesma que o motivo de estar
concordando é porque queria que minha bebê tivesse alguém para
cuidá-la se algo, por acaso, me ocorresse.
Se eu tivesse um pai, meu padrasto nunca teria se atrevido a
tentar me estuprar.
Se eu tivesse um pai eu não teria ido para as ruas.
Ao menos eu imaginava isso. Não tinha como ter certeza.
Catarina diz que homens não são confiáveis.
Então, tentei me convencer, e a Catarina, sobre esse
argumento, mesmo sabendo que não era totalmente verdade.
E minha amiga também parecia entender que meus motivos
eram outros. Ela suspirou pesadamente enquanto eu arrumava
minhas roupas.
— Eu entendo você — ela disse, meu coração ficou pequeno
diante das suas palavras. — Eu já amei, sabia?
Sim, eu sabia. E esse amor foi tão grande... tão grande... que
marcou Catarina de um jeito que, agora, ela era incapaz de amar
outra pessoa. Especialmente porque ela foi machucada demais.
Ferida demais.
Observei minhas roupas dobradas na minha mala. Eu estava
levando quase todas que me serviam, e algumas para depois do
parto. Não sei exatamente o que estou fazendo, mas acredito que
ficarei com Lorenzo até um mês ou dois após o nascimento da bebê.
Depois, só Deus sabia.
Não estava esperando romance ou amor. Paixão ou essas
coisas. Só estava esperando que ele agisse como o homem que me
salvou naquela noite. E estava lhe dando uma chance para que ele
pudesse vivenciar um pouco a gravidez.
— Se alguém te magoar, você pode voltar, Lili. Minha porta
sempre estará aberta.
Senti lágrimas nos olhos, e então avancei para Catarina. Eu
nem acreditava que Deus foi tão bom em fazer meu caminho cruzar
com o dela. Catarina era tão dura no trato, que provavelmente não
fosse a necessidade, eu nunca teria me aproximado. E eu nunca
teria descoberto a pessoa incrível que ela era por baixo da casca
grossa.
— Confronte a tal Nívea e descubra quem está falando a
verdade — minha amiga aconselhou.
— Sinceramente, nem sei como fazer isso.
— Precisa fazer. Se ela mentiu, não permita que se aproxime.
— Sim. Eu quero ter um parto tranquilo.
— Quando chegar a hora, me avise. E me mande mensagens
todos os dias, quero saber como está.
Assenti.
Depois, rumei a porta do meu quarto, e a abri. Lorenzo estava
do lado de fora, mãos nos bolsos, parecia me esperar.
— Pegue a mala — Catarina disse a ele. — Não está
esperando que uma grávida erga peso, está?
Ele a fuzilou com os olhos, e eu quase ri.
— Se não cuidar da minha amiga, eu juro que destruo você —
ela continuou, ameaçadora, quando ele cruzou por nós.
— Vou cuidar. Vou me casar com ela.
Eu sei que a frase escapou de seus lábios, porque ele
enrubesceu como um garoto. Catarina também pareceu em choque
por alguns segundos, então retrucou.
— Você não vai forçá-la a um casamento. Não é porque ela é
jovem que será...
— Não farei isso. Eu juro — ele rebateu.
— Não é porque tem dinheiro que pode tudo. Eu tenho
influência, eu destruo sua imagem no país inteiro estalando os
dedos.
— Não vou forçar Liliana. Jamais faria isso. Apenas, se ela
quiser... Nossa filha pode nascer numa família tradicional.
Era impressionante que eles discutiam um casamento tão
naturalmente. As coisas não deviam acontecer assim. Lorenzo nem
me conhecia, eu também não sabia nada dele. Precisávamos
conviver para, ao menos, sermos amigos.
— Família tradicional? Olhe a barriga dela! Que noiva
tradicional casa quase parindo?
— As coisas não deviam ser assim. Eu contratei o melhor
investigador do país para encontrá-la, mas como o cara conseguiria
alguma informação apenas com um primeiro nome. Aliás, qual seu
sobrenome? — ele girou para mim, e eu pareci surpresa. Era a
primeira vez que me perguntava isso.
— Silva. Liliana da Silva.
— Você pode se tornar Liliana Colombo a hora que quiser,
querida — ele disse.
Eu quase sorri em retribuição ao seu próprio sorriso. Lorenzo
era sempre tão doce quando falava comigo.
