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Copyright © 2021 DANIELLE VIEGAS MARTINS

Capa: L.A Criative – Larissa Aragão


Revisão: Karen Patricia - KP Assessoria Textual
Diagramação: Imaginare Editorial – April Kroes

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos


descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
___________________________________
O QUE EU NÃO POSSO TER
1ª Edição - 2021
Brasil
___________________________________
Todos os direitos reservados.

São proibidos o armazenamento e / ou a reprodução de qualquer parte dessa


obra, através de quaisquer meios ─ tangível ou intangível ─ sem o
consentimento escrito da autora.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº. 9.610/98 e


punido pelo artigo 184 do Código Penal.

autoradanielleviegas@gmail.com
Sumário

Playlist

Epígrafe

Prólogo

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11
Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Epílogo

Contato

Biografia
SPOTIFY
O futuro é para aqueles que sabem esperar.
P ROVÉRBIO RUSSO
São Petersburgo – Rússia, março de 2019.

— O QUE FAZ DORMINDO AQUI, IZOLDA? — O tom enérgico na

voz dele me acorda e me põe em alerta. Meu coração acelera um pouco pelo

susto. Olhei para o rosto do homem parado a poucos metros de distância; seu

rosto estava rígido, ele estava irritado. Eu o conheço o suficiente para


identificar essas expressões, o suficiente para saber que aquilo em sua voz

era desaprovação. Eu me sentei imediatamente na cama daquele pequeno

sótão que, desde sua viagem, era o meu quarto na mansão.


— E-eu apenas segui as determinações de sua avó — gaguejei

assustada com a forma brusca como ele entrou no quarto. Instintivamente

puxei o lençol e cobri o meu corpo. Minha mente recrimina o meu corpo

pelo gesto sem sentido. Eu estou vestida, completamente vestida. Uma

camisola de algodão grosso protege meu corpo contra o inverno russo, meias
de lã reforçam o cuidado contra o aquecimento precário do quarto. Ainda

assim, de alguma forma, eu tinha me sentido exposta diante dele.

Esperei o que meu marido diria em seguida.

Ele voltou. Depois de mais de um mês, ele voltou para casa. Não

para mim. Disso, eu sabia. Voltou para tudo que lhe pertencia. Para o

império no qual ele reinava absoluto.

— Esta casa é minha! A única pessoa que dá ordens aqui sou eu.

Pensei que já tinha deixado isso claro em nossa última conversa. Pode me

explicar por que eu tive que vir buscar a minha esposa neste... sótão

empoeirado? Levante-se! Vamos para o nosso quarto. Agora!

Coloco-me de pé tão rápido quanto posso, pegando o robe e o

vestindo apressadamente.

— O senhor me pediu para que, enquanto estivesse em viagem, eu

tentasse manter uma convivência harmoniosa com madame Olga e foi o que

eu fiz. Eu preferia ter ido para a Sibéria... — respondo, me recuperando do


choque de ser acordada de forma repentina. — Eu perguntei se poderia

acompanhá-lo na viagem, mas não considerou meu pedido. — Tentei dizer

aquilo sem demonstrar a mágoa que carregava em meu peito. Não queria

pensar sobre o quanto foi difícil ficar nesta casa sem ter mais ninguém com

quem conversar porque tudo mudou.

Além de tudo que tinha passado, do luto, do medo, eu tinha ficado

sozinha, completamente sozinha.

Os empregados da casa mal se dirigiam a mim. Agora, eu não era mais

uma criada como eles, por mais que fosse exatamente assim que eu me

sentisse. Nada em mim havia mudado, mas a etiqueta social determinava que

eles não podiam mais me tratar como antes. Deveriam me tratar com a

cerimônia devida à esposa do Босс[1], ou arriscariam seus empregos se

madame Olga notasse qualquer impertinência de um empregado com um dos

membros da família, mesmo que ela não me considerasse, de fato, como um


membro da família.

Mas eu não mudei. O meu mundo mudou. E mudou tão subitamente,

nem me dando a chance de reagir a todas as novas regras de comportamento


que eram esperadas de mim. Desde que tudo aconteceu, eu venho sendo

arrastada de um lado para o outro como uma boneca de pano ou

simplesmente deixada de lado. Essas são as únicas opções, ninguém parece

se importar com o que eu quero, com o que eu preciso.


Agora, eu sou a esposa do senhor daquela casa. Não sou mais uma

arrumadeira. Não sou mais a filha do mordomo que cresceu dentro daqueles

muros. Deixei de ser a Izzy e passei a ser Sra. Izolda, a esposa do patrão e
dono de toda a herança e todo o legado dos Orlov agora.

— Eu só queria ficar ao seu lado. Talvez conversar e explicar tudo

que...

— Conversar? Oymyakon possui o recorde de lugar habitado mais frio


em todo o mundo. — Ele me interrompeu, mostrando que não queria ou

simplesmente não se importava com o que eu tinha a dizer. — Por que eu a

arrastaria para lá comigo? Não é um lugar para se fazer turismo, Izolda.

Ainda mais com os seus problemas pulmonares, você ficaria praticamente o

tempo todo trancada em um quarto com lareira e, mesmo assim, não estaria

suficientemente aquecida. Como vê, não havia nenhum propósito levá-la

comigo.

— Minha saúde não é tão ruim quanto você faz soar — retruco um

pouco irritada. Talvez ele tivesse razão. Talvez minha asma fosse uma

enorme contraindicação para uma viagem a um dos lugares mais frios da

Sibéria, mas ele não tinha nem ao menos considerado a opção ou tentado se

justificar. Ele simplesmente decidiu e pronto, como se a palavra dele fosse a

lei. — Eu sei que não é feliz. Sei que casar comigo foi uma obrigação, o
cumprimento de uma promessa, mas não precisamos permanecer casados. O

nosso casamento nunca foi... Ele nunca foi... Nós nunca o...

— Consumamos? — ele diz a palavra que eu não consegui pronunciar.


Resigno-me a assentir, confirmando.

— Podemos anulá-lo a qualquer momento. Eu posso desaparecer e

você terá sua liberdade de volta.

Ele me olha como se aquilo tivesse o machucado, como se o fato de

que quero ir embora realmente importasse. Mas a verdade é que ele assumiu

um compromisso que se tornou público, as pessoas sabem que ele está

casado, e seria um escândalo para a família Orlov, uma das famílias mais
importantes do país, ter um casamento que durou tão pouco.

— Eu expliquei a você antes de partir. Não omiti o meu destino, nem o

que iria fazer lá. Tratava-se de uma viagem de negócios. Escavar o gelo para

perfurar novos campos de petróleo. O inverno da região é muito mais rígido

do que o de São Petersburgo, Izolda.

Ele preferiu ignorar tudo o que eu disse? Mas me mantive firme.

— A minha opinião sobre este casamento nunca foi considerada. O

senhor não me quer por perto e, em até certo ponto, eu compreendo, porque

eu também não gostaria de estar casada com alguém que não amo. Além
disso, esse casamento não é tão ruim para o senhor, é? Pode viajar para onde

quiser, fazer o que quiser e...

— Não entende que agora as coisas são diferentes? — ele pergunta,

me interrompendo. — Você agora é uma mulher casada!

— E o senhor é um homem casado, mas nada o impede de passar

quarenta e dois dias longe de sua esposa. — Imediatamente me arrependo


dessas palavras, pois sei como elas podem ser interpretadas.

— Izolda, se está insinuando que eu estava com outras mulheres... –

Ele se interrompe e sorri, mas é uma risada um pouco maldosa. — Eu passei

todos esses dias trabalhando, mal tive um segundo para ouvir meus próprios

pensamentos direito até alguns dias atrás. A última coisa na minha mente era

conseguir uma amante. Além disso, você sabe que viajar é uma parte

importante da minha rotina de trabalho.

Quero gritar que qualquer coisa que ele tenha enfrentado, o frio

terrível, o excesso de trabalho, eu trocaria tudo isso pelo vazio de ter ficado

aqui. Ele fala de viajar como se fosse um fardo, quando tudo que eu quero é

me libertar dessa gaiola em que passei a viver.

— Eu fiquei presa aqui, eu estou presa a você, e isso não é necessário.

Eu também tinha uma rotina e agora eu não tenho nada, absolutamente nada.
— E o que você queria fazer? Forrar as camas? Você não é mais uma

criada, Izolda.

— E também não sou sua esposa. Em nenhum dos sentidos dessa

palavra. Eu tinha planos antes desse casamento e eu... Eu quero ter uma vida.

Uma vida só minha.

— Bem, pelo visto passou esses quarenta e dois dias pensando em

como despejaria tudo isso em cima de mim assim que eu voltasse. Acha
mesmo que teria um futuro melhor do que aquele que pode ter sendo minha

esposa? O que realmente quer dizer com tudo isso? Fala como se estivesse
presa nesta casa, presa em uma armadilha, mas sabemos que não foi assim

que tudo aconteceu. Nós dois sabemos. Melhor dizendo, nós três sabemos.
Meu irmão, Mikhail, nunca assumiu compromisso com ninguém, e todos

sabem exatamente quem ele é. Você sabia. Mas eu prometi a seu pai e
honrarei a promessa que fiz quando ele morreu.

— Você não sabe de nada! — grito irritada. Então, penso em Elke, no


meu pai. — Se aprendesse a...

— Não fale como se você não tivesse orquestrado tudo isso. Você

acha que eu queria estar casado com uma mulher que fala o nome de outro
homem enquanto dorme? É isso? Alguém que se deita do meu lado e sonha

com outro?
Ele não havia esquecido a nossa primeira noite como marido e mulher.
Dividimos a mesma cama, mas toda nossa interação parecia uma transação

de negócios. Eu tinha me perguntado se consumaríamos nosso casamento,


mas ele apenas se virou e me mandou dormir. Acordei horas depois com ele

sacudindo meus ombros para que eu despertasse. Acendi a luz do abajur e


enfrentei uma expressão impassível de frieza, mas um rápido brilho

indefinido foi o que me impediu de desviar os olhos assim que nosso olhar
se encontrou.

Aquilo era raiva, frustração? Não consegui identificar.

— Sou apenas eu. Seu marido. Ele não está aqui, Izolda. Você não
passou de uma aventura para o Mikhail como tantas outras antes de você.

Quanto antes entender que Mikhail será apenas o seu cunhado, será
melhor para todos.

Como eu não me importava com a opinião dele a meu respeito, apenas

permaneci em silêncio. Eu não me importava com a opinião de ninguém com


o sobrenome Orlov. Eu não o desmenti. Aquele segredo já tinha me levado

até ali, e eu decidi que o levaria até as últimas consequências se isso


significasse proteger a minha melhor amiga. Deixaria que Andreas

acreditasse no que quisesse.


Foi quando o estranho que agora se tornou o meu marido se levantou,
afastando-se o máximo de mim, e me encarou pelo reflexo do grande espelho

emoldurado na parede com certo desprezo.

— Desta vez, apenas eu a ouvi gritando o nome dele. Sugiro que pare

de uma vez por todas de alimentar essas fantasias de um final feliz ao lado
dele. Aceite o seu destino.

"Sonhar com Mikhail?"

Andreas não poderia estar mais enganado.

Eu não tinha sonhos com aquele homem desprezível.

Eu tinha pesadelos. Os piores pesadelos que já tive em minha vida,

porque é isso que os monstros despertam em nosso íntimo: medo e aflição.

E, para mim, nada de bom podia ser associado ao nome Mikhail

Orlov. Como a vida pôde ser tão cruel e me colocar naquela família? Como
tudo aquilo aconteceu tão rápido? O meu pai estava morto agora. E foi por

ele que não recusei aquele casamento.

Agora, estou casada com um dos membros da linhagem da Dinastia do


Czar Pedro I. Embora não detivessem mais títulos nobres, o sobrenome

Orlov era reconhecido não apenas por ser uma das famílias mais ricas e
tradicionais da Rússia, mas também por sua influência na política do país.
Enquanto todas as damas solteiras da sociedade gostariam de se casar

com Andreas Orlov, eu sonhava com uma vida simples, sem complicações.
Tudo que eu queria era ser livre. Poder viajar, conhecer pessoas, desenhar,

pintar. Tudo que eu mais queria era ser dona do meu próprio destino. Eu
pretendia fazer isso assim que possível, estava economizando com essa

finalidade. Elke, minha melhor amiga, e eu tínhamos planos de conhecer


Nova York, o Rio de Janeiro, Tóquio, o Egito. Culturas diversas, pessoas
diversas. E agora ela partiu e eu estou presa a um casamento que nunca

desejei. Tudo porque todos acreditavam que era eu a moça naquelas fotos
comprometedoras que foram vazadas pela imprensa. Quando, na verdade,

era Elke quem estava naquelas fotos. E as imagens estavam sendo


interpretadas erroneamente, aquilo não era o que parecia.

A repercussão daquelas fotos mudou minha vida completamente. Meu


pai, depois de ficar a par da existência daquelas imagens, mesmo sabendo

que aquela não era eu, confrontou Mikhail, e seu coração fraco não resistiu
quando foi humilhado pelo Orlov.

Foi Andreas que fez a promessa de se casar comigo e não permitir que

o nome de meu pai fosse jogado na lama. Mas ele não foi o único a fazer uma
promessa naquele dia e, se ele estava tão empenhado em cumprir a dele, eu

também não pretendia quebrar a minha. Guardei o segredo sobre aquela ser
Elke e deixei que a culpa me fosse atribuída.
Foi assim que nossos destinos foram trocados. Eu me casei com

Andreas Orlov, o irmão mais novo de Mikhail, e Elke foi embora do país.

Apesar de não ter notícias da minha amiga e de estar sozinha neste

casamento, eu sabia que tudo poderia ser muito pior. Ela poderia estar
casada com Mikhail, ou eu poderia estar casada com aquele ser desprezível.

Eu já considerava Mikhail desprezível antes, quando seu pecado eram as


insinuações e porque fazia questão de me humilhar pelo simples fato de que

podia. Só para fazer seus amigos ricos e esnobes como ele se divertirem às
custas da filha do mordomo da família.

— Não tem mais nada a dizer? — ele pergunta irritado. — Só me diga

de uma vez o que realmente você quer dizer. — Andreas diz irritado.

— Não importa o que quero dizer, só o que quero que você me

conceda. Quero um papel assinado.

— O quê?

— Existe um papel assinado por nós dois que diz que estamos ligados

um ao outro, mas não porque nós dois queremos ou porque seu coração me
escolheu. E tudo isso, ironicamente, pode ser consertado com um outro papel

assinado... Concorde em me dar o divórcio. Apenas isso. Eu não quero nada


seu, nada da sua família. Peço apenas a minha liberdade de volta. Eu poderei

arranjar um novo emprego, me manter e conseguir organizar a minha vida


novamente onde eu decidir viver. Seguiremos em frente com nossas vidas.
Depois de algum tempo, não haverá nem a lembrança da ex-criada que se

tornou uma esposa Orlov. Não existe nenhuma possibilidade de sermos


felizes juntos. Então, sim. Eu o vejo como um peso que me impede de ser
livre. Você pode me dar o divórcio se não quiser uma anulação.

O som da palavra divórcio pareceu ofendê-lo. A incredulidade em seu


rosto ao ouvir aquela palavra fez com que se aproximasse de mim ao ponto

de eu sentir o seu hálito de hortelã no meu rosto.

— Izolda, isso não vai acontecer, nenhuma das opções. Você é minha

esposa agora, perante a Deus e, em breve, perante a sociedade. Eu não


prometi apenas ao seu pai; sacramentos são importantes.

Ele diz que é hora de ir para a cama e vai tomar banho. Fico na cama,

irritada, pensando por quanto tempo devo permanecer neste casamento,


esperando que ele, finalmente, se canse dessa situação e me dê o divórcio.

Ele não pode me obrigar a permanecer casada se eu não quiser, e o nosso


casamento nunca foi consumado. Não somos um casal. Um casal não passa a

lua de mel separado. Que marido deixa a esposa apenas duas semanas após
o casamento e mal telefona para ela três vezes em mais de um mês? Um casal

não se une com base em uma promessa feita a um homem à beira da morte.
Este casamento estava fadado ao fracasso desde o início.
São Petersburgo, Rússia.

Alguns meses atrás.

— Por aqui! — Elke diz, me puxando pela mão. Seus cabelos longos

estão presos em uma trança, e ela faz sinal para que eu não faça barulho
enquanto caminhamos. A porta do quarto está entreaberta, e, quando eu noto

que ela pretende entrar, congelo. Sei muito bem que quarto é aquele. Posso

ouvir a voz do meu pai me repreendendo, lembrando qual o meu lugar.


Minha amiga me estimula a continuar e eu acabo cedendo; eu sempre

cedo aos seus caprichos. Ela anda nas pontas dos pés, e eu escuto o barulho

de água correndo. Então, eu o vejo – ele está nu. O calor quente está

embaçando parte do vidro do box, mas ainda há muito a ser visto na cena. Eu

nunca tinha visto um homem nu antes. Ele era bonito, realmente bonito.
Mesmo que cada fibra do meu corpo dissesse que não deveria me aproximar

dele, eu não podia negar aquilo. Elke pega o telefone e faz uma foto.

— Você ficou maluca? — Pergunto, puxando minha amiga. O barulho


da água é severamente interrompido, e ela me arrasta para fora do quarto.

Corremos pelos corredores vazios, e eu sinto meu coração bater mais forte,

o ar sendo forçado pelos meus pulmões. Se fôssemos flagradas, aquilo

renderia uma repreensão gigante, principalmente para mim. Descemos as


escadas. A sensação gelada do ouro dos corrimões é a única coisa que eu

consigo processar enquanto minha mente se ocupa de imaginar as diferentes

formas com que a falta de prudência de minha amiga poderia me meter em

problemas. É só quando estamos na segurança da área reservada à

criadagem que eu consigo falar alguma coisa. — Você é uma doida! —

acuso-a enquanto tento recuperar meu fôlego. Correr por um castelo

gigantesco não era algo indicado para pessoas asmáticas.

— Ah, vamos! Valeu a pena, não valeu? — ela diz, dando uma volta

em si mesma. Ela se senta no balcão da cozinha. Não há ninguém por perto,


mas Elke não teria problemas por isso; não sendo filha de quem é. No

máximo, seria repreendida pela associação com a criadagem, pois a maioria

dos empregados da casa mal teria a coragem de lhe dirigir a palavra sem que

ela iniciasse uma conversa. Eu não teria a mesma sorte, claro. Se a

governanta, ou mesmo meu pai, me flagrasse sentada no balcão, eu seria

repreendida. Ela pega uma maçã na cesta; o fruto é tão vermelho quanto seus
lábios. E eu sei que ela está se divertindo, não só pelo que acabamos de

fazer, mas também comigo e com todas as minhas ressalvas. — Você precisa

se arriscar mais, Izzy. Vive falando que quer viajar, conhecer lugares, mas

não tem coragem de explorar o quintal. Quando não está limpando este

palácio, está enfiada naquele quarto, escrevendo.

É fácil, para ela, falar. Ela tem a proteção de um sobrenome poderoso.

A proteção de ser uma Pavlova. Às vezes, mesmo que esta casa seja

literalmente um palácio – e não um palácio qualquer, mas o mais imponente

e bonito de todo o país –, o único lugar que me parece seguro é entre as

quatro paredes cinzentas do meu quarto. Elas são meu santuário, o único

lugar que é meu, o único espaço sobre o qual eu tenho alguma gerência.

Além disso, Elke e eu somos opostas. Extremamente opostas. Ela é um

livro aberto, suas emoções estão sempre à flor da pele. Ela é sempre o

máximo de si mesma possível e nunca se desculpa por isso. Já eu, como ela
mesma gosta de dizer, sou um robozinho educado programado para dizer

"com a sua licença" e "muito obrigado".

— Você viu como ele é bonito? — ela pergunta, esticando o braço

para que eu veja a tela do celular.

Retiro meus olhos rapidamente. Ela não deveria ter feito isso. Não

deveria ter uma foto dele, principalmente não uma foto em que ele está nu, no

banho. Aquilo era uma violação. Como se ele não fizesse coisa pior, minha
mente acusa.

— Você não deveria ter feito isso — afirmo.

— Não se preocupe, Izzy. É só para mim. Vou me entreter mais tarde

com esse apoio visual. Você deveria experimentar, vai se sentir menos tensa

— Elke afirma, colocando o celular de volta no bolso. — Sabe... — ela diz,

engolindo parte da maçã. — Um dia, eu vou estar com ele naquele banheiro,
apreciando aquele corpo de perto, como deveria ser. Nós seríamos ótimos

juntos, e quem sabe eu não me tornaria senhora deste palácio.

— Claro! E eu vou me casar com o Príncipe da Inglaterra — digo

enquanto ajusto a toalha da mesa.

— Ambos os príncipes são casados, Izzy. — Ela revira os olhos. —

Além disso, você duvida que eu possa fazer com que ele se interesse por

mim? Eu já o notei me olhando.


Olho para minha amiga outra vez, estou consciente do meu olhar de

repreensão. Eu não duvidava que Mikhail Orlov, o mais velho da dinastia

Orlov, o homem que estávamos espionando minutos antes, pudesse desejá-la.

Afinal de contas, Elke é linda. Seus longos cabelos pretos contrastam a pele

tão branca como a neve, que se empilha ao redor da casa e me impede de

abrir minha janela. Ela tem um sorriso com covinhas e uma boca

perfeitamente desenhada, e está sempre bem-vestida, absurdamente bem-

vestida, mesmo agora, quando apenas saiu de casa para me visitar – embora

eu tenha a impressão de que ela esteja aqui para aproveitar qualquer

oportunidade de colocar seus olhos em Mikhail.

Então, sim, ela tinha razão. Ela poderia chamar a atenção dele se

quisesse, mas minha amiga estava desconsiderando duas questões

extremamente importantes. A primeira delas era que o quanto Mikhail é um

galinha. Ele sempre esteve cercado por escândalos; seu nome estava sempre

nos tabloides, principalmente no período em que ele passou nos Estados

Unidos supostamente estudando. Ele até mesmo já foi pego pela polícia com

drogas, embora todos os vestígios do escândalo tivessem sido apagados no

momento em que o sobrenome Orlov foi sussurrado. Seu comportamento

havia custado o controle sobre a fortuna dos Orlov, mas, ainda assim, não

era de fato uma punição; tudo que ele fazia parecia ser considerado
perdoável. Afinal de contas, ele é homem, e os homens podem tudo neste

país – bem, menos se relacionar publicamente com outros homens.

A segunda questão, não desassociada da primeira, era que Mikhail era

uma pessoa terrível. Enquanto minha amiga estava apreciando a vista dentro

daquele quarto, cada célula do meu corpo estava assustada.

— Ainda assim, eu gostaria de correr o risco. Já imaginou aquele


homem me pegando de jeito e...

— Eu fui dormir e nós acordamos numa realidade paralela? Porque eu

acho que não. Isso aqui ainda é a Rússia. Você já imaginou o que isso pode

fazer com a sua reputação?

— Só se eu for pega. Você se preocupa demais, Izzy. Além disso, eu

sei que só está dizendo tudo isso porque acha que Andreas é mais bonito.

— Eu não... não...

— Você não o quê? Você não acha que ele é um gostoso e fica babando

toda vez que o vê? — ela me acusa, lançando seu corpo para fora do balcão.

— Isso não é verdade — minto tanto para minha amiga quanto para

mim mesma. Andreas Orlov é, na minha opinião, dez vezes mais homem que

seu irmão. E mesmo que, para o mundo exterior, ele pareça uma pessoa

orgulhosa e fechada, a versão dele que eu conheço, embora conserve a

primeira caraterística, é responsável, acolhedora, generosa.


Eu olhava para ele e ainda via o mesmo menino que não permitia que

nossos supostos colegas de escola me chamassem por todos os nomes pelos

quais costumavam chamar desde o meu primeiro dia de aula. Andreas foi a

primeira pessoa que me disse que eu não tinha do que me envergonhar por

ser filha de empregados, que eu não deveria me sentir inferior. E mesmo

sendo anos mais velho, aquele garoto magrinho de olhos castanhos tinha sido

meu primeiro amigo, pelo menos até eu conhecer Elke.

— Ah, é, sim! A sua sorte é que ele adora o seu pai. Bem, e há o fato
de que ele a vê como uma irmã mais nova. Caso contrário, ele já teria

mandado demiti-la por ficar salivando perto dele. Mas já imaginou se ele um
dia tirasse os olhos do jornal e notasse quanto você está dobrando as roupas
dele... — ela diz, pegando minha mão. — Ele se aproximaria de você, daria

um sorriso e diria, “Izolda, meu amor...” — Elke usa um tom exageradamente


dramático e mal consegue conter o riso enquanto faz isso. Eu me esforço

para não gargalhar de sua infantilidade. — “Onde você esteve esse tempo
todo?”

Minha amiga me abraça, e nos desmanchamos em risos. Eu ainda não


sabia que a brincadeira daquele dia teria consequências tão severas. Não

sabia que nossos delírios juvenis encontrariam espaço para a vazão. Nem
mesmo a minha imaginação, acostumada a divagar, seria capaz de projetar
uma realidade na qual a vida poderia dar voltas tão tortuosas apenas alguns
meses depois.

Eu acordo sem ar no meio de uma noite congelante em janeiro, um dos

meses mais frios do inverno russo. Nem todas as cobertas e o aquecedor são
capazes de conter os espasmos do meu corpo, mas não é o frio que me

acorda, e sim uma crise de asma. Aquilo não era incomum. Minhas crises
tinham começado quando eu ainda era uma menina, e eu tinha passado tantas

noites acordada, sem conseguir respirar, enquanto meus pais entravam em


desespero. Minha tosse e os espasmos acordavam metade dos criados, e eles

tentavam de tudo para fazer com que eu me sentisse melhor. Compressas


quentes, remédios caseiros, chás.

Foram tantos anos e tantos sustos até que eu finalmente fui ao médico e
passei a ser devidamente medicada, e descobri que minha asma só era

induzida pela mudança climática e por esforços físicos extremos. Por isso,
diferentemente do que acontecia na minha infância, tudo que eu precisava
fazer naquele momento era me esticar e fazer duas doses da minha

medicação. Minha mão tateou a mesa de apoio procurando pelo remédio, e a


ponta dos meus dedos encontraram o metal da bomba.

Puxar o ar, prender a respiração, esperar que a medicação acalmasse


os anseios dos meus pulmões. Esse era o ritual. A sensação de calmaria

rapidamente chegava, mas o sono, naquela noite, estava perdido. Eu me


sentei na cama, acendi a luminária, direcionando a luz para a cabeceira, abri
meu diário e comecei a escrever sobre o meu dia. Antes, eu optava por

apenas desenhar, mas tinha adquirido o hábito de escrever na adolescência,


quando comecei a fazer as pazes com as palavras que, antes, teimavam em se

embaralhar na minha mente. E mesmo que meus dias fossem quase sempre
iguais, eu gostava de colocá-los no papel e gostava mais ainda quando podia

adicionar qualquer interação, por mais tola que pudesse parecer, que tinha
com Andreas Orlov. Naquele dia, nossos caminhos tinham se cruzado

quando ele estava de saída para o trabalho em seu terno azul marinho e
gravata perfeitamente amarrada. Eu tinha passado aquele terno alguns dias

atrás, tinha colocado a peça cuidadosamente no armário dele. E tudo isso, de


alguma forma, era como uma manutenção de alguma intimidade. Nós

obviamente não éramos mais crianças, ele não tinha tempo para mim. Ainda
assim, eu gostava da ideia de manter algum tipo de vínculo com ele.

Ele estava conversando com meu pai, falando sobre a festa que

acontecerá na casa amanhã – um baile em comemoração ao aniversário de


Mikhail. Sua voz, sempre tranquila, parecia um pouco cansada. No momento

em que me aproximei, seus olhos se voltaram para mim; eles estavam me


estudando. Eu estava de uniforme e segurando um jarro que precisava ser

reposto em um dos corredores do segundo andar. Andreas me olhou sério e


disse "Está ficando mais frio, Izolda. Coloque um casaco por cima desse

uniforme". Ele, então, se despediu do meu pai e foi embora.

Aquela frase me aqueceu mais que qualquer casaco poderia tê-lo feito,
e eu me esforcei para não deixar que meu rosto me entregasse enquanto meu

pai me dizia que o patrão tinha toda razão e eu deveria vestir algo mais
grosso.

Talvez Elke tivesse razão, e Andreas me visse como a irmã mais nova
que nunca teve, mas não era assim que eu pensava nele e, definitivamente,

não havia nada de fraterno na sensação que ele conseguia me causar apenas
me olhando.

A rememoração e a escrita são interrompidas por um barulho de metal

vindo da cozinha. A porta do meu quarto – o qual ocupo desde que fui
contratada para trabalhar nesta casa, depois de terminar meus estudos – fica

no corredor que dá acesso à cozinha e é a mais próxima do cômodo. Era


incomum que houvesse qualquer barulho ali depois das onze da noite,

quando o chá quente de Olga Orlov, matriarca da família, era servido.

Eu levanto na ponta dos pés e abro a porta vagarosamente. Ela range

um pouco, mas há um som que suprime seu rangido. São gemidos, gemidos
de... A percepção do que está acontecendo finalmente me atinge, e eu me
pergunto quais dos empregados teriam a coragem de fazer aquilo, no meio da
cozinha, de madrugada, correndo o risco de ser pego e demitido antes

mesmo que pudesse tentar pedir desculpas. Penso em fechar a porta e voltar
para minha cama, mas é tarde demais. A luz que sai do meu quarto chama

atenção, e há uma voz pedindo silêncio. Reconhecer aquela voz faz com que
todo meu corpo gele. Fico parada, com a porta entreaberta, enquanto Mikhail

caminha em minha direção.

— Então, você gosta de assistir? — ele pergunta. Sua camisa está

aberta; os cabelos, desgrenhados.

— Eu... eu... eu, não...

— Esqueceu como se fala outra vez? Eu sabia que você ia voltar a dar

defeito. — Sua mão se contrai ainda mais contra o meu pulso. Ele está me
machucando, realmente me machucando, eu sinto como se minhas veias

fossem explodir a qualquer momento.

As palavras dele me atingem e eu sei que, se tentar falar outra vez, vou
repetir o vexame e alimentar sua maldade, então tento fechar a porta, mas

Mikhail segura meu pulso com força.

— Fechando a porta no rosto de um dos donos da casa? Isso não é

muito inteligente, é? Se bem que você nunca foi conhecida por ser esperta,
certo? Você pode ter mudado por fora – ótimos peitos, boas coxas – mas, por
dentro, ainda é a mesma menina burra que escrevia garranchos e não
conseguia ler.

Enquanto ele me insulta, se aproxima do meu rosto. Há um cheiro de

bebida que me deixa enjoada. Eu quero que ele me solte, eu preciso que ele
me solte. Escuto a porta bater e percebo que, quem quer que estivesse com

ele, decidiu que o mais sábio era ir embora. Tentei me soltar enquanto ele
parecia distraído com o barulho, mas meu movimento fez com que ele

apertasse meu braço com ainda mais força. As pontas dos meus dedos
estavam formigando.

— Você acaba de estragar uma foda que prometia ser muito boa — ele
afirma. Sua expressão muda um pouco. Ele parece menos irritado, parece
estar se divertindo. Mikhail, então, dá um passo à frente, tentando forçar sua

entrada no quarto, e eu me desespero. Aquela não era a primeira vez que o


primogênito dos irmãos Orlov se insinuava para mim de alguma forma.

Aquilo tinha se tornado algo recorrente na medida que eu fui crescendo e


deixando de ser a menina da qual ele fazia piadas e me tornando uma mulher.

Ainda assim, eu nunca tinha ficado tão assustada quanto agora.

— Se você não me soltar, eu vou gritar e acordar o palácio inteiro —

eu digo, tentando parecer firme. Não sei de onde tirei a coragem para dizer
aquilo quando tudo que quero é me deitar no chão em posição fetal. Meu
coração está acelerado, batendo tão forte que posso senti-lo em minha
garganta.

Ele me encara como se estivesse me desafiando a fazê-lo e, quando eu


finalmente grito, ele avança, colocando sua mão na minha boca, o que faz

com que eu morda a palma de sua mão. Eu coloco tanta força que minha
mandíbula dói, mas a dor vale a pena porque ele se afasta e olha para mão e,

nesse momento, eu tranco a porta, colocando uma barreira de madeira


resistente entre nós.

Eu choro até dormir depois que ele vai embora. O que não acontece

antes de proferir uma ameaça: "Você vai me pagar, sua vadia burra", e
essas palavras ecoam na minha mente.

No dia seguinte, eu acordo com uma mancha esverdeada no meu braço,


no lugar onde Mikhail tinha pressionado. Olho-me no espelho e vejo que

meus lábios estão levemente inchados. Eu mordi Mikhail com tanta força que
a pressão deve tê-los machucado. Escolho uma blusa de mangas longas e sou
cuidadosa para me certificar de que ela não vai subir ao me movimentar. O
que eu diria ao meu pai se ele visse aquela marca? Se mentisse, ele saberia.

Ele me conhece tão bem. Se contasse a verdade, Deus, eu nem quero pensar
no tipo de problema em que ele acabaria metido por confrontar um Orlov.
Quando estou indo fazer a cama dos quartos de madame Olga e
Andreas, meu pai me encontra e me pede para deixar tudo e ajudar com os

preparativos da festa. Pensar em como aquela casa, em algumas horas,


estaria repleta dos amigos de Mikhail, os mesmos que costumavam dizer
coisas terríveis a meu respeito sempre que me viam na escola ou quando
nossos caminhos se encontravam nos corredores do palácio, me deixava
angustiada.

Eu caminho para o salão para ajudar com os preparativos, mas sou


parada pela visão de Andreas. Ele está acenando positivamente enquanto
fala com Fiódor Pavlova, o pai de Elke.

— Aí está você! — A voz de Elke do outro lado do corredor faz com


que todos olhem para mim. Noto particularmente a expressão de seu pai, que

nunca aprovou que a filha fosse tão próxima da criadagem. Elke, no entanto,
não se importava com a opinião dele a meu respeito. "Você é minha amiga, e
ponto final", foi isso que ela me disse na primeira e única vez que falamos
sobre o assunto. — Estava procurando você — ela diz ao se aproximar. – O

que vai usar hoje?

— Hoje? — pergunto, falando muito mais baixo que minha amiga.

— Sim, para o baile. Você tem que participar. Quem vai ser minha
companhia?
— Eu não... eu vou estar trabalhando.

— Andreas... — ela o chama. O que ela está fazendo? Deus, faça-a

parar, por favor. Andreas se vira, seus olhos param em mim por um instante
e eu sinto minhas pernas fraquejarem um pouco pela intensidade do seu
olhar. Mas eles encontram outro ponto de atenção: Elke. — Izzy pode
participar da festa, certo? Ela pode ser minha acompanhante.

— Elke, ela é... — O pai de minha amiga começa a dizer, mas é

interrompido pela voz de Andreas.

— Claro que pode.

— Ótimo! Venha comigo, temos que pensar em algo para você vestir.
— minha amiga diz, me puxando. Meus olhos estão em Andreas enquanto sou
arrastada por Elke corredor afora. Ele me oferece um sorriso; é pequeno,

apenas de canto, mas eu o aceito com carinho e o arquivo em meu coração.


Ainda assim, mesmo seu sorriso não me deixa menos assustada com a ideia
de participar dessa festa.
“Não ouse trazer nada muito decotado”, Izolda diz na última

mensagem. Eu respondo com uma figurinha que minha melhor amiga fez

usando uma foto minha que diz “padrão Elke de qualidade”. Alguém bate à

minha porta, e eu me levanto para abrir. Minha mãe entra como um furacão

reclamando do fato de que tranquei o quarto como se eu tivesse seis anos de


idade, e não dezenove.

— Arrume-se, teremos visitas para o jantar — ela demanda. Kira


Pavlova caminha até meu closet e procura uma roupa para mim.

— Posso escolher minha roupa sozinha, mãe.


— Preciso que esteja bem-vestida.

O sorriso que Izolda sempre consegue pôr em meu rosto é apagado por

esse discurso de mamãe.

— Eu nunca estou malvestida — retruco. — Posso saber quem vamos

receber, Putin ou a rainha da Inglaterra?

Minha mãe se vira para me encarar segurando um vestido rosa

antiquado que me deixaria parecendo uma senhora de quarenta anos que

acabou de sair do luto e está em busca do novo marido. Eu definitivamente

não vou usar isso. Aquela peça só está no meu closet porque minha mãe a
comprou.

Não faz meu estilo. Os botões redondinhos e acolchoados, todas as

dobras e bolsos. Eu só seria encontrada usando aquilo se estivesse morta,


quando me vestissem.

— Seu futuro noivo e o pai dele…

— Claro — digo me sentindo cansada. Passo pela minha mãe e pego

um vestido azul curto que tem um decote comportado.

— É curto demais.

— Ah, mas você quer que eu conquiste o Vladmir, certo? Talvez eu

deva sentar no colo dele usando esse vestido. Acha que ele vai gostar?

— Se aparecer lá embaixo com isso, seu pai vai deserdá-la.


O jogo predileto da minha mãe é “seu pai vai…”. Um jogo simples,

mas eficaz, em que, sempre que quer me ameaçar, usa meu pai como vilão. É

claro que eu compro as ameaças.

Meu pai é o tipo de homem que conta piadas em festas e que, sempre

que pode, faz questão de que jantemos juntos como família. O tipo de homem

que me contava histórias para dormir e me dizia que os anjos estão de

guarda na minha porta, mas, quando algo o irrita, bem, digamos que o melhor

é não o irritar.

— Seu pai me disse o que você fez mais cedo — minha mãe comenta

enquanto acena para que eu me sente à penteadeira. Faço o que ela diz e

penso sobre o que ela pode estar falando.

— Sobre eu não ter prestado atenção na reunião? — questiono.

Acompanhei meu pai numa reunião com Andreas Orlov, na casa do CEO do

Grupo Orlov, mas eu não poderia me interessar menos pelo trabalho, o que é

obviamente um erro já que Fiódor Pavlova tem planos específicos para mim:

casar-me com Vladmir, assumir a empresa, e manter as relações entre os


grupos Pavlova, Adamovich e Orlov.

Eu adoro ser filha única, mas, nessas horas, eu me lamento por não ter

outro herdeiro Pavlova sobre o qual todas essas expectativas pudessem


recair.
— Não, mas ele me disse que você passou a maior parte do tempo no

telefone. Estou me referindo ao fato de que você fez o Andreas convidar

aquela sua amiguinha para a festa do irmão.

Eu odeio o termo “amiguinha” porque sei que minha mãe sempre

adiciona a ele uma entonação preconceituosa e pejorativa.

— Quando você vai deixar de viver enfiada naquela cozinha com

aquela garota?

— Aquela garota, como você gosta de dizer, tem sido minha melhor

amiga desde que me entendo por gente. Eu a amo como se fosse minha irmã e

sei que Izolda se sente assim também a meu respeito. Já passou da hora de a

senhora e o papai entenderem que isso não vai mudar.

— Filha, você é uma Pavlova, ela é…

— Minha melhor amiga — eu a interrompo, porque estou farta de

ouvir esse tipo de tratamento da minha mãe. — Então, eu exijo que se refira

a ela e a trate com o mesmo respeito que trata as filhas de aristocratas que

quer que sejam minhas amigas, mas que só estão interessadas em nossa

posição e influência do sobrenome Pavlova na sociedade russa. Izolda gosta

de mim pelo que eu sou, e eu gosto dela por ser exatamente como é: sincera,

transparente, verdadeira. Não a ataque mais dessa maneira, mamãe. Eu

escolho minhas próprias amizades. Essa batalha, a senhora nunca vai ganhar.
Sei que sou dura ao falar com minha mãe nesse tom, mas, com Izolda,

ela é e sempre foi muito mais do que dura.

— Com tantas outras pessoas com as quais você poderia se associar,


essa festa é uma boa oportunidade para que você e Vladimir se aproximem.

Por exemplo, já que você não quis ir para Oxford no começo do ano...

— É um ano sabático, mãe. Eu vou no ano que vem. E a senhora sabe

que não foi isso que aconteceu, não houve isso de “você não quis ir”. Eu me

inscrevi para Literatura, e vocês decidiram que eu tinha que mudar para

Administração. Eu só queria poder fazer o que eu gosto...

— Fazer o que você gosta? — ela pergunta sorrindo. — Você gosta de


bolsas e sapatos caros e custo de vida que não teria como professora de

russo ou inglês em um instituto qualquer. Você pode ler e escrever nas horas

vagas, querida, mas esse assunto não está aberto para discussão.

— Ótimo! Nesse espírito, você deveria saber que minha amizade com

Izolda também não está em discussão.

— E como você vê essa amizade seguindo em frente, Elke? Diga-me


como vai ser quando você casar e tiver sua família, você receber gente da

alta sociedade de Moscou, onde sua amiguinha vai se encaixar? Ou pretende

contratá-la como empregada?

— Mãe! Pelo amor de Deus, você se escuta?


— O que estou tentando dizer é que as amizades mudam. Você acha

que eu ainda ando com os meus colegas de escola?

— Eu não sei, mãe. Eu não tenho uma bola de cristal. Talvez a Izolda e

eu nos afastemos naturalmente com o passar dos anos, sei lá, talvez ela se

canse de mim qualquer dia desses. O que eu sei é como eu me sinto hoje. Eu

sou a melhor amiga de uma pessoa incrível, que eu admiro muito, e eu me

sinto sortuda de poder dizer isso.

Minha mãe continua falando. Ela diz que não entende o que eu “ganho”

com essa amizade e lembra, como sempre, do meu aniversário de quinze

anos para o qual eu nunca apareci porque me recusei a deixar Izolda, que

estava sofrendo pela morte da mãe. Voltar para casa e sorrir para pessoas

era a última coisa na minha cabeça naquele dia.

A mãe de Izolda era linda, maternal, afetuosa, sempre me recebia com

abraços. Ela me ensinou a fazer tranças, o penteado que é o meu predileto

até hoje. Ela deixava que Izolda e eu nos aventurássemos na sua cozinha, e

fazíamos biscoitos amanteigados, bolos – sempre com a supervisão dela,

claro –, porque somos terríveis cozinhando. A minha especialidade na

cozinha é esquentar a água para um chá, e minha mãe ainda acha isso “pouco
dignificante para alguém no seu status social”.
— E você nunca mais quis uma festa de aniversário — minha mãe

acusa.

— Mãe, pelo amor de Deus, eu não sou mais criança. Eu saio com

alguns amigos, como alguma coisa, danço, e está ótimo, não preciso de uma

festa. — A verdade é que meu aniversário se tornou também o aniversário

de morte da mãe da minha amiga.

No ano seguinte, Izolda tentou me convencer a comemorar, mas ela


estava obviamente triste, e eu também. Então, eu pedi ao motorista que nos

levasse até um pequeno restaurante brasileiro no centro, e criamos uma nova


tradição: comemos um prato típico do país de tia Cecília e compartilhamos

lembranças sobre ela.

— Sabe do que mais? — pergunto me levantando da cadeira. — Posso

me arrumar sozinha, você pode ir. Vou estar perfeita e toda Pavlova lá
embaixo em meia hora.

— É elegante celebrar com os amigos, veja o baile que Mikhail dará

amanhã.

— Mikhail não vai dar o tipo de festa que você considera como

elegante, mãe. Quer dizer, no salão principal, até vai, mas o que ele e
aqueles amigos devem usar de drogas e...
— E posso saber como você sabe disso? — meu pai questiona parado
na porta. Nem sei quando ele chegou, mas...

— Eu ouvi falar, pai. A cozinha é o melhor lugar para saber de tudo

naquela casa.

— Às vezes, eu acho que você passa tempo demais lá — meu pai

afirma. — Talvez devesse ficar em casa dessa vez.

— Não! — minha mãe diz. — De jeito nenhum. Ela vai. O que as


pessoas vão pensar se ela não for? Além disso, vai se comportar como uma

Pavlova, dançar com Vladmir. Há muito em jogo aqui.

***

Meu pai, minha mãe e Viggo estão conversando animadamente


enquanto eu encaro Vladimir Adamovich. Ele é um ano mais velho que eu,

tem olhos verdes, passa a maior parte do tempo calado, mas não parece
entediado como eu nessa situação. Ele está ouvindo a conversa sobre a nova
refinaria como se aquilo fosse de fato fascinante. Talvez seja, não faço a

menor ideia do que o fascina.

— O que acha, Vladimir? — Minha mãe pergunta. A santa integradora

tenta envolver o futuro genro na conversa e ser uma anfitriã excelente.


Aposto que, assim que ele terminar de responder, ela vai dar um jeito de

jogar a bola para mim. Vladmir passa a mão no queixo.


— É ambicioso, claro, mas Andreas não parece o tipo de pessoa que
atiraria no escuro. Ele deve estar bem fundamentado.

— Acho que a decisão mais acertada do Orlov foi deixar o controle


do grupo para o mais novo — meu pai diz. Eu me pergunto se ele está apenas

elogiando Andreas ou endossando a ideia de que Vladmir deve ser o


sucessor do pai, e não sua irmã mais velha, Galina.

— Nessas horas, é bom só termos uma herdeira. Elke vai cuidar de

tudo, não vai, querida? — minha mãe pergunta. E aqui está, ela conseguiu me
incluir na conversa.

— Claro, mãe — respondo.

— Precisa ir logo para Oxford — Viggo Adamovich diz


energicamente.

— Estou pensando nos Estados Unidos.

— América? — Viggo questiona. — Por quê? A formação Europeia é

muito melhor. Não me diga que ainda está pensando naquela coisa de escrita.
Passatempos são…

— Pai… — Vladmir diz. — Nem todo mundo precisa seguir o mesmo

caminho.

De repente, perco a fome e empurro meu prato. Meu pai olha para o

prato que empurrei na mesa, e eu sei que ele está pronto para me dar um
sermão sobre como viveu tempos ruins durante a URSS.

Deixar comida no prato é ofensivo neste país, mas, na minha casa, é

uma espécie de crime. Se, num restaurante, isso seria um insulto ao


cozinheiro, com o meu pai, é um insulto ao trabalho duro que teve que travar

para chegar aonde chegou. É por isso que consigo entender seus desejos de
me ver assumindo a empresa, casada com alguém que poderá me oferecer a

segurança financeira que ele sempre ofereceu. Ainda assim, não é o que eu
quero.

Não é nada extremamente pessoal contra Vladmir. Ele é bonito,


educado, e eu sei que existem coisas pior do que casar com alguém como

ele, mas eu nunca olhei para ele e pensei: “Nossa!” E eu quero mais do que
dividir a minha vida com alguém por conveniência. Eu quero me sentir
amada, desejada. Quero alguém que consiga me deixar arrepiada só pelo

cruzar de olhos num salão de festas, alguém que faça o resto do mundo
parecer irrelevante.

Além disso, a ideia de que eu preciso fazer isso, de que preciso casar
com ele, está a retirada do direito de escolha. Deus, isso me deixa irritada e

aciona todos os meus mecanismos de defesa, e esses mecanismos são


nocivos. Eu sempre acabo dizendo algo de que me arrependo ou fazendo

alguma coisa que gera ainda mais repreensões. Ir a boates às escondidas,


beber descontroladamente, beijar caras que meu pai considera como

inadequados.

Meus pais deveriam agradecer de joelhos pelo fato de que sou amiga

de Izolda. Se não fosse por ela falando na minha cabeça como aquele grilo
com o Pinóquio, minha impulsividade já teria me causado problemas

gigantescos.

Forço-me a terminar de comer, e então meu pai sugere uma bebida na


outra sala. Os mais velhos saem primeiro, e eu fico sozinha com Vladmir.

Eles devem ter planejado isso, tenho certeza.

— Desculpe-me pelo meu pai — ele pede.

— Não há problemas.

— Há, claro que há. Tudo isso é insanidade. Forçar uma carreira, um
casamento.

— Eu posso dizer sim, e aí você me abandona no altar — sugiro


sorrindo. Ele também sorri.

— Então, seu plano é me meter em um problema?

— Seu histórico é impecável, Vladmir. Quando foi que alguém o


repreendeu por alguma coisa? Além disso, você poderia usar um pouco da

reputação de bad boy, vai lhe fazer bem.


— Bad boy? Esse é um bom eufemismo para cafajeste — ele diz
sorrindo outra vez. Dois sorrisos numa só noite e uma conversa de mais de

duas palavras. Talvez haja mais em Vladmir do que eu imaginei que havia.

— Vamos. Se permanecermos aqui, eles vão achar que estamos nos


entendendo, e não queremos isso, não é? — pergunto.

Vladimir assume de volta sua postura de sempre. O sorriso


desaparece, e há apenas essa expressão de paisagem, uma paisagem bonita,

mas que provavelmente deixaria qualquer espectador rapidamente


entediado.

Depois que eles vão embora, estou na sala de leitura com um livro na

mão, e meu pai entra. Ele se senta ao meu lado e pergunta o que estou lendo.

— Os Irmãos Karamazov outra vez? — ele questiona.

— É, já que você e minha mãe, e aparentemente Viggo, acham que

literatura só pode ser um hobbie.

— Elke, eu adoraria ter tido outro filho para deixar que você fizesse

tudo que desejasse, mas eu só tenho você. Eu lhe dei tudo, não dei? Eu me
esforcei para que você tivesse tudo, sempre. E só estou pedindo isso de

você.

— Casar com alguém que eu não gosto e trabalhar com algo que odeio.
É um favor bem pequeno pai, mais alguma coisa que eu possa fazer pelo
senhor?

Espero a fúria, mas ela não vem. Em vez disso, meu pai coloca a mão

no meu ombro carinhosamente.

— Ele é um rapaz bonito, educado, respeitador. Não é tão ruim assim,


é? Se eu achasse que ele não seria bom para você, eu nunca concordaria com

isso. Eu só vim lhe desejar boa noite, filha — ele diz beijando o topo da
minha cabeça. — Não fique lendo até tarde, tudo bem?

— Tudo bem. Boa noite, pai — Digo sorrindo. Meu pai está passando
da porta quando o chamo de volta — Pai… você tem razão, não seria tão

ruim assim.

Não sei se estou afetada pela conversa com Vladimir ou se apenas


quero que meu pai mantenha aquele tom. Sinto falta daquele homem.

Atualmente, tudo que eu vejo é um homem de negócios irritado que decide

tudo por todo mundo, inclusive por mim.

De qualquer forma, depois que ele vai embora, não consigo me


concentrar na leitura. Volto para o quarto, fecho minha porta, coloco uma
música e abro meu closet procurando algo para Izolda vestir para a festa

amanhã. Talvez eu dance com Vladmir no fim das contas.


Encaro o espelho e quase não me reconheço. Estou usando um vestido

preto, longo, com mangas cumpridas e um grande decote na frente. Eu nunca

vesti algo assim na minha vida. Sinto-me inadequada, exposta.

— Izzy, você está tão linda. Precisa me deixar colocar só um pouco de

maquiagem. Eu não tenho nada para a pele que lhe sirva, não que você
precise, mas um pouco de rímel a deixaria fantástica, e um batom, claro,

vermelho.

— Eu não sou sua boneca, Elke — eu reclamo. Minha amiga revira os

olhos e passa a mão pelos meus cachos, jogando-os para trás, deixando o
decote do vestido em evidência. Olho para os meus seios pelo reflexo, que

parecem prestes a saltar do vestido. Elke é um pouco mais magra e isso

deixa a peça mais justa em meu corpo; mal há espaço para respirar. E ainda

não dei nem dois passos com esses saltos e já quero retirá-los.

— Não esconda a melhor parte — ela reclama, se referindo aos meus

peitos. — Além disso, eu sei que você não é minha boneca. Se fosse, estaria

com o vestido de renda. Ficaria tão lindo em você. Agora, estamos

praticamente gêmeas, ambas de vestidos pretos longos. E pensar que eu


quase não o trouxe, mas acho que, no fundo, eu sabia que ele foi feito para

você.

Não quero explicar a ela que preciso de um vestido de manga. Não


quero contar o que aconteceu na noite anterior. Não quero contar a ninguém

porque sei que, de alguma forma, eu vou acabar sendo responsabilizada, não
ele. Mikhail Orlov, o aniversariante, um homem que é mais de uma década

mais velho do que eu, ainda é tratado como um garoto enquanto eu, que mal

completei dezenove anos, seria julgada e cobrada.

— Eu posso ficar aqui. Dessa forma, não haveria ninguém com uma
roupa parecida com a sua.

— Boa tentativa — ela responde. — Você vai comigo nem que eu

tenha que arrastá-la. — Algumas pessoas matariam para estar na lista de


convidados de Mikhail e, enquanto isso, você está tentando se livrar dela.

Além disso, você não faria essa desfeita com Andreas, faria? Ele a convidou

pessoalmente.

— Ele não me convidou. E mesmo que tenha feito isso, você o coagiu

— respondo.

— Os detalhes não importam, Izzy. O que importa é que você vai a

essa festa, comigo, e nós vamos nos divertir. Talvez, ficar um pouco bêbadas

e flertar com alguns carinhas. Agora, sente-se e me deixe aumentar o volume

desses cílios.

— Eu odeio você — digo, me sentando outra vez.

— Não, você me ama. — Elke sorri.

Ela tem razão. Eu a amo. E não só a amo como sou grata pela sua

amizade. Por me estimular a sair da minha zona de conforto e me divertir,


por sempre ter uma palavra de carinho quando preciso, por ter pego em

minha mão durante uma manhã particularmente terrível na escola e dito:

"Você quer ser minha amiga?" Por mais efusiva, cheia de rompante e maluca

que Elke possa ser, mesmo que sejamos diametralmente opostas, eu sei que

posso contar com ela em tudo. É para ela que eu ligaria se precisasse

esconder um corpo, porque eu sei que ela me ajudaria sem fazer nenhuma

pergunta. Ela é a amiga pela qual eu faria qualquer coisa.


Depois de aplicar o rímel, ela me joga um batom vinho e diz que é

perfeito. Eu passo o batom e sou obrigada a concordar com ela. Eu pareço

bonita, realmente bonita. Minha amiga termina de se ajustar e me oferece o


braço. "Vamos lá, querida?", ela pergunta com um tom jocoso. Olho para ela,

em seu vestido de alta costura totalmente preto e que se diferencia do que

estou usando por ter dois cortes frontais que começam nas suas coxas e que

deixam suas pernas à mostra sempre que elas se movem. Ela está usando

saltos vermelhos, e o cabelo está preso por tranças que funcionam como uma

tiara.

— Esse é o primeiro baile aqui desde...

— Sim — respondo para minha amiga antes que ela termine de falar.

Sei exatamente a que se refere: o acidente de carro que matou o senhor e a

senhora da casa, deixando os irmãos Orlov órfãos. Eu ainda era uma

adolescente na época e estava na biblioteca com Andreas, que tinha

recentemente voltado de Oxford, quando a notícia chegou. Lembro de

Madame Olga entrando no cômodo bruscamente enquanto eu estava com a

minha cabeça encostada no ombro de Andreas, que estava lendo para mim,

como costumávamos fazer desde crianças. O rompante dela fez com que eu

me afastasse sobressaltada. Eu sabia bem o que a avó de Andreas achava

daquela aproximação. Minha mãe já havia me alertado sobre como as coisas

poderiam ser mal interpretadas já que não erámos mais crianças; ele,
principalmente. Ainda assim, ele tinha passado meses na Inglaterra,

estudando, e eu sentia falta dele.

Lembro-me de como o palácio se tornou silencioso por semanas,


meses, mas lembro principalmente da mudança mais brusca de todas:

Andreas, o mais novo dos irmãos, tinha herdado basicamente tudo, inclusive

o controle das empresas. Daquele dia em diante, ele deixou de ser o rapaz

que gostava de ler contos fantásticos no chão da biblioteca e se tornou o

homem que quase nunca sorria e que passava a maior parte do tempo nas

empresas ou viajando.

Quando os pais de Andreas estavam vivos, o Palácio das Luzes

costumava sediar bailes durante todo o ano. A antiga senhora da casa

adorava dar festas, e todas as pessoas relevantes de Moscou passavam horas

sob o mesmo teto, aproveitando boa música, comida excelente e a companhia

do casal mais poderoso da cidade. Eu lembro especialmente de um deles, o

último antes do acidente. Lembro de ver o vestido amarelo que ela usaria

sendo passado por uma das empregadas. Lembro de como ela parecia uma
princesa dos contos de fadas: bonita, delicada, perfeita. E mesmo não tendo

nascido na Rússia, ela parecia tão à vontade nessa casa; era como se ela

tivesse nascido para ser senhora deste palácio.

Jovem demais para ter qualquer papel nas festas, eu costumava ficar

vendo as pessoas chegando com seus grandes casacos que eram retirados e
revelavam roupas ainda mais bonitas, vestidos longos, ternos bem alinhados.

Ainda assim, eu nunca tinha de fato entrado no salão durante uma festa,

embora conhecesse as histórias sobre o quão extravagantes aquelas festas

costumavam ser, mas sempre pelo ponto de vista dos que a faziam, não dos

que a aproveitavam.

Minha mãe costumava virar a noite cozinhando para as festas. O chefe

da equipe de jardinagem escolhia as flores, fazia todos os arranjos. Cada

detalhe da festa era feito pelos empregados com a supervisão da mãe de

Andreas. Agora, tudo vinha de fora, toda a comida, os arranjos, a decoração.

Mesmo que isso devesse significar menos trabalho, os padrões de Olga

Orlov eram bem diferentes dos de sua falecida nora, ela queria perfeição. Os

empregados da casa ainda tinham que organizar o salão, lustrar toda a


prataria, deixar cada canto da casa impecável, sem nenhuma mancha.

Eu sabia bem qual aparência aquele salão tinha quando estava vazio.

Podia fechar os olhos e enxergar um teto alto com abóbadas, coberto de

afrescos intrincados que combinam com as paredes, pisos de azulejos,

lustres. E ainda assim, de alguma forma, o que encontrei quando cruzei

aquela porta, com o braço preso ao de Elke, era diferente. Era como um

sonho, havia música animada e centenas de pessoas. E tudo estava absurda e

exageradamente bonito.
Olho ao redor, tentando capturar cada detalhe. As expressões das

pessoas, o modo como se moviam, suas roupas. Eu nunca tinha visto a

maioria delas, mas Elke parecia conhecer todos. Eles a cumprimentavam

sorrindo, perguntavam por seus pais. Ela me apresentou para algumas das

pessoas, dizendo que só pretendia fazer isso com as que valessem a pena,

mas eu podia perceber o modo como me olhavam.

Eu me senti inadequada por diversas razões. Aquele vestido não me

pertencia, nem aqueles sapatos. Eu mesma não pertenço a esse lugar. Sou a
única pessoa negra. A única pessoa negra em uma festa com toda a elite da

capital russa.

— Izzy... — A voz de Elke me tira da imersão frenética em que estava.

— O quê?

— Você está retraindo seu braço com tanta força que está esmagando o

meu — ela diz sorrindo. — Fique tranquila. Você não é uma estranha nesta
casa, você mora aqui.

É, mas no quarto de empregada. No piso inferior.

— Eu sinto como se todo mundo estivesse me olhando — afirmo.

— Se estiverem, é porque você é uma das duas pessoas mais bonitas

aqui.
— Você é a outra pessoa? — pergunto. Só Elke poderia me fazer sorrir
enquanto estava planejando escapar por uma janela para evitar aquelas

pessoas.

— Claro! Amiga, respire fundo, pense em Michelle Obama. Ela


também se sentiu inadequada quando as pessoas assumiam que ela não

deveria estar na Casa Branca, mas ela ficou e foi a melhor primeira-dama
que aquele país desorganizado já teve — ela diz sorrindo. — Ou, então,

pense em Jean Sagbo.

— Jean Sagbo? O governador? — Tínhamos ouvido falar sobre ele

havia tanto tempo.

— Sim, o primeiro governador negro em toda a Rússia. Você acha que


ele deixou que alguns pares de olhos o intimidassem?

— Não. Ele ficou lá apesar do racismo velado quando o prefeito de


Novozavidovo fez aquele discurso falando que o Sagbo podia ser negro por

fora, mas era russo por dentro, e foi eleito.

— Olhe só para nós, lindas, politizadas — Elke diz. — Além disso, se


as pessoas estão olhando para você, é por inveja dos seus peitos, sério.

Estou pensando em arrastá-la ao cirurgião plástico da minha mãe e dizer


"quero os meus iguais ao dela".

— Deixe de ser boba — digo sorrindo.


— Vamos perguntar ao Vladmir se os seus peitos não são
maravilhosos — ela diz olhando para Vladmir Adamovich. Ele parece tão

acuado quanto eu nessa festa; na verdade, um pouco pior. Ele sempre foi um
estranho no ninho, principalmente na época do internato. Sua irmã, Galina,

era a garota mais popular, mais bonita. E mesmo que ele fosse tão bonito
quanto ela, era peculiar, vivia em seu próprio mundo. Quando éramos

crianças, era como se ele fosse invisível, e Vladmir parecia gostar disso. Eu
tinha inveja dele por ser invisível. Eu queria que as pessoas não me

notassem, já que, quando notavam, faziam questão de serem detestáveis com


a garota negra filha de brasileira.

— Você não faria isso. — Mas eu sei que ela faria, principalmente

pelo alvo. Vladmir ficaria chocado com a pergunta, envergonhado, e ela se


divertiria com isso.

— Meu pai ainda não desistiu da ideia de que eu tenho que me casar
com o Vladmir. Eu queria saber quem deu a ele o poder me prometer a

alguém — Izzy diz, ficando séria. — Já imaginou que vida sem graça e
terrível teríamos? Ele quase nunca abre a boca e é sempre tão educado. E

tem toda a coisa da religião – acho que rezaríamos todas as noites e faríamos
sexo uma vez por mês para fins de procriação. Não é isso que eu quero para

minha vida. Eu quero excitação, aventura e um homem que mal possa se


conter ao me olhar.
Embora eu ache que Vladmir seja bom homem e que a pessoa que se

casar com ele será feliz e bem tratada, eu entendo as ressalvas da minha
amiga. A aristocracia russa parecia parada no tempo no que diz respeito a

casamentos e determinados costumes.

Elke pega duas taças de champanhe de um garçom que sorri para mim.
Ele trabalha aqui na casa há apenas algumas semanas, mas é sempre muito

simpático. Tomo o conteúdo da taça rapidamente, não por gostar da bebida,


mas para espantar a sensação de secura em minha garganta.

— Agora, sim, você entrou no ritmo de festa — Elke afirma. — Venha,


me deixe apresentá-la aos poucos que valem a pena por aqui.

Deixo Elke conversando com suas amigas e me afasto para tomar um

pouco de ar. O salão está lotado demais para o meu gosto. Caminho pelo
corredor até um dos meus locais prediletos no palácio: a galeria de pinturas.

Um espaço circular com teto alto e diversos quadros cuidadosamente


dispostos nas paredes; são pinturas que possuem séculos, com molduras de

ouro branco. O maior deles é uma pintura a óleo de Chaterine II, uma
antepassada dos Orlov. O quadro é lindo, imponente, mas eu tenho meu

predileto: um quadro escuro em que três pessoas caminham enquanto chove;


um homem na frente, sozinho, sendo atingido pela chuva enquanto, atrás, um

casal compartilha um guarda-chuva. A obra é de 1891.


Eu gosto de vir aqui e me imaginar como a pintora dessas obras. Gosto

de pensar no que chamou atenção, em como a realidade toca o artista ao


ponto dele sentir que ela precisa ser eternizada.

— I don't care about the price. I need those shipments! Put my


employee back on. — Mesmo em outro idioma, o sotaque russo faz com que

eu reconheça imediatamente aquela voz e me vire na direção de Andreas.


Ele está com o celular no ouvido e parece irritado. — Dimitri, seu trabalho é

lidar com essas compras. Se eu precisar ir até aí para resolver isso, você vai
ficar sem emprego.

Andreas desliga o telefone e respira fundo. Ele passa uma das mãos no

cabelo e coloca o celular no bolso.

— Izolda... — ele diz notando minha presença.

— Eu sinto muito, não queria ouvir, eu estava...

— Não. Você não precisa se desculpar, sou eu quem deveria por entrar
aqui dessa forma. É uma festa, e eu estou trabalhando. Você não precisava

me ouvir gritando.

— O senhor está sempre trabalhando.

— É, acho que você tem razão. — Percebo seus olhos sobre mim; eles

passam rapidamente pelo meu vestido, e um pouco de vergonha duela com


uma pitada de prazer para decidir qual deles deve vencer na minha cabeça.
— Uau! Você está linda.

— Obrigada. — respondo sem graça. Eu olho para ele e tenho que me

forçar a lembrar de soltar o ar antes que meus pulmões explodam. Ele é tão
lindo, aquele terno combina perfeitamente com seus olhos, a barba bem

desenhada, os lábios... droga! Eu estou encarando-o sem dizer nada. Eu


preciso dizer algo, qualquer coisa... — O senhot também está muito bonito.

Ele deixa escapar um barulho que parece uma risada. Meu Deus, eu
pareci ousada com o "muito"? Por que eu não disse apenas "você também?"

— Estou vendo que você ainda é uma fã do trabalho do Shishkin.

— É o meu predileto — respondo. Olho para o quadro outra vez e


posso ouvir os passos de Andreas se aproximando. Ele para ao meu lado, as

mãos nos bolsos da calça.

— Por quê?

— Por que o quê? — pergunto confusa.

— Por que esse é o seu favorito? Eu sei que você sempre gostou dele,
mas nunca lhe perguntei qual a razão. — Olho para o lado rapidamente, ele
está focado na pintura, então respiro fundo e faço o mesmo.

— Ah... bem, eu gosto... é bobo, mas eu gosto do potencial. A maioria


dos quadros aqui é de pessoas, retratos feitos dentro de casa ou nos jardins,
mas esse quadro, ele rompe com todo o resto, é um pedaço do dia de três
pessoas diferentes. O casal pode ser totalmente estranho para o homem que

vai na frente e, ainda assim, em um dia de chuva, eles passaram pelo mesmo
caminho, caminharam entre essas árvores, e suas vidas se cruzaram e foram

eternizadas.

— É uma excelente forma de olhar — ele afirma. Tiro meus olhos do

quadro e me viro para Andreas. Presto atenção ao seu maxilar, nas linhas do
rosto. Eu poderia desenhá-lo de olhos fechados, os rabiscos dos seus olhos
no meu caderno. — Era o favorito da minha mãe também.

— Deve ser estranho ter uma festa aqui, sem ela.

— É — ele responde. — Mas minha avó e Mikhail acharam que já era

hora. E, pensando bem, acho que eles estão certos nisso. Minha mãe não
gostaria de ver este palácio tão sem vida quanto tem sido nos últimos anos.

— Eu sinto muito... — digo. Eu nunca tive a chance de dizer isso


antes. Quando ele ouviu que os pais estavam mortos, a notícia veio dos
lábios de madame Olga, sua avó paterna, que parecia tão abalada. Ela
ofereceu um abraço ao neto – acho que foi a única vez que a vi abraçar

Andreas –, e eles desaparecem pelo corredor, deixando-me sozinha na


biblioteca. Naquele momento, anos atrás, eu não conhecia a dor de perder
alguém tão importante, mas dois anos depois, na semana do meu aniversário
de quinze anos, minha mãe faleceu.

— Eu também. Pela sua mãe. Acho que nunca lhe disse isso — ele

afirma me olhando. Seu corpo gira levemente, ele está de frente para mim.
— Eu queria ter estado aqui para o enterro dela, sinto muito.

— O senhor não precisa se desculpar...

— Ainda assim, eu adorava sua mãe, e eu deveria ter estado aqui, por
Sergei, por você. — Andreas coloca a mão no meu ombro e oferece um

afago. Pergunto-me quão inapropriado seria se eu me inclinasse e o


abraçasse como antes, como quando eu era uma menina de joelhos pontudos,
e ele, um rapaz com o cabelo bem penteado e pequenos ternos. — Seu pai
sempre foi como um pai para mim, e eu me sinto mal por não ter estado

presente quando ele mais precisou.

Quero dizer que meu pai sempre foi grato por ele, mesmo em outro
continente, ter pedido que alguém resolvesse toda a burocracia do velório,
por ter comprado espaço para o túmulo, dado uma licença ao meu pai pelo
tempo que ele precisou. Meu pai pôde ficar comigo, me segurar em seus

braços enquanto eu chorava sem parar, por vários dias, me dizer para ser
forte como minha mãe.
Fogos rompem o silêncio, o som dos explosivos entra pelas janelas
entreabertas e Andreas solta um suspiro de cansaço.

— Acho que esse é o sinal de que o aniversariante chegou. Você quer


voltar comigo ou pretende se esconder aqui o resto noite? — ele pergunta
arqueando as sobrancelhas.

— Eu não estou me escondendo, só precisava... Há muita gente.

— Eu sei. E não conte a ninguém, mas eu preferiria a companhia dos

quadros.

Ele me oferece o braço, e eu aceito, então caminhamos de volta para o


salão sem trocar uma palavra. E, assim que chegamos ao local, meus olhos
vão para o centro onde Mikhail está conversando cercado de pessoas. Eu
não consigo focar em mais nada. Tudo em que consigo pensar é como ele

consegue se camuflar, como ele consegue parecer charmoso, divertido,


quando, na verdade, é uma pessoa terrível. A memória muscular faz meu
braço arder, mas me esforço para parecer tranquila.

— Andreas — uma mulher diz, se aproximando. É Galina Adamovich.

Ela está usando um vestido azul coral uma pedraria brilhante e parece mais
imponente do que o usual. Ela olha para mim por alguns segundos e eu me
sinto de volta ao internato, com oito anos, enquanto ela e suas amigas
deixavam bananas na minha mesa todos os dias. — Acho que você me deve

uma dança.

— Eu vou procurar a Elke... — falo para Andreas.

— Izolda, espere um minuto — ele diz. — Quem sabe numa próxima,


Galina. Agora, eu vou dançar com esta jovem aqui — ele responde,
oferecendo sua mão. — Tudo bem por você? — ele sussurra em meu ouvido.

— Claro — concordo, tentando conter meu nervosismo por estar me

dirigindo para a pista de dança com Andreas enquanto Galina me olha. —


Acho que o correto é avisá-lo que é preciso ter dedos de aço para dançar
comigo.

— Tudo bem. Eu preferiria ter meus pés esmagados a dançar com

Galina de qualquer forma — ele afirma inclinando um pouco a cabeça para


me contar aquilo, como se fosse um segredo. Ainda assim, há um tom na sua
voz que eu imagino que seja mágoa. Era comum, certo? Depois de tudo que
aconteceu entre eles, era normal que ele ainda estivesse ressentido. Eles
estavam noivos, tudo estava sendo organizado para o casamento que uniria

os Orlov aos Adamovich, mas, segundo contam as fofocas que correram pelo
palácio, ele os encontrou na cama.

Eu deixei que ele me levasse para o salão. Então, ele parou de andar e
ficou de frente para mim. Suas mãos foram para a minha cintura com tanta
naturalidade, e eu, que só tinha dançado com meu pai em toda minha vida,

joguei minhas mãos por cima dos seus ombros, minhas mãos segurando uma
na outra, tocando na nuca dele, fazendo um esforço para não acariciar seu
cabelo.

Eu notei que, agora, nossa diferença de altura já não era mais tão
grande quanto antes, quando éramos adolescentes. Fazia tempo demais desde

que eu tinha ficado assim, tão perto de Andreas. Ele parece ter notado o
mesmo porque essa foi a primeira coisa que falou assim que começamos a
nos mover no ritmo da música.

— Você costumava ser bem menor — ele observa com um quase

imperceptível sorriso.

— Sim, mas eu suponho que eu já tenha crescido tudo que tinha para
crescer — respondo. Acho que a taça de champanhe levou um pouco da
minha inibição, ou talvez eu tenha simplesmente lembrado do quanto
costumava ser fácil conversar com ele.

Ainda há, pelo menos, uns dez centímetros de diferença entre nós, não
tenho certeza, nunca fui boa em medidas ou espaço. A primeira vez que ousei
tirar meus olhos dos seus foi quando Andreas se aproximou mais e eu
encostei minha cabeça em seu ombro. Algumas pessoas pareciam ter parado

de dançar para assistir à cena, e isso me deixou nervosa, então fechei meus
olhos. Aquela poderia ser a única dança que eu teria com Andreas, e eu não

ia desperdiçar esse momento. Eu queria apreciar, queria gravar cada


movimento, a sensação do calor do seu corpo contra o meu, seu cheiro. De
repente, eu não me importava com o que aquelas pessoas estavam pensando,
eu só me importava em continuar dançando, sendo guiada por ele.

Quando a música chega perto do fim eu já começo a sentir falta do seu


toque, mas, para minha surpresa, Andreas se aproxima do meu ouvido
novamente e pergunta se estou cansada ou se posso dançar mais uma música.
Eu tento conter minha vontade de sorrir como uma idiota, mas falho

miseravelmente, e vejo-o sorrir, sorrir de verdade, pela primeira vez em


muito tempo. Seu sorriso é tão bonito que eu mordo meus lábios para não
falar algo inadequado que faça com que ele tire suas mãos de mim, porque
essa é a última coisa que eu quero, mas Andreas me olha parecendo sério.

— O que aconteceu no seu braço?

Meus olhos correm para a manga do vestido que está fora do lugar. Há
uma mancha com tons de verde e roxo.

— Não foi nada demais... — digo puxando a manga de volta. — Eu


só... eu bati.

Ele me olha com desconfiança. Andreas parece ter certeza de que eu

estou mentindo. Ainda assim, ele diz que eu deveria ser mais cuidadosa
enquanto me rodopia pelo salão.
Estou conversando com Minerva, meu braço direito nas empresas,

quando meu telefone toca pela terceira vez. Encaro a tela e vejo o nome do

encarregado pelas importações da empresa, Dimitri. Decido que esta é uma


ligação digna do meu tempo e a atendo. As notícias do outro lado me deixam

de mau humor imediatamente. Desde que meus pais morreram, as empresas

tinham se tornado o foco de toda minha atenção, minha paixão e, em alguma


medida, um fardo.

Escuto enquanto Dimitri conta que o fornecedor não tem o material

necessário e que apenas uma parte seria enviada para a Rússia. Considero
isso inadmissível e peço para falar com a pessoa responsável pelo

processamento da entrega. Digo que o preço não importa, a variação faria

pouca diferença no resultado final. Eu queria transformar a empresa, deixar

de lado as práticas ambientais nocivas e focar em construir um legado

diferente do deixado pelo meu pai.

Convencer o conselho a embarcar na ideia, mesmo sendo sócio

majoritário, levou tempo e muito jogo de cintura. Eu não queria causar

qualquer abalo nas relações que construí com aqueles homens. Penso em
Sergei me dizendo que, nos negócios, é muito fácil ofender um aliado ao

ponto de fazer com que ele se torne um inimigo; por isso, não se menospreza

poder.

É assim que acabo me afastando da festa de aniversário do meu irmão

mais velho, enquanto caminho pela minha casa falando ao telefone e


deixando claro que preciso daquele material. Termino a ligação

bruscamente, lembrando a Dimitri que, se eu tiver que fazer o trabalho dele,

isso significa que não preciso dele de fato. Essa é uma lição que aprendi

com meu pai. Ele pode não ter sido um pai presente enquanto eu estava

crescendo, mas se tornou um mentor rigoroso e implacável quando decidiu

que eu deveria herdar tudo, controlar as empresas.

Estou tentando não me deixar tomar pela irritação e voltar para o meu

quarto quando percebo onde estou e, além disso, que não estou sozinho.
Parada na minha frente com um vestido preto que faz com que ela pareça

uma visão, está Izolda. Ela mudou tanto e tão depressa nos anos em que

passei fora. Ela era uma adolescente magrinha com cabelos sempre presos

em rabo de cavalo e que vivia me pedindo para ler histórias para ela. Eu

sempre dizia sim. Em parte, porque gostava dos seus pais e os tinha em alta

conta, mas também porque sentia que ela precisava de um amigo. Quase
todos eram sempre tão hostis com ela no internato, eu sabia disso. Na breve

interseção em que frequentamos o Instituo ao mesmo tempo, ela estava

sempre isolada num canto, com vergonha. Eu me sentia mal por considerar

como amigos pessoas que a insultavam e decidi que tentaria ser amigo dela.

Agora, tantos anos depois, aqui está ela, parada na minha frente,

vestida como uma princesa e, embora eu a considere linda mesmo com o

uniforme que minha avó demanda que todos os serviçais usem, está

deslumbrante. Deslumbrante: é essa a palavra que sai da minha boca junto

com uma expressão de admiração. Meus olhos vão para o decote do vestido

e imediatamente me recrimino, não só porque ela é filha de um homem que

tenho como um pai, mas porque tenho horror da ideia de parecer, ao estar

obviamente numa posição de poder sobre ela, que estou tentando tirar

qualquer proveito disso. O fato de que ela fica nervosa e sem graça com o
meu elogio me diz que estou certo em ter cautela.
Noto que ela está de frente para o quadro que adorava quando era

criança. Ela passava horas ali; isso quando não estava na biblioteca, o meu

refúgio. Izolda sempre aparecia depois do almoço, deitava no tapete e pedia


para que eu lesse em voz alta. Aquilo durava por horas. Quando eu fechava o

livro, destinado a fazer outra coisa, ela sempre tentava me convencer a ler

"só mais uma história". Naquela época, eu me solidarizava, imaginando que

ela não gostava da ideia de ficar só. No entanto, em retrospectiva, eu mesmo

estava sozinho, meus pais estavam sempre viajando. Meu irmão, anos mais

velhos, achava que tudo que havia de errado no mundo era culpa minha ou da

minha mãe. Acho que, nesse aspecto, apesar de tudo, éramos muito

parecidos.

Conversamos um pouco. Penso em quantas palavras troquei com ela

nos últimos anos, apenas cumprimentos ou minhas reprimendas sobre o seu

descaso com a própria saúde. Izolda tinha dificuldades para respirar quando
era mais nova e isso, somado ao transtorno de aprendizagem, tornou sua

infância um desafio. A maioria das pessoas costumava dizer que ela era

burra, mas eu sabia a verdade. Izolda era observadora, tinha uma facilidade

enorme em aprender fatos históricos, tinha sempre as perguntas mais

interessantes quando eu estava lendo para ela e, acima de tudo, adorava arte,

todo tipo de arte. Então, mesmo que ela tivesse tido que trabalhar dobrado

para lidar com o básico, seu entendimento de questões mais complexas era
impressionante. A forma como ela descreveu suas impressões sobre o

trabalho do Ivan Shishkin era um exemplo disso. Era um desperdício que ela

estivesse ali, ajudando a trocar roupas de camas, quando poderia estar

fazendo algo que amasse. Eu tinha conversado com Sergei sobre mandá-la

para a faculdade ou conseguir um outro emprego para ela, mas ele a queria

por perto. Acho que, depois da morte da mãe de Izzy, a última coisa que ele

queria era ter que se separar da filha também.

Os fogos de artifício, uma das muitas extravagâncias de Mikhail, fazem

barulho, e eu a chamo para voltar à festa. Ofereço meu braço, como faria

para qualquer outra mulher que estivesse me acompanhando no momento.

Mal chego ao salão e sou abordado por Galina. Ela me chama para dançar

como se essa fosse a coisa mais normal de todas. Como se eu fosse mesmo

dançar com ela depois de encontrá-la na cama, no mesmo dia em que

marcamos a data do nosso casamento, transando com meu irmão.

Olhar para ela sempre me faz pensar em como poderíamos estar

casados. Teríamos quase dois anos de casados agora se tudo não tivesse
acontecido da forma que aconteceu. Ela está bonita, mas sempre está bonita.

Eu a conhecia desde sempre, tínhamos crescido juntos, experienciado tanta

coisa um com o outro. Acho que todos esperavam que fôssemos felizes para

sempre, até mesmo eu. Por isso, a traição que ela e Mikhail me ofereceram

foi brutal no começo. Com um tempo, no entanto, eu comecei a imaginar se


não apenas sentia falta do que poderíamos ter sido, de optar por um caminho

conhecido, familiar.

Eu digo que já tenho uma parceira de dança e me aproximo de Izolda e

pergunto se ela consente. É um ato impulsivo, impensado, eu só queria não

precisar dançar com Galina. Mas, quando coloco minhas mãos na cintura de

Izolda, sou invadido por dois sentimentos extremamente diferentes. O

primeiro é de quanto gosto da sensação de seu corpo assim, tão perto do

meu. O segundo é de uma repreensão. Eu sei que ela não é mais uma menina,

sei que não é a garota que eu costumava ajudar a ler ou defender na escola, e

sim uma mulher, uma mulher linda. Ainda assim, olhar para ela dessa forma

faz com que eu me sinta inadequado.

Não falamos enquanto dançamos, mas ela não precisa dizer nada para

que perceba sua tensão. Imagino se está tensa por minha causa, pela multidão

que nos encara, por Galina, ou, talvez, por um somatório de todos esses

fatores. Seja como for, posso perceber pelo modo como sua mão treme,

mesmo que apenas levemente, pousada em meu ombro, e pela forma como

sua respiração está fora de ritmo, fazendo com que os seios chamem ainda

mais atenção naquele decote. Repreendo-me outra vez e decido puxá-la para

mais perto e garantir que eles não estejam no meu campo de visão. Izolda

encosta a cabeça em meu ombro, e eu noto que ela se encaixa perfeitamente


no meu corpo. Sua cabeça à altura do meu queixo permite que eu sinta o

aroma de seus cabelos.

Quando a primeira dança acaba, eu percebo que não estou pronto para

deixá-la ir, então pergunto se ela aceita dançar um pouco mais. São duas,

três músicas até que Minerva se aproxima e pede desculpas por nos

interromper. Ao lado dela, há um fotógrafo. Ela pergunta se pode fazer uma

foto minha com Izolda, e eu a encarei sem entender, mas seu trabalho como

gestora da imagem do grupo tem sido impecável, então me inclino para


Izolda e pergunto se está tudo bem por ela. A filha de Sergei apenas acena

positivamente, e somos fotografados juntos. Quando o fotógrafo mostra a


imagem, Minerva agradece e o dispensa.

— Tudo bem com você, Izolda? — ela questiona sorrindo.

— Tudo, tudo sim, senhora Minerva.

— Chame-me apenas de Minerva, querida, sou apenas alguns anos


mais velha. Não faça com que eu me sinta uma idosa, fizemos a escola na

mesma época. — Observo enquanto Izolda sorri com o comentário. — Vou


precisar roubar seu parceiro de dança para resolver questões de trabalho.

— Izolda, me desculpe — afirmo, beijando sua mão antes de seguir


com Minerva. É bom que ela tenha uma boa razão para interromper minha
dança com Izolda. — Sobre o que foi tudo isso? — questiono enquanto
caminhamos.

— Bem, a foto foi pelo fato de que vocês ficam ótimos juntos, e é bom

postar uma foto sua com alguém. A última foi quando ainda estava com
Galina. É bom para sua imagem e, consequentemente, para a da empresa.

Num país como este, a última coisa de que precisamos é que comecem a
dizer que você não se interessa por mulheres. — Olho para ela sem

paciência para uma discussão. — Além disso, realmente precisamos voltar


para a empresa. Há algo errado com o funcionamento da petroquímica.

— E você não achou que deveria começar por isso? — pergunto. —


Que tipo de problema?

— Uma torre de resfriamento não está funcionando muito bem.

— Já chamou o Viktor? — pergunto, me referindo ao engenheiro


químico responsável pela planta da nossa petroquímica em Moscou.

— Sim. Pouco antes de chamar você.

— Podemos ligar a nova? Entre em contato com Boris, pergunte se


está pronta. Vou entrar em contato, quem está na planta?

— Foi Anastasiya quem reportou o problema — ela afirma enquanto


coloca o celular no ouvido.
Caminhamos pelo palácio, deixando o barulho da festa para trás,
enquanto eu penso nos possíveis problemas de um aquecimento repentino,

além do risco químico, claro, que havia, isso também significaria uma perda
financeira considerável. O que poderia estar causando problemas numa torre

com custo de mais de um milhão por ano, construída em tão pouco tempo?
Abro meu bloco de notas e começo a fazer uma lista: desbalanceamento de

ventiladores, não foi isso que aconteceu da última vez? Ou talvez seja uma
falha...

— Andreas, para onde você está indo? — meu irmão questiona,


interrompendo os meus pensamentos. Encaro seu rosto. Está vermelho, ele
parece irritado. Conheço bem a expressão, via no rosto do meu pai com

muita frequência, embora Mikhail tenha uma crueldade diferente da de nosso


falecido pai.

— Trabalhar — respondo sem muita vontade de lidar com meu irmão


agora.

— Trabalhar? No meio do meu aniversário, você realmente não


consegue me assistir ser o centro das atenções nem por uma noite?

— Do que você está falando? Volte para sua festa.

— De você, dançando com a criada, no meio da minha festa de


aniversário. Eu sabia que você tinha esse pé na pobreza, sua mãe é a prova
disso. Mas se misturar com uma vira-lata como aquela só porque ela parece

gostosa num vestido de festa, realmente é demais até para você.

Sinto meu sangue ferver e soco meu irmão. Ele está no chão, a boca
sangrando. Eu noto quando ele passa o polegar pelo sangue e, na palma de

sua mão, há uma grande marca de dentes arroxeada. Isso me deixa ainda
mais furioso, então me aproximo dele e o pego pelo colarinho da roupa. Ele

era mais velho, mas eu tinha deixado de ser o moleque com quem ele podia
implicar sem consequência havia muito tempo. Ouço Minerva tentando me

fazer parar, mas não dou atenção. Há algo que eu preciso saber, ele vai ter
que me explicar.

— O que você fez com ela? — pergunto. — Isso na sua mão! O que
você fez com a Izolda? — Eu lembro da expressão de susto no rosto de Izzy
quando perguntei o que tinha acontecido com o braço dela, da mancha.

— O que eu fiz com ela? — ele pergunta gargalhando. — Você deveria


perguntar o que ela fez comigo. A vadia vive correndo atrás de mim,

tentando tirar um pedaço. Ela quase conseguiu dessa vez. E por que você se
importa? Merda! Não me diga que está apaixonado por ela.

— Fique longe dela, ou eu vou cortar suas asas e todas as suas


mordomias.
— Andreas! — A voz de Sergei afirma me puxando de cima de

Mikhail. Meu irmão mais velho se ajusta e volta para a festa. Eu fico
olhando para a cara de desapontamento de Sergei, Minerva atrás dele. — O

que deu em você?

Olho para meu amigo. Imagino como ele se sentiria se soubesse que

estamos brigando por sua filha. Izolda é tudo que ele tem. Mesmo que ele
tenha me oferecido o carinho e cuidado que se dá a um filho, ela é o centro

de seu universo, sempre foi. Opto por não contar a verdade e penso que
aquela é a primeira vez que minto para Sergei. Eu posso lidar com Mikhail;
ele, não. Meu irmão o destruiria antes que eu pudesse fazer qualquer coisa.

— Não foi nada demais, só um desentendimento.

— Eu nunca vi você responder às provocações do seu irmão — ele

afirma. Ele nos conhece o suficiente para saber quem começou qualquer
conflito. — Não deixe que seu irmão afete você. Семь раз отмерь, один

раз отрежь (Meça sete vezes, corte uma) — ele me diz. Sergei sempre me
dizia essa frase quando era mais novo. Era uma forma de me lembrar de ser
paciente, cauteloso, de agir na hora certa.

— Senhor, precisamos ir — Minerva afirma. Eu agradeço a Sergei e


sigo com Minerva. Quando entro no carro, tenho essa sensação ruim de que

não deveria estar deixando Izolda nessa festa, dessa forma, mas o que eu
posso fazer? Voltar até o salão e trazê-la comigo? Além disso, talvez meu
irmão estivesse sendo honesto. Há sempre uma primeira vez para tudo,

certo? Talvez ela quisesse estar com ele.

Entro no carro com Minerva e, enquanto o motorista nos leva para a


petroquímica, penso em como Mikhail conseguiu transformar o único

momento genuíno que tive com alguém em anos. Desde Galina, dois anos
atrás, nenhuma mulher tinha conseguido me despertar atenção além de Izolda,

apesar das minhas próprias ressalvas e autocensura, e hoje eu tinha


conversado com ela, dançando com ela; ela até tinha me feito sorrir.

Depois de passar horas tentando chegar a algum tipo de solução com


os engenheiros na planta da petroquímica, finalmente conseguimos descobrir
o problema. Era uma folha no rolamento que resultou no desgaste de um dos

eixos do sistema de resfriamento. Eu tinha escrito meu trabalho final do


curso em Oxford sobre eficácia em processos em refinarias e gostava

daquela parte mais do que de qualquer outra. Às vezes, eu queria que meu
pai tivesse visto potencial em Mikhail e deixado que ele fosse o CEO das

empresas. Tudo em que queria era focar essa parte do trabalho.

A ideia de um Orlov ser um operário, um funcionário qualquer, era

inconcebível. Se meu pai estivesse escapado daquele acidente, seria isso


que o mataria: me ouvir rechaçar tudo que ele projetou para mim. Afinal de

contas, não foi para isso que ele me forçou a fazer uma dupla formação,
petróleo e gás em combinação com negócios. Não foi para isso que ele me
obrigou, desde os doze anos, a ter tutores falando sobre mercados de ações,

negociações, previsões de negócios, planejamento financeiro e estratégico.


Não foi por isso que eu fui mandado, por um ano, para a China para aprender

Mandarim quando ainda tinha apenas quinze anos. Porque meu pai tinha
certeza de que a China seria a maior potência do mundo em pouco tempo; ele

tinha razão quanto a isso. Ele poderia ser um filho da mãe emocionalmente
abusivo, mas um filho da mãe com uma visão de negócios que garantia que

nossa família estivesse no topo da indústria do ramo.

Enquanto eu estava estudando, meu irmão mais velho estava passeando


com modelos, andando de carros importados, sendo preso por porte de

drogas e causando todo tipo de problema. Quando os meus pais morreram,


eu deixei claro à nossa avó que Mikhail era problema dela. Contanto que as

ações dele não arrastassem a imagem das empresas para a lama, eu não
queria ter que lidar com ele. Ainda assim, ele estava constantemente
encontrando formas de tentar me desafiar.

Volto para casa, cansado, depois de passar boa parte da madrugada


lidando com os problemas da empresa. Os criados ainda estão de pé,
limpando, e eu digo que todos devem ir dormir, que a bagunça pode esperar,
mesmo sabendo que eles estão cumprindo ordens da minha avó. Eu sou o
dono deste palácio. Se tenho que lidar com o peso de manter o bom nome
dos Orlov, tenho também o direito de controlar as coisas o máximo que
puder, de fazer com que elas funcionem do meu jeito.

Quando subo para a torre, meu celular recebe uma notificação, e eu

vejo o nome de Minerva. Imagino o que pode ser agora, que tipo novo de
problema pode ter surgido, mas vejo uma foto, minha foto com Izolda.
"Vocês ficam bem juntos", ela adiciona abaixo da imagem. Respondo com
um "Vá dormir, Minerva. Temos mais trabalho em algumas horas" e me deito

na cama, encarando o celular. Ela estava linda, tão linda. A ideia de Mikhail
tocando-a me deixa furioso. Eu tinha que fazer alguma coisa, tinha que
garantir que ele não pudesse novamente as mãos nela. Talvez, finalmente
conseguir convencer Sergei a mandá-la para a universidade. O College of

Fine Arts da Carnegie Mellon poderia ser uma opção. Mesmo que eu não
goste da ideia de não a ver, prefiro que ela esteja segura. Posso imaginá-la
caminhando por Pittsburgh, um local extremamente contrário à Rússia. Ela se
divertiria, faria amigos, conheceria alguém, teria uma boa vida. Ela merece

isso.

Vou dormir, mas sou acordado por batidas na minha porta. Olho para o
relógio, faz apenas algumas horas desde que me deitei. Estou sem camisa,
mas ainda estou usando a mesma calça, devo ter apagado antes de ter a
chance de tomar um banho. Caminho sonolento e abro a porta, descobrindo

Katrina, governanta da casa me olhando.


— Senhor, precisa vir rápido, acho que ele vai matá-lo — a mulher me
diz.

— Quem? — pergunto.

— O Sergei e o senhor Mikhail estão brigando na porta do quarto dele.

Saio correndo do jeito que estou, desço todas as escadas rapidamente,


então entro no corredor do quarto do meu irmão e lá estão eles. Meu irmão
está de pé enquanto Sergei está encostado na parede, a mão no peito.

— Sergei, o que aconteceu? O que você fez com ele, Mikhail?

— Nada! O velhote chegou aqui gritando, me acusando de ter transado


com a filha dele. Sinceramente, os criados nesta casa precisam de limites.

— Ele... ele fez isso com ela. Ele estragou a reputação da menina.

Aquelas palavras acertam meu peito como uma flecha, eu me sinto mal
imediatamente. Tenho que me controlar para não sair do lado de Sergei e

tirar satisfação com Mikhail. Ele tinha feito algo com ela, a tinha desonrado,
aquilo só podia significar uma coisa: eles tinham dormido juntos.

— Chame uma ambulância! — digo à governanta que finalmente chega


em frente ao quarto de Mikhail. Ela desce para ir até o telefone. Olho para

Sergei, que parece estar ficando sem cor, e tento barganhar com Deus para
que o deixe ficar, não posso perdê-lo. Meus pais já tinham ido embora, ele
era a única pessoa que eu realmente considerava como família. — Não se
preocupe, nós vamos consertar isso, tudo bem? Eu garanto que ela vai se

casar, vai ficar bem.

— Você não espera que eu me case com uma criada? Você só pode
estar delirando. Eu não vou me casar com ninguém, não vou manchar o nome
da nossa família pela associação com um nome sem valor algum.

— Mikhail, cale a boca! — digo, tentando me manter no controle. —

Eu vou me casar com ela, Sergei. Não se preocupe. Eu prometo a você.


Apenas aguente mais um pouco, a ambulância já vai chegar — peço. Quero
dizer que é tudo culpa minha. Se eu o tivesse alertado, se tivesse tomado
alguma ação na noite passada. Eu achei que o que eu disse seria suficiente
para manter meu irmão longe dela, mas eu estava enganado.
Eu assisto enquanto Andreas vai embora e me vejo sozinha, no meio

do salão. Um jovem loiro pergunta se quero dançar e eu agradeço, mas digo

que preciso tomar um pouco de ar. Não pretendia dançar com mais ninguém,
queria saborear a memória daquela dança que acabei de ter, de estar nos

braços de Andreas.

— Aonde você vai? — Elke me pega pelo braço, sorrindo. — Não

acredito que dançou com ele. A Galina quase teve um surto assistindo vocês.

Acho que agora todas as mulheres daqui querem ser você, e todos os homens
querem ter você — ela responde sorrindo. Isso explica o convite que acabei

de receber para dançar.

— Acho que vou voltar para o meu quarto, já tive emoções demais por
hoje — afirmo. Elke tenta me convencer a ficar, mas uma coisa é estar na

festa quando Andreas está. Sem ele, não há limites para Mikhail, e eu não

quero ficar no caminho do mais velho dos Orlov, não depois do que

aconteceu ontem.

Estou voltando para o quarto quando passo em frente à biblioteca e

tenho o desejo de entrar. Voltar aqui me faz pensar em Andreas. Em quando

ele já estava na universidade e eu era apenas uma adolescente. Mas só olhar

para ele já me deixava com borboletas no estômago. Ele tinha se tornado um


homem tão bonito. Passo pelas estantes iniciais e vou para o meu refúgio, lá

no final, onde há uma prateleira de livros sobre botânica e jardinagem. Pego


um livro em que está escrito Técnicas de jardinagem e solto a capa,

revelando um caderno surrado no qual costumava escrever. Eu pego o

caderno, me sento no chão, ajustando o vestido, e o folheio.

08 de julho de 2006

O Brasil foi eliminado da Copa hoje. A Rússia perdeu semanas atrás,

quando nem mesmo se classificou para as oitavas de final. Eu estava


vendo o jogo na cozinha com alguns dos empregados. A casa estava cheia

de pessoas, amigos de Mikhail e Andreas que tinham vindo ver o jogo.

Quando me pediram para levar uma bandeja até o grupo, eu me tremi, eu

era a pessoa menos indicada para isso, com toda certeza, mas Katrina me

olhou feio quando demorei a responder e disse para que me apressasse.

Então, eu fui, com uma bandeja na qual repousava um balde de gelo.

"10.000 rublos como o Brasil ainda vira o jogo; perder para a

Alemanha é ridículo" eu ouvi a voz de Mikhail dizer antes que pudesse

entrar na sala. O jogo estava 0x1 ainda. Muller tinha feito o primeiro gol,

era entendível que ele se sentisse dessa forma. Mas, então, eu ouvi a voz
de Andreas dizendo que apostava o dobro com o irmão em como o Brasil

ainda levaria, pelo menos, mais três gols. Entro na sala em meio à

discussão acalorada do grupo e, sem dizer nada, coloco o balde no centro.

Galina estava sentada com as pernas por cima do colo de Andreas, que

acariciava as pernas dela enquanto conversava. Todos dizem que eles

fazem um casal lindo, que terão filhos lindos, e eu só consigo pensar em

como ela é uma pessoa terrível que não o merece.

Quando estou saindo, sinto um par de mãos na minha cintura. Vejo

que é Mikhail e sinto meu corpo congelar. Ele tenta me puxar para o seu

colo, me convidando para ver o jogo. Todos acham graça. Todos, menos
Andreas. Ele ordena que o irmão me solte e eu vou embora correndo, sem

olhar para atrás.

Essa é a razão pela qual este caderno está aqui, escondido em um lugar

seguro. Nessa época, eu escrevia os nomes, os detalhes, e, se eu o guardasse

em meu quarto, ele poderia ser lido por Elke, ou pior, pelo meu pai. O

diário, no entanto, não tem só memórias tristes. Eu escrevi momentos felizes,


como quando Andreas voltou das férias e me trouxe uma versão em

português de Dostoiévski e disse que era para que eu nunca perdesse contato

com as raízes da minha mãe, nem com as raízes da Rússia.

Eu acordo horas depois, desorientada. Estou deitada no chão da

biblioteca, está gelado, extremamente gelado. Camuflo outra vez o meu

diário, coloco-o de volta no local e pego meus sapatos. O relógio acima da

porta marca seis horas. Seis horas da manhã, imagino que meu pai deva estar

preocupado. Eu ando pela casa nas pontas dos pés. Quando chego à cozinha,

Katrina me olha. Imediatamente, sua expressão se enrijece. Ela tinha o hábito

de ser ranzinza, então não dou muita atenção ao fato, mas, quando passo por

outra pessoa, ela também me olha de forma curiosa. Imagino se estão assim

porque fui à festa como convidada. Era mesmo estranho que eu tivesse feito

isso, mas não me parecia razão para tanto.


Quando entro em meu quarto, encontro meu pai sentado em minha cama

com Elke ao seu lado. O que eles estão fazendo aqui? Pergunto-me. Isso não

pode ser bom. Elke está com a maquiagem borrada, claramente esteve

chorando. Meu pai está com uma expressão irritada.

Olho para minha amiga sem entender, e meu pai fica de pé e me

entrega seu celular. Olho para a tela e vejo uma manchete: "Mikhail Orlov

deixa festa para se divertir com criada". Olho para a foto, não há muito para

se identificar além do próprio Mikhail. A pessoa com ele é apenas um mar

de tecido preto. Ainda assim, pela expressão no rosto de Elke, sei que é ela.

— Você o trouxe aqui? Para o meu quarto?

— Izzy, eu não queria. Ele me abordou no corredor e perguntou por

você. Quando eu disse que tinha ido dormir, ele veio para cá. Eu corri atrás

dele porque algo na forma como ele disse o seu nome fez parecer que ele

queria.... — Elke soluça um pouco e volta a falar. — Ele queria lhe fazer

mal. A cozinha já estava fechada, encontramos apenas alguns criados no

corredor e, quando ele tentou abrir a sua porta, simplesmente conseguiu.

Você não estava aqui e ele ficou furioso, então começou a me beijar e... no

começo, eu achei que talvez pudesse ser bom, mas ele... ele foi ficando

violento. — Ela se desmancha em lágrimas e uma parte de mim quer gritar

"Eu avisei!", mas a outra parte só quer abraçar minha amiga. — Eu acho que
ele queria fazer isso com você, que ele teria feito se a tivesse encontrado

aqui.

Estou chorando enquanto tento dizer à minha amiga que vai ficar tudo

bem.

— Vamos chamar seu pai, ele pode querer obrigar o Mikhail a casar

com você.

— Casar com ele? — pergunto. Meu pai deve ter batido a cabeça em

algum lugar, ou talvez todos os homens nesse país realmente coloquem honra

acima de qualquer coisa.

— Izzy, pelo amor de Deus, convença o seu pai a não dizer nada. Eu

não quero ter que me casar com ele, ele é horrível, Izzy. Você estava certa,

eu deveria ter ficado longe dele. — Passo a mão no rosto da minha amiga,
afastando as lágrimas, mas posso sentir as minhas lágrimas dominarem meu

rosto. — O meu pai vai me matar, ou me mandar para uma instituição

psiquiátrica e dizer que não estou bem de saúde e manter-me lá pelo resto da

minha vida. Izzy, por favor.

— Você sabe o que está pedindo? — Meu pai se aproxima de mim e

me segura em um abraço. É um gesto de proteção irracional, mas eu retribuo.

— Sabe o que isso pode fazer com a reputação da minha filha? A mãe dela e
eu demos todo o amor, toda a educação que pudemos, não vou deixar que

isso estrague a vida dela.

— Eu sei o que estou pedindo, eu sei que o senhor nunca a mandaria

embora, mandaria? — Elke pergunta.

— Tudo bem — afirmo. Eu posso fazer isso. Posso ficar com a culpa.

Quem vai se importar? Não é um escândalo de verdade um patrão transando

com uma empregada numa festa, mas a herdeira dos Pavlova transando com
Mikhail Orlov, isso sim teria consequências.

— Não! Você não vai. Se não pretende chamar seu pai, não se
preocupe, eu mesmo vou resolver isso — meu pai afirma.

— Papai, por favor, me escute, eu...

— Nem mais uma palavra, Izzy! Eu falo com você depois. Primeiro,
preciso conversar com o senhor Orlov. — Eu nunca tinha visto meu pai

furioso antes. Eu conhecia outras versões dele, conhecia seu raro olhar de
repreensão, conhecia a doçura da sua expressão de orgulho, o afeto de seu

sorriso. Mas aquilo era incomum. Ele fechou a porta ao sair e eu tentei ir
atrás dele, mas meu corpo parecia determinado a me trair. O cansaço me

obrigou a me sentar e tomar uma dose do meu remédio. Esperei apenas


alguns segundos, menos que o ideal, e tentei abrir a porta outra vez. Notei,

então, que estava trancada por fora. Ele tinha nos trancado no quarto. O ato
me assustou ainda mais. Dei a volta, andando impaciente, e notei a janela.
Elke escapava por ela o tempo todo, o quarto era no subsolo, eu só

precisava de algum impulso e um pouco de força nos braços para puxar meu
corpo pela pequena janela.

— Izzy, me desculpe.

— Você não precisa se desculpar, não é culpa sua! É culpa dele,


entendeu? O que aconteceu com você... — Não posso pensar nisso, não

agora, ou vou desmoronar, e eu preciso encontrar meu pai. — Elke, eu sinto


muito, mas você consegue sair pela janela no estado em que está?

— Acho que sim — ela afirma. Noto seu vestido rasgado e peço para

que ela vista algo meu. Há sangue na sua perna, no vestido, marcas em seus
braços. A cena me faz odiar Mikhail ainda mais. Como ele pôde fazer isso?

Como qualquer pessoa tem coragem de se impor dessa forma sobre alguém,
de invadir outra pessoa desse modo? Tento outra vez afastar os pensamentos.

— Você quer que eu vá embora?

— Você não pode ficar aqui. Se quer que acreditem que aquela sou eu,

precisar estar em casa — afirmo segurando sua mão. — Ainda assim, acho
que você deveria contar à polícia.

— E o que você acha que eles diriam? E mesmo que decidam me

ouvir, meu próprio pai tentaria me convencer a retirar a queixa. — Ela veste
minhas roupas enquanto argumenta. Noto que Elke parece agora anos mais
velha, abatida, sem seu usual brilho nos olhos. Ofereço um par de botas e um

casaco, ela joga a peça pela janela primeiro e impulsiona seu corpo. Eu faço
o mesmo depois dela. Preciso encontrar meu pai, preciso impedir que ele

faça uma besteira. Elke me puxa e me para. Estou em frente à minha amiga,
do lado de fora do palácio, com os pés descalços na neve gelada.

— Obrigada por fazer isso por mim — ela diz me abraçando.

— Eu faria qualquer coisa por você — respondo retribuindo. — Vá


para casa, nós nos falamos depois.

Eu corro pelo jardim congelado até chegar à entrada mais próxima e


continuo correndo até chegar ao salão. Estava vazio, totalmente vazio.

Encosto-me na parede, tentando recuperar o fôlego, meus pés estão


queimando. Penso onde eles podem estar. Claro, no quarto de Mikhail.

Enquanto corro, começo a ouvir gritos e, mesmo que não possa fazer sentido
das palavras, consigo distinguir as vozes de Mikhail e Andreas.

Corro pelas escadas em direção ao som e chego ao corredor dos

quartos principais. Para minha surpresa, não foi Mikhail Orlov que
encontrei, mas Andreas. Ele estava abaixado, segurando uma mão,

dizendo, "Eu prometo, eu prometo" e se levantou, e eu pude ver que a


pessoa no chão era meu pai.
— Pai? — eu disse colocando a mão no peito. — Meu Deus! Pai! Pai!

Eu me joguei no chão ao lado do meu pai. Andreas Orlov não disse

uma palavra enquanto eu sacudia meu pai, tentando fazer com que ele
reagisse.

— É inútil! Ele está morto — uma terceira voz disse. Levantei a


cabeça, minha visão embaçada pelas lágrimas e, então, o vi: o homem que

tinha causado tudo aquilo. Mikhail. Meu corpo inteiro se despedaçou


naquele momento.

— VOCÊ O MATOU!!! VOCÊ... MATOU MEU PAI!! — Eu fico de pé

e avanço em sua direção. Todo o controle, todo o medo, todo o


discernimento abandonam o meu corpo. Minha respiração aperta novamente

eu sinto meu corpo perder as forças e um par de mãos me amparar.

— Izolda! — Ouço a voz de Andreas dizer. Ele está chorando? — Vá

embora, Mikhail, você já fez o suficiente.

Eu fico ali, nos braços dele, sendo amparada enquanto meus olhos
estão vidrados no corpo do meu pai. Minutos atrás, ele estava bem, ele

estava vivo, perto de mim, me protegendo em seus braços, e agora ele está
morto, jogado no chão de mármore do palácio em que trabalhou por toda sua

vida.
***

— Eu acho que ela está em choque. — Foi isso que o médico disse
quando acordei. Eu estava no quarto de Andreas e me assustei, recuando meu

corpo enquanto o homem tentava me examinar.

— Izolda, está tudo bem. Você desmaiou e eu chamei o doutor

Verenich. — Você o conhece, ele já cuidou de você antes.

Aceno positivamente, olhando para Andreas, e penso em meu pai.


Pergunto-me se foi tudo um pesadelo. Ainda estou com o vestido da festa,

talvez eu tenha desmaiado enquanto dançava com ele e todo o resto foi
apenas uma alucinação.

— Meu pai, onde está meu pai?

Andreas se senta na cama, mas não se aproxima muito. É como se ele

estivesse tentando ser cauteloso. Olho para as suas mãos, elas estão
enfaixadas e há um pouco de sangue aparecendo pelo curativo. Quando abre
a boca, ele desmancha minha ilusão de ter tido um pesadelo, confirmando a

morte do meu pai. Ele diz que os paramédicos tentaram trazê-lo de volta,
mas que já fazia tempo demais e não havia nada que eles pudessem fazer. Ele

teve um infarto fulminante. Penso na imagem do meu pai jogado naquele


chão, imagino onde ele está agora e sinto minhas lágrimas rolarem.
— Se ela precisar se acalmar, pode tomar isso aqui — o médico diz
entregando a ele uma caixa de remédios. — Mas parece não haver nada

errado com ela fisicamente.

Andreas agradece ao homem, que vai embora levando consigo sua


maleta, e se vira para mim.

— Vá tomar um banho, eu pedi que trouxessem suas coisas.

— Minhas coisas? Por quê?

— Porque é aqui que você vai ficar depois que nos casarmos, então

prefiro que fique logo — ele responde. Ele tem o mesmo tom ríspido que
costuma usar ao telefone. — Eu prometi ao seu pai que a sua reputação

estaria a salvo, eu vou me casar com você.

Imediatamente quero contar a verdade, mas lembro de Elke, das


marcas em seu corpo, do sangue, do vestido. Se eu tivesse sido mais honesta

com ela, se eu tivesse dito sobre as coisas que Mikhail tentou comigo, talvez
ela tivesse me dado ouvidos e se mantido afastada. Não digo nada, apenas

aceno positivamente em meio ao choque.

Ele me diz que precisa resolver as coisas do velório e vai embora.

Levanto e vasculho as caixas empilhadas no meio do seu quarto. Todas as


minhas coisas em três caixas: roupas, alguns livros, meu telefone, alguns

porta-retratos de fotos com meus pais. Pergunto-me como tudo mudou tão
rápido em apenas alguns dias e penso no diário, ele tinha que estar aqui. Não
há nenhum segredo gigante guardado nele, mas, de alguma forma, sinto que é

a única coisa só minha que ainda tenho. Reviro as caixas e não o encontro.
Então, abro a porta do quarto e desço as escadas da torre correndo, passo

pela sala sem me importar com a minha aparência ou com os olhares,


atravesso o corredor, a cozinha, e abro a porta. Ele não está lá, não está em

lugar algum. Ver meu quarto vazio, apenas os móveis, pois até mesmo a
roupa de cama foi retirada, me dá uma tristeza.

Avanço mais ao fundo do corredor dos quartos da criadagem e escuto

alguém dizer: "Ouvi dizer que o senhor Andreas expulsou o irmão aos
socos". Penso no curativo em suas mãos, mas estou sendo guiada pelo

instinto infantil de quando tinha um sonho ruim, estou correndo em direção


ao quarto do meu pai. Quando chego ao quarto, encontro a porta aberta e

algumas pessoas nele, tirando as coisas, colocando-as em caixas. Eu começo


a gritar, peço que parem, que não podem fazer isso.

— Izolda! — A voz de Andreas me faz estremecer. — Achei que

tivesse dito que ficasse no quarto e tomasse um banho.

Eu sinto tanta raiva dele agora, mas tanta. Quero gritar, quero bater
nele, quero dizer que, de alguma forma, tudo é culpa dele. Ele estava lá com
meu pai, por que não o salvou? Ele era irmão de Mikhail, então, por
associação, mesmo ciente da falta de lógica, também quero odiá-lo.
— Quem mandou vocês fazerem isso?

— A senhora Olga — um dos homens diz.

— Coloquem tudo de volta e saiam daqui. Ninguém entra neste quarto

a não ser a Izolda, entenderam?

Neste momento, eu odeio até a sua ajuda. Deito-me na cama do meu


pai e sinto seu cheiro, e aquilo me faz começar a chorar outra vez.

***

Eu sepultei meu pai na mesma semana em que me casei. Dois atos


sacramentais tão distintos em tão pouco tempo. E mesmo com a diferença,
cada um deles levou consigo um considerável pedaço de mim. Enterrar meu
pai era me despedir da única família que eu conhecia, da única pessoa que

me amava incondicionalmente; me casar era enterrar uma vida de sonhos,


trocando-o por uma relação que começava marcada por uma série de
desventuras.

Vejo Elke no dia do enterro. Ela está toda de preto, usando óculos
escuros, e me dá um abraço, cumprimentando Andreas em seguida. Meu

futuro marido está parado ao meu lado como se fosse da família, recebendo
os pêsames das pessoas que chegavam. Foi um velório lotado, meu pai era
uma boa pessoa, tinha muitos amigos. Alguns, do tempo que serviu ao
exército; outros que o conheceram através de minha mãe. Mas a maioria

eram pessoas que tinham sido treinadas por ele para trabalhar em mansões
sofisticadas como as possuídas pela família Krovopuskov Orlov.

Andreas faz um discurso bonito. Ele diz que meu pai era o homem
mais inteligente e gentil que ele já conheceu, que era como um pai para ele:
— A morte de Sergei deixa um vazio no coração de todos nós. No meu, que

o admirava e sempre procurava seus conselhos; no de sua filha, Izolda, que


era a pessoa mais preciosa do mundo para ele. Você se foi cedo demais, meu
amigo, e eu pretendo passar o resto dos meus dias honrando tudo que você
me ensinou.

Quando ele volta a se sentar ao meu lado noto, que está tremendo. Eu
seguro sua mão e vejo uma lágrima rolar pelo seu rosto. Ele não me solta até
que tudo tenha terminado. Mesmo quando a maioria das pessoas já está indo
embora, ficamos ali, vendo enquanto o túmulo do meu pai é fechado. Meu

pai é enterrado ao lado da minha mãe, e eu espero que eles estejam juntos
agora. Não consigo falar nada e Andreas diz que não preciso. Em vez disso,
ele me oferece um lenço quando começo a chorar outra vez e me segura em
seus braços.

Quando o enterro termina, Elke me pega pela mão, e nos afastamos um

pouco.
— Como você está? — pergunto.

— Eu ia perguntar a mesma coisa — ela afirma tirando os óculos.

Seus olhos estão inchados e ela seca as lágrimas antes de recolocá-los.

— Que pergunta idiota, não é? — digo forçando um sorriso.

— Eu vou embora por um tempo. Eu contei à minha mãe o que


aconteceu e ela disse que, se eu dissesse algo, meu pai acabaria me
colocando em um convento, manicômio ou coisa do tipo. Então, o convenceu

a me mandar para fora do país para estudar. Não quero ir sem você, então
consegui convencê-la a pagar para que venha comigo. Eu sei que isso não
resolve as coisas, mas talvez possamos recomeçar. O que me diz, partimos
amanhã?

— Izolda, você está pronta? — Andreas pergunta. Ele não se


aproxima, mas me pergunto se ouviu algo do que minha amiga acabou de
sussurrar.

— Aparentemente eu tenho que me casar com o Andreas — afirmo.

— Isso é sério?

— É! Mas não significa que não quero ir com você. Eu vou tentar

fugir. — Quando olho para Andreas, não sei se tenho mesmo essa coragem.
Vê-lo abalado pela morte do meu pai me fez pensar nele como antes, como a
pessoa que ele costumava ser.
— Eu ligo para você — ela diz quando me abraça.

No dia seguinte, no meio da madrugada, e com tempo suficiente apenas


para pegar o voo, eu levanto da cama quando Elke manda mensagem dizendo
"Estou aqui na frente". Não fiz nenhuma bagagem porque não conseguia me
decidir se deveria ou não fazer isso. Em outro contexto, eu adoraria estar me
casando com Andreas, mas não assim. Pego meus documentos pessoais e o

passaporte que fiz oito anos atrás quando minha mãe estava doente e seu
último desejo era voltar ao Brasil uma última vez. Ela morreu sem realizar
esse sonho e eu nunca usei aquele pedaço de papel. Agora, ele ia salvar
minha vida.

Andreas está dormindo em um dos quartos que ficam logo abaixo da


torre. Eu passo pelo corredor, tentando não fazer barulho. Caminho
levemente e começo a sentir o gosto de liberdade quando chego no hall de
entrada, mas então um abajur se acende e Andreas está sentado me olhando.

— Você achou mesmo que Fiódor Pavlova não me contaria que sua

filha estava levando você embora? — ele pergunta. — Não acredito que,
depois de tudo que aconteceu, você ainda quer ir atrás dele.

— Atrás dele?

— Não se faça de desentendida. Eu mandei Mikhail para os Estados


Unidos e é para lá que você quer fugir. Izolda, eu não sei o que ele lhe
prometeu, o que ele lhe disse para conseguir... — Ele para e respira fundo,

parece ofendido, mas sou eu quem deveria estar me sentido dessa forma
pelas suas acusações. — Seja lá o que ele tenha dito, acredite em mim, ele
não gosta de você.

— Apenas me deixe ir embora — digo.

— Eu prometi ao seu pai que cuidaria de você, então não posso deixá-
la fazer isso. Mikhail vai destruí-la e eu não posso deixar.

Eu respiro fundo, cansada de tudo isso, e penso no que ele disse: "Eu
mandei Mikhail para os Estados Unidos". Penso em como aquilo pareceria
se o que ele acha que aconteceu fosse a verdade, se Mikhail tivesse tirado

minha honra – eu odeio essa expressão – e não quisesse mais nada comigo.
Andreas tinha o enviado para os Estados Unidos. Ele tinha, supostamente,
feito isso e estava sendo recompensado de alguma forma. Pensar nisso me
deixa tão brava. Pensar no que ele de fato fez me deixa mais brava ainda.

Ele matou meu pai. Ele estuprou a Elke.

— Volte para o quarto, Izolda. Eu já pedi para que um dos seguranças


avisasse a sua amiga que você não vai.

***
Os dias que separaram o velório do casamento foram tão confusos.
Eles passaram como um borrão enquanto eu era empurrada para fazer coisas:
provar vestidos, escolher uma aliança, escolher flores. Na maior parte do
tempo, eu simplesmente deixava que as pessoas tomassem decisões por mim.

Mesmo que aquele não fosse um casamento que merecia uma grande festa,
ainda era um casamento envolvendo o nome da família Orlov, e isso
significava que havia protocolos e expectativas. Incapaz de pensar sobre
aquelas questões, eu simplesmente fazia o que me era indicado, ordenado.

Estava cansada demais para lutar. Além disso, por que eu deveria me
importar com flores e vestidos quando meu pai estava morto e minha melhor
amiga estava sofrendo?

Eu disse sim ao meu marido na Catedral de São Basílio, em uma


cerimônia íntima para apenas alguns poucos convidados, ou melhor,

testemunhas. Eu lembro de ouvir o “sim” saindo de minha boca, de repetir os


votos, e, ainda assim, parecia que aquelas palavras não vinham de mim.

Eu assinei um pedaço de papel com meu novo nome. Izolda


Montalvane Krovopuskov Orlov. Orlov. Era estranho que agora aquele fosse
meu sobrenome. Nem mesmo nos momentos em que me permiti qualquer

delírio, enquanto limpava os quartos da mansão, eu nunca imaginei tal


destino. Primeiro, porque nunca achei que pudesse ser considerada digna;
depois, porque sempre quis ser livre. Eu queria ver o mundo, explorar, me
apaixonar por pessoas diferentes, lugares diferentes. Eu queria conhecer a
terra de minha mãe, queria colocar em prática o português que ela tanto
prezou em me ensinar. Queria sentir a emoção do novo, de dobrar cada
esquina sem imaginar o que encontraria.

Eu não podia imaginar isso. Eu não podia imaginar que minha vida
tomaria o rumo que tomou. Estar casada com Andreas Orlov deveria ser o
sonho de todas as solteiras do país, e, talvez, até de algumas das casadas. Eu
mesma devo ter sonhado com isso algumas vezes. E agora, ali estava eu,

Izolda Orlov, presa em um casamento com um homem que não me ama e que,
pior, não me respeita. Ele se considera tão superior por ter resgatado minha
honra. Se ele soubesse o que aconteceu de verdade. Andreas achava que eu
tinha dormido com seu irmão, achava que eu estava apaixonada por um
homem que não poderia desprezar mais. Um homem aproveitador, vil, sem

nenhum escrúpulo.

Não tivemos uma recepção, nenhuma festa de qualquer tipo. Voltamos


para casa e ele foi trabalhar enquanto eu passei o dia em seu quarto, como
uma princesa presa numa torre. A parte da torre era verdade, mas eu estava

longe de ser uma princesa. Naquela noite, quando ele finalmente chegou a
casa, meu marido me cumprimentou formalmente, tirou a camisa e a dobrou
meticulosamente, colocando-a sobre a mesa, e entrou no banheiro. Depois de
um tempo, ele atravessou o quarto só de toalha, e eu observei seus músculos,
a forma perfeitamente esculpida de seu corpo, até que ele desapareceu
dentro do closet.

— Há espaço suficiente para suas coisas aqui dentro — ele disse ao


sair do closet usando uma calça de moletom e permanecendo sem camisa. —

Não gosto dessas caixas no meio do quarto.

— Desculpe-me, senhor Orlov. Faço isso amanhã.

— Andreas. Eu sou seu marido, é estranho que me chame assim. —


"Seu marido". Essas palavras me deixam nervosa. Imagino se ele pretende
que o nosso casamento seja consumado agora e isso me assusta.

— É estranho que você seja meu marido — retruco baixinho. Ele se


vira perguntando o que eu disse, mas não ouso repetir. Então, assisto-o
enquanto ele pega as caixas e as move para dentro do closet. Quando volta,
ele tem um envelope nas mãos.

— Eu vou viajar amanhã, isso aqui é para você — ele diz me


entregando. Abro o envelope, há um cartão de crédito preto com meu nome
nele. IZOLDA ORLOV, apenas isso. — Gaste o quanto quiser, com o que
precisar. Na semana que vem, você tem que fazer alguns exames, minha avó
vai acompanhá-la.

— Para onde você vai? — Ele se deitou ao meu lado e eu senti meu
corpo tremer um pouco.
— Sibéria. Estamos iniciando novas escavações por lá.

— Não posso ir com você? — Por mais que deteste Andreas no


momento, eu ainda prefiro estar com ele a ficar aqui, presa, à mercê da

possibilidade de retorno de Mikhail.

— Não é uma viagem turística. E é frio demais para você. Boa noite,
Izolda — ele disse dando as costas para dormir e decidindo que a conversa
estava encerrada.

Encaro o teto até conseguir dormir e apago as luzes do quarto. Horas

depois, eu acordo com alguém me segurando pelos braços. Era Mikhail, ele
tinha vindo fazer o que não tinha conseguido antes. Fico assustada e falo seu
nome, peço que me solte, que me deixe. Sinto que estou sendo sacolejada e
abro meus olhos para encarar Andreas. Tenho dificuldade para ler a

expressão em seu rosto, ele parece magoado, triste. Quando ele abre a boca,
no entanto, é irritação que sinto. Ele me diz que Mikhail não está aqui, que é
"apenas" ele e que eu precisava entender que era apenas uma aventura para
Mikhail.

— Desta vez, apenas eu a ouvi gritando o nome dele. Sugiro que

parede de uma vez por todas de alimentar essas fantasias de um final feliz ao
lado dele. Aceite o seu destino.
— Então, você está casado? — Meu tio Nikolai pergunta sorrindo. Eu

estava ocupado deixando a minha mente correr solta, revivendo memórias de

alguns dos raros momentos da minha infância em que estive aqui, em um dos
barcos do meu tio.

— Sim — respondo, evitando pensar em Izolda. Tomo mais um pouco


da bebida que ele havia me servido "para esquentar os ossos" e me

arrependo da minha resposta, porque posso ver a forma como Nikolai está

me olhando. O irmão mais novo do meu pai é um homem sério com seus

funcionários, todos o conhecem por ser o melhor no que faz, mas, para mim,
ele é meu tio. Meu tio que eventualmente conta piadas, que me ensinou a

velejar, que sabe como estou me sentindo só de olhar, mesmo quando estou

fazendo o máximo de esforço para parecer bem.

— Você não parece nem um pouco animado com esse casamento, não

me diga que foi alguma coisa de uma noite só e você se viu obrigado a casar.

Uma noite só. Pensar nisso faz com que cada terminação nervosa do
meu corpo seja acionada, e não de uma forma boa. A imagem de Izolda e

Mikhail fica sendo criada e recriada na minha mente, assim como não

consigo esquecer da cena de encontrar Sergei com a mão no peito,

discutindo com Mikhail.

— Andreas, o que está acontecendo? Com quem mesmo você se

casou? Porque, na matéria que eu vi, apenas dizia "cerimônia íntima e noiva

misteriosa".

Eu termino de tomar o conteúdo do meu copo e deixo o calor da

bebida alcançar meu estômago. Ao nosso redor, há apenas água,

principalmente água congelada. Não posso falar sobre Izolda. Ninguém pode

saber, ninguém. É importante para ela que isso permaneça assim. Que tipo de

vida ela teria se as pessoas soubessem o que aconteceu entre ela e meu

irmão?
— Izolda Krovopuskov — respondo. Eu tinha passado as últimas

semanas tentando me convencer de que tinha feito a coisa certa, que me casar

com ela era o ideal, mesmo que fosse algo que a faria me odiar. Aquela

parecia a última forma de mantê-la segura, longe de Mikhail. Deixá-la

sozinha, mesmo que em outro país, significava que meu irmão poderia ir

atrás dela ou que ela iria atrás dele, como já tentou fazer. E Sergei não o
queria perto dela, isso ficou claro.

— Krovopuskov? Como o Sergei?

— A filha dele.

— Isso é... bem, bom para você. Eu sempre notei que o carinho que

você tinha por ela, o jeito que falava dela, era algo especial. — Era. Era

mesmo. Mas, como poderia ser agora? Era o nome de Mikhail que ela dizia

no meio da noite, era ele que ela queria. — Se você sempre gostou dela, por

que essa cara?

— O Sergei está morto — conto. A ideia ainda parece fazer pouco

sentido. Olho para as minhas mãos, depois de duas semanas elas estão

novamente inteiras, não parece que eu tinha socado meu irmão repetidamente

e o expulsado de casa, o tempo faz parecer que nada aconteceu, que o sangue

de Mikhail, que as feridas, que nada daquilo nunca esteve aqui.

— Como assim, morto? O que aconteceu?


Explico ao meu tio o máximo que consigo sem comprometer Izolda,

pois nem mesmo minha avó estava a par de toda a situação. Pelo menos, não

por mim, embora suspeite que ela tenha conhecido alguma versão contada
por Mikhail. A única pessoa com quem eu tinha conversado sobre o assunto

fora Minerva, e isso por duas grandes razões: ela não só era minha melhor

amiga, mas também a pessoa que lidava com a imagem da empresa, e estava

pensando numa forma de transformar essa narrativa inteira para que não

afetasse a empresa. Falo que Sergei e meu irmão tiveram um

desentendimento e que o esforço da discussão foi demais para o coração do

meu velho amigo. Falo de como ele me pediu para cuidar de Izolda e de

como eu estava tentando fazer isso através do nosso casamento.

— Eu sinto muito — Nikolai fala apertando meu ombro. — Eu sei o

quanto ele significava para você e o quanto você significava para ele. Sergei

agiu de forma muito mais paternal com você do que o Dimitri. Seu pai era
muitas coisas, mas, assim como a mãe dele, nunca teve instintos parentais

muito bons. É um milagre que você não seja como o seu irmão. Claro que a

sua mãe fez toda a diferença nesse caso.

Meu irmão e eu não podíamos ser mais diferentes um do outro. Ainda

assim, mesmo com tudo que ele tinha feito, a traição com Galina, desonrar

Izolda, além do fato de que suas ações tinham levado à morte de Sergei, há

essa parte de mim que fica esperando que meu irmão mude, que parece
obcecada em encontrar qualquer sinal de que ele pode ser melhor, mesmo

quando os meus instintos dizem que isso não vai acontecer.

— Ainda não faz sentido que ele não esteja mais aqui, eu fico
esperando que ele me ligue como fazia. Ele ficava preocupado quando eu

estava fora por muito tempo e sempre ligava com as desculpas mais

esfarrapadas, mas que usava como oportunidade para perguntar se estava

tudo bem.

— E o seu irmão, onde está depois disso tudo?

— Gastando o dinheiro que a minha vó desvia para ele achando que eu

não sei em algum lugar da América. Sangue e linhagem fazem dona Olga
esquecer de qualquer padrão, moral ou bom senso.

— E você diz isso ao bastardo do marido dela? — Meu tio pergunta

sorrindo. Nikolai é fruto de uma relação extraconjugal do meu falecido avô.

Eu tinha ouvido os comentários sobre o desprezo da minha avó pelo filho do

marido, e até hoje ela não se conformava com o fato de que meu avô tenha

fornecido o investimento que ajudou o filho a expandir sua empresa. Agora,

a Frota Dimitriev é a maior fornecedora de caranguejos do Oriente, e tudo

isso é graças ao trabalho de Nikolai, não ao investimento. Ele tinha feito

aquela empresa se tornar o que era com suor, sangue, com perdas enormes,

mas tinha feito algo que era dele. Seu exemplo sempre me inspirou. A
tentativa de fazer algo que fosse meu, fazer a diferença na empresa, é uma

das razões dessa viagem. Estamos explorando reservas de petróleo que

estavam intactas por décadas, e mexer nelas significava um impacto enorme.

Estar perto me garantia a tranquilidade de que as coisas seriam feitas do meu

jeito, com o menor impacto possível e fazendo questão de estabelecer

formas de retorno para o meio ambiente e sociedade.

— Ela teria sorte se tivesse convivido com você — digo. Meu tio me

olha sorrindo, coloca mais bebida no meu copo e se levanta dizendo que vai

pegar o jantar. Ele não só era um excelente pescador, mas um cozinheiro

fantástico, seus caranguejos eram maravilhosos. E ao menos eu estava

animado para isso, já era alguma coisa.

Passar semanas longe de casa não era algo raro na minha linha de

trabalho, eu gostava de estar em campo na maioria dos trabalhos. Isso me

dava mais segurança e um melhor entendimento do que estava acontecendo

de fato, da relação entre os funcionários, do dia a dia do processo de

escavação. Ainda assim, apesar de amar meu trabalho, ou pelo menos a parte

menos burocrática dele, eu sempre fui o tipo de pessoa que gosta mesmo é

de voltar para casa, que encontra paz nesse sentimento.

Na adolescência, voltar para casa era mágico. Significava voltar para

perto da minha mãe, do meu pai, do meu irmão – mesmo que nossa relação

não fosse das melhores –, de Sergei, de Izolda, mas agora tudo tinha mudado.
Meus pais estão mortos, Sergei está morto, meu irmão e eu não estamos

exatamente nos falando, e Izolda agora era minha esposa. Esposa. Aquilo era

tão estranho.

Agora, quando eu entrar pela porta, sei que vou ter que encontrar a

única mulher que, em anos, me fez sentir qualquer coisa além de Galina. A

mulher que eu nunca achei que pudesse ter, mas que, agora, é minha esposa.

É estranho pensar em como tudo isso aconteceu. Anos atrás, eu planejei uma

vida com Galina. Planejamos o casamento perfeito, a parceria perfeita,


tínhamos cada detalhe idealizado e, ainda assim, tudo aquilo ruiu quando a

encontrei com Mikhail. Agora, mais uma vez, as ações do meu irmão estão
controlando a minha vida. Se não fosse o sadismo do fato de que Izolda ama
o meu irmão, de uma forma estranha, o universo estaria alinhado.

Enquanto estou na Sibéria, minha avó me dá atualizações sobre Izolda.


Ela diz que minha esposa está saudável, para além de um pulmão que merece

certos cuidados, e que havia, por isso, iniciado um novo tratamento com uma
mediação destinada a pessoas com enfisema, mas que vinha se mostrando

eficaz em casos graves de asma. A outra principal notícia que recebo da


minha avó é a de que não teremos outro “bastardo" na família.

Eu deveria ficar aliviado com pelo menos essa notícia, mas, quando

leio a mensagem, só consigo pensar naquelas fotos, as fotos dos dois no


quarto dela. Foi preciso um bom investimento para qualquer interesse
midiático no acontecido. Afinal de contas, não era difícil que uma breve
investigação ajudasse qualquer jornalista a ligar os pontos e chegar à

conclusão de que aquela era Izolda.

Eu exigi ao fotógrafo que destruísse todas as fotos do evento nas quais


Izolda estava. Não eram muitas, ele tinha algumas imagens que a mostrava de

longe, junto com Elke, e tinha ainda a nossa foto, a foto em que Izolda e eu
tiramos juntos depois da dança.

Eu volto para casa no meio da noite. Peço para que as bagagens


fiquem no térreo, elas podem ser levadas para a torre em outro momento; não

quero acordar Izolda. O empregado que me recebe costumava ficar à frente


da casa quando Sergei precisava se ausentar. Percebo que aquela é uma

realidade à qual preciso me adequar e o dispenso dizendo que não preciso


de nenhum serviço no meio da noite, tudo que quero é dormir.

— Desculpe-me, senhor, mas talvez queira saber que a sua esposa não

está no quarto — ele diz me olhando com certa ressalva.

— Onde ela está? — pergunto. Sei que a minha pergunta o intimida.

Meu tom de voz é ríspido e eu estou tentando ao máximo não rodar cenários
ruins na minha cabeça. — No antigo quarto?

— Não. O quarto da Izolda, digo, da senhora Izolda, agora pertence a

uma nova empregada da casa. Madame Olga demandou a contratação de


mais pessoal para repor...

— Isso não importa agora — o interrompo. Repor. Essa palavra fica

na minha mente. Ele está falando de pessoas como se elas fossem tão
facilmente substituíveis. Sergei não poderia ser reposto. — Apenas me diga

onde está a minha esposa.

O homem me indica o sótão e eu marcho para o local. Estou furioso


quando abro a porta e só noto isso quando observo o olhar assustado de

Izolda. Fico irritado quando ela me diz que só estava ali por estar seguindo
as orientações da minha avó. Eu deveria saber que Olga Orlov não seria

simpática com Izolda. Ela tinha tentado me fazer desistir da ideia de casar
com "a filha do mordomo", mas ela deveria saber que, no momento que eu

chegasse a casa e visse Izolda neste sótão, haveria consequências.

Minha primeira preocupação é com a saúde de Izolda. Ela parece

pouco aquecida, pois, mesmo que esteja usando roupas de lã, meias e tenha
boas cobertas, o quarto em si é úmido.

Peço para que ela se levante, mas meu tom de voz não faz com que

pareça um pedido. Há essa parte da minha cabeça que fica me perguntando


"Que merda você está fazendo?", mas não sei como lidar com Izolda, não sei

como encontrar o equilíbrio entre não deixar transparecer os sentimentos


complexos que sinto por ela e ser grosseiro.
Izolda resiste à minha ordem. Ela parece tão triste, assustada, mas,

mesmo assim, ela não deixa falar. É como se tudo que pensou enquanto
estive fora estivesse sendo empilhado num canto, sendo guardado para o meu

retorno e, agora, ela estava me entregando tudo aquilo. Ela me lembra que
não precisamos ficar juntos, diz que eu não lhe devo nada, que sabe que eu

não estou feliz com esse casamento, que podemos anulá-lo já que ele nunca
foi consumado.

Penso sobre isso, da última vez que estivemos juntos, na noite em que

nos casamos, eu precisei ficar longe de Izolda, deixá-la sozinha por um


tempo, para evitar que ela percebesse o quanto eu queria estar com ela, tocá-

la. É claro que eu queria consumar aquele casamento, mas aquilo parecia
fora de cogitação, considerando tudo que tinha acontecido.

— Você pode me dar o divórcio se não quiser uma anulação. — Sei

bem por que ela está dizendo isso. A anulação precisa de não consumação e
vivemos em uma nação em que assumir que nunca dormir com a minha

esposa seria, no mínimo, problemático, ainda mais com uma esposa que tem
esse rosto lindo, essa pele, esse corpo. O que as pessoas diriam se eu

anulasse meu casamento? Pessoalmente, não me importaria com as


especulações, mas, pela imagem da empresa, isso está fora de cogitação.

— Izolda, isso não vai acontecer, nenhuma das opções. Você é minha
esposa agora, perante a Deus e, em breve, perante a sociedade. Eu não
prometi apenas ao seu pai; sacramentos são importantes.

— Você está sendo irracional — Izolda diz me olhando. Há algo em


seu olhar, algo diferente. Ela parece menos com a garota tímida que se

escondia atrás do caderno de desenho, sempre rabiscando alguma coisa que


ela quase nunca permitia que alguém visse. Eu não estou acostumado a ser

desafiado, Mikhail costuma ser a única pessoa que tenta medir forças
comigo. — Não podemos ficar casados a vida toda, você não me ama, isso

seria...

— Pessoas se casam sem amor o tempo todo – afirmo encarando-a.


Meu pai costumava dizer isso. Ele também costumava dizer que amor é um

luxo capital e que relações em que o sentimento é construído aos poucos são
mais duradouras do que as forjadas no fervor da paixão. Ainda assim, ele

tinha se apaixonado pela minha mãe. Pergunto-me se estou sendo egoísta, se


ela seria mais feliz se eu a liberasse, se a deixasse partir, mas eu tinha feito

uma promessa. Sergei tinha me pedido para que cuidasse dela. — Não estou
pedindo que me ame, apenas me dê uma chance de ser um bom marido, tudo

bem? Acho que vai levar um tempo, mas talvez possamos voltar a ser
amigos, ou ao menos aprender a nos tolerar.

Ela acena a cabeça, então digo que é hora de irmos para o quarto, o

nosso quarto. Izolda caminha ao meu lado. Nossos ombros se tocam


rapidamente em alguns momentos, apesar da largura dos corredores, e eu me
sinto como um colegial apaixonado que se alimenta das pequenas migalhas
oferecidas. Quando entramos no quarto, eu digo a ela que vá dormir e entro

do closet conjugado ao banheiro e vou tomar um banho. A água escaldante


me deixa mais tranquilo e, enquanto me visto, revejo minha postura. Não
posso deixar que a rejeição de Izolda seja a força que me move. Eu lutei

tanto para ser diferente do meu pai, da minha avó, do meu irmão; essa
rigidez só me aproxima deles. Amanhã é um novo dia, posso lidar com isso

depois. Ou, pelo menos, é nisso que acredito, mas, quando saio do closet,
encontro Izolda sentada, me olhando.

— Senhor, Andreas...

— Andreas, só Andreas — interrompo-a. Izolda parece desarmada


agora, menos propensa a sair correndo no minuto que eu der a primeira

oportunidade. — Você pode ir dormir, Izolda. Nós não vamos...

— Não... não é isso — ela afirma com seus olhos negros,

absolutamente estonteantes, me penetrando. Izolda parece constrangida pela


subentendida menção de sexo.

— O que você quer? Peça-me qualquer coisa, menos o divórcio —


digo ao me sentar ao seu lado na cama.

Assim que digo as palavras, percebo que esqueci outra coisa. Por

favor, Deus. Não deixe que ela diga que quer Mikhail; eu não sei se
poderia suportar.

— Ir com você — ela responde. — Eu sei que você talvez não queira

ter que me ver o tempo todo, por isso todos esses dias fora, mas esta casa
não é mais a mesma coisa e... apenas, se for viajar outra vez, não me deixe

aqui.

Talvez não queira ter que me ver o tempo todo. Reprimo o desejo de
dizer a ela que não faz diferença se ela está comigo ou não, eu passei esses

quarenta e dois dias na Sibéria pensando nela, pensando se estava bem, se


estava tomando os remédios, se estava comendo direito, imaginando como

estava lidando com a morte do pai. Ou seja, ela estava lá, comigo, o tempo
todo. E, ainda assim, nem por um segundo eu tinha pensado em como tudo

aquilo deveria ser estranho para ela: a adaptação, o processo de deixar de


ser uma criada para se tornar a senhora da casa.

— Tudo bem, você vai comigo se não for colocar sua saúde em risco,
mas isso significa que você precisa se portar como minha esposa, não como
alguém em cárcere privado.
Eu estou correndo pelo palácio e Mikhail está correndo atrás de mim,

se aproximando, sempre se aproximando. Ele é mais rápido, mais forte, e eu

não consigo escapar. Quando ele pega no meu pulso, já não sou mais eu
mesma, sou Elke. Estou na pele dela, estou assustada, desesperada. Acordo

gritando.

— Izolda, está tudo bem? O que aconteceu? — Andreas pergunta. Ele

acende a luz da mesa de apoio ao lado da cama gigante e, na medida que se

move, aproxima seu corpo do meu. Deixo minha cabeça repousar em seu

peito nu. A pele dele está tão quente enquanto a minha parece uma pedra de
mármore. É a segunda vez que acordo gritando desde que ele voltou para

casa. Só fico grata por não ter acordado falando o nome de Mikhail. — Você

precisa da sua medicação?

— Não — respondo me afastando do calor do seu abraço. De repente,

estou consciente demais da nossa proximidade e do quanto seria fácil

simplesmente me deixar envolver. — Desculpe-me, não queria acordá-lo, eu

só... me desculpe.

— Você teve um sonho ruim? Quer conversar sobre isso? — Ele

oferece. Pergunto-me para onde essa versão dele vai, em que lugar ela se

esconde quando o Andreas distante e de poucas palavras entra em cena.

— Não. Obrigada. Está tudo bem — minto. Não posso falar com ele

sobre Mikhail, não posso dizer que estou assustada, que fico achando que o

irmão dele vai voltar a qualquer momento e fazer comigo o que queria ter

feito, que vai fazer comigo o que fez com Elke. Pensar na minha amiga faz

meu estômago revirar. A última notícia que eu tinha tido dela foi na primeira

semana de sua viagem, mas, depois disso, ela parou de responder às minhas

mensagens, e as chamadas simplesmente não podiam ser completadas. Era


como se ela tivesse desaparecido e isso me deixava preocupada.

Andreas levanta da cama e me serve um copo de água. Penso em como

eu costumava vir aqui e repor essa água, ou sobre como arrumava os lençóis
de sua cama e, às vezes, passeava pelo seu closet e me deixava inebriar pelo

perfume do homem que agora é meu marido.

— Aqui, tome um pouco, você está tremendo — agradeço e tomo o

líquido enquanto ele me olha sem nem ao menos piscar. Observo seu peito

outra vez, cada músculo bem definido, a pele branca. Eu poderia desenhar

isso, poderia pintá-lo. Quando ele estica a mão para pegar o copo vazio,

meus dedos tocam os seus. — Você precisa dormir, temos um dia exaustivo

amanhã.

— Não acho que consigo — confesso. Mal posso pensar na razão pela

qual nosso dia será exaustivo. A ideia de aparecer publicamente como

esposa de Andreas Orlov me deixa ansiosa, mas isso era inegociável. Ele

usou exatamente essa palavra, inegociável, falando como se eu tivesse algum

poder de barganha nessa situação toda.

Andreas vai até sua estante, pega um livro, então se senta outra vez,

agora com as costas na cabeceira, e me olha como se estivesse esperando

que eu fizesse algo.

— Venha aqui — ele diz. O modo como sua voz rouca diz aquilo faz

algo com a estrutura do meu corpo. De repente, estou aquecida de dentro

para fora. Obedeço sem pestanejar e sinto meu ombro encostado em seu
braço enquanto ele abre o livro e começa a ler.
Somos só nós dois outra vez, como antes, como quando ficávamos na

biblioteca por horas; ele lendo, eu ouvindo e rabiscando desenhos no meu

caderno. Essa é a primeira vez que algo me parece familiar desde que meu
pai se foi; é a primeira vez que eu sinto que as coisas podem ser ao menos

minimamente normais. Pela manhã, quando acordo, ele já foi embora, e eu

fico me perguntando se aquilo de fato aconteceu ou se foi um daqueles

sonhos que acontecem dentro do outro sonho.

***

Minerva me encara com seus olhos verdes avaliativos. Estou de pé,

parada, deixando que ela passe seus olhos por mim. Ela está aqui para

garantir que eu esteja devidamente apresentável para a agenda de


compromissos que tenho como esposa de Andreas Orlov.

— Você é tão bonita que chega a ser ridículo estarmos tentando deixá-

la mais bonita — a assessora de Comunicação do Grupo Orlov diz sorrindo

e pede à maquiadora que apenas aplique uma leve camada de sombra e um

pouco de batom. — Tudo discreto, ela tem que passar uma imagem

condizente com a do Andreas.


Enquanto a maquiadora faz o que Minerva pede, eu fico pensando em

Elke. Minha amiga se divertiria me vendo agora, sendo vestida, maquiada. O

pouco que sei sobre maquiagem e moda, aprendi com ela e com a minha

mãe. Minha mãe costumava usar maquiagem. Nem podia, ela passava o dia

cozinhando e dizia que inserir camadas de produtos no rosto não seria

adequado, mas ela me ensinou sobre as cores ideais para o meu tom de pele.

Ela fez isso depois de encontrar a mim e minha melhor amiga usando

maquiagem. Foi ao olhar para o meu rosto, pintado de branco, que ela

ensinou sobre o tom certo e sobre como maquiagem poderia ser feita apenas

levemente, e não da forma espalhafatosa que estávamos fazendo.

Fico de pé e me vejo. Estou usando um vestido cinza com preto e uma

malha de gola rolê branca por dentro, meia calça, sapatos altos. De alguma

forma, toda essa mistura parece funcionar, mesmo que aquela roupa seja algo

que eu nunca escolheria sozinha. Minerva sorri satisfeita e diz que temos que

ir. Eu entro no carro com ela, que fala algo com o motorista e, depois, pede

para que ele feche o vidro para nos dar privacidade.

— Vamos falar do que realmente importa — ela diz me olhando e

explica que a parte das roupas e maquiagem não é a função dela, mas sim me

ajudar a navegar publicamente toda essa situação. — Vocês se apaixonaram,

se aproximaram naquele baile de aniversário e estão tão envolvidos que não

conseguiram esperar. Seu pai abençoou a união e não iria querer que
cancelassem o casamento, então decidiram manter a data optando por algo

íntimo. O que ele mais queria era que vocês dois fossem felizes.

Essa parte final não é mentira, meu pai realmente se preocupava tanto

com a minha felicidade quanto com a de Andreas. Tudo bem, eu posso fazer

isso. Posso repetir isso até que se torne verdade, ou até que Andreas me

deixe ir.

— Tudo bem?

— Claro. — Aceno positivamente. — Estamos perdidamente

apaixonados.

— Ele vai beijá-la — ela diz. Sinto meu corpo gelar. Esse parece o

tipo de coisa que o meu marido deveria me dizer, não ela. — Ele ainda não

concordou comigo, mas vai, então queria avisá-la. Em algum ponto do dia,
ele vai beijá-la. Talvez no evento, um beijo rápido, nada lascivo. E é

importante que estejam sempre se tocando, entendeu? Mãos dadas, braços

dados, arrume a gravata dele uma vez ou outra.

— A gravata dele está sempre perfeita — digo querendo rolar meus

olhos para o pedido dela.

— Apenas finja que não está. Vocês têm esse passeio pela empresa
que é algo menos midiático, embora seja importante de forma institucional,

porque vai deixar que os funcionários vejam vocês juntos. Depois, o jantar
beneficente. Eu já contratei uma equipe que vai ajudá-la com a troca de

roupa e com a maquiagem depois do passeio, lá na empresa mesmo, tudo

bem?

Ela fica me perguntando "Tudo bem?" como se estivesse me dando

instruções muito simples, mas não está. Na verdade, estou começando a ficar

aterrorizada sempre que ela abre a boca.

— Você só precisa escolher um dentre os vestidos que estão lá


esperando. Outro ponto importante é o tipo de declaração que você faz. Não

preciso dizer que críticas ao governo estão fora dos limites, certo? Mas é
importante pensar sempre no que é a missão da empresa, produzir energia

para uma Rússia eficiente e sustentável. Alguma dúvida?

— Esperam que eu faça uma declaração?

— Não, mas é importante que você saiba o que dizer caso seja

necessário. Este aqui é o seu celular novo, é parte da linha empresarial —


ela afirma me entregando aparelho. — Já tem meu número, o do Andreas,

claro, e o do chefe da sua equipe de segurança.

— Equipe de segurança? — Ótimo sinal de confiança, penso. Se bem

que, depois da minha tentativa de fuga frustrada, entendi que não seria tão
simples desaparecer. Depois da noite passada, de dormir no ombro de

Andreas, uma parte de mim começou a questionar se realmente quero isso.


— Sim, você deve conhecê-lo em breve.

— Ainda posso ficar com o meu celular antigo? — pergunto. Meu pai
me deu aquele aparelho no meu aniversário de dezoito anos. Eu tinha fotos

com ele, mensagens que tinha passado os últimos meses lendo e relendo. A
última coisa que ele me mandou foi "Não esqueça de pegar seus remédios".

— Eu suponho que sim, mas, se a sua preocupação for em manter a


privacidade, acho que deveria saber que todos os funcionários da casa já

têm seus celulares monitorados. É uma política antiga contra a possibilidade


de espionagem corporativa.

— Você quer dizer que escutam nossas conversas?

— Não, estou dizendo que eles podem ouvir se quiserem. Isso está no
contrato de trabalho de todos os funcionários da casa e da empresa, é algo

padrão. Izolda, eu sei que isso deve parecer muita coisa, e sinto muito por
estar despejando todas essas informações de uma vez. Eu insisti para ir

fazendo aos poucos, mas o Andreas queria que você tivesse tempo para lidar
com o seu luto. Por sinal, sinto muito pelo seu pai.

— Obrigada — respondo.

É fim de tarde quando chegamos à sede da empresa. Somos


recepcionadas por Andreas. Está nevando outra vez, e sou surpreendida pela

mão do meu marido em minha cintura, me levando para dentro do prédio.


Olho ao redor e vejo que algumas pessoas estão nos olhando, então forço um
sorriso.

— Onde estão suas luvas? — ele pergunta me encarando.

— Eu não...

— Eu pedi para que ela não usasse, a aliança visível é um bom toque.

— Não deveria estar sem luvas, está congelando — Andreas reclama.


Ele pega minhas mãos nas suas e eu recuo um pouco. — Venha, vamos subir.

Caminho ao lado dele enquanto Andreas aponta para os diferentes

departamentos e vai explicando. É um prédio enorme, moderno e muitas das


divisões de ambiente são feitas totalmente de vidro, deixando uma sensação

de transparência que faz tudo parecer ainda maior. Eu não imaginava que
fosse assim, sempre pensei num prédio cinzento, mas tudo aqui é limpo,

organizado e parece funcionar perfeitamente. As pessoas andam de um lado


para o outro fazendo ligações, ou estão com as cabeças voltadas em suas

telas, digitando rapidamente. Ainda assim, elas param para me olhar. Sou
apresentada a algumas pessoas, tento gravar seus nomes e funções. Viktor,

um engenheiro; Anastasiya, do setor de controle e planejamento; Hugo, do


setor de medição, seja lá o que isso signifique numa empresa de gás e

petróleo.
Eu aperto suas mãos, tento sorrir, agradeço os elogios e digo "muito

prazer". O tempo todo, a mão esquerda de Andreas está segurando a minha


mão direita, e eu não consigo parar de pensar nisso, nesse contato.

No final do tour, que deve ter durado pelo menos uma hora, ou talvez o

tempo tenha simplesmente decidido passar de uma forma diferente, Minerva


entra em sua sala e diz que nos vê mais tarde, na festa, e Andreas indica a

porta da sala dele que fica apenas um pouco mais à frente e abre caminho
para que eu entre.

— Então, o que achou? — ele pergunta fechando a porta.

— É diferente do que eu tinha imaginado — confesso.

— É, a parte divertida fica nas plataformas, na escavação, no refino.

Aqui, só lidamos com projetos e burocracias.

Eu caminho pela sala e observo a vista da janela. Dá para ver boa


parte de Moscou daqui de cima, quase tudo está acinzentado pelo inverno.

— Sua sala tem paredes — digo. — As outras, não.

— Eu sou o chefe — ele responde sorrindo. — Tenho direito a alguma

privacidade. Suponho que agora eles estejam lá fora se perguntando se eu


estou trabalhando ou aproveitando a minha esposa.

Sua frase me deixa sem ar, e eu imediatamente movo meus olhos de

volta para a janela. Ele vai beijá-la. A frase de Minerva vai sendo acionada
na minha mente. Desde que ele voltou da Sibéria, toda essa semana, temos

dormido na mesma cama, e até mesmo trocado mais que duas palavras, mas
nunca temos muito contato físico para além dos momentos em que acordo de

pesadelos.

— Por que você não se senta? — ele sugere. — Temos um pouco de

tempo antes do evento e há algo que quero conversar com você.

— Tudo bem — digo enquanto faço o que ele pediu.

— Eu estava pensando e acho que ficar naquela casa o tempo todo não

deve ser algo bom para você, então achei que talvez você quisesse se
envolver com um dos projetos de responsabilidade social que temos.

Olho para Andreas, que está sentado na minha frente. Há uma mesa nos

separando e as mãos dele estão cruzadas sobre uma pasta.

— Senhor And... Andreas, eu não sei fazer nada que possa ajudar com

a empresa, eu não tenho formação alguma ou...

— Tudo bem — ele diz colocando a mão por cima da minha. O toque
freia o vagão descarrilhado de pensamentos na minha mente. — Eu achei que

você pudesse organizar um projeto de arte, mas é só se você quiser, você


não precisa fazer.