— Nossa, que vantagem! Casar-se com um velho como você.
Eu sabia que Catarina estava provocando-o apenas para
despertar a raiva de Lorenzo, talvez fazê-lo explodir, e assim ter um
bom argumento para não deixá-lo me levar. Eu esperei para ver a
reação, porque se ele explodisse com ela, eu não iria. Não estava
disposta a viver ao lado de um homem agressivo depois de tudo que
passei.
— Eu vou fazer quarenta.
— Jura? Tem cara de, pelo menos, sessenta.
Houve um breve silêncio, e então Lorenzo explodiu... Numa
gargalhada. Nós duas nos encaramos, surpresas.
— Você vai cuidar dela, não vai? — Catarina indagou,
parecendo enfim vencida.
— Com a minha vida. Não se preocupe. Te dou minha palavra.
— E o que fará com a sua prima?
— Ainda não sei. Minha família... — ele emudeceu por alguns
segundos. — Eu vivo numa enorme propriedade em Chapada dos
Guimarães, perto de Cuiabá. Meus pais morreram há muitos anos...
E meus tios e primos moram todos perto, na mesma propriedade. A
casa principal é minha, e moro sozinho com a governanta. Mas...
Meus parentes estão ao meu redor o tempo todo. Não será fácil
confrontar Nívea, mas eu devia ter feito isso há muito tempo, desde
que percebi seus sentimentos por mim.
A situação era de fato complicada, mas há coisas na vida de
que não há como escapar.
DEZESSETE
✽✽✽
✽✽✽
Ele está tão bonito nessa manhã. E a forma como ele sorri para
mim, parece inundar minha alma com um tipo de alegria que mal
consigo acreditar que existe.
— Está pronta?
— Não consigo calçar as sandálias — expliquei.
A enorme barriga não me deixava fazer muitas coisas.
Lorenzo se curvou diante de mim. Eu estava sentada na cama,
e podia ver seus cabelos castanhos escuros caírem sobre seus olhos
enquanto ele observavas as tiras da sandália. Parecia um trabalho
difícil, e eu sorri.
No café da manhã, ele me lembrou da consulta. Eu estava com
chinelos no momento, e usava uma roupa confortável que, com
certeza, não sairia na rua. Então subi para o quarto me arrumar. Ele
veio em seguida, me auxiliar.
Shirley era a única pessoa que estava na casa naquela hora.
Foi um alívio que a família dele não aparecesse. Era sempre tão
difícil encarar aquela gente. E a vida era bem mais fácil apenas com
Lorenzo. Eu sabia que ele amava o bebê, e depois do que disse na
noite anterior, talvez me amasse também.
Ele não deu certeza, e eu não inquiri nada. Estava emocionada
demais para falar, então apenas nutrimos o silêncio pelo resto da
madrugada.
— Vocês vão demorar? — Shirley indagou.
— Não — Lorenzo negou. — Por quê?
— Eu vi a Toyota preta chegando hoje de manhã na casa de
Verônica.
Eu não sabia de quem era a Toyota, mas pela frieza no olhar de
Lorenzo, desconfiei que se tratava de Nívea.
VINTE E QUATRO
✽✽✽
— Olhe só... — a médica sorriu, enquanto passava um
aparelho sobre o ventre de Liliana. Eu precisei conter as lágrimas
quando vi uma imagem em 3d de um bebê. — É uma meninona. E
está tudo bem com ela.
Quando mais jovem, eu sonhava em me casar aos trinta e ter
dois filhos aos trinta e cinco. O tempo passou, e eu percebi que não
conseguiria uma família e tentei me convencer de que estava tudo
bem.
Nem tudo na vida é como a gente quer.
Mas, então Liliana apareceu, e agora eu vivia esse milagre.
Minha filha.
Minha.
Meu milagre.
O destino é surpreendente.
VINTE E CINCO
✽✽✽
A carne era tão macia que parecia despedaçar diante dos meus
olhos. Eu sentei-me à ponta da mesa, não que eu sentisse que fosse
um lugar destinado a alguém especial, mas porque facilitava a
posição da minha barriga sem incomodar mais ninguém ao meu
lado.
— Eu estou tão feliz que vocês tenham vindo — Tereza disse,
enquanto ia colocando uma infinidade de pratos à mesa. — Estou
feliz porque a família está junta de novo.