Ele quer me manter ocupada. Pergunto-me se, na cabeça dele, isso


seria algo para tentar me impedir de fugir atrás de Mikhail. Minha chance de
dizer qualquer coisa é interrompida por batidas na porta. Ele diz que a
pessoa pode entrar e um homem de terno entra.

— Boa noite. Desculpe, senhor, sei que está com a sua esposa e que

não queria ser incomodado, mas eu preciso que olhe esses contratos — o
homem diz se aproximando. Ele me olha por alguns segundos e eu tento

exercer o papel da esposa de Andreas Orlov, mas não entendo bem quais os
requisitos.

— Tudo bem, minha esposa precisa se trocar para uma festa, de


qualquer forma, não é querida? — ele pergunta sorrindo. Há algo no modo

como ele diz querida que faz parecer que ele está zombando de tudo aquilo,
mas sua expressão é indecifrável. Por alguma razão, aquilo me incomoda.

Eu me levanto e ele faz o mesmo, mas pede para que o homem nos

deixe a sós e diz que vai encontrá-lo em breve. Andreas vai até a parede e
abre um cofre, tirando de lá uma pequena caixa preta de camurça.

— Eu gostaria que você usasse isso — ele diz me entregando a


embalagem. Dentro da caixa, há um colar com uma pedra verde. Aquele era

o colar da mãe dele.

— Esse é o colar da sua mãe.

— Era. Agora, ele é seu.

— Eu não posso usar isso. Esse colar deve ser muito valioso.
— E é, mas também é uma tradição. Minha avó usou, minha mãe e,
agora, você usará.

Ele não pergunta se quero usar, está apenas me comunicando. Então,


fico com a caixa na mão enquanto ele faz uma ligação, e, em poucos minutos,

uma mulher aparece para me guiar até o local no qual me arrumarei para a
festa.

— Eu vou resolver esses contratos e também vou tomar um banho e

mudar de roupa. Terminando, podemos ir, tudo bem?

— Claro, como quiser — respondo forçando um sorriso. Enquanto

caminho segurando a caixa que contém o colar, me esforço para imaginar


outro cenário. Um que Andreas e eu estamos juntos por amor, um em que ele

também sente o que eu sinto.

***

Andreas me oferece sua mão para me ajudar a sair da limusine. Estou


usando um vestido que imagino que seja de alta costura, e minhas mãos estão
tremendo quando aceito a dele. Saio do carro e flashes nos atingem. É

surreal estar aqui, e, ainda mais fora da realidade, o fato de que estou aqui
com ele, como sua esposa. Eu costumava ver fotos em que Andreas aparecia
com Galina em eventos.

— Eu não sei para onde olhar — digo tentando me concentrar na

enorme quantidade de câmeras na minha frente.

— Olhe para mim — ele responde. Então, eu faço isso, olho para
Andreas. Ele está tão bonito que isso me deixa ainda mais nervosa. Quero
repousar minha cabeça em seu peito e ficar lá, mas, em vez disso, respiro

fundo. — Vai ficar tudo bem. Só precisamos caminhar por esse tapete e, lá
dentro, não vai haver mais nenhum paparazzo.

Eu aceno positivamente e começamos a andar. Andreas se inclina para


dizer "escolha um ponto lá na frente, não olhe para os lados" e eu faço o que
ele diz. Enquanto caminhamos, ouço as pessoas chamando o nome dele,

perguntando se eu sou a esposa dele. Ele não responde.

— Eu esqueço que os Orlov são basicamente celebridades — digo


quando finalmente chegamos ao final do tapete e acessamos um corredor que
está vazio.

— É só um grupo de jornalistas voltado para a coluna de economia e

sociedade — ele diz sorrindo.

— Alexei está aqui, você sabe que... — Minerva começa a dizer.


— Preciso falar com ele, sei, claro. — Andreas completa,
interrompendo-a. — Pode deixar. Agora, tente se divertir um pouco, é uma

festa.

— Como se você se divertisse — ela diz sorrindo. — Ao menos


lembre-se de sorrir para as fotos — ela diz antes de eu me afastar. Andreas
me oferece sua mão, e eu a aceito. Uma parte de mim se pergunta se eu tenho
opção, a outra simplesmente quer tocar nele. Meu absolutamente

deslumbrante marido pergunta se estou pronta, mas não estou.


Definitivamente, não estou.

O que encontro no salão no final do corredor é um baile elegante com


pessoas que são, na sua maioria, consideravelmente mais velhas. Música

clássica, champanhe sendo servido para todos os lados. Há um enorme


cartaz que diz que é um evento beneficente para levar educação para áreas
mais remotas. Entre os principais apoiadores, no rodapé, está o nome da
empresa de Andreas.

Algumas cabeças se viram na nossa direção assim que entramos. Eu

posso sentir o olhar daquelas pessoas, ele é mais gelado do que o frio lá
fora. Um homem de cabelos grisalhos e sorridente se aproxima e aperta a
mão de Andreas.
— Senhor Orlov. Que bom que chegou. Como presidente da Fundação,

quero agradecer pessoalmente pela generosa doação que fez este ano.

— É um prazer.

— Desculpe-me, senhora — O homem diz, parecendo finalmente notar


minha presença. — É um prazer.

— Izolda, este é Oleg Volochkova. Ele é um dos fundadores dessa


fundação e organizador do evento. Esta é minha esposa, Izolda Orlov.

— É um prazer, senhora Orlov — o homem repete me


cumprimentando. Ele parece agitado demais, mas soa gentil. Tenho tido tão
pouca gentileza ultimamente que imediatamente decidi que gosto daquele
estranho. — É uma bela esposa, meu rapaz, uma bela esposa.

— Sim, ela é mesmo — Andreas responde sorrindo. Quando ele fala

essas coisas, quando me olha dessa forma, ele parece tão sincero.

Somos interceptados por mais pessoas antes de chegar à mesa.


Andreas me apresenta, mas, na maior parte do tempo, as pessoas perguntam
sobre negócios ou como estão madame Olga ou mesmo Mikhail. Estou

ouvindo um homem – que tem quase meu tamanho e que, ainda assim, fica
minúsculo ao lado de Andreas – falar sobre o preço dos barris de petróleo
quando vejo Fiódor e Kira Pavlova passando pela porta. Os pais de Elke
notam a presença do herdeiro Orlov e se aproximam sorrindo. Kira coloca

os olhos em mim e parece ainda mais severa do que o usual.

— Eu ouvi dizer, mas acho que precisava ver para acreditar — ela
afirma me olhando quando oferece um meio abraço desajeitado.

— Senhora Pavlova, me desculpe, mas pode me dizer como está a


Elke? Não consigo falar com ela há um bom tempo e... — A mulher parece

furiosa, como se quisesse dizer que aquele assunto é inapropriado para o


momento. Ainda assim, ela balança a cabeça como se aquele movimento
fosse capaz de espantar o pensamento, e só então me responde.

— Está ótima. Deve estar ocupada fazendo compras em Nova York,


você sabe como ela é — a mulher diz forçando um sorriso.

— É só que... ela não deixaria de me atender, e eu estou preocupada.


A senhora falou com ela recentemente?

— Desculpe-me, há alguém que preciso cumprimentar — ela diz, me


dando as costas. Eu pego em seu braço; é um gesto impulsivo, movido pela

preocupação com minha amiga. A mãe de Elke olha para minha mão em sua
pele e se aproxima de mim. O gesto faz com que eu tire minha mão do seu
braço.

— Foi por se misturar com gente como você que aquilo aconteceu com
ela – a mãe de Elke sussurra. — O mínimo que você pode fazer agora é ter a
decência de fingir que nada aconteceu.

Ela se vira outra vez, mas, desta vez, se afasta. Ela e o marido nunca
gostaram de mim, mas achar que eu sou responsável pelo comportamento de
Mikhail é algo baixo até mesmo para pessoas que sempre me desprezaram.

— Tudo bem? — Andreas pergunta colocando sua mão nas minhas

costas. Ele se inclina na minha direção e eu aceno a cabeça positivamente.


— Ela disse algo a você?

— Não. Está tudo bem — minto forçando um sorriso. — Eu preciso ir


ao banheiro.

Ele diz que vai falar com o homem que Minerva citou, e eu caminho

em direção ao banheiro. Enquanto faço isso, sou invadida pelo medo de que
algo terrível aconteça, medo de que eu tropece no meio do salão, que o
vestido se abra, que qualquer uma das coisas mortificantes que acontecem
com mocinhas em histórias de amor se manifeste aqui. Em vez disso, chego
ao banheiro sem conseguir passar por nenhum tipo de constrangimento. Entro

em uma das cabines e baixo a tampa da privada para me sentar. Eu não


preciso de fato usar o banheiro, só quero ficar sozinha por um tempo. Havia
algo errado, algo que Kira Pavlova não estava dizendo.

— Então, ele realmente se casou? — uma voz diz. Eu tenho vontade de

abrir a porta imediatamente, mas ela diz o nome de Andreas, e eu perco toda
a coragem. — Andreas Orlov, finalmente casado.

— Sim, casado. Há mais de um mês. E numa cerimônia íntima sem


proclames.

— Será que ela está grávida, Natalia?

— Isso explicaria muita coisa. Quando soube do casamento, procurei

qualquer nota na imprensa. Não havia o nome dela, nem foto, mas ouvi dizer
que ela foi empregada do palácio, você acredita? Filha de um mordomo ou
coisa do tipo. Poderia enganar com aquele vestido, mas há algo nela que
deixa claro que não vem de uma boa linhagem.

— A mãe dele também não é sem berço? Talvez o Andreas tenha um

fraco por subalternos.

O que aconteceria se eu saísse daqui agora e as deixasse saberem que


ouvi tudo? Esse momento me faz sentir ainda mais falta de Elke. Ela saberia
o que fazer, o que dizer; eu não sou boa com confrontos, nunca fui. Na época

da escola, pessoas como aquelas que me achavam pouco digna, costumavam


passar por cima de mim. Foi preciso muito tempo e bastante da influência de
Elke para que eu passasse a me defender, e mesmo hoje em dia, quando
posso até não querer sair de uma briga depois que ela começa, continuo
evitando conflitos.
— É, mas pelo menos o pai dele não andou misturando as coisas, se é
que você me entende — a voz gargalha. Claro que isso também importava
para elas, não é só o fato de que eu sou pobre. A minha existência as ofende
em um nível muito mais profundo. Eu sou a filha de uma imigrante negra, o

tipo de gente que "está estragando o país".

— Alguém sabe o que a Galina acha disso?

— Não, mas o que eu sei é que ela não vem. Apenas o pai e o irmão
confirmaram presença. Você tem um batom? Esqueci o meu.

— Aqui, Nat. Não me estranha que a Galina não tenha dados as caras,

faz sentido. Se eu tivesse sido noiva daquele homem e o perdido para uma
criada, acho que teria que, ao menos, mudar de cidade.

— O Mikhail também anda sumido, ele não está mais nas boates. Mas,
no caso dele, é desde aquelas fotos do aniversário que, por sinal, sumiram
da internet sem deixar rastro.

— Bom, só espero que ele não apareça casado também. Acho que
haveria uma marcha fúnebre em Moscou das mulheres em luto por esse
acontecimento — a mulher diz gargalhando. Elas saem do banheiro e eu fico
aqui, sentada, encarando a porta e tentando processar tudo isso. Imagino se

alguém faria a conexão das fotos, se alguém suspeitava quem era a mulher
nas imagens com aquele monstro, mas, acima de tudo, eu fico pensando em
quem fez aquelas imagens. Alguém viu Elke pedindo ajuda, tentando lutar, e
simplesmente deixou que aquilo acontecesse.

— Aí está você! Seu marido ficou impaciente e me pediu para checar


se... — Minerva diz entrando no banheiro enquanto estou na frente da pia

encarando meu rosto encharcado pelas lágrimas. Fazia muito tempo que eu
não me sentia tão pequena, tão inferior. Mas não é só pelas ofensas. O modo
como Mikhail é visto, como é desejado e idolatrado, é isso que me afeta
mais. Estou assustada e não tenho com quem contar. Eu só queria poder

correr para o colo do meu pai, ele teria a coisa certa a dizer. — Querida,
você está bem? Está chorando?

— Não, foi só... — Eu seco meus olhos com uma toalha de papel para
parecer, ao menos visualmente, recomposta. — São só alergias.

Minerva me olha com uma descrença evidente, mas não insiste. Em

vez disso, ela repete que Andreas está me procurando e, então, eu lavo
minhas mãos e a acompanho de volta para o salão.

Andreas está me esperando do lado de fora do banheiro. Ele agradece


a Minerva, que vai embora, e me encara. Suas mãos deixam os bolsos da

calça e ele parece não saber muito bem o que fazer com elas enquanto me
encara. É como se ele quisesse me tocar, mas não pudesse. Imagino que eu
devo ser repulsiva para ele agora: a idiota que dormiu com Mikhail e criou
todo esse problema, e ele teve que resolver.

— Desculpe-me, eu não quero que pense que estou controlando-a, mas

fiquei preocupado. Você parecia estranha depois que Kira Pavlova deu as
costas, então achei que pudesse estar chateada ou...

— Eu só estou preocupada com Elke — confesso.

— Preocupada? Por que estaria preocupada? Ela está fazendo um


curso de férias na Yale, certo?

— Sim, claro. Eu sinto falta dela, só isso. — Forço um sorriso


enquanto ele examina meu rosto. Andreas coloca a mão nas minhas costas
outra vez e pergunta se podemos voltar. Eu aceno positivamente e ele me
guia até nossa mesa, onde estamos sentados junto com Viggo Adamovich e
seu filho, Vladmir. Viggo mal se dá ao trabalho de me olhar quando me

cumprimenta e sei que só faz isso porque sou a esposa de Andreas Orlov.
Ele nunca gastou um segundo de sua atenção comigo antes e já nos
encontramos algumas vezes na mansão. Vladmir, por sua vez, me
cumprimenta educadamente e opta por sentar-se ao meu lado. Os pais de

Elke também estão à mesma mesa. Três das famílias mais poderosas do país
estão sentadas em um pequeno semicírculo e poucas vezes eu me senti tão
inadequada quanto nesse momento.
Escuto atenciosamente enquanto Andreas conta sobre as escavações na
Sibéria. Viggo está interessado em saber qual o potencial de extração da

área enquanto Fiódor está falando sobre como Andreas deveria expandir a
capacidade de refino para dar conta desse novo filão de petróleo que está
sendo escavado.

— Você ainda desenha? — Vladmir me pergunta. Ele fala tão baixo


que eu demoro um pouco para entender que ele está de fato falando comigo.

— Um pouco, mas apenas alguns rabiscos — confesso.

— Você desenhava nas carteiras na época da escola, eram bons demais


para chamar de rabiscos.

— Obrigada, eu acho — digo meio sem jeito.

— É estranho vê-la sem a sua outra metade. — Não entendo o


comentário de imediato, então ele complementa: – Refiro-me a Elke, vocês

sempre andam juntas. Suponho que menos agora que você e Andreas...

— Ela está viajando — Kira responde em um tom alto o suficiente


para que todos olhem para ela. — Vladmir estava perguntando por Elke. Ela
está fazendo alguns cursos da NYU, querido.

— Achei que Fiódor tivesse dito Yale outro dia, numa reunião —
Andreas diz.

— Claro, Yale, que cabeça a minha — Kira diz sorrindo.


— Em breve, a sua prometida estará de volta, Vladmir, e pronta para
casar-se — Fiódor diz.

— Essa é uma excelente notícia. — Viggo Adamovich comemora


sorrindo. — Isso pede um brinde.

Observo enquanto ele ergue sua taça e, assim que faz isso, sinto uma
sombra se projetando atrás de mim e sei, antes de me virar, o que está
acontecendo, mas não preciso porque o som de sua voz ecoa confirmando.

— Comemorando sem mim, Viggo? Você sabe que não é de fato uma
festa sem a minha presença, certo? — Mikhail diz.
A voz do meu irmão é como um alarme que desperta todos os meus

sentidos. Imediatamente, minha mão vai para a de Izolda. Ela recua um

pouco, o suficiente para que eu note e me sinta um idiota. Seu rosto perde um
pouco da cor no momento em que ela percebe a presença de Mikhail, e eu

fico em conflito por ver o quanto o fato de que ele está aqui a atinge.

Meu irmão e eu nos encaramos em silêncio. Estou avaliando a

situação, tentando controlar meus impulsos. A última coisa de que eu preciso

é um escândalo.
— Mikhail, sente-se. Estamos celebrando — Viggo diz. — Meu filho

em breve vai se juntar ao mundo dos casados.

— Viggo, que excelente notícia. Contanto que eu não seja o noivo,


adoro casamentos. Posso saber quem é a sortuda? — meu irmão pergunta.

— Elke Pavlova.

— Uma excelente garota, Vladmir — Mikhail diz sorrindo. — Amiga

da minha querida cunhada, não é mesmo, Izolda? — ele pergunta colocando

a mão no ombro dela. Izolda se afasta imediatamente e me olha. Ela inclina a

cabeça na minha direção e se desculpa. Não sei bem pelo quê, mas há tanta
dor no seu rosto. Noto que ela pretende se levantar, então coloco a mão

sobre a dela outra vez. Estou pronto para dizer "Isso foi ótimo, mas minha

esposa e eu precisamos ir" quando Oleg Volochkova faz um anúncio no palco

e me cita. Em seguida, ele me chama para dizer algumas palavras.

— Não saia daqui, tudo bem? Eu volto em um minuto — digo no

ouvido de Izolda.

Afasto-me dela contrariado. A última coisa que quero é ter que deixá-

la perto do meu irmão. Ainda assim, subo ao palco, desejo uma boa noite e

agradeço a todos pela presença.

— Essa fundação significava muito para minha mãe. Ter ajudado a

criá-la era um de seus maiores orgulhos, e eu tenho certeza que, de onde ela
estiver, está orgulhosa do andamento desse projeto, um projeto que eu espero

que a próxima geração de Orlovs continue apoiando. Não se esqueçam de

doar! — digo forçando um sorriso.

Meus olhos estão em Izolda e Mikhail. Meu irmão está batendo

palmas, assim como o resto do salão, mas ele tem uma risada secreta, como

quando costumávamos jogar pôquer e ele tirava uma boa mão. Desço do

palco e volto para mesa, volto para Izolda. Minha esposa se levanta assim

que eu me aproximo. Posso notar seu esforço para sorrir, assim como posso

perceber que as pessoas estão nos olhando. Não só as pessoas à nossa mesa,

mas todos naquele jantar. Então, pego-a pela cintura e coloco meus lábios no
dela rapidamente.

— Leve-me daqui — ela pede no segundo que nossos lábios se

separam. Eu sei que ir embora agora seria rude, mas não consigo resistir ao
seu pedido. Não há nada que eu queira mais que protegê-la, a qualquer custo.

Digo que tenho que ir e saio com Izolda enquanto Viggo faz piadas sobre

aproveitar a fase de lua de mel do casamento. Izolda, que está segurando

minha mão, a solta assim que saímos do salão. Tento não focar nisso, então

peço para que o carro nos pegue nos fundos do prédio para evitar o fluxo de

entrada. É neste momento que eu ouço a voz de Mikhail gritando meu nome.

— Já vai tão cedo? Espero que não seja pela minha chegada — ele diz

sorrindo.
— Que merda você está fazendo aqui? Eu não fui claro com você?

— Não, na verdade, não. Vamos recapitular: você me socou, gritou

coisas sem sentido e me disse para desaparecer. Acho que já desaparecia

por tempo suficiente. Além disso, estava com saudade de casa. Você me

conhece, eu não consigo ficar longe da família.

— Não tente bancar o engraçado, não comigo. Não estou com

paciência.

Aquele tipo de coisa funcionava com nosso pai. Ele sempre acabava

deixando que Mikhail tivesse o que queria, saísse impune de suas pequenas

transgressões. Minha mãe costumava dizer que meu pai sentia culpa por ter

se casado outra vez, por ter tido outro filho, e que, por isso, tentava

compensar o primogênito rebelde. Tivesse ela razão ou não, aquele

comportamento permissivo fez com que meu irmão mais velho crescesse sem

limite, se achando dono do mundo e da razão.

— Achei que casar o tornaria um pouco menos tenso. Quer dizer, olhe

para a sua esposa, ela fica até bem ajeitadinha quando se arruma. Você

deveria se divertir com ela — ele diz olhando para Izolda. Solto a mão que

está segurando a de Izolda e avanço na direção do meu irmão, jogo seu

corpo contra a parede, minha mão pressionando seu pescoço. Ouço o carro
parar e a voz do motorista perguntando se está tudo bem, mas não me movo,

apenas digo a Izolda que entre no veículo. Ela faz o que digo sem pestanejar.

— Se você chegar perto dela, se tocar em um fio do cabelo dela, eu


juro que você vai se arrepender, entendeu?

— Nós moramos na mesma casa. Como você espera que eu não chegue

perto da sua esposa?

— Não moramos — digo soltando-o. — A partir deste momento, você

está proibido de colocar os pés na minha propriedade, na empresa, na casa...

— É a casa da família, a nossa avó não permitiria que...

— Se ela realmente tiver um problema com isso, posso sugerir que vá

junto com você. Fique na cobertura na rua Tverskaya ou em qualquer outro

imóvel, é só escolher, mas aquela não é mais a sua casa, você entendeu?

— Não acredito que você está trocando seu irmão por uma criada

vagabunda que abriu as pernas com tanta facilidade.

Tenho que me restringir para evitar que meu corpo reaja. Minha

vontade é de socar meu irmão, mas, depois da forma como o machuquei da

última vez que brigamos, tinha prometido a mim mesmo que não faria aquilo

novamente. Não iria brigar com ele, não fisicamente.

— Apareça na casa e vou pedir para que os seguranças o joguem na

rua — afirmo.
— Você vai se arrepender disso. — É a última coisa que escuto meu

irmão dizer antes que eu entre no carro.

Na volta para casa, Izolda não diz uma palavra. Ela passa todo o

tempo olhando pela janela do carro e mal me olha quando o veículo para em

frente ao palácio. Fico no escritório, com a desculpa de que preciso

trabalhar, enquanto ela vai para o nosso quarto, mas a verdade é que eu mal

consigo olhar para ela no momento. Eu tenho medo de que ela veja nos meus

olhos o quanto a amo e o quanto estou assustado por isso.

Desde o reaparecimento de Mikhail, Izolda se tornou ainda mais

reservada. Duas semanas haviam se passado sem que tivéssemos tido algo

que realmente se parecesse com uma conversa. Ela ainda não tinha levantado

quando eu saía para trabalhar e já estava dormindo quando eu retornava.

Além disso, nos momentos em que não estou em casa, ela mal sai do quarto,

ou pelo menos é isso que os empregados reportam.

Minha avó diz que prefere assim, que não suporta olhar para Izolda,

considerando que ainda está magoada comigo por ter banido Mikhail. Ela me

diz que sangue é tudo que importa, mas ela deveria saber que aquele apelo

não funcionaria comigo. Sergei não era meu sangue, mas era como um pai
para mim. Minerva é mais minha irmã do que Mikhail. Laços de sangue são

superestimados.
Estou parado na porta olhando para Izolda, que está enrolada nos

edredons da cama. Penso que tudo vai se repetir hoje: ela vai comer no

quarto, passar o dia desenhando e dormir antes que eu chegue. Estou

pensando no que posso fazer para mudar essa situação quando meu celular

toca, interrompendo meu momento de contemplação.

— Bom dia, chefe. Tenho notícias ruins — a voz de Minerva conta. —

Acho que o acordo da Itália não vai funcionar, eles disseram que nosso

plano não era transparente o suficiente. Mas acho que só não querem fazer
negócios com a Rússia.

Droga! Esse era um acordo importante. A tecnologia que essa empresa

tem desenvolvido para produção de energia pode ser o ponto de virada para
garantir que o Grupo Orlov entre em um modelo mais amigável com o

ambiente.

— Há algo que eu possa fazer?

— Há, mas não vai gostar. — Sei o que ela vai dizer antes que termine

a frase: eu tenho que ir para a Itália. Ainda assim, deixo que ela termine. —
Você precisa ir até eles, o dono dessa empresa é tradicional. Ele gosta de

apertos de mãos, charutos e de fazer negócio cara a cara.

— Tudo bem, se é o único jeito, é o único jeito. Eu vou hoje mesmo.


— Ei, pelo menos não é a Sibéria. — Posso ouvir sua risada. Minerva
tem sempre esse jeito de ver o lado bom das coisas, enquanto eu sou

pessimista por natureza. Acho que por isso funcionamos bem, estabelecemos
um balanço. Sem ela, eu não sei como tocaria a empresa.

— É, pelo menos não é a Sibéria — respondo. — Mas eu trocaria a

socialização forçada pelo gelo sem pestanejar.

— Quer que eu vá junto?

— Não, preciso de você apagando os incêndios por aqui, caso eles

aconteçam.

— Ok, vou lhe mandar tudo que tenho sobre ele para você se

ambientar. Também vou pedir para a secretária marcar uma reunião e enviar
algumas garrafas de Medovukha.

Eu concordo com tudo, então saio do banheiro e me sento ao lado de


Izolda na cama. Ela parece tranquila dormindo. Passou a noite inteira assim,
sem acordar com pesadelos, o que é um avanço, suponho. Contenho a

vontade de passar minha mão pelo seu rosto e, em vez disso, coloco minha
mão em seu braço e a movimento cuidadosamente enquanto chamo seu nome.

Ela abre os olhos e parece levar alguns segundos para fazer sentido do que
está acontecendo ao seu redor.

— Eu preciso que você acorde — digo encarando-a.


— Eu não quero sair da cama — ela responde.

— Vou precisar viajar, achei que você não queria ficar aqui...

— Não, não quero, eu quero ir com você — ela diz, rapidamente se


sentando na cama. Vejo os bicos dos seus seios marcando a camisola de seda
e imediatamente desvio o olhar. Ela parece perceber porque puxa o lençol

um pouco, apertando-o contra o peito.

— Certo, então preciso que se levante e se organize para que

possamos ir. Estamos indo para a Itália, provavelmente serão apenas dois ou
três dias...

— Itália? — ela pergunta sorrindo. Essa deve ser a primeira vez que a
vejo sorrir de verdade nesses últimos meses. Vê-la sorrir aciona algo dentro
de mim, um desejo incontrolável e irracional de fazer com que ela continue

assim, que Izolda nunca mais precise passar por qualquer dor.

Quando entramos no jato, no final da manhã, ela parece apreensiva.

Izolda se senta em uma poltrona de frente para mim, e noto enquanto ela
prende as mãos aos braços do assento, uma de suas pernas se move

nervosamente.

— Assustada? — pergunto.

— Ansiosa — ela responde.


Percebendo que Izolda ainda está sem cinto, solto o meu para me

aproximar dela.

— Posso? — Ela acena positivamente e eu pego as pontas do cinto,


ajusto o cumprimento e fecho a trava.

— Eu não... não achei que você fosse mesmo fazer isso.

— O quê? — pergunto sem entender.

— Trazer-me com você.

— Eu sempre faço de tudo para cumprir com a minha palavra, Izolda.


Sempre.

— Ainda assim, achei que só estava me trazendo porque, bem, você

sabe, porque o seu irmão voltou.

Ela está certa em entender a presença do meu irmão como algo que

reforça minha promessa. A ideia de deixá-la, dessa vez, parece


inconcebível. Eu sei que ficar com a minha avó não deve ter sido nem um

pouco prazeroso, mas Olga Orlov, por mais dura que seja, não faria mal a
Izolda. Não posso dizer o mesmo de Mikhail.

— Andreas, eu só queria que soubesse que...

— Não. Eu não preciso saber — digo voltando para o meu assento. —


Por mais complicado que o Mikhail possa ser, ele é meu irmão, e eu não

consigo deixar de achar que a atitude dele, de alguma forma, é um reflexo de


tudo que... — interrompo-me quando noto a confusão no olhar dela. — Na

verdade, não vamos falar dele. Eu prefiro que não falemos sobre o que
passou.

A decolagem começa e eu me concentro em ler o material que Minerva


me mandou enquanto Izolda está olhando pela janela, parecendo encantada.

Passamos as pouco mais de três horas de voo quase em silêncio. Ela oscila
entre olhar pela janela e desenhar. Eu termino minha leitura e respondo a

alguns e-mails enquanto alinho algumas questões sobre os próximos dias


com Minerva. É só quando pousamos e o carro nos leva do aeroporto para
as ruas de Roma que ouço a voz de Izolda outra vez. Suas palavras são de

encantamento com as ruas da cidade.

O veículo para em frente a uma casa e eu pego as malas, dizendo que o

motorista não precisa se incomodar; são apenas duas pequenas bagagens.


Peço para que Izolda vá na frente e somos recebidos pela equipe de

manutenção da casa. Aquela propriedade foi da família da minha mãe, e


havia se tornado minha depois de sua morte. Apesar de ter vindo aqui

poucas vezes, eu tinha boas lembranças desta casa da infância, de andar de


bicicleta com a minha mãe por Roma no verão ensolarado, de ouvir

atentamente enquanto ela me contava histórias sobre seus pais, sobre a


cultura do país. Esta casa costumava ser o meu lugar predileto do mundo

todo, o lugar no qual minha mãe parecia mais feliz. Sem a presença da minha
avó paterna, ela e meu pai pareciam mais despreocupados, eles se beijavam
o tempo todo, dançavam; ele até era menos rígido comigo naquelas ocasiões.

Eu vejo as memórias ganhando forma na minha frente: o menino de cabelos


negros, pequeno para a idade, correndo sem um dos dentes, com um avião de
brinquedo na mão, minha mãe ao piano, meu pai com um copo de bebida na

mão e olhando para ela como se fosse a coisa mais preciosa que existia em
todo o mundo. Diversas coisas podem ser ditas sobre o tipo de homem que

meu pai era, mas ninguém vai poder dizer que ele não era devotado a minha
mãe.

— Esta casa é linda — Izolda diz. Sua voz me situa novamente no


tempo presente. Eu olho para ela e me pergunto se, algum dia, poderíamos

ter aquilo. Aquele tipo de felicidade, de devoção. Talvez ela tivesse razão.
Talvez, no momento em que fiz valer aquela promessa, tenha nos condenado

a uma vida de infelicidade.

A governanta da casa, Giorgia, é uma senhora de cabelos pretos,


robusta e que parece estar encolhendo com o passar dos anos. Ela me

oferece um sorriso e diz que faz muitos anos desde que estive na casa e que
não devo me demorar tanto entre visitas.

— Giorgia, questa è mia moglie, Izolda — afirmo. Izolda me olha com


curiosidade e eu digo que estou apresentando-as. Minha esposa me pergunta

como dizer "É um prazer" em italiano e eu lhe explico.


— È un piacere — ela afirma com o forte sotaque russo, mas
pronunciando incrivelmente bem para alguém que só ouviu aquilo uma vez.

Giorgia coloca a mão no ombro de Izolda com seu jeito maternal e a elogia.

— Che bela, bellissima — ela afirma olhando Izolda dos pés à

cabeça. E tem razão, Izolda é realmente linda. Às vezes, eu temo esquecer de


respirar só de olhar para ela. — Questa casa ha bisogno di bambini.

O comentário me faz começar a rir. Esta casa precisa de

crianças. Não sei exatamente pelo que estou rindo, talvez eu tenha começado
a desenvolver uma nova camada de senso de humor e esteja simplesmente

rindo da minha desgraça. Como eu vou ter um filho com a minha esposa se,
em meses de casados, só nos beijamos duas vezes? Ambas pelo bem das

aparências.

Além disso, eu nunca me imaginei sendo pai. Na minha família, não se

tem filhos, e sim herdeiros. Herdeiros carregam expectativas, obrigações. E


eu sempre temi a ideia de repetir com uma criança o comportamento que meu
pai teve comigo e com meu irmão. Mikhail deixou de orbitar na existência
do nosso pai no momento em que ele se provou incapaz de levar o legado da

família adiante. E, por achar que falhou com o mais velho, meu pai tinha
decidido triplicar as cobranças comigo.

— Presto, molto presto — minto para Giorgia.


Ela faz questão de nos acompanhar até a suíte principal. Eu abro a
porta para que Izolda entre primeiro e agradeço à governanta dizendo que

vou sair em breve e que seria ótimo que falasse inglês para caso Izolda
precisasse de algo. Deixo Izolda organizando suas coisas e vou para o
banho; fazia tempo que não tomava um banho frio. Enquanto a água escorre
pelo meu corpo, eu penso em como é estranho estar aqui com Izolda, dessa
forma. Quando era mais novo, Roma me fazia pensar nela, toda aquela arte.

Sempre que via um quadro ou uma escultura, pensava que ela gostaria de ver
aquilo, de como poderíamos passar horas falando sobre arte. Agora, estamos
aqui e mal conseguimos trocar palavras o suficiente para que a interação
seja considerada uma conversa.

Seco os cabelos e me enrolo na toalha, só então percebendo que aqui


não estou saindo direito para o closet e que vou precisar caminhar apenas de
toalha pelo quarto. Desde a adolescência, perdi qualquer aversão a nudez;
ainda assim, eu detesto a ideia de parecer estar me impondo ou cruzando

qualquer linha com Izolda. Retorno para o quarto e a encontro parada perto
da janela. Ela se vira para me encarar, passa seus olhos no meu corpo e
volta a olhar para a janela.

— Eu só vou pegar uma roupa — afirmo. — Eu tenho que visitar um


parceiro de negócios; tenho um compromisso com ele e não devo voltar para

o jantar — digo. Izolda se vira outra vez, mas agora sustenta o olhar. Ela tira
o casaco de pele e o coloca na cama, ficando apenas de vestido. Ainda
assim, ela parece aquecida demais para o clima.

— Você vai me deixar aqui? Sozinha? — ela questiona.

— Acho que você precisa de roupas — digo ignorando sua pergunta.


— Os seguranças vão acompanhá-la.

— Seguranças? Você acha que eu vou tentar fugir? — ela pergunta se


aproximando. Izolda está extremamente perto agora e uma pequena parte do

meu cérebro fica me dizendo para dar um passo para trás e aumentar a
distância entre nossos corpos, mas essa parte é vencida por todo o resto.

— Você pode me culpar? — pergunto. Solto o lenço de lã ao redor do


seu pescoço e ela não se move enquanto faço isso, apenas permanece me
encarando. Nunca sei se, nesses momentos, Izolda está parada pelo medo ou

numa espécie de desafio que tenta travar comigo. — Você vai andar com os
seguranças aqui pela mesma razão que anda com seguranças na Rússia. Você
é minha esposa e eu quero que fique segura.

Ela se desarma um pouco quando digo isso, e sua mão segura

levemente as pontas dos meus dedos.

— Eu não pretendo fugir, eu nem mesmo tenho para onde ir.

— Isso não muda nada — afirmo. A resposta faz com que Izolda solte
a minha mão. Tento não me abalar com o gesto e me volto para a mala para
procurar o que pretendo vestir. — Compre algo menos russo, você vai

precisar. Ainda não sei quantos dias vamos passar aqui. Se precisar de algo
na casa, Giorgia tem alguém que pode ajudá-la, alguém que fala inglês. Na
rua, você não deve ter problemas, mas me ligue se precisar de alguma coisa.

— Sim, senhor — ela responde.


Como previsto, a reunião de negócios se transforma num jantar e,

depois, acaba sendo esticada para charutos – que eu detesto – em um clube

de cavalheiros em que mulheres usando roupas minúsculas servem bebidas


elaboradas demais para o meu gosto. O homem com quem vim fazer

negócios passou horas evitando o assunto com o pretexto de continuar me

arrastando com ele. Primeiro, do escritório para o restaurante; depois, do


restaurante para este clube, e só Deus sabe qual será a próxima parada se

não conseguirmos resolver as coisas.


— Sabe, Andreas, eu estava um pouco indeciso sobre fazer ou não

negócios com você, mas saber que você tem sangue italiano com certeza está

me fazendo mudar de ideia — ele fala depois que toco no assunto do nosso

acordo.

— E eu estou aqui justamente para esclarecer qualquer dúvida e

eliminar essa indecisão. Para ser honesto com você, Paolo, nós podemos

escolher outro parceiro nessa empreitada, mas eu gosto da sua tecnologia. É

limpa, tem uma visão de futuro integradora, está alinhada com o que eu quero
que as empresas Orlov sejam.

— Minha preocupação é que a sua empresa é gigante. Os

hidrocarbonetos representam dois terços de toda a economia da Rússia, e


vocês detêm mais de cinquenta por cento da produção. Basicamente, se o seu

país fosse liberal, você seria o homem mais poderoso da Rússia.

O comentário me faz rir. Bom, ele tem razão quando diz que gás

natural e petróleo são dois terços da renda do meu país, mas está enganado

sobre o poderio da minha empresa – temos 80% da produção.

— Se eu compartilhar essa tecnologia com você, o que garante que a

sua empresa não vai engolir a minha e tirá-la do jogo?

— Um acordo. Um acordo bem redigido, honesto e legalmente

impenetrável — respondo.
Uma mulher se aproxima com outra dose de uma bebida esverdeada da

qual já tomei duas doses e não pretendo cometer o mesmo erro uma terceira

vez. Ela coloca sua mão em meu ombro, se inclina um pouco e o decote fica

perto do meu rosto. Eu me inclino um pouco para falar em seu ouvido e peço

uma dose de uísque; ela sorri de orelha a orelha. Pelo menos eu ainda

consigo causar esse efeito em algumas mulheres. Uma pena que nenhuma
dessas mulheres é a que me interessa.

Levo minha mão até a aliança e penso em como sexo se transformou

numa lembrança. Izolda tinha me acusado de dormir com outras mulheres

enquanto estava na Sibéria, mas a verdade é que eu estava numa névoa de


luto e choque naquele período. Eu não conseguia colocar na minha cabeça o

fato de que Sergei estava morto e que eu estava casado com sua filha. Eu

também estava doente pela ideia do meu irmão tocando em Izolda. Eu

constantemente revivia mentalmente o momento em que encontrei Mikhail na

cama com Galina, mas, sempre que olhava para ela, eram os olhos de Izolda

que encontrava. Por um momento, eu achei que aquilo iria me enlouquecer.

— Casado há pouco tempo? — o italiano me pergunta sorrindo.

— Sim.

— Por isso o olhar cauteloso para as moças — ele diz sorrindo. A


mulher volta rapidamente me trazendo uma bebida e eu engulo todo o
conteúdo de uma só vez. Ela me oferece uma outra dose e eu aceito. —

Esposa ciumenta?

— Não. Só não há ninguém aqui que me cause o que ela causa —

afirmo. Por que é mesmo que eu estou me abrindo com esse estranho? Talvez

seja a bebida.

— Aproveite essa fase em que tudo que queremos é chegar a casa para

encontrar a esposa. Agora, eu passo o maior tempo evitando-a, evitando


todas as demandas e reclamações — ele diz sorrindo. Forço um sorriso de

volta. —Mas, como esse não é o seu caso, não vou mais prendê-lo, vá para

sua ragazza e vamos fazer o seguinte: vou reler todos os planos, reunir o

conselho amanhã e lhe dou uma resposta em dois dias, tudo bem? Traga sua

esposa para jantar na minha casa e vamos acertar todos os detalhes.

Eu aperto a mão de Paolo e agradeço pela noite. Então, acerto a conta,

e ele diz que vai ficar mais um pouco, alegando que ainda não está pronto

para ir para casa. Quando chego a casa, é pouco mais de uma da manhã.

Entro no quarto e me sento na cama tentando não fazer barulho enquanto

retiro meus sapatos, mas estou exausto e levemente embriagado, então não

consigo ser suficientemente silencioso. Izolda acende o abajur do seu lado

da cama e me encara.

— Eu sinto muito — digo. — Não queria acordá-la.


Antes que perceba, minha mão está tocando na panturrilha dela

carinhosamente, então recuo. Izolda fica de pé e vem até mim.

— Você está bêbado — ela diz. — E fedendo a cigarro.

— É charuto — afirmo enquanto tento soltar a gravata.

— Eu faço isso — ela diz pegando na minha mão. Ela habilmente

desfaz o nó e me ajuda a retirar a jaqueta. — Sua reunião deve ter sido boa.

— Não foi — confesso. Izolda começa a desabotoar minha camisa e

eu penso em como gostaria de poder tocá-la, beijá-la. — Você fez compras?

— Fiz — ela responde. Eu tiro a camisa e começo a dobrá-la, mas ela

pega a peça da minha mão enquanto dá uma risada. Não sei por que ela está

rindo, mas estou decidido de que sua risada é minha música predileta.

— Eu preferiria ter ido com você — confesso. Merda! Talvez eu

esteja mais embriagado do que estou dando conta. Coloco minhas mãos em

sua cintura e apoio minha cabeça em seu corpo. Izolda cheira tão bem, eu só

quero continuar tocando nela.

— Você só está bêbado — ela diz passando a mão pelos meus cabelos

— Vá dormir, Andreas.

***
No dia seguinte, eu acordo com uma cena que não faz o menor sentido.

Izolda está com a cabeça por cima do meu braço, e nossos corpos estão

colados, minha mão em sua cintura. Eu ergo meu corpo cautelosamente,

tentando me certificar de não a acordar, até que estamos afastados, embora

sua cabeça ainda repouse no meu braço. Essa última parte é a mais

complicada, tento deslizar meu braço levemente e Izolda se move algumas

vezes.

Quando finalmente consigo liberar meu braço, ela se vira

completamente para mim, os olhos permanecem fechados. Eu analiso sua

expressão e penso em como gostaria de tocar seu rosto. Lembro de ter

pensado isso na noite passada e me pergunto se verbalizei minhas intenções.

Estou sem camisa, usando apenas cueca, mas nem me lembro de ter tirado a

roupa. Só lembro dela falando comigo e de ter me perdido em seus olhos em

algum momento. Malditas bebidas coloridas. Que tipo de clube de

cavalheiros servia bebidas que pareciam mais indicadas para universitários

em raves? O que aconteceu com o bom e velho uísque, uma boa dose de

vodka? Mas, então, percebo o que de fato aconteceu: os charutos. Sempre

que eu combinava álcool com cigarros, algo raro, minha tolerância era

drasticamente diminuída. Eu podia, como um bom russo, tomar vodka como


se fosse água, mas bastava envolver um cigarro para que a coisa saísse do

rumo. Talvez os charutos tivessem o mesmo efeito.

Levanto da cama, tomo banho, visto algo confortável e decido ir para

o escritório trabalhar um pouco. Giorgia pede que me levem café da manhã e

perguntem se a senhora deve ser acordada, mas digo para que a deixem

dormir. Uma parte de mim não quer ter que encarar Izolda e sabe-se lá o que

eu posso ter dito na noite anterior. Imagino se disse algo comprometedor, se

contei sobre o quanto a desejo, sobre o quanto meu coração perde o


compasso quando ela está perto.

Recebo um e-mail de Minerva com um clipping que seus assistentes

preparam semanalmente. O conteúdo tem todas as notas relevantes da


imprensa sobre as Indústrias Orlov e há sempre algo pessoal junto.

Recentemente, as notas pessoais são especulações e fofocas sobre o meu


casamento.

Na semana passada, havia uma série de matérias do tipo "Quem é


Izolda Orlov? Saiba tudo sobre a mulher que conquistou o herdeiro do

império Orlov". O texto, claro, não cumpria o prometido, não contava tudo
sobre Izolda. Lá, falava sobre os pais de Izolda, sobre sua educação no
mesmo instituto no qual fui educado, mas, para além disso, só havia

especulações. O arquivo que recebi hoje tem notícias sobre nossa "viagem
de lua de mel para a Itália". A matéria me faz rir.
— O que é tão engraçado? — Izolda pergunta. Ela está parada na
porta, usando um vestido amarelo que faz com que ela seja a incorporação

do verão. O vestido fica consideravelmente acima do joelho, e eu noto suas


coxas; então, me repreendendo, voltando a encarar seus olhos.

— O trabalho.

— Deve ser um trabalho muito divertido — ela afirma. — Ontem


mesmo, depois de horas trabalhando...

— Izolda, me desculpe, o que quer que eu tenha dito, eu não estava...

— O que quer que tenha dito? Você realmente não lembra? — ela
pergunta se aproximando. Eu tento forçar minha mente. Eu preciso lembrar.

O que eu disse? O que eu disse?

— Eu não...

— Francamente, Andreas — ela diz levando a mão ao peito de forma

dramática. — Você me pediu em casamento e disse que eu sou o amor da sua


vida, não se lembra? Céus!

Estou com os cotovelos na boca e as mãos cruzadas atrás da cabeça e,


assim que percebo o que ela está fazendo, eu abandono essa posição rígida e

passo a mão no cabelo enquanto dou uma risada.

— Não se preocupe, você só precisava de ajuda para encontrar a


cama, nada demais.
O modo como ela diz isso faz com que eu me sinta aliviado. Não que a
ideia de dormir com ela não seja tentadora, mas eu gostaria de me lembrar

disso caso um dia ocorra e, principalmente, teria que ser algo que ela
também quisesse. Querer sozinho não é o suficiente.

— Vá tomar café da manhã, Izolda. Tenho planos para nós.

— Você precisa que eu o acompanhe numa reunião de negócios? —


Ela questiona com um tom de descrença evidente.

— Não. Não preciso. Nós vamos apenas sair — respondo. Minha


esposa começa a andar em direção à porta, e eu a chamo de volta. Digo que

ela deve ficar e tomar café aqui, comigo, não sozinha. Digo que os
empregados achariam aquilo estranho, mas a verdade é que a quero por

perto. O fato de que Paolo precisa de mais um dia para se reunir com seu
conselho e considerar minha proposta fornece algo raro: tempo. Posso ficar

com Izolda, aproveitar o dia. Talvez aqui, longe de tudo, possamos nos
desarmar um pouco.

— Tem certeza de que posso fazer isso? — Izolda pergunta me

olhando. Ela está deitada no chão, e eu estou de pé olhando para ela. Eu


aceno positivamente e ela estende a mão para mim. — Você não vem? A

vista é incrível.
Quero dizer que a vista de onde estou é melhor, mas não ouso. Aceito

seu pedido e me deito ao seu lado. Imagino o que as pessoas diriam se


vissem esta cena. Andreas Orlov deitado no chão de um lugar público

admirando uma pintura. Olho para Izolda por alguns segundos. Ela está
sorrindo e aquilo imediatamente me faz querer sorrir. Quem se importa com

o que os outros diriam quando fazer isso me garante receber esse sorriso?
Estamos na Capela Sistina, em um tour privado.

— Qual seu predileto? — ela pergunta sem tirar os olhos do teto.

— Não sei se tenho um afresco predileto — confesso.

— Escolha um agora — ela pede. Encaro o teto tentando lembrar os


significados, mas então penso em como minha mãe dizia que arte era menos

sobre saber e mais sobre sentir.

— Lá no fundo — digo apontando —, a cena de Deus separando a luz

das trevas.

— Por quê?

— Eles são muito parecidos. Um na posição correta, outro apenas de

ponta cabeça. São apenas postos em oposição, mas parecem iguais. — Posso
sentir seu olhar sobre mim e viro-me para o lado para encará-la. — Qual o

seu?
— Judite e Holofernes — ela responde sem nem pestanejar. Eu movo

meus olhos tentando identificar qual é o afresco, e Izolda pega minha mão e
aponta para o local da pintura. Digo que não lembro da história. Apesar de

ser de uma família católica, principalmente pela devoção da minha mãe ao


Vaticano, eu nunca fui um grande conhecedor dos testamentos. — Judite era

viúva de Manassés. Ela matou o capitão Holofernes, que estava a serviço do


rei Nabucodonosor, e salvou seu país da opressão do exército quando o

decapitou depois de seduzi-lo. Há um quadro do Caravaggio sobre a


decapitação, é provavelmente um dos meus prediletos. — Ela conta isso

com tanta paixão que eu sinto um pouco de inveja das pinturas. — Podemos
vê-lo? — ela pergunta me olhando, sua voz parece ainda mais animada. —

Deve estar na Galeria Nacional de Arte Antiga, eu sempre quis conhecer.


Não precisa ser agora, claro... Meu Deus, eu estou falando demais, não

estou?

— Não. Eu gostei de ouvir. E podemos, sim, claro — Respondo


sorrindo. Izolda se joga na minha direção e me abraça, e há um momento

breve de sintonia até que ela parece perceber a posição em que estamos –
ela está parcialmente por cima de mim.

— Sinto muito — ela diz sentando-se e ajustando o vestido. — É só


que eu vi tudo isso nos livros e parecia incrível no papel. Mas aqui, estar
vendo esse teto e pensar que Michelangelo só precisou de quatro anos e que
fez tudo isso sozinho. Tudo isso é fantástico.

Seguimos com nosso tour por mais algum tempo. Depois, vamos até a

galeria nacional, mas há tantas peças e Izolda fica por tanto tempo encantada
com cada uma delas que seria necessário que nos mudássemos para Roma

para que ela pudesse apreciar as peças da forma como deseja. Já está escuro
quando saímos da galeria e passamos pelas praças. Peço para que os

seguranças se mantenham distante e, enquanto caminhamos, vou contando um


pouco do que lembro sobre os lugares. Há um homem vendendo gelatto, e eu

compro dois. Tomar gelattos no centro de Roma era algo que minha mãe
adorava.

Noto que estou perto da minha fonte predileta e pego Izolda pela mão

para que ela venha comigo. Este contato se torna menos estranho. Na
verdade, hoje, a cada hora que passa, qualquer tensão entre nós vai sendo

dissipada. Acredito que tudo se deva a Roma e o efeito de suspensão dos


problemas que ela causa. Quando chegamos à frente da fonte, Izolda parece

fascinada.

— É linda! — ela diz sorrindo.

— Essa é a maior e mais bonita fonte de Roma, tem séculos de

história.
— Por que as pessoas estão jogando moedas? — ela pergunta
percebendo a movimentação perto da fonte.

— É uma fonte dos desejos. Dizem que, se você jogar uma moeda na
Fontana di Trevi, você volta a Roma. Se jogar duas, você vai conhecer uma

bela pessoa italiana e, se jogar três, vai casar-se com essa pessoa.

— Aqui — digo pegando as moedas que o homem me entregou


dizendo "para lla fonti"; estico a mão e há três moedas. — Você precisa

jogar com a mão direita e sobre o ombro esquerdo.

Izolda pega uma moeda, se vira, e a joga exatamente como eu disse. E,

então, ela me olha.

— Não quer mais moedas? Vai jogar apenas uma?

— Não preciso de mais. Eu me contento com voltar a Roma, não quero

o resto. Além disso, você já não é um belo italiano?

Fico imediatamente sem graça, então Izolda começa a gargalhar.

— É provavelmente a coisa certa. Eles tiram quase um milhão de


euros por ano dessa fonte. Acho que a indústria de casamento notaria cerca
de 330 mil casais comemorando terem se conhecido por causa dessa fonte.

Por que eu estou falando sobre dinheiro? Merda! Eu poderia ter dito

qualquer outra coisa, ou melhor, poderia não ter dito nada.

— Eu tinha esquecido disso sobre você — Izolda diz sorrindo.


— De quê?

— De como você é prático e objetivo, sempre.

— Não sou — digo. O sorriso no rosto dela se desfaz e eu me

repreendo por ter sido brusco na minha resposta. — Acredite em mim, não
sou tão objetivo quanto gostaria de ser. Pego uma moeda e jogo na fonte. Ela
me olha com curiosidade. — Para voltar com você — afirmo.
Eu poderia ficar aqui para sempre. É nisso que estou pensando quando

Andreas me oferece uma cadeira para que eu me sente em um pequeno

restaurante que parece cenário de um filme romântico. O dia que tivemos


hoje foi algo que sempre sonhei. Eu sempre quis ver aquelas obras de arte de

perto, e a realidade tinha se provado melhor do que o sonho.

E eu sei que, em parte, esse incremento entre expectativa e realidade

deve-se à presença de Andreas. Ele tinha sido um perfeito cavalheiro o dia

inteiro. Roma era como uma folha em branco na nossa história. Sem a

sombra do passado, interpretamos bem o papel de recém-casados. Tão bem


que, em alguns momentos, eu tive que me lembrar de que meu marido só é

meu marido no papel.

— Já sabe o que vai pedir? — ele pergunta. Assisto ao movimento dos


seus lábios por um instante, me perdendo neles.

— Ainda não — confesso. — São opções demais e eu não conheço a

maioria dos pratos. — O que você, enquanto italiano, me indicaria? —


pergunto. Eu acabei de tentar soar sexy? Sinto-me invadida pela onda de

expectativa e prazer que me envolveu na noite passada quando ele segurou

minha cintura daquele jeito e apoiou sua cabeça entre os meus seios.

Andreas sorri para mim, um sorriso charmoso no canto da boca, e dá um

gole na sua bebida antes de apontar um prato dizendo que era o predileto da
sua mãe.

— Ela até pediu para que a sua mãe fizesse uma vez — ele me conta.

Peço, então, o que ele indica, uma pasta com pomodoro e basilico, enquanto

ele opta por uma carbonara. Ele pede outra dose de uísque e pergunta se eu

quero alguma coisa "mais forte" que a água que pedi assim que nos

sentamos. Eu escolho um champanhe porque essa é a única coisa alcoólica


que já tomei na vida.

— E você realmente nunca tomou vodka? — ele pergunta.

— Seu tom faz parecer que eu fiz uma coisa terrível.


— E fez! — ele afirma sorrindo. — Um russo que nunca tomou vodka

é como um italiano que nunca experimentou uma pizza.

Quero dizer que ele está exagerando e que aquelas duas coisas nem

mesmo são tão bem comparáveis assim, mas gosto da forma como ele está

sorrindo e, em vez disso, conto que Elke tentou me convencer uma vez numa

festa antes da formatura na escola, mas que eu nunca tive coragem.

— Precisamos resolver isso assim que estivermos de volta em casa,

porque eu não ousaria deixá-la começar tomando um desses destilados que

fazem aqui. Por sinal, a Itália seria perfeita se houvesse vodka melhor por

aqui.

Depois da comida, ele insiste para que eu escolha a sobremesa

enquanto fica parado com suas mãos entrelaçadas e o queixo apoiado nelas.

Ele é como uma daquelas obras que vi mais cedo: feito cuidadosamente,

cada traço, cada detalhe. A mão perto da boca me faz olhar para seus lábios

constantemente e eu me pergunto se ele não percebe o quanto gostaria de

beijá-lo. Talvez eu devesse ter feito isso na noite passada quando ele
encostou sua cabeça no meu peito e disse que gostava do meu cheiro. Hoje,

no entanto, ele não parece lembrar de nada disso.

Mas o que significaria se eu dormisse com ele? Eu provavelmente me


apaixonaria ainda mais. E ele? Como ele reagiria? Como seria depois do
sexo? Ele saberia que eu menti? Saberia que nunca estive com ninguém? E,

se ele não percebesse, talvez passasse a me desprezar ou se odiasse por ter

ficado com as sobras do irmão, porque é isso que ele deve pensar de
mim. Você acha que eu queria estar casado com uma mulher que fala o

nome de outro homem enquanto dorme? As palavras de Andreas ecoaram

na minha cabeça, e eu tratei de expulsá-las. Hoje, não. Mikhail não vai

contaminar esse dia.

— Eu sei que você provavelmente gostaria de conhecer mais do centro

de Roma amanhã, mas eu pensei em outra coisa — assim que ele diz isso,

minha mente se apressa a pensar no Coliseu, nos castelos e basílicas

repletos de pinturas, esculturas —, já que amanhã à noite temos um jantar na

casa de Paolo, o homem com o qual estou fechando um acordo, e...

— Você não me disse que eu tinha que ir a um jantar — digo. Pego a

taça do champanhe e tomo um gole, evitando dizer qualquer outra coisa que

possa destruir o frágil elo que estabelecemos hoje.

— Eu sei, e sinto muito. Foi algo que surgiu ontem à noite e eu não

quis atrapalhar seu dia com isso. Você estava feliz entre as pinturas, não

queria que ficasse pensando sobre esse jantar.

— É um jantar formal? Não é melhor que vá sozinho? Quer dizer, não

seria inadequada a minha presença.


— Não. Sua ausência seria algo estranho — ele responde. Andreas

estica a mão sobre a mesa, a palma aberta. — Dê-me sua mão — ele pede

me olhando. Faço o que ele diz e coloco a mão esquerda sobre a dele. Seus

dedos tocam nos meus e, em seguida, tocam no diamante em meu dedo

anelar. — Este anel no seu dedo significa que você é uma Orlov, significa

que, onde eu estiver, sua presença nunca vai ser inadequada.

Eu sei que ele está sendo adorável e, quando ele me toca, meu coração

pula uma batida, mas algo naquilo tudo me deixa irritada. Porque eu não sou

mesmo uma Orlov, não sou esposa dele, ele nem queria estar casado comigo.

E, com a exceção de raros momentos, como o dia que tivemos hoje, eu acho

que ele faz de tudo para se manter afastado de mim.

— E esses são os termos deste casamento? — pergunto sendo

governada pela irritação. — Estamos casados há mais de dois meses, o que

exatamente você espera desta união, Andreas?

Ele acena para o garçom, que está deixando a mesa ao lado e

rapidamente se aproxima, e pede uma outra dose de uísque. Assim que o

garçom se afasta, Andreas me encara outra vez, sua mão passeia

nervosamente pela barba. Há um momento de silêncio que se arrasta e eu

fico me perguntando se ele está esperando pela bebida para falar.


— Em que sentido? — ele finalmente questiona. Ele coloca os

cotovelos sobre a mesa e se inclina um pouco para a

frente. Sua voz é tão baixa que é quase um sussurro. Ainda assim, ela

faz algo com as minhas estranhas.

— Em todos — respondo. — Você não pensou nisso quando fez aquela

promessa, pensou? Como vai ser sua vida agora que está casado comigo?
Quais são os meus deveres enquanto sua esposa. O que você espera que

aconteça entre nós? Que tipo de relação vamos ter? Vamos passear por aí e

fingir que somos um casal até ficarmos velhos? Você não quer amar

ninguém? Não quer...

O garçom se aproxima e eu paro de falar imediatamente. Ele serve

uma dose de uísque, e Andreas pede para que deixe a garrafa. O homem nem

pestaneja antes de fazer o que lhe foi dito. Andreas mal olha para o homem,

está focado em mim como um leão que analisa uma zebra antes de atacar. Ele

bebe todo o conteúdo do copo de uma só vez.

— Mais cedo, você disse que eu sou sempre claro e objetivo, me

deixe tentar cumprir com essa imagem que tem de mim. O que você está

querendo me perguntar é se eu espero que você durma comigo, se eu

pretendo obrigá-la a dormir comigo, se vou ter amantes caso você não queira
ir para cama, e como pretendo ter herdeiros. Isso cobre tudo? — ele

pergunta, colocando mais uísque no copo.

— Cobre — respondo. Não sei de onde tiro a coragem, porque estou

bastante apreensiva pelo jeito que ele está agindo, e me pergunto se tudo isso

não foi uma ideia terrível. Eu deveria ter deixado que ele falasse sobre seus

planos para o dia seguinte.

— Você sabe que é bonita, não sabe? E, para além de bonita, você é
divertida, talentosa, inteligente. — Ninguém nunca me disse nada disso

antes; ninguém além dos meus pais, claro, mas eles não contavam para a
minha autoestima. — Então, sim, é claro que eu gostaria de dormir com

você, mas isso não significa que eu não sei me controlar ou que eu me
forçaria sobre você. Izolda, eu sei que nos afastamos bastante, mas eu

esperava que ao menos lembrasse de quem eu sou o bastante para saber que
nunca faria algo assim. Quanto às amantes, não, eu não pretendo dormir com

ninguém, estamos casados e isso significa algo para mim, assim como espero
que signifique para você.

— É diferente para você. Você é...

— Homem? — ele pergunta. Eu aceno positivamente, não era apenas


isso que eu pretendia dizer. Eu queria lembrá-lo que ele é homem e tem

poder; eu não tenho poder algum, nenhum controle sobre a minha vida no
momento. — O fato de que tenho desejos não torna esses desejos
incontroláveis, é isso que separa nossa espécie das outras. Você tem mais

alguma pergunta?

— Não me respondeu sobre os herdeiros — digo. Andreas deixa


escapar uma risada cínica que indica que ele definitivamente não esperava

por essa resposta quando fez a pergunta. Ele queria me chocar e, sim, tinha
conseguido, mas eu não pretendia deixar isso evidente.

— Eu posso adotar uma criança, ou outros na família podem assumir


os negócios, Izolda. Afinal de contas, mesmo que você fosse perdidamente

apaixonada por mim e que fizéssemos sexo feito coelhos por aí, o que
garante que teríamos filhos?

— Nada — respondo. Sinto as maçãs do meu rosto esquentando.

Minha irritação se dissipa parcialmente, ela vai dando espaço a uma outra
sensação. Eu me sinto envergonhada por ter começado aquela discussão, por

mais que todas aquelas perguntas fossem necessárias, mesmo que eu ainda
tivesse tantas outras.

— Izolda, por ora, o que eu preciso é que você cumpra o seu papel.
Que seja....

— Que esteja à altura de ser casada com um Orlov? — questiono.


— Você está tentando colocar palavras na minha boca, mas, se isso for
o necessário para que você entenda, sim — ele fala rispidamente, suponho

que seja um retorno justo ao meu tom de irritação. Ainda assim, fico
desapontada.

— Eu quero ir embora — afirmo. Ele fica me olhando como se


quisesse ver por dentro de mim, e isso me deixa um pouco desnorteada.

Andreas olha para o meu prato, parte da sobremesa continua nele.

— Termine de comer sua sobremesa — ele diz.

***

Eu acordo com os primeiros raios da manhã; passei a noite toda

acordando repentinamente. Dessa vez, não eram pesadelos, mas um aperto


no peito. Todas as vezes que abri os olhos, ergui a cabeça para encarar

Andreas, que estava dormindo ao meu lado.

Decido que não quero mais tentar voltar a pegar no sono e me levanto
da cama. Andreas permanece imóvel, o peito, que parece ser de pedra de tão

rígido, descoberto. Desço meus olhos acompanhando as dobras do lençol, os


pontos nos quais ele se encontra com sua pele. Eu me aproximo e puxo as

pontas do lençol, cobrindo-o. Passo a mão levemente pelo seu cabelo e


imagino como tudo seria mais fácil se eu dissesse a verdade, se contasse que

nunca dormi com seu irmão, se tivesse coragem de dizer como me sinto.

Mas quem garante que isso mudaria alguma coisa? Talvez ele me
odiasse por tê-lo feito estar vivendo uma mentira. Ele nem precisava estar

casado comigo, minha honra nunca precisou ser reparada.

Desde o jantar, voltamos ao nosso usual silêncio, e uma parte de mim

me culpa por ter estragado o momento agradável que estávamos tendo. Mas é
essa outra parte que continua brava. A parte que quer fugir, ir embora para

sempre, a parte que detesta ter que cumprir esse papel forçoso, a parte que
está aterrorizada com o quanto pode amá-lo mesmo no meio de tanto

fingimento.

Apronto-me para começar o dia e deixo o quarto cautelosamente, ando


pelos corredores vazios da casa. É tudo tão bonito, bem cuidado, há fotos de

gerações e mais gerações da família da mãe de Andreas. Penso naquelas


mulheres no banheiro do evento beneficente falando que a falecida senhora

Orlov tinha um pé na ralé. Se elas pudessem ver esta casa, suas línguas
seriam enroladas até formarem nós.

Abro a porta de um dos quartos e percebo que aquele provavelmente


costumava ser ocupado por Andreas quando a família vinha para esta casa.
Há alguns livros em italiano, uma decoração com um padrão xadrez em azul,
e aviões montáveis nas prateleiras. Andreas teve uma fase em que gostava de

ficar montando aviões e os colecionava, não era mais possível encontrar um


daqueles na mansão na Rússia. Mas aqui estão as evidências de que, um dia,

ele já foi apaixonado por alguma coisa. Agora, ele parece morno, quase
vazio. Sua antiga versão aparece em apenas pequenos lampejos.

Eu mudo de cômodo e encontro uma sala de leitura. Há um livro sobre


a mesa, um marcador de páginas nele. Imagino se foi a última coisa que a

senhora da casa estava lendo antes daquele acidente de carro terrível. Faz
tanto tempo agora. Não ouso tocar no livro, e deixo o local decidindo subir
as escadas. Se vou passar o dia presa nesta casa, ao menos pretendo

explorá-la. O segundo e último andar da casa é repleto de quartos com


portas brancas que se confundem com o gesso nas paredes. No final do

corredor, no entanto, há uma escada em caracol, e eu subo os degraus


apressadamente. Lá de cima, um pequeno ambiente, levemente empoeirado,

tem um velho piano e uma grande janela em vitral circular que proporciona
uma vista deslumbrante da cidade. Sento-me no batente da janela e decido

ficar ali, observando aquelas pessoas que andam livremente, indo para seus
trabalhos, voltando deles, fazendo compras, sorrindo. Crio nomes para elas,

empregos, imagino que sou elas.

— Grazie al cielo sei qui, il signor Andreas ti sta cercando — uma

voz diz. Um rapaz que eu tinha visto algumas vezes entra no local, me
assustando. Não entendo uma palavra além do nome de Andreas, o homem
fala rápido demais e, quando não me movo, se aproxima, o que faz com que

eu sinta mais medo. — Dai, andiamo! Andiamo! — ele repete e pega no meu
pulso. Retraio-me e ele parece mudar de ideia sobre o contato. — Mi
dispiace. Tuo marito è preoccupato.

Ele caminha até a porta, para rapidamente, diz "Andiamo!" outra vez, e
eu me movo em sua direção enquanto ele desaparece descendo as escadas.

Escuto quando ele grita alguma coisa e, alguns segundos depois, estou de
frente para Andreas, que parece tenso.

— Onde você estava, Izolda? — ele pergunta.

— Aqui.

— Eu acordei, e ninguém a tinha visto, nenhum empregado, nem

mesmo os seguranças, eu achei... — Ele parece irritado agora.

— Você achou que eu tinha fugido — completo. Quero ser grossa, mas
sua expressão anterior ainda está gravada na minha mente. Pergunto-me o

que havia passado na sua cabeça quando pensou que eu tinha ido embora, se
estava preocupado comigo ou com sua reputação, mas não tenho coragem de

perguntar porque temo o efeito da resposta. — Eu estava aqui, estava


explorando a casa, não achei que tinha que avisar. Sou a senhora Orlov,

afinal de contas, certo?


A ironia não passa despercebida aos ouvidos do meu marido. Ele me
olha e passa a mão pela barba, parece pronto para continuar com a bronca ou

coisa similar quando eu coloco minha mão no seu braço e digo que as
pessoas estão olhando. Giorgia e mais dois empregados estão por perto,

muito perto, e mesmo que eles provavelmente não entendam uma palavra de
russo, imagino que podem sentir o clima do ambiente. A mão livre de

Andreas pega no meu quadril e me puxa para perto. Eu engulo seco pelo
movimento inesperado, ele inclina a cabeça e aproxima o rosto do meu.

— Arrume-se, nós vamos sair — ele sussurra em meu ouvido. Seus

lábios quentes tocam a maçã do meu rosto, e ele vai embora, me deixando
parada tentando entender que tipo de jogo ele acha que estamos jogando,

porque eu definitivamente não recebi as instruções.

Depois de passarmos o dia, outra vez, como um casal de turistas em

Roma – embora hoje parecêssemos mais um casal tentando salvar o que


restou do casamento e não um em lua de mel –, Andreas e eu chegamos à
casa do seu parceiro de negócios. Enquanto estamos parados na porta, ele

me diz para agir como sua esposa e pega na minha mão. Somos recebidos
por um homem que pega nossos casacos e nos leva até a sala de estar, onde
os anfitriões nos aguardam.

Paolo é um homem robusto com poucos cabelos, mas um bigode


volumoso. Sua esposa, Viola, é uma mulher de cabelos negros, sorridente,
com seios fartos e que parece saída de um livro de tão caricata que é. Ela
usa joias brilhantes, se veste em cores vibrantes e ri bastante. Na hora de

cumprimentar Andreas, a mulher belisca o rosto do meu marido e diz que ele
é belíssimo algumas vezes e eu tento me forçar para não rir da cena.

Permanecemos na sala por um tempo, esperando que o jantar seja


servido. Andreas conversa com Paolo em italiano, e eu posso entender uma
palavra ou outra similar ao português, mas não consigo fazer sentido do

assunto. O que posso entender é que as coisas parecem bem. Eles falam
rápido e o homem que gesticula bastante parece satisfeito; Andreas, também.
Então, suponho que o acordo entre eles vá funcionar.

Eu fico sentada, movendo a perna nervosamente até que a mão de


Andreas repousa levemente no meu joelho. O toque faz com que eu olhe para

ele, que continua sua conversa como se aquele toque fosse a coisa mais
natural do mundo.

Viola senta-se ao meu lado do sofá e começa a me fazer perguntas. Ela


fala em um inglês vagaroso enquanto me pergunta o que estou achando de

Roma. Respondo que é linda e que não gostaria de ir embora.

— Nada é tão bom quanto estar apaixonado e em Roma — ela fala


sorrindo. — Poucos lugares no mundo são tão envolventes para os
apaixonados. É claro que, depois de alguns anos de casados, até mesmo
Roma deixa de ter efeito — ela diz olhando para o marido com um ar
sarcástico. — Há quanto tempo estão casados?

— Apenas alguns meses. — Eu olho rapidamente para a mão sobre o


meu joelho, o polegar se movendo lentamente pelo tecido do vestido, e
coloco a minha mão na de Andreas, que aperta levemente o meu joelho em
resposta ao contato. — Tecnicamente, esta é a nossa viagem de lua de mel.
Assim que nos casamos, ele me trocou por blocos gigantes de gelo. — Olho

para a lateral do rosto do meu marido, esperando qualquer reação, mas, para
além de um leve tensionar de mandíbula, ele não me olha.

— Não me diga que o seu marido também é viciado em trabalho?


Preste atenção, querida, o Paolo também achou que poderia viver para

trabalhar, mas, quando nos casamos, eu o lembrei de que não podia ser a
amante enquanto o trabalho seria sua esposa, teria sempre que ser o
contrário.

— Pelo menos, é a única amante aceitável. Qualquer outra, e eu


jogaria o corpo dele no Volga — digo sorrindo. Andreas me olha dessa vez;

a menção à ideia de jogá-lo no Rio por ciúmes chama sua atenção.

A mulher faz uma piada sobre o temperamento de russas e italianas


serem parecidos nesse sentido, mas eu mal consigo registrar porque estou
focada em como Andreas fechou um pouco sua mão na minha perna.
Um empregado da casa aparece, avisando que o jantar está na mesa.

Andreas oferece sua mão para me levantar e sussurra "O que está fazendo?"
em meu ouvido. Prendo a respiração por um segundo, evitando soltar um
suspiro que entregue o efeito daquela proximidade.

— Estou só sendo "sua esposa" — digo enfatizando a última parte. Eu


coloco minha mão em seu peito ao responder com o mesmo tom.

Ele não tem a chance de me responder porque Paolo começa a


falar "Andiamo"! enquanto nos guia para a sala de jantar. Observo a casa
enquanto caminhamos, é muito bonita. A decoração, um pouco exagerada,
mas, ainda assim, há um ar de deslumbrante na composição. Andreas puxa a
cadeira para que eu me sente e eu agradeço adicionando um "querido" no

processo. Ele entrega um olhar que depõe quanto à sua insatisfação, mas, se
ele quer que eu seja sua esposa, que seja uma espécie de boneca que é
vestida, penteada, arrumada para cumprir o papel de uma Orlov, vai ter que
lidar com isso.

Viola proíbe que o trabalho seja um tópico conversacional na mesa,


então eu elogio a comida. Ela diz que não atende ao estereótipo
da mama italiana porque não é uma boa cozinheira, mas que eles têm uma
das melhores equipes de cozinha da cidade. De fato, a massa que nos é

servida tem um molho que consegue superar o sabor da que comi no


restaurante na noite passada.
Estamos iniciando a sobremesa quando uma jovem de cabelos negros

entra na sala e começa a falar alguma coisa. Entendo quando ela deseja uma
boa noite, mas apenas isso. Viola apresenta a moça como sua filha e insiste
para que ela se sente à mesa. Ela me olha com curiosidade antes de ocupar
seu lugar, somos formalmente apresentadas. Aprendo que Mia é a mais nova

dos três filhos do casal, que está na universidade e que, aparentemente,


discorda dos pais em tudo. A mãe conta que a garota esteve recentemente na
América do Sul para um intercâmbio, e isso desperta meu interesse.

— Você conheceu o Brasil? — pergunto.

— Rio de Janeiro e Recife — ela responde em português com um forte

sotaque italiano. Eu fico feliz de ouvir alguém falando o idioma da minha


mãe. Fazia tanto tempo que até mesmo começava a imaginar se ainda sabia
falar português. Logo quando ela se foi, meu pai e eu costumávamos tirar
algum momento para conversar treinando o português, como forma de manter

a memória dela viva, mas ele tinha tanto trabalho que, com o tempo, isso foi
ficando de lado.

Eu converso animadamente com Mia sobre o Brasil, e ela até mesmo


arrisca algumas palavras em português. Seu intercâmbio fora na Argentina, e
a viagem ao Brasil foi um aproveitamento logístico. Ainda assim, ela sabia o

que minha mãe chamava de “português de turista”: palavras como samba,


futebol, Corcovado. Em um certo ponto, eu comecei a sentir inveja daquela
garota. Ela tinha tudo – dinheiro, liberdade, seus pais estavam vivos, ela não

estava casada com alguém que não consegue decidir se a despreza ou se


deseja ser amigo dela e, até onde posso dizer, não estava escondendo um
segredo que fazia seu peito doer sempre que o recordava.

Um tempo depois, Paolo convida Andreas para o escritório para

repassar a papelada do acordo. Meu marido levanta da cadeira e deposita


um beijo no topo da minha cabeça antes de partir.

— Você não é nova demais para estar casada? — Mia pergunta me


olhando. Sua mãe diz algo em italiano que parece ser alguma repreensão. Se
foi, não parece surtir efeito. — Sério, você tem o quê? Vinte anos?

— Algo assim — respondo, sendo propositalmente vaga.

— Se um homem como aquele a pedisse em casamento — Viola


começa a dizer —, você também diria sim.

— Por quê? Porque ele é rico, bonito e bem-sucedido? — ela


questiona. — Não estamos no século passado, mãe. Eu posso ser todas essas

coisas para mim mesma.

— E tenho certeza que vai ser quando eu cortar seus cartões de crédito
por ser tão rude com a nossa visita.

— Desculpe-me, Izolda — Mia diz. — Provavelmente deve ser


alguma coisa cultural que eu não entendo, o país de vocês é absurdamente
conservador. Quer dizer, é crime ser gay. Que tipo de lugar é esse?

— Não é bem um crime — respondo. — As pessoas são


criminalizadas porque o sistema judiciário não é dos melhores, mas isso foi
banido da legislação alguns anos atrás.

Ela começa a fazer outros comentários, a maioria deles sobre Putin e

seu domínio hegemônico nas últimas duas décadas. Não discordo dela em
grande parte, principalmente na forma autoritária e violenta de governo, mas
o que eu conheço, a realidade que vivo, é a de um líder político que é
celebrado nas ruas. As pessoas fazem desfiles e idolatram Putin, há até uma

música na qual o refrão diz "Eu quero um homem como Putin". Há mais
gente querendo deixar a Rússia do que ir morar lá, isso obviamente diz
alguma coisa sobre as condições de vida por lá.

Eu não faço a menor ideia sobre como é o regime político da Itália,


não sei quem é o presidente ou mesmo se eles têm um presidente ou um

primeiro-ministro, então não argumento. Imagino que Mia deva olhar para
mim como alguém que saiu de uma máquina do tempo, a mulher dos anos 50,
dependente, subserviente, não educada. Ela não estaria errada se pensasse
isso.

Viola pede para que ela suba e se desculpa comigo pelo


comportamento da filha, mas não estou ofendida, estou acordada. Aquela
garota segurou um espelho na minha frente e me fez perceber tudo que eu
poderia ser e não sou. O fogo que havia nela acendeu algo em mim. Se vou
ficar nesse casamento, se vou ser a esposa perfeita de Andreas Orlov, ao
menos quero poder controlar um aspecto da minha vida.

No caminho de volta para casa, dentro do carro, Andreas parece


satisfeito com o sucesso da viagem. Ele até mesmo já ligou para Minerva
para contar que o acordo foi feito. Estou pensando se esse é o melhor
momento para falar sobre o que quero, mas decido por uma abordagem

menos agressiva.

— Andreas... — chamo-o. Ele tira os olhos da tela do telefone e os


coloca em mim. — Eu sinto muito.

— Pelo quê?

— Por não entender o que você quer de mim antes — respondo. — E


também por ficar desafiando-o durante o jantar. Eu só... é horrível não ter

controle nenhum sobre a minha vida.

— Izolda... — Ele se vira totalmente para me encarar e coloca sua


mão sobre a minha. — Eu não quero que se sinta assim, quero que seja
minha parceira e...

— Eu sei — respondo. — Eu quero aceitar o cargo no Grupo Orlov e

quero estudar, fazer cursos sobre arte ou algo assim, não sei bem. Não quero
ficar naquele palácio o tempo todo. E você pode confiar em mim, eu não vou
fugir. Eu prometo. E você disse que um Orlov nunca quebra uma promessa,
certo?

Ele ri e acena positivamente. O carro para, e descemos. Estou

segurando sua mão, enquanto ele me ajuda a sair do veículo, quando ele diz
"Tudo bem".

— Tudo bem?

— É! Tudo bem, mas nossa... vida íntima — ele diz cuidadosamente


— não é assunto para mais ninguém além de nós dois, entendeu? Se disser

outra vez que troquei você na lua de mel por gelo....

— E não é verdade? — pergunto.

— Não — ele responde, se aproximando do meu rosto. — A ideia de


que eu a troquei pressupõe que você seja minha, e isso não é verdade, é? —

ele pergunta, me deixando sem ar.


— Por que está me olhando assim? — Izolda pergunta. Ela está

passando os dedos entre os fios cacheados para desembaraçá-los e a luz que

entra pela janela da torre atribui certa áurea à cena. Em momentos assim, eu
só quero poder me aproximar dela, pegá-la em meus braços, sentir sua pele.

— Porque vamos nos atrasar — respondo, mas a verdade é que eu até


poderia me render ao tempo pelo direito de ficar aqui, olhando para ela.

Izolda pega o telefone e nota que eu tenho razão. Ela fica de pé, diz que está

pronta, e pede minha opinião sobre o "ar profissional" de sua aparência. —

Está ótima — digo, sendo cuidadoso para soar de forma contida.


— Não pareço ridícula?

— Você não poderia parecer ridícula mesmo com muito esforço.

Assim que as palavras saem dos meus lábios, eu sei que elas tiveram

algum efeito em Izolda, porque ela parece encabulada. Ela disfarça bem,

olha para o lado rapidamente e faz uma piada sobre o fato de que sou um

marido muito atencioso.

— Izolda, se não quiser usar essas coisas — digo olhando para as

peças que sei que foi Minerva que escolheu —, não há problema, tudo bem?

Quero que saiba que ouvi o que disse quando estávamos na Itália, e que não
quero que continue sentindo-se daquela forma. — Merda, como é possível

que eu seja tão ruim nisso? Acho que todos os cursos de oratória, liderança e

qualquer tipo de porcaria do mundo dos negócios que fui orientado a fazer

desde muito cedo não têm eficácia alguma quando preciso lidar com o que

sinto.

— Tudo bem, são roupas bonitas, ela tem um ótimo gosto. E você não

ia querer que sua esposa andasse com moletons cheios de gatinhos e calça

jeans, iria? — ela questiona sorrindo.

Quero dizer que ela deve fazer isso se for o suficiente para deixá-la

feliz, mas não posso dizer tais palavras sem considerar a possibilidade de
que o que a deixaria feliz seria se ver livre de mim, desse casamento. Em

vez disso, digo que, se não descermos para comer agora, vamos nos atrasar.

— Eu achei que você, como chefe, pudesse atrasar um dia ou outro. —

Ela vem na minha direção com o colar que fora de minha mãe em suas mãos

e se vira e levanta os cabelos. Passo o colar pelo seu pescoço enquanto

admiro a pele macia. Minhas mãos, normalmente tão firmes, encontram

dificuldade. Não estou propriamente nervoso, estou agitado. Estar tão perto

assim dela tem se tornado cada dia mais difícil.

— Tenho uma coisa para você — respondo quando finalmente termino.

Ela se vira para mim, e eu desvio meu olhar para o colar em seu peito. O

pingente de esmeralda se destaca um pouco acima do volume dos seus seios.

Está levemente torto, mas resisto à tentação de tentar ajustar. No entanto, ela

me encara enquanto faz isso, como se soubesse que aquele pequeno detalhe
fora do lugar me incomoda.

— Não me diga que são os brincos que combinam com o colar... —

ela diz com um tom jocoso e provocativo.

— Não. — Tento dizer em meio a uma risada. Tiro o presente do meu

bolso e o entrego para Izolda. Ela segura o relógio prateado nas mãos, e sua

expressão muda drasticamente, o tom de brincadeira dá lugar a um ar de


emoção.
— Isso é o... não, ele deu para você.

— Eu sei, seu pai me deu quando eu fui selecionado para estudar em

Londres. Ele me disse que fora do seu avô e que é a única relíquia que a

família dele passou de geração em geração, por isso acho que você é a

pessoa certa para ficar com ele. É um relógio masculino e pode ficar

grosseiro em um pulso tão delicado, mas eu já pedi para que diminuíssem,

então não pode rejeitar.

Izolda passa a mão no rosto e noto que ela está chorando. Droga, que

porcaria eu fiz?

— Izolda, eu sinto muito, não queria fazê-la chorar ou trazer nenhuma

lembrança ruim, eu só...

Antes que possa concluir, sou interrompido por Izolda jogando os

braços ao redor do meu pescoço e me abraçando com força. Ela se afasta


rapidamente, ainda em ponta de pé, o queixo erguido, e nossos lábios ficam

tão próximos que eu só precisaria mover alguns centímetros para beijá-la.

— Não estou chorando de tristeza — ela diz enquanto passo meu

polegar em seu rosto afastando uma nova lágrima. Izolda tira as mãos dos

meus ombros e coloca o relógio. Ela observa o objeto, cuja máquina tem

quase a largura de seu pulso. Ainda assim, ela parece muito mais satisfeita

do que no dia em que lhe entreguei o colar de esmeraldas. — Obrigada,


Andreas. De verdade. Agora, vamos comer antes que eu acabe atrasando-o

de verdade.

Descemos para tomar café da manhã juntos, como temos feito quase
todos os dias desde nosso retorno da Itália. A viagem em si nos ajudou a

ficar menos armados um com o outro. Além disso, a conversa que tivemos,

sobre as expectativas com o casamento, embora tivesse me irritado no

momento, se mostrou benéfica. Assim que entramos na sala de jantar,

encontramos minha avó. Aquela é a primeira vez que isso acontece; em todos

esses dias, minha avó nunca desceu para tomar café antes que eu fosse

embora para o trabalho. Eu sei que ela está irritada. Havíamos tido uma

conversa nada amigável sobre o fato de que Izolda estava dormindo no sótão

quando voltei da Sibéria e eu sabia qual era sua posição com relação a

Izolda. Ela acredita que ter o nosso nome atrelado ao dela nos levaria à

ruína social.

— Bom dia, madame Olga — Izolda diz forçando um sorriso.

— Bom dia — ela responde secamente. Minha avó levanta da cadeira,

e vejo seu prato ainda cheio. Não terminar uma refeição no nosso país é um

claro sinal de falta de educação. Sei que a mensagem que ela quer enviar é

"Não vou me sentar à mesa com essa mulher", mas coloco minha mão

levemente em seu ombro e sussurro que "É melhor se acostumar em um

ritmo mais rápido".


— Ou vai me expulsar como fez com seu irmão? Jogar o próprio

sangue na sarjeta... — ela responde erguendo sua voz.

— Sarjeta? Fala como se meu irmão estivesse dormindo na calçada,

quando está em um apartamento luxuoso. Isso sem esquecer que ele nunca

precisou trabalhar um dia em sua vida e, ainda assim, tem tudo que deseja.

— Você acha que seu pai iria querer que tratasse seu irmão dessa
forma enquanto você fica com tudo?

— Não tente me manipular usando meu pai como argumento, minha

avó. Sabe que meu pai só se importava com a empresa e com a minha mãe.

Contanto que eu esteja cuidado dos negócios, tenho certeza de que seu corpo

não está se revirando no túmulo.

— Vou cuidar para que esta casa continue funcionando, já que sua
esposa nem mesmo isso parece capaz de fazer. — Há uma fúria congelante.

— Enquanto estiver fazendo isso, peça para que preparem um jantar.

Nikolai está na cidade e vem jantar aqui hoje.

— Não espere que eu participe dessa confraternização de

desqualificados — ela diz, marchando furiosa e nos deixando a sós com uma

copeira que estava esperando-a para servi-la. Dispenso a mulher dizendo


que minha esposa e eu nos serviremos sozinhos e, assim que ficamos apenas
nós dois, puxo uma cadeira para que Izolda se sente e contorno a mesa para

ficar de frente para ela. — Sinto muito pelo que minha avó disse, Izolda.

— Você não vai permitir que ele volte, vai? — Há um certo medo em

seu olhar. Faz sentido. Mesmo que eu não saiba e não queira saber os

detalhes do que aconteceu entre Izolda e meu irmão, suponho que, se ela

tiver algum juízo, mesmo que goste dele, não o quer por perto. Afinal de

contas, as ações dele levaram à morte de Sergei, e sei o quanto ela amava o

pai.

— Não, claro que não — Digo servindo-lhe um pouco de suco.

Deixei Izolda sob os cuidados de Lada, a gerente de comunicação e

responsabilidade social do Grupo Orlov, e parti para lidar com meus


próprios compromissos, mas, desde então, não consigo parar de pensar nela.

No entanto, se for justo, devo admitir que não consigo parar de pensar nela
há muito tempo. Pouco a pouco, ela se infiltrou na minha mente de uma forma

que parece irreversível. Tudo que quero é poder tocá-la da forma como
desejo, tê-la em meus braços. Mas não é só atração, eu sempre quis proteger

Izolda do mundo, garantir que ela estivesse bem, mas agora parece que meu
próprio bem-estar depende do dela.

Esse efeito me preocupa, eu nunca deixei de focar no trabalho ou de

conseguir separar as coisas por estar pensando numa mulher. Nem mesmo
Galina, que foi minha primeira namorada, minha primeira mulher, a primeira
pessoa que disse amar. Pelo contrário, o desapontamento que vivi com ela

me lançou com ainda mais vigor no trabalho.

Agora, no entanto, não consigo parar de pensar em Izolda. Estou


imaginando se Izolda está lidando bem com as pessoas que estão trabalhando

com ela quando Viggo Adamovich coloca sua mão em meu ombro e me
cumprimenta com seu sorriso de ofídio.

Estamos na planta de uma nova refinaria que está sendo construída por
um consórcio entre a empresa de engenharia dele e a de Pavlova. Fazer

negócios com os dois é algo inescapável, eles dominam a construção civil,


deixando pouco fôlego para a concorrência. Viggo tem mais experiência no

mercado, chegou até mesmo a fazer negócios com meu avô, pelas histórias
que ouvi, mas Pavlova tem uma empresa mais alinhada com os meus

projetos.

— E então, o que acha? — ele pergunta. Olho para a frente outra vez,
contemplando os quilômetros de terra nas quais estações de tratamentos,

tanques, filtros e torres de resfriamento serão construídas. Agora, estão


realizando um trabalho de base que deve durar cerca de um mês antes que,

de fato, a construção e montagem dos equipamentos comece.


— Podemos colocar mais homens na obra? Acho que, se aumentarmos
a produção em um terço, podemos ganhar margem de tempo para o resto do

trabalho, evitar qualquer atraso.

— Andreas, não se preocupe, não teremos atrasos. Em seis meses,

você vai poder inaugurar, eu garanto. Além disso, de qualquer forma, só


podemos aumentar a produção em alguns meses devido ao acordo com a

OPEP.

O acordo com a Organização dos Países Exportadores de Petróleo foi


uma ideia para impulsionar o resto do mercado que foi afetado por crises

econômicas recentes. Estamos produzindo menos, de forma voluntária,


justamente para não dominar o mercado, e deixar que outras companhias

continuem no jogo. Apesar da diminuição de quase 5% de receita, ainda


estamos operando com uma margem de lucro muito alta, o que garante que o

grupo não saia perdendo.

— Em alguns meses, quero aumentar a produção em cento e vinte e

cinco barris por dia. Estará dentro do acordo.

— Não se preocupe, está tudo correndo bem. Por sinal, soube que
conseguiu o contrato com os italianos para os filtros.

— Sim — digo. Não estou satisfeito com sua resposta sobre o prazo,
mas a última coisa de que preciso é atritos com Viggo. Sergei costumava
comentar que lidar com algumas pessoas era como mexer em um ninho de

vespas. Concentração e silêncio são mais eficazes contra as vespas do que a


força bruta.

— Também soube que levou a esposa para uma lua de mel — ele

comenta. — Uma escolha de noiva bastante curiosa, devo dizer. A garota é,


sem dúvidas, muito bonita, mas...

— Pense bem sobre as palavras que vai usar, Viggo. É da minha


mulher que está falando.

Mulher. Minha mulher. É estranho designar posse nesta situação

porque aquilo é o mais distante da realidade possível. Izolda não é


propriamente minha amiga, não é propriamente minha esposa, eu nem mesmo

sei se consigo confiar nela para não fugir no primeiro momento em que tiver
chance.

— Calma, meu jovem, só ia dizer que sempre achei que você e minha
filha se reconciliariam. Sempre foi um sonho meu e do seu pai que nossas

famílias se unissem.

Eu olho para a frente, evitando encarar Viggo por um momento. Se eu


continuar olhando para ele, serei franco demais, sei disso. Reconheço meu

talento em soar rude e não há nenhum outro tom que possa surgir ao falar
desse assunto. Galina quebrou minha confiança de formas irreparáveis, mas
não foi só isso. Ela também danificou a minha capacidade de crença. Até

onde sei, Viggo não faz a menor ideia do que levou ao fim do meu
relacionamento com a filha; poucas pessoas sabiam além dos diretamente

envolvidos.

— Se ela e Mikhail não se detestassem tanto... — Viggo diz. A frase

me faz querer rir. É uma risada de escárnio frente ao absurdo de tudo isso,
mas penso em como estar rindo agora pode ser um bom sinal. — Mas vejo

que esse assunto o incomoda. Além disso, não foi por isso que quis vê-lo,
gostaria de pedir um favor.

— Claro, se eu puder ajudar.

— Gostaria que oferecesse um cargo a Vladmir. Ele não aceita


trabalhar comigo porque diz que estaria sempre numa posição de privilégio.

Poderia achar algo para ele, nível intermediário, o salário pouco importa, só
preciso que ele comece a se integrar, ou terei que ter Galina assumindo os

negócios.

Não posso negar o quanto Galina parece ter nascido para assumir as
empresas do pai, ela sempre sonhou com isso. Costumávamos ficar na cama

falando de tudo que ela gostaria de poder fazer na empresa se o pai


permitisse. Por isso, quero dizer que ele deveria deixar, que, na verdade,

deveria ficar grato.


— Galina é uma excelente engenheira e ela sempre quis seguir os seus
passos, Viggo.

— Ela ficaria contente de ouvir esses elogios vindos de você.

— Não são elogios, são fatos. Viggo, me desculpe, mas preciso voltar
para a empresa. Peça para que Vladmir vá até a empresa, minha secretária

pode marcar um horário. Se eu mesmo não puder entrevistá-lo, Minerva fará


isso.

Assim que chego à sede do Grupo Orlov, vou direto para a sala de

Izolda. Pelo vidro, posso vê-la sentada à sua mesa, concentrada em algo na
tela. Observo a placa com seu nome na porta, "Izolda Orlov –

Responsabilidade Social". Bato levemente à porta antes de entrar e ela ergue


a cabeça e me oferece um sorriso extremamente bonito.

— Atrapalho?

— Não — ela responde balançando a cabeça e mordendo levemente o


lábio. — Estou apenas escolhendo material para um orçamento, ou ao menos

tentando. Minerva disse que eu tenho que apresentar um orçamento para


aprovação do financeiro e alguma coisa chamada balanço, mas eu nunca fiz

nada disso antes e...

— Você não precisa fazer isso — afirmo me aproximando. Encosto-me

na borda de sua mesa e Izolda estreita os olhos, como sempre faz quando
parece estar me analisando.

— Por ser sua esposa, não preciso de um orçamento?

— Não, não é isso — começo a explicar, tentando não me render à

forma como ela me encara. — Quis dizer que pode ter alguém para fazer isso
por você. Na verdade, você vai precisar de uma equipe.

— Mas, e se eu quiser aprender a fazer orçamentos e balanços? — ela


pergunta.

— Eu posso ensiná-la.

— Você? O presidente do Grupo Orlov costuma ensinar todos os


novos funcionários?

— Não. E ele também não costuma buscar funcionárias em suas salas


para levá-las para casa.

— Não acho que seria de bom tom da parte dele, ouvi dizer que é
casado — ela sussurra o final como alguém que conta um segredo e volta

seus olhos para a tela e desliga o computador.

— E o que mais você ouviu dizer?

— É o meu primeiro dia aqui, não espere que eu fique fazendo fofocas.
Vamos, temos um jantar, não temos?
Izolda está sentada à ponta da mesa de jantar, e eu estou de frente para
ela. Ocupamos os lugares de anfitriões como meus pais costumavam fazer,

mas eu detesto a distância, principalmente porque sei que ela está pouco
confortável com a situação. Conversamos sobre o jantar alguns dias atrás e
ela havia ficado apreensiva com a ideia de conhecer meus familiares.
Nossos convidados são meu tio Nikolai, meus primos Stanislav e Philip, e a
esposa de Philip, Anastasiya.

Nikolai quase nunca vem ao palácio, mas aceitou meu convite quando
disse que ele precisava conhecer Izolda. Já meus primos estavam cobrando
aquele jantar desde o casamento. Se Izolda teria que passar pelo escrutínio
de minha família, achei melhor que fosse assim, de uma vez só; as pessoas

ao redor da mesa são meus parentes mais próximos. Com a exceção de


minha avó, que se recusou a descer, e de meu irmão que sob hipótese alguma
seria convidado.

As acusações de minha avó, feitas mais cedo, voltam aos meus


ouvidos. Quando me casei com Izolda, eu defini que estava me afastando de

vez de Mikhail e, mesmo que nunca tivéssemos tido um bom relacionamento,


nem mesmo na infância, uma parte de mim sempre quis que isso mudasse.
Agora, parece de fato impossível.

— Então, Izolda, animada para ver seu marido jogando? — Stanislav

pergunta. Ele é o mais novo dos irmãos Kovalenko. Nossa relação familiar
vem do lado paterno, eles são netos de uma falecida irmã de meu avô. A
questão me arranca de meus pensamentos. Não há mesmo um propósito de

me manter preso a eles, esse não é o tipo de situação que pode ser resolvida.

— Claro, eu nunca vi uma partida antes, não ao vivo — Eles estão


falando sobre o jogo de hóquei no gelo do qual participamos anualmente,
uma partida entre empresários que tem fins beneficentes e que, nos últimos
anos, se transformou numa espécie de tradição familiar, já que todos nós, por

estarmos em cargos de chefia nas nossas respectivas empresas, somos


sempre convidados. Nikolai está na cidade justamente para isso.

— Izolda prefere o futebol — comento.

— Mas futebol de verdade ou aquela versão confusa que jogam nos

Estados Unidos? — Stanislav pergunta.

— Aquilo que jogam por lá, eu nem considero como futebol — ela
responde sorrindo.

— Izolda, isso me faz aprovar sua relação com meu primo, mas quero
que saibam que fiquei extremamente magoado por não ter participado do

casamento — Stanislav diz.

— Ele queria ser seu pajem ou, talvez, o garoto das flores — Philip
afirma, provocando o irmão.
— Não entendo, não foi você que jurou que nunca se casaria, agora

está dizendo que gosta de casamentos? — Nikolai questiona.

— Claro, tio. Jurei que nunca vou me casar, não quer dizer que recuso
festas. E eu adoraria ver o Andreas, com toda sua introversão, parado em um
altar na frente de umas quinhentas pessoas. Isso seria imperdível.

Meu primo mais novo sempre gostou de implicar, mas de uma forma

divertida, com a minha personalidade fechada. O trabalho me fez


desenvolver certas habilidades que me permitem disfarçar alguns desses
traços, mas ele tinha razão quanto ao casamento. Esse havia sido, por sinal,
um ponto de atrito com Galina. Minha ex-noiva queria uma grande festa, eu
queria algo mais íntimo. Não tão íntimo quanto o que tive com Izolda, mas

apenas a família e os mais próximos.

— Esse meu cunhado desdenha demais de casamentos — Anastasiya


fala —, mas um dia vai acabar encontrando alguém que vai virar a vida dele
ao avesso e deixá-lo sem escapatória. E quando isso acontecer, vou fazer

questão de dizer que eu avisei.

— Veja o caso de Andreas. Ninguém estava esperando que ele se


casasse, mas aqui estamos, celebrando seu casamento com essa bela jovem
— Philip diz, propondo um brinde a Izolda, e todos levantam suas taças. Os
olhares de todos estão voltados para minha esposa. Eu olho para ela outra

vez, seus olhos estão fixos em mim.

— Diga, Izolda. Como fez para conquistá-lo? Não consigo imaginar


meu primo conquistando alguém. Todo o charme da família foi gasto comigo
e Mikhail, Andreas e Philip não tiveram a mesma sorte.

— E, ainda assim, são os únicos casados — tio Nikolai observa

sorrindo enquanto toma mais de sua bebida. Ele olha para mim rapidamente
e eu percebo que sentiu o efeito do nome de Mikhail. Ele sabe que a morte
de Sergei é consequência das ações de meu irmão, mesmo que não conheça
as extensões de tais ações. — Anastasiya, Philip, como estão as crianças?

Philip, então, começa a falar sobre seus três filhos, um menino e duas

meninas. Apesar de vivermos na mesma cidade, vejo muito pouco os filhos


do meu primo. Sei que a mais nova tem pouco mais de um ano porque, alguns
meses atrás, minha secretária me pediu para assinar um cartão de aniversário
que ia junto com um presente para a garota pelo seu primeiro aniversário, já

que não pude ir à festa.

— Já chega, querido — Anastasiya diz quando Philip começa a falar


sobre como a filha do meio está numa fase em que seu objetivo de vida é
rabiscar o máximo de paredes possível. — Nikolai apenas perguntou por

educação e, se deixarmos, você vai falar dos nossos filhos pelo resto da
noite. E eu amo aquelas crianças mais do que qualquer coisa nesse mundo,

mas preciso ter uma conversa de adulto. Vamos, casal, me contem a história
de vocês, porque esse casamento é mistério.

Se eu não conhecesse Anastasiya, se não soubesse que a esposa de


meu primo é uma boa pessoa e que nunca provocaria qualquer desconforto

propositalmente, estaria irritado agora.

— Eu sempre... — Izolda começa a dizer. Ela inclina um pouco a


cabeça para cima e parece estar tentando gerenciar seu nervosismo. — Eu
sempre gostei do Andreas. — As palavras geram uma sensação estranha no
meu peito. Izolda desvia o olhar de Anastasiya, fixando aqueles seus olhos

castanhos em mim. — Ele só demorou a me notar. Nós nos aproximamos nos


últimos meses, nos apaixonamos e mal podíamos esperar para começar a
nossa vida juntos. Mesmo com tudo que aconteceu com o meu pai, optamos
por nos casarmos, mas fazendo algo só nosso, sabíamos que ele queria que

fôssemos felizes.

A sensação que senti quando ela começou a falar dá espaço a uma


frustração. Aquelas são as palavras Minerva, parafraseadas, mas são. Ela
está só interpretando um papel, muito bem por sinal, tanto que até parece um

pouco encabulada com tudo.


— E seu pai era um ótimo homem, Izolda, e eu tenho certeza de que ele
não poderia sonhar com um homem melhor para você do que Andreas —
Nikolai fala, propondo um brinde.

Enquanto a conversa muda de assunto, eu não consigo desviar meu


olhar de Izolda que, aos poucos, vai ficando mais à vontade à mesa. A forma

como ela falou "Eu sempre gostei do Andreas" pareceu tão verdadeira ao
ponto de me permitir que minha mente imagine tudo que eu não posso ter.
Depois que os Kovalenko foram embora, eu me recolhi, mas Andreas e

Nikolai ficaram na sala conversando, já que o tio de meu marido dormirá no

palácio. Andreas só voltou para o quarto quase perto da meia-noite. Eu


ainda estava acordada, com um caderno de desenho aberto sobre a cama e

rabiscando algumas ideias para o projeto no trabalho.

— Você precisa de um estúdio — Andreas diz quando entra no quarto

e começa a desabotoar a camisa. — Compre o que precisar para isso, mas

não gosto que desenhe no quarto.

— Você trabalha no quarto — retruco.


— Raramente, e também não gosto de fazê-lo. Escolha qualquer um

dos cômodos vazios para o seu estúdio, temos dezenas deles. Não quero que

faça isso no...

— No seu quarto? — pergunto levantando um pouco a voz. — Você

está chateado comigo por alguma coisa?

— Por que estaria? Você foi perfeita durante o jantar, a esposa


perfeita.

— Quando quer, você consegue ser um idiota de primeira, sabia? —

pergunto irritada. Pego meu caderno, as canetas de desenho, minha manta e


levanto da cama, indo em direção à porta.

— Aonde pensa que vai?

— Para qualquer outro quarto. Como você bem apontou, há dezenas de

cômodos vazios neste palácio, certo? Eu não vou dormir perto de você
assim, irritado sem razão alguma.

— Não vai. Temos visita e, mesmo que não tivéssemos, temos uma

equipe de funcionários que adoraria fazer fofoca sobre você dormindo em

outro lugar.

Eu me movo em direção ao sofá que temos no quarto, e isso também

não parece ser bom o suficiente para Andreas.


— Se faz tanta questão de não dividir a cama comigo, eu fico no sofá,

você dorme na cama.

— É muito pequeno para você — digo perdendo toda minha

indignação, não quero que ele durma ali por minha causa. — E você tem o

jogo amanhã. Vamos apenas nos deitar e não discutir mais.

Ele segue para tomar banho e organizo minhas coisas para dormir. Já

estou deitada, coberta, pronta para dormir quando ele retorna e se deita ao

meu lado.

— Izolda...

— Hum...

— Desculpe-me por ser um idiota de primeira — ele pede

enfatizando as palavras que eu usei contra ele. — Eu só achei que ter um

estúdio ou ateliê seria bom para você.

— E seria. Você só parece estar acostumado demais a dar ordens em

vez de fazer sugestões — digo. — Boa noite, Andreas.

Horas depois, eu acordo com o corpo de Andreas colado ao meu. No

meio da noite, ele deve ter se movido de forma inconsciente porque, agora,

está me abraçando. Minha primeira reação é a de espanto, mas, em vez de

tentar levantar, eu deixo que um sentimento muito melhor tome conta de mim
ao notar que o calor em meu corpo vem do dele, de sua pele tocando na

minha sem nenhuma restrição ou ressalva.

A sensação de calor cresce e se concentra no meu estômago quando

ele se move um pouco e sou levada junto com seu corpo. Não é só o

movimento que me deixa em alerta, mas a consciência de sua ereção. Mordo

meu lábio tentando evitar verbalizar minha própria excitação ou surpresa e

imediatamente minha mente passa a correr solta. Quero tocar nele, quero que

ele me toque, quero ser sua esposa de verdade, sua mulher.

Sinto a pulsação no meio das minhas pernas. Aquela não é a primeira

vez que Andreas me causa algo assim, já havia sentido isso antes. Não só

depois do casamento, pelas muitas vezes que o vi andando sem camisa ou só

de toalha pelo quarto, mas ainda antes, quando eu mal o via, ele morava em

meus sonhos. Eu costumava imaginar que ele estava me beijando enquanto

explorava meu corpo.

Estou convencendo a mim mesma de que seria errado levar minha mão

até a calcinha enquanto ele dorme colado em mim. Viro-me devagar, sendo

cautelosa para não o acordar, e olho para seu rosto. Gosto de vê-lo dormir.

Nesses momentos, ele não parece carregar o mundo nas costas. Fico ali,

olhando para ele, e acabo pegando no sono outra vez, acolhida em seus

braços. Só tenho consciência disso quando volto a acordar e estou sozinha


na cama.
Eu me levanto e desço na esperança de encontrá-lo tomando café da

manhã, mas não há nenhum sinal do meu marido pela casa. Há, no entanto,

homens caminhando de um lado para o outro com caixas. Encontro com

Katrina, a governanta, que me responde com certa frieza quando questiono se

ela o viu.

Katrina me conhecia desde muito pequena, ela costumava ser boa

comigo. Quando minha mãe morreu, ela ia até o meu quarto com uma fatia de

torta ou pedia para que outro empregado da casa fizesse isso, na tentativa de

me animar. A forma como ela me olha agora parece gritar coisas como

"traidora" e "golpista".

— O senhor Orlov saiu com o tio e disse que tinha coisas para

resolver, mas que voltaria no começo da tarde. A senhora deseja alguma

coisa?

— O que são essas caixas? — questiono.

— Alguns reajustes que o patrão pediu para que fossem feitos. As

coisas do senhor Mikhail estão sendo movidas e chegaram umas compras

para o quarto principal da ala norte. — Saber que as coisas de Mikhail estão

sendo retiradas da casa me traz uma sensação de tranquilidade e renova

minha fé no que Andreas disse sobre o irmão nunca mais retornar. — Ele

disse que era uma surpresa para a senhora, há uma mulher esperando-a lá.
— Katrina, sabe que não precisa me chamar de senhora, certo? Eu

ainda sou a mesma pessoa.

— A senhora é a esposa do senhor Orlov, é assim que deve ser

tratada. Se não precisar de mais nada, eu vou retomar minhas tarefas — ela

diz com uma polidez exagerada.

— Claro, fique à vontade — respondo. Eu vou até a ala norte do


palácio e subo até o quarto do qual Katrina falou. Ao entrar, de fato encontro

com uma mulher que está tirando medidas e anotando em um bloquinho de

papel. Ela me olha com um sorriso assim que percebe minha presença.

— Senhora Orlov, suponho.

— Sim — respondo sorrindo.

— Estava esperando-a. Seu marido me contratou para transformar este

cômodo em um estúdio conforme as suas orientações. Ele me pediu para lhe

entregar isto — a mulher diz esticando um pequeno envelope. Abro e, de lá,

retiro um pedaço de papel que diz "Estou sugerindo que decore o quarto

como bem entender para que seja o seu atelier, me desculpe por ser um

idiota".

— Você está linda! — Andreas diz quando desço para encontrar com
ele e o tio que me aguardam para irmos ao jogo de hóquei. Nikolai também

me elogia, e eu agradeço a ambos, me sentindo sem graça. Estou de fato


bem-vestida. É um vestido preto, simples, mas com um bordado de fios de

ouro na cintura, uma das muitas peças que escolhi junto com Minerva

semanas atrás, quando estávamos "renovando meu guarda-roupa".

Eu me consideraria arrumada demais para um jogo se meu marido não

estivesse usando um terno – sem gravata, mas, ainda assim, um terno.

Nikolai, por sua vez, porta algo bem mais informal. Andreas se aproxima e

estende a mão, que aceito sorrindo, então eu fico de ponta de pé, o que se faz

necessário mesmo com o salto da bota, e beijo seu rosto.

— Eu adorei a surpresa — digo.

— Na verdade, foi um pedido de desculpas — ele explica, parecendo

sem graça.

— Eu gostei mesmo assim — confirmo sorrindo, e partimos para o


jogo.

Eu já havia visto diversos jogos de hóquei serem televisionados


daquela arena, mas nunca havia entrado nela. Meu pai era fã de hóquei, mas

nunca me levou ao estádio porque, quando era mais nova, minhas crises
respiratórias eram frequentes. Andreas parece estar pensando nisso também

porque, assim que entramos, ele para na minha frente, coloca suas mãos
sobre os meus ombros e pergunta se estou aquecida o suficiente. Aceno
positivamente, tentando disfarçar para que ele não perceba que eu gosto de
sua preocupação.

Minerva nos aborda e me cumprimenta com um abraço. Em seguida,

ela começa a falar com Andreas sobre importações para a obra da refinaria.
Eu olho ao redor e presto atenção a quão maior a arena de fato é; diversas

pessoas estão tomando seus lugares para o jogo nas arquibancadas.

O jogo beneficente é sempre composto por uma disputa entre

empresários e, posteriormente, um jogo amistoso entre dois dos maiores


times da cidade. É uma forma de garantir que a arena lote, pois toda a verba

arrecadada é revertida para uma instituição carente ou uma causa ambiental


selecionada anualmente.

— Izolda! — Anastasiya diz sorridente se aproximando de mim. Ela

está usando uma camisa de time que tem o brasão da empresa do marido. Ao
lado dela, está um garoto que parece bastante com Philip, suponho que seja o

primogênito do casal. — Como você está bonita! Agora, eu me sinto


malvestida.

— Não. Você está ótima, eu que não estou adequada ao evento. Eu


deveria estar usando uma dessas? — pergunto enquanto olho para a camisa

que Anastasiya está usando.


— Não, querida. Isso é algo antigo que fiz com... bem, não importa.
Não precisa usar.

Ela me apresenta o garoto que tem os olhos do pai e o sorriso do tio.


Ele me cumprimenta conforme a mãe diz, mas rapidamente volta para o

celular.

— Ele não consegue passar mais de cinco minutos longe do telefone,


acho que em breve vai começar a se comunicar comigo e com o pai apenas

por mensagens — Ela diz sorrindo.

— Senhor Orlov... — um jovem rapaz com uma câmera nas mãos diz

interrompendo a conversa entre Minerva e Andreas. Ele olha ao redor


procurando por mim, até que nossos olhos se encontram, e só então ele

parece prestar atenção ao rapaz. — Podemos fazer uma foto antes do jogo?

Andreas acena positivamente e, depois de cumprimentar Anastasiya,


pega na minha mão outra vez. Aquele contato já se tornou natural entre nós,

não há mais a estranheza que se espalhava quando ele me tocava antes.

— Apenas uma, com a minha esposa — ele diz ao rapaz, que acena

para o fotógrafo. Andreas se posiciona ao meu lado e sua mão deixa a minha,
alojando-se em minha cintura. Eu viro meu corpo um pouco para olhar para

ele. É involuntário e eu me recrimino por isso, mas Andreas parece


consciente do efeito de seu toque em mim, já que há um sorriso que só pode
ser descrito como desconcertantemente sexy em seu rosto, e ele move a mão

um pouco enquanto me puxa para perto. O fotógrafo faz alguns breves


cliques, e Andreas diz que é suficiente.

— Izolda, vou colocar o uniforme. Fique junto da Minerva, tudo bem?

Não quero que fique sozinha.

— Acho que os seguranças garantem que eu nunca fique sozinha —

digo acenando para o homem a poucos metros de distância. — Vá, vá se


trocar, Andreas. E ganhe o jogo.

Vou junto com Anastasiya, seu filho e Minerva para uma espécie de

área reservada bem na frente da pista. A vista é privilegiada, há apenas


algumas pessoas no espaço. Algumas delas estão com rostos pintados nas

cores dos times, mas a maior parte dos presentes parece engravatada
demais.

Minerva explica que são empresários e empresárias que financiam o


evento e que, em breve, vou estar acostumada e conhecer cada um deles por

nome. Uma mulher se aproxima para cumprimentar Minerva e Anastasiya. A


assessora de Andreas me apresenta à mulher que parece surpresa com o fato

de que eu sou a esposa de Andreas Orlov.

— Eu ouvi falar sobre o casamento, mas não imaginei que fosse tão
jovem, nem tão bonita — ela diz sorrindo enquanto para o garçom e faz com
que ele sirva todas nós com bebidas.

— Eu não bebo — digo agradecendo ao rapaz, mas a mulher, que se


chama Margot, insiste.

— Se vai sobreviver a este jogo, nesta arena congelada, vai precisar

tomar algo que esquente.

Estamos engajadas numa conversa sobre o jogo quando Anastasiya diz

a única palavra capaz de gelar mais o meu corpo do que o frio da arena: o
nome Mikhail.

— Aquele é o Mikhail? — ela pergunta.

Eu me viro rapidamente em sua direção, tão rápido que acabo fazendo


com que todo o conteúdo do copo de Anastasiya venha para o meu casaco.

Ainda assim, mal consigo registrar o que está acontecendo porque, do lado
de fora da área reservada na qual estamos, Mikhail está parado, me olhando,

e seu olhar me atravessa como uma espada.

— Meu Deus, me desculpe, Izolda.

— Não, a culpa foi minha, eu que peço desculpas.

— Izolda, não se preocupe, mal respingou em mim. Seu casaco, no


entanto, precisa secar isso. Venha, vamos ao banheiro.

— Não precisa — Minerva diz. — Eu a acompanho. — Venha comigo,

querida. Eu tenho um outro casaco no meu carro, vai lhe servir — Minerva
diz me pegando pela mão. O segurança se move para nos acompanhar, mas
ela cochicha alguma coisa e o homem fica. Caminho com Minerva, saindo do

camarote e passando pelas arquibancadas até chegar ao corredor dos


vestiários. Minerva abre uma das portas e diz que podemos entrar ali, mas
então eu ouço a voz de Andreas, e meu corpo vira em sua direção. "Você

esperava que fosse diferente?", é isso que ele está dizendo, e a pessoa
ouvindo suas palavras é Galina.

— Espere, Andreas. Ainda sou eu, eu cometi um erro, mas.... eu...


você não sente nenhuma saudade de mim? Você me despreza tanto ao ponto

de casar com aquela... com aquela mulher, só para me humilhar? — ela


pergunta.

— Andreas. — A voz de Minerva se sobrepõe. Sei que ela falou com

o intuito de deixar claro que eu estava ali, que podia ouvi-los. Ouvi meu
nome saindo dos lábios de Andreas. Ele caminhou na minha direção,

parecendo bem maior agora com o equipamento de segurança e uniforme, o


capacete na mão, os passos firmes. Eu fico parada olhando enquanto ele se

aproxima.

— Venha aqui Izolda, por favor — ele me chama. Andreas pega minha

mão e beija meu rosto. — Galina, esta é a minha esposa, você deve se
lembrar dela.
— Não, na verdade, não — ela responde. Está obviamente mentindo,
ela me olha com o mesmo desprezo de sempre e, talvez, um pouco de raiva.

— O que aconteceu com a sua roupa?

Olho para o estado do meu casaco e fico como uma idiota que esquece

as palavras.

— Um pequeno acidente — Minerva diz se aproximando. — Já


estamos resolvendo. Tudo bem, Galina? Você parece um pouco...

arrependida, talvez.

— Sempre graciosa, Minerva — Galina diz parecendo irritada. — É

melhor você resolver isso, querida, é uma roupa muito bonita para ficar
nesse estado.

Meus pés parecem fincados no chão, não quero sair de perto dele. Não

quero soltar sua mão, nem o deixar com ela.

— Você quer o meu casaco? Vai ficar grande, mas ao menos está seco
e você vai ficar bonita de qualquer forma.

— A Minerva tem um no carro — respondo. Não gosto do fato de que


ele está me elogiando por estar na frente de Galina.

— Ótimo. Eu vou entrar para a concentração, tudo bem?

— Claro — aceno positivamente enquanto forço um sorriso. Andreas


beija meu rosto outra vez, sua barba roçando na minha pele. Eu seguro no
seu braço por alguns segundos, e nossos olhos se encontram. Eu não quero
soltá-lo. A presença de Galina sempre me intimidou, mas agora o efeito

opera de forma potencializada. Antes que eu tire os dedos dele, Andreas


beija minha mão.

A ideia dos dois, juntos, sozinhos, embrulha o meu estômago. Tento me


convencer de que não tenho esse direito, mas não consigo. Ele é o meu
marido. Não importa se o nosso casamento não é um casamento para além do

papel, ele não pode ficar conversando com ela em corredores.

Eu olho para trás rapidamente e vejo que eles ainda estão lá,
discutindo alguma coisa, mas não posso ouvi-los. Minerva, no entanto, me
encoraja a continuar.

— Não se preocupe com eles, Izolda. Nem com a presença de Mikhail.

Galina não significa nada para Andreas, e Mikhail não pode chegar perto de
você.

— Minerva, você sabe de tudo, não sabe? — eu pergunto.

— De tudo? Acho que nem Andreas sabe de tudo.

— O que quer dizer com isso?

— Izolda, eu vi a forma como Mikhail olhou para você e como você

reagiu. Sua reação poderia significar qualquer coisa, menos amor. E isso me
faz acreditar que a versão dessa história que Andreas conhece, a versão que
ele me contou, não faz sentido nenhum. Afeto, carinho, admiração e até
mesmo orgulho, eu vejo na forma como você olha para o Andreas, e só para

ele. Você gosta dele, não gosta?

— Que diferença faz? Ele não se sente da mesma forma.

— Izolda, me desculpe o termo, mas vocês são dois idiotas.

— Por acaso, ele disse alguma coisa sobre mim? Sobre como se sente
a meu respeito?

— Não. Você acha que Andreas é o tipo de homem que senta e fala dos

sentimentos voluntariamente? Ainda assim, ele não precisa me dizer nada.


Eu conheço o meu amigo. Você não percebe como ele fica perto de você?

— Eu sei que ele me deseja, ele não seria o primeiro a me desejar, eu


sei como os homens funcionam, mas isso não significa que ele goste de mim

da forma como... ele não gosta de mim assim.

— Izolda, por que você acha que ele não perdoou Galina, que decidiu
não se casar com ela, mas, ainda assim, casou-se com você?

— Porque ele fez uma promessa ao meu pai. Ele se casou comigo
porque fez uma promessa, porque disse ao meu pai que cuidaria de mim, me

daria a proteção de seu nome, como se vivêssemos no século passado e...

— Vocês dois são as pessoas mais cegas que eu conheço — ela afirma
me interrompendo. — Izolda, Andreas não teria feito essa promessa por
outra pessoa, ele fez porque foi por você.

Essas palavras martelam na minha cabeça enquanto caminhamos até o

carro de Minerva, no retorno aos nossos lugares e só desaparecem quando


avisam que o jogo vai começar e eu vejo Andreas entrando em campo com o
uniforme azul com listras brancas e um taco de hóquei na mão. No mesmo
time que ele, estão Philip e Nikolai, além de outros três homens. Aquilo não

era surpresa, é a escalação do outro time que me deixa apreensiva. Ao invés


de Viggo, está entrando em campo Mikhail Orlov.

Ouço alguém comentar que aquilo é estranho, já que Mikhail nunca


havia jogado antes. "O normal não seria que Vladmir substituísse Viggo?",
uma jovem sentada atrás de mim questiona. Ela tem razão, aquilo não me

cheira bem.

Minerva coloca a mão sob a minha perna e me olha.

— Você vai abrir um buraco no chão — ela se refere à minha perna


trêmula. — Andreas sabe se cuidar, Mikhail é quem deveria se preocupar de
jogar contra o irmão. Minerva parece ter razão quando, nos primeiros

minutos de jogo, Andreas, que joga como centro, uma espécie de atacante no
hóquei de gelo, consegue dominar o jogo, estando no centro das principais
jogadas. Ainda assim, eu, que sempre gostei de assistir aos confrontos
físicos do hóquei, fico apreensiva sabendo que Andreas ali, mas,

principalmente, por saber que Mikhail é capaz de qualquer coisa.

Quando o primeiro dos três tempos acaba, o time de Andreas está


ganhando. Eles voltam depois de quinze minutos de intervalo e é nesse
momento que minha atenção muda do jogo para a presença dos Pavlova, que
estão chegando ao local em que estamos. Os pais de Elke chegam

sorridentes, cumprimentando todos. O pai dela até tenta ser simpático


comigo quando me dirige um "senhora Orlov"; a mãe da minha amiga, por
outro lado, continua com seu nariz empinado sempre que me vê, como se eu
fosse algo malcheiroso que grudou em seu sapato e do qual ela não consegue

se livrar.

Eu fico de pé, encostada na barra de aço que separa meu assento do


gelo, e decido que a única coisa que me interessa é o jogo. Minerva faz o
mesmo e fica ao meu lado. Eu pego meu telefone e faço um vídeo de uma

jogada de Andreas. Ele é rápido, bom patinador e consegue passar com


facilidade pelos bloqueios. Ele passa bem perto de mim algumas vezes e eu
entendo como Minerva pode perceber a forma como me sinto. Estou mesmo
olhando para ele como uma idiota apaixonada.

Falta pouco para acabar o segundo tempo quando Mikhail começa a

fazer jogadas mais agressivas e a fazer todas elas contra o irmão mais novo.
Ele empurra Andreas algumas vezes quando consegue alcançá-lo. Não
satisfeito, ele avança em um lance sem disco no qual acaba jogando Andreas

contra a lateral da arena, bem perto de onde estou. Há um estrondo enorme


do corpo de Andreas batendo no chão e, antes que eu possa perceber, estou
gritando o nome de Andreas.

Tudo fica em silêncio no estádio, ou talvez eu tenha deixado de ouvir.

Quando dou por mim, estou cruzando a porta que dá acesso ao gelo. Alguém
tenta me parar, um par de mãos, mas eu ignoro. Preciso que saiam do meu
caminho. Olho para as porcarias das botas e decido tentar alcançá-lo mesmo
assim. Os outros jogadores estão se aproximando dele, cercando-o, e eu não

consigo mais ver Andreas, o que me deixa ainda mais nervosa e faz a
pequena distância parecer ser de quilômetros, não metros, e meu coração
parece pronto a pular do peito. Não, ele também, não. Eu não posso ficar
sozinha no mundo, não posso ficar sem ele, Andreas é tudo que eu tenho.

— Izolda... —Philip diz patinando na minha direção. Ele tenta me

impedir de continuar, mas eu o ignoro. Preciso chegar até ele. Quando


finalmente o alcanço, os homens ao redor dele abrem espaço e eu me ajoelho
ao seu lado, balançando seu corpo enquanto chamo seu nome.

— Andreas, por favor. Acorde. Alguém tire esse capacete dele, façam

alguma coisa.
— Temos que esperar os médicos — Nikolai diz colocando a mão em
meu ombro, mas só consigo sentir os batimentos enlouquecidos do meu
coração.

Minha mão fica no peito dele, sobre todo aquele equipamento. Eu não
consigo sentir sua respiração dessa forma, há coisas demais entre minha mão

e seu corpo.

— Andreas... — volto a chamar. Como se estivesse esperando por


aquele chamado, Andreas se move lentamente e abre os olhos. — Graças a
Deus, graças a Deus — digo enquanto ele retira o capacete de proteção.

Andreas me olha e estica a mão na minha direção e acaricia meu rosto, então
eu seguro sua mão e, antes que perceba, estou beijando meu marido. Ele
parece surpreso, mas seus lábios começam a se mover e a mão encontra
meus cabelos. É um beijo de verdade, um beijo que eu sempre quis

compartilhar com ele. Todo o medo, toda a ansiedade, tudo vai sendo
varrido pela onda de prazer que me invade.
— Vamos apostar, Orlov? — um dos jogadores do time adversário me

pergunta. Ele é empresário do ramo da tecnologia. Estudamos juntos em

Londres, éramos um pequeno grupo de russos na época em que fiz faculdade,


então sempre acabamos saindo juntos. — O perdedor paga as bebidas, do

time todo.

— Isso não acabou mal para você no ano passado? — questiono

sorrindo.

— Este ano, estamos melhores.


—Tudo bem, o perdedor paga as bebidas — afirmo apertando sua mão

enquanto ele sorri.

Participar deste jogo é uma das poucas obrigações sociais do trabalho


da qual realmente gosto. Não só porque é por uma boa causa ou gera boa

imagem para empresa, mas simplesmente porque gosto de hóquei, sempre

gostei. Essa era a única coisa que meu irmão e eu tínhamos em comum, o

único ponto capaz de cessar nossas desavenças por algumas horas. Talvez

por isso que gostasse tanto do jogo, era a forma que me conectar com meu
irmão mais velho.

— Está perdida, querida? — a voz de um dos jogadores do time

adversário questiona, e eu, assim como todos no vestiário, me viro para


olhar. E lá está Galina, parada na porta. Seus olhos encontram os meus, e ela

me pergunta se pode falar comigo um instante. E depois, adiciona um "Eu


juro que é rápido".

— Entraremos em breve — Nikolai afirma. — Ou, pelo menos,

quando descobrirmos onde Viggo se meteu.

—Tudo bem, tio. Eu volto logo.

Passo pela porta acompanhando Galina e, assim que paramos no

corredor, questiono-a sobre o que deseja comigo.

— Você não retornou minhas ligações.


— Não temos nada para conversar e eu só vim aqui para não a

envergonhar na frente daquelas pessoas.

— Eu sei disso. Na verdade, eu contava com isso. Andreas, eu só

preciso ver nos seus olhos que me esqueceu, porque eu não acredito. Não

acredito que se casou, isso não faz o menor sentido.

— Não faz o menor sentido? O que você achou que ia acontecer? Você

me trairia e eu passaria o resto da minha vida me lamentando? Já faz três

anos.

— Eu cometi um erro, apenas um em anos de namoro, e você...

— Um erro? Galina, pelo amor de Deus. Você dormiu com o meu

irmão. Um erro é esquecer uma data de aniversário ou dizer algo sem pensar.

O que você fez não foi um erro. — Eu respiro fundo enquanto olho para ela.

Já tivemos essa conversa quantas vezes nos últimos anos? E, em cada nova

tentativa da parte dela, eu percebo que menos ela consegue me atingir. Antes,

eu costumava dizer que poderia tê-la perdoado se fosse com qualquer outra

pessoa. Costumava perguntar o porquê, por que razão ela tinha feito aquilo.

Agora, isso tudo só parece exaustivo. — Galina, se eu não mudei de ideia

antes, o que faz você achar que, agora, que estou casado, vai ser diferente?

Ela parece ferida, acuada, quando me diz que cometeu um erro e

pergunta se não sinto sua falta. Essa pergunta, eu não posso responder. É
claro que eu sentia falta de alguma coisa, não dela especificamente, mas de

tudo que tínhamos sonhado juntos, das promessas que fizemos um ao outro,

de todas as coisas que poderíamos ter sido.

— Você me despreza tanto ao ponto de casar com aquela... com aquela

mulher, só para me humilhar? — ela pergunta.

Antes que eu possa dizer qualquer coisa, a voz de Minerva ecoa no

corredor e eu vejo Izolda me olhando como se estivesse sendo transformada


em pedra. Sinto um aperto no peito pela expressão em seu rosto, então

caminho até ela, esticando a mão para tocar na dela. Trago Izolda para perto

de mim e a apresento formalmente a Galina.

Não quero que ela se intimide perto de Galina, por isso aposto na

ideia de deixar claro que estou com Izolda. Penso em beijá-la, mas desisto

da ideia com receio de estar cruzando uma linha que não deveria cruzar.

Izolda, no entanto, segura em mim, o que faz com que eu tenha dificuldade de

me afastar dela.

Digo que vou para o jogo e Minerva leva Izolda. Galina pega no meu

braço assim que as duas dão as costas.

— Você não vai ser feliz com ela, Andreas.

— Galina, a minha felicidade deixou de ser algo com o qual você

deveria se preocupar há um bom tempo. Agora, se me der licença, eu tenho


uma partida para jogar.

Volto para o vestiário, e Nikolai me pergunta se está tudo bem. Eu bato

em seu ombro e aceno positivamente. Galina já tomou tempo e espaço


demais na minha cabeça, e eu me esforço para pensar apenas no jogo, mas

fico me perguntando se ela tem razão, se nunca vou ter com Izolda o tipo de

relação que tive com ela. Se nunca seremos companheiros, amantes, se não

iremos sonhar juntos, fazer planos, conhecer cada detalhe um do outro. Eu

tinha tudo aquilo com Galina, ou ao menos achava ter. E, ainda assim, agora,

estar perto das duas me mostrou que qualquer resquício de sentimento por

Galina era irrisório em comparação ao modo como Izolda me faz sentir.

Meu time desce a concentração enquanto o time adversário fica

resolvendo a escalação, pois Viggo ainda não apareceu; nem Vladmir, que

seria seu reserva. Normalmente, quando um dos jogadores dos times

amadores não comparece, é um dos profissionais que entra em campo

conosco. Isso aconteceu no ano passado. O time está discutindo sobre que

jogador entrará em campo contra nós; afinal de contas, isso nos coloca em
desvantagem. E mesmo que seja um jogo com finalidade de levantar dinheiro

para uma causa social, estamos falando de empresários, os maiores

empresários de Moscou, nenhum deles gosta ou está acostumado a perder.

— Vai ver que foi por isso que eles queriam tanto apostar —

Stanislav, meu primo mais novo, diz sentando-se no banco de reservas.


O juiz se aproxima e diz que faltam cinco minutos para que entremos

em jogo. Nesse momento, o time adversário começa a entrar e eu vejo a

última pessoa que esperaria ver aqui. No ringue, com uniforme do time

vermelho, pronto para jogar: meu irmão. Mikhail cumprimenta Stan com um

abraço. Eles sempre se deram bem, apesar da diferença de idade, talvez por

suas personalidades mais expansivas.

— O que faz aqui? — questiono quando meu irmão se aproxima de

mim. Só ele pode me ouvir. Mikhail bate o ombro no meu e entendo que, seja

lá quais foram as circunstâncias que o trouxeram até aqui, o que ele quer

mesmo é começar uma briga.

— Ora, irmãozinho, não me diga que nosso querido pai também lhe

deixou esta arena na herança — ele diz colocando o capacete. — Estou

fazendo um favor a Viggo; Vladmir é delicado demais para jogar um esporte

tão violento. Além disso, desde que você me expulsou de casa, eu tenho

estado muito sentimental. Acho que uma boa partida de hóquei pode ser bom

para refazer os laços perdidos.

— Quer saber, você tem razão. Bom jogo, irmão — digo tentando não

cair na armadilha dele. Mikhail é como uma criança encrenqueira; se você


não der atenção, ele desiste e encontra algo melhor para fazer.
— Ótimo! Quem sabe depois do jogo não podemos jantar todos juntos,

eu, você, a sua esposa e, talvez, a Galina. Acabei de encontrar com ela no

corredor.

— Andreas, você está pronto? — Nikolai pergunta se aproximando.

Coloco meu capacete sem tirar os olhos do meu irmão. — Mikhail, fique do

seu lado da concentração. Isso é um amistoso, mas ainda existem regras.

Meu irmão olha para o nosso tio da mesma forma que minha avó o
olha, como se ele não devesse estar ali. O modo como Mikhail se parece

com ela é até assustador. Os mesmos preconceitos, os mesmos elitismos. A


única diferença é que Olga Orlov opera de forma mais sutil, enquanto o neto

pouco se importa com convenções ou aparências. Ele leva tudo ao extremo


quando quer alguma coisa.

Antes de entrar em campo, eu olho para as tribunas de assentos


reservados e vejo Izolda conversando com Minerva. Ela está com as mãos

cruzadas como se estivesse soprando entre os dedos. Passo os olhos


tentando achar Galina na mesma tribuna, mas, para o meu alívio, ela não

parece estar ali. Izolda, mesmo quando ainda criança, sempre ficou
desconfortável perto de Galina.

Entramos no gelo, o juiz joga o disco, e começamos a disputa por ele.

O time adversário acaba ficando com a posse do disco. Um jogador de


centro avança passando por Philip, que está na ala esquerda, mas acaba
perdendo o disco para um dos nossos defensores. Eu me posiciono para

receber o passe, e Mikhail tenta me interceptar. Seu corpo bate contra o meu
rapidamente, mas consigo me manter de pé, enquanto ele passa direto, e fico

com o disco. É assim que marco o primeiro ponto do jogo.

Quando faltam apenas alguns minutos para terminar o primeiro tempo,


há um gol feito com a parte de cima do bastão. A discussão sobre a

legalidade ou não da jogada gera um pequeno conflito. Mikhail tenta me


provocar algumas vezes enquanto o juiz se decide, mas estamos ganhando e a

decisão nos favorece, e voltamos para a posição inicial para retomar o jogo.
Saímos vitoriosos do primeiro tempo e, quando Philip provoca Mikhail por

estar perdendo para o caçula, ele parece mais irritado do que o comum.

— Você deveria passar mais tempo prestando atenção ao disco e

menos tentando derrubar seu irmão — Philip afirma ao perceber a reação de


Mikhail. — Talvez marcasse mais pontos.

Retomamos depois do intervalo e toda a equipe adversária parece

mais ofensiva. Há mais faltas, mais confrontos físicos, eu mesmo levo alguns
golpes de diferentes jogadores, e eles conseguem marcar mais, embora

continuemos na frente. Eu estou avançando com o disco em direção ao gol


quando vejo Mikhail correndo na minha direção. Para evitá-lo, lanço o disco

na direção do nosso outro jogador de centro e observo a recepção. Nesse


momento de distração, sou atingido com força e sinto meu corpo ser lançado
contra a lateral da arena, e tudo fica escuro.

Acordo com os olhos assustados de Izolda me encarando. Eu não sei


exatamente há quanto tempo estou no chão, nem tenho certeza do que está

acontecendo porque só consigo me concentrar em Izolda. Ela parece


nervosa, assustada. Tiro meu capacete, as luvas e estico uma de minhas mãos

em sua direção. Quero tocar em seu rosto, ela parece estar chorando.
Confirmo isso quando sinto a pele úmida. Izolda segura na minha mão

carinhosamente e se aproxima, seus lábios encostam nos meus, e eu levo um


segundo para me dar conta do que está acontecendo. Abro a minha boca para
receber a dela, e uma de minhas mãos vai para seu cabelo, intensificando o

movimento.

O contato lança ondas de prazer pelo meu corpo, e eu só quero

continuar beijando-a. Levanto um pouco meu corpo sem interromper o nosso


beijo, alojo minha outra mão em sua cintura e a colo ainda mais contra mim.

Eu poderia viver aqui, neste beijo, neste momento. Na sensação dos lábios
macios dela, na textura de seus cabelos, no contato com sua pele.

— Ele já acordou — alguém diz. A voz me faz ser dragado de volta

pela realidade. Afasto meus lábios dos de Izolda lentamente, sem tirar meus
olhos dos seus. Ela não precisa me dizer nada para que eu saiba que aquele
beijo também tem significado para ela. Ela está ofegante e, talvez, um pouco

receosa.

— Senhor, precisamos examiná-lo — uma outra voz diz. A mão que


estava nos cabelos de Izolda desliza para o seu rosto. Ela olha ao redor e

parece perceber que estamos cercados de pessoas, então enfia seu rosto no
meu peito, e eu a seguro com força contra meu corpo.

— Não precisa, eu estou bem — digo ao rapaz da equipe médica me


olhando. Na verdade, estou ótimo. Izolda... — digo baixinho em seu ouvido.

— Precisamos levantar daqui, tudo bem?

Ela acena positivamente sem de fato mudar de posição. Sem o


equipamento de segurança, eu poderia me levantar de uma só vez, levando-a

comigo, mas, assim, eu realmente preciso que ela se mova. Izolda levanta e
eu faço o mesmo. Minha cabeça dói um pouco e eu coloco a mão atrás do

pescoço.

— Está tudo bem? — Ela pergunta segurando meu braço.

— Deixe o médico examiná-lo — Nikolai pede. Eu aceno

positivamente e saio do gelo com Izolda ao meu lado.

— Entre no meu lugar — digo a Stan quando meu primo pergunta se

estou bem. Ele diz que é intervalo e que fará isso caso eu não possa voltar
em quinze minutos. Sento-me e uma médica aparece. Os dois paramédicos
que estavam no gelo ainda estão lá, mas é ela quem me examina. Ela checa

meus reflexos e faz um teste rápido para identificar uma possível concussão,
mas insisto que estou bem. E de fato estou, toda a dor parece ser muscular,

um resultado do impacto inesperado.

— Ele não pode voltar, pode? — Izolda questiona a médica. A mulher

olha para a minha esposa e oferece um sorriso de simpatia, provavelmente


pela óbvia preocupação em seu tom. Izolda está com a mão entrelaçada à

minha, sentada ao meu lado.

— Se o senhor fosse um jogador profissional, eu diria para voltar para


o ringue, mas, como este não é o caso, volte no ano que vem, senhor Orlov.

Minha opinião médica é a de que deve assistir ao resto do jogo da plateia e,


talvez, colocar um pouco de gelo nesse pescoço, ou pode ficar dolorido

amanhã.

Agradeço a médica apertando sua mão e digo a Nikolai que não vou

voltar para o jogo.

— Foi um bom jogo, agora vá ficar com essa bela esposa que você
tem. Ela parece preocupada.

— Quebrou alguma coisa? — Minerva pergunta entrando na área em


que eu estava sendo examinado. Minha amiga, diferente de Izolda, parece

furiosa. — Que merda ele acha que estava fazendo?


— Eu estou bem, é um jogo. Esse tipo de coisa acontece — digo.

— Acontece? Você nem estava mais com a bola, o Mikhail deveria ser
expulso.

— Minerva... — eu chamo seu nome e aceno com a cabeça na direção


de Izolda para que minha amiga entenda que não quero falar sobre isso. Ela

rapidamente entende e eu digo que não vou mais jogar.

Vou para o vestiário e troco de roupa enquanto Minerva e Izolda me


esperam lá fora. Assim que volto para onde elas estão, eu pego Izolda pela

mão, e minha amiga me olha sorrindo. Eu conheço aquele olhar juvenil de


quem diz "Ela gosta de você, e você gosta dela".

— Vamos terminar de ver o jogo — digo sorrindo de volta para


Minerva.

Eu me sento com Izolda ao meu lado, e ela apoia sua cabeça em meu

peito. Algumas pessoas param onde estamos para me cumprimentar. A


maioria comenta da jogada, pergunta como estou, alguns falam do beijo. "É

sempre bom ver um casal tão apaixonado", uma senhora amiga de minha avó
diz. Eu respondo sendo a minha versão política tão bem treinada por

Minerva, mas o que eu queria mesmo dizer é que eu pouco me importo com
Mikhail ou com aquele empurrão, pois a verdade é que eu poderia

alegremente ter fraturado um osso em troca daquele beijo. Em troca do modo


como Izolda está encostada em mim no momento. Do carinho que seus dedos
fazem na lateral do meu corpo.

Meu time acaba ganhando, como era de se esperar. E, depois disso,


assistimos a uma partida do Avangard Omsk contra Ak Bars Kazan. Ambos

os times são da Liga Continental de Hóquei e, embora eu seja um fã do


CSKA, assim como meu pai e meu avô antes dele, é uma boa partida de

hóquei. Izolda passa a maior parte da noite sem dizer uma palavra, exceto
quando alguém como Anastasiya lhe pergunta algo ou faz algum comentário.

Na volta para casa, dentro do carro, ela continua bastante calada, mas,

dessa vez, estamos separados. Nikolai está conosco. Como grande fã de


hóquei, ele está falando das jogadas e de como, no ano que vem, deveríamos

ter times mistos com profissionais. Eu escuto meu tio, interajo, mas estou o
tempo todo pensando em Izolda, tentando adivinhar o que se passa na cabeça

dela, a razão pela qual está tão quieta.

Ela se despede do meu tio e vai para o quarto enquanto eu fico com
Nikolai um pouco. Abro uma vodka e nos sirvo enquanto ele fala sobre
Mikhail. Dizendo que meu irmão está claramente fora do controle e que devo

ter cuidado.

— Eu lhe ofereci um emprego na empresa, ele não quis. Ofereci


dinheiro para que abrisse seu próprio negócio, ele gastou tudo e não fez
coisa alguma. O que ele quer é o Grupo Orlov, o controle de tudo, e isso, eu
não posso dar a ele, então não há nada que eu possa fazer, tio. Além do mais,

somos irmãos, ele nunca faria nada para me machucar de verdade.

— Não é o que parece — Nikolai diz enquanto toma sua vodka. —


Sabe, seu pai e eu nunca fomos grandes amigos. Ele foi criado por Olga,
então, claramente, por muito tempo, me viu como uma ameaça, mas, ainda
assim, nunca fomos inimigos. Eu vejo a forma como seu irmão olha para

você, isso não é saudável. Apenas me prometa que vai ser cuidadoso ao
redor de Mikhail.

— Prometo — digo para deixá-lo satisfeito, mas a verdade é que não


acho que meu irmão possa fazer algo substancial contra mim. Contanto que
ele não chegue perto de Izolda, nada do que ele faça pode me atingir. Eu me

despeço do meu tio, que vai voltar para o mar em breve, e subo para dormir.

Entro no quarto e encontro Izolda com um livro nas mãos, sentada na


cama, usando apenas uma camisola de seda que parece feita para o seu
corpo. Os seios marcados na peça e uma das alças levemente fora do lugar,

aquele ponto específico é o que mais chama sua atenção. Imagino-me


tocando-a ali, fazendo a alça deslizar enquanto meus lábios encontram seu
pescoço.
— Você está bem? — pergunto. Ela acena positivamente e oferece um
sorriso tímido. — Vou tomar banho — informo. Eu entro no chuveiro

pensando naquele beijo. Não consigo parar de pensar nele, na pele dela, no
cheiro, no calor da sua cabeça encostada no meu peito. Aquela expressão
assustada que encontrei em seu rosto quando abri os olhos, o que ela
significava? Eu sabia que ela tinha gostado do beijo, mas, depois, ela ficou

tão retraída. Estaria arrependida de ter me beijado? Passo a mão pelos


cabelos e me olho no espelho enquanto seco meu corpo. Eu preciso
esclarecer isso. Já há tanto entre mim e Izolda que fica no não dito, não
quero que nosso beijo se torne mais uma dessas coisas. Quero saber o que

ela sentiu? Quero saber se posso beijá-la novamente.

Coloco uma calça de moletom e volto para o quarto. Ela ainda está
acordada e eu paro na sua frente na cama.

— Izolda, podemos conversar?

— Você quer brigar comigo? — ela pergunta.

— Não, claro que não. Por que eu brigaria com você?

— Você parece sério demais — ela diz fechando o livro.

— Não quero brigar. Quero conversar. Podemos? — Izolda acena


positivamente e eu sento na cama ao seu lado. — Eu quero conversar sobre
tudo o que aconteceu mais cedo, sobre Galina, sobre...
— Andreas, você não precisa me explicar o que aconteceu com a

Galina. Isso não é da minha conta.

— É. É, sim. Você é minha esposa, eu sou seu marido, e eu não


gostaria de encontrar você conversando com um ex-namorado e... enfim... eu
só quero que você saiba que nada aconteceu e que nada vai acontecer. Eu
estava sendo honesto quando disse que não pretendo ter nada com ninguém,

tudo bem? — Izolda acena positivamente.

— Eu não gostei de ver você com ela — ela me diz. Pego em sua mão
e não consigo evitar o sorriso.

— Eu percebi, mas você não tem com o que se preocupar. Galina não
tem mais nenhum espaço na minha cabeça, nem no meu coração. Agora, eu só

consigo pensar em você e naquele beijo. Por que você me beijou?

Fazer aquela pergunta tomava muito da minha coragem. Eu tinha


imaginado todas as respostas possíveis, das melhores às piores razões para
aquele beijo.

— Você quer saber de porque eu beijei você?

— Sim.

— Eu o beijei porque... porque eu fiquei assustada, preocupada


quando o vi lá caído no meio daquele gelo, e porque eu já perdi todo mundo
e não quero perder você também.
Um silêncio se instaura no ar, e a distância entre nós parece ser de

quilômetros naquele momento. Eu me aproximo da cama e estico minha mão


para tocar em seu rosto.

— Venha aqui — eu digo oferecendo meus braços. Izolda se aproxima


e coloca a cabeça em meu ombro, mas então ela ergue a cabeça e me encara
com seus lindos olhos castanhos, e tudo que eu quero é colocar meus lábios

nos seus.

— Eu posso beijá-la? — ela não responde; não verbalmente. Em vez


disso, acena positivamente e morde o lábio, e eu acabo com a distância entre
nossas bocas. Há uma certa timidez em seu beijo, mas ela vai sendo

dissipada aos poucos. Eu coloco minha mão em sua cintura e colo nossos
corpos enquanto continuo beijando-a, quando troco seus lábios pelo
pescoço, e Izolda solta um gemido de surpresa.

— Andreas... — ela diz enquanto eu continuo movendo minha mão.


Encontro sua coxa e subo meus dedos por dentro do seu vestido. Izolda

alcança a minha mão, parando-a, e nossos olhos se encontram. — Podemos...


sabe, ir devagar? — ela pergunta. Sua respiração está visivelmente
acelerada e ela parece um pouco eufórica.

— Claro, no ritmo que você quiser — digo descendo a mão para sua

perna e a beijando outra vez.


— Podemos refazer toda essa estrutura e pensar na janela panorâmica

aqui — Vladmir diz enquanto caminhamos pelo espaço no qual iremos

montar o centro de recreação para os filhos dos funcionários e crianças da


comunidade. — Isso vai deixar o ambiente com uma iluminação natural

melhor e, como o Andreas está adotando um modelo mais sustentável, vai

ficar condizente com a proposta.

A menção do nome de Andreas me faz perder a concentração. Em vez

de projetos, sou invadida pela lembrança de suas mãos passeando na minha

pele, dos seus lábios no meu pescoço, da forma gentil com a qual ele me
acolhe no seu peito, de como tem feito isso todas as noites desde o jogo. As

sensações que ele me causa são conflitantes. Em alguns momentos, ele é

como chegar a casa, acolhedor, quente, familiar; mas, em outros, vê-lo é pura

inquietação, excitação, todo o meu corpo parece pedir por ele.

— Izolda, Izolda... — a voz de Vladmir me chama, e eu olho para ele

tentando pensar qual foi a última coisa que ele disse.

— Desculpe-me, Vladmir, eu me distraí um pouco imaginando como as

coisas vão ficar. O que você disse mesmo?

— Perguntei se você acha que a sala de pintura pode ser aqui.


Podemos fazer paredes com vidro inteligente aqui. Eles mudam conforme a

iluminação, o som do restante do ambiente não vai causar nenhum impacto,

mas aproveitamos a luz e conseguimos um ambiente com esse efeito mais

aberto. Além disso, toda a alvenaria pode ser de plástico reciclável.

— Está ótimo — Digo. — Na verdade, eu não sou a pessoa mais

qualificada para definir essas coisas.

— Claro que é, e você tem uma sensibilidade incrível. Eu vi tudo que

você planejou para este espaço, foi uma das razões pelas quais pedi a

Andreas para começar por este projeto em vez de trabalhar no planejamento

da refinaria.
Eu tinha achado estranho que Vladmir quisesse estar trabalhando aqui,

comigo, em vez de trabalhar nos projetos centrais do Grupo Orlov. Primeiro,

eu tinha criado uma certa resistência à presença dele; afinal de contas, ele é

irmão de Galina. E, mesmo que fosse tão diferente da irmã quanto a água é

do vinho, ainda eram irmãos. Apesar disso, esta semana trabalhando com ele

me mostrou que Vladmir é centrado, profissional, aberto às ideias alheias e


até mesmo engraçado quando ele permite que a barreira da timidez seja

atravessada.

— Você só está dizendo isso porque eu sou casada com o seu chefe,

mas não adianta, não posso lhe dar um aumento — digo. A brincadeira faz
com que Vladmir dê uma risada. Ele tem um sorriso bonito, honesto. Esses

dias também me fizeram pensar ainda mais em Elke. Eles estavam

"prometidos" um ao outro desde que eram praticamente crianças e, ainda

assim, ela não fazia a menor ideia de quem ele é.

— Izolda, eu posso lhe fazer uma pergunta? — ele questiona ficando

sério. Aceno positivamente enquanto digo "Claro", e Vladmir olha ao redor,

como se quisesse se certificar de que estamos sozinhos. — Eu não sei bem

como perguntar isso, mas... aconteceu alguma coisa com a Elke?

Eu sinto uma espécie de bola se formar no meu estômago, e ela vai

ficando gelada enquanto ele me encara.


— Estou perguntando porque ela já deveria ter voltado. Os Pavlova

ficam falando do nosso jantar de noivado o tempo todo, como se a Elke fosse

aparecer a qualquer momento, mas, eu não sei, parece que há algo de errado
nessa história toda. Eles disseram que ela estava em Yale; depois, na NYU.

E eu vou parecer um stalker maluco agora, mas ela nem mesmo posta nada

nas redes sociais.

— Eu não sabia que você se importava tanto com ela — digo. Estou

propositalmente evitando responder à sua pergunta e esperando que ele não

perceba.

— Nós nos conhecemos desde crianças, é claro que me importo com

ela, mas isso não quer dizer que esteja ansioso pelo casamento. Eu não quero

ficar com alguém que obviamente não quer nada comigo. Só acho estranho

que eles fiquem fazendo planos e adiando as coisas e inventando novas

desculpas. Primeiro, o pai dela disse que a Elke voltava semana passada.

Agora, supostamente retornará em duas semanas. Você é a melhor amiga

dela, sabe onde ela está? Sabe se aconteceu alguma coisa?

— Eu não sei onde ela está. Eu adoraria saber onde a Elke se meteu,

mas eu realmente não sei — digo passando as mãos no rosto nervosamente.

— Desculpe-me, esse assunto claramente a deixa desconfortável. Eu

não deveria ter perguntado.


— Não, tudo bem. Faz tanto tempo que eu não vejo a Elke, meses, e eu

entendo. Eu também quero muito saber se ela está bem. Mas eu sei tanto ou,

talvez, até mesmo menos do que você sobre o destino dela. Eu não sou a

pessoa predileta dos pais dela.

— É, eu já notei que eles não gostam de você — Vladmir afirma

oferecendo um sorriso de simpatia. — Sinto muito. E se ajudar em alguma

coisa, prometo que lhe conto se souber de qualquer notícia.

— Obrigada, Vladmir — digo forçando um sorriso. — Conte-me, o

que mais você planejou para a construção? E em quanto tempo tudo isso fica

pronto?

Eu me esforço para continuar ouvindo Vladmir, pois, por mais que o

projeto me interesse, minha cabeça está em Elke. A ideia de que ela pode

estar de volta em duas semanas é como uma fresta de luz passando por uma

brecha minúscula, não me parece que seja o suficiente. Vladmir

provavelmente está certo. Em breve, os Pavlova vão criar uma nova

desculpa, ampliar o prazo. Dizer que algum imprevisto aconteceu.

Quando terminamos, Vladmir fica no local fazendo algumas medições,

e eu volto para minha sala. Estou no elevador, a atenção voltada ao celular,

quando uma mão interrompe o fechamento das portas. Ergo a cabeça e vejo

Andreas entrando com seu sorriso charmoso, e meu estômago dá voltas.


— Aonde você está indo? — ele questiona ficando do outro lado do

elevador.

— Estava organizando o espaço lá embaixo. E você?

— Acabei de chegar da refinaria.

— Pare de me olhar assim — Afirmo enquanto ele me encara. Andreas

solta um pouco o nó da gravata e se aproxima.

— Assim como?

— Como se quisesse... Se quisesse... você sabe.

— Mas eu quero — ele diz se aproximando. Andreas passa o nariz

pelos meus cabelos, e eu inclino meu corpo em sua direção, me derretendo

pelo contato. — Você cheira tão bem, sabia? Às vezes, eu queria só poder

respirar você. —Sua mão encontra a minha cintura, e o toque amplifica as

sensações geradas pelas palavras.

— Caso você não se lembre, este elevador é de vidro. As pessoas vão

ver.

— Eu não me importo.

— Mas eu me importo — digo, mordendo o lábio. — Não quero seus

funcionários falando de mim, eu tenho que trabalhar com essas pessoas.


— O que eles vão falar? Que somos casados e não nos desgrudamos?

Que escandaloso — Ele diz sorrindo. E então, me beija outra vez, agora sua

mão desce pela lateral do meu corpo e acaricia minha bunda.

— Andreas, se comporte — eu o repreendo batendo levemente minha

mão em seu ombro, mas estou sorrindo de orelha a orelha e mal posso me

conter.

As portas do elevador se abrem e eu me afasto do meu marido, que


não se move nem um centímetro. Ele parece rir do meu comportamento, da

minha timidez.

— Vá trabalhar, Andreas. Eu o vejo mais tarde? — digo saindo do

elevador.

— Izolda, você quer sair para jantar?

— Tipo um encontro?

— É! Isso mesmo.

— Claro. — Aceno positivamente. Observo seu sorriso até que o


elevador começa a se movimentar, levando-o para a cobertura do prédio.