— Está esquecendo que Henrique não está aqui — disse João,
o esposo de Tereza.
— Eu nunca esqueço de Henrique — ela afirmou, encarando o
marido.
Depois ela sorriu na minha direção. Eu sorri em resposta para,
em especial, ser cortês. Mas, a verdade é que eu não sentia vontade
de sorrir.
Pouso a mão sobre meu ventre. Há um certo desconforto, não
chega a ser dor, mas parece que algo está acontecendo na minha
barriga. Eu não disse nada a Lorenzo porque não queria apavorá-lo,
mas a verdade é que eu queria estar deitada na cama agora, e não
indo jantar numa das casas da fazenda.
— Liliana, você gosta de sucos? Eu fiz alguns, de frutas,
especialmente para você — ela comentou, e eu acenei, aceitando.
Eu não sei por que, mas, a única pessoa que sempre sorria
para mim daquela família, Tereza, era a que menos eu simpatizava.
Elsa, por exemplo, a tia irascível de Lorenzo, me lembrava Catarina,
sem eufemismos, mas com gritante sinceridade, então me deixava
menos...
Como se lesse meus pensamentos, subitamente Elsa aparece
na sala de jantar. Eu não sei se todos estão surpresos, mas com
certeza Tereza está, porque ela encara a irmã gêmea – que de tão
semelhante parece tão diferente – e indaga, quase aos berros:
— O que está fazendo aqui?
— Tereza! — João repreende a mulher, mas ela nem parece se
importar.
— Você não foi convidada — Tereza insiste, num tom de
expulsão.
— Eu preciso, irmã? Achei que sua casa é minha casa. A
família não é sempre tão importante para você?
O ar tem um cheiro diferente. Não é a comida. Ele quase reflete
um desconforto vergonhoso. Tensão. Eu encaro Lorenzo, como se
esperasse que ele fizesse alguma coisa, e ele prontamente me
responde, se colocando em pé e puxando uma cadeira.
— Claro, tia... Tenho certeza de que tia Tereza só está
preocupada se teremos comida o suficiente, mas eu tenho certeza
de que vai sobrar, porque tia Tereza cozinhou para um exército — ele
brincou tentando amenizar a situação.
Elsa aceitou a cadeira, e sentou-se ao lado do sobrinho. Ela me
encarou depois disso, e parecia estar me julgando com a mão no
ventre, ou estar me questionando algo, eu não sabia o quê, então
apenas baixei meus olhos e peguei o garfo e a faca.
— Vamos fazer uma oração? — Tereza indagou, me fazendo
soltar o garfo imediatamente. Eu não sabia que havia esse tipo de
ritual na família, e fiquei envergonhada de ser a única a não esperar
para comer.
Mas, eu estava com fome. E cansada. E com esse desconforto.
Eu só queria voltar para casa, dormir nos braços de Lorenzo.
— Oração? — Elsa indaga. — Desde quando você faz isso?
— Você não sabe nada sobre mim, irmã.
— Eu te conheço desde o ventre de nossa mãe. Se tem alguém
que sabe exatamente quem é você, sou eu.
Oh, Deus... isso era tão... tão... difícil. Eu sabia que as pessoas
vem com um pacote que normalmente incluem a família, mas eu
realmente não conseguia aguentar esse laço. Juro que eu preferia
estar em Porto Alegre do que conviver com as tias dele.
Por fim, João pigarreou e disse que faria a oração. Ele falou
meia dúzia de palavras agradecendo a comida, e depois nós
começamos a comer. Tereza cozinhava bem, e eu estava com fome,
então deixei-me afundar naquele silêncio, quase agradecendo por
ninguém falar nada e o constrangimento ir passando rapidamente.
Subitamente, porém, João comentou:
— Tereza, disse que fez sucos de frutas para Liliana. Vá pegar.
— Depois ele me encarou, sorrindo. — Tereza faz uma mistura de
abacaxi com hortelã e mel que parece um manjar dos deuses.
— É verdade. Eu lembro que meu pai adorava esse suco —
Lorenzo afirmou. — Ele dizia que não há bebida no mundo que se
compare.
Mais silêncio. Por algum motivo eu vi Tereza rígida, encarando
a irmã. Elas trocavam um olhar poderoso, e eu não fui a única que
reparei.
— O que está acontecendo? — Lorenzo perguntou.