Assim que entro no setor em que trabalho, vejo uma garota lendo uma
revista de fofoca. Ela a esconde assim que entro, mas eu caminho até ela e

pergunto se posso dar uma olhadinha. Lá estou eu, na capa, beijando Andreas
naquela arena de gelo. A capa diz "UM AMOR DE CONTOS DE FADAS".
Abro a revista e leio os primeiros parágrafos da matéria, que é basicamente
uma série de especulações. Além das fotos do dia do jogo, a revista tem uma

foto nossa de mãos dadas nas ruas de Roma. Imaginar que alguém nos viu,
que provavelmente reconheceu Andreas enquanto estávamos em Roma me dá

uma noção do quão pública a minha vida se tornou quando casei com um
Orlov.

É estranho pensar que, semanas atrás, tudo isso não passava de

encenação (e nem era uma boa encenação), e agora eu estou vivendo uma
versão meio desajustada de um conto de fadas.

***

Andreas me oferece a mão para que eu desça do carro. Sua mão


escorrega levemente para as minhas costas enquanto caminhamos, e viro meu

rosto para olhar para ele. Sua barba bem feita, um sorriso no rosto. Olhar
para Andreas me deixa extasiada. Ele me flagra olhando-o, então inclina a

cabeça em minha direção e me beija.

Quando nossos lábios se separam, é como se uma parte de mim tivesse

ficado com ele, e eu desesperadamente precisasse tomá-la de volta. Coloco


minha cabeça em seu peito e Andreas me abraça. Eu me pergunto se todo

beijo é bom assim, se, toda vez que duas pessoas que estão envolvidas se
tocam, elas se sentem dessa forma.
Nunca vivi nada disso antes. Meu primeiro beijo foi numa roda de
“verdade ou desafio” em uma festa de adolescentes à qual Elke me levou, eu

tinha quinze anos. Depois disso, eu troquei alguns beijos com um garoto que
entregava flores no palácio, mas nunca passou disso. E há Mikhail e suas

tentativas de me agarrar, de me tocar, mas só de pensar nelas, eu quero


vomitar. Com Andreas, é diferente. Cada toque, cada beijo, cada sensação,

tudo que vem dele me deixa nas nuvens, querendo mais.

— Izolda, se você ficar com vergonha toda vez que eu beijá-la...

— Não é isso — Digo erguendo a cabeça enquanto ele afaga meu

cabelo. — É que, toda vez que você me beija, eu não quero que o beijo
acabe.

Uma expressão que mescla orgulho e satisfação toma conta do rosto de


Andreas, e ele passa a mão pelo meu pescoço, o polegar delicadamente

roçando nas maçãs do meu rosto.

— Venha, vamos subir — ele diz pegando na minha mão outra vez.
Olho ao redor e percebo que estamos em Moscow City, um dos distritos

comerciais mais novos da cidade. Estamos em frente à torre Imperia, um dos


prédios mais altos da Europa. A vista desse lugar é famosa. Entramos no

elevador e vamos até o quinquagésimo oitavo andar, onde encontramos uma


pequena equipe para um jantar privado.
Somos recebidos no restaurante por uma hostess, que nos leva até

nossa mesa. Eu fico fascinada com a decoração. A luz do ambiente é fria,


tem um tom azulado, e há um arco de flores naturais acima de nossa mesa,

velas, música. Tudo está perfeito. Andreas puxa a cadeira para que eu me
sente e só então ocupa o lugar na minha frente.

— Eu nunca tive um encontro antes — afirmo sorrindo.

— Nesse caso, espero que esteja atendendo às suas expectativas.

— As minhas expectativas nem têm a menor chance em comparação a


isso, está tudo incrível.

Andreas coloca a mão sobre a minha e acaricia os nós dos meus dedos
enquanto me encara. Um garçom se aproxima e nos serve champanhe;

Andreas imediatamente troca a dele por algo mais forte. Nós jantamos
enquanto conversamos, e eu fico abismada com o modo como a conversa flui

organicamente entre nós. Os silêncios são raros e, mesmo assim, não são
constrangedores. Falamos sobre a empresa – ele quer saber se estou

satisfeita trabalhando com Vladmir –, sobre os prazos para o projeto, e ele


diz que eu deveria fazer um painel no espaço do centro de recreação, uma

pintura minha.

— Não acho que consigo desenhar em grande escala — afirmo, mas


estou empolgada com a ideia.
— Acho que só há um jeito de descobrir. — Ele sorri.

— E eu posso pintar o que quiser?

— Contanto que seja adequado ao público — Andreas responde


sorrindo.

— Droga, eu pensei em pintar você sem camisa.

Andreas solta uma risada alta. Eu não lembro de ouvi-lo rindo assim

há muito tempo e fico feliz de saber que provoquei aquela risada. Falamos
sobre o passado, lembramos de quando éramos mais novos, e ele lembra que
o fiz ser o padre do casamento de bonecas. Em um ponto da noite, eu digo

que quero apreciar a vista, e Andreas me acompanha. Ele diz que estamos a
230 metros acima da cidade. A vista é linda, as luzes de Moscou brilham lá

embaixo.

Olho para Andreas, e ele está com o telefone na mão, tirando uma foto

minha.

— O que está fazendo? — pergunto, tentando esconder meu sorriso.

— Eu percebi que não tenho nenhuma foto sua — ele comenta. Eu me

aproximo e observo a imagem. É uma foto bonita. — Venha aqui — ele diz
passando o braço ao redor do meu corpo. Andreas tira uma foto nossa, uma

selfie. Nossos rostos colados. Ficamos bem juntos, muito bem, como se
tivéssemos de fato sido feitos um para o outro.
— Escolha um lugar — ele diz enquanto como minha sobremesa.

— Um lugar?

— É, qualquer lugar. E vamos tirar uns dias para ficarmos juntos, só

nós dois.

O primeiro lugar que vem à minha cabeça é o Brasil, mas então uma
garçonete com cabelos castanhos e um sorriso está usando, por dentro do

blazer, uma camisa do Husky, um dos artistas prediletos de Elke, e eu sei


para onde quero ir.

— Nova York — digo. Andreas, que está tomando um gole de sua


bebida, coloca o copo na mesa e me encara.

— Nova York? — Eu me pergunto se ele sabe o que estou planejando.


— Tudo bem. Semana que vem. O que acha?

— Eu vou ter que falar com meu chefe, mas acho que ele me libera —

digo sorrindo.

Trocamos beijos e carinhos durante todo o percurso na volta para

casa. Eu começo a subir as escadas com Andreas atrás de mim, beijando


meu pescoço. No meio do percurso, somos interceptados por madame Olga.
Ela pede para falar com o neto por alguns minutos, e me afasto de Andreas

dizendo que vou para o nosso quarto.


O "nosso" sai com tanta naturalidade que eu só percebo quando noto a
expressão de Olga Orlov. Aquela não parecia a mesma mulher que tinha me

dado bonecas de presente em diversos Natais, e que era até mesmo um


pouco simpática comigo.

Agora, ela me olha como se eu fosse sua inimiga mortal. Minha mãe
costumava dizer que pessoas como ela podem ser gentis com quem vê como

inferior, mas essa gentileza acaba no momento em que a pessoa considerada


inferior tenta ocupar espaços como um igual. Olga Orlov era gentil quando
eu servia para trocar vasos e limpar quartos, mas, como esposa do neto, não,

isso é inconcebível.

Arrumo-me para dormir enquanto espero Andreas. Penso em tentar

dormir antes que ele retorne; isso evitaria que continuássemos a diversão
que fora interrompida por sua avó. O fato é que eu não sei o que pode

acontecer se dormirmos juntos.

Não sei se ele vai notar que eu nunca estive com nenhum homem antes,
se vou sangrar, se será difícil, se ele vai entender quando eu não puder
contar toda a verdade. Pego meu telefone e abro uma guia de pesquisa "seu

parceiro consegue saber se você é virgem durante sexo" e, quando fico


frustrada com as respostas vagas, eu desisto da leitura e deixo o telefone de
lado.
Seria tudo mais simples se eu pudesse contar a ele que nunca tive nada
com Mikhail, mas, como fazer isso sem entregar uma explicação

convincente? Por mais que me doa saber que Andreas acredita que eu dormi
com seu irmão, não posso contar sobre Elke, sobre o que Mikhail fez com
ela.

Decido que a melhor forma de agir é fingir que sei o que estou
fazendo. Afinal de contas, não é como se eu fosse totalmente ignorante sobre

sexo. Eu sei como funciona, tive aulas de educação sexual, conversas com a
minha mãe quando tive minha primeira menstruação, assisti a vídeos pouco
educativos e explorei meu corpo. Além disso, aquele é o homem que eu
sempre desejei, o homem que achei que nunca poderia ter. E agora que tenho

essa chance, não pretendo desperdiçá-la.

Andreas abre a porta, interrompendo meus pensamentos. Ele pede


desculpas pela demora, como se precisasse de fato, e diz que sua avó estava
apenas querendo o atualizar sobre algumas questões da casa. Eu me levanto
da cama e vou até ele. Faço algo que vi minha mãe fazer tantas vezes com

meu pai: eu tiro sua jaqueta, solto o laço da gravata e o beijo.

— Já avisei a Minerva da nossa viagem — ele afirma sorrindo


enquanto começa a desabotoar a camisa. Andreas não é um daqueles caras
extremamente musculosos, mas eu gosto dos seus braços. Eles são fortes,
bem definidos e a forma como eles me envolvem me deixa fora de mim. —
Vamos depois da reunião do conselho, na quinta, e voltamos no domingo.

Ele termina de tirar a camisa e se aproxima de mim outra vez. Andreas


levanta meus cabelos e beija meu pescoço bem devagar, os beijos fazendo
com que eu me contorça.

— Mal posso esperar — confesso.

— Você deveria saber que Nova York não é como nos filmes. É

movimentado demais e fede a urina por todos os lados — ele afirma.

— Que conversa sexy — comento enquanto coloco minha mão em seu


peito nu. Desço-a lentamente e com cuidado, sempre quis tocar no abdômen
dele e, agora que posso, é minha nova obsessão. Andreas deixa escapar uma
risada e me puxa para mais perto pela cintura. Estamos tão colados que eu

posso sentir o volume de sua calça pressionado contra o meu estômago.

Ele coloca a mão na parte inferior da minha coxa e me puxa para o seu
colo. Eu solto um suspiro de excitação pelo movimento inesperado, mas
rapidamente me recupero e passo meus braços pelo seu pescoço, beijando-o

novamente.

Depois de alguns beijos, Andreas caminha até a cama e me solta sob o


colchão. Imediatamente ele está pairando sobre mim. Seus lábios no meu
rosto, descendo pelo ombro, a mão afastando o tecido da minha camisola

enquanto se movimenta pelo meu corpo.

— Izolda... — ele diz enquanto sua mão se aproxima do meio das


minhas pernas. Eu sei o que ele quer e eu gosto ainda mais dele por
perguntar antes. É claro que eu quero, claro que ele pode, estou pulsando
tanto que mal posso esperar para que ele coloque seus dedos em mim. Aceno

a cabeça positivamente, abro um pouco as pernas e peço por favor. Isso


esclarece bem as minhas intenções. Andreas sorri e move as mãos para a
lateral do meu corpo, retirando a minha calcinha. Eu não esperava que ele
fizesse isso, sinto essa vontade de fechar as pernas com vergonha, mas ele

me olha de uma forma tão cheia de satisfação que esse sentimento de


vergonha vai se esvaindo.

Ele me beija outra vez. Em seguida, desce os lábios para os meus


seios, barriga, e me beija lá. Começa devagar, a língua explorando
levemente o meu clitóris, mas, com o tempo, os movimentos ganham outro

ritmo, e eu levo minhas mãos para os seus cabelos. Vou perdendo os sentidos
na medida em que ele continua me explorando com sua língua. Meus seios
estão enrijecidos; meus braços, arrepiados; meus dedos, se curvando. Todas
as partes do meu corpo repercutem as sensações advindas desse contato.

Andreas continua me sugando enquanto eu inclino minhas costas e


movo meu quadril em sua direção. Eu chamo seu nome quando começo ser
invadida pelo prazer, e ele segue concentrado, intensificando o movimento

no mesmo ponto, aumentando o prazer até que eu sinto meu corpo se


derramar e sua boca absorver tudo.

Quando Andreas termina, minhas pernas parecem trapos, mas todo o


resto do meu corpo está relaxado. Eu me pergunto se devo fazer algo por ele,
se deveria retribuir o que me fez. Sei que ele está excitado, posso ver pela

marca do volume em sua calça, mas não tenho coragem de levar minha mão
até seu pênis. Andreas, no entanto, deita ao meu lado e gira levemente a
minha cintura para que eu o encare.

— Izolda, você está feliz? Aqui, comigo?

— Por que está me perguntando isso? — questiono, sentindo meu

corpo ficar tenso.

— Eu vi uma matéria sobre a gente hoje — ele conta afagando meus


cabelos — e, aparentemente, somos o casal dos sonhos.

— Um conto de fadas moderno — digo. — Eu também vi.

— É, e eu fiquei pensando se você está feliz ou se eu fui egoísta e fiz o

que considerava certo sem perguntar nada a você, forçando-a a ficar aqui.

— O que sua avó lhe disse? — questiono. Se ele viu a matéria mais
cedo, não parecia afetado por ela antes de chegarmos a casa e ele ficar lá
embaixo conversando com a avó.
— O que ela disse não importa. O que importa é você e como você se

sente. O que eu quero saber é se você ainda quer ir embora... Quer?

Eu deveria dizer que sim, eu poderia ir para longe, reconstruir minha


vida sem a sombra constante de Mikhail, viver em um lugar menos
preconceituoso, longe dos holofotes e das obrigações de ser uma Orlov.

Todas essas razões são boas o suficiente, mas nenhuma delas parece
compensar a ideia de me afastar de Andreas.

— Não, eu não quero ir embora. Eu quero ficar com você.

Ele parece aliviado pela resposta, e coloca a mão no meu queixo e


leva minha boca até a sua. Fico jogada por cima de seu corpo e, durante o

beijo, eu penso no quanto ele deve ter duelado consigo mesmo antes de me
fazer essa pergunta.

— O que você faria se eu dissesse sim? Você fez uma promessa ao


meu pai e disse que Orlovs nunca quebram promessas.

— Nenhuma promessa vale a sua felicidade. Se você quisesse ir

embora, eu mesmo providenciaria tudo para que você pudesse ter uma vida
confortável e segura onde bem entendesse.

— Eu estou segura e confortável bem aqui — digo abraçando-o. —


Com você.
— Do que você está rindo? — Minerva questiona. Eu olho para a

minha amiga que está com o tablet na mão me mostrando o novo comercial

institucional do grupo. — Meu Deus, você parece um adolescente


apaixonado. Na verdade, esqueça o que eu disse. Nem mesmo quando era

adolescente você tinha um sorriso tão bobo quanto esse.

— Eu estava sorrindo?

— Sim. E eu sei que não é pelo comercial. As pessoas no grupo focal


ficaram emocionadas, pouco crédulas ou indiferentes, mas ninguém riu. Nem
poderiam. Não há nada de engraçado em reduzir emissões e salvar espécies

em extinção.

— Desculpe-me, me mostre outra vez. Eu me distraí.

— Andreas Orlov distraído. Há uma primeira vez para tudo. Você vai

me falar sobre o fato de estar namorando a sua esposa?

— Não. Não vamos falar sobre isso, Minerva.

— Tudo bem. Mas, só para deixar claro, eu sou fã de carteirinha do

casal Izandreas.

— Izandreas?

— É assim que chamam vocês na imprensa. Mas não os culpe, é difícil

combinar os nomes de vocês.

— Você aparentemente passou um bom tempo pensando nisso — digo,

implicando com ela.

— Vocês deveriam ter uma conta de casal no Instagram, faria muito

sucesso. Você viu que alguém fez fotos de vocês juntos no Imperia? Fotos de

beijos e mais beijos.

Eu havia visto as fotos, assim como vi fotos nossas passeando no

parque dois dias atrás. Na verdade, eu adoraria que as pessoas parassem

com isso quando estou tentando fazer Izolda ter uma relação normal com

jantares, passeios e todas as coisas que sei que ela nunca teve.
— Não entendo a obsessão das pessoas com o nosso relacionamento.

— Não entende mesmo? Vocês são jovens, bonitos; você era um

herdeiro cobiçado. É claro que as pessoas querem saber mais. E

principalmente: eu quero saber mais. Qual a vantagem de ser sua melhor

amiga se você não me conta nada?

— Tudo bem, uma pergunta, isso é tudo que você ganha.

— Você está tão feliz quanto parece?

— Você vai mesmo estragar a sua curiosidade nessa pergunta? Achei

que você fosse querer saber algo mais interessante — pergunto enquanto
coço minha barba. Minerva sorri e eu sei que sim, é isso mesmo que ela quer

saber. Minerva é o tipo de amiga que sente junto. Se você está feliz, ela fica

feliz. Se está triste, ela fica triste. Se está chateado, ela tem mais raiva ainda

de seja lá qual for a fonte da sua chateação.

— Sim, espertalhão. É isso que eu quero saber, acima de tudo.

— Estou bem mais feliz do que pareço — respondo. — Mas estamos

indo devagar.

— Quão devagar? — ela questiona levando a mão ao queixo. Penso

em Izolda na cama, chamando meu nome enquanto eu a estímulo. Não

estamos indo tão devagar assim, mas, sempre que chegamos perto de transar,
ou pelo menos da parte “penetrativa” do todo, ela se retrai. E embora eu
esteja louco de tesão por ela, não tenho nenhuma intenção de pressioná-la. É

o corpo dela, são os limites dela, eu nunca poderia ultrapassá-los.

— Isso seria uma segunda pergunta — afirmo. — E você não vai

conseguir respostas.

— Não com você sóbrio — ela retruca sorrindo.

— Refresque a minha memória: o que aconteceu na última vez que

saímos para beber, Minerva?

— Tudo bem, eu posso, sim, ter ficado bêbada muito mais rápido do

que você e posso também ter paquerado um pouco com o bartender, mas

você não precisava ficar lembrando disso.

— Você precisa cuidar menos da minha vida, Minerva.

— Não ouse me dizer para arranjar um namorado. Sabe bem que o

último cara por quem eu me interessei de verdade era casado. Meu dedo é

podre — ela diz.

— Você deveria ter me dito algo antes que eu casasse — digo

implicando outra vez. Não quero que ela pense no homem do qual gostava.

Aquilo a deixou mal e eu não suporto ver Minerva triste, principalmente

porque conheço bem aquele homem e sei que ele tinha sido pouco

considerativo em relação aos sentimentos dela, dado corda.


A extensão do escritório toca, interrompendo nossa conversa, e eu

atendo.

— Senhor Orlov, os acionistas chegaram — a voz de minha


secretária diz pelo viva-voz. Minerva me olha com a expressão de quem

"vamos encarar as feras".

— Obrigado, Alissa. Já estamos indo — respondo. — Minerva, esse

comercial, você gostou? Há algo que o conselho possa querer alterar?

É só uma pergunta por razões de formalização. O trabalho de Minerva

é sempre impecável, seu olhar analítico faz previsões de cenários mais

rápido do que qualquer pessoa que conheço. Ela era famosa por isso na
universidade.

— Não se estiver movido por bom senso. O comercial tem tudo que

queríamos, o roteiro é o mesmo que você aprovou.

— Ótimo! Então, vamos lá, quanto mais rápido essa reunião começar,

mais rápido acaba.

Eu entro na sala de reuniões acompanhando de Minerva e Maxime,

nossa diretora financeira. Nas laterais esquerdas da sala, estão meu irmão e

minha avó. Mikhail está encostado de forma displicente na cadeira, como se

esse não fosse um ambiente formal. Já minha avó é o exemplo de postura,


pompa e circunstância. Cumprimento-os rapidamente e vou falar com os

outros três acionistas da empresa.

O Grupo Orlov foi, por muito tempo, uma empresa de capital fechado

com apenas um sócio, mas, quando meu pai morreu, eu quis que Mikhail

tivesse uma pequena porcentagem das ações, assim como minha avó. Mesmo

que eles tenham ficado com imóveis e tenham recebido as apólices de seguro

de vida, achei que essa seria uma forma de evitar que meu irmão tivesse

qualquer rancor. Obviamente, isso não funcionou.

Os outros acionistas são resultado de uma abertura de capital. Quando

as ações passaram a valer muito mais do que o esperado, resolvi que era o

momento de vender uma parte da empresa, uma pequena parte. O retorno fez

a abertura valer a pena, e ter capital aberto também traz benefícios em

termos de competitividade.

As três pessoas sentadas à minha direita – um inglês chamado Robert,

e dois russos, Oleg e Sasha –, juntas, possuem cerca de 12% das ações da

empresa, o que ainda me deixa com quase 80% de tudo. Minerva chama de

falsa democracia. Nós nos reunimos semestralmente, apresentamos os planos

de ações e rendimentos, falamos de projeções, e eles são ouvidos, mas eu


ainda tenho o controle das decisões finais.
Eu começo falando sobre como é um prazer recebê-los e falo

rapidamente sobre o percurso da reunião. Então, Maxime assume,

apresentando os rendimentos, o que era esperado e quais são as projeções

para os próximos dois trimestres.

— Apesar de termos operado numa margem produtiva reduzida, o

rendimento não foi comprometido e ainda conseguimos focar nos

investimentos. As previsões para a nova refinaria são...

— Desculpe-me, querida, você disse "nova refinaria"? Estamos

construindo uma nova refinaria apesar da redução na produção?

— O senhor estava na última reunião? — Maxime pergunta a meu

irmão. — E, por favor, não me chame de "querida".

— Maxime, pode prosseguir. Tenho certeza de que a memória do


senhor Mikhail Orlov vai ser refrescada por conta própria — Minerva diz

com seu tom cortante. Minerva e Mikhail sempre se detestaram. Minha amiga
costumava chamá-lo de "cria do mal" quando meu pai ainda estava vivo,

mas, depois disso, ela desistiu do apelido.

Maxime segue e, depois, é a minha vez de falar sobre os projetos, as

metas de sustentabilidade e como cumpri-las nos garante maior abrangência


no mercado internacional. Terminamos as apresentações com Minerva

mostrando o novo comercial e os planos para divulgação do grupo.


— Nossas duas frentes são movimentar a Rússia com a energia
produzida e fazer isso de forma sustentável e gerando empregos — ela

explica.

— E a imagem pessoal — minha vó questiona. — Vocês devem ter


levantamentos sobre os efeitos do recente casamento do presidente do grupo,

certo?

Mikhail solta uma risada que me irrita. A própria pergunta de minha

avó também tem esse efeito.

— Minha vida pessoal não está em discussão aqui — digo tentando


não soar tão irritado quanto estou.

— Infelizmente, Andreas, a senhora Olga Orlov tem razão — Robert


diz. — Seria bom que tivéssemos alguma análise recente de percepção da

confiança em seu trabalho.

— E nós temos — Minerva diz. Ela coloca os dados na tela. E é essa


uma das razões pelas quais eu amo Minerva. Ela está sempre dois passos à

frente nos negócios. — Entre os grupos associados, a confiança permanece


basicamente a mesma dentro país, com uma leve queda. Internacionalmente

há um crescimento de quase 17%. Já na percepção pública, há uma


considerável melhora. Enquanto casal, Andreas e sua esposa têm feito

bastante sucesso, capas de revistas, nenhum tipo de visibilidade negativa.


— Isso é excelente — Robert diz.

— Sim, formidável — minha vó diz parecendo prestes a cuspir fogo.

Esclarecemos mais algumas dúvidas dos acionistas, e dou a reunião


por encerrada. Estou pronto para deixar a sala quando minha avó diz que
gostaria de trocar algumas palavras. Ainda estou processando a nossa última

conversa, quando ela me disse que Izolda estava me usando e que tudo que
ela queria era nosso dinheiro e Mikhail. Eu espero que todos deixem a sala e

posso ver Mikhail esperando-a do lado de fora pela porta de vidro. Ele me
olha, parecendo satisfeito demais.

— Isso é para você — ela diz entregando um envelope.

— O que é isso?

— Evidências. Você sempre acha que eu só cuido do seu irmão, aqui

está a prova de que me preocupo com você. Deixe essa mulher antes que a
mancha na nossa reputação se torne irreparável.

Eu abro o envelope e encontro páginas com rabiscos. São desenhos


feitos por Izolda, reconheço os traços imediatamente, mas há também coisas
escritas. "Eu penso nele com mais frequência do que deveria, sei disso. Sei

que seria inapropriado por diversas razões, posso até imaginar as coisas
que o meu pai diria se soubesse como me sinto". Em outro pedaço, há "eu

vi M. hoje, meu estômago gelou quando seu olhar encontrou o


meu". Diversas partes estão rasgadas, riscadas e há coisas que não fazem

muito sentido. Eu passo algumas páginas, mas paro, não quero continuar
olhando.

— Onde encontrou isso?

— Um empregado da casa me entregou. Acho que sua "esposa" tentou


se livrar disso, mas não foi muito eficiente.

Eu sei exatamente o que minha avó espera que eu faça, mas ela deveria

me conhecer melhor do que isso. Deveria saber que eu não sou propenso a
rompantes, principalmente aos que ela tenta me provocar.

— O que a minha esposa escrevia antes de casar comigo não me


interessa, e nem devia interessar à senhora. Vó, por respeito ao fato de que

voltou para aquela casa desde que meu avô se foi, não vou pedir que saia da
casa, mas quero que entenda: não posso deixar minha esposa sob o mesmo

teto que a senhora quando sei que não a quer por perto. Então, ou a senhora
muda de atitude ou vamos ter um problema.

— Ameaçando velhinhas inocentes? — Mikhail pergunta abrindo a

porta.

Dou uma risada de descrença. Há toda uma lista de adjetivos que

podem ser usados para falar da minha avó; inocente não é um deles.
— Mikhail, agora que a reunião acabou, me deixe pedir que os

seguranças o escoltem até a saída, só pro caso de você não se perder pelos
corredores.

— Você tem tanto medo assim que eu encontre com a empregadinha?


Andreas, ela viria correndo se eu estalasse os dedos.

— Até a próxima reunião, Mikhail. Vó, pense sobre o que falei, tudo

bem? Conversamos quando eu voltar de viagem.

Eu permaneço na sala de reuniões e assisto enquanto eles se afastam

pelo corredor através da porta de vidro. Assim que sei que estou sozinho,
pego o envelope outra vez e vou até o meu escritório e coloco todo o

conteúdo na máquina de picotar papel. Faço isso querendo que as palavras


que disse à minha avó se tornem verdade no meu coração. O passado é o

passado, eu preciso pensar no presente, mas eu sei que colocar isso em


prática não é tão simples. Não com o meu histórico. Com o tempo, eu

aprendi que a pior parte de uma traição é a cicatriz que fica na capacidade
de confiança, e eu ainda estou tentando aprender a confiar outra vez.

***
— Está tudo bem com você? — Izolda pergunta. Ela está sentada ao
meu lado no jato com o caderno de desenho na mão. Enquanto isso, eu estou

com um tablet revisando alguns documentos contratuais da empresa. Eu não


tinha planejado trabalhar durante a viagem em momento algum, mas o que
minha vó me mostrou não saiu da minha cabeça, por mais que eu tenha

tentado não parecer abalado quando ela me mostrou o conteúdo do envelope.

— Sim — afirmo, voltando minha atenção para os contratos.

— Estou atrapalhando o seu trabalho? — ela questiona checando o


celular rapidamente.

— Não.

— Você pretende me dar respostas com mais de uma sílaba?

Olho para Izolda e me sinto mal por estar agindo indiferente com ela
sem nenhuma boa razão.

— Me desculpe — peço deixando o tablet de lado e pegando em sua


mão.

— Duas palavras, isso é um avanço — ela diz sorrindo. Eu me


aproximo dela e a envolvo em meus braços. Sinto o perfume de seus
cabelos, a textura macia de sua pele. "Meu estômago gelou quando seu

olhar encontrou o meu", isso não significa nada. Ela está comigo agora, só
comigo. Eu coloco minha mão em seu rosto e a beijo. Izolda abre seus lábios
para receber os meus, e o contato me faz relaxar. Izolda separa nossas bocas
lentamente e coloca suas mãos na minha nuca. — Não vai me dizer porque

está chateado?

— Eu estava chateado, mas você me beijou e tudo passou. Eu nem

lembro mais qual era a razão — digo. A resposta faz com que ela dê um
sorriso tímido, o sorriso que faz com que todo o sangue do meu corpo flua

numa só direção. — Você deveria continuar me beijando só por precaução.

Então, ela me beija outra vez e mais algumas até que precisamos voltar
às nossas posições iniciais e apertar os cintos para a aterrissagem.

Quando pergunto a Izolda qual a primeira coisa que ela deseja fazer
em Nova York, não fico surpreso quando ela diz que deseja ir ao Met. Nem

mesmo vamos ao hotel, nossas coisas são levadas para lá enquanto


descemos do carro na Quinta Avenida. Minha esposa olha o celular outra

vez, como se estivesse esperando uma mensagem ou ligação, parece


frustrada por alguns segundos, mas, depois, sorri e comenta que o Met está
com uma exposição de Francisco Goya e fala entusiasmada sobre o pintor
espanhol. Passamos a tarde toda no Met, explorando diversas das coleções

do Museu, e Izolda fica particularmente encantada com o trabalho de uma


pintora impressionista chamada Cecilia Beaux.
— Não é incrível como ela usa paleta de tons altos e vai dando ênfase
com cores complementares?

É um quadro bonito, com toda certeza. Uma mulher em luto, totalmente

em preto, é uma imagem poderosa, mas, fora isso, eu não faço a menor ideia
do que as coisas que Izolda está falando significam.

— Você é incrível — respondo. E é mesmo. O fato de que ela nunca


teve uma só aula de pintura e consegue desenhar e pintar com tanta beleza, o

modo como ela aprendeu toda a teoria sozinha, enfiada em nossa biblioteca
lendo livros enormes, mesmo tendo problemas de aprendizagem na infância,
tudo isso é surpreendente. Izolda tira os olhos do quadro e os coloca em
mim. Como é possível que eu perca o compasso só com um olhar?

— Obrigada por me trazer aqui — ela diz segurando no meu pulso. Eu

ergo minha mão trazendo a dela para comigo e coloco meus lábios nos nós
dos seus dedos. — Eu sei que você não costuma ficar longe do trabalho, e eu
só quero que saiba que aprecio que esteja fazendo isso por mim.

— Você não precisa me agradecer por isso Izolda, eu não estou aqui só
por você. Estou por mim também, eu quero estar aqui, quero estar com você.

Ela se inclina na minha direção e me beija, colocando as mãos ao


redor do meu corpo. Meu estômago ronca e Izolda dá uma risada erguendo a
cabeça para me encarar.
— Meu Deus, passamos a tarde toda aqui, já deve estar escuro lá fora.
Você está com fome?

— Você nem imagina — digo. Ela puxa minha gravata como se


estivesse tentando me recriminar pelo comentário malicioso, mas está
sorrindo.

— Vamos comer alguma coisa. Você é grande demais e, se passar mal


de fome, precisaria de seis de mim para carregá-lo, com esforço.

Fazemos uma breve refeição e vamos para o hotel. Digo a Izolda que
precisamos nos trocar, pois tenho uma surpresa.

Escolhi um hotel que fica de frente ao Central Park. Ficamos na


cobertura com uma vista incrível e Izolda parece maravilhada quando
entramos em nosso quarto. Ela para de frente à janela, e eu caminho e vou

até ela, abraçando-a por trás. Izolda encosta sua cabeça no meu peito.
Ficamos ali por um tempo até que um telefone começa a tocar no quarto.
Izolda se vira rapidamente e vai até a mesa onde deixamos nossos celulares.
Ela me olha tentando disfarçar seu desapontamento.

— É o seu — ela diz. — Viggo.

— Eu vou atender enquanto você toma banho, tudo bem? Não podemos
nos atrasar.
Ela acena positivamente e vai para o banheiro enquanto eu fico

falando com Viggo. Meu ex-sogro precisa da liberação de uma medição da


obra para prosseguir com os trabalhos na nova refinaria e tem algumas
dúvidas sobre alguns termos dos novos contratos com fornecedores. Eu
explico tudo um pouco impaciente enquanto começo a tirar meu terno. A
conversa acaba demorando mais do que o esperado e, quando finalmente

digo a ele que qualquer outra questão, ele pode resolver com Minerva, ao
menos pelos próximos dias, Viggo agradece e eu desligo.

Quando coloco o telefone de volta no lugar, o nome de Vladmir está na


tela do celular de Izolda. O telefone para de tocar antes que possa fazer

qualquer coisa. Decido não comentar nada com ela. Izolda verá a chamada
quando sair, de qualquer forma, e eu não quero começar uma conversa que
possa se transformar numa briga.

Fico só de cueca e caminho até o banheiro, batendo na porta. Izolda


abre-a para mim. Ela está enrolada numa toalha e seus seios parecem prestes

a saltar pelo nó apertado do tecido.

Izolda também passa os olhos pelo meu corpo, e eu coloco minhas


mãos na cintura dela, levando-a para o balcão da pia. Sento-a no mármore e
começo a beijá-la – na boca, no pescoço, no ombro. Tudo que eu quero é

soltar sua toalha e continuar beijando todo o seu corpo. Izolda colocou as
duas mãos nos meu peito e afastou nossas bocas. Olhou nos meus olhos
enquanto sua mão desceu lentamente pelo meu corpo e isso foi suficiente

para que eu ficasse totalmente excitado.

— Você é absurdamente bonito — ela disse tocando os gomos do meu


abdome. Eu não consigo ficar sério frente ao que ela disse. — E eu agradeço
por estar sendo paciente comigo.

Sei que essa é forma sutil dela dizer que deveríamos parar, então levo

meus lábios à testa dela e a beijo. Izolda move suas mãos para as minhas
costas e afunda a cabeça do meu peito.

— Vá se vestir, querida — eu sussurro em seu ouvido. — Você não vai


querer se atrasar.

— Não vai mesmo dizer aonde vamos?

— Não, mas você controla nossos destinos por todo o resto da viagem,
tudo bem?

— Combinado — ela diz sorrindo.

Eu entro no chuveiro e deixo que a água gelada acalme meu corpo, mas
isso não é muito eficaz quando tudo em que consigo pensar é na mão de

Izolda no meu corpo, na sua boca, naqueles peitos maravilhosos e em todas


as coisas que quero fazer com ela quando ela me permitir.

A primeira parte da surpresa acaba sendo bem melhor recebida do que


eu tinha imaginado. Levo Izolda para assistir a um show da Broadway. Ela
fica encantada com a apresentação, e eu, com o olhar dela. Quando deixamos

o teatro, eu a levo para o Central Park, onde há uma pequena mesa nos
esperando em frente ao carrossel do parque.

— Meu Deus, isso é sério? — ela pergunta claramente animada. —


Como você conseguiu isso?

— Um cara me devia um favor — conto sorrindo. Vou até o homem


nos esperando e dou-lhe uma gorjeta dizendo que ele pode voltar em uma
hora. Quero ficar a sós com a minha esposa.

Estendo minha mão para Izolda, e nossos dedos se entrelaçam. Eu a


levo até o carrossel e desço para ligar a máquina, que começa a girar

lentamente. Vou até a mesa e nos sirvo do vinho que está no balde de gelo
para só então me sentar ao lado dela numa carruagem. Ela olha para a taça
de vinho e, depois, para mim, como se estivesse ponderando se deveria ou
não beber.

— Não precisa beber se não quiser — digo.

— Eu quero, eu só... — Ela coloca os dedos nos meus cabelos


levemente. E eu me pergunto sobre as razões do seu receio. Ela leva a taça
até a boca e toma um gole. — Não importa, eu sei que você vai cuidar de
mim — ela diz sorrindo.
— Cuidar de você é o que mais me importa, Izolda — confesso. Izolda
me olha outra vez e muda de lado no carrossel, sentando bem mais perto de
mim. É a mais pura verdade: quando eu olho para ela, tudo que quero é
protegê-la, não só pela promessa que fiz a Sergei, mas porque preciso disso,

preciso saber que ela está bem para que eu mesmo esteja bem. Ela coloca
suas pernas por cima da minha e aproxima seus lábios dos meus.

— Beije-me — ela pede.

E é nesse momento que eu tenho a certeza de que o que sinto por ela é
único. Eu poderia passar a vida inteira com ela assim, sem me importar com

mais nada. Eu tomo coragem e digo isso em voz volta. Izolda morde o lábio
enquanto me encara, parecendo surpresa com as palavras. Eu mesmo também
estou.

Então, percebo que há algo mais que precisa ser dito, algo que achei
que jamais voltaria a dizer: — Eu amo você.

Vejo seus olhos ficarem marejados e o sorriso mais lindo que já vi em


minha vida se abrir diante de mim.
Eu acordo nos braços de Andreas, passo minha mão pelos músculos do

seu ombro e desço-a para os bíceps. Penso em como a noite passada foi algo

digno de um conto de fadas: o show, o passeio no carrossel, nosso jantar no


parque, a forma como ele me beijou, o modo como me tocou quando

voltamos para o hotel. Olho para o volume na sua boxer e penso em como

tive coragem de levar minha mão até ele na noite passada. Penso na sensação
de sentir Andreas daquela forma, tão rígido, pronto para mim. Apenas a

memória fazia todo meu corpo tremer de desejo.


Eu estava tão envolta na noite passada, tão excitada, que quase permiti

que ele finalmente me fizesse sua, que também fosse meu, mas há esse grito

constante na minha cabeça que diz que, no momento que ele perceber que eu

nunca dormi com seu irmão, as coisas vão se complicar. Ele não vai

entender quando eu não puder dizer a verdade, e Andreas é o tipo de pessoa


que vai querer essa verdade. A última coisa que quero é magoá-lo,

principalmente agora que ele disse o que eu sempre sonhei ouvir de sua

boca: — Eu amo você.

E mesmo que eu tomasse a decisão de não mais guardar o segredo de

Elke, posso mesmo dizer que Andreas acreditaria em mim só porque disse

me amar? A maioria das pessoas não acreditaria. Elas diriam que Mikhail é

bonito demais, rico demais, que não precisaria forçar alguém a dormir com
ele. Elas diriam que eu quero destruir sua reputação, acabar com sua vida,

que a honra de um homem é algo sério demais para se brincar. Quantas

mulheres não falaram depois de um assédio e foram desacreditadas? Quem

sou eu contra Mikhail? Quem acreditaria na minha palavra. E, pior, toda a

narrativa seria uma denúncia de segunda mão sem a presença de Elke, sem a

verdadeira vítima para denunciar?

Essa é mais uma razão para encontrar Elke. Se eu a encontrar, se ela

me deixar contar a verdade para Andreas, se ela aceitar contar tudo à

Polícia, talvez as coisas sejam diferentes. Preciso colocar meu plano em


prática; não é o melhor dos planos, mas é o único que eu tenho. É a única

informação sobre Elke em meses.

Acordo Andreas beijando seu rosto. Ele fala meu nome e me segura

pela cintura, puxando meu corpo para cima do seu. Mesmo sonolento, ele faz

isso com tanta maestria. O movimento faz meu estômago gelar de excitação.

— Você não pode me acordar assim — ele diz apertando minha coxa e

beijando o meu rosto. Sua mão sobe pela minha cintura, passando pelo meu

seio por cima da camisola e chegando ao meu pescoço. — Puta merda, como

você é linda, é a melhor visão que alguém pode ter de manhã.

Andreas quase nunca diz palavrões, mas até mesmo eles parecem

bonitos saindo da sua boca.

— Bom dia, dorminhoco.

— Bom dia, meu amor — ele diz sorrindo. Sinto o volume de sua
cueca enrijecendo e quero tocá-lo outra vez, como na noite passada. Quero

assistir ao prazer em seu rosto enquanto o estimulo e ouvi-lo dizendo meu

nome daquela forma rouca que revirou as minhas estranhas, mas preciso

manter o foco.

— Vamos, levante, já são dez da manhã. Nunca o vi dormir até tão

tarde. E temos coisas para fazer.


Enquanto Andreas se arruma, eu pesquiso o endereço que Vladmir me

enviou, que não fica tão longe de onde estamos. Quando entramos no carro,

eu digo ao motorista que vamos para a ponte do Brooklyn, e Andreas me


olha sem entender.

— A ponte do Brooklyn?

— Sim.

— É mais bonita à noite — ele retruca.

— Você disse que eu poderia escolher.

— Disse — ele diz ajustando a manga da jaqueta. Andreas sem terno e

gravata é uma visão rara, mas também é uma visão de dar água na boca. Ele

está com uma camisa branca simples e uma jaqueta de couro, os óculos

jogados na gola da camisa. Parece um modelo de catálogos de grifes

italianas. — Desculpe-me, você que manda — ele fala levantando as mãos

em um gesto de rendição.

Eu tento rir, mas estou apreensiva demais. Ele pergunta se pode ao

menos saber o que vamos fazer na ponte no horário de rush e eu sei que ele

está desconfiado de alguma coisa.

— Vamos apenas parar na ponte por alguns minutos. Depois, quero ver

o Parque Walt Whitman — conto. Eu tinha planejado minimamente a coisa

toda. O parque fica a apenas alguns metros das instalações da NYU, na qual,
segundo o que Vladmir conseguiu descobrir, Elke está. Ele acreditaria no

meu interesse por Walt Whitman, e eu tinha lido diversos poemas quando era

mais nova, antes de entender que o poeta era racista e supremacista branco.

— Você conhece o parque?

— Não, mas, mesmo que conhecesse, ver com você seria melhor —

ele afirma beijando meu ombro.

Eu tento não comer as pontas dos meus dedos de tão nervosa enquanto

o motorista para o carro depois da ponte. Olho para o prédio do outro lado

do parque, ele é a única pista que tenho da minha amiga. Ela pode estar lá

dentro agora, posso estar a poucos minutos de abraçá-la outra vez, de ter

certeza de que ela está bem. Estou pensando em como fazer com que

Andreas vá até lá comigo quando ele pega na minha mão e chama meu nome.

— Você vai machucar os dedos — ele diz tirando a outra mão da

minha boca. — Venha. — Ele atravessa a rua em direção ao prédio de

residência da NYU, e eu sinto meu corpo gelar. Andreas para assim que

chegamos à calçada e me encara. — Não vai entrar?

— Como você....

— Eu não sou idiota. Eu sei que era isso que você queria desde o

momento em que disse Nova York quando perguntei aonde gostaria de ir.

Sem contar que você não iria querer vir ao parque Walt Whitman. Seu pai me
falou sobre a redação que você escreveu sobre a manutenção de mitos

brancos na literatura, em que criticava o trabalho dele, e sobre como aquilo

causou problemas na escola.

Eu engulo seco.

— Andreas, me desculpe, eu não queria enganá-lo. Eu só...

— Está tudo bem. Ela é sua amiga e você sente saudades, apenas entre

e veja a Elke. Eu vou esperá-la aqui.

— Você pode vir comigo — digo.

— Izolda, eu não sei por que você fez questão de fazer segredo, mas

claramente há algo que é só entre vocês, então é melhor assim. Eu espero

você aqui. E se precisar de mim, é só ligar. — Andreas beija o topo da

minha cabeça, e eu o abraço.

— Eu amo você, Andreas. Eu quero que nunca se esqueça disso —

digo e o vejo fechar os olhos como se saboreasse cada palavra da

declaração que saiu da minha boca, e os lábios de meu marido se abrem um

sorriso lindo.

Não tinha dito de volta na noite passada, mas agora as palavras saíram

naturalmente. Como se cada fibra do meu corpo estivesse dizendo-as em

coro. E é verdade, eu o amo. Sempre amei, mas antes era um amor

idealizado; agora, é tangível, real. E é bom poder dizer isso em voz alta.
Ele abre os olhos novamente e me beija apaixonadamente. E eu

retribuo com todo o amor de meu coração, que sempre só bateu por ele. Pelo

meu Andreas.

— Você não imagina o quanto eu desejei que o meu maior sonho se

tornasse realidade. E meu maior sonho é ter o seu amor, Izolda. Você tem o

meu coração. Você é o meu coração. Há mais tempo do que pode imaginar...

***

Eu entro no prédio e vou até uma pequena recepção em que um homem

negro de cabelos grisalhos me deseja bom dia. Eu respondo sorrindo e digo


que estou ali para ver uma aluna. Ele explica que estudantes não podem

receber visitas em seus quartos, mas que pode interfonar e avisar que estou
na recepção. Digo o número do quarto e nome de Elke, ele me aponta para o

lobby, sento em uma das poltronas e espero, batendo meu pé no chão de


forma impaciente.

Demora algum tempo para que alguém apareça, e uma garota de

cabelos cacheados aparece e pergunta se eu estou aqui por Elke. Seu inglês
tem um sotaque britânico forte e eu levo um pouco de tempo para entender o

que ela está dizendo.

— Sim — respondo ficando de pé.


— Eu achei que ninguém viria — ela diz, além de algo mais que não
consigo entender. — As coisas delas não estão arrumadas, mas, se você

puder esperar um pouco.

— As coisas delas? — questiono.

— Sim, não foi por isso que veio? Quando o porteiro disse o nome

dela, achei que finalmente tivessem mandado buscar as malas da Elke. Já faz
meses desde que ela...

— Desculpe-me, eu não estou entendendo. A Elke não está aqui?

— Não. Quem é você mesmo? — Ela quer saber, parecendo tão


confusa quanto eu.

— Sou amiga dela. — Eu me pergunto se não estou entendendo bem o


inglês da garota. — Você pode esperar um minuto?

Pego meu telefone e ligo para Andreas. A garota me olha enquanto falo

em russo, e, em menos de um minuto, Andreas está passando pela porta e


caminhando em nossa direção. Seus passos firmes me deixam mais calma e,

assim que se aproxima, ele coloca sua mão em meu ombro e me olha com
preocupação.

— Está tudo bem?

— Você pode falar com ela por mim? Acho que não estou entendendo-
a direito. Não sei onde a Elke está e ela fica falando sobre malas.
Andreas cumprimenta a garota que olha para ele com certa admiração,
mas eu nem mesmo consigo ficar irritada com isso agora. Ele pergunta o

nome dela e de onde a garota é – como isso fizesse alguma diferença –, mas
então entendo que ele está tentando deixá-la mais confortável, ganhar alguma

confiança. A garota fala e eu só entendo "Welsh" o que me indica que seu


sotaque é galês. Andreas pede para que ela fale um pouco mais devagar e

pergunta como ela conhece Elke.

— Alguns meses atrás, quando chegou para fazer o curso, ela ficou no

mesmo quarto que eu. Elke era divertida, animada, queria sair para todos os
lugares nos primeiros dias e, como eu também era recém-chegada, nós fomos
conhecer alguns lugares juntas. Eu percebi que havia alguma coisa errada

com ela porque, às vezes, parecia animada demais, como se estivesse


forçando, ou então ficava com um olhar vazio, distante do nada, mas passava

rápido. Até que tudo mudou. Ela foi ficando cada vez mais reservada, passou
a não sair do quarto, a perder as aulas, e houve esse dia em que eu estava

chegando da universidade e ela estava sendo levada embora por uma


ambulância, mas ela não parecia estar passando mal, mas sim em choque.

— E ela nunca mais voltou, Emma?

— Não. As coisas dela estão aqui até hoje, é isso que estava dizendo
para a sua amiga – ela fala apontando na minha direção. — Achei que ela

tinha vindo para pegar os pertences da Elke.


— Não, a minha esposa é amiga dela, e estamos em Nova York

visitando e ela quis passar aqui e cumprimentar a Elke. Obrigado pela


informação, Emma, e desculpe-nos por tomar seu tempo.

— Sem problemas — ela diz sorrindo.

Eu saio do prédio sem conseguir fazer sentido daquela informação. Se


ela foi para um hospital, porque não voltou para casa? Que tipo de coisa

pode ter acontecido? Mikhail pode ter vindo atrás dela? E se ele fez algo a
ela outra vez? Caminho até o parque com Andreas ao meu lado, então me

sento em um banco e começo a chorar. Andreas senta-se ao meu lado e eu


apoio minha cabeça em seu peito e continuo chorando.

Eu sabia que havia algo de errado, sabia que algo tinha que ter

acontecido para que ela não desse notícias dessa forma, mas onde ela
poderia estar agora?

— Izolda... — Andreas me chama depois de um tempo. Levanto a


cabeça, e ele passa as mãos no meu rosto, secando-o. — O que você não

está me contando? — ele pergunta. — Eu quero ajudar, mas não posso fazer
isso se você não me explicar o que está acontecendo aqui.

Eu quero tanto dizer a verdade, mas tanto, e isso me faz chorar ainda

mais.
— Andreas, eu... não... — O choro me invade com mais força. Sinto

uma tristeza enorme. Imagino Elke sozinha, por dias, deitada numa cama
estranha, pensando no que aconteceu com ela, revivendo aquele pesadelo. Se

eu mesma ainda tenho pesadelos com as mãos de Mikhail em mim, mal posso
imaginar os efeitos do que ele fez com ela.

— Tudo bem — ele diz me abraçando. — Não precisa falar se não


quiser, mas eu estou aqui, por você, pode confiar em mim.

— Eu confio em você — digo entre as lágrimas —, mas não é o meu

segredo, então não posso contar, você entende isso?

— Claro que entendo — ele diz beijando a minha testa.

— Você quer voltar para o hotel e tentar descansar um pouco?

Eu aceno positivamente e ele me ajuda a levantar. Voltamos para o


hotel, e eu durmo pelo resto da manhã e parte da tarde. Meu sono é povoado

de pesadelos terríveis, pesadelos nos quais reencontro Elke e ela está


grávida de Mikhail, ou em que ela não consegue mais falar, como se o que

ele fez tivesse levado sua voz.

Eu acordo no meio da tarde com Andreas me chamando. Ele diz que eu


preciso comer alguma coisa e que precisamos conversar. Eu me sento na

cama e ele me traz uma bandeja com uma sopa.


— Quando eu era criança e algo acontecia — ele começa a dizer —,
sua mãe sempre me fazia um prato de sopa e dizia que, com o estômago

aquecido, o sofrimento sempre parece um pouquinho menor.

— Ela dizia isso mesmo — eu afirmo sorrindo. Andreas beija minha


testa e me diz para comer. Eu faço o que ele pede, mesmo sem estar com

fome. Sei que minha falta de apetite é, na verdade, uma consequência das
notícias ruins. Assim que termino, ele retira a bandeja e se senta na ponta da

cama, uma das mãos no meu joelho.

— Eu sei que você não pode me contar o que está acontecendo e eu

respeito isso, mas toda essa história com a Elke é muito estranha. Então, eu
liguei para o Pavlova e perguntei onde a Elke estava, disse que estamos na
cidade e que queria pedir uma indicação. Ele me deu o mesmo endereço

para onde fomos, o que significa que ou ele está mentindo, ou realmente
acredita que a filha esteja aqui. Eu não disse nada porque esse não é o tipo

de assunto do qual se trata ao telefone, mas, assim que voltarmos, eu vou


conversar com ele se estiver tudo bem por você.

Aceno positivamente e passo meus braços pelo pescoço de Andreas.


Esse homem não existe de tão perfeito e isso faz com que eu me sinta pior

por não poder contar a verdade.


— Obrigada — eu digo em seu ouvido. — E sinto muito por arruinar a
nossa viagem.

— Você não arruinou nada — ele diz afastando a cabeça para me


encarar.

Passamos o resto do dia na cama, vendo comédias românticas juntos.

Andreas é o tipo de pessoa que assiste apenas a filmes clássicos, quando os


assiste, mas ele está lá, fazendo aquilo por mim. Vendo um filme sobre um

mocinho inglês que se apaixona por uma atriz americana e, depois, outro
sobre um casal que se apaixona em Nova York, mas só tem um dia para

passar juntos.

Todas essas histórias de amor parecem bobas perto do que eu sinto

por Andreas. Deitada nos braços dele, do meu marido, aos poucos, tudo vai
ganhando perspectiva. Minha mãe podia ter razão sobre o efeito de uma boa

sopa, mas o efeito dos braços da pessoa que você ama, esse, sim, consegue
fazer toda a diferença.

Voltamos para a Rússia depois de conhecer um pouco mais da cidade.


Eu quis desfrutar da companhia de Andreas e vi como meu marido ficou feliz

quando ele me perguntou se eu preferia voltar um dia antes do previsto. Ele


sentia que eu fiquei triste, mas eu não faria isso com ele. Não faria isso
conosco.
Não desperdiçaria a chance de passar mais tempo só para nós dois.
Eram raras as oportunidades que tínhamos de esquecer tudo ao nosso redor e

apenas ser um casal recém-casado como qualquer outro. Sem o sobrenome


Orlov pesando sobre nós. Sem a presença maléfica de Mikhail pairando
sobre nós. Sem todo o resto.

Ali, naquela cidade tão bonita, e mais tarde, de volta ao nosso quarto
no hotel, voltando de um dia inteiro vendo um mundo novo diante de mim

sendo apresentado por Andreas a mim, eu senti o amor de meu marido em


cada pequeno gesto, em cada olhar gentil direcionado a mim. E torço para
que ele tenha sentido todo o amor que guardo em meu peito por ele também.
Nova York sempre ficaria em meu coração como um lugar especial onde

pude, por algum tempo, ser plenamente feliz ao lado do homem que eu amo.

Mas voltamos para a realidade. A vida exigia isso de nós.

Na manhã do domingo, eu acordei em nossa cama, sozinha e, quando


desci as escadas, a governanta me disse: "O senhor Orlov está na piscina".
Fui até a piscina coberta e sentei-me na beirada com os pés na água aquecida

enquanto o observei dar voltas nas raias sem nem ao menos registrar minha
presença. Só quando ele voltou totalmente à superfície, no lado oposto ao
que estou sentada, ele me notou e abriu um sorriso.

Andreas nadou até mim e colocou as mãos nos meus tornozelos.


— Bom dia, está se sentindo melhor?

— Sim — digo sorrindo.

— Quer entrar aqui comigo? — ele pergunta sorrindo. Olho para a

minha roupa – estou de pijama –, calças de algodão e uma camisa de manga


longa.

— Não estou vestida para um banho de piscina — argumento.

— É só você tirar isso — Andreas diz.

Eu mantenho meu olhar em Andreas e percebo que não quero dizer

não. Fico de pé e tiro minha roupa, ficando apenas em trajes íntimos, e me


jogo na piscina. Eu nado para longe de Andreas e volto à superfície do outro
lado. Quando ergo a cabeça, ele não está mais no mesmo lugar, então sinto
suas mãos na minha cintura, e ele aparece na minha frente e me beija. O

beijo começa suave, mas rapidamente se torna intenso e provocante.

Andreas nos leva para um ponto mais raso da piscina, o suficiente para
que possamos colocar nossos pés no chão, e sua mão vai para o meu sutiã e
estimula o meu mamilo enquanto ele continua me beijando. Ele mergulha e
sua boca substitui a mão no meio seio, fazendo-o escapar o sutiã. A mão, por

sua vez, vai para minha calcinha, e seu dedo me invade com uma pressão
deliciosa. Ele sobe por ar enquanto o dedo continua se movendo, um outro
dedo passa a fazer companhia ao primeiro, e eu sei que isso já é mais do que
eu posso suportar. Os meus próprios dedos são muito mais finos e eu me

pergunto se ele pode notar algo com esse contato.

Fico tensa e Andreas parece perceber.

— Você quer que eu pare? — ele pergunta encostando a cabeça na


minha. Eu hesito e isso é suficiente para que ele tire seus dedos de mim. Eu
me sinto frustrada e imagino que ele também se sinta dessa forma, mas

Andreas não demonstra nenhum traço de irritação. A imagem de Mikhail


invade minha mente, sua frustração no dia que o interrompi com alguém na
cozinha. Eu procuro qualquer coisa daquilo no rosto de Andreas, mas
simplesmente não há e isso me deixa feliz. Ele me beija outra vez e coloca a
mão na minha cintura.

— Liguei para o Pavlova mais cedo, ele vai passar amanhã na


empresa. Conversarei com ele sobre Elke. Enquanto isso, comece a pintar o
mural, não quero que passe o dia triste pensando nisso, tudo bem? — ele
pede.

Eu aceno positivamente, e saímos da piscina para tomar café da manhã

juntos.

***

— E ele ficou de conversar com Pavlova? — Vladmir pergunta


enquanto abro uma lata de tinta.
— Sim — Afirmo misturando o conteúdo da lata.

— Eu não consigo entender — Vladmir afirma. — Izolda, o que pode


tê-la abalado dessa forma? — Vladmir me encara com seu rosto angelical, e
eu me sinto mal por também ter que mentir para ele. — Meu pai acha que
Elke está se escondendo para não se casar.

— Você também acha isso? — questiono. Eu passo o pincel na tinta

verde e começo a fazer a cobertura da base da pintura. O verde sozinho não


vai ficar no tom que eu queria, então faço uma nota mental para pedir por um
mais escuro.

— Não sei. Elke é sua amiga, então me desculpe, mas ela sempre foi
mimada e cheia de vontades. Talvez seja isso.

— Eu não contei tudo — afirmo me virando para encará-lo. Conto-lhe


sobre o que a colega de quarto de Elke disse, sobre ela ter sido levada por
uma ambulância. Eu não pretendia contar essa parte porque parece íntimo
demais, mas não queria que ele ficasse pensando que Elke estava se

divertindo e evitando um compromisso. Não que isso não pudesse ser


verdade em outras circunstâncias, mas não posso ouvi-lo dizendo tais coisas
enquanto só consigo imaginar que Elke está sofrendo.

Vladmir me pede desculpas e diz que gostaria de ficar sabendo qual a


explicação de Pavlova para tudo aquilo. Eu digo a ele que farei isso, que o
atualizarei, e ele fala que vai me deixar em paz para pintar. Aprecio seu

gesto. Pintar é algo que gosto de fazer sozinha, com tranquilidade,


principalmente algo do tamanho do que planejei para essas paredes. Eu
nunca fiz algo assim antes e ter alguém perto me deixaria mais nervosa.

Passo a manhã inteira pintando e só paro para comer quando uma

garota entra com almoço, dizendo que Andreas enviou. Eu dou um sorriso e
agradeço. Além da comida, há um bilhete de Andreas que diz "Até mesmo
Michelangelo fazia pausas".

No fim da tarde, Andreas aparece quando boa parte da primeira


parede está pintada, embora ainda faltem alguns acabamentos, e eu estou na

escada fazendo acabamentos no teto. Não sei por quanto tempo ele estava lá
até eu notar sua presença, mas, quando o recrimino por chegar
sorrateiramente, ele diz que não queria me interromper. Eu desço da escada
e deixo os materiais de lado para olhar para o lindo homem que é meu

marido.

— Está ficando muito bom — ele diz olhando para o desenho.

— Sua opinião sobre a minha arte não vale — digo sorrindo.

— É sobre você? Eu posso dizer que você está absurdamente linda


com esse macacão e coberta de tinta? — Andreas se aproxima e pega na

minha cintura.
— Andreas, você vai sujar o seu terno.

— Tudo bem, é só um terno — ele responde me abraçando. O fato de


que Andreas Orlov, maníaco por organização e por todas as coisas em seu
devido lugar, não se importa de sujar seu terno para me abraçar acende um
alerta gigante na minha cabeça. Isso diz "eu amo você" com mais força do

que as palavras propriamente ditas. Andreas me dá um beijo e se afasta,


levantando um dos lençóis, que estão cobrindo o sofá, para se sentar. — Eu
falei com Pavlova.

— E então?

— Sente aqui — ele pede. Eu faço o que ele diz e Andreas coloca a

mão sobre a minha. — Ele não fazia a menor ideia de que ela não estava na
universidade, assim como não sabe o que aconteceu com ela, mas pediu para
que mantivéssemos a discrição. Viggo não pode saber sobre isso, ou
aparentemente eles terão problemas. A parceria deles já anda abalada e esse

casamento entre Elke e Vladmir era importante para ele. Eu não estou
dizendo isso para que você atenda ao pedido dele, você pode fazer o que
bem entender, só queria que soubesse o que ele pediu.

— Eu já contei ao Vladmir.

— Tudo bem. Esse é um problema deles, não nosso.

— Ele vai fazer alguma coisa, tentar encontrá-la?


— Vai, ele parecia preocupado. Claro que pode estar mentindo sobre
tudo. Com ele e Viggo, nunca se sabe. — Ele passa a mão nos meus cabelos
— Eu só queria que houvesse mais que eu pudesse fazer, eu detesto ver essa
tristeza no seu olhar.

— Você pode me abraçar e dizer que vai ficar comigo.

— Sempre — ele responde passando os braços ao redor do meu


corpo.
Minerva insiste na realização de um coquetel para inaugurar o centro

de recreação, e Andreas me explica que é importante porque isso faz parte

da estratégia de mídia da empresa. Responsabilidade ambiental é o foco da


linha produtiva, mas, no escritório, é a social que segue como principal foco.

Eu confesso que estou nervosa porque pessoas de fora estariam


julgando as paredes que pintei e, mesmo que pintar paredes de

estabelecimentos comerciais não seja o sonho de pintores, aquilo é grande

para mim, que nunca pensei em pintar como uma real possibilidade de

carreira.
— Izolda, seu trabalho está fantástico. É mais do que as nossas

paredes merecem — Minerva diz. — Seja menos modesta, você pode. Se eu

tivesse o seu talento, não teria modéstia nenhuma.

— Você já não tem modéstia alguma — Andreas diz, fazendo com que

Minerva ria. Ela contorce o nariz para ele no processo e diz que precisa

checar se está tudo certo para o coquetel que está prestes a começar.

Ela sai, me deixando sozinha com Andreas no escritório do meu

marido, e eu me levanto do sofá e sento à mesa, perto dele. Andreas passa a

mão na minha coxa carinhosamente, por cima do vestido, e eu sinto essa

vontade de abrir as minhas pernas na frente dele. Não sei por mais quanto

tempo vou conseguir reprimir o meu desejo por Andreas. Qualquer momento
a sós com ele tem se tornado excruciante; dormir na mesma cama que ele

sem pedir para que ele me faça sua tem sido uma tortura. Com a exceção dos
pesadelos, eu durmo e acordo sonhando com o momento em que serei dele.

Eu corro a mão pela minha perna e puxo a ponta do vestido, deixando-

o um pouco acima do joelho. Andreas me assiste, parecendo surpreso, então

eu movo minha coxa direita um pouco, o suficiente para que ele tenha
espaço. Ao contrário do que eu esperava, ele não coloca suas mãos em mim.

Andreas levanta e vai até a porta, trancando-a. O som da fechadura sendo

travada estala algo dentro de mim, eu gostaria de fazer amor com ele aqui,

agora mesmo.
Meu marido sorri e volta para mim. Ainda estou na mesma posição,

paralisada pela excitação que percorre meu corpo. E ele mal me tocou,

imagino como será quando chegarmos aos finalmente. Andreas para na minha

frente e me beija enquanto coloca suas mãos na lateral das minhas pernas,

por dentro do vestido. Eu jogo minha cabeça para trás quando sinto seus

dedos na renda da minha calcinha e me levanto um pouco para que ele retire
a peça com mais facilidade. Em um movimento rápido, ele se senta outra

vez, sem dizer uma palavra, e me puxa para que meu corpo fique mais perto

dele.

Andreas passa a língua nos lábios ainda me olhando e só então sua


cabeça se inclina. No momento que sua barba roça na parte inferior da minha

coxa, eu já solto um suspiro que nem sabia prender. Andreas avança e eu me

seguro na borda da mesa, perdendo totalmente qualquer controle que ainda

pudesse ter. Sua boca está em toda minha vulva, sugando-a, enquanto a

língua trabalha arduamente. Eu respiro fundo e mal reconheço os sons que

saem da minha boca em momentos como esse.

Puxo o ar tentando me controlar. Não preciso ter experiência para

avaliar o quão bom ele é nisso, a forma como meu corpo responde é tudo

que preciso. Sua língua é grossa, habilidosa, e o fato dele ser tão

perfeccionista, tão detalhista, nunca foi tão bem-vindo quanto nos momentos

em que sua boca está no meio das minhas pernas.


Eu começo a sentir o clímax se aproximando e Andreas parece

conhecer bem como meu corpo funciona, porque intensifica os movimentos

no mesmo ponto, jogando uma onda de prazer. Eu gemo, tentando não fazer
barulho, mas é mais forte que eu. Ele continua um pouco mesmo depois que

estou satisfeita e eu gosto da sensação. Minhas pernas estão trêmulas e eu

pego em seu cabelo e chamo seu nome.

Andreas levanta e me beija. Sinto meu gosto em sua boca e levo minha

mão para sua calça, tentando soltar seu cinto. Quero dizer “eu quero você”, é

isso que minha cabeça está gritando, mas, por alguma razão, penso no que

ele vai achar de mim se eu disser isso. Eu devo estar sendo idiota, mas não

consigo mudar de ideia. Em vez disso, digo que o amo. É tão verdadeiro

quanto “eu quero você” e me esforço na tarefa de tentar despi-lo.

Alguém bate à porta, e Andreas me olha sorrindo, de forma irônica,

depois de soltar um “merda”.

— Mais tarde, se você ainda quiser, podemos continuar isso no nosso

quarto — ele afirma. Eu aceno positivamente e passo meu polegar na sua

boca, limpando qualquer excesso do meu gozo.

— Acha que me ouviram? — pergunto.

— Querida, faça todo o barulho que quiser, sempre. Se você não

estiver gostando, qual o ponto disso tudo? — ele pergunta. Então, Andreas
me beija outra vez e, quando nossas bocas se separam, ele não se afasta

totalmente, fica apenas parado, com o rosto bem próximo ao meu como se

estivesse apreendendo meu cheiro. Eu coloco as mãos nas extremidades da

jaqueta do seu paletó e quero trazê-lo de volta, mas o telefone toca, nos

jogando na realidade, e ele rosna um “sim” ao atender.

— Senhor, estão esperando para começar o coquetel — a voz da

secretária diz do outro lado da linha.

— Já estou indo — ele responde.

Eu me levanto para ir até o seu banheiro enquanto penso em como essa

vai ser uma noite longa.

Estou andando de mãos dadas com Andreas, preste a entrar no centro

de recreação, quando Minerva nos intercepta. Ela olha para mim e Andreas

como se soubesse o que estávamos fazendo.

— Seu paletó está amassado, e o seu vestido, também — ela diz. —

Mas temos problemas maiores. Não reaja mal, sorria e finja que é a coisa

mais normal do mundo, mas seu irmão está aqui. Veio como convidado da
sua avó, e não, não podemos expulsá-lo na frente de metade da imprensa da

cidade. Então, apenas respire fundo e finja que vocês se amam. Seria

estranho se não o cumprimentasse.


Andreas segura a minha mão de forma um pouco mais firme enquanto

escuta as notícias. Sua mandíbula fica rígida. Minerva passa a mão no paletó

dele, tentando desfazer o vinco deixado pelas minhas mãos.

— Andreas, eu preciso de um sinal de concordância ou, então, que

você me diga que quer cancelar tudo. Posso dizer que houve um problema

urgente na refinaria.

— Vamos ficar bem — eu digo. Ambos me olham. Minerva parece

satisfeita com a resposta; já Andreas fica apreensivo.

— Você quer que eu puxe o alarme de incêndio ou que inaugure sem

vocês?

— Não — ele finalmente responde. — Eu lido com Mikhail há quase

três décadas, posso lidar com ele por uma ou duas horas. E Izolda e toda a
equipe trabalharam muito por esse centro, vamos inaugurá-lo.

— Ótimo! Há mais uma coisinha — ela fala mordendo o lábio. — Sua

ex também veio, acompanhando o pai, ou seja, é uma espécie de convenção

das bruxas.

Andreas passa a mão livre pelos cabelos e dá uma risada.

— Claro que veio — ele diz. Um garçom está passando com bebidas,

e ele para o homem. Andreas toma uma dose de vodka de uma só vez, depois

mais outra. Minerva o recrimina, e ele diz que precisaria de mais do que
isso para fazer com que não conseguisse dar um discurso, então entramos na

sala.

A primeira coisa que eu noto é que muitas das pessoas estão fazendo

fotos no mural. A alegria desse momento quase me faz esquecer da

composição dos presentes no local. Isso e os flashes de algumas câmeras

sendo disparadas em nossa direção. Andreas sorri e eu faço o mesmo.

— Eu falei que as pessoas iam adorar — Minerva diz entredentes,


parada ao meu lado. — Misturem-se, sejam simpáticos. Daqui a pouco,

começamos oficialmente — Ela diz, desaparecendo no meio dos


convidados.

— Está mesmo lindo — Andreas afirma. Ele ainda não tinha visto tudo
pronto. Eu queria que ele só visse agora e, claro, ele respeitou meu desejo.

Ele se inclina e me dá um beijo no rosto.

As primeiras pessoas a nos abordarem são Viggo e Galina. Ela me


olha dos pés à cabeça, como sempre, e seus olhos focam em Andreas. Viggo

me cumprimenta com certa simpatia, ele parece menos indignado com a


minha existência do que antes. Ele aperta a mão de Andreas enquanto Galina

se dirige a mim.

— Meu irmão não para de falar sobre como você pintou esse mural —

ela diz. Sempre que ela fala, mesmo quando mais nova, Galina parece uma
espécie de sibilo, como uma cascavel. Eu conseguia entender sua raiva de
mim hoje em dia, eu estava com o homem que ela, por tantos anos, disse

amar. Mas antes? Antes, seu ódio sempre foi injustificado.

— Seu irmão é uma ótima pessoa, tem sido um prazer trabalhar com
ele — afirmo. O que eu não digo é “diferentemente de você”.

— Ele também gosta de você, uma prova de que não é tão bom em
fazer juízos de valor — ele responde baixando o tom de voz. Uma mulher

aparece com uma câmera na mão, e Viggo diz que precisamos fazer uma foto.
Ele fica ao meu lado quando Galina se adianta e fica ao lado de Andreas. É

minha vez de segurar sua mão com mais força e meu marido se inclina um
pouco na minha direção.

— Viggo, nos falamos mais em breve, preciso falar com uma pessoa

— Andreas diz apertando a mão do homem outra vez. Assim que nos
afastamos, ele sussurra um “sinto muito” no meu ouvido.

Somos cumprimentados por mais algumas pessoas. Algumas que já


encontrei em outras ocasiões; outras que são completamente desconhecidas.

Andreas fala sobre o painel com um orgulho que me deixa encabulada


sempre que as pessoas me parabenizam, então Minerva vai até o microfone e

começa a falar dizendo que é uma honra receber todos nesta noite para
inaugurar este centro. Ela chama Andreas para falar e eu sinto que ele não
quer largar da minha mão.

— Eu vou ficar bem — digo. Ele força um sorriso e vai até o palco.
Assim que fico sozinha, madame Olga aparece. Ela olha para o meu colar e

me dá dois beijos no rosto, como se aquela fosse a coisa mais natural do


mundo.

— Esse colar ficava ótimo na mãe dele, acho que vocês têm bastante

em comum — ela diz. Sei que ela não está me elogiando. Odiava a segunda
esposa do filho, todos sabiam disso. Eu olho para a frente e presto atenção a

Andreas, que está nos olhando de volta.

Ele agradece a presença de todos e fala da importância deste centro

para facilitar a vida dos funcionários, que vão poder contar com um espaço
para deixar seus filhos, e ainda sobre o impacto positivo que o Grupo Orlov

quer causar na comunidade abrindo o espaço para receber crianças locais


para os cursos que estão sendo projetados.

— O primeiro dos cursos será generosamente ofertado por uma pintora

talentosa com quem eu tenho a sorte de estar casado — ele diz me olhando.
— E que também é autora desse mural lindo.

Uma onda de aplausos e olhares vêm na minha direção, e Olga Orlov


pega no meu braço com mais força que o necessário e sorri. “Sorria,
querida, não vai querer que as pessoas pensem que você não gosta da avó do

seu marido”, ela diz. Andreas continua falando sobre os ideais da empresa e
seguindo o roteiro do longo discurso que sei que Minerva preparou.

— Ora, ora, que cena bonita. Minha avó e minha cunhadinha querida

— Mikhail diz atrás de mim. Meu corpo inteiro parece virar pedra quando
me esforço instintivamente, tentando dar um passo para atrás, mas Olga está

ainda segurando meu braço e me fala para não fazer uma cena, dizendo que a
imagem da empresa não pode ser manchada.

— Baixe o tom, querido — Olga Orlov diz ao neto.

— Não tenha medo, querida — ele diz beijando meu rosto. Eu olho ao
redor e percebo que estamos cercados demais para que ele faça qualquer

coisa, então respiro fundo e tento me acalmar. Olho para a frente outra vez e
meus olhos encontram os de Andreas, que obviamente nota a presença do

irmão. Ele olha para Minerva, que parece entender o recado e desce do
palco, deixando-o. — Já vem a estraga-prazeres — Mikhail sussurra, só eu

posso ouvi-lo agora. — Dê um jeito de escapar dele e me encontre no


corredor em cinco minutos. Preciso falar com você sobre a sua amiguinha,

você vai querer saber, acredite em mim.

— Mikhail, querido, é sempre um prazer indescritível — ela diz


olhando para ele com um sorriso que parece genuíno, mas seu tom é de uma
ironia cortante. — Izolda, venha comigo — ela diz. Olga Orlov solta meu

braço, finalmente, e o local onde ela estava segurando parece pegar fogo.

— Eu preciso ir ao banheiro — digo. Minerva me acompanha e eu

lavo meu rosto, como se isso fosse capaz de tirar o beijo que Mikhail me
deu. Sinto-me suja, enjoada, e tudo que quero é ir embora daqui. Minerva me

oferece toalhas de papel e eu seco meu rosto. Respiro fundo e me sinto sem
ar, então abro a bolsa e faço uma inalação. Eu nunca tenho crises de asma

por nervosismo, mas talvez essa seja a dimensão do quanto Mikhail me


aterroriza.

Ainda assim, quero ir lá fora e encontrá-lo, por mais irracional que

pareça. Desde que voltou, ele tem feito insinuações sobre Elke. E se ele foi
mesmo atrás dela? E se ele realmente souber onde ela está? Eu penso no

risco, qual a pior coisa que pode acontecer se eu for lá fora? É um lugar
público, ele não tentaria fazer nada comigo no meio da empresa.

— Querida, você está bem?

— Eu vou até a minha sala.

— Quer que a acompanhe?

— Não. — Forço um sorriso. — Diga a Andreas que eu já volto, tudo

bem? Só preciso trocar o refil do remédio — minto descaradamente.


Eu cruzo o salão tentando não ser vista. Andreas ainda não está perto
do fim do discurso, se a memória não estiver me falhando. Eu o tinha lido

junto com ele mais cedo. Passo pela porta principal e começo a andar pelo
corredor. Mikhail está encostado numa das portas e abre-a para que eu entre.

— Não vou entrar aí com você — digo.

— Assim, você me ofende, somos praticamente irmãos — ele diz.

— Apenas… — Esforço-me para não gaguejar. — Apenas diga o que


você tem a dizer. O que sabe sobre a Elke?

— Se você não confia em mim, por que eu deveria confiar em você?


— ele pergunta cinicamente. Ele sabe bem por que não confio nele. Ele

matou meu pai, mesmo que não tivesse feito isso com suas próprias mãos.
Ele machucou a minha melhor amiga de formas que, suspeito, podem ter

consequências eternas. Ele tentou me machucar. — É um segredo, um dos


bons, e eu não posso contar a qualquer pessoa de qualquer forma.

— Isso foi uma grande perda de tempo — digo me virando. Mikhail

pega no meu braço e me puxa de volta. Seu corpo fica bem rente ao meu e,
quanto mais eu tento me afastar, mais ele me puxa para perto. Ele me cheira e

parece sentir prazer nisso, assim como parece sentir prazer em me ver
assustada. Não consigo deixar de pensar em Andreas e em como ele é

carinhoso, cuidadoso. Em como seu toque me causa prazer, proteção,


enquanto o de Mikhail me gera medo e repulsa. As memórias do estado em
que Elke estava naquela manhã, quando a encontrei em meu quarto, correm

pela minha cabeça, e eu tento fazer com que ele me solte.

— Sua amiguinha está aqui na Rússia, bem pertinho de você, sabia? —

Eu paro de protestar e o encaro. Elke está aqui, mas como isso é possível?

— Onde? — pergunto segurando o braço de Mikhail.

— Eu poderia dizer mais, mas não gostei da sua falta de confiança em

mim — ele diz me soltando. Mikhail levanta as mãos defensivamente, se


afastando de mim, então percebo que ele está olhando para a frente e me viro

para encontrar Andreas me encarando. — Eu disse que ela me persegue —


ele afirma.

Andreas puxa o irmão pelo colarinho para dentro da sala, e eu tento

fazer com que me escute. Ele me olha de uma forma que me despedaça. Eu

esperava encontrar raiva, ciúmes, mas não é isso que encontro no seu olhar,
é desapontamento. E ele é pior do que qualquer outra coisa.

— Eu lido com você depois — ele diz fechando a porta. Eu tento


abrir, mas está trancada. As salas do térreo não possuem portas de vidro

como nos andares dos escritórios, não sei o que está acontecendo lá dentro,
mas temo que Andreas faça uma besteira ou que se machuque por minha
causa. Eu levo minha mão à boca para controlar a vontade de chorar, gritar
ou fazer ambas as coisas ao mesmo tempo, eu sei que um escândalo deixaria
tudo ainda pior. Se eu quero que Andreas me escute, a última coisa que

posso fazer é aumentar a proporção do que acabou de acontecer. Vai ficar


tudo bem. Eu digo a mim mesma. Eles vão só conversar, Andreas não faria
nada absurdo.

Volto para a festa, o salão está escuro, todos estão com os olhos
voltados para a tela que exibe a nova campanha da empresa. Procuro

Minerva, na esperança de que ela possa fazer alguma coisa. Estou tremendo
quando falo com ela. Minerva pega na minha mão e me leva para uma parte
que ainda está sendo reformada do centro e pede para que eu fique no local e
me acalme.

Eu sento no sofá e faço o que ela pede. Meu coração está batendo tão

rápido que posso ouvi-lo nos meus ouvidos. Acabo me deitando, na


esperança de que meu corpo se normalize, e não sei ao certo quanto tempo
demora até que começo a ouvir duas vozes ficando mais altas na medida que
passos se aproximam. Primeiro, acho que isso significa que Andreas e

Minerva estão chegando e começo a me levantar, mas então percebo que são
duas mulheres conversando e que conheço aquelas vozes. Afundo no sofá
outra vez, não preciso disso agora, não quero que me vejam.

— E a senhora não pode fazer nada? — A voz de Galina pergunta.


— Querida, paciência é algo que vocês, jovens, precisam aprender.
Mikhail e Andreas parecem, por alguma razão, enfeitiçados por ela, e eu não

pretendo deixar que eles comecem uma guerra por uma mulata que cresceu
nas cozinhas da minha casa.

— Eu não entendo o que ele vê nela. Nenhum deles, na verdade.

— Os homens dessa família não podem ver um rabo de saia. Foi assim
com o meu marido, com meu filho e, agora, com os meus netos. É como uma

maldição. Mas essa não é a primeira vez que eu tenho que lidar com um
casamento indesejado. Acredite, eu sempre acabo resolvendo no final.
Agora, volte para a festa e finja que está se divertindo. Você ainda vai ter
tudo que queria. Seu nome junto do nome Orlov tem significado, seu pai e eu

sempre quisemos isso.

Elas se afastam sem notar a minha presença, e eu deixo que o impacto


de tudo que aconteceu nos últimos minutos me alcance. Estou tão abalada
que mal consigo processar as palavras de Olga, elas não me importam agora.
Um tempo depois, o segurança que faz minha escolta aparece e me pede para

acompanhá-lo, saímos pelos fundos do centro de recreação e ele me oferece


um lenço para secar minhas lágrimas. Eu tento parar de chorar, mas não
consigo.
Sou levada até a sala de Andreas, e um outro segurança parado em sua

porta abre-a para que eu entre. Lá dentro, estão Andreas e Minerva. O rosto
dele está vermelho, e uma de suas mãos, no gelo. Minerva olha para mim
rapidamente, mas logo se vira para o amigo.

— Lembre-se do que eu disse — ela pede antes de sair. Ao passar por


mim, Minerva toca no meu ombro e oferece um meio sorriso empático.

— Você machucou a mão… — digo. Quero me aproximar, mas sua


expressão fechada me indica que eu não deveria.

Andreas está com um copo na mão, bebendo outra vez. Ele ignora meu
comentário, e tudo que ele me pergunta é: — Por quê?

É, Izolda, por quê? Minha consciência grita. Por que infernos você

tinha que ser tão idiota? Penso no que aconteceu e no que sei agora. Se
Mikhail estiver dizendo a verdade, e por alguma razão acredito nisso, sei
que Elke está no país, talvez até mesmo na cidade. Não posso dizer que me
arrependo de ter ido até Mikhail, mas o custo, bem, talvez esse seja um custo
que eu não possa pagar.

— Andreas, eu só fui até ele porque...

— Então, você foi até ele? Isso é ótimo. Eu não consigo decidir se a
pior parte é que você tenha feito isso ou que tenha feito isso aqui, no meio de
uma festa.
— Eu não estava… não era o que parecia.

Ele coloca a mão machucada na mesa e ergue o dedo me


interrompendo.

— Izolda, sabe do mais? — ele diz, terminando de beber o conteúdo


do copo. — Não precisa explicar. Eu cheguei no meu limite. Eu não posso
ficar tentando protegê-la de algo que você aparentemente deseja. Eu não sei

que tipo de relação conturbada você tem com Mikhail, mas eu não posso
ficar no meio disso. Achei que podia, mas não tenho estômago para isso. Os
seguranças vão levá-la para casa. Pense sobre o que você quer e, amanhã,
você pode ficar com ele, ir embora, fazer o que bem entender. Ah, e fique à

vontade para dormir em outro quarto.

Eu não consigo dizer mais nada. Neste momento, só consigo pensar


que ele tem razão, eu não estou sendo honesta. Se estivesse no lugar dele, se
tivesse os fatos que ele tem, talvez agisse da mesma forma. Eu chego a casa
e vou para o nosso quarto. Tomo um banho quente e finalmente paro de

chorar, mas a tristeza é invadida por uma raiva. Raiva de mim mesma por ter
ido até Mikhail, raiva dele por ser um monstro cínico, raiva de Andreas por
nem ao menos me ouvir.

Penso em ir para outro quarto, mas fico preocupada com ele. Imagino

que esteja bebendo, penso em que estado chegará a casa. Eu deito na cama e
não consigo pregar o olho pensando em tudo que aconteceu, no fato de que

Elke supostamente está na Rússia, no modo como Andreas me olhou, como


se eu tivesse o machucado de forma irreparável. Pergunto-me se é isso, se
ele vai mesmo desistir de mim ou se falou aquelas coisas da boca para fora.
Ele chega a casa horas depois e, quando acende a luz, eu me sento na cama

para encará-lo.

— Você está aqui — ele diz. Ele não parece irritado, apenas triste.
Muito triste. Ele também não está bêbado como imaginei que estaria, mas
parece estar exausto e consideravelmente abatido. Vê-lo dessa forma me

deixa ainda mais aflita, tudo que eu quero é ir até ele e o abraçar, dizer o
quanto o amo.

Eu me levanto da cama e vou até Andreas, tentando tocá-lo, mas ele se


esquiva. — Você não vai mesmo me ouvir?

— O que você pode ter para me dizer?

Eu tive tempo para pensar no que diria, mas a única coisa que consigo

é apelar para o que sei que ele sente por mim, apelar para o que sinto por
ele.

— Andreas, você acha mesmo que eu diria que o amo e, depois, me


jogaria para cima do seu irmão? Será que você não consegue entender nada,

nunca?
— Entender o quê, Izolda? Diga-me, o que há para ser entendido?

— Que isso — digo pegando em sua mão que ainda está um pouco
vermelha —, eu e você, o que temos, isso é verdadeiro, e é a única coisa boa
na minha vida, e eu não nos arruinaria pelo seu irmão. Eu amo você, só você.
E eu já o amava antes de tudo isso. E você disse que me ama. — Essa última

parte soa como uma acusação, mas serve para fazer com que ele me olhe de
verdade pela primeira vez desde que entrou naquela sala com Mikhail. —
Ou o que você me disse não era verdade?

— É verdade — ele afirma se afastando outra vez, parece irritado

agora, acusado —, claro que é verdade. Eu acordo pensando em você, eu


vou dormir pensando em você e, merda, Izolda, eu passo o dia pensando se
você está bem, se está feliz, se há algo que eu deveria estar fazendo para
deixá-la feliz.

Andreas senta-se na cama, e eu me aproximo outra vez. Agora, fico de

frente para ele e coloco minha mão em seu rosto, forçando-o a me olhar.

— Se você me ama, como diz amar, não pode simplesmente acreditar


em mim?

Andreas encosta a cabeça no meu peito, e suas mãos vão para a minha
cintura. Seu toque é firme e eu respiro fundo enquanto espero que ele

processe o que acabei de dizer e me responda alguma coisa. Um silêncio se


instaura entre nós, e tudo que consigo ouvir é sua respiração pesada. Uma
enorme parte de mim grita comigo para que eu conte a verdade, mas eu não
consigo, não consigo expor um segredo que não é meu, algo tão pessoal, tão
cicatrizante.

Todos esses meses, eu me perguntei como eu me sentiria se Elke e eu


estivéssemos em papéis opostos. Eu sei que nossa amizade acabaria por isso
se esse fosse o caso. Eu não poderia perdoá-la se fosse o contrário, da
mesma forma como não poderia me perdoar se abrisse minha boca e

dissesse “aquela era Elke naquela noite, foi ela que foi fotografada com
Mikhail, ele a estuprou”. É pessoal demais, é uma história dela, aconteceu
com ela.

— Andreas… por favor — Insisto depois de um silêncio que parece


se estender por séculos. Ele ergue a cabeça lentamente. Seus olhos estão

vermelhos, e eu não sei mais o que dizer, então coloco minha boca na sua e o
beijo. Pela primeira vez, Andreas não corresponde imediatamente, mas, na
medida em que eu movo minhas mãos pela sua nuca, ele abre a boca e
recebe os meus lábios. Eu me sento em seu colo, e continuamos nos

beijando.

Em um certo ponto, eu me afasto receosa e fico de pé outra vez. Ele me


olha, tentando entender o que estou fazendo, e eu passo as alças da camisola
pelo meu ombro e deixo a seda cair no chão; depois, retiro o meu sutiã
mesmo com as mãos trêmulas. Fico imaginando o que ele vai pensar de mim,
se vai me rejeitar, mas me rendo às vontades do meu corpo. Se essa é a
última chance que vou ter com ele, se, depois disso, nosso destino for o fim,

quero ir até o final. Quero ao menos ter essa chance de ser dele.

Andreas passa a mão nervosamente nos cabelos. Eu me aproximo um


pouco e pego sua mão, beijo seus dedos como ele costuma fazer comigo e a
coloco em meio aos meus seios. “Eu quero você”, digo. “Quero ser sua”.
Era isso que eu deveria ter feito mais cedo, quando estávamos na sua sala.

Ele parece em conflito, e tudo em que consigo pensar é que o perdi,


mas então, Andreas puxa meu corpo para perto do seu, abrindo as pernas
para que eu fique entre elas. A mão acaricia o meu seio. Sua pele está quente
e o polegar toca ferozmente o meu mamilo. Ele encosta a cabeça em mim

outra vez, mas agora sua boca se move pelo meu corpo. Ela beija o espaço
entre os seios e abocanha um deles. Sua língua começa levemente a se mover
pelo meu mamilo, depois ele abocanha o seio e o suga. Penso em como esse
momento, sozinho, já consegue fazer com que eu deixe de me sentir terrível e
que só pense nele. Minhas pernas ficam moles pela sensação de prazer, eu

posso sentir a umidade se formando no meio delas.

Ele volta a beijar a minha boca depois de algum tempo, enquanto eu


tento soltar os botões de sua camisa. Quando finalmente consigo soltar todos
eles, eu movo o tecido em direção aos seus braços, que ajuda a retirar a
peça, deixando seu tórax nu.

Andreas tira a calça, e eu observo o volume que parece querer saltar

de sua roupa íntima.

— Você quer isso? — ele questiona. Eu aceno positivamente e deixo


um “sim” sair da minha boca. Andreas inverte nossas posições, e eu fico
com as costas apoiadas no colchão enquanto ele continua me beijando. Eu
levo minha mão até sua cueca, e ele solta um gemido seguido de um

“merda”. Quando ele começa a se mover, imagino que vai me deixar aqui,
sozinha, nesse estado, mas, em vez disso, ele retira a minha calcinha e passa
a mão pela minha vulva, os dedos explorando os lábios até tocarem
lentamente a entrada. Ele retira os dedos, e noto o que está fazendo: se

certificando de que estou lubrificada para recebê-lo.

É só então que Andreas fica de pé e termina de se despir. Deve ser a


primeira vez que ele deixa sua roupa à toa em vez de dobrá-la
cuidadosamente desde que nos casamos. Se não estivesse tão inebriada, faria
piada sobre isso. É também a primeira vez que eu o vejo totalmente nu. Suas

pernas são musculosas, as entradas do seu abdômen são tão bem desenhadas,
ele é como David de Michelangelo de tão bem esculpido – mas isso se o
David fosse bem dotado. O tamanho deveria me deixar nervosa, mas estou
numa espécie de nevoeiro emocional, não consigo discernir muito bem entre
as minhas emoções.

Ele volta para mim e eu respiro fundo e engulo seco. Andreas pergunta

outra vez se é isso que quero, mas, dessa vez, é mais enfático. “Não precisa
fazer isso se não quiser”, ele diz. “Eu quero” é tudo que respondo.

A penetração começa lentamente e eu solto um pequeno gemido. Não


dói tanto quanto esperava, e sei que, em parte, é pelo fato de que estou

totalmente molhada. Eu posso sentir que há uma parte mais fácil, mas uma
pressão cresce, e Andreas para de se mover. Abro meus olhos e encontro os
dele. Ele sabe, ou ao menos desconfia, é isso que entendo pela forma como
me olha.

— Continue, Andreas. Está tudo bem, eu quero ser sua — Peço.

Andreas receia um pouco antes de finalmente me atender e, quando ele se


move, eu levo meu corpo ao encontro do seu, e isso faz a pressão do contato
aumentar. O movimento gera um ardor que se espalha pelo meu corpo, e eu
mordo o lábio para não gritar. “Continue, apenas continue”, eu peço

enquanto uma de minhas mãos se agarra no lençol.

Ele coloca a mão na minha coxa e abre um pouco minha perna,


imagino que seja para ter mais acesso. Ainda assim, parece levar uma
eternidade, até que sinto seu corpo topando no meu e entendo que,
finalmente, ele está totalmente dentro de mim. Mantenho meus olhos
fechados. A sensação é de estar sendo dilacerada, mas a presença dele em

mim gera sensações conflitantes, pois eu posso sentir meu corpo pulsar ao
redor dele em espasmos que são gostosos, mas que também amplificam a
queimação. Eu me movo, querendo que ele faça o mesmo, então Andreas
coloca a mão nas minhas costas e me ergue em sua direção.

— Olhe para mim, Izolda — ele pede. Faço o que ele diz, e só então
Andreas começa a se mover. Cada vez que ele sai de mim e entra outra vez,
eu quero gritar, gemer. Reconheço o som que escapa dos meus lábios,
parecido com que fiz mais cedo. Lembro-me de suas palavras encorajadoras
“faça todo o barulho que quiser, sempre. Se você não tiver gostando, qual

o ponto disso tudo?”, então deixo que o prazer me domine.


Eu volto da empresa para casa me sentindo exposto e ferido, não quero

voltar. Se não fosse por Minerva e seus conselhos, estaria bebendo, tentando

adormecer todos esses sentimentos, parar de sentir, nem que fosse por pouco

tempo. Nada daquilo faz sentido para mim, aquela não podia ser a mesma

mulher com quem eu estava sendo tão feliz nos últimos meses, não podia ser

a mesma pessoa que parecia odiar e temer Mikhail.

“Talvez ela tenha alguma explicação”, digo a mim mesmo, mas fico

irritado. Estou tentando criar estratégias para me enganar. Ela tinha ido atrás

de Mikhail depois que Minerva foi até ela. Ela tinha dito que precisava de
um remédio, ela tinha feito tudo aquilo. Que assunto Izolda poderia ter com

meu irmão além da história que parece haver entre eles?

Eu penso em Sergei. Ele estaria desapontado comigo por estar

deixando-a, mas estou ferido demais, meu coração está exposto outra vez e,

dessa vez, acabou bem mais machucado. De alguma forma, encontrá-la

naquele corredor, inclinada na direção de Mikhail, tinha sido mais

dilacerante do que tudo que aconteceu com Galina.

Eu entro em casa e tudo que quero é não ter que olhar para ela, mas

Izolda está no nosso quarto, na nossa cama, e o meu coração bate mais forte

ao vê-la ali, parecendo tão preocupada, tão triste. Quero acreditar na

ingenuidade dessas expressões. Mesmo que minha cabeça não queira, é isso

que cada fibra do meu corpo parece demandar.

Em um momento, estou discutindo com Izolda e, no outro, estamos nos

beijando. Há algo dentro de mim que vê nisso a última ponta de esperança.

Toda a mágoa por encontrá-la com meu irmão, todo o medo de estar sendo

enganado outra vez, tudo isso é colocado em suspensão quando ela me diz
que quer ser minha. Eu tinha esperado por isso, tinha perdido as contas de

quantas vezes me masturbei no banho pensando nela, só nela, e em como

outras mulheres pareciam ter se tornado opacas em comparação a Izolda.


Cada toque é carregado de medo, medo de que esta seja a última vez

que estarei na mesma cama que ela, medo de que ela esteja me usando.

Ignoro esses alarmes na medida que vou ficando cada vez mais excitado. E
quando a penetro, quando sinto meu pau entrando em sua carne macia e

umedecida, mesmo com toda a lubrificação, é impossível não notar o quanto

ela é apertada. Todas as vezes que imaginei que estava fazendo amor com

ela, a possibilidade de tê-la apertada ao redor do meu pau sempre existiu.

Izolda nunca namorou, nunca soube dela com ninguém além de Mikhail, mas,

naquele momento, fui acertado pela ideia de que ela nunca tenha feito aquilo

antes. Seria possível?

Eu paro de me mover e olho em seus olhos. Quero perguntar, mas

Izolda diz para que eu continue. E faz isso com tanta confiança, abrindo as

pernas e se movendo na minha direção, que fiz o que ela pediu. Fui

cuidadoso, como seria de qualquer forma, e não apenas por não ter certeza
sobre sua inexperiência ou por aquela ser a nossa primeira vez, mas porque

eu sempre me preocupei com os ritmos das mulheres com quem dormi. Eu

poderia ir do papai-e-mamãe até o sexo mais selvagem, contanto que fosse

isso que a minha parceira quisesse.

Sexo com Izolda, no entanto, tinha um adicional desconhecido. Não era

apenas sexo, era tão carnal quanto espiritual. Estar dentro dela, ter seu corpo

se apertando contra o meu, sentir o calor e a pulsação ao redor do meu pau,


sentir suas mãos em meus cabelos e me sentir eletrizado pelos sons de sua

boca ou pelo contato de nossas peles, isso foi novo. Eu tinha feito sexo

incontáveis vezes, tinha feito amor também, mas aquilo era algo totalmente

diferente. Algo que me fez questionar se eu realmente conheci antes o amor.

Enquanto ela está deitada na cama, depois do sexo, sua cabeça e a mão

em meu peito, nenhum de nós fala por muito tempo. Eu não quero falar

porque sei que as coisas que podem ser ditas vão determinar os rumos do

que temos.

— Eu queria que tivéssemos feito isso antes — ela diz quebrando o

silêncio. Eu me remexo inquieto, não quero conversar, quero apenas

permanecer com ela em meus braços, quero amá-la outra vez. Sei que,

quando abrir a boca, tudo isso vai se desmanchar como um castelo de cartas.

Um pouco da mágoa retorna e eu me esforço para deixá-la fora da bolha de

prazer.

— Andreas... — ela me chama, olho para o seu rosto. Seu nariz

pontudo, os lábios carnudos, a pele que brilha e me faz querer mordê-la.

Tudo nela é perfeição. Os seios comprimidos contra a lateral do meu corpo,

as pernas enroscadas na minha, a mão que confronta meu peito enquanto ela

me encara. O que ela espera que eu diga? Que eu também queria isso antes?

Claro que queria. Eu posso me lembrar da primeira vez que me senti atraído

por ela, quase um ano atrás, quando Izolda estava sentada na cozinha com
Elke e entrei procurando Sergei. Izolda estava encostada no balcão,

sorrindo, com seus longos cachos castanhos soltos. Não havia nada de

particularmente sexy na cena, mas, ainda assim, eu só conseguia pensar em

como gostaria de beijar sua boca. — Você quer que eu vá embora? — ela

pergunta.

O medo na sua voz é perceptível e parte meu coração. Izolda levanta e

puxa o lençol para seu corpo, prendendo-o contra os seios. Sento na cama e

coloco minha mão em seu rosto, acaricio a pele macia, desço pelos ombros,

até chegar à mão com a qual ela prende o lençol. Meu toque faz com que ela

solte tudo, deixando seus seios aparecerem outra vez. Coloco minha mão em

um deles e acaricio-o devagar. Izolda passa sua mão pelo meu pescoço e me

beija. Intensifico nosso beijo, sigo seu ritmo e a puxo para o meu colo. Meu
pau pede por mais e ela parece saber disso. Seria fácil continuar daqui,

continuar beijando-a, estimulá-la outra vez, tocar cada centímetro do seu

corpo e estar dentro dela, mas eu não posso continuar fazendo isso sem lidar

com a realidade.

— Izolda, não podemos continuar com isso.

— Podemos, sim. Claro que podemos — ela pede passando sua mão
na minha barba.
Izolda passa a mão pelo meu peito e a desce até meu pau. Estou tão

duro que quase desisto da ideia de conversar, mas há uma lágrima no canto

do seu olho e eu percebo que isso é errado, pois, mesmo que ela esteja

dizendo sim, claramente não está em condições para isso. Eu mesmo não

estou.

— Não podemos, isso não vai resolver nossos problemas.

— Eu não quero ir embora. E não quero conversar porque você não


vai acreditar em mim, vai?

Eu me levanto da cama e pego uma calça limpa. Eu preciso estar


vestido para essa conversa. Visto-me sem me preocupar com a roupa de

baixo, Izolda fica na cama, agora coberta, me olhando. Também pego algo
para ela, uma camisa minha, é o mais rápido que consigo encontrar.

— Se quiser se vestir — digo oferecendo a camisa. Ela pega o tecido

das minhas mãos, e minha camisa branca, que fica gigante nela, nunca
pareceu tão bonita antes. Digo a mim mesmo que preciso me concentrar, por

mais difícil que seja. Sento-me de frente para ela na cama, mas não chego
perto demais. Quero poder olhar em seus olhos o tempo todo. — Izolda, se

você não quiser conversar, tudo bem, eu não posso forçá-la, mas isso
significa que você tem duas opções: vamos voltar a ser pessoas que estão

casadas e mal falam um com o outro ou vamos tomar rumos diferentes.


— Eu não quero que nossos rumos sejam diferentes.

— Eu também não, confesso. Por isso, preciso que seja honesta


comigo.

— Eu nunca menti para você — ela diz. — Eu posso não ter dito tudo,
mas não menti.

Quero argumentar que não dizer tudo é uma forma escorregadia de


mentir, mas decido que posso fazer concessões por ela e deixo esse detalhe
escapar. O quanto estou disposto a me abrir, ser tolerante e compreensivo

por ela é o que me assusta. É o que me faz pensar que, se eu quebrar a cara
dessa vez, talvez não possa me recuperar.

— A primeira coisa que eu quero saber é se você dormiu com


Mikhail, porque, quando eu estava dentro de você, era como se essa tivesse

sido a primeira vez que… Você nunca esteve com alguém antes, esteve?

— Eu nunca dormi com o seu irmão — ela responde me


interrompendo. — Eu nunca dormiria com ele. E, sim, você foi o meu

primeiro homem.

Há uma sensação estranha dentro de mim. Na verdade, uma série de

sensações estranhas. Elas se misturam e se movem, e eu não consigo


discernir muito bem. Estou aliviado, chateado, assustado. Estou pensando em

Sergei naquele chão dizendo “ele arruinou a vida dela”.


— Então, vocês nunca…

— Não. Nunca transamos.

— E por que você não me disse isso? Antes de tudo… do casamento.

— Você teria acreditado em mim naquele momento?

— Eu não sei — digo. Merda, estou mentindo. Eu sei, sim: eu não

teria. Eu estava cheio de luto, de ódio, eu só tinha uma coisa em mente:


manter a minha promessa. — Eu não consigo entender — digo pensativo.

Então, outra coisa me atinge. — Eu... eu machuquei você? Está dolorida?

— Não — ela diz. — Quer dizer, não tenho certeza.

— Eu poderia ter machucado você — digo irritado; noto meu tom

assim que as palavras saem da minha boca. Eu nunca me importei com o fato
de uma mulher ser ou não virgem, isso sempre me soou antiquado demais,

mas ser o primeiro de alguém vem com alguma responsabilidade. Se


soubesse, não teria acontecido assim, após uma briga, sem nenhum romance.

— Você deveria ter me dito.

— Andreas… eu não me importo com um pouquinho de dor, eu só


queria você. Se vai mesmo me deixar, tudo bem, mas eu queria ter a chance

de ser sua. Eu não precisava de uma primeira vez mágica, eu só precisava


que fosse com a pessoa certa, com alguém que me quisesse e que eu também
desejasse na mesma intensidade. Isso que tivemos sempre vai ser especial

por ter sido com você.

Eu quero perguntar a ela sobre tantas outras coisas – Mikhail, a razão


pela qual eles conversavam mais cedo, o que aconteceu com Sergei –, mas

as perguntas parecem sumir da minha mente no momento em que ela diz


essas palavras “sempre vai ser especial por ter sido com você”. Eu me

aproximo de Izolda e a envolvo em meus braços.

— Eu sinto muito — peço. Meus dedos se enroscam nos seus cabelos

enquanto a seguro. Não sei pelo que estou me desculpando. Talvez por tê-la
assustado mais cedo quando arrastei Mikhail para aquela sala, por sentir que

não consigo protegê-la, mesmo que cada fibra do meu corpo identifique esse
pensamento como sexista.

— Sou eu quem tenho que pedir desculpas — ela diz baixinho. Izolda

quebra nosso abraço e pega nas minhas mãos, me encarando.

— Só me conte o que aconteceu naquela noite, na noite da festa. Se

você não dormiu com Mikhail, o que aconteceu? Ele machucou você? Por
que seu pai achava que ele tinha arruinado a sua vida?

— Ele não me machucou, não fisicamente. E eu queria poder lhe

contar tudo, mas não posso. Eu só preciso que confie em mim, por favor.
Confie quando eu digo que nunca fui apaixonada pelo seu irmão. Eu nunca
quis o Mikhail, nunca corri atrás dele, foi sempre o contrário. Enquanto você

estava fora, estudando, eu perdi as contas das vezes em que tive que fugir
dele, dos seus comentários inapropriados sobre o meu corpo.

Eu lembro de momentos nos quais Mikhail tomou liberdades que não


devia com algumas garotas. Lembro de uma vez, anos atrás, dele tentando

puxar Izolda para seu colo. Eu deveria ter batido mais nele, eu deveria tê-lo
feito se arrepender de ter nascido.

— Você acredita em mim? — ela pergunta. Seus olhos estão marejados

e eu odeio o fato de que ela está chorando, odeio que eu a tenha feito chorar,
odeio que Mikhail tenha sido abusivo dessa forma.

— Acredito — confesso. Há tanto mais que quero saber, por que ela
estava com ele no corredor, sobre o que falavam. Ainda assim, mesmo sem

conhecer todos os fatos, eu não posso deixar de acreditar nela.

— Obrigada — ela pede acariciando as minhas mãos. A mão direita


está machucada e ela passa mais tempo olhando para ela. — Eu sei que isso

não é suficiente e que você deve ter perguntas, mas, se puder ter um
pouquinho de fé em mim, no meu amor por você, eu juro que…

— Tudo bem — digo. — Eu prometo que não farei perguntas contanto


que me prometa que vai ficar longe dele, tudo bem?

— Eu prometo — ela responde.


Eu acordo no dia seguinte com Izolda dormindo com a cabeça no meu
braço. Levanto-me da cama tentando mantê-la dormindo, então encontro

Katrina e peço que ela prepare um café para minha esposa. Enquanto ela
monta a bandeja, eu passo na frente do antigo quarto de Izolda. As imagens
daquelas fotos voltam, aquele era claramente Mikhail, mas a pessoa que fez

as fotos parecia ter sido cuidadosa para deixar que nenhum traço
identificativo da pessoa que o acompanhava fosse visto. Havia partes do

vestido, claro, do tecido preto. Era o fato de ser o quarto de Izolda que
depunha contra ela, exceto se…

— Senhor, aqui está, devo levar? — Katrina pergunta.

— Não — respondo enquanto tento organizar meus pensamentos. —


Eu faço isso. Obrigado, Katrina.

No caminho de volta para o quarto, eu paro na sala e retiro uma das


muitas flores dos vasos e a adiciono à bandeja. Penso no quanto ainda não

sei sobre Izolda, mesmo que tenhamos crescido na mesma casa. Nossos
momentos juntos se restringiam a leituras na biblioteca ou alguns minutos nos

intervalos da escola. Não sei, por exemplo, qual sua flor predileta, quais são
seus sonhos para além de viajar, que tipo de música ela gosta ou como

prefere seu café. Meus pensamentos são interrompidos pelo encontro com
minha avó nas escadas. Seus olhos se estreitam para me encarar e ela parece

surpresa.
— Você parece feliz — ela diz. Não é o mesmo tom que Minerva usa
quando diz isso, é um tom de indignação e surpresa, um tom acusatório,

como se a minha felicidade fosse uma coisa errada.

— E por que eu não estaria?

— Achei que, depois de bater no seu irmão ao encontrá-lo fazendo

sabe lá Deus o que com a sua esposa, não estaria andando pela casa com
uma bandeja como um serviçal e com um sorriso no rosto como se…

— O que eu faço com a minha esposa, na minha casa, não é problema


seu, é, vó?

— Você quebrou o nariz do seu irmão. Ele queria ir até à Polícia, tive

que convencê-lo do contrário, de não levar nosso nome para a lama.

— Como era mesmo que a senhora costumava dizer? — Penso em um

verão no qual meus pais estavam fora, no que chamavam de viagens de lua

de mel, e eu fiquei com Mikhail e minha avó. Eu estava jogando fipe com
Mikhail e alguns amigos, e ele me empurrou com violência depois de dizer
“твоя очередь” e eu acabei caindo e quebrando o braço. Eu devia ter uns
seis anos, ele tinha quase o dobro. Minha mãe voltou para casa dois dias

depois e, quando me encontrou com o braço enfaixado, quis saber o que


tinha acontecido. Como sempre, minha avó tinha uma resposta para defender
o neto mais velho: “Foi apenas um pequeno desentendimento entre irmãos.
Agora, se me der licença.”

Levo a bandeja até o quarto e a coloco na ponta da cama. Depois, vou

até o cofre do quarto, o cofre em que mantenho as joias da minha mãe e no


qual estava, até um tempo atrás, o relógio que ganhei de Sergei. Procuro uma
caixa específica e, quando a encontro, volto para a cama e sento-me ao lado
de Izolda. Deixo os pensamentos sobre Mikhail e minha avó do lado de fora,

deixo minhas suspeitas sobre a noite do baile para depois, tudo isso pode
esperar um pouco.

— Bom dia, dorminhoca.

— Bom dia… — ela diz se espreguiçando. Izolda faz uma expressão


de dor e eu pergunto se está tudo bem. — Minhas pernas estão um pouquinho

doloridas.

— Desculpe-me — digo, tentando não sorrir da manha em sua voz.

— Não, não se desculpe. Não é tão ruim, é como fazer exercício


depois de muito tempo parada, apenas uma tensão. Além disso, é um
lembrete de que a noite passada não foi um sonho. Nós realmente… — ela

se interrompe, e noto que está olhando para a bandeja. — Café da manhã?

— Sim. Sente-se, venha comer alguma coisa, deve estar com fome.
— Estou — ela confessa. Izolda senta-se na cama e acaricia o meu
rosto. Eu puxo a bandeja para perto e ela pega um pedaço de fruta fatiada

levando-o até a boca. Eu a assisto mastigar como se fosse a coisa mais


interessante do mundo e percebo que, de fato, é. Não há nada que eu prefira
ver, nenhum outro lugar em que prefira estar.

— Você sempre foi tão bonito assim, ou isso é um efeito do sexo?

Deixo escapar uma risada e coloco meus lábios nos dela, mas Izolda

rapidamente se afasta e se levanta da cama.

— Eu preciso escovar os dentes — ela diz sumindo pela porta do


closet. Levanto-me e vou atrás dela, que já está na pia, passando água no
rosto, usando apenas a minha camisa branca, e nada nunca foi tão sexy.

Posiciono-me atrás dela e a abraço, beijando o seu pescoço. A caixa que


estava na minha mão fica no balcão de mármore. Vejo-a sorrindo pelo
reflexo, então coloco minhas mãos em sua cintura e giro seu corpo em minha
direção.

— Eu realmente não me importo — digo, beijando-a outra vez. Nossos

beijos se intensificam enquanto eu abro os botões da camisa que ela está


usando, e Izolda levanta o tecido da minha. Olho para o seu corpo revelado
pela abertura da camisa, os seios, a barriga, o umbigo. Eu nunca adorei tanto
alguém quanto a adoro, nunca me senti tão atraído ou tão encantado por uma

mulher.

— Andreas, posso lhe pedir uma coisa? — ela sussurra. — Algo que
sempre quis fazer com você...

— Pode, pode pedir o que quiser — afirmo excitado.

— Tome banho comigo — ela pede olhando para baixo com vergonha.

Meu pau lateja ao ouvir isso. Gosto de saber que ela pensava nisso,

pensava em mim dessa forma. Coloco minha mão em seu queixo e faço com
que ela olhe para mim.

— Não há nada que me daria mais prazer neste momento.

Eu movo nossos corpos até o chuveiro e termino de despi-la, beijando


sua boca, ombro, seios. Quando a água começa a atingir nossos corpos, eu

assisto Izolda apreciar a pressão e o calor da água caindo sobre seu corpo.
Ela passa as mãos nos cabelos que escorrem pelos seus ombros, os cachos
vão sendo desfeitos pela força dos jatos do chuveiro, e o cumprimento muda
consideravelmente. Os fios normalmente vão até a altura do seu seio, agora

estão quase em seu umbigo. Penso em como até os cabelos de Izolda me


excitam.

— Eu esqueci da comida, vai esfriar — ela diz, parecendo


genuinamente preocupada com isso. Seu tom me fez rir. Eu me aproximo e a
beijo depois de dizer que podemos providenciar outro café. Agora, tudo que

importa é este momento.

Izolda coloca a mão no meu peito e move o sabonete por ele, fazendo
espuma. Eu a assisto com um sorriso no rosto enquanto ela o coloca de volta
no lugar e continua apenas com a sua mão, descendo meu corpo até encontrar
meu pau. Ela toca nele, agora menos tímida do que nas primeiras vezes, e me

beija outra vez. Minha boca suga sua língua, então eu levo minhas mãos para
sua bunda redonda e colo nossos corpos. Sinto os seios dela conta o meu
peito, e ela move o quadril um pouco, roçando seu corpo contra minha
ereção.

A água continua caindo em nossos corpos enquanto eu a penetro e nós


nos movemos juntos. Estou tão excitado que demanda muito de mim não
gozar antes dela. Mas é isso que faço: espero que ela tenha prazer primeiro e
só então deixo meu gozo se espalhar dentro dela.

Após o banho, saio do box e enrolo a toalha no meu quadril. Izolda

está em frente ao espelho, secando os cabelos com a toalha, amassando-os


como costuma fazer. Quando ela os solta, os cachos castanhos reaparecem.

— O que é isso? — ela pergunta. Olho para sua mão que segura a
caixa que tirei mais cedo do cofre.

— É para você.
— Achei que você já tinha me dado um presente hoje, tipo, dez

minutos atrás — ela diz apontando para o chuveiro e rindo. Eu gosto de vê-
la em seu humor natural. Temia que os resquícios da nossa discussão
estivessem no ar, mas estamos bem, surpreendentemente bem.

— Bem, se você for contar orgasmos como presentes, eu nunca mais

vou precisar lhe comprar nada porque pretendo que receba bem mais que um
por dia — respondo me aproximando.

— Parece um bom negócio para mim — ela diz. Apesar do humor, ela
parece levemente constrangida. — Você pode colocar num contrato,
registrar em cartório?

— Apenas abra a caixa, engraçadinha.

Ela faz o que digo e eu vejo o par de alianças brilhando pelo reflexo
dos seus olhos.

— São as alianças dos meus pais. Eu sempre quis usá-las quando


estivesse casado com a mulher da minha vida. Eu nunca a pedi em

casamento, então isso é uma espécie de correção da minha falha. Você aceita
ser minha esposa? — peço pegando em sua cintura. Izolda sorri e diz que
sim. Beijamo-nos, e ela começa a tirar a aliança que atualmente já usa. —
Não, fique com as duas — digo. — Essa daqui representa a promessa que eu

fiz ao seu pai… — Pego o anel da caixa, a aliança menor, que fora usava por
minha mãe por pouco mais de uma década. — E esta representa a promessa
que estou fazendo para você agora, a promessa de sempre cuidar de você, de
sempre amá-la.

Passamos o resto da manhã na cama, conversando. Depois, almoçamos


juntos, e Izolda diz que foi subitamente atingida pela vontade de pintar.

Caminho com ela até o atelier, e nos beijamos na porta antes que ela entre.
Izolda solta um “eu amo você”, e nos despedimos. Eu aproveito para ir ao
escritório da casa e trabalhar um pouco.

Apesar de todos os anos, eu sempre evito trabalhar aqui. Tenho um

pequeno escritório no andar de cima ou, então, fico na biblioteca. Este lugar
é a memória pulsante da vida do meu pai, quase nada foi mudado. Na mesa,
há ainda um porta-retratos de moldura dourada com uma foto da minha mãe.
Seus cabelos negros soltos, um vestido, era uma foto de um verão na Itália.

As gavetas ainda estavam os papéis dele, contratos antigos. Nas estantes, os


livros e a coleção de moedas que fora de seu avô. Destoam com o ambiente
o computador mais recente, um escaninho com correspondências que eu
quase sempre ignoro e o prêmio que o Grupo Orlov recebeu no ano passado,
que está no fim de uma fila de vários outros prêmios dos quais meu pai se

orgulhava.

Ligo o computador e acesso a intranet da empresa. Começo checando


meus e-mails, dados do planejamento, folhas de pagamento que precisam ser
assinadas, orçamentos de compras que foram aprovados recentemente. Olho
cada um dos documentos e vou lidando com eles até que meu telefone toca. É
quase fim de tarde quando isso acontece. O nome de Minerva está na tela,
ela fala do outro lado parecendo preocupada, e digo que está tudo bem, que

eu estou bem e Izolda também, o que a deixa aliviada. Ela me diz algo que
traz uma questão de volta à minha mente. Minerva fala que sabia que Izolda e
Mikhail não tinham nada, que a forma como ela olha para ele é como se ele
tivesse feito algo terrível, não é amor. Antes, eu achava que o medo e a raiva

eram exclusivamente movidos pelo que aconteceu a Sergei, mas agora eu sei
que há mais, e sei que falta uma peça nisso tudo. Era nisso que estava
pensando mais cedo: e se aquela não fosse Izolda?

Saio do escritório obstinado a ir até o atelier e perguntar isso. Eu


prometi ter paciência, mas ela precisa me dizer apenas isso, se aquela não

era ela, porque, se não fosse, isso explicaria tudo. Estou prestes a bater na
porta do atelier quando ouço a voz de minha avó. Abro a porta rapidamente
e a encontro com as mãos no braço de Izolda.

— O que está acontecendo aqui? — pergunto. Izolda parece tão

assustada que quero correr até ela, colocá-la em meus braços. Minha vó, no
entanto, não perde sua pose.

— Apenas uma conversinha familiar — Olga Orlov responde com seu


tom rígido e superior.
— Solte o braço dela, agora!

Ela solta minha esposa imediatamente e me olha outra vez. Vou até
Izolda e me coloco entre as duas. Eu posso sentir o corpo dela tremendo
atrás do meu e isso me deixa ainda mais irritado. Minha avó se vira para ir

embora, mas ela não vai fazer isso antes que eu saiba que diabos aconteceu
aqui.

— Aonde a senhora pensa que vai? Eu quero saber por que estava
segurando a Izolda desse jeito, e quero saber agora.

— Assuntos femininos — ela responde parecendo pouco interessada

em permanecer no local. Ainda assim, não vai embora.

— Izolda… — Ela me olha e estica a outra mão, me entregando uma


caixa de remédio. Sei o que é e fico irritado.

— Sua avó queria que eu tomasse isso — ela diz com os olhos cheios

de lágrimas.

— Você está brincando, certo? — Digo olhando para minha avó. —


Quem a senhora acha que é? Em que mundo delirante acha que vive para ter
o direito de…

— Eu sou a sua avó, eu tenho todo direito. Esta é a minha família, e

não quero que seja contaminada com uma…


— Já chega! — Explodo. — Essa foi a gota d'água. Junte suas coisas e
saia da minha casa. Eu tentei ser compreensivo, aceitar que a senhora é
assim porque foi ensinada a ser, mas isso é demais. Tentar forçar a Izolda a

tomar isso... — digo jogando o remédio no chão. — Ser ofensiva e


preconceituosa dessa forma… É hora de ir.

— Esta é a minha casa!

— Não, não é. Esta é a minha casa; logo, é a casa da minha esposa. Eu


sei que nada importa mais para a senhora do que evitar um escândalo, então,

por favor, vá embora antes que eu chame a polícia para tirá-la daqui.
A música está tocando nos fones de ouvido enquanto pinto. Começo

com traços mais fortes, cores mais escuras, e experimento na tela de uma

forma mais livre, mais corajosa. Sei que não foi o sexo que me desprendeu.
Isso seria irracional; um pênis não é uma varinha mágica.

Mas as palavras de Andreas, seu voto de confiança em mim, sua


promessa de amor e cuidado, isso tinha me dado confiança. Se ele me ama o

suficiente para isso, posso ser corajosa, posso fazer o que precisa ser feito,

posso enfrentar o mundo e encontrar Elke. Posso tentar fazer Mikhail pagar

por tudo que fez e posso, no final de tudo isso, ter o meu final feliz.
Apesar do sentimento de alegria, minha pintura vem de outra coisa. A

tinta dá vida a uma espécie de protesto, e, mesmo que eu não saiba o que

quero no começo do quadro, ele vai ganhando cor e forma para algo muito

claro. Aquilo é sobre Elke, sobre medo, sobre poder, sobre perder esse

poder e controle. Estou trabalhando cuidadosamente nos contornos quando


noto que a música para bruscamente. Eu olho na direção do local em que

deixei o celular, e lá está a fonte da disrupção: Olga Orlov.

— Preciso falar com você — ela me comunica. Olga Orlov nunca


pede nada. Penso em quantas vezes mais ela me chamou com o mesmo tom,

às vezes enquanto estávamos jantando, sem nenhuma preocupação com o fato

de estar interrompendo.

— Claro, o que a senhora deseja? — Pergunto tirando minha máscara

de proteção facial e deixando o pincel de lado.

— Eu encontrei meu neto mais cedo e, pelo olhar dele, uma coisa ficou

óbvia: vocês deixaram de ser apenas duas pessoas que estão juntas pelas

circunstâncias, ou seja, você abriu as pernas para ele.

— Isso não é assunto da senhora — digo. Minha voz falha um pouco.

— Mas é. Porque, quando os homens desta família deixam de pensar,

sou sempre eu quem precisa resolver tudo. — Eu lembro da conversa dela

com Galina na noite passada. Quais foram mesmo as palavras? Essa não é a
primeira vez que eu tenho que lidar com um casamento indesejado.

Acredite, eu sempre acabo resolvendo no final. O que aquilo significava?

Sinto medo dela, e sinto que esse medo não é irracional. — Esta família já

tem galhos podres. Você é um deles, mas é um galho fácil de podar. Um filho

seria muito mais complicado.

— Um filho? — Penso em voz alta. Claro, fizemos sexo ontem e hoje

sem nenhum método anticoncepcional. Essa era a última coisa na minha

cabeça depois de toda aquela discussão.

— Ah, não me diga que não pensou nisso? Um filho Orlov, e você

ficaria para sempre em nossas vidas, sugando nosso dinheiro. Mas isso não

vai acontecer.

— Madame Olga, me desculpe, mas a senhora não pode vir aqui e

falar sobre... — engulo seco — sobre esse assunto, nem pode simplesmente

me acusar de...

— Acusar você de ser uma morta de fome indigna do sobrenome e do

império da minha família? Dizer que você é só uma filha de empregados e

que nunca vai ser mais do que isso? São apenas verdades, mas, por alguma

razão, ambos os meus netos estão obcecados por você, embora Mikhail ao

menos saiba que você só serve enquanto uma putinha de quarto de serviço.
Já Andreas acha que você é a luz do sol. Ele acha que é diferente do pai,
mas está tão encantado com você quanto o meu filho estava por aquela puta

italiana. Mas você é pior. Ela pelo menos tinha dinheiro apesar de vir de

uma família sem tradição. Já você.... Eu deveria saber quando Sergei chegou
com sua mãe, aquela mulata metida. E eu avisei quando vocês brincavam

naquela biblioteca, eu sabia que você acabaria na cama dele.

— Cale a boca! Não se atreva! Ouviu bem? A senhora não pode falar

dos meus pais! — grito irritada. Olga Orlov dá mais alguns passos na minha

direção, mas eu não me afasto, e a encaro diretamente nos olhos. — A

senhora é que é uma esnobe de nariz em pé que... — A avó de Andreas

acerta uma tapa no meu rosto que faz com que eu me cale. Sinto o local da

tapa queimar.

— Eu só não devolverei o tapa porque a senhora é uma anciã, e não

tenho o hábito de agredir ninguém, muito menos pessoas idosas. Mas, se

ousar fazer isso novamente, eu irei esquecer que a senhora é apenas uma

velha esnobe e amarga.

— Tome isto — ela diz me dando um comprimido. — Tome isto agora

mesmo, ou a sua vida vai ficar tão difícil que você vai desejar nunca ter

nascido.

— O que é isso? — Questiono sem entender. Meu coração está

batendo forte.
— Uma pílula do dia seguinte, sua vadia burra. — Eu me afasto dela, e

Olga avança na minha direção outra vez. Sua mão segura meu braço, e eu

tento me soltar enquanto ela coloca o comprimido na minha mão. — É

melhor que faça isso agora, pois, se acabar grávida, pode rolar de uma

dessas escadas.

— O que está acontecendo aqui? — Andreas pergunta. Meu olhar

corre para ele, que está dizendo alguma coisa à avó. Não consigo prestar

atenção, minha cabeça está zunindo. Observo quando Olga começa a se

afastar e é impedida por Andreas, que demanda uma explicação. Quando a

avó se nega a responder, meu marido se vira e chama meu nome. Ele quer

que eu explique, mas eu não sei por onde começar, então apenas solto a

caixa de remédio na sua mão e conto que Olga queria que eu o tomasse.

Ele vai até ela, furioso, e eles começam a discutir. Há um momento em

que Andreas fala tão alto que é como um trovão e, depois disso, tudo é

silêncio até ele voltar a falar outra vez. Ele a manda ir embora, mas não

apenas do atelier, da casa. Ele diz que é a nossa casa – dele, minha. Olga me
olha com ódio e, depois de mais alguma discussão, passa pela porta, mas

não sem que antes ele diga que a quer fora ainda hoje.

— Você está bem? — ele pergunta se abaixando um pouco para ficar

na altura do meu rosto. Eu aceno positivamente, mas ainda estou chorando.


— Ela falou coisas horríveis — afirmo meio anestesiada por tudo.

— Venha aqui — Andreas diz me abraçando. — Eu sinto muito, meu

amor, sinto muito.

Eu pergunto a Andreas se a avó dele tem razão, se deveria tomar o

remédio, se fomos inconsequentes por não termos nos prevenido.

— Não, ela não tem razão porque não é parte disso. Cabe a nós dois

decidirmos se e quando teremos filhos. — Ele se abaixa e pega a caixa do

comprimido no chão e a coloca na minha mão. — Se você quiser, se não

desejar correr esse risco agora, a decisão é sua, e eu vou apoiá-la de

qualquer forma, tudo bem?

— Tudo bem — digo abraçando-o outra vez.

Os dias que seguem a partida de Olga Orlov são de calmaria, mas

também de muita paixão. Eu optei por não tomar o comprimido. Pode ser

cedo na minha vida, no meu relacionamento com ele, mas decidi que, se for

o caso, podemos fazer isso.

Apesar disso, passamos a usar camisinha, pelo menos na maioria das

vezes, já que tem sido difícil nos mantermos longe um do outro. Vamos

juntos ao trabalho, nos beijamos pelos corredores da empresa, nos amamos


na piscina, no escritório. Tomamos banho juntos sempre que podemos, e

Andreas faz piadas sobre sustentabilidade. É como um sonho, como se


fôssemos o casal da revista. Felizes, apaixonados, incapazes de nos

mantermos distantes um do outro.

Minha parte predileta são as manhãs, quando acordo nos braços dele.

Seus lábios no meu pescoço e a sensação de que não há nada de errado no

mundo, de que todas as coisas estão alinhadas.

Não tocamos mais no assunto Mikhail, o nome dele é um tópico

proibido. Em alguns momentos, Andreas até parece querer me perguntar


algo, mas não o faz, e eu agradeço. Também não falamos sobre Olga. Apesar

disso, eu não consigo deixar de pensar nela quando minha menstruação chega
de surpresa no meio de uma tarde no trabalho, nas coisas que me disse, nas

ameaças que me fez.

Eu passei tanto tempo pensando que poderia ser verdade, contando os

dias, que comecei a imaginar como seria, como nosso filho – ou filha – se
chamaria, com quem seria parecido, com que valores o criaríamos. Quando

conto a Andreas que não existe a chance de que eu esteja grávida, ele me
abraça e pergunta se um dia eu quero filhos. Eu digo que sim, então meu

marido sussurra que, quando for a hora certa, nós vamos saber.

Eu conto a Vladmir sobre o que Mikhail falou, sobre como Elke pode
estar no país, e ele me pergunta, por razões óbvias, o que Mikhail tem a ver
com tudo isso. Eu digo que não faço a menor ideia, que tudo que sei é o que
Mikhail contou, mas o filho de Viggo não parece convencido.

— Mikhail não estava nos Estados Unidos alguns meses atrás, quase

na mesma época em que Elke viajou?

— Acho que sim — Deus, quando eu me tornei tão propositalmente

evasiva?

Ele percebe que não quero falar mais sobre isso, e me diz que vai
tentar descobrir alguma coisa e me pede para mantê-lo atualizado caso

qualquer novo pedaço de informação apareça.

No dia que completa seis meses da morte do meu pai, eu vou até o

cemitério. É a primeira vez que eu saio de casa sem seguranças; saio apenas
com o motorista, que fica me esperando na porta. Eu caminho pelos túmulos

até encontrar o local. Havia vindo aqui tantas vezes com meu pai, para
deixar flores para minha mãe, e só agora tinha reunido coragem para vir

depois do enterro dele. Em parte, minha demora foi movida por uma certa
culpa.

Passei muito do meu tempo, nesses meses, principalmente enquanto

Andreas estava na Sibéria, imaginando tudo aquilo acontecendo outra vez e


pensando em como tudo poderia ter sido diferente. Eu peço desculpas ao

meu pai. Peço desculpas porque aquela foi a única vez em que decidi fazer
algo diferente do que ele me disse para fazer, e isso resultou em sua morte.
Deixo as lágrimas correrem, coloco as flores entre seus túmulos e me viro

para ir embora, quando dou de cara com Mikhail.

— Não é culpa sua — Mikhail diz. Ele parece se materializar como

uma espécie de maldade à espreita que surge de repente em todo lugar. — O


Sergei sempre gostou de meter o nariz em problema que não era dele. Se

tivesse ficado quietinho, nada teria acontecido.

Eu escuto aquilo sem acreditar que ele está mesmo aqui, na minha
frente, que esses absurdos estão saindo de sua boca. Sou invadida por uma

fúria e descarrego-a sobre ele.

— Tire o nome do meu pai da sua boca. Você não tem o direito de

falar no meu pai, não depois de tudo que fez.

— Eu fiz? Agora, eu sou o culpado por ele ter um coração ruim? Além
disso, é assim que você trata seu cunhado predileto? — ele dá alguns passos

na minha direção, e eu me afasto.

— O que você está fazendo aqui? — Olho ao redor, e há apenas uma

senhora de cabelos grisalhos a alguns metros de distância. Isso me dá


vontade de sair correndo, mas não tenho certeza se minhas pernas

concordariam comigo e, por alguma razão, quero enfrentá-lo, e não fugir.


— Eu vim ver você, imaginei que viria hoje. Também imaginei que

viria no mês passado, mas você não tem sido uma filha tão boa. Acho que
você perdeu a noção do tempo enquanto brincava de casinha com o Andreas.

Eu tenho que dizer, Izolda, ele é meu irmão, e eu o amo de todo meu coração,
mas ele provavelmente não sabe o que fazer com você. Se eu pegá-la de

jeito, você nunca mais...

— Você não é metade do homem que o Andreas é, nunca poderia ser


— grito, interrompendo-o. A ideia dele me tocando me causa um asco. E,

neste momento, mudo de ideia. Não quero mais ficar aqui. O que ele tiver
para dizer não vale o risco. — Você é abominável. E eu não preciso ficar

aqui ouvindo você. — Eu começo a me afastar, e ele se aproxima outra vez.

— Sabe...

— Não chegue perto de mim — ordeno.

— Tudo bem. Hoje, eu vou ser comportado. Eu posso fazer essa


exceção, mas só ia dizer que já faz um bom tempo desde que lhe contei que a

Elke está no país. Achei que você iria querer saber mais.

— Como é que você consegue dizer o nome dela com tanta


casualidade, como se não a tivesse estuprado? Como se não fosse um

verme....
— Estuprado? Esse sempre foi o problema de Elke, ela tem

imaginação fértil demais. A verdade, Izolda, é que sua amiga queria. Ela
estava pedindo por aquilo há tanto tempo, me dando sorrisinhos, me olhando

daquela forma, aparecendo no meu quarto enquanto eu tomava banho e


acompanhada por você. Ou você acha que eu não vi vocês naquele dia?

— Nada disso lhe dava o direito de... de fazer o que você fez com ela.

— Querida, aquela noite deveria ter sido nossa. Se você quer culpar
alguém, culpe a sua amiga por ir atrás de mim enquanto eu estava procurando

você.

— Onde ela está? — Pergunto, perdendo minha paciência. A senhora

no túmulo próximo nos olha, e eu quero gritar socorro, mas também quero
ouvir a resposta dele.

— Venha até a minha casa, eu posso levá-la até ela.

— Você a sequestrou?

— Claro, porque agora você vai me acusar de ter estuprado e


sequestrado a sua amiga. Você consegue ouvir o quanto isso é patético?

Sabe, sempre achei vocês duas diferentes demais para serem amigas, mas
agora encontrei o ponto em comum: ambas são delirantes e precisam parar

de falar sandices. Amanhã, na minha casa, depois das dez, há algo que a
família dela está tentando esconder, e eu posso lhe contar tudo.
— Não existe a menor chance de que eu vá à casa de um estuprador...

— Você está começando a me irritar com essa palavra, se eu fosse


mesmo isso, eu foderia você aqui, contra o túmulo dos seus pais. Não seria

divertido?

— Se você não me disser onde ela está, eu vou até a polícia, eu vou...

— Você não vai fazer nada. Você nem teve coragem de contar essa sua

"verdade" — ele diz fazendo aspas no ar — ao seu maridinho, teve? E fez


bem. Ele não acreditaria em você, ele ficaria ofendido de ouvir acusações

como essa com o nome Orlov. Não seria a primeira vez que alguém tenta
espalhar rumores a meu respeito. Além disso, Izolda, você deveria saber que

eu posso acabar esquecendo que ele é meu irmão e fazer algo muito, mas
muito ruim contra ele, e não queremos isso, queremos?

A ideia de que ele possa machucar Andreas me atravessa como uma


flecha, e é só nessa dor que eu consigo pensar quando uma mão leve toca

meu braço.

— Querida, você pode me ajudar a encontrar a saída? — uma voz


gentil pede. Eu olho para a mulher de cabelos grisalhos que vai me levando

com ela até que começamos a nos afastar de Mikhail. Meu corpo se move
junto com a estranha, como se cada célula quisesse mesmo estar indo na

direção oposta a Mikhail, mas minha cabeça fica lá, presa em suas ameaças.
— Você parecia precisar de ajuda — a mulher diz quando chegamos ao
portão principal.

— Obrigada — digo tentando sorrir para ela, mas sem conseguir. — A


maioria das pessoas teria se afastado.

— Querida, eu já vivi o bastante e vi mais do que gostaria. Sei quando

os homens estão perversos por puro prazer, e era isso que havia na postura e
no olhar daquele rapaz. Sei que não é da minha conta, mas fique longe dele.

Eu entro no carro e só então noto que todo o meu corpo está trêmulo.
Tento respirar fundo e parecer minimamente bem quando o motorista me

pergunta se estou me sentindo mal. Minto, claro. Estou me tornando


especialista em esconder as coisas de todo mundo. Quando ele me pergunta

se devemos ir para a empresa, digo que quero ir para casa.

Eu adoraria correr para os braços de Andreas agora, mas não posso

fazer isso neste estado. Se eu contar isso a Andreas, ele vai querer brigar
com o irmão, e tudo em que eu consigo pensar é na ameaça que Mikhail
acabou de fazer, “eu posso acabar esquecendo que ele é meu irmão e fazer
algo muito, mas muito ruim contra ele, e não queremos isso, queremos?

Eu envio uma mensagem para Andreas dizendo que vou voltar para
casa, pois estou com dor de cabeça, e adiciono essa à minha lista de
omissões. Ele responde sendo fofo e preocupado, e isso me deixa ainda mais
culpada. No caminho para casa, eu penso sobre o que ele falou da família de
Elke estar escondendo alguma coisa.

Só consigo pensar que ela está grávida, que aquela maldita noite, que é

um pesadelo contínuo, vai ficar com ela pelo resto da vida. Minha mente
avança em diferentes possibilidades, faz tantos meses agora. "Ela poderia
ter feito um aborto com segurança aqui mesmo na Rússia, ou nos Estados
Unidos; em ambos os lugares, de forma legal" ou "Mas seus pais

deixariam se soubessem sendo tão católicos?" são apenas algumas das


perguntas que rondam a minha mente.

O carro para na frente da casa, e agradeço ao motorista e entro. Estou


prestes a subir quando escuto a voz do tio de Andreas. O homem está parado
entregando uma mala a Jaime, um funcionário da casa. Eu tinha esquecido de

que ele passaria a noite aqui hoje. Andreas tinha comentando alguns dias
atrás. Olho rapidamente para o espelho perto do hall de entrada e me
certifico de que não externo a forma como me sinto por dentro.

— Bom dia, senhora Orlov, isso chegou para a senhora — o jovem

que auxilia nos serviços de manutenção diz me olhando. Eu pego o envelope


e solto na bolsa sem me importar. Nunca recebi correspondências para além
da fatura do meu cartão de crédito ou assinatura de uma revista de arte que
meu pai tinha me dado de presente. Minha atenção vai para Nikolai, que

parece surpreso com minha presença.


— Izolda? Achei que você e meu sobrinho não estivessem em casa —
Nikolai fala sorrindo.

— Andreas está trabalhando, mas eu vou ficar em casa hoje.

— Espero não incomodar, vou matar o tempo aqui até uma reunião.
Esta casa é mais convidativa agora que Olga não está espreitando — ele
afirma.

Eu o convenço a tomar um café comigo. É isso que uma boa anfitriã

deveria fazer, certo? Sentamo-nos na sala de estar, e eu pergunto se ele fez


uma boa viagem usando o termo "senhor", que ele rapidamente faz questão
de me dizer, não pela primeira vez, para não usar. Conversamos sobre
algumas amenidades até que ele toca outra vez no nome de Olga Orlov.

— Não sei o que aconteceu, mas é bom saber que ela está longe daqui.

Por muito tempo, eu temi sua influência sobre Andreas depois que meu irmão
morreu, temi que ele ficasse igual a...

— Ao Mikhail, você pode falar o nome dele — digo. — Ele sempre


foi assim? Pergunto porque, quando eu era pequena, Mikhail já era bem mais

velho, um adolescente.

— Sabe, Izolda, as pessoas costumavam dizer que ele ficou como é


depois que a mãe morreu, ou quando o pai se casou outra vez, ou que foi a
chegada de Andreas que o fez se sentir escanteado e passar a pedir por

atenção, mas eu não acho que nada disso mudou quem ele é de fato.

— O senhor, quer dizer, desculpe... você está dizendo que acha que há
algo de errado com ele?

— Izolda, o único assunto sobre o qual me considero especialista é o


mar, então não vou ser a pessoa mais indicada para essa avaliação. Mas, se

eu tivesse que apostar, diria que não. Não há nada clinicamente errado com
ele, Mikhail só está acostumado a ter tudo. Cresceu achando que tem o rei na
barriga e que nunca vai ser responsabilizado por nada.

— Mas ser ou não responsabilizado não é algo que depende só dele,


é? — Eu quero perguntar se Mikhail já fez algo que foi encoberto, mas não

sei como fazer isso sem parecer óbvia demais – ou interessada demais – no
meu cunhado.

— Não. E com Olga Orlov cuidando dele, ele nunca será


responsabilizado por nada. Não existem limites de até onde Olga iria para
manter o nome Orlov intacto. Eu cresci longe desta casa, mas as histórias

nos alcançam. Minha mãe, que era a mulher mais corajosa que eu já conheci,
tinha medo da Olga, então isso, para mim, já era o suficiente para evitar ficar
no caminho dela.
— Aí está você! — Eu tiro meus olhos de Nikolai sendo surpreendida

pela voz do meu marido. Ele me avalia como se procurasse por algo errado.
— Eu vim ver como você está; disse que não estava se sentindo bem.

— Não precisava, amor — respondo. E, no momento, que percebo que


o chamei de amor na frente de outra pessoa. Sinto meu rosto pegar fogo.
Andreas cumprimenta o tio e senta-se ao meu lado, dando um beijo no meu

rosto.

Andreas acaba decidindo ficar em casa até o horário do almoço, e eu


subo para tomar um banho e tentar organizar minhas ideias, ou ao menos
tentar. Minha cabeça está borbulhando de especulações. Eu abro a bolsa

para pegar meu celular e há uma mensagem de um número desconhecido: “Se


você fosse uma boa amiga, viria saber do destino da pobrezinha da Elke.
Um beijo do seu cunhado predileto.”

O inferno vai congelar antes que eu me coloque outra vez na posição


de ficar sozinha com Mikhail.
— Deus, como você é linda! — digo enquanto Izolda está jogada na

cama, completamente nua, me olhando. Os cabelos esparramados em

pequenas, mas volumosas, ondas castanhas que combinam com seus olhos.
Tudo nela me deixa excitado e, quando estamos assim, nesses momentos de

intimidade, eu fico pensando que poderia chegar ao ápice só de olhar para

Izolda.

Eu me aproximo e a beijo. Sinto seus lábios se movendo com os meus,

as mãos às minhas costas. Interrompo o contato de nossas bocas e desço

meus lábios pelo espaço entre seus seios. Faço isso lentamente, deixando
beijos e arrancando suspiros que se tornaram o meu som predileto. Continuo

avançando por sua barriga, virilha, até chegar aonde realmente quero.

Ela se abre para me receber, então minha língua começa se


movimentando pelo seu clitóris, e eu só consigo pensar no quanto ela é

saborosa. Eu a estímulo até que minha esposa começa a chamar pelo nome

em meio aos gemidos, pedindo para que eu a penetre, suas mãos na minha

cabeça, puxando meu cabelo, o quadril movimentando aquela boceta

maravilhosa na minha cara.

— Eu preciso de você dentro de mim, amor. — “Amor”. Quando ela

diz essa palavra, o resto do mundo sempre parece desaparecer por alguns

segundos. Tudo em que consigo me concentrar é no som carinhoso com o


qual diz "amor". Eu termino de fazê-la gozar com o oral e, então, posiciono

meu pau enquanto estou lambendo o resultado do orgasmo dela espalhado em


meus lábios.

— É isso que você quer? — pergunto maliciosamente enquanto a

penetro. A boca de Izolda se abre e solta um som que me deixa, se possível,

ainda mais excitado. — Diga-me quando o ritmo estiver bom — digo


aumentando a força da penetração e dos movimentos. Ela pede por mais, e

eu atendo seu pedido com todo prazer.


Depois de um tempo, eu a coloco de lado e continuo penetrando numa

nova posição. Há tanto mais que gostaria de fazer com ela, mas sei que sexo

requer intimidade e confiança, e, mesmo que tenhamos a intimidade, ainda

podemos trabalhar no quesito confiança. Expulso os pensamentos da nossa

cama, aqui só interessa o prazer. O meu e o da minha esposa.

Izolda solta gritos de prazer deliciosos, então eu coloco ainda mais

intensidade nos movimentos enquanto minha não acaricia seu peito. Sinto

Izolda gozar pelo que deve ser a terceira vez nesta manhã, e só então me

permito fazer o mesmo. Assim que saio de dentro dela, retiro a camisinha e a

jogo na lixeira ao lado da cama.

Izolda se vira para mim e me beija. Sua mão desce pelo meu peito até

encontrar meu pau, que rapidamente se anima outra vez. Eu sei que preciso

levantar da cama, mas o argumento da mão de Izolda me estimulando é muito


convincente. Ela olha nos meus olhos agora. É diferente de antes, quando

mal podia me encarar ao me tocar, e eu gosto de vê-la assim, mais solta.

Izolda desce pelo meu corpo, e eu fico surpreso quando coloca sua boca no

meu pau. O calor daqueles lábios carnudos ao redor da minha ereção me

enlouquece. Ela parece um pouco sem jeito, mas a encorajo a continuar.

Coloco minhas mãos em seu cabelo, mas apenas os acaricio. Deixo

que ela determine o ritmo, que ela decida o que fazer. Deixo meu corpo

relaxar na cama enquanto vou sendo invadido pelo prazer. Izolda chupa meu
pau agora sem receios, guiada pelos gemidos de prazer que me proporciona.

Eu sinto os sinais de que estou prestes a gozar, mas me controlo o máximo

possível. Essa mulher me enlouquece de um jeito sem precedentes. Tudo


nela mexe demais comigo. Eu a amo, a desejo. Preciso dela como preciso de

meu coração batendo no peito para continuar vivo.

E faço um esforço sobre-humano para prolongar ao máximo esse

momento de entrega maravilhoso, quando minha esposa se entrega a mim

como minha mulher tão naturalmente, e arquivo em minha memória essa

imagem linda da minha Izolda, a mulher da minha vida, me fazendo gozar

dessa maneira esplêndida pela primeira vez.

Espero que seja a primeira de muitas. Quando o clímax me atinge e me

desnorteia, me afasto dela rápido, mas gentilmente para não gozar em sua

boca. Acho que ela ainda não está pronta para isso. Ainda não. Então, me

derramo em jatos fortes, sorrindo satisfeito e sem fôlego, e com meu corpo

todo explodindo de prazer por ela. Mas consigo trazê-la para junto de mim

novamente. Não posso tê-la longe agora. Vejo-a sorrir em um misto de

timidez e vitória e, em igual medida, de satisfação e consciente do efeito tão

poderoso sobre mim.

Ficamos assim, juntos, até meu celular começa a apitar, e eu não

preciso olhar para saber que é Minerva. Eu deveria estar no trabalho meia
hora atrás.
— Precisamos levantar, meu amor. Eu tenho uma reunião e não...

— Não — ela pede manhosa. Izolda passa o corpo por cima do meu,

as pernas na lateral do meu corpo. — Não podemos ficar aqui só mais um


pouquinho?

— Eu adoraria, mas realmente tenho que ir.

— Tem mesmo? — ela pergunta rebolando em cima de mim. Merda!

Eu mordo o lábio e assisto aos seus seios tão firmes se movendo levemente

enquanto ela se movimenta. Quero levar minha boca até eles, mas Izolda

coloca a mão no meu peito, indicando que eu devo permanecer onde estou.

— Eu já não tenho mais tanta certeza — respondo. Meu pau vai

ficando rígido outra vez, e Izolda desliza a mão livre para alcançá-lo e o

guiar para dentro de si.

Receber-me dessa forma, mesmo excitada, vai ser novo, e existe uma

chance de que ela sinta dor. É uma posição mais intensa e que significa

penetração total sem as restrições que eu normalmente tenho por medo de

machucá-la.

Izolda parece perceber isso quando se acomoda deslizando pelo meu

pau. Há uma expressão de dor, e eu noto que, além disso, estamos sem

camisinha outra vez. Ela coloca as mãos nos meus ombros com força

enquanto termina de descer, e eu adoro a sensação de estar dentro dela. Eu


levo minhas mãos para suas nádegas e quero fazer com que ela se mova, mas

espero que Izolda inicie.

— Que ficar por baixo?

— Não — ela diz decidida. — Eu quero ver você, assistir ao seu

prazer como você faz comigo. Só preciso de um minuto.

Ela começa a se mover, primeiro devagar, um pouco sem ritmo, e eu a

ajudo a encontrá-lo. Quando acertamos o passo, sou atingido por ondas de

prazer em cada movimento do seu quadril enquanto ela move ao redor do

meu pau, fazendo-o latejar ainda mais. Assisto enquanto Izolda joga o corpo

para trás e rebola com mais força. Estico uma das mãos até seu seio e o

aperto sem nenhuma delicadeza. Quero mordê-lo, quero saborear cada

pedaço dela. Quero que Izolda saiba o quanto eu adoro esta sensação.

— É sempre tão bom assim? — Izolda me pergunta alguns minutos

depois, aninhada em meu peito. — Fazer sexo é sempre... desse jeito como é

entre nós?

— Não — respondo sendo honesto. Eu já tinha pensado sobre isso,

sobre como nenhuma outra mulher nunca teve o mesmo efeito que Izolda tem.

— Na maior parte do tempo, o que os homens avaliam como uma boa transa

não é a mesma coisa para mulheres. O que quer dizer que, se você acha bom,

eu acho incrível.
— Achei que, no nosso caso, pudesse ser o contrário, que você não

estivesse gostando tanto quanto eu, porque há muita coisa que eu sinto que

não sei fazer.

Eu poderia dizer que o fato dela ser inexperiente me deixa excitado,

mas isso parece neandertal demais. O pensamento aparece e é imediatamente

expulso do meu consciente.

— Izolda... — começo a dizer tocando em seu queixo —, eu gosto de


transar com você porque é com você, porque você é linda, gostosa, e porque

eu a amo. Todo o resto, ser experiente ou não, isso não faz diferença, porque
o sexo não teria a mesma intensidade se fosse outra mulher aqui comigo.

Izolda sorri envergonhada, mas parece satisfeita com a minha resposta.

— Então, quer dizer que sexo só é bom quando há amor envolvido?

— Não necessariamente. Você pode transar com alguém sem

sentimento algum e ainda ser algo excelente. O problema é que, quando você
ama alguém, quando está apaixonado, sexo com qualquer outra pessoa perde

o sentido. E até mesmo brigar com você seria melhor do que transar com
outra pessoa.

— É por isso que é tão difícil não amar você — ela diz sorrindo.

— E você tem tentado não me amar? — provoco segurando-a com


firmeza contra o meu corpo.
— Eu desisti quando percebi que não teria a menor chance.

Chego ao trabalho com quase uma hora de atraso e com apenas cinco
minutos para a reunião com o setor de engenharia. E minha mente, de alguma

forma, ainda não está aqui totalmente. Estou pensando em Izolda, que ficou
no cemitério para visitar o túmulo do pai. Ela estava tão reticente quando

nos despedimos na entrada da casa. Eu sabia que ela estava adiando fazer
aquilo e gostaria de ir com ela, mas entendia seu desejo de fazer aquilo

sozinha. Além disso, eu poderia passar mais tarde e prestar minhas


homenagens sozinho a Sergei.

Escuto enquanto o engenheiro da planta apresenta os relatórios de


qualidade e medição da obra. Cada novo tanque, cada novo filtro e qualquer

outro equipamento é como uma obra independente e significa um passo


gigante para mim enquanto gestor do Grupo Orlov. É a primeira grande

expansão em quase duas décadas, e o meu perfeccionismo sempre ataca


nesses momentos. Quando a reunião acaba, vou até minha sala acompanhado
por Minerva.

— Não faça nenhuma nota pública sobre o andamento da obra, talvez


não possamos cumprir os prazos. Parece que, a cada reunião, surgem dez

problemas diferentes.
— Andreas, imprevistos são comuns em qualquer obra, e você é tão
obcecado com previsões que já tínhamos planos de ação para a maioria

deles. Vai ficar tudo bem. Além disso, eu tenho algo mais importante para
falar com você. Consegui o que pediu.

— Sério? — pergunto ficando tenso. Semanas atrás, eu tinha pedido a


Minerva para conseguir um bom profissional de tecnologia da informação

para recuperar as fotos da noite da festa de Mikhail.

— O que você me pede que eu não consigo? — Ela questiona me


entregando um pendrive. — Estão aqui. Ele encontrou em um backup de

servidor do site de fofoca que fez a primeira postagem. Ele também me


alertou que a pessoa que tirou essa foto provavelmente ainda a tem e cobrou

uma pequena fortuna para hackear cada celular se déssemos uma lista de
convidados.

— Isso é definitivamente criminoso — comento colocando o pendrive


no computador.

— Para que precisa dessas fotos? Achei que não quisesse ver isso

nunca mais.

— Não quero, mas preciso. Há uma coisa que não sai da minha

cabeça.
Abro a pasta e vejo as imagens. São cinco fotos desfocadas que

definitivamente mostram Mikhail. Mesmo no terno, a tatuagem aparece no


seu pescoço, que está inclinado para a frente. Todo o resto é apenas um vulto

de tecido preto. Eu tinha suposto que aquela era Izolda, afinal de contas,
aquele era o quarto dela, na noite da festa, e as palavras de Sergei acusavam

meu irmão de ter acabado com a reputação dela. Não, não foi isso que ele
disse, foi "da menina".

— O que você vê nessa foto? — Pergunto. Minerva chega mais perto e

se inclina sobre meu ombro.

— Que a pessoa que as tirou precisa de um celular melhor — Minha

amiga diz mudando de posição para me encarar. — Andreas, a Izolda lhe


disse que não teve nada com ele. Vocês parecem felizes, por que mexer
nisso? Você mesmo me disse que achava que o que a Izolda estava

escondendo era o fato de que Mikhail tinha tentado abusar dela por anos.

— Eu não sei, parece haver mais nisso, Minerva. Eu acredito no que a

Izolda disse, acredito que ela nunca quis nada com ele. O problema é que há
algo que não se encaixa nessa história. Eu já rodei os cenários na minha

cabeça diversas vezes. Mikhail foi até o quarto dela, tentou alguma coisa,
não conseguiu. O Sergei ficou sabendo e foi atrás dele, aconteceu o ataque

cardíaco. Mas, se fosse assim, por que meu irmão mentiu? Por que ele disse
que dormiu com a Izolda?
— Andreas, seu irmão é um Сволочь, é óbvio que essa é a forma nova

que ele encontrou para tentar atingir você. E ele sabe que está conseguindo,
Mikhail quer provocá-lo, e você está deixando.

Ela parece Sergei falando quando eu era criança. A diferença agora é


que eu sou maior, mais forte e tenho mais poder que meu irmão. E minha

consciência me deixa, de alguma forma, leniente aos seus comportamentos.


Eu deveria ter levado a Izolda até a polícia e prestado queixas contra

Mikhail por todo o abuso.

— Eu não posso protegê-la se não souber o que...

— Quem disse que você tem que protegê-la, Andreas?

— Eu prometi ao Sergei que cuidaria dela, que ela ficaria segura.

Além disso, ela é minha esposa, e eu a amo, Minerva. É claro que eu quero
protegê-la.