— Nada — Elsa disse. — Vá pegar o suco irmã. Estamos todos
ansiosos para provar.
Eu olho para Tereza, e a vejo se colocando em pé.
— Está certo, vou pegar o suco.
— Vamos todos — Elsa diz, também se colocando em pé. —
Para a jarra não cair no chão, ou coisa assim, e nós dispensarmos
esse “manjar dos deuses”.
Lorenzo e João começaram a falar ao mesmo tempo. As
perguntas iam de “por que está falando isso?” ao “O que está
acontecendo entre vocês duas?”, mas eu sentia uma seriedade no
olhar que me fez colocar-me em pé. Por mais difícil que fosse me
levantar, algo em que Elsa disse me fez fazer isso.
Lorenzo logo estava ao meu lado.
— Querida, não precisa — ele disse.
— Eu vou — afirmei, sem pestanejar e sem estremecer a voz.
Nunca estive mais firme.
Foi então que eu vi o ódio em Tereza. Ela estava sempre
sorrindo, e conseguia esconder bem aquela atitude, mas me ver de
pé a fez queimar. O fogo quase se alastrava além dela.
— Elsa, explique agora! — João ordenou.
Ninguém ali era idiota. O que quer que estivesse acontecendo
incluía o suco que Tereza preparou.
— Há mais de vinte anos, meu amado irmão começou a
adoecer. Ele era saudável e forte, e nunca esteve doente. Mas,
adoeceu. Coisas da vida, não é? Uma hora a gente está bem, e
então começa as dores de cabeça, dores no corpo... Foram feitos
vários exames e nada foi diagnosticado. Ele não tinha nenhuma
doença que os médicos soubessem. Mas, eu sabia que não era
verdade. Ele tinha uma moléstia. Uma bem viva, de carne e osso,
com um metro e sessenta e que tem a mesma cara que eu.
— O que está dizendo, tia? — Lorenzo suspendeu o ar.
A implicação era clara.
— Tereza insistiu em ficar ao seu lado. Era ela que fazia seu
almoço e jantar. Quando ele morreu, eu já estava desconfiada dela,
mas não tinha provas. Então foi a vez de Maria Elena. Sua mãe era
uma mulher incrível, uma mulher valorosa e forte. E eu comentei com
ela minhas desconfianças, porque eu queria protegê-la de um futuro
igual ao do meu irmão. Por mais triste que sua mãe estivesse, ela
nunca caiu em depressão após a morte do marido, e sua saúde
estava excelente. Até aquele café da manhã. Ninguém soube, mas
eu vi Maria Elena naquela manhã e ela estava absolutamente
saudável.
— Do que está me acusando? — Tereza gritou. — De matar
meu irmão? Eu sou uma mulher temente a Deus!
— A que Deus? — Elsa retrucou. — Sua postura de pessoa
perfeita, sorridente, gentil, boazinha... nunca me enganou. Mas
enganou a polícia, não é? Quando Maria Elena caiu dura sobre a
mesa, eu comentei ao delegado que desconfiava de assassinato por
envenenamento. Mas, depois de conversarem com você, eles foram
manipulados, e passaram a desconfiar de Lorenzo. Eles quase
prenderam o menino! Era o que você queria, não é? Que ele fosse
deserdado, assim toda a herança viria para os demais parentes.
— Meu Deus, Elsa! — João se pôs de pé. — Como você pode
dizer algo tão horrível?
— Eu tenho certeza. Anos depois, Shirley me contou que, na
manhã da morte de Maria Elena, viu Tereza pela casa.
— Sim, eu estava lá. Havia ido para conversar com Maria Elena
sobre uma viagem que Henrique queria fazer e não tínhamos
condições de pagar. Iria pedir o dinheiro emprestado a ela!
— Essa pode ter sido sua desculpa, mas não é a realidade.
Você foi lá para envenenar Maria Elena.
— Irmã, nunca vou te perdoar por dizer isso — Tereza afirmou.
— Foram feitos exames e constataram que não havia indícios de
envenenamento. Lorenzo foi inocentado por causa disso. Então,
como pode falar coisas tão abomináveis?
— Eu sempre me perguntei como você fez — Elsa embargou a
voz. — Sempre me culpei por pensar tão mal de você. Mas, então
comecei a traçar paralelos. Você viajou ao Paraguai meses antes de
meu irmão morrer. Foi lá que comprou um veneno, não foi?