— Tudo isso é muito bonito, mas qual exatamente é seu plano? Você
vai colocar seu irmão contra a parede até ele confessar? Vai esperar que a

Izolda mude de ideia e lhe conte? Porque, se ela o ama, eu vejo no olhar
daquela garota que sim, e, mesmo assim, não contou seja lá o que foi que

aconteceu naquele dia, ela deve não conseguir falar ou processar o trauma,
ou simplesmente não pode contar. Ou seja, não há nada que você possa fazer.
— Eu acho que pode haver uma alternativa, uma outra pessoa que
pode saber o que aconteceu.

— Quem?

— Ok, mantenha a mente aberta aqui, certo? E se essa não for a


Izolda?

— E quem seria?

— A única pessoa no mundo a quem Izolda considerava como família


depois do pai antes de tudo isso. Elke.

— Pavlova?

— Sim.

— Ok, Fandorin (menção ao detetive russo fictício do século 19 e

herói de uma série de romances policiais históricos). Quais são as suas


evidências?

— Nenhuma. Eu só acho que, se ela não pode me contar porque está

protegendo alguém, essa pessoa só pode ser a Elke. Elas cresceram grudadas
e sempre foram extremamente protetivas uma com a outra. Sempre as

considerei mais irmãs do que eu e Mikhail somos.

— Se formos justos, quaisquer duas pessoas que consigam passar uma

hora no mesmo ambiente sem uma briga são mais irmãos que vocês,
Andreas. Espere um minuto — ela diz antes que eu possa falar algo sobre
sua tentativa de piada. Minerva pega o mouse e tenta ampliar a foto, que fica
ainda mais pixelada. — As duas de fato estavam com roupas quase idênticas

na festa, mas não dá para ver detalhes nestas imagens sem resolução. Vou
comprar sua ideia. Se essa for mesmo a Elke, por que tanto segredo?

— Eu não sei, mas preciso tentar encontrá-la — conto a ela sobre os


EUA e minha conversa com Pavlova e peço para que ela encontre alguém

que possa investigar.

— É por isso que o resto do mundo acha que todos os russos são
espiões — ela diz sorrindo. — Pode deixar. Se isso vai deixá-lo mais

tranquilo, vamos investigar.

Eu recebo uma mensagem de Izolda e fico preocupado. Imagino que

ela estava se sentindo triste depois de visitar o túmulo de Sergei, e isso me


impede de me concentrar em outra coisa. Por isso, cancelo uma reunião do

final da manhã e dou um pulo em casa para conferir como ela está. Entro
pelo acesso lateral e vou direto para o nosso quarto, mas Izolda não está lá.
Então, desço as escadas pensando em ir até o atelier, talvez ela estivesse
pintando, mas ouço vozes ao chegar no fim da escada e encontro Izolda na

sala conversando com Nikolai.

Eles estão falando sobre a mãe de Nikolai, o que me surpreende, meu


tio quase nunca fala sobre a relação que meu avô teve com sua mãe, pelo
menos não comigo. Tudo que eu sabia era que a mulher tinha morrido quando
ele ainda era criança, e meu pai o enviara para estudar num internato por

alguns anos. Parece errado os atrapalhar, mas ouvir a conversa sem me


anunciar também seria. Então, solto um "Aí está você" meio sem jeito e
cumprimento meu tio e dou um beijo no rosto de Izolda e sento-me ao lado
dela.

Nikolai diz que tem uma reunião com clientes, e eu falo que devemos

almoçar juntos, ao menos, já que ele vai embora na manhã seguinte. Izolda
reforça o convite e, um pouco depois, pede licença dizendo que precisa
subir.

Pergunto se há algo que eu possa fazer, e ela agradece com um sorriso


meio triste e passa a mão pelos meus cabelos: — Não se preocupe.

Assim que Izolda sai da sala, meu tio me olha, e eu vou até o bar e
pego dois copos e nos sirvo de vodka.

— Esta casa parece mais ampla sem a presença da sua avó — meu tio
diz, dando um gole na bebida.

Eu dou uma risada, mas imediatamente me sinto mal por isso.

— Ainda estou tentando me acostumar. Quer dizer, eu devo confessar


que é bom não a ter por perto, mas, sempre que penso nisso, questiono que
tipo de pessoa expulsa a própria avó de casa e ainda se sente bem?
— O tipo de pessoa que tem senso de autopreservação. Eu estava
começando a desconfiar de que não tinha um, meu sobrinho. Você se parece

demais com a sua mãe, sempre tentando procurar o lado bom de alguém
mesmo quando a outra pessoa já deu todas as evidências de que não tem esse
outro lado.

— Eu sei do que a minha avó é capaz — digo. Meu tio parece duvidar
da minha afirmação, mas não discuto. — Mas ela ainda é a minha avó.

Almoçamos juntos, e eu volto para o trabalho levando Izolda, que


finalmente parece se sentir melhor. Eu passo o resto da tarde em reuniões de
vídeo com CEO de empresas que compram nosso refino, negociando. Há um
problema com as vendas e preciso ir à China negociar um novo contrato

urgentemente. Peço para minha secretária organizar a viagem para o começo


da noite e, quando deixo minha sala para ir até o planejamento coordenar
com eles o que podemos oferecer nesse novo acordo, vejo Izolda deixando o
escritório de Vladmir.

— Oi, linda — digo sorrindo. Izolda sorri e segura na minha mão.

— Você está ocupado?

— Preciso passar no planejamento. Você quer ir para a China?

— China? Quando?
— Em algumas horas. Já mandei preparar o jato. Preciso renovar um

contrato. Se sairmos na hora que planejei, vamos chegar lá por volta das
cinco da manhã. Minha reunião começa às sete.

— Eu vou para qualquer lugar com você, mas tenho aula de pintura
amanhã cedo.

— Tudo bem, eu vou na frente, e você vai no outro jato depois, pode

ser? Podemos passar uns dias, você pode conhecer Hong Kong.

Ela acena positivamente e sorri, então solto sua mão e lhe dou um
rápido beijo nos lábios.

— Tenho que ir. — Digo me afastando.

— Andreas... — ela me chama. Olho para Izolda, que está mordendo o


lábio. — Podemos conversar amanhã, depois da sua reunião?

— Claro, amor. Quando você quiser.

Estou prestes a ir embora, mas algo na forma como ela me olha não me
deixa ir. Então, me aproximo outra vez, e Izolda me abraça com força.

— Você quer conversar agora?

— Não, isso pode esperar. Eu amo você — ela diz antes de me beijar.
— Esta é a primeira vez que não dormimos na mesma cama desde que

você voltou da Sibéria — Izolda diz. Seguro o Ipad mais perto enquanto

olho para o rosto dela. Minha mulher está usando uma camisola branca que
eu adoro, e posso ver seus seios pelo decote enquanto ela apoia os cotovelos

na cama. — E esta cama parece dez vezes maior sem você nela.

— Esse é seu jeito de contar que eu sou espaçoso demais?

— Não. Eu não me importaria se você ocupasse a cama inteira. Além


disso, eu poderia dormir em cima de você. Aposto que seria bom.
— Eu gosto desse seu lado mais ousado — confesso.

— Meu Deus, eu não acredito que disse isso. Ainda bem que você está

de fone de ouvido, imagina a Minerva ouvindo isso?

— A Minerva dormiu antes de o voo decolar, ela odeia voar. Por

sinal, só veio porque eu realmente preciso muito dela para essa reunião.

Como estratégia de enfrentamento, ela tomou um comprimido e uma taça de


vinho. Acho que vou ter que carregá-la para fora desse avião.

— Você tem muita sorte de ter uma amiga feito ela — Izolda diz. Ela

soa um pouco contemplativa.

— Eu sei, ela não me deixa esquecer isso — Respondo sorrindo.

Imagino se a minha relação com Minerva a faz pensar em Elke. Quero fazer a

pergunta que ronda minha mente há semanas, quero perguntar se aquela era
mesmo a amiga dela, naquele quarto com Mikhail, mas decido esperar mais

um pouco, ao menos até ouvir notícias do investigador que Minerva

contratou. — Você está bem? Parece triste.

— Eu vou ficar bem quando estiver perto de você — ela responde.

— Meu Deus, como a minha esposa está romântica — provoco. Izolda


morde o lábio e prende um sorriso.

— Você vai me achar uma boba, mas eu me arrependi de ter ficado

aqui sem você. Eu podia ter cancelado a aula ou intercalado com outra
atividade, sei lá. É estranho estar nesta casa sozinha. Eu fico achando que a

sua avó vai aparecer e me expulsar.

— Ela não vai, essa é a sua casa. Eu fiz questão de rever a equipe de

segurança da casa e colocar apenas gente que sei que é leal a mim, não a ela.

Não se preocupe, não existe lugar mais seguro.

— Tudo bem, então vou deixá-lo descansar para sua reunião. Vemo-

nos amanhã?

— Claro, linda. Eu vou mandar alguém buscá-la no aeroporto e levá-la

para o hotel. Minha última reunião demora um pouco, mas, assim que estiver

livre, vou encontrá-la, tudo bem?

Ela acena positivamente e diz que me ama. Eu me sinto da mesma

forma, com uma intensidade que me assusta. Eu entendo agora a devoção do

meu pai pela minha mãe, porque não existe nada que me importe mais do que

a felicidade e a segurança de Izolda. Não existe um dia ruim que não seja

melhorado só por olhar para ela, por tocá-la, por sentir seus lábios nos

meus. Eu nunca pensei que pudesse me apaixonar outra vez, depois de

Galina. Mas, principalmente, eu nunca achei que fosse possível, para mim,

amar dessa forma.

Despedimo-nos, e eu olho para Minerva, que está na poltrona perto da

minha, do outro lado da aeronave. Ela está dormindo com uma venda nos
olhos, almofada no pescoço, totalmente coberta com uma manta, e eu não

consigo ficar sério com a cena. Tiro uma foto da minha amiga e a envio para

Izolda com o texto: "Minha companheira de voo totalmente apagada". Ela


responde rapidamente com algumas risadas e um: "Pelo menos ela foi. Com

medo, mas foi".

— Eu odeio você — Minerva diz quando mostro sua foto horas

depois. Estamos esperando pelos executivos chineses. Chegamos mais cedo

porque pontualidade é uma questão importante com esse grupo de

empresários. — Você dormiu alguma coisa, ou ficou tirando fotos minhas o

voo inteiro?

— Dormi, estou ótimo. Estou um pouco preocupado com esse contrato

porque você sabe bem quais as implicações se não o renovarmos, mas, fora

isso, tudo tranquilo.

A China é um dos nossos principais compradores. Principalmente com

a queda de demanda europeia, em um mês, eles chegam a comprar mais de

um milhão de toneladas de petróleo, isso apenas com o Grupo Orlov. No

entanto, negociar com eles sempre requer cautela e horas de reuniões e

compromissos legais.

A primeira reunião se arrasta por horas e mais horas, e, embora meu

celular tenha vibrado algumas vezes, eu não ouso pegar o aparelho. É


péssimo sinal em uma reunião desse tipo, e esses empresários se ofendem

com facilidade.

— Com base nessa projeção comercial e com tudo que temos feito em
termos de pesquisa de marketing, estamos otimistas com a nova refinaria.

— E quando podemos dobrar a nossa demanda mensal? — o CEO do

grupo pergunta. Minerva me olha rapidamente. Temos dúvidas sobre essa

questão, e eu sei que ela está esperando que eu tome a palavra, o que eu

prontamente faço.

— Seis meses para dobrar, mas estamos ativando as duas primeiras

torres da refinaria nos próximos dois meses, então podemos operar com
cinquenta por cento desse aumento.

O homem parece satisfeito, mas nos pede relatórios de qualidade e as

avaliações de medicação que indicam os prazos de entrega da obra, então

Minerva volta a campo e apresenta tais dados. Isso tudo leva mais uma hora,

e decidimos continuar a reunião em um restaurante que pertence ao CEO do

grupo.

— Mande um e-mail para Viggo e Pavlova agora — digo assim que

começo a caminhar junto com Minerva. — Passe nossos prazos.

Ela acena positivamente, e vamos almoçar. No carro, no caminho para

o restaurante para encontrar um outro grupo de empresários, penso em ligar


para Izolda, já que esse vai ser meu único momento livre durante todo o dia,

mas ainda são sete horas da manhã em Moscou, e ela ainda deve estar

dormindo. Nesse exato momento, recebo uma ligação de Pavlova falando

que os prazos que Viggo passou para a entrega não se sustentam. Converso

com Pavlova, explico o que precisa ser feito e digo que, assim que estiver

de volta a Moscou, preciso de uma reunião com os dois para alinhar tudo.

Estou entrando no restaurante quando meu telefone toca outra vez, mas

agora é o rosto de Izolda que aparece na tela.

— Oi, linda. Eu estava pensando em você, mas não queria acordá-la.

— Acabei de acordar, queria só dizer oi e que eu o vejo mais tarde, e

achei que seria o único momento possível com todas as suas reuniões.

— Só um minuto. Minerva, pode ir entrando. Eu já estou indo — digo


abrindo a porta para minha amiga. — Amor, eu tenho uma reunião importante

começando agora, bom dia e boa aula, tá? Eu amo você.

— Eu também amo você.

Assim que termino de falar com ela, desligo o telefone e entro no

restaurante. São mais algumas horas de negociações, algumas demandas,

concessões, risos forçados com piadas ruins e de Minerva encantando todos


com suas pesquisas e projeções para o futuro do Grupo Orlov.
A noite já está avançada quando finalmente saímos da última reunião.

Olho para o relógio, já passa das nove da noite. Izolda deve ter acabado de

chegar ao hotel.

— Caramba, que dia. Eu preciso de uma dose de vodka — Minerva

diz sorrindo. Eu coloco o braço no ombro da minha amiga e caminho junto

com ela até o carro.

— Obrigado por ter vindo, você foi fantástica.

— Andreas, eu só fiz o meu trabalho.

— Teoricamente, isso é verdade, mas ninguém o faria com tanto


empenho e devoção. E eu estava pensando em algo que a Izolda me disse

mais cedo, sobre como eu tenho sorte de ter a sua amizade. Só queria que
soubesse disso porque acho que nem sempre deixo isso claro.

— Deixa, claro que deixa — ela afirma sorrindo. — Andreas, você

pode não ser a pessoa mais falante do mundo quando o assunto são os seus
sentimentos, mas eu sei o quanto você se importa pelas suas ações, e eu

sempre me considerei sortuda de ter você como meu melhor amigo.

Dou um beijo na testa de Minerva e abro a porta do carro para que ela

entre.

— Vamos tomar essa vodka no hotel.


— Não, você vai ficar com a Izolda, que está há horas naquele hotel,
sozinha. Eu vou ficar no bar e encontrar um gato para me distrair um pouco.

Vai ser bom sair com alguém em Pequim, variar um pouco essa coisa dos
homens russos.

— Você vai me trocar e me diz isso com essa tranquilidade?

— Claro! Eu vejo você todo dia.

Minerva religa o telefone, e isso me lembra de fazer o mesmo.

— Estranho, uma notificação dizendo que a Izolda tentou me ligar

quando o telefone estava desligado — ela diz.

— É, para mim, também. Mas foi antes do horário do voo. — Coloco

o aparelho no ouvido e ligo para minha esposa, mas a chamada vai direto
para a caixa postal. O que me deixa nervoso. — Nem ao menos chama —

digo.

— Talvez seja uma coisa de roaming internacional.

— Não. Ela já usou o celular fora do país antes, funciona

normalmente.

— Fique tranquilo, vamos para o hotel. Tenho certeza de que ela está
lá, linda, sã e salva — Minha amiga diz oferecendo um sorriso na óbvia

tentativa de me acalmar.

Assim que chego ao hotel, subo com Minerva atrás de mim.


— Deveríamos ter perguntado na recepção — ela afirma.

Ela tem razão, mas eu quero ver Izolda. Não acho que ouvir um "ela

chegou" vai ser capaz de me acalmar. Retiro o cartão do hotel do bolso do


casaco e abro a porta, encontrando tudo da forma que deixei mais cedo, tudo

intocado.

— Ela não está aqui — observo o óbvio. Minerva pega o telefone e


faz uma ligação enquanto eu pego a extensão do quarto e chamo na recepção

para confirmar que alguém com o nome da minha esposa chegou. Quando o
recepcionista me diz que não, eu ligo para casa e descubro que Izolda

também não está lá. Começo a imaginar cenários terríveis, mas me esforço
para manter a calma. Ela estava saindo para o aeroporto, o que pode ter

acontecido?

— Andreas... — Minerva diz. Sua voz está séria demais. É a voz que

ela usa quando precisa me contar algo ruim. — O avião da Izolda decolou
com outro destino...

— Como assim, outro destino?

— Eles vão tentar checar o registro de voo, mas sabem que nenhuma
aeronave de voo fretado saiu para a China além da sua.

A notícia me acerta como um soco no estômago. Ela não está em casa,

não está aqui. Nem mesmo sabemos o que aconteceu com o avião, se ela
chegou a entrar nele. E se tiver acontecido alguma coisa? Mikhail. Merda! E

se ele tiver feito alguma coisa contra Izolda?


Eu me preparo para sair de casa com destino ao aeroporto e ligo para

Andreas para avisá-lo. Pretendia fazer isso quando estivesse prestes a

decolar, mas sabia, pelo fuso horário, que ele está agora no horário do
almoço, então este é o melhor momento. Falo com ele rapidamente, e isso me

deixa um pouco mais tranquila, mas não apaga meu nervosismo. Quero

chegar logo até a China para conversar com ele. Quero contar sobre Mikhail
naquele cemitério, quero dizer que ele continua me perseguindo e que

gostaria de ficar um tempo longe de Moscou, com Andreas.


Sei que isso pode ser complicado devido ao trabalho, mas ficar longe

de Mikhail parece ser a coisa certa no momento. Eu não posso contar a

verdade, nem mesmo tenho provas para sustentá-la caso o fizesse. E

Vladmir, Andreas e até mesmo o pai de Elke estão tentando fazer algo para

descobrir o paradeiro da minha amiga, não há nada que eu possa fazer, e


estou cansada de passar o tempo todo com medo. Além disso, tenho que

considerar a possibilidade, por mais que isso me doa, de que minha amiga

não queria ser encontrada.

Estou cansada do quanto de poder Mikhail tem enquanto eu não tenho

poder algum. Não há nada que eu possa fazer contra ele, efetivamente. A

viagem para a China chegou em um bom momento, e estava prestes a contar

sobre a nova tentativa de assédio de Mikhail quando notei que fazer isso em
um outro país tinha suas vantagens. Andreas estaria longe do irmão, não

poderia simplesmente levantar e ir até ele de cabeça quente e acabar fazendo

alguma besteira que despertaria ainda mais o ódio do irmão. A última coisa

que eu quero é que Andreas acabe machucado por essa obsessão que

Mikhail parece ter.

Estou chegando ao aeroporto quando recebo uma ligação de Vladmir.

Ontem, eu precisava tanto falar com ele, avisar para que tivesse cuidado

com o que estivesse planejando para investigar Mikhail, mas acabei não o
encontrando o dia inteiro e não queria falar do assunto por telefone. Atendo

e noto que sua voz parece agitada.

— Izolda, onde você está? — ele pergunta. Vladmir parece um pouco

ofegante, como se estivesse correndo ou andando de forma apressada.

— Estou no aeroporto. Estou indo para a China. Vladmir, está tudo

bem?

— Sim, tudo bem. Eu só queria lhe dizer que encontrei a Elke — ele

diz. Meu coração bate forte, e eu quero gritar de felicidade, mas então eu

penso em como ela pode estar. Deus, permita que ela esteja bem, por favor.

— Sério? Onde ela está? Diga-me onde você está. Eu estou indo para

aí agora.

— Não, Izolda. Não há nada que você possa fazer aqui agora. Vá para

sua viagem. Eu... merda! Izolda, eu preciso desligar.

— Vladmir, o que houve?

A ligação é encerrada abruptamente, e eu tento retornar, mas ele não

atende a ligação, e, depois de alguns minutos, começo a ficar seriamente

preocupada. Esforço-me para ficar calma, eu preciso me acalmar. Desço do

carro, e um funcionário do aeroporto abre a porta para que eu desça.

— Boa tarde, senhora Orlov. Sua aeronave está pronta — ele diz

indicando o pequeno jato com uma escada engatada para que eu possa subir.
Ele pega minhas malas e espera que eu passe na sua frente, mas estou meio

trêmula e quero dar meia-volta, quero entrar no carro e procurar por Vladmir

e Elke. Mas isso seria idiotasse e, acima de tudo, não foi o que combinei
com Andreas. Ligo para o meu marido algumas vezes, mas seu celular se

encontra desligado. Então, finalmente entro no avião e escolho uma poltrona.

— Vamos decolar em breve, aceita alguma coisa, senhora Orlov? —

uma jovem comissária de cabelos loiros me pergunta.

— Não. Quer dizer, sim. Um pouco de água, obrigada.

Tento ligar para Vladmir outra vez, depois penso no celular de

Minerva, que também está desligado.

Penso no jato que Andreas usa normalmente. É menor do que este e,

como ele gosta de contar, voa com propulsão elétrica para reduzir os

impactos ao meio ambiente. É bobagem, mas pensar nisso faz com que me
sinta mais calma, como se ele estivesse aqui agora, comigo, me olhando com

aqueles olhos castanhos estreitos e um sorriso que é discreto e encantador. O

que eu mais quero agora é chegar à China e abraçá-lo. Quero contar que

Vladmir parece saber onde Elke está.

Coloco meu cinto e pego uma revista na tentativa de ocupar minha

mente. Também não funciona, mesmo que haja uma foto minha com Andreas

reduzida como uma matéria secundária na capa. Meu coração só para de


palpitar e minha respiração reencontra seu ritmo quando recebo uma

mensagem de Vladmir dizendo: "Izolda, não posso atender, mas está tudo

bem, falo com você em breve". Sinto-me mais aliviada de saber que ele

parece bem, que nada de ruim aconteceu com ele. E só então começo a me

sentir animada pela ideia de que ele encontrou a Elke, e eu vou poder revê-

la, abraçá-la em breve. Vou poder ficar perto da minha amiga e ajudá-la a

enfrentar seja lá o que estiver acontecendo com ela.

A comissária retorna com a água, e eu tomo todo o conteúdo tentando

me livrar de qualquer rastro de nervosismo. Quero saber onde Elke estava,

quero saber o que aconteceu, por que não me deu notícias. Percebo que

quero uma explicação e que, se for honesta, apesar de toda preocupação,

também há essa pequena parte de mim que está um pouco irritada com seu

sumiço e que espera uma boa explicação. Não gosto de identificar esse

sentimento dentro de mim, e tento permanecer focada no que importa. Em

breve, vou poder viver a minha relação com Andreas, com aquele homem

lindo e maravilhoso que sempre achei que não poderia ter, que estava fora

do meu alcance e que, agora, é meu marido. Vou poder ser feliz ao lado dele

sem culpa, sem ficar imaginando o destino da minha amiga.

"Aquela noite era para ser nossa", a voz de Mikhail diz. E eu penso em

como minha amiga sofreu aquela violência no meu lugar. É irracional, eu sei.

Não posso me culpar por Mikhail ser uma pessoa abominável, mas é um
sentimento sobre o qual não tenho controle. Sou avisada de que o avião está

pronto para decolar, então me ajusto na poltrona. Encosto minha cabeça e,

aos poucos, me perco nos meus pensamentos e acabo dormindo.

Acordo quase sete horas depois. Estamos pousando. Olho pela janela

da aeronave, e está claro, claro demais. Eu tinha pesquisado antes, chegaria

em Pequim quase às nove da noite. Alguma coisa estava errada. Eu chamo a

comissária, mas não obtenho resposta. Convenço-me de que está tudo certo.

Ela não pode levantar durante o pouso, nem eu posso fazer isso. Quando o

avião finalmente pousa, eu solto meu cinto e procuro meu celular na bolsa,

mas não o encontro.

— Procurando por isso? — uma voz que eu conheço bem questiona.

Meu coração dá um salto, e meu sangue parece congelar nas veias.

— O que a senhora está fazendo aqui? — pergunto encarando a dona

da voz. Olga Orlov ajusta a ushanka que está usando e senta-se de frente

para mim sem dizer uma palavra. Ela tira um envelope da bolsa e me

entrega.

— O que é isso?

— São dólares, você vai precisar.

— Dólares? A senhora...

— Calada! Sem meu neto aqui...


— Cale boca a senhora e me respeite! — digo me pondo de pé. —

Não vou desperdiçar mais meu tempo com alguém com a mente tão tacanha e

preconceituosa quanto a senhora. Eu vou chamar o comissário de bordo,

porque a senhora nem deveria estar aqui.

— Chame, garota. Eu vou adorar ver isso. Esse piloto já trabalhava

para mim quando você ainda estava em fraldas, ele vai fazer o que eu disser.

Na verdade, ele até já fez. Sabe onde estamos?

— O que a senhora fez? — pergunto-lhe sentindo meu coração bater

mais rápido. — Devolva-me o meu telefone. Quando o Andreas souber...

Ela começa a rir descaradamente como vilã de novela, e isso faz com

que eu pare de falar. O que posso fazer? O que posso fazer?

— Olhe aqui, empregadinha, o Andreas não pode protegê-la. Ninguém


pode. Esse dinheiro... — ela diz jogando o envelope no assento livre ao meu

lado — é seu, uma espécie de rescisão contratual pelo casamento. Há


bastante aí para que você fique confortável, e vai ser o melhor para vocês

dois.

— O melhor? Desde quando a senhora se preocupa com o que é

melhor para qualquer pessoa? O melhor para mim é ficar com o meu marido.
E o melhor para Andreas é decidir por ele mesmo, mas eu sei que é comigo
que ele escolheu ficar. — Esforço-me para não demonstrar fraqueza ou
incerteza na frente dela. Olga Orlov não vai ter essa satisfação.

— Você vai me dizer o que é melhor para o meu neto? Uma garota que

nem viveu duas décadas e que tudo que tem custou o dinheiro da minha
família? Seus pais queriam que você estudasse, então a pretinha foi para a

escola de gente rica, se misturando como se pertencesse, e eu não fiz nada.


Você queria brincar na casa como se não pertencesse ao andar de baixo.

Minha nora deixava, e eu não pude fazer nada. Lá vai a filha da empregada
brincar com o patrão como se fosse normal. E um dia seu pai morre, e você

vira a esposa do meu neto, a primeira-dama de tudo. Não, isso é demais. Na


minha família, não vai haver mestiço, não vai haver gente sem linhagem.

— A senhora está completamente louca. Por acaso, escuta esses


absurdos que está dizendo? Que tipo de...

— Isso que eu estou lhe fazendo é um favor. No passado, eu fui menos

generosa, mas resolvi experimentar uma nova abordagem. Este vai ser meu
único aviso. Pegue o dinheiro e vá embora, ou volte para a Rússia e corra o

risco de acabar se juntando aos seus pais naquele cemitério na Rússia.

— Eu não vou deixar o Andreas. Ele vai achar que eu não o amo, que

eu fugi, eu não vou fazer isso. Eu amo o seu neto com todo o meu coração e...
— Você o ama? Ah, por que não disse antes? Você acha mesmo que
isso faz diferença? Que tudo pode ser esquecido porque há amor? Você é

uma mancha gigante em tudo que sempre lutei para que essa família
significasse, e, para livrar minha família dessa página terrível que você se

tornou na nossa história, eu pago qualquer custo. Eu prefiro me livrar só de


você e deixar meu neto fora disso, mas eu posso acabar reconsiderando se

você insistir em voltar para a Rússia. Afinal, eu tenho outro neto que jamais
me decepcionaria como Andreas fez se casando com alguém tão inferior a

nós. Eu prefiro vê-lo morto a continuar casado com você. Desça do jato,
Izolda. Faça isso antes que eu peça para que alguém a jogue na rua. Vai ser

até prazeroso depois da forma como meu neto me expulsou da minha casa.

Eu descubro onde estou quando entro no aeroporto. Estou no Cairo,


Egito. No aeroporto, as pessoas andam apressadas de um lado para o outro.

Eu ouvi tudo que Olga Orlov me disse, sobre como eu precisava pegar um
outro avião para qualquer lugar do mundo já que Andreas viria atrás de mim.

Tudo que eu quero é voltar para a Rússia, o que parece irônico, para dizer o
mínimo, considerando o quanto de tempo passei imaginando me livrar desse

casamento, fugir.

Lembro-me da ameaça clara que Olga fez ao próprio neto, da forma

como ela ameaçou a minha vida. Eu poderia enfrentar o risco se fosse só


comigo, mas tanto ela quanto Mikhail, com apenas um dia de intervalo,
tinham ameaçado a vida do homem que eu amo. Tudo que eu tinha feito até

agora era atrapalhar a vida de Andreas, e, se voltasse, o colocaria em risco.

Olho para os documentos na minha mão: meus documentos antigos,


meus documentos de solteira. Eu seguro minha bolsa contra o corpo e arrasto

a pequena bagagem que havia preparado para passar alguns dias com meu
marido na China. Vai ficar tudo bem, ele vai me encontrar. Fico em frente ao

guichê de uma companhia aérea para comprar uma passagem, mas, quando a
mulher atrás do balcão pergunta o destino, percebo que não faço ideia.

Rússia. Eu deveria dizer Rússia e voltar para casa, voltar para Andreas.
Contar o que sua avó acabou de fazer, as ameaças, mas eu não podia

arriscar. Se algo acontecesse a ele, eu não poderia me perdoar.

— Senhora, qual seria o destino? — A mulher repete a pergunta.

— Quais os voos que decolam em breve?

— Temos um voo para Santiago, no Chile, e outro para Nova York.


Ambos com escalas.

— Chile — digo. Nem penso direito no que estou fazendo. Ela me

pede que assine um recibo enquanto eu separo o dinheiro para realizar o


pagamento. Eu embarco uma hora depois para um país desconhecido, com

uma língua que não falo, poucas roupas, uma bolsa cheia de dólares, e aos
prantos.
O homem sentado ao meu lado pergunta se está tudo bem, e eu aceno

positivamente e abro minha bolsa. Não preciso de nada, mas preciso me


distrair. Pego meu passaporte válido, o que tem o meu sobrenome junto com

de Andreas, Izolda Orlov, olho para o anel na minha mão e penso em


Andreas me dizendo sobre o significado dele: "significa que você é uma

Orlov.

Significa que, onde eu estiver, “sua presença nunca vai ser

inadequada". A lembrança da voz dele, da sinceridade em seus olhos...


Imagino-o desapontado comigo, preocupado com o meu sumiço, traído. E
então, me dou conta de que isso não faz sentido. O que eu estou fazendo

aqui? Eu não posso fugir. Eu não posso ficar longe dele, mesmo que isso
signifique viver sob a ameaça constante de Olga.

Estou prestes a me levantar quando noto que há algo dentro do


passaporte: um envelope branco que tinha recebido em casa no dia anterior e

jogado na bolsa sem dar importância. Abro-o, e há uma foto de um acidente


de carro. Não faz sentido, mas viro o verso, e há uma pergunta: "Carros

recentemente revisados não faltam freios, faltam?", e um número de telefone.

Eu me levanto da poltrona e peço desculpas ao homem do meu lado.


Eu preciso descer. Algumas pessoas ainda estão se sentando, e a aeromoça

tenta me dizer para voltar para o meu lugar, mas não posso fazer isso, não
posso deixar que Olga Orlov consiga o que quer sempre.
Não dessa vez, não comigo.
Todo o voo de volta para a Rússia é insuportável. Minerva tenta me

acalmar, mas não surte muito efeito. Eu só consigo imaginar o que pode ter

acontecido com Izolda, e minha mente me leva a lugares terríveis. Fico


pensando em como ela parecia apreensiva quando conversamos, em como

me disse que gostaria de conversar comigo. Eu deveria ter insistido, deveria

ter falado com ela naquele momento, adiado um pouco a viagem.


Racionalmente, sei que o exercício de remoer essas possibilidades não vai

resolver nada, e isso me deixa frustrado. Não é um sentimento com o qual

tenho costume de conviver. Sempre soube balizar as minhas expectativas e


encarar a realidade do jeito que ela se apresenta, mas agora, o chão parece

ter desaparecido. Nada faz sentido.

Meu celular apita, e o pego apressado, mas é apenas um lembrete


sobre escrever um discurso para um evento social em Moscou. O evento em

que minha avó será homenageada.

Eu entro no sistema de rastreio da empresa fabricante dos nossos


celulares e tento localizar o sinal do aparelho de Izolda, mas a última

localização disponível é em Moscou, perto do aeroporto, o que também não

ajuda em nada.

— Conseguiu descobrir alguma coisa com a companhia aérea?

— Não, o piloto ainda não voltou com a aeronave, e ninguém na torre

de controle parece saber ou querer liberar essa informação, mas eu vou


descobrir isso nem que eu mesma precise ir até lá. Mas Andreas, você

precisa se acalmar, não vai conseguir resolver nada nesse estado — Minerva

diz colocando a mão na minha quando o carro para na frente da casa de

Mikhail. Aquele prédio era um dos prediletos do meu pai. Estava na família

há gerações, era quase tão antigo quanto a casa em que vivo. Identifico-me

na portaria e digo que não preciso ser anunciado. A última coisa que quero é

que meu irmão saiba que estou chegando. — Você tem certeza de que quer

fazer isso? Qual seu plano aqui, Andreas? — Minerva insiste.


— Eu não sei, tudo bem? — grito dentro do elevador. — Eu realmente

não sei Minerva. Desculpe-me, eu não…

— Tudo bem — ela diz. — Não se preocupe.

Passo a mão no rosto quando o elevador para na cobertura e bato à

porta. Mikhail me recebe com uma certa surpresa, mas rapidamente sua

expressão muda. Há uma mulher atrás dele. Ela se levanta cobrindo os seios

e começa a se vestir.

— Ora, ora, que sur…. — Ele começa a dizer, mas eu o pego pelo

pescoço e fecho minha mão com força. Ele parece um pouco surpreso com a

minha atitude, mas rapidamente se recupera e tenta se soltar usando as

pernas. Esquivo-me dele e coloco mais força na pressão na minha mão.

Escuto quando Minerva pede para a mulher se retirar; ela obedece, batendo

a porta.

— Andreas, ele está ficando vermelho — a voz de Minerva avisa. Eu

sei disso, e estou no controle do que estou fazendo. Ou ao menos acredito

estar. Se eu entrasse aqui tentando dialogar com Mikhail, ele seria sarcástico

e tentaria me provocar. Desse jeito, eu mantenho a vantagem. Não estou

orgulhoso da violência, mas sei que essa é a linguagem que funciona com

ele.
— O que você fez com ela? — pergunto empurrando-o contra a

parede. Meu irmão bate no cimento com as costas, e assisto enquanto ele

recupera o fôlego. Pelo canto do olho, vejo Minerva desaparecer pelo


corredor.

— A Izolda já foi fazer fofoca? Eu só estava prestando as minhas

homenagens. E, até onde eu sei, aquele cemitério não tem restrições de

entrada.

— Do que você está falando?

— Do que você está falando? — Ele pergunta num tom acusatório —

Sabe, dizem que eu sou problemático, mas você deveria procurar um

tratamento para essa mania de tentar agredir seu próprio irmão o tempo todo.

— Não seja cínico — Minerva diz retornando. Ela acena

negativamente, e eu sei que Izolda não está aqui. — Você sabe onde a Izolda
está ou não, Mikhail?

— Ah…. claro — Ele começa a rir enquanto se levanta. — Ele perdeu

a Izolda? Que irresponsabilidade. Eu cuidaria dela bem melhor. Mas eu

sabia que isso aconteceria. Quando alguém já teve o melhor, é difícil se

acostumar com menos.

— Cale a boca — digo. — A Izolda é a minha mulher. Você nunca teve

nada com ela porque ela nunca quis nada com você. Eu sei que você vivia
atrás dela e, se eu pudesse, o colocaria na cadeia por isso.

— Foi isso que ela lhe disse? Como você é burro! Sempre foi. Pode

ter crescido, mas continua o mesmo idiota bobinho de sempre. Só que agora
quem o engana são as mulheres. Primeiro, a Galina; agora, a Izolda. Eu disse

a você que ela era apenas uma putinha de… — Calo meu irmão desferindo

um soco contra seu rosto. Mikhail bate as costas em alguma coisa, mas não

me importo com isso, foco em seu rosto. Ele passa a mão no lábio, aparando

o sangue que escorre. — Ótimo soco. O papai ficaria orgulhoso de ver que

você finalmente aprendeu alguma coisa — ele afirma rindo. — Se bem que

ele estaria desapontado com a sua incapacidade de dar conta da sua esposa.

— Vamos embora, Andreas — Minerva pede.

Olho para o meu irmão e o vejo sorrindo vitorioso. Não consigo ir

embora. Não queria ter batido nele, não o teria socado se ele não tivesse

dito aquelas coisas sobre Izolda. Só quero entender o porquê. Por qual razão

alguém sentiria tanto prazer em fazer mal ao próprio sangue? Ele é meu

irmão mais velho, ele deveria me proteger. Mesmo que não fosse necessário,

ele deveria, ao menos, querer meu bem.

— Por quê? — questiono. — Por que você me odeia tanto?

— É sério isso? Por quê? Desde que nasceu, você roubou tudo que era

meu: meu pai, minha herança, minha empresa. A Izolda é só um trocado perto
de tudo que ainda vou tirar de você.

— Eu não tirei nada de você! Nosso pai não se importava comigo

como você acha que se importava. Eu não sei em que realidade paralela

você cresceu, mas a única pessoa responsável por ele ter deixado tudo para

mim foi você mesmo, não eu. Não fiquei com a herança com base em afeto

ou pelas minhas ações, e sim pelo que você não fez. Você nunca quis

aprender, sempre causou problemas.

— Como eu poderia competir com o filhinho perfeito?

— Não temos tempo para isso. Procure um psicanalista, Mikhail —

Minerva diz me puxando pelo ombro.

— Eu nunca lhe desejei mal, Mikhail, mas eu prometo que, se você

estiver mentindo, se tiver feito algo a Izolda, eu vou esquecer que você é
meu irmão e acabar com a sua vida.

— Peça para dois seguranças ficarem por perto e o seguirem caso ele

saia — digo a Minerva assim que deixamos a casa do meu irmão.

Enquanto volto para a minha casa, não consigo deixar de pensar na

expressão de surpresa de Mikhail quando perguntei por Izolda, e ainda estou

em choque por entender, finalmente, a dimensão do seu ódio por mim. Eu


sabia que ele tinha um certo ciúme quando éramos crianças, mas achava que
era pura implicância. Sabia que ele tinha ressentimentos pela herança, mas

sempre vi toda a implicância, pelo menos antes de Izolda, como algo natural.

Quando o encontrei com Galina na cama, eu realmente não achei que

ele tivesse feito aquilo com a intenção de me magoar. Achei que apenas tinha

acontecido, convenci a mim mesmo com a desculpa de que a carne é fraca.

Mas agora tudo estava claro, finalmente. E perceber que estive, por tanto

tempo, enganado com Mikhail. Também abriu espaço para questionar sobre

o que mais estive enganado. É por isso que, ao mesmo tempo que descobrir
que ele não sabe de Izolda é um alívio, isso também significa o sumiço da

única ideia que tinha para encontrá-la. É a abertura para uma possibilidade
que não queria imaginar: ela me deixou, ela foi embora. Talvez eu também
tivesse me deixado enganar a respeito dela. Talvez eu estivesse tão cego

pela ideia de estar amando outra vez, e amando de uma forma poderosa e
genuína, que me deixei levar. Mas isso não podia ser verdade, podia?

Ela poderia ter fingindo aqueles olhares? Os toques? A timidez, os


sorrisos. Eu não podia acreditar nisso, ou acabaria enlouquecendo.

Assim que entro em casa, encontro Katrina no telefone, e, quando


pergunto quem ligou, a mulher de cabelos amarelos diz que a ligação caiu.

— Minha esposa voltou para casa?


— Não, senhor. Não vejo a senhora Izolda desde que ela viajou ontem.
Senhor, aconteceu alguma coisa? — Katrina questiona. Aceno negativamente

enquanto passo a mão nos cabelos. Meu peito está apertado, como se
respirar fosse difícil. Passo por Katrina e vou até o quarto e começo a

vasculhar o local.

— O que está fazendo, Andreas? — Minerva questiona.

— Não sei. Mas, se ela tivesse ido embora por vontade própria, ela

teria deixado alguma coisa, certo? Um bilhete de despedida, uma carta... —


digo enquanto movo os papéis por cima da mesa de cabeceira do lado de

Izolda. Não há nada além dos blocos que Izolda usa para desenhar antes de
dormir e com os quais eu costumo implicar. Barganho com o universo: se eu

a encontrar segura, bem, prometo que ela pode desenhar em todas as paredes
do quarto, e eu não vou me importar. Só a quero de volta.

Minerva começa a me ajudar a procurar, mas, depois de um tempo, sou

obrigado a aceitar a realidade de que não há nada aqui fora do comum. O


lado dela da bancada do banheiro está levemente bagunçado, como sempre.

Suas roupas estão quase todas no closet. As bolsas, os sapatos, todas as


coisas que comprou – na maior parte do tempo, por insistência minha –,

estão no lugar. Até mesmo a mala grande está no closet; só a bagagem de


mão não está aqui.
— Não há nada aqui — Minerva diz. Nesse momento, o telefone da
minha amiga toca, e ela atende imediatamente. — Sim, claro… tudo bem, eu

fico esperando.

— E então? — Questiono ansioso.

— A aeronave acabou de solicitar permissão para pousar. Estimaram

que, em quarenta minutos, deve chegar ao aeroporto. Vá tomar um banho, nós


vamos para lá. Você precisa esfriar um pouco a cabeça. Eu o espero no

escritório, vou pedir alguns favores e tentar emitir um alerta internacional


sem que isso se torne um escândalo.

Quero dizer a ela que não me importo com o escândalo, mas confio em
Minerva para decidir o que é melhor nesse momento. Ela sempre agiu com

base no que é melhor para mim, e sei que, dessa vez, não fará diferente.
Depois que tomo um banho e me troco, quando estou saindo da casa com

Minerva ao meu lado, meu telefone toca. Eu olho para a tela e vejo um
número desconhecido, um contato da Rússia. Atendo às pressas na esperança

de que seja a minha esposa.

— Izolda?

— Andreas? Aqui é o Vladmir, eu…

— Você sabe da Izolda?

— Não, aconteceu alguma coisa?


— Eu não posso falar agora, Vladmir. Desculpe-me. — Desligo o

telefone e dispenso o motorista enquanto entro no meu carro.

— Você vai dirigindo? — Minerva pergunta.

— Eu preciso me ocupar — respondo enquanto ela se ajusta no banco

do carona e começo a avançar pela saída da casa. — Conseguiu o alerta?

— Não exatamente, mas tenho um antigo colega que trabalha com


tecnologia de identificação facial e vai rodar nas imagens do aeroporto aqui

em Moscou. Vamos saber se ela tiver pego um voo comercial.

— Você acha que ela pode ter ido embora por vontade própria? —

questiono.

— Não pense nisso — ela pede. Eu mantenho meus olhos no trânsito,

mas não consigo afastar essa dúvida da minha cabeça.

— Eu sabia que havia algo que ela estava escondendo. Eu quis ser
paciente.

— Você fez a coisa certa. É preciso ser um tipo muito particular de


idiota para tentar forçar um segredo de alguém.

— Eu sou o marido dela, ela deveria confiar em mim.

— Até alguns meses atrás, você era o dono da casa que passou anos
sem mal trocar duas palavras com ela. Da noite para o dia, se transformou no

marido, o pai dela morreu. Ela obviamente estava confusa e assustada e…


— Então, você realmente acha que ela foi embora, que me abandonou?

— Eu não sei, Andreas. Eu honestamente não sei o que achar. O que eu


sei é que, das poucas vezes em que vi Izolda sorrindo desde que a vi naquela

festa, dançando com você, ela sempre estava sorrindo por sua causa. Isso
deve valer de alguma coisa.

No aeroporto, as notícias não são tão esclarecedoras. Para começar, o

piloto que desce da aeronave quando estamos esperando com dois


seguranças do aeroporto não é o mesmo que deveria ter voado com Izolda.

Ele diz que o capitão o abordou no aeroporto e pediu para que ele levasse a
aeronave de volta para a Rússia. Um inspetor está nos acompanhando por

insistência de Minerva, que achou melhor prestar queixa informalmente.

— Ele disse que uma mulher o pagou para deixá-la no Cairo, que o

dinheiro era suficiente para que mudasse de vida. Toda a tripulação – piloto,
copiloto e comissária de bordo – estavam indo embora — o piloto explica.

— Sua esposa tinha acesso a esse tipo de dinheiro, senhor Orlov? — o

inspetor questiona.

Pego meu celular e penso em algo que deveria ter sido óbvio. Olho as

transações dos cartões de Izolda que são associados à minha conta, mas não
há nenhuma movimentação. — Não há nenhum saque.

— Ela tinha algum bem valioso? — o homem insiste.


— Dois anéis que valem alguns milhões, talvez uns vinte milhões no
mercado, mas ela não conseguiria vendê-los com facilidade em tão pouco

tempo. Minha esposa estava usando-os na última vez que nos vimos. Isso é
perda de tempo — digo impaciente. — Eu preciso ir para o Cairo.

— Andreas… — Minerva diz me segurando pelo braço. Viro-me para

minha amiga, que parece exausta. — Eu vou. Você volta para casa e espera
por notícias, está bem? É um tiro no escuro de qualquer forma, ela pode

estar em qualquer parte do mundo agora. Assim que eu tiver notícias, eu ligo
para você.

— E o que você espera que eu faça enquanto isso?

— Você vem comigo — a voz do meu tio diz. Olho para Nikolai, que
me oferece um olhar de simpatia.

— Sinto muito, eu tinha que ligar para alguém que pudesse convencê-
lo a ficar calmo enquanto eu não estivesse aqui.

Volto para casa novamente. Dessa vez, ainda mais abatido do que da

primeira vez. Minhas esperanças de encontrar Izolda vão se esvaindo. Meu


tio bate nas minhas costas e me pede para ter ânimo. Sei que ele não é a

melhor pessoa para conversas animadoras, e isso quase me faz rir, mas há
uma espécie de bolor de medo, nervosismo e raiva que parece ir aumentando

gradativamente na minha garganta que me impede de conseguir rir ou até


mesmo falar direito. Eu não costumo chorar, meu pai havia sido excelente em
reprimir meus sentimentos. Eu nem mesmo consegui chorar no velório dos

meus pais porque sabia que ele detestaria que eu fizesse aquilo. Ainda
assim, há uma dor em mim que parece que precisa do choro para ser

minimamente aliviada.

— Senhor… — Katrina diz quando abro a porta. — O senhor tem

visitas.

— Visitas?

— O jovem senhor Adamovich e a senhorita Pavlova.

— Pavlova? — pergunto. Ela deveria querer dizer Kira, senhora, não

senhorita. Nem me importo em confirmar, avanço para a sala de visitas, e lá


estão eles, sentados, lado a lado, conversando em um tom baixo de forma

íntima. Eles param quando notam minha presença. — Elke? — Pergunto. É

uma questão idiota, é claro que é ela. Está diferente, mas não irreconhecível.
Cabelos curtos, muito mais magra, os olhos fundos e uma expressão profunda
de tristeza.

— Andreas, que bom que chegou — Vladmir diz. — Sinto muito por

vir sem avisar. Eu tentei falar ao telefone, também liguei para a Izolda várias
vezes, mas o celular não dá sinal. Por sinal, onde está a Izolda? — ele
pergunta.
— Tudo bem aqui? — Nikolai pergunta.

— Sim — respondo ainda um tanto chocado com a presença de Elke.


Não consigo tirar meus olhos dela, do seu estado, nem consigo parar de

pensar na ironia de que Izolda queria tanto encontrar a amiga, e agora,


quando Elke aparece, ela não está aqui. — Eu não sei onde ela está — conto.
— Eu não sei onde a Izolda está, acho que ela foi embora.

Tento explicar o que aconteceu, ou ao menos o que sei que aconteceu:

a viagem para China, Izolda nunca chegando. Mas estou olhando para Elke,
não consigo parar de olhar para ela, e é meu tio quem fala por mim quando
não termino.

— Ela não iria embora — Vladmir diz. — Ela sabia que eu tinha
encontrado a Elke e estava ansiosa para revê-la.

— Mikhail, ele foi atrás dela, ele deve ter feito alguma coisa a ela —
Elke diz com uma voz trêmula. Vladmir senta-se ao lado dela e coloca a mão
no seu ombro e fala alguma coisa em seu ouvido. Não sei o que é, mas
parece conseguir deixá-la mais calma.

— Não, ele não fez — conto. — Onde você estava? — pergunto a

Elke, intrigado. Seja lá o que me separou de Izolda, mesmo quando ela ainda
estava aqui, a coisa que nos mantinha sempre com alguma distância tem a ver
com Elke, e quero que ela me explique isso agora mesmo, mas parece errado
demandar algo de alguém no estado dela.

— Eu posso conversar com você, sabe… sem… — Ela olha para


Nikolai, que entende bem o pedido e diz um “vou estar lá fora se precisar de
mim” enquanto toca no meu ombro.

— Tem certeza de que quer fazer isso? — Vladmir pergunta.

— Tenho — ela diz acenando positivamente.

— Vou deixar vocês a sós.

— Não. Fique aqui — ela pede e segura a sua mão.

— O que há de errado com ela? — pergunto a Vladmir.

— Andreas, a Elke está em estado mental frágil. Ela passou por muita
coisa nos últimos meses, então se puder ter um pouco de paciência.

Paciência? Paciência não é tudo que eu venho tendo nesses últimos

meses? Eu explodiria com ele se não achasse que Elke parece tão frágil que
poderia se quebrar com meu grito. Eu me sento de frente para Elke e noto
suas roupas: uma blusa branca de uma banda de rock e calças jeans que
parecem ser de alguém consideravelmente maior.

— Eu deveria ter vindo antes — ela diz. — Eu queria, mas eu não…

— ela coloca as mãos no colo, e as pontas dos dedos tocam umas nas outras
freneticamente. — Eu sei que você acha que aquela pessoa no quarto da

Izolda com Mikhail era…

— Eu sei que era você — digo.

— A Izolda contou?

— Não. Ela não contou, mas eu sabia que não era ela, que não podia
ser ela, então restava apenas a única pessoa do mundo pela qual ela faria
qualquer coisa.

— Ela também faria qualquer coisa por você — Elke diz.

— Eu não tenho tanta certeza, mas o que eu quero saber é o porquê da


mentira? Por que ela deixou que eu acreditasse que aquela era ela? Por que
ela precisava tanto esconder isso de mim? Você e meu irmão transaram, qual
é o grande segredo aqui?

— Nós não, eu não… eu não queria. Quer dizer, eu quis até certo
ponto, mas.... ele me forçou. — Aquilo nunca passou pela minha cabeça
antes, e, assim que sai dos lábios dela, eu entendo o porquê. Imaginar que
Mikhail, sangue do meu sangue, meu irmão, apesar de todas as desavenças,

possa fazer isso, possa estuprar alguém. — Ele estava atrás da Izolda, ele
queria machucá-la porque estava com ciúmes de você, ou seja lá que tipo de
sentimento ele tem naquela cabeça dele, e eu fui atrás porque sabia o quanto
ela tinha medo dele. Não podia deixá-la sozinha. Quando chegamos ao
quarto, e ele viu que a Izolda não estava, Mikhail me beijou, e eu o beijei de

volta, mas ele começou a avançar e a ficar violento e….

— Você não precisa continuar — Vladmir afirma. Mikhail a estuprou.


Agora, eu olho para Elke e vejo a menina de tranças negras que corria pela
sala enquanto nossos pais falavam de negócios. A garota que quebrou um
vaso de cristal, e minha mãe a pegou nos braços dizendo que o importante

era que ela não tinha se machucado, a chamando de princesa. Ela não era a
filha da empregada, uma estranha… E eu sei que nada disso tornaria o ato
menos terrível, mas parece ainda mais assustador saber que ele fez isso com
a filha de um amigo da família, rico, poderoso. Se ele fez isso com ela…

meu Deus!

— Preciso — ela diz. — Eu passei tempo demais em negação,


fingindo que nada daquilo aconteceu comigo, e isso só piorou tudo, e não
piorou apenas a minha vida. Ele não parou apesar dos meus pedidos, ele me

estuprou. Quando o seu irmão parou, quando ele saiu de dentro de mim e me
deixou lá, jogada no quarto como se eu fosse lixo, a única coisa que eu
conseguia pensar era no meu pai, em como ele reagiria. E então, o Sergei
entrou no quarto para falar com a Izolda, querendo saber o que tinha
acontecido por causa das fotos, e eu não tive coragem de dizer que tinha sido

abusada, mas contei que aquela era eu nas fotos, e não Izolda. Ele ficou
furioso comigo, mas tentou me consolar quando percebeu que eu não parava
de chorar. Tentou me fazer falar o que tinha acontecido, mas eu não consegui.

Foi só quando Izolda chegou que eu finalmente contei. Primeiro, o Sergei


queria ligar para o meu pai dizendo que eu tinha que casar com o Mikhail, e
aquilo me apavorou. Eu não ia casar com ele, nunca. Eu mal consigo olhar
para ele sem reviver tudo que aconteceu.

— Então, Sergei não estava furioso pela Izolda, era por você?

— Sim, ele disse que Mikhail tinha que ser responsabilizado e foi
atrás dele, deixando Izolda e eu presas no quarto. Nós saímos pela janela, e
a Izolda disse que assumiria a culpa, que deixaria que pensassem que aquela
era ela. Eu fui fraca e estava assustada, tudo que eu queria era que ninguém

soubesse que aquilo aconteceu comigo. Eu queria esquecer. Izolda me


mandou para casa e foi atrás do Sergei. Eu entrei em casa escondida, tomei
banho e dormi por horas. Eu só soube da morte do Sergei no dia seguinte, e
eu mal consegui processar, sabe? Eu conhecia aquele homem desde os meus

seis anos de idade, ele era meu tio, ele era o pai da minha melhor amiga, e
tudo que eu conseguia pensar era no horror de Mikhail me tocando. Pouco
antes do velório, eu contei tudo para minha mãe, e ela me fez prometer que
não contaria nada a ninguém, nunca. Que esqueceria o que aconteceu. Ela me

convenceu a ir para Nova York, convenceu meu pai a me mandar sem contar
a verdade para ele, e eu fui embora e fingi que nada tinha acontecido. E
funcionou por um tempo. Eu cheguei a Nova York, fiz amigos, saí, me
diverti. Eu criei essa persona, essa realidade alternativa em que nada ruim
tinha acontecido. Nesse meio tempo, eu parei de responder às mensagens da
Izolda porque pensar nela era lembrar do que tinha acontecido, e eu não
podia lembrar, e tudo funcionou bem até que Mikhail apareceu e tudo

desmoronou.

Ela conta que estava voltando da faculdade para o dormitório quando


uma mão pegou em seu braço, e que nem precisou se virar para saber que
aquele era ele. “Era como uma memória muscular, o toque dele desencadeou
todas as memórias que eu queria reprimir”. Mikhail a ameaçou dizendo que,

se ela contasse a verdade, se entrasse em contato com Izolda, ele a faria se


arrepender de ter nascido.

— O Vladmir tem uma teoria sobre isso — ela diz.

— Todo esse tempo conversando com a Izolda, eu percebi que ela tem
medo do Mikhail, mas era sempre através dele que ela tinha qualquer nova

informação sobre a Elke. Acho que ele usou isso para tentar aproximá-la,
usou a Elke como isca.

— E tudo que a Izolda mais queria era encontrá-la — digo. Passo a


mão pelos cabelos até a nuca, tencionando-as contra meu pescoço. — Nós

fomos até Nova York atrás de vocês.


— O Vladmir me contou — ela afirma. — Eu já estava na Rússia.
Quando o Mikhail me achou, eu fiquei muito mal, passei dias sem me
levantar da cama, até que criei coragem e liguei para minha mãe. Ela me
disse que, se eu contasse a verdade, nossa família seria destruída, nosso

nome seria jogado na lama, e disse que eu não podia provar nada. Eu insisti,
mas ela e meu pai mandaram uma equipe médica me buscar e me internaram
contra minha vontade em um hospital psiquiátrico.

— Eu não acho que o seu pai sabia — digo lembrando da forma como

Fiódor me falou sobre a filha. Ele era muitas coisas, mas Elke é sua única
filha, e ele sempre foi um pai babão e protetor. — Quando perguntei a ele
por você, parecia que ele realmente não sabia, e estava preocupado.

— Como você a encontrou? — pergunto olhando para Vladmir.

— Alguns dias depois da inauguração do centro, a Izolda me disse que

o Mikhail sabia onde a Elke estava, então eu comecei a segui-lo. Na maior


parte do tempo, o canalha só se encontra com a sua avó ou frequenta clubes,
mas ele foi até o hospital uma vez, então eu dei um jeito de entrar através de
uma amiga, que é psicóloga e presta serviços lá algumas vezes por semana, e
foi assim que encontrei a Elke. Quando contei a Izolda, eu já sabia onde a

Elke estava há alguns dias, mas não tinha conseguido falar com ela direito
para contar.
— Fui eu que pedi para que ele não contasse imediatamente. Quando o
Vladmir me contou que vocês estavam juntos, bem, felizes, eu achei que
fosse melhor esperar um pouco antes de aparecer na vida da minha amiga,

porque eu precisava ser uma solução, e não um problema. Eu ainda estava


saindo da pior fase, da fase em que eles me entupiram de remédios, porque
eu vivia tendo surtos dissociativos ou passava horas gritando, revivendo
tudo que aconteceu. Eu sinto muito por esse segredo ter interferido na
relação de vocês, porque a minha amiga sempre foi apaixonada por você. Eu

sinto muito, de verdade...

— Você não precisa se desculpar — Vladmir diz. — Nada disso é


culpa sua, nem da Izolda. Mikhail é a única pessoa responsável nessa
história toda.

Ele tem razão. Não é culpa dela. Por mais que eu esteja magoado e
sentindo falta de Izolda, eu não posso culpar Elke por uma decisão que
Izolda tomou, nem culpar Izolda por escolher ser leal à amiga.

— Sou eu que lhe devo um pedido de desculpas por tudo que o


Mikhail lhe causou e…

— Você não é o seu irmão, nem é responsável pelos atos dele. Eu


levei tempo para entender que a culpa também não é minha, que as minhas
ações não levaram ao meu estupro.
— Vocês dois precisam parar de pedir desculpa um para o outro, e nós
precisamos focar em colocar o Mikhail na cadeia e em reencontrar a Izolda
— Vladmir afirma.

— Eu só preciso conversar com o meu pai antes — Elke diz. —


Porque, se ele não sabia disso, se não estava aliado à minha mãe para me
manter naquele hospital, eu preciso explicar tudo para ele, sabe? Ter certeza
de que ele não vai fazer nenhuma besteira. Gente demais já sofreu com isso

tudo. Eu só preciso que o meu pai saiba disso por mim.

— Do que eu preciso saber? — A voz de Fiódor invade o ambiente, e


eu me viro para encontrá-lo com Viggo e meu tio atrás dele, os três parados
na sala de visitas. Penso no que estão fazendo aqui, na minha casa, juntos,
mas aí me lembro da reunião que pedi para que Minerva marcasse quando

ainda estava na China para ajustar os prazos da refinaria.

Há um momento de silêncio e tensão, então Fiódor vai até a filha e se


agacha na frente dela como alguém que está amparando uma criança que
acabou de cair da bicicleta e ralar o joelho. A fúria que estava no tom da sua
voz parece desaparecer. Suponho que a imagem que Elke transmita neste

momento tenha tal poder. É como se ela fosse apenas a sombra da pessoa
que costumava ser.
— Alguém pode explicar o que está acontecendo aqui? — Viggo
questiona. — Por que toda essa comoção? O que aconteceu com a garota? E

o que você está fazendo aqui, Vladmir?

— Conversamos depois, pai. Este não é o momento — Vladmir


responde.

— Vamos deixar que os dois conversem — digo acenando para que


parte das visitas deixe a sala. Meu tio é o primeiro a sair, ele parece tão

confuso quanto Viggo. Atrás dele, está Vladmir que, antes de deixar o local,
dá uma última olhada para Elke.

— Andreas… — Elke me chama —, espere um minuto. Você vai


encontrá-la, não vai?

— Eu vou encontrá-la e vou tentar trazê-la de volta.

— Ela não fugiu — Elke insiste. — Mesmo quando eu a chamei para ir

embora comigo, eu sabia que ela estava reticente. Que, apesar de tudo, ela
queria ficar com você. E eu sei que minha amiga deve ter passado muita
coisa nos últimos meses, mas também sei que nada disso mudou o coração
dela, e você sempre esteve nele.

Eu não sei o que dizer a Elke, quero acreditar que Izolda não foi
simplesmente embora, que algo aconteceu, mas Mikhail não parecia estar
mentindo, e ele seria a única explicação possível na minha cabeça.
— É melhor eu ir, você precisa conversar com seu pai. Só quero que
saiba que eu vou apoiá-la se quiser levar tudo isso às últimas consequências,

entendeu?

Do lado de fora da sala de estar, Viggo e Vladmir estão conversando


enquanto meu tio está num canto com um copo de bebida na mão. Eu me
aproximo de Nikolai, que pergunta como eu estou. Nem sei o quanto ele sabe

para além do sumiço de Izolda, mas essa parece uma pergunta complexa
demais.

Como eu estou? Eu acabo de descobrir que meu irmão estuprou


alguém, e, mesmo que eu saiba que é verdade, mesmo que a minha cabeça
não esteja tentando criar defesas para o comportamento injustificado do meu

irmão, há dentro de mim esse desejo de que tudo fosse um engano. Eu cresci
com ele e não vi nada, não percebi quem ele é. Primeiro, Mikhail declara
que me odeia e que adoraria me destruir. Depois, eu descubro que ele não é
só obcecado por uma vingança sem sentido ao meu respeito, ele é também…

ele é um estuprador. Passo a mão no rosto e pego a garrafa que está ao lado
dele, tomando um gole diretamente no gargalo. Eu deveria manter minha
mente limpa, mas talvez já tenha sentido mais do que o recomendado nas
últimas horas.

— Bom, se não vai me explicar o que está acontecendo aqui, é melhor

eu ir — Viggo diz. — Andreas, você deve querer remarcar, certo?


— O engenheiro da planta vai procurá-lo, Viggo — digo me

esforçando para ser objetivo, como sempre fui treinado a ser. Meu tio
acompanha Viggo até a porta e, depois, me diz que vai subir e tomar um
banho, mas me diz para “pegar leve”. Eu me sento, e Vladmir surge com dois
copos, trocando um deles pela garrafa na minha mão. Ele se senta ao meu
lado e enche nossos copos. Conheço meu ex-cunhado desde sempre, e nunca

tinha o visto tão irritado antes.

— Seu irmão é um filho da puta — ele diz bebendo.

— É. — É tudo que eu consigo dizer enquanto viro todo o conteúdo do


copo de uma só vez.

Há um breve momento de calmaria e silêncio, em que estamos ali

apenas os três, sem trocar nenhuma palavra. Não sei por quanto tempo isso
dura, mas quem encerra a calmaria é Kira Pavlova, que entra como um
míssil teleguiado querendo saber onde está sua filha. A mulher grita comigo,
e, quando estou prestes a perder minha paciência, é Vladmir que grita para

que ela cale a boca. Kira olha para o meu ex-cunhado parecendo ultrajada, e
eu posso ver o quanto ela o considera petulante por isso.

— Isso é tudo invenção da sua esposa, não é? — Ela diz me olhando


outra vez, agora falando mais calma. — Foi ela quem tirou minha filha do
hospital e…
— Não — Vladmir diz. — Eu tirei a Elke do hospital. A senhora não

tinha o direito de interná-la contra sua vontade, daquela forma, e tudo isso
para evitar que ela falasse sobre o que aconteceu…

— Você fez o quê? — Fiódor pergunta. Ele está parado olhando para a
esposa. Elke, atrás dele parecendo ainda mais pálida do que antes, se isso

for mesmo possível. — Você internou a nossa menina? Você sabia que ela
estava sofrendo? Que tinha sido machucada? E não me disse nada?

— Pai… — Elke pede segurando o ombro de Fiódor, — Não é culpa

dela. Está tudo bem, eu estou bem agora.

Ela não parece estar bem. “Bem” é a última maneira do mundo para
descrevê-la.

— A mamãe fez o que achou que era melhor. Mesmo que ela tenha

errado, foi com as melhores das intenções.

“Melhor”, outra palavra usada sem sentido. Talvez eu devesse arrumar

uma cópia desse dicionário que a Elke tem e aplicar os sentidos na minha
vida.

— Quando ela me disse o que aconteceu, que tinha se envolvido

naquele escândalo em potencial e dormindo com Mikhail…

— Eles não dormiram juntos. A senhora fala como se ela tivesse tido

escolha — Vladmir diz.


— Eu só não queria que o nome da nossa filha fosse arrastado para a

lama. Eu fiz o que achei melhor para protegê-la e nos proteger — Kira diz

ao marido.

— Você tinha que ter me contado. Eu sou o pai dela.

— Pai, o que eu lhe contei lá dentro, sobre o que aconteceu, nada


daquilo é culpa da minha mãe. Ela só não soube reagir. E eu também não

sabia. Eu não queria contar para você, eu achei que não acreditaria em mim

depois de tudo que eu já aprontei.

— Eu vou sempre acreditar em você, minha filha. Desde o dia que


você nasceu, minha única obrigação na vida passou a ser protegê-la, garantir

que você tivesse tudo e estivesse segura e…

— Você fez isso — ela diz abraçando o pai. — Você fez.

Eles ficam abraçados, chorando. Eu nunca vi Pavlova demonstrar

nenhum tipo de emoção complexa, e isso me surpreende. Eu sabia, claro, que


ele era apaixonado pela filha, sempre foi. Sempre fez todas as vontades da

Elke. O maior exemplo disso é o fato de que, mesmo achando inapropriado


por suas razões elitistas, ele nunca separou a filha de Izolda.

Pergunto-me o quanto ela contou ao pai nesse tempo lá dentro, então


me coloco no lugar daquele homem. O que eu faria se fosse pai e tivesse que

ouvir isso? Como eu me sentiria?


— Quem fez isso a você? — Pavlova pergunta depois de um tempo.

— Pai, isso não vai mudar nada.

— Elke. Eu quero saber quem fez isso a você. — Elke olha para mim

rapidamente e, depois, para a mãe. Eu quero contar, quero dizer que foi
Mikhail, mas a decisão não é minha, não pode ser. Estou convivendo com

isso há pouco tempo, e minha pele está fervendo, mal consigo imaginar como
pode ter sido para Izolda conviver com esse segredo por meses.

— Mikhail… — ela diz. E então, o barulho toma conta de tudo outra


vez.
Sabe aquela sensação de que as pessoas estão olhando para você o

tempo todo? É assim que me sinto enquanto saio da aeronave e decido que

preciso de um voo para a China. Para me sentir menos observada, vou até
uma loja dessas de free shop e compro um véu na esperança de me misturar

melhor com as mulheres esperando por voos no Cairo. Também compro um

celular e, assim que ligo o aparelho, percebo que só sei três números de
telefone de cabeça: o do meu pai, o do meu antigo aparelho e, claro, o da

mansão. Quando recebi meu telefone, o que fora levado por Olga Orlov, o

número de Andreas já estava nos contatos, assim como o de Minerva. Nunca


achei que fosse precisa sabê-los de cor. Ligo para casa na esperança de que

alguém em que posso confiar atenda, mas reconheço a voz de Katrina, e não

tenho coragem de falar. Pergunto-me se estou ficando paranoica, mas prefiro

não arriscar. Se eu quiser desmascarar Olga, vou precisar de cautela e

coragem – duas habilidades que parecem não casar muito bem.

Minha paranoia fica ainda mais intensa quando estou na fila do guichê

para comprar a passagem. Fico achando que Olga vai saber que eu não fui

embora, que, de alguma forma, vai saber que eu estou indo para a China.
Então, desisto de pegar um voo comercial e deixo o aeroporto. Horas

depois, estou esperando em um pequeno aeroporto de carga para embarcar

em um voo privado para a China. Não deveria estar impressionada com o

que dinheiro pode fazer, principalmente tendo crescido na casa dos Orlov,
mas, quando consigo um avião privado com algumas centenas de dólares, e

eles não me fazem muitas perguntas além do destino e horário em que desejo

partir, eu fico pensando na razão pela qual as pessoas brigam por dinheiro.

Dentro do avião, por mais irracional que seja, fico achando que Olga

Orlov vai surgir e me jogar pela saída de emergência ou coisa parecida.

Minha paranoia só cessa quando a fome toma conta. Não comi nada em

quase meio dia; ainda assim, não consigo mastigar. Tomo um suco de laranja

apenas e tento me concentrar no que vou dizer a Andreas quando o encontrar.

Primeiro, tenho que falar sobre o que sua avó me fez, depois sobre aquela
foto com aquela pergunta no verso. “Carros recentemente revisados não

faltam freios, faltam?”.

Eu me lembro do carro perfeitamente, um conversível vermelho, a cor

predileta da mãe de Andreas. Lembro-me dela beijar o filho na testa e de

como ela me chamou – como sempre fazia, de “uccelino[2]” – quando passou

na biblioteca para se despedir. Ela era boa, gentil, cheia de vida. E aquele

foi seu fim, presa em um amontado de aço no meio de uma estrada. A

pergunta atrás da foto insinuava que alguém fez aquilo, e algumas semanas

atrás, eu ficaria na dúvida sobre a autoria. Mas, depois de tudo que

aconteceu, eu tenho certeza de que Olga Orlov fez aquilo, que ela matou a

nora e o filho. No entanto, a pergunta que não para de latejar na minha


cabeça é: Quem mandou aquele envelope para nossa casa? Era uma ameaça?

Um alerta? A segunda opção parecia fazer mais sentido que a primeira.

Minha cabeça fica gritando que eu preciso de um plano, mas tudo em que

consigo pensar é encontrar com Andreas.

Desço do táxi em Pequim, depois de horas de viagem, me sentindo

mal. Eu não acho que consegui parar de sentir meu corpo trêmulo desde que

acordei e vi Olga Orlov me esperando com meu celular na mão. Mas agora

sinto algo que vai além disso. Eu me recrimino por não ter comido direito

enquanto ando apressada até a saída do aeroporto para encontrar um táxi. Eu

tinha o nome do hotel anotado apenas por precaução, já que, antes, eu


desembarcaria em um voo privado, e um motorista já estaria esperando. Falo

com um segurança que está na porta do aeroporto, e ele me diz que, para

pegar um táxi, eu preciso descer as escadas por dentro do aeroporto até o


térreo. Eu solto meu lenço por estar me sentindo quente demais e faço o que

ele diz. Estou na metade das escadas quando sinto uma tontura e me amparo

no corrimão. Uma mulher parece me oferecer ajuda, mas não entendo uma

palavra do que ela está dizendo. Estou com pressa. Neste momento, Andreas

já notou que não cheguei e deve estar me procurando, talvez ele até mesmo

já esteja voltando para a Rússia. Respondo à mulher em inglês dizendo que

está tudo bem e continuo descendo os degraus. Quando chego ao final, tudo

fica escuro, e eu sinto meu corpo se chocando contra o chão.

Abro meus olhos e encaro o teto. Forço meu corpo para levantar, mas

alguém está me dizendo para ficar calma. Por um segundo, eu temo que seja

Olga Orlov, mas então vejo o rosto que se projeta pairando por cima de
mim. É uma mulher jovem, branca, de cabelos lisos. Deve ser médica ou

enfermeira, não tenho certeza.

— Como está se sentido? Izolda, não é? — Ela pergunta.

— Sim, meu nome é Izolda, e eu estou… o que estou fazendo aqui?

— Você desmaiou no aeroporto, e uma ambulância a trouxe para…


— Onde estão as minhas coisas? — Pergunto. Não posso perder

aquela foto, não posso ficar sem dinheiro em um país estranho. Eu preciso

me levantar, preciso encontrar Andreas. Tento forçar meu corpo, mas há um

acesso no meu braço, e a mulher coloca a mão levemente no meu ombro, me

fazendo ficar no lugar.

— Você precisa descansar um pouco. As suas coisas estão aqui, está

tudo bem, você está em um hospital — ela fala calmamente. — Você quer

que chamemos alguém?

Claro que quero! Quero que chamem o meu marido, quero Andreas do

meu lado. Esse deve ser o preço que preciso pagar por ter escondido tanto

dele por tanto tempo. Juro a mim mesma que nunca mais vou ter segredos

com Andreas.

— Não. Eu tenho que ir, eu preciso ir.

— Izolda, escute. Você precisa ao menos esperar os resultados de

todos os exames. Começos de gravidez são momentos delicados, e um

esforço indevido pode…

— Gravidez? Você disse gravidez? — eu pergunto.

— Sim.

— Não, eu não… — não havia nenhum indício até aquele momento.

Vasculho minha mente tentando lembrar qualquer momento em que qualquer


um daquele arsenal de sinais clássicos que grávidas costumam experienciar

poderiam ter se manifestado: sono, cansaço, enjoo. Nada. Apesar disso, eu

sei que não posso dizer que não existe nenhuma possibilidade. Não é como

se Andreas e eu fôssemos exatamente rigorosos com cuidados

contraceptivos, e minha última menstruação havia sido em… quatro ou cinco

semanas. Coloco a mão na cabeça e tento respirar fundo. — Você tem

certeza?

— Sim. Você está com algumas semanas de gravidez. E, como disse,

esse é um momento em que se concentram os principais riscos de aborto

espontâneo. Por isso, é importante entender o que aconteceu hoje para que

não volte a se repetir.

— E está tudo bem com o bebê?

Ela diz que sim e começa a fazer perguntas sobre a minha rotina e

alimentação nos últimos dias. Depois que respondo, afirma que meu desmaio

provavelmente foi por hipoglicemia devido à falta de alimentação,

explicando que o corpo fica mais vulnerável durante a gravidez. Quando

pergunto se posso ir embora, ela diz que preciso ao menos terminar a

medicação intravenosa e deixa a sala.

Olho no relógio e percebo que estou no hospital há algumas horas.

Nem mesmo sei que horas são aqui em Pequim, pois já me perdi com toda a
ida para o Cairo, voo para a China e mudanças de fusos. Encosto a cabeça

na cama e deixo meu corpo descansar. Eu estou grávida. Em meio a tudo

isso, estou grávida. Levo a mão para a barriga e penso que há um pedacinho

de Andreas dentro de mim, e isso, apesar de todo o medo, me dá forças. Eu

posso fazer isso. Na verdade, agora, eu preciso fazer isso. Preciso

desmascarar Olga, preciso colocar Mikhail na cadeia. Eu preciso que o meu

filho possa crescer seguro, sem a ameaça de um tio e uma avó que acham que

podem tudo.

— A mamãe promete que vai ser forte daqui para a frente, tudo bem?

Eu prometo para você que eu vou fazer de tudo para que você possa crescer
feliz, saudável e com o seu pai por perto.

— Esse número não serve — digo ao terceiro funcionário do hotel que


está me atendendo desde que cheguei. — É o da empresa, eu preciso do

telefone do hóspede.

— A reserva foi feita no nome da empresa, senhora. Não há nenhum


dado pessoal. Nem mesmo o nome dos hóspedes.

— E quando eles foram embora? Você pode ao menos me dizer isso?


— O checkout nunca foi feito — ele responde —, mas ambos os
quartos no nome da empresa já foram esvaziados, limpos, e até mesmo já

temos outro hóspede em um deles.

Eu passo a mão nos cabelos e tento me acalmar. Vir até aqui foi
burrice, mas ir para a Rússia parecia arriscado demais. Se Olga Orlov me

encontrasse antes de Andreas, se ela soubesse que eu estava de volta ao


país, tudo estaria perdido. Preciso que ela acredite que fui embora, que

realmente engoli suas ameaças. Peço um quarto e comida, preciso colocar


algo decente no meu estômago e colocar meu filho como prioridade.

Alimento-me enquanto observo a vista da janela. Está escuro, mas é uma


cidade cheia de luz, bonita. Teríamos tido dias felizes aqui se Olga Orlov

não tivesse planos próprios. Andreas poderia estar aqui agora, me


abraçando por trás, como gostava de fazer. Sua boca passeando pela minha

nuca, a respiração quente e deliciosa, as mãos na minha cintura.