— Você é louca, Elsa.
— Eu comecei a procurar por algo na fazenda. Eu sabia que se
houvesse um veneno, você o usaria de novo. E, por anos, eu não
achei nada. Você matou nosso irmão e nossa cunhada para se tornar
herdeira. Como Lorenzo não foi acusado de assassinar os pais, você
desistiu desse plano e pensou em usar Nívea, afinal, ela é filha da
sua melhor amiga. Verônica não sabia, é claro, que seu apoio a uma
relação entre Nívea e Lorenzo era para tornar Nívea a herdeira. E
depois de um tempo casados, você mataria Lorenzo e faria Henrique
um pretendente a curar o coração de Nívea. Não era um plano
rápido, mas era efetivo, porque Nívea e Henrique se gostavam
quando eram adolescentes, e sem Lorenzo para separá-los, eles
poderiam voltar a viver juntos.
— Que ideia mirabolante!
— Mas Liliana apareceu. E grávida. Mesmo que Lorenzo não
se casasse com ela, a bebê será sua herdeira. Seus planos
acabaram! Ou não, se pudesse fazê-la abortar. Ou morrer. Como
Lorenzo expulsou todo mundo da casa, você precisava de um jeito
de fazer isso acontecer, rápido. A bebê vai nascer, e Lorenzo e
Liliana poderão ter outros filhos. Não dá pra matar todo mundo e a
polícia não desconfiar de nada.
Eu sinto que vou desmaiar a qualquer momento. Minha mão
aperta minha barriga, quase nunca tentativa louca de proteger Maria
Elena. Eu não posso deixar que ninguém lhe faça mal.
— Eu quero ver o suco, agora — digo.
— Isso mesmo! — Elsa concorda. — E para provar que eu
estou louca e mentindo, Tereza o beberá na nossa frente.
A máscara caiu naquele momento. Tereza deixou a mesa vazia,
enquanto corria em direção à cozinha. Eu não sei o que ela
planejava para livrar-se da culpa, talvez se livrar do suco, mas ela foi
seguida de perto pelas três outras pessoas da sala.
Eu não era capaz de ir com eles, então voltei a me sentar,
enquanto ouvia os berros do outro lado da casa. Minha mente tenta
juntar as peças de tudo que Elsa falou, e eu vi que ela estava certa.
— Liliana — Subitamente, Lorenzo está ao meu lado. — Vamos
para casa. Vou ligar para a polícia resolver tudo, mas antes vou te
deixar num lugar seguro.
Contudo, repentinamente, me vejo despejando. Minha bolsa
estourou e eu tentei não entrar em pânico, enquanto via o olhar de
Lorenzo arregalar mais e mais.
— Preciso ir ao hospital... — pedi.
VINTE E NOVE
✽✽✽
Meu tio João se aproximou de mim no berçário. Ele trazia o
rosto pesado, de uma dor que eu nem conseguia decifrar.
— Eu não sabia de nada disso... — ele me disse e eu
concordei.
Meu pai confiava nele. E eu confiava em Henrique. Tínhamos
nossas diferenças, mas não tinha dúvida de que eram inocentes.
— Tereza é uma psicopata — murmurei.
Nunca mais conseguiria chamá-la de tia.
— Elsa está com a polícia na casa. Tereza ainda nega, mas é
muito claro que ela fez isso. Eu nunca vou entender aonde a
ambição pode chegar... Seu pai foi tão bom conosco, me deu um
ótimo emprego e nos deu a casa na propriedade. Como Tereza foi
capaz de fazer isso, meu Deus...?
— O que o senhor fará?
— Eu vou pedir o divórcio — ele me contou. — E peço que me
despeça, pois eu pretendo ir embora do Mato Grosso. Foi recomeçar
em outro, esquecer o que aconteceu... Não quero nunca mais ver
essa mulher enquanto eu viver.
Eu entendia. Pus a mão no ombro dele, apertando. Meu tio
estava tão arrasado em um momento que eu estava tão feliz. A vida
era algo complicado.
— Qual delas é a sua? — ele indagou, diante do vidro onde
vários bebês dormiam em pequenos berços.
— Aquela ali — apontei, a última da primeira fileira à direita.
— É linda.
Eu assenti. Essa era a maior das verdades.
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A Bela e a Fera
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