Imagino-o ouvindo a notícia, sabendo que vai ser pai. Lembro-me da


última vez em que falamos sobre o assunto, meses atrás, quando eu ainda

achava que poderia estar grávida logo depois da nossa primeira vez.
Estávamos em um restaurante, e uma mulher grávida passou. Ele notou que

eu fiquei encarando-a e apoiou o queixo do meu ombro e colocou a mão no


meu estômago. “Não se preocupe. Se você estiver grávida, esse filho vai ser

a melhor coisa que já me aconteceu”.


É mais de meia-noite em Pequim, mas ainda não passou das oito em
Moscou. Imagino que Andreas esteja me procurando, isso se não estiver

achando que o abandonei. Pego o telefone e ligo para casa outra vez, e
novamente é Katrina quem atende. Penso em outra coisa, um outro número

que sei, o número para o qual mais liguei nos últimos meses: Elke. Se ela
está de volta, se Vladmir a encontrou, talvez ela esteja novamente com seu

celular em funcionamento. Mas recebo a informação de que o número está


desconectado.

Pego a foto que está na bolsa e ligo para o número no verso. Eu queria
fazer isso junto com Andreas. Pela primeira vez, eu queria a ajuda dele,
queria ser honesta, e não podia. Então, como ironia, precisaria resolver por

conta própria.

— Alô? — Uma voz masculina atendeu do outro lado da linha.

— Oi, aqui é…

— Eu sei quem é — ele respondeu. — É a filha do Krovopuskov. Só


você tem este número, menina, e eu estava esperando sua ligação.

— Como é mesmo o seu nome?

— Igor Bychkov.

— Sobre aquela insinuação da foto, o senhor tem provas disso? —

pergunto.
— Tenho.

— E por que deveria confiar no que diz?

— Por que seu pai salvou a minha vida, menina. E eu disse que, um
dia, devolveria o favor. Infelizmente, ele não está mais aqui, e não posso

retribuir o favor diretamente, mas posso fazer isso por você.

— Podemos nos encontrar?

— Anote o endereço. — Ele começa a dizer.

Kaluga fica a menos de duzentos quilômetros de Moscou, o que


significa que, depois de falar com ele, poderei voltar para casa e encontrar

Andreas. Poderei voltar com evidências.

O local do meu encontro com Igor Bychkov é um pequeno café, pouco


movimentado, no centro da cidade. O fato de que ele escolheu um local tão

público me parece um bom indicativo, mas opto por ser cautelosa. Escolho
uma mesa perto da porta, considerando as possibilidades de fuga, se

necessário. Uma garçonete aparece – é uma senhora de cabelos brancos que


cheira a cigarro e usa um uniforme amarelo. Ela me oferece um cardápio, e

peço algumas panquecas com mel. Não costumo comer muito pela manhã,
mas faço um esforço.

Sempre que a porta se abre e o pequeno sino que fica no topo dela é

acionado, eu levanto a cabeça na expectativa de que seja Igor. Não sei qual é
sua aparência, mas, ainda assim, continuo repetindo o reflexo de vigilância a

cada novo som. Ele está alguns minutos atrasado quando termino de comer e
peço um chá.

— Izolda? — um senhor de barba cinzenta pergunta. Eu aceno


positivamente, e ele se senta na minha frente e estende sua mão para mim. —

Igor Bychkov.

— Eu conheço você — digo olhando para ele. O nome não me


acionava memória alguma, mas o rosto, aquele rosto, eu já tinha visto. Eu

não sabia precisar a memória, mas ela existe.

— Você ficou ainda mais parecida com a sua mãe com o tempo — ele

diz sorrindo. — E, sim, você me conhece. Trabalhei na casa dos Orlov por
alguns anos.

— Você devia ter uns doze ou treze anos quando fui embora. Vi que

ainda pinta, estava numa matéria no jornal — ele diz isso como se esse fosse
um reencontro de velhos amigos, como se ele fosse um parente perdido, e

essa atualização fosse protocolar, mas não é. Se ele trabalhou lá nessa


época, eu deveria me lembrar mais dele, mas eu passava a maior parte do

tempo no internato, e apenas as férias em casa e, mesmo assim, dividia parte


do meu tempo entre a casa de Elke, livrarias no centro para as quais minha
amiga me arrastava, ou na minha atividade de férias predileta, ouvindo
Andreas ler na biblioteca enquanto eu desenhava.

— Igor, espero que me desculpe por ser direta — digo escolhendo

cada palavra para não ser rude. Não posso deixar que esse homem tenha
qualquer má vontade, — mas aquela foto, o que sabe sobre o acidente?

— Tudo — ele responde erguendo a mão para a garçonete que se


aproxima e o cumprimenta sorrindo, chamando-o pelo nome. Ele pede um

café, eu, um chá. E então, o homem pergunta à garçonete sobre alguém. Pela
resposta, parece que se refere aos netos da mulher. Acho seu jeito pouco

preocupado alarmante, talvez isso tudo tenha sido uma péssima ideia. Uma
alerta dentro de mim começa a questionar se eu deveria mesmo estar aqui,
numa cidade estranha, conversando com um estranho.

— O que você ganha me contando sobre isso? Você precisa de


dinheiro ou algo assim?

— Não, menina — ele afirma, parecendo um pouco ofendido. —


Permita-me lhe contar uma pequena história. Vinte e cinco anos atrás, eu

estava passando necessidade com três filhos pequenos, nenhuma perspectiva


de emprego e começando a me desesperar. Um dia, eu esbarrei com um
homem bem-vestido que me perguntou se estava tudo bem. Eu estava

tremendo de frio usando farrapos no inverno de Moscou. O homem me deu o


casaco dele e me pagou um café. Foi a primeira coisa que eu coloquei no
estômago em quase um dia, então eu agradeci, contei minha história, e ele me

disse que tinha uma oferta de emprego. No mesmo dia, eu estava


trabalhando. Você deve ter adivinhado que o homem bem-vestido era seu

pai, e o trabalho era na mansão Orlov, ajudando a limpar os veículos da


família.

Ouvi-lo me deixa emocionada. Aquele era o meu pai, sem tirar nem
por. O homem que se importava com os outros, que era generoso ao ponto de
dividir mesmo aquilo que pouco tinha. Ele não era perfeito, claro, mas era o

tipo de homem que faria exatamente o que Igor me relatou e nunca falaria
sobre o assunto. Esforço-me para não chorar porque, se eu começar com isso

agora, não sei bem se e quando serei capaz de parar.

Estou calada observando a garçonete lhe servir um café enquanto tomo

um gole do chá de ervas que aquece meu estômago.

— Eu imagino que seja difícil confiar em mim. Eu realmente nem


acreditei quando concordou em me encontrar, e achei que o seu marido
estaria aqui.

— Há seguranças lá fora — blefo. Examino seus olhos tentando


entender se ele compra a minha mentira. Ele coloca a mão no bolso superior
do casaco e tira uma foto. Não é um recorte de jornal como a outra que me
mandou, é uma foto mesmo. Na imagem, está ele, meu pai, minha mãe e uma
mulher que não conheço. — Isso foi pouco antes de você nascer, sabe. Sua

mãe queria que minha esposa e eu fôssemos seus padrinhos, mas a senhora
Orlov se ofereceu, e eles não podiam dizer não.

É como um pequeno mundo secreto se desdobrando na minha frente. E


eu me pego gostando de ouvir detalhes sobre meus pais; faz tanto tempo que
ninguém me fala nada novo sobre eles. Meu pai costumava contar sobre

como conheceu a minha mãe e das coisas malucas que ela gostava de fazer,
mas era como se eu não tivesse mais nenhuma fonte. O resto dessa história
em particular, eu já conhecia. Nunca fui batizada. Primeiro, porque eu passei
muitos dos meus primeiros meses de vida doente, entrando e saindo do

hospital, mas também porque o falecido senhor Orlov nunca tinha tempo, e
meu pai sempre achou melhor assim. Concentro-me, eu não vim até aqui para
isso.

— Por isso, mandou aquilo para mim, e não para Andreas?

— Mandei para você porque eu era amigo do seu pai, porque eu me

importo com você. Aqueles garotos, o Andreas e o Mikhail, nunca troquei


mais de duas palavras com eles. O mais velho, eu fazia questão de me
manter longe. Sempre agindo como se fosse o pai, olhando por baixo mesmo
quando ainda nem tinha altura para isso. Você sabe o que o nome dele
significa? Aquele que é feito Deus. É apropriado, não é? Para alguém que
acha que está acima de tudo e de todos.

Você nem imagina, penso. Relaxo um pouco quando ele compartilha


tudo isso. Já seria suficiente usar a lógica do inimigo do meu inimigo é meu
amigo, mas há mais do que isso. Há sinceridade na forma como esse homem
se refere ao meu pai, e não é mais só uma questão de escolha confiar nele,
sinto no meu peito que devo fazer isso. E então, peço para que ele me conte

tudo, e Igor o faz.

Ele tinha revisado o veículo um dia antes do acidente, e tudo estava


em perfeitas condições. Por isso, quando o carro faltou freios e os Orlov
morreram, ele procurou o inspetor responsável e contou que tudo estava

correto. Ele até mesmo mostrou os relatórios de revisão que ele sempre
mantinha, já que cuidava dos muitos veículos na casa. O inspetor nunca
levou o caso adiante, e Igor foi demitido na mesma semana, assim como um
primo que o ajudava a cuidar dos carros. Esse primo desapareceu por um

tempo, mas então, depois de alguns meses, surgiu com muito dinheiro, bons
carros, e Igor soube que havia algo de errado.

Foi nesse momento que começou a investigar. Ele suspeitava que o


primo tinha sido pago por Olga para cortar os freios, mas o homem negava.
E negou até que, uns dois anos depois, perdeu todo o dinheiro e voltou por

mais, ameaçando Olga Orlov. O homem procurou Igor e contou a verdade,


dizendo que não sabia se teria o dinheiro ou se acabaria morto. A segunda

opção se concretizou. Semanas depois, ele apareceu morto em um rio.

Eu sabia o que esperar quando vi a foto do carro, mas ouvir aquilo


tudo me acerta porque deveria existir um limite daquilo que alguém é capaz
de fazer, mas parece que isso não é verdade se você é Mikhail ou Olga
Orlov.

Escrevo uma carta para Andreas e conto tudo, cada detalhe do que Igor
contou e o meu plano. Mas, antes disso, falo sobre tudo que Olga fez comigo
e termino dizendo que o amo e que, em breve, estaremos juntos.
Eu durmo pela primeira vez em quase três dias. Não por vontade de

descansar, mas porque meu corpo não suporta mais. Acordo com Minerva

sentada numa cadeira ao meu lado na cama. Ela me encara com seus olhos
azuis carregados de preocupação. E pergunta como estou me sentindo.

Não sei responder, e, francamente, gostaria que parassem de me fazer


essa pergunta. Minha avó perguntou isso quando passou pela porta me

oferecendo solidariedade pelo sumiço da minha esposa; Stan, quando

apareceu oferecendo ajuda; Nikolai, toda vez que tenta me convencer a


comer, como se eu fosse o garoto de dez anos que ia pescar com ele e

estivesse fazendo birra com o meu prato.

— Você não a encontrou, não é?

— Não. Nada ainda — ela diz tentando manter minhas esperanças.

Quando Minerva voltou, me disse tudo que tinha descoberto no Cairo: Izolda

comprou uma passagem para o Chile, mas desembarcou; depois disso, não
há mais nenhum vestígio. “Eu procurei, Andreas, mas ela não usou cartão,

celular, não deixou nenhum traço. A única imagem que temos é de Izolda

deixando o aeroporto do Cairo, e foi um sacrifício conseguir essas

filmagens, levou dias”.

— Obrigado mesmo assim, não sei o que eu faria sem você — digo

tocando sua mão.

— E, por sorte, você nunca vai ter que descobrir — ela afirma. —

Levante-se, vamos comer alguma coisa. Você precisa trabalhar, pensar na

empresa. Hoje é o evento de homenagem da sua avó, o evento “das grandes

mulheres russas”. Eu sei que é demais, mas você tinha que dar um discurso

e, se não aparecer...

— Não estou com cabeça. Na verdade, não sei se consigo pensar em

qualquer outra coisa.


— Claro que consegue. Além disso, eu já escrevi um discurso. Você

não vai me deixar jogar meu trabalho fora, vai?

— Eu sinto muito. Sinto muito por tê-la feito voar até o Cairo, sinto

muito por todo o tempo perdido.

— Você sabe que eu não me importo, de verdade. Eu mesma posso ler

esse discurso e inventar uma desculpa, se for o caso, mas o que me preocupa

aqui é que você precisa começar a reagir, Andreas. Eu o vi seguir em frente

por situações terríveis. A morte dos seus pais, a traição da Galina, a morte

do Sergei. Você tem forças para isso.

— Não sei se tenho, não dessa vez. Eu amei a Galina, e, mesmo assim,

esse sentimento não chega nem perto do que sinto pela Izolda. Quando a

Galina me traiu, eu senti uma fúria, e isso me ajudou a seguir em frente. A

Izolda deixou um vazio.

— Vai ser ruim, horrível agora, mas vai continuar assim se você não

fizer nada para mudar isso, e o primeiro passo é fingir normalidade. Nós

vamos fingindo que está tudo bem até eventualmente as coisas parecerem

bem de fato.

— Você é a pior terapeuta que existe — digo sorrindo.

— Mas eu fiz você rir, acho que é uma vitória.


— Sabe, a Elke fica me dizendo que ela nunca faria isso, que Izolda

nunca me abandonaria. O Nikolai diz que eu não posso perder as esperanças,

mas, em algum momento, eu vou ter que aceitar a realidade, não é? Os


seguranças estão seguindo o Mikhail e não descobriram nada. Você não

achou nada. E, como se isso fosse pouco, há toda essa história da Elke e...

— Eu me interrompo e não consigo dizer. Não é o meu segredo, então não

posso contar, você entende isso? Sim, eu entendo, agora eu entendo, Izolda.

— A Elke me contou — Minerva diz. — Eu conversei com ela

algumas horas atrás enquanto você dormia. — Ela está grata por estar aqui.

Eu me lembro que Elke ainda está na minha casa, que sugeri que

ficasse em um dos quartos. Ela estava muito abalada depois de conversar

com o pai, e os Pavlova tinham saído daqui discutindo. O ambiente naquela

casa não seria o melhor para ela no momento.

— É o mínimo que eu posso fazer por ela. Minerva, meu irmão... eu

sabia que ele não era a melhor pessoa do mundo, e eu até mesmo quis odiá-

lo com a morte de Sergei, mas, mesmo que ele tenha provocado, ele não

matou o Sergei diretamente, então eu continuei achando que houvesse algo

nele que pudesse ser salvo, mesmo que a nossa relação como irmão não

tivesse mais reparo. Eu não achei que ele fosse capaz disso, de fazer o que

fez com a Elke. E eu fico me perguntando o que mais eu não vi. Como eu não
notei? Como eu não impedi? Ele é uma pessoa horrível, doentia.
— Olhe para mim — Minerva pede colocando a mão no meu rosto. —

Nada disso é culpa sua, entendeu? E, não, ele não é doente. Horrível, com

toda certeza, mas não doente. Estupro é sobre poder. Você lembra daquela

garota que foi estuprada no campus quando estávamos em Londres?

— Sim. — Aceno positivamente, sem entender muito bem aonde ela

quer chegar.

— Eu conversei com ela algumas semanas depois. Ela ainda estava

bem abalada, mas me contou que o cara era estudante de medicina que se

voluntariava no hospital infantil, e, quando topou sair com ele, ela nunca

achou que ele pudesse fazer qualquer mal a ela. Ela me disse que estavam

bebendo, começaram a se beijar, então ela mudou de ideia e não quis mais

continuar, mas ele não soube ouvir um não, e continuou apesar dos pedidos

dela. Estou contando isso para que você entenda que qualquer homem pode

fazer algo assim. Chamar o Mikhail de monstro ou procurar uma explicação

clínica é tentar relativizar a coisa toda, e eu sei que você não quer isso.

— Eu estou me sentindo sujo, como se eu fosse parte do que ele fez —

confesso —, e eu sei que nada disso é sobre mim. Eu não falaria isso em voz

alta se não fosse com você, mas…

— Você não é nada como o seu irmão. Não poderiam ser mais

diferentes. E eu tenho tanto orgulho de ser sua amiga, eu confio tanto em


você, e isso não é algo que vem com facilidade quando se é mulher em uma

realidade como a que vivemos. Você é o cara que sempre se certificava de

que eu estava bem antes que eu saísse de uma festa ou bar com um cara. O

homem que confirmava comigo se uma garota estava mesmo olhando para

você antes de chegar a ela, com medo de parecer pretensioso ou invasivo, e

eu nunca o vi insistir depois de um não.

Eu lhe agradeço por isso, mas não me sinto eximido, mas não é só

culpa que eu sinto, é? Eu também me sinto de braços cruzados.

É errado que meu irmão não pague por isso, e, mesmo que Elke tenha

finalmente prestado queixa, as chances não parecem muito boas.

Descobrimos isso quando Vladmir a convenceu de conversar com um

profissional de Direito para entender o que pode ser feito. E, quando

conversamos com ela, depois de um momento privado entre Elke e

advogada, eu fiquei frustrado e entendi melhor o medo da amiga de Izolda. A

advogada falou sobre a fragilidade das evidências e as estatísticas de

tribunal de casos de estupro. É a merda do tipo de crime em que a vítima

acaba sendo questionada, e não o culpado. Você não vê ninguém que acabou

de ser assaltado ouvindo questões como “Tem certeza de que você não deu

uma margem para que ele levasse a sua bolsa?”. Depois de toda a conversa,

tudo que Elke disse foi “Eu vou prestar queixa hoje mesmo, mas foque em

encontrar a Izolda, tudo bem?”


— Mas tem que haver alguma coisa que eu possa fazer para garantir

que ele pague pelo que fez…

— Talvez tenha, vamos pensar em algo. Esse não é o tipo de

comportamento que acontece de forma isolada, mas a primeira coisa que

você precisa fazer é ficar de pé e lidar com isso. Agora, por favor, vá tomar

um banho.

Eu me sento na cama e passo a mão pelos cabelos. Então, faço o que a


minha amiga me pede. Não vou à festa de homenagem à minha avó, mas ao

menos preciso levantar e começar a reagir. Minerva tem toda razão. Estou
terminando de me vestir quando penso em algo sobre o que minha amiga

falou: “não é o tipo de comportamento que acontece de forma isolada”. E,


neste momento, há um estalo na minha cabeça, algo que nunca havia me

ocorrido antes. Saio do meu quarto praticamente correndo e encontro com


Minerva no corredor.

— Vá ao evento, eu preciso tirar uma história a limpo.

— Andreas…

— Eu só preciso esclarecer uma coisa — afirmo me desvencilhado e

avançando em direção às escadas.

— Andreas!
— Eu não vou fazer nenhuma besteira — digo entendendo sua
preocupação. — Só é algo que preciso fazer sozinho, vá ao evento. Você

mesma disse que as coisas precisam parecer normais até serem normais
outra vez.

Bato à porta algumas vezes antes que alguém venha abrir. Galina

aparece e me olha parecendo surpresa.

— O que você está fazendo aqui? — ela questiona pressionando os

braços contra o casaco.

— Preciso conversar com você.

— Entre, está frio demais — ela diz me dando passagem. — Não que

eu não esteja feliz em vê-lo, mas o que faz aqui, Andreas? Você parece… —
Ela coloca a mão no meu rosto, e não recuo, o que sei que é um erro, mas

não estou raciocinando tão bem quanto deveria. — Aconteceu alguma coisa?

— Você queria dormir com o Mikhail? — pergunto. Não consigo fazer


a pergunta que deveria estar fazendo, com todas as palavras, mas eu sei que

ela odeia o meu irmão, e agora essa parece ser a explicação.

— Andreas, você veio até aqui para isso? Sério?

— Sim, é sério.

— Do que adianta revirar essa história? Por acaso, está considerando


me perdoar?
— Galina, por favor, só me responda isso. Naquela noite, quando eu
peguei vocês dois juntos, você queria, ou ele a forçou?

— Eu queria punir você por me deixar em segundo plano pelo


trabalho, e seu irmão sempre fez insinuações, sempre disse que me faria

mais feliz ou que me deixaria mais satisfeita do que você. Eu deixei


acontecer. Ele foi grosseiro, e eu me senti suja no meio de tudo. Eu quis

parar, mas foi nesse momento que você chegou e nos pegou juntos. Então,
não, ele não me forçou. Mas por que está me perguntando isso?

— Eu só precisava ter certeza depois de tudo que descobri sobre o

meu irmão. Eu não…

— O que ele fez?

— Isso não importa. De qualquer forma, obrigado por ter sido honesta.

Eu tenho que ir.

— Andreas… — ela diz segurando a minha mão. — Seu irmão fez

isso com alguém? Ele forçou alguém...

— Sim — respondo.

— Na noite da festa de aniversário dele? — ela pergunta parecendo

receosa.

— Sim… como você...? — sou acertado pela resposta à questão que

me fiz meses atrás: Quem tirou aquelas fotos? — Foi você, você tirou as
fotos.

A realidade me acerta como um bloco de gelo. Aquela pessoa que eu

amei, que eu achei que poderia ser minha companheira a vida toda, tinha
feito aquelas imagens e as enviado para um tabloide achando que era uma

boa forma de entretenimento.

— Eu juro que não sabia. Eu não sabia que… eu não sabia que ele

estava fazendo isso com ela.

— O que estava fazendo lá?

— Eu estava irritada com a Izolda por vocês terem dançado e desci

até os quartos dos empregados. Eu queria intimidá-la, dizer que ficasse fora
do seu caminho, e vi seu irmão beijando alguém. Eu achei que fosse a Izolda

porque sabia que aquele era o quarto dela. Eu sempre soube que você nutria
algum sentimento por ela, e sempre mantive um olho na garota. Eu comecei a

gravar, mas seu irmão se virou, e eu notei que não era ela, era Elke. Ainda
assim, eu fiz alguns prints de partes específicas e mandei para um jornalista

que é meu amigo. Eu achei que, se você achasse que a Izolda estava com
Mikhail, você não se aproximaria dela, e nós dois ainda teríamos uma

chance.

— E você simplesmente deu as costas?


— Eu não sabia que não era consensual, eu não conseguia ouvi-los

direito. Ele estava sendo bruto, mas também foi assim comigo. Se eu
soubesse, eu nunca teria… eu teria tentado ajudá-la.

— Isso não faz diferença nenhuma agora, faz? — pergunto ficando de


pé. — O Sergei está morto por causa disso, e a Elke, meu Deus, você não faz

ideia de como ela…. É como se ela fosse um zumbi.

— Eu sinto muito — Galina diz se desmanchando em lágrimas. — Eu


não… meu Deus, coitada da Elke. E como assim, o Sergei morreu por causa

disso?

Eu lhe conto que Sergei confrontou Mikhail, mas, quando digo aquelas

palavras, percebo que isso é injusto com Galina. Sergei não está morto por
causa das fotos que ela tirou, ele está morto por uma série de fatores

desencadeados pelo fato de que Mikhail estuprou Elke. Meu irmão é a raiz
do problema, não ela.

— Se você tem qualquer consideração por mim ou….

— É claro que eu tenho. Eu amo você, eu nunca deixei de amá-lo,


mesmo quando estava com raiva. E é por isso que eu não suporto Mikhail,

porque ele me lembra do quanto fui burra ao perder você.

— Se você sente mesmo alguma coisa, se esse arrependimento é


verdadeiro, deponha contra o meu irmão quando chegar a hora — digo
levantando e dando as costas para Galina.

— Sua avó! — ela grita. Viro-me novamente para encarar Galina, que
está com os olhos vermelhos.

— O que tem minha avó?

— Você pode nunca mais querer olhar na minha cara depois disso, e eu
entendo, mas ao menos me deixe ajudá-lo nisso. Sua avó vai fazer alguma

coisa contra a Izolda. Eu não sei o que é, nem quando. Para ser honesta, eu
não queria saber porque seria mais fácil se isso não pesasse na minha

consciência, mas ela me prometeu que deixaria o caminho livre para mim,
que se livraria da Izolda. Eu faria de tudo para reconquistar você, mas não

quero correr o risco de ser omissa outra vez, como fui com a Elke.

Fico tão furioso que, quando percebo, estou forçando minha mão em

punho e tremendo. Não estou com raiva dela particularmente, mas com raiva
de tudo. — Agora, pode ser tarde demais — respondo, finalmente deixando-

a.

Entro no carro e estou dirigindo para o local do evento da minha avó.


No final das contas, ela vai conseguir o que queria: a minha presença.
Estou tão nervosa que nem consigo raciocinar direito. Acho que nunca

me senti tão nervosa assim. Vomitei duas vezes, não sei se pela gravidez ou

pelo que estou prestes a fazer. De qualquer forma, parte do nervosismo é


bom. É como o que eu sentia quando a diretora do internato avisava que

estávamos oficialmente de férias, e eu sabia que aquele era o momento que,

finalmente, poderia voltar para casa. Eu também vou poder voltar para casa
depois disso, e não só materialmente, mas para o homem que se tornou o

sentido de lar na minha vida.


— A senhora precisa de mais alguma coisa? — a assistente da

organizadora do evento me pergunta. É uma mulher simpática de cabelos

curtos e que, desde que cheguei, tem se preocupado comigo porque, no

minuto em que coloquei os pés no salão, eu comecei a enjoar. No fim das

contas, o enjoo foi meu aliado. Ela me colocou numa salinha reservada e me
deu água com gengibre dizendo que era ótimo para enjoos. Ela sentou-se do

meu lado e me contou tudo sobre ser ansiosa e ter crises constantes que se

manifestam com vontade de vomitar. Eu gosto dela, e há algo em seu rosto

delicado e olhos claros que me lembram Minerva e me deixam confortável.

— Não, querida. Obrigada, de verdade. Por tudo.

— Eu que agradeço. Minha chefe adorou que você vai fazer isso. Vai
ser uma surpresa e tanto.

É, vai mesmo, penso. Faço uma nota mental: preciso me certificar de

que ela não perca o emprego depois disso, ou que, caso aconteça, sei lá,

venha trabalhar comigo. Isso considerando que Andreas vai me perdoar por

tudo, claro. E se ele não me perdoasse? Como seria minha vida sem ele? E

se ele só me quisesse porque estou grávida? Merda! Foco, Izolda.

— Seu marido ainda não confirmou o discurso dele. Entramos em

contato, mas não houve...


— Tenho certeza de que ele vem, Andreas não deixaria de homenagear

a avó. — Ele tem que vir, certo? Eu expliquei na carta o que pretendia fazer:

desmascarar sua avó. Ele deveria estar aqui agora, comigo. Eu contei tudo

que sabia para que ele não fosse pego desprevenido.

A garota sai, e me levanto para me olhar no espelho. A minha

aparência é a última coisa que deveria me preocupar, mas precisei pensar

nisso para entrar aqui. Precisava parecer a senhora Orlov que circula nos

jornais, bem-vestida, usando joias caras. Estou usando um vestido luxuoso,

preto, decotado, que foi, literalmente, a primeira coisa que vi na loja. Sinto

falta do meu colar, o que foi da mãe de Andreas. Em ocasiões assim, eu o


estaria usando, mas, em vez disso, tenho um colar de diamantes que custou

praticamente tudo que eu ainda tinha. Foi como jogar pôquer e apostar tudo.

Por essa lógica, essa é minha última cartada, mas não gosto de pensar assim

porque nunca fui boa em pôquer.

— Izolda, graças a Deus. — Por um segundo, eu acho que é Andreas,

mas é apenas meu cérebro me pregando uma peça. A pessoa parada na minha

frente é Minerva.

— Feche a porta — peço olhando para seus olhos verdes enquanto ela

parece agitada. Ela parece ter mil perguntas para fazer, mas não dou essa

chance. — Onde está o Andreas?


— Eu não sei. Ele saiu de carro, e não consigo falar com ele — ela

conta passando a mão na testa nervosamente. — Aquilo tudo é… aquela

carta, meu Deus. — Ela me abraça com força, e eu retribuo. É a primeira vez
que não me sinto sozinha desde que me separei de Andreas. — Querida, nós

estávamos tão preocupados, o Andreas quase… Merda, tenho que ligar para

ele outra vez.

Assisto enquanto ela tenta ligar, mas Minerva diz que continua sem

sinal. Começo a surtar um pouco. Ele leu a carta e não quis vir aqui. Ele leu

a carta e desapareceu. Ele leu a carta e saiu de carro. E se ele tiver se

machucado?

— Ei, você precisa me atender — Minerva diz, provavelmente, à

caixa postal de Andreas. — A Izolda está aqui e, caramba, você não vai

acreditar em todo o resto. Ela está bem, está segura. Prometo que não vou

sair de perto dela, só venha até o evento da sua avó, Ok? Se ouvir esta

mensagem, claro.

— Ele não leu a carta? — pergunto.

— Não. Eu a encontrei assim que ele saiu. Estava…

— Jogada na entrada. Como você sabe que era minha? Não tinha meu

nome.
— De Shishkin para Andreas Orlov? — ela pergunta sorrindo. É, eu

tinha escolhido o sobrenome do meu pintor favorito como remetente. —

Claro que era sua, e eu quase não abri. Tive medo de que fosse uma carta de

adeus, mas, depois, pensei que você teria a decência de colocar seu nome, se

fosse o caso. Eu não estava disposta a acreditar que me enganei ao seu

respeito. E realmente não me enganei.

— Ele acha que eu fui embora?

— Ele a ama, todo o resto é besteira. E, agora que você está aqui, tudo

vai ficar bem. Agora, o que eu posso fazer para ajudar nesse plano?

— Achei que você tentaria me convencer do contrário, de evitar um


escândalo, e, para ser honesta, não tenho mais tanta certeza se quero seguir

em frente assim — confesso. — O Andreas não sabe de nada, eu deveria

contar primeiro a verdade para ele.

— Izolda, sabe o que vai acontecer se você voltar para casa sem

desmascarar Olga Orlov? Ela vai dar um jeito de se proteger porque saberá

que Andreas vai cair por cima dela com uma bigorna de aço. Então, não,

você não vai perder essa oportunidade. Aquela mulher é perigosa, e está na

hora dela começar a pagar por alguma coisa. Se um escândalo for a forma de

garantir isso, que seja.


— Você tem razão — digo forçando um sorriso. — Minerva, a Elke,

ela voltou mesmo?

— Ela voltou e contou tudo ao Andreas e…

A assistente volta sorridente e nos interrompe. Minerva aperta a mão

dela dizendo que veio em nome do senhor Orlov, que está preso em uma

reunião, mas chega em breve. “Vocês podem colocar Izolda antes, e, depois
disso, eu leio o discurso do Andreas”, ela explica.

— Na verdade, vim avisar que o outro neto da senhora Orlov está

chegando. Ligou avisando que vem discursar, chega em alguns minutos.

Eu estaciono o carro no meio de duas vagas e desço apressado. O

segurança me para na porta, e só então percebo meu estado: não estou

vestido de acordo para uma festa como essa. Estou de jeans e uma camisa

social, mas, ainda assim, não é adequado, e faz com que o cara me peça um

documento quando digo quem sou. É apenas o trabalho dele, digo a mim

mesmo tentando não ficar mais nervoso do que já estou. Preciso encontrar
minha avó e, Deus, quando encontrá-la, é bom que ela possa me garantir que

Izolda está bem, que me diga sem nenhum dos seus jogos onde ela está.

Quando entro no local, no entanto, sou surpreendido por um salão

lotado. Não deveria estar surpreso, claro, mas, na cegueira da minha raiva,

esqueci que já passava do horário de início do evento. No palco, uma

mulher, que reconheço por ser atriz russa renomada, está falando. A foto da

minha avó está no telão, e eu foco no que está sendo dito: “Uma das

mulheres que faz parte do pilar da sociedade de Moscou. O nome Orlov é


sinônimo de energia, mas é, também, sinônimo de Olga Orlov, a mulher por

trás de todo o sucesso. E agora, para começar as homenagens a ela,


recebemos sua nora, Izolda Orlov”.

O nome queima nos meus ouvidos, e eu quero sair correndo, mas meus

olhos estão vidrados no ponto de luz, até que ela aparece. Toda de preto,
cabelos soltos, ela parece bem. Graças a Deus, graças a Deus. Solto um

suspiro que nem sabia que estava prendendo, mas talvez esteja fazendo isso
desde o momento em que cheguei àquele hotel na China e não encontrei

minha esposa.

Noto um burburinho na plateia e posso ver minha avó ficando de pé.


Caminho até ela enquanto Izolda começa a falar.
— Muitos de vocês conhecem a Olga Orlov que apoia causas de
caridade, a mulher que lançava tendências, que tem um gosto impecável e

cujo suporte permitiu que o marido mantivesse um império. Vocês conhecem


a avó dedicada que sempre cuidou dos netos, principalmente frente às

tragédias do caminho.

— Andreas… — a voz de Minerva diz num tom baixo enquanto ela me


intercepta antes que possa alcançar o local onde minha avó está. — Não faça

nada, apenas escute a Izolda.

Ela segura minha mão, e eu fico parado ouvindo o que a minha mulher

tem a dizer. Perdi alguma parte, mas ela está tecendo elogios à minha avó,
agradecendo-lhe por sempre tratá-la bem e recebê-la na família. É claro que

ela está tramando alguma coisa.

— Hoje, no entanto, quero mostrar uma Olga que ninguém conhece.


Para começar, ela adora surpresas. Recentemente, ela me levou, totalmente

de surpresa, para uma viagem ao Cairo. Tecnicamente foi um sequestro, já


que eu entrei no avião achando que ia para outro lugar, mas quem se importa

com detalhes, certo? — Algumas pessoas riem achando que é uma piada,
mas outras, como eu, sabem que há algo errado nisso tudo, e alguns

cochichos começam. — Eu poderia contar mais dessa aventura em


particular, mas eu quero voltar um pouco no tempo e, para isso, trouxe um

vídeo especial.
Um vídeo começa a ser transmitido. Na tela, há um homem de meia
idade, barba grande. E ele mal conseguiu dizer “Meu nome é Igor...” quando

ouço a voz de minha avó, que fica de pé. Solto Minerva e corro até ela,
pegando em seu pulso. “Vamos nos sentar e ouvir tudo isso”, demando

ocupando o espaço vazio ao lado dela. Minha avó está gelada e parece
furiosa.

Dez anos atrás, Olga Orlov sabotou o carro da nora. Ela não sabia
que, ao fazer isso, também estaria assinando a sentença de morte do filho,

mas foi isso que aconteceu. O carro havia sido revisado dias antes, eu
mesmo…

Não consigo ouvir mais nada. Tudo é zumbido e fúria, e minha avó

está me olhando. Ela matou os meus pais. Ela matou os meus pais. Preciso
sair de perto dela antes que faça uma besteira. A mão de Minerva está no

meu ombro, mas eu não consigo me mover. “Andreas, você vai machucá-la”,
Minerva diz. Noto, então, que ainda estou apertando o pulso da minha avó,

mantendo-a no lugar. O vídeo continua no fundo. Quero olhar, quero ouvir,


mas não consigo me concentrar. De repente, um par de mãos segura o meu

rosto, e eu vejo outra vez os olhos negros de Izolda. Seus lábios se movem, e
eu não consigo entender. Estou em choque, é isso, só pode ser isso. Não sei

o que acontece por algum tempo porque, quando percebo, estou em outro
lugar, afastado da minha avó, e Izolda está ajoelhada na minha frente

enquanto estou sentado no chão.

— Andreas… — ela me chama. — Eu sinto muito. Você não deveria


saber dessa forma, droga. Andreas, eu preciso que fale comigo, amor, por

favor.

— Você está aqui — digo. Meus pensamentos parecem começar a se

ordenar na tentativa de entender o que é real. Izolda é real, posso senti-la. O


som da sua voz nos meus ouvidos, suas mãos em mim. Todo o resto? Bem,

disso, eu já não tenho mais certeza. Olho para a frente e vejo a multidão e
ouço o barulho, muitos me olham. Eu procuro o palco, o telão está preto,

havia mesmo um vídeo?

— Eu estou aqui — ela responde. Coloco meus lábios nos dela. Isso.
Ela é real. Cem por cento real. — E eu lhe prometi que não iria embora, não

prometi? Eu não quebraria uma promessa.

— Olga, onde ela está? — Digo ficando de pé e trazendo Izolda junto

comigo. Olho para a frente e encontro a resposta para minha pergunta.

— Ela matou os meus pais — digo. Izolda acena positivamente,


embora eu não esteja questionando. Ela me abraça ou tenta me manter no

lugar, não tenho certeza. “E ela vai pagar por isso, mas agora fique calmo.
Eu sei que é muito para processar, mas…” Izolda está falando; Minerva,
também. Mas eu estou focado no fato de que alguns seguranças entram e

começam a escoltar minha avó, que está junto com Mikhail agora, para o
lado de fora. Eu sigo na direção deles, Izolda segurando meu braço o tempo

todo. Eu preciso olhar no rosto dela, preciso que ela me diga que não fez
isso, que não matou minha mãe, que não matou o próprio filho.

Eu os alcanço e percebo que todos estão parados a alguns passos da


porta, e eu vejo o porquê. Fiódor Pavlova está parado com uma arma

apontada, as portas atrás dele estão fechadas.

Coloco Izolda atrás de mim. Viro-me para ela por um segundo e digo-
lhe para entrar, mas ela não se move. Os curiosos rapidamente se dispersam

procurando abrigo ou saídas de emergência, e eu escuto quando Pavlova diz


o nome do meu irmão, carregado de ódio.

— Você achou que ia conseguir escapar, não achou? Você a viu


crescer, você ia à minha casa. Você falou nela depois, como se fosse a coisa

mais comum do mundo…

— Eu não sei o que ela lhe disse, Fiódor, mas a sua filha tem uma
imaginação… — As palavras se perdem no ar com o primeiro disparo.

Gritos ecoam, e sinto o corpo de Izolda tremer atrás do meu.

— Saiam daqui, agora — digo olhando para ela. — Minerva, você


também. As duas, agora mesmo.
— Esse foi um tiro de aviso. O próximo, eu não vou errar.

Quero ir até lá, tentar acalmá-lo. Mikhail precisa pagar pelo que fez,
mas isso não é justiça, é? Mas Izolda ainda não se moveu, ela está me

segurando. “Só se vier comigo”, ela pede. “Por favor”. Merda, eu quero ir,
mas não posso.

— Baixe a arma, Pavlova — minha avó diz. — Como ousa apontar


uma arma para o meu neto?

— Seu neto é um filho da puta, sempre foi, mas isso acaba aqui, hoje.

— Calma — peço. Começo a me mover para chegar perto de Mikhail


e da minha avó, as mãos erguidas pedindo calma.

— Isso não vai resolver nada, Pavlova. A Elke precisa de você perto
dela — Izolda diz. E então, ela está na minha frente e, merda, como essa
mulher é teimosa. Eu só queria que, uma vez na vida, ela me ouvisse, mas

não parece que vou conseguir isso. Pavlova olha para ela por alguns
segundos, o suficiente para que um dos seguranças tente avançar. Percebo o

movimento e trago Izolda de volta para mim, fazendo meu corpo de escudo
para protegê-la. Há um disparo, depois mais outro. E eu me movo

lateralmente levando Izolda comigo.

— Você está bem? — Pergunto olhando para ela, tentando me

certificar de que, apesar da forma como seu coração está batendo acelerado,
não há nada de errado com a minha esposa.

— Estou — ela diz um pouco sem ar. — Alguém se machucou?

Olho para o lado e vejo que tanto meu irmão quanto minha avó estão

no chão. Pavlova, também, sendo segurado por dois seguranças e agora


desarmado. Vou até minha avó primeiro. Seu ombro está sangrando, mas ela

está consciente. Mikhail, no entanto, parece mais grave. Ele está se


debatendo enquanto o sangue jorra do seu pescoço. Coloco minha mão na

ferida, e ele me encara com os olhos verdes perdidos. A polícia aparece


pouco depois que as portas principais são liberadas, mas não há socorro

médico ainda. Mikhail começa a colocar sangue pela boca quando tenta
falar. Tento acalmá-lo, sem sucesso, até que finalmente entendo o que ele

está dizendo. “Eu odeio você”, essas são suas últimas palavras para mim.

Andreas não chora durante o enterro do irmão, nem quando a avó


deixa o cemitério direto para a cadeia, depois que entrega o vídeo de Igor
para a polícia. Eu fico esperando que ele desmorone, o que não acontece, e
isso deveria me deixar aliviada, mas não é esse o efeito. Fico preocupada,
fico esperando pela reação e, quanto mais ela demora, mais eu me preocupo.

Acima de tudo, quero apenas poder estar ao lado dele, oferecer apoio.

E também quero conversar com ele, sobre nós, sobre tudo, mas nunca parece
que há um momento adequado. Ele passa a semana inteira resolvendo
questões legais sobre o irmão, a avó, cuidando da empresa. Ele sai cedo,
chega tarde, e mal conseguimos ter um minuto juntos sem que seu telefone

toque ou ele me diga que precisa resolver alguma coisa. Sei que está me
evitando e não posso culpá-lo por isso, não depois de tudo.

Com a ausência dele, eu passo a maior parte do tempo com Elke, que
também está abalada. Seu pai está preso, aguardando julgamento, e ela se
culpa, acha que ter dito a verdade antes poderia ter mudado tudo. Talvez ela

tenha razão, mas esse exercício é inútil. Tentar mudar o passado é um estrago
de fôlego.

— Posso lhe confessar uma coisa? — Ela me diz numa tarde chuvosa
em que estamos deitadas juntas no sofá da sala de vídeo enquanto comemos

pipoca, nos entupimos de doce e vemos filme.

— Sempre — afirmo colocando pause no filme.

— Eu estou aliviada por ele estar morto, Izzy. Eu passei meses sem
conseguir dormir direito. Em Nova York, eu saía todas as noites porque tinha
medo de dormir e ele invadir meus sonhos. Tinha medo de dormir e acordar
com ele no meu quarto. Na “casa de repouso”, me entupiam de remédio para

dormir, e, ainda assim, não funcionava. Eu ficava grogue, e tudo piorava. Era
como se ele estivesse me perseguindo, e eu não podia me mover direito.
Agora, que ele está morto, eu finalmente consegui dormir bem. Eu estou
tranquila, sabe? Como se tivessem tirado um peso de mim. Você me acha

horrível por isso?

— Não. Eu a acho humana. E eu estou triste pelo Andreas, por ele ter
pedido o irmão, mas consigo entender essa sensação de tranquilidade.

Eu odeio o fato de que ele não irá pagar pelo que fez. Eu odeio a
memória que tem se cristalizado dele, como um cara bacana que se foi cedo

demais. Metade dos jornais acha que Pavlova estava lá para matar Olga, e
Mikhail se jogou na frente dela para protegê-la. A outra metade não sabe
explicar o que aconteceu. Ainda assim, eu realmente consigo entender o
sentimento de Elke, porque há essa parte de mim que fica perguntando: em

quanto tempo ele sairia da cadeia? A pena regular é de três a seis anos por
estupro na Rússia. Eu me pergunto se ele faria isso outra vez e quem mais
machucaria. Mas não é só isso, eu também penso em todas as vezes em que
ele ameaçou Andreas, em como ele odiava o irmão, no que ainda poderia
tentar fazer contra o meu marido, contra mim, contra o meu filho.
— Eu sei que eu já lhe pedi desculpas diversas vezes nesses últimos

dias, mas eu sinto muito por ser medrosa, sinto muito por lhe fazer prometer
não contar. E minha terapia inteira ontem foi sobre culpa e sobre como eu
não devo senti-la, mas queria lhe dizer isso mais uma vez. Sinto muito por
ter sido medrosa. Eu sempre achei que estivesse no controle da minha vida
até aquele momento. Eu nunca me senti tão pequena, impotente,

envergonhada e assustada.

— Medo é uma resposta natural, Elke. Eu sei que você cresceu sem ter
medo de nada, mas, frente a um trauma, é isso que parte das pessoas faz.

— Algumas lutam…

— É, mas nós não escolhemos entre lutar, fugir ou ficar paralisada de

medo. É algo subconsciente, e nenhuma dessas opções torna o que passamos


menos horrível. Eu me senti culpada por nunca lhe contar que ele me
assediava o tempo todo, mas eu nunca contei a ninguém por vergonha. Eu
achava que, se contasse, todos pensariam que eu tinha permitido que aquilo

acontecesse. Por isso, eu entendi quando você disse que não queria falar
nada. Eu… — Levo a mão à boca e sinto uma fisgada no estômago, então me
levanto do sofá e corro até o banheiro mais próximo, jogando meu lanche na
privada.

— Está tudo bem? — Elke pergunta parada na porta.


— Sim… — digo jogando água na boca. Não quero que ninguém saiba

antes de Andreas sobre a gravidez. É uma espécie de compensação sem


sentido, quero que seja o nosso segredo por um tempo. — Só comi porcaria
demais.

— Tem certeza? Você parece meio estranha.

— Sim. Tenho certeza. Não se preocupe. Podemos terminar de ver o

filme mais tarde? Preciso descansar um pouco.

— Claro, eu tenho mesmo que me organizar para ir embora. Preciso de


um apartamento, e o Vlad separou alguns que podemos ver, ele ficou de me
ajudar com isso. Detesto apartamentos, mas não posso voltar para casa e
lidar com a minha mãe, que acha que, se eu tivesse mantido minha boca

fechada, nada teria mudado na vida dela. A advogada ainda está lidando com
o acesso ao meu fundo de investimentos e todas as questões da empresa do
meu pai.

— Você vai ficar bem, você sempre foi cheia de vida e cheia de

vontades, e eu vou estar aqui para ajudá-la em tudo que precisar.

— Eu queria ser essa pessoa que você vê quando olha para mim,
Izolda. Sério — ela diz me abraçando. “Você é”, respondo de volta enquanto
vou para o quarto e escovo os dentes para tirar o gosto ruim da boca.
— Você vai me dar trabalho, não vai? — falo com meu estômago. Meu

celular toca, e vejo o nome de Minerva na tela. Atendo-o imediatamente.


“Ligue a TV, o Andreas vai fazer um pronunciamento”, ela conta.

— Senhor Orlov, há alguém na portaria para falar com você. Ela disse
que é sério, que é sobre seu irmão — minha secretária diz. Olho para o

relógio e para o discurso parado impresso na minha mesa – eu tenho uma


coletiva em meia hora. Eu evitei aquilo o máximo que pude, mas Minerva
ficava repetindo que é necessário os acionistas pressionaram, e eu
finalmente cedi.

— Peça que a tragam até aqui — digo.

Alguns minutos depois, estou de frente para uma jovem de cabelos


trançados, longos, pele negra, que está segurando uma mão na outra
nervosamente. Ela se apresenta dizendo que seu nome é Aina. Peço para que
ela se sente, e ela agradece por estar recebendo-a.

— Deve estar se perguntando por que estou aqui.

— Sim.
— Bem, alguns anos atrás, eu estava desfilando em um evento que a
sua avó organizou, e o seu irmão também estava lá… — Antes que ela
termine, eu sei o que vai dizer, e meu coração muda de ritmo. “Não é o tipo
de comportamento que acontece de forma isolada”. — Eu disse não, ele

insistiu, me machucou e...

— Você não precisa dizer se não quiser.

— Mas eu quero. Por muito tempo, eu queria falar. Meu agente não
deixou, disse que a sua família destruiria a minha carreira, então eu assinei
um acordo de confidencialidade e aceitei dinheiro para nunca falar sobre o

assunto. Sua avó resolveu tudo. Sabe qual a ironia? Minha carreira acabou
de qualquer forma, porque tudo que eu queria era falar sobre isso, gritar, e
eu não podia, não mais. E agora ele está morto, mas todos falam dele como
se não fosse… como se ele fosse um santo. Inconformada, eu liguei para um

repórter e disse que tinha algo para contar, mas pensei na obrigação legal do
contrato e vim saber se o senhor vai fazê-lo valer caso eu diga a verdade.

— Eu nem… eu nunca ouvi falar sobre esse contrato — conto. Quanto


mais pode ter acontecido sem que eu soubesse? — Mas você pode ter
certeza de que qualquer que seja a punição da quebra, eu vou resolver. Sinta-

se desobrigada.
Dez minutos depois, estou na frente de uma multidão de repórteres
para dar uma coletiva sobre os últimos acontecimentos. Há mais gente do
que eu esperava, mais gente do que quando eu assumi o cargo do meu pai e
precisei fazer um pronunciamento. Mas é claro que há os nomes Orlov e

Pavlova circulando por todo o país, desde revistas de fofoca até sites de
investimento que especulam o que vai acontecer com as empresas.

Minerva está ao meu lado, ela vai assumir as perguntas depois do meu
pronunciamento, mas Aina também está aqui. Pedi-lhe para que ela ficasse e

lhe ofereci a oportunidade de falar. Olho para o papel na minha frente, o


texto redigido por um dos funcionários da equipe de Minerva e aprovado por
mim, e começo a dizer as palavras: — Boa tarde. À luz dos acontecimentos
dos últimos dias, considerei apropriado me pronunciar. Os crimes
recentemente descobertos, de autoria de Olga Orlov, estão sendo seriamente

investigados, e o Grupo Orlov já a afastou do conselho de acionistas e está à


disposição para colaborar com a polícia. Queremos assegurar que nosso
compromisso público continua o mesmo, que a empresa continua… — Paro
e não consigo mais continuar. Falar da importância do crescimento da

empresa e de como estamos sólidos é importante, sei disso, mas também


parece errado. O discurso nem mesmo cita Mikhail, porque o caso que Elke
abriu contra ele corre em sigilo judicial, e eu penso nas matérias que
lamentam por Mikhail e o pintam como um herói. Há até flores na frente da
minha casa sendo deixadas por estranhos em solidariedade.

Todos continuam me olhando, e eu vejo quando Minerva se move para


assumir, mas faço um gesto para que ela espere.

— Recentemente eu descobri algumas coisas sobre o meu irmão, que


eu gostaria que não fossem verdadeiras, mas as quais não posso ignorar. Eu
vejo as histórias sobre o meu irmão sendo compartilhadas. Histórias que
falam sobre como ele era engraçado, divertido, de como era espontâneo,

lamentos pela juventude desperdiçada. E eu poderia deixar que essa fosse a


narrativa pública se essa também não fosse uma história que magoa outras
pessoas, que reabre feridas naquelas que meu irmão machucou. Mikhail
realmente era todas essas coisas, mas ele também era uma pessoa horrível.

Eu poderia deixar que seus crimes morressem com ele, mas fazer isso seria
desrespeitar a dor das pessoas das quais ele abusou. Não é a minha história
nem a minha voz que vocês deveriam ouvir. O que eu posso garantir é que
qualquer vítima de Mikhail que quiser contar sua história terá o meu apoio
pessoal e legal.

Aina se aproxima, e me movo para que ela ocupe o meu lugar e conte
tudo que aconteceu com ela, tudo que Mikhail fez. E ela conta. Há um
silêncio seguido por um mar de perguntas às quais ela e Minerva vão
respondendo.
Eu chego a casa, exausto, mas não tanto ao ponto de perceber que
minha esposa não está na cama, dormindo. Como a encontrei nas últimas
noites. Estamos distantes, e eu sei que não é por falta de esforço da parte

dela. Eu simplesmente não consigo parar de pensar em toda a confissão


daquele homem. Minha avó contratou alguém para matar minha mãe, alguém
para cortar os freios do carro dela, e, de alguma forma, acabou matando
também o próprio filho. Agora, ela está sendo processada por assassinato –

dois – premeditado, e deve passar o resto do que lhe sobra de vida atrás das
grades, onde Mikhail também deveria estar.

“Eu odeio você”. Quando alguém pode odiar o próprio sangue dessa
forma sem nenhuma razão? A voz dele também continua ecoando na minha
cabeça.

Entro no banho e, quando retorno, ainda não há sinal de Izolda.


Pergunto-me se ela está com Elke. Sento-me na cama, ainda de toalha, e pego
o celular. Estou prestes a ligar para ela quando minha esposa abre a porta do
quarto com um macacão jeans cheio de tinta.

— Pintando até agora?

— Sim. Eu não queria dormir antes que você chegasse, e, se eu ficasse


na cama, isso acabaria acontecendo. Eu vi a entrevista, estou orgulhosa de
você.
— Por fazer a coisa certa? — pergunto tentando não deixar que o meu
cansaço e frustração sejam descarregados nela.

— Você sabe quantas pessoas fazem a coisa certa, Andreas? Entre o

certo e o fácil, a maioria das pessoas escolhe o fácil. A maioria dos homens
defenderia o melhor amigo, irmão ou mesmo o estranho que está sendo
acusado de estupro porque tem medo de que ser o próximo acusado no que
entende como uma cruzada das mulheres contra os homens.

— Obrigado — digo beijando sua testa enquanto me movo para a


cama sem vestir nada mesmo, me enfiando debaixo dos lençóis. Preciso
dormir, preciso que este dia acabe.

Fecho os olhos, mas posso sentir Izolda me encarando. Ela se senta ao


meu lado na cama e passa a mão pelos meus cabelos ainda úmidos do

chuveiro.

— Andreas...

— Izolda, eu estou cansado…

— Eu sei, mas eu preciso entender nós dois, ou não vou conseguir


ficar tranquila, e eu realmente preciso ficar tranquila.

— Entender nós dois? — O que ela me diz faz com que eu abra os
olhos.
— É. Você vai conseguir me perdoar em algum momento? Eu entendo
se não conseguir, eu só preciso saber porque… — Merda! Ela parece tão

triste. Sento-me na cama e coloco a mão em seu ombro. Nada disso é culpa
dela, nem é sobre ela. Ou talvez seja um pouco, mas não da forma como ela
está pensando.

— Eu que deveria pedir desculpas para você pela minha família de

merda. Se não fosse por minha avó e Mikhail, sua vida seria muito mais
simples.

— Mas não teria você — ela diz erguendo a cabeça para me encarar.

— Izolda, eu não estou chateado com você, eu não estou bravo, eu só


estou de luto, cansado e com raiva de mim mesmo por ficar triste por ele. E

eu não sei quando vou ficar melhor, você pode ter paciência comigo?

— Posso, claro, eu só odeio vê-lo assim — ela diz.

— Eu amo você do mesmo jeito que amava antes, ou até mesmo mais,
se for possível.

— Eu também amo você. E eu sei que o amo mais do que antes porque
eu nunca me senti tão sozinha como quando fiquei longe de você. E eu

prometo que nunca mais vou esconder nada. Por sinal...

— Não. Não quero que me prometa isso. Só me prometa que vai me


amar independentemente de qualquer segredo e que, quando eu lhe disser
para fugir quando alguém estiver armado, você vai me dar ouvidos — peço.

— A primeira parte da promessa é fácil, mas a segunda… — Ela

passa as mãos nos meus ombros. — Eu nunca ia conseguir deixá-lo lá


sozinho, Andreas.

Sinto suas mãos deslizando pelos músculos dos meus braços.

— Eu senti tanto a sua falta — confesso sentindo o cheiro dos cabelos


dela.

— Eu também, meu amor. O tempo todo, eu só conseguia pensar que


você estava me odiando, achando que eu tinha fugido. Quando eu cheguei à
China e... — Ela fica séria e pega minha mão. — Há mais uma coisa que
você precisa saber. Eu queria ter lhe contado antes, mas, com tudo que vem

acontecendo.

Eu me preparo para algo ruim porque, bem, o que mais pode acontecer
nesta semana? Izolda coloca a minha mão entre seus seios e me encara séria.

— Quando eu estava longe, você estava comigo o tempo todo aqui —


então, ela começa a descer a mão lentamente —, mas também estava aqui —

ela diz parando nossas mãos em sua barriga.

Levo um segundo para entender o que ela está dizendo, mas, quando a
ficha cai, eu sou invadido por uma felicidade incomensurável.

— Você está esperando um bebê…


— O nosso bebê — ela diz sorrindo.

Coloco minha boca na de Izolda, e minha língua pede passagem, o que


ela imediatamente concede. É o tipo de beijo que não trocamos desde que
ela voltou porque eu estava entretido demais com toda a merda acontecendo,
mas agora nada mais importa. Só nós dois, nós três. Eu. Ela. Nosso filho.
Preparo a tinta e começo a pincelar a tela em branco na minha frente.
Está quente, bastante quente, mas gosto de pintar ao ar livre. Quer dizer, não

é exatamente ao ar livre, é o jardim da nossa casa em Roma. Ele tem

paredes, mas não um teto, e deve ser um dos meus lugares prediletos de todo

o mundo ultimamente. O sol do verão de Roma tem um efeito incrível na

minha criatividade, eu sempre trabalho mais quando estou aqui. A maioria


das peças na pequena galeria com a qual fechei contrato em Moscou são

pintadas aqui.

Respiro fundo e coloco as mãos nas costas tentando me alongar. A

barriga ainda está pequena, são apenas 22 semanas de gestação, mas eu já


me sinto pesada, e minhas pernas estão menos resistentes. Eu perdi um pouco

de peso no começo da gravidez por excesso de enjoos e tive que desacelerar

um pouco, por isso viemos para a Itália.

Meu telefone começa a tocar, e eu vejo o nome de Elke na tela. Coloco

a mão na minha barriga e tento imaginar o que pode ser agora. Minha amiga

tem me ligado diversas vezes por dia nessa última semana. Não a culpo, sua

vida tem sido intensa. Ela acaba de escrever um livro para o qual fiz todas

as aquarelas. É um livro infantil que ensina a reconhecer e prevenir


comportamentos abusivos na infância. E Elke o chama – informalmente,

claro –, de “manual para não criar pequenos escrotos”. E como se isso não

fosse o bastante, ainda precisa organizar uma festa.

— Izzy... — A voz dela começa do outro lado da linha. — Você gostou

mesmo do que eu escrevi? Não acha que eu deveria esperar um pouco mais
antes de enviá-lo para a editora?

— Está excelente, Elke. E não é como se você fosse inexperiente

nisso. — E não é mesmo. Um ano depois da morte de Mikhail, minha amiga

chegou com um laptop na mão e me entregou me pedindo para ler o que tinha
escrito. Era um material no formato de cartas, cartas ao machismo, tão

bonito, tão poderoso que, quando terminei de ler, estava chorando. “Você

acha que eu devo publicar isso?”. Eu apenas acenei positivamente e a

encorajei. Ela não queria falar antes, e tudo bem, porque não existe um prazo
de validade para falar sobre um estupro, ou sobre um abuso de qualquer

natureza.

— Eu sei, mas cada vez parece ser a primeira com essas coisas. Você

não se sente assim com um trabalho?

— Sim. — É uma meia verdade. A maioria das coisas que, antes, me

fariam tremer de expectativa, hoje são situações que aprendi a encarar com

maior facilidade. Subir naquele palco e desmascarar Olga Orlov criou essa

espécie de proteção dentro de mim, parece que minha cabeça pensa: “se eu

pude fazer aquilo, posso fazer isso também”. — Mas você sabe que vai ficar

tudo bem. Como estão os preparativos?

— Não. Eu só falo sobre isso ultimamente, me diga como está esse

meu sobrinho na sua barriga?

— Tentando me cansar, ele acabou de chutar. Não seja malvado com a

sua mãe — peço olhando para o meu estômago e volto a pincelar a tela. —

Amiga, está tudo ótimo, e, se não me deixar terminar de pintar seu presente,

vou ter que chegar aí com as mãos abanando.

— Mesmo com as mãos abanando você ainda seria uma das duas

pessoas mais importante aqui

— Porque a outra é você? — pergunto repetindo algo que sempre

costumávamos fazer uma com a outra.


— Não, não dessa vez. Vou deixá-la pintar. Eu a vejo em dois dias.

Amo você!

— Também amo você!

— Bambino, aspetta! — A voz de Giorgia invade o local, e eu vejo o

pequeno foguete correndo na frente dela. Tento alcançá-lo quando passa

perto de mim, mas as pernas ágeis me driblam e continuam correndo, dando

voltas, em meio às recriminações de Giorgia em italiano, que fica gritando


“venha tomar banho” até serem paradas por mãos mais ágeis. Olho para

cima e encontro meu marido de calção esportivo, sem camisa, e não consigo

conter um sorriso.

— Ciao, bambino!

— Ciao, papà!

— Cosa pensi di fare? — Andreas pergunta ao nosso filho.

— Non vuole fare il bagno, signore — Giorgia responde explicando

que ele não deseja tomar banho.

— Uma pena, porque eu acabei de vir de uma corrida e pensei em

convidar você e a sua mamãe para passear, mas garotos que não tomam

banho não podem fazer passeios. — Sua voz é firme, mas terna, e meu

marido está falando em russo. Eu gosto de vê-lo com Ivan, sendo um pai

dedicado, isso faz com que ele fique ainda mais sexy.
Temos tentado fazer com que Ivan aprenda português, russo e italiano

antes dos seis anos, quando dizem que o aprendizado de idiomas acontece

com maior facilidade. Assim, ele sempre vai conhecer as nossas origens.

Isso demandou que Andreas aprendesse um pouco de Português comigo e

que eu me esforçasse no italiano com ele, mas a facilidade com a qual nosso

filho muda de idioma atualmente é a melhor recompensa. Sem contar que eu

adoro quando Andreas fala em italiano comigo na cama e eu sei exatamente

o que ele está dizendo. Sim, fiz questão de aprender um vocabulário

específico.

— Vamos ter sorvete?

— Vamos ter sorvete! Um para mim, um para a sua mãe...

— Dois para a mamãe: um dela e um do meu irmãozinho.

— Isso mesmo — Andreas diz sorrindo de orelha a orelha, com

orgulho do nosso filho mais velho. Seu maior medo quando descobrimos a

segunda gravidez era que Ivan, que agora tem quase quatro anos, sentisse

ciúmes. Essa era uma das razões pelas quais ele não queria que tivéssemos

outro filho. Ele temia a repetição da relação que tinha com Mikhail, e eu não

posso culpá-lo por isso. Também não estava nos meus planos ter outra

criança. Pouco depois do nascimento de Ivan, eu coloquei um DIU, e, alguns


meses atrás, quando minha menstruação começou a atrasar, a ideia parecia

impossível, até que descobrimos que meu DIU tinha se deslocado.

— Eu ainda posso ir, se tomar banho?

— Sim, mas o que precisa fazer antes?

— Pedir desculpas — ele diz. Ivan olha para Giorgia e pede

desculpas. — Scusa, Giorgia.

— Agora, vá tomar banho e não desobedeça a Giorgia dessa vez,

entendeu?

— Entendi.

Nosso filho vai embora, mas não sem antes passar por mim e beijar

minha barriga. Andreas se aproxima quando eles vão embora.

— Oi, linda...

— Você estava correndo assim? — Pergunto arqueando as

sobrancelhas. Coloco minha mão em seus bíceps, e ele me olha com

curiosidade.

— Isso não é ciúmes, minha esposa não é ciumenta — Andreas sonda.

— Eu estou grávida, posso ser o que eu quiser, tenho direito.

— Verdade — ele diz segurando a minha cintura. — Quer que eu vá

embora para você pintar em paz?


Eu deveria dizer que sim, realmente quero terminar de pintar, mas

estou excitada e preciso ao menos que ele me beije antes de ir embora.

— Não. Eu quero que você me beije.

Colocando as mãos no meu pescoço, Andreas aproxima sua boca da

minha e enrosca a mão nos meus cabelos.

— Você está tão gostosa com esse vestido, sabia? — ele pergunta

subindo a mão pela minha coxa. Sinto minhas pernas tremerem de excitação.
— Sabe o que eu quero fazer com você agora?

— Não — digo enquanto ele move minha calcinha e coloca um dedo


dentro de mim. Eu agarro sua camisa querendo senti-lo ainda mais perto. —

Por que não me conta?

Andreas segura meu quadril contra seu corpo e coloca a boca bem
perto do meu ouvido.

— Eu quero tirar toda a sua roupa — ele começa a dizer com a voz
rouca enquanto seus lábios tocam a minha pele —, lamber cada centímetro

do seu corpo até você me implorar para entrar em você, e então, só então,
comê-la até ficarmos exaustos.

Meu corpo todo começa a pulsar, como se aquela fosse a primeira vez

que meu marido me dissesse algo do tipo, mas, de alguma forma, sempre é
novo e excitante. E mesmo quando Minerva está falando de aventuras
sexuais e a vida de solteira, eu nunca penso em como seria ter outro homem,
porque Andreas é muitos homens sozinho, e não estou falando só de

virilidade, mas de como, com toda essa carinha de santo, ele consegue me
surpreender com lugares diferentes, intensidades diferentes, posições

diferentes.

Quero levar meu marido lá para cima e gemer enquanto ele coloca
seus desejos em prática, então sussurro um “agora você me deixou cheia de

vontade” enquanto esfrego meu corpo contra o dele. Andreas se afasta e


tranca a porta de acesso do jardim e volta para mim, me levando até um

banco de mármore e sentando-se enquanto eu permaneço de pé.

— Levante o vestido — ele comanda. Eu ergo o tecido fino e florido,

e meu marido desce minha calcinha, deixando-a entre meus tornozelos. Suas
mãos percorrem minhas coxas, colocando pressão no canto, então ele inclina

a cabeça para baixo e me beija. Achei que sua boca ficaria ali, que seria
penetrada por sua língua, mas ele estava decidido a me fazer pedir por mais,
porque a cabeça voltou para a posição inicial, me encarando, enquanto seu

dedo passou a percorrer a minha vulva vigorosamente, me deixando maluca.

Isso me faz querer puxá-lo pelos cabelos para que abandone essa

tortura, mas eu gosto da expectativa, gosto de como o prazer vai sendo


lentamente acumulado, e de como meu marido consegue me deixar maluca.

Ele sabe disso, ele conhece cada detalhe, antecipa cada desejo. Estou
molhada, excessivamente molhada, quando ele levanta e muda nossas
posições, fico deitada no banco de mármore, o calor da pedra nas costas, o

sol do verão no meu rosto, as mãos quentes de Andreas no meu corpo.

Andreas se aproxima lentamente, e eu posso sentir seu hálito quente na

minha barriga, descendo entre as pernas. Fechei meus olhos, sucumbindo ao


prazer, enquanto minha boca deixava escapar gemidos pela eficiência da sua

língua. Minhas mãos finalmente foram para os seus cabelos enquanto ele
erguia minhas coxas por mais acesso, se aprofundando. A língua no meu

clitóris, um dedo me penetrando. Ele não só me lambeu, como também me


beijou, sugou, mordeu. Senti meu corpo inteiro latejar por ele e não pude me
conter pedindo por mais, mais dele, mais intensidade, mais de tudo que

temos, para sempre.

Depois de gozar e pedir por seu pau dentro de mim, Andreas encerra o

oral, e eu o assisto enquanto ele tira o calção. Meu marido se senta no banco
e me dirige um “Venha aqui” rouco e cheio de prazer. Eu adoro esse seu tom

de voz mais do qualquer outro, é o tom que diz “eu sou louco por você”, ou
coisas como “eu adoro foder você”. Qualquer coisa nesse tom simplesmente

é sexy.

Ele me puxa para o seu colo e está duro, pronto. E eu o quero dentro
de mim. Na verdade, preciso disso. Então, levo minha mão até seu pau e o

conduzo para dentro de mim. Sua boca vai para os meus seios, e eu jogo meu
corpo um pouco para trás, facilitando o acesso. Meus seios estão mais

sensíveis, e esse homem é tão bom nisso que eu já estou gozando antes que
ele comece a se mover. Ficamos nos encarando enquanto ele começa a

estocar, e eu rebolo no seu colo. É a minha parte predileta de tudo que


fazemos juntos no sexo, transar assim, com esse nível de intimidade, olho no

olho, sempre. Suas mãos entrelaçadas no meu cabelo dão ainda mais ritmo
ao movimento, e eu me aperto com ele dentro de mim, fazendo seu pau pulsar
ainda mais.

“Porra, Izolda”, o tom rouco repete. Sua boca encontra a minha, e ele
continua estocando. Beijamo-nos outra vez, e mais algumas, sempre

retornando ao contato visual. Sussurro que vou gozar quando sinto que estou
cada vez mais perto do orgasmo, mas, mesmo depois que faço isso, ele

continua me preenchendo. Estou totalmente entregue e satisfeita quando ele


finalmente se derrama dentro de mim.

— Acho que não vou ter condições de passear depois disso — digo

rindo contra sua boca.

Entro no quarto de Elke, e minha amiga pula da cadeira, vindo em


minha direção, quando Ivan solta um “Ciao, tia”, fazendo a maquiadora
reclamar do rompante de Elke.

— Amore mio! Isso é tudo que a Tia Elke sabe de italiano, então vai
ter que falar em russo comigo, tá? A tia também aprendeu um pouquinho de

português com a sua mamãe quando era criança, mas só sabe dizer coisas
como feijoada — ela diz beijando Ivan e fazendo meu filho sorrir.

— Você parece uma princesa — ele diz tocando no brinco de

diamantes dela.

— Você que é um príncipe. Você sabia que a tia Elke ama você assim?

— ela diz esticando as mãos o máximo que pode.

— Isso é muito, mãe? — ele pergunta erguendo a cabeça para me


olhar.

— É muitíssimo! — digo enquanto o assisto abrir um sorriso e dizer


que também ama a tia.

— Elke, começamos em vinte minutos — uma mulher diz com uma


prancheta nas mãos. Atrás dela, estava Minerva.

— Oi, Elke... Nossa, você está linda. Izolda... desculpa interromper,

mas eu vim atrás do afilhado bonito, cheiroso e esperto dessa festa —


Minerva diz. - Alguém sabe onde ele está?

— Dinda! — Ivan diz se jogando na direção da madrinha.


— Oi, meu amor — ela diz apertando meu filho carinhosamente. — A
madrinha estava com tanta saudade.

— Eu também, saudade assim... — ele diz esticando os braços e

imitando o gesto de Elke.

— Ah, que garoto fofo! Espere um minuto. O que foi que você

prometeu para a Madrinha?

— Que não ia crescer sem a dinda perto — meu filho abaixa a cabeça
com vergonha, mas, pelas covinhas no seu rosto, posso ver que está se

divertindo com a promessa maluca que fez à sua madrinha.

— É! Parece que você não cumpriu o combinado e cresceu. Agora, vai

ter que pagar a multa — ela diz beijando a barriga dele de uma forma que o
faz gargalhar. Assisto enquanto ela o tortura com cocegas até que meu filho

se joga nos braços dela, e Minerva me diz que ficará com ele lá fora durante
a cerimônia.

— Tem certeza?! Você está acompanhada, tem certeza de que não vai

atrapalhar? A babá...

— Izolda, vocês fugiram por um mês todo com o meu afilhado, eu

estou morrendo de saudades. Acha que qualquer outro homem vai ficar em
primeiro plano? — ela diz se voltando para Ivan. — Como foi na Itália, meu

amor? Tomou muito sorvete?


— Molto! — ele responde. Dou um sorriso enquanto ele me acena
dando tchau. Meu filho é uma criança feliz, saudável e que gosta de todo

mundo. O que é ótimo, porque permite que Andreas e eu tenhamos liberdade.


Enquanto Elke e Minerva disputam para passar tempo com ele, meu marido e

eu podemos ter um tempo para cuidar de nós. Assim que descobrimos a


gravidez, fizemos uma pequena escapada de comemoração e viajamos para o

Brasil, só nós dois. Ivan ficou em casa com Minerva e Elke o mimando. E é
claro que sentimos falta de Ivan, mas é bom saber que ele está seguro e

sendo amado enquanto temos algum tempinho só para nós dois.

— Você sabe que, se eu não for a madrinha desse — ela diz apontando
para a minha barriga —, eu vou sair no tapa com a pessoa que você escolher,

não sabe?

— Quem mais você acha que seria, tonta?

— Não sei, até agora não ouvi um convite.

— Elke Pavlova, você aceita ser a madrinha do meu filho?

Minha amiga me abraça dando pulinhos, então eu insisto para que ela
se sente e termine de se arrumar.

— Nervosa?

— Estranhamente não. Só parece estranho fazer isso sem a minha mãe


aqui — ela diz. — E eu sei que deveria ter superado isso, mas ela ainda é
minha mãe.

— Você não pode querer na sua vida alguém que não lhe faz bem,
Elke.

— Eu sei! — ela responde sorrindo. — E eu tenho tanta sorte de ter


você como minha família. Obrigada por tudo. Por ter me protegido, por ter
me ajudado a ficar de pé outra vez e por continuar o tempo todo do meu
lado. Eu amo você, Izzy!

— Eu também amo você, amiga! Agora, vamos. Se você chorar, vai

borrar todo o trabalho da maquiadora.

É uma cerimônia simples, sem padrinhos entrando pelo altar. Apenas a


noiva faz isso. E não deve haver mais de cinquenta pessoas assistindo. A
maioria delas são colegas de trabalho de Vladmir. Desde que Pavlova foi

preso, a empresa dele foi incorporada pelo Grupo Orlov, que deixou de
depender totalmente da subcontratação da empresa de Viggo. Andreas não
cortou os laços com Viggo, mas, desde que Galina assumiu os negócios do
pai, ele achou melhor não ter que lidar diretamente com ela. O que me
deixou satisfeita. Já é bastante ter que encontrá-la em eventos sociais e

esquecer o fato de que ela filmou tudo que aconteceu com Elke, que sabia
dos planos de Olga Orlov, mesmo que apenas parcialmente. Já é o bastante
estar aqui, no mesmo altar que ela, que é irmã do noivo.
Elke caminha em direção ao altar acompanhada do pai, que conseguiu
uma permissão especial da polícia para acompanhar a filha.

— Cuide bem dela — Pavlova diz ao entregar a filha ao noivo


sorridente.

— É só o que eu quero — Vladmir responde sorrindo.

A cerimônia é rápida, e eu vejo minha amiga chorando ao se despedir


do pai, que não pode ficar para a festa. Vladmir a abraça, e eu os observo

enquanto eles se beijam. Elke, que nunca imaginou que poderia funcionar
com Vladmir, tinha encontrado nele, primeiro, um lugar de confissão e
compreensão, depois uma amizade e, em seguida, um grande amor. Demorou
um pouco para que eles ficassem juntos. Em parte, porque ele tinha medo de

avançar qualquer sinal com ela, mas ele esteve ao lado de Elke enquanto ela
se recuperava, principalmente quando eu não podia estar, pela gravidez ou
por qualquer outro compromisso.

Foram meses de terapia, e, quando Elke parecia bem, ela entrava em


novo ciclo de estresse por um gatilho que, para nós, parecia insignificante,

mas que a puxava de volta para o fundo do poço. Nos primeiros meses de
vida de Ivan, eu tinha medo que ela o pegasse nos braços porque Elke tinha
esses tiques obsessivos que apareciam em rompantes, e minha preocupação
maternal era acionada, mesmo que, às vezes, irracionalmente.
Ela mudou de medicamentos, de técnicas de terapia, foi aprendendo a

voltar para a vida e a não reconhecer tudo como uma ameaça. A primeira
vez que eu notei que ela estava interessada por Vladmir foi no aniversário de
um ano do meu filho. Vladmir estava namorando uma garota da empresa, e
minha amiga estava obviamente incomodada. Foi Minerva que chamou minha
atenção para o fato, dizendo que Elke não parava de olhar para o casal. A

melhor amiga de Andreas, que havia se tornado também uma grande amiga
para mim e minha comadre, levou Elke para dar uma volta no jardim.

Vladmir se aproximou de mim perguntando se Elke estava bem, e eu


apenas disse que ela precisava de um pouco de ar. “Você gosta dela?”,

perguntei, me referindo à sua namorada, e ele respondeu: “Eu não consigo


parar de pensar nela, Izolda. Acho que estou ficando maluco.” E eu entendi
que ele não estava se referindo à namorada. O namoro acabou no dia
seguinte, mas demorou algumas semanas para que Vladmir, em seu próprio
ritmo, procurasse minha amiga para se declarar. Eles passaram dois anos

juntos antes de finalmente decidirem casar, mas já moravam na mesma casa,


tinham planos, plantas e um cachorro siberiano que meu filho adora.

Os votos de Elke são lindos. Ela fala sobre se reconstruir, se reerguer


e sobre como poder contar com o apoio e a compreensão de Vladmir a fez

mais forte. “Eu achava que o amor tinha que ser tempestuoso, devastador,
como os filmes ditos românticos nos ensinam, mas eu só conheci amor de
verdade no balanço tranquilo da calmaria, na compreensão, ao atracar no

porto. Amor, você só não é a minha alma gêmea porque eu tenho certeza de
que esse espaço é da minha melhor amiga — ela diz me olhando rapidamente
e sorrindo —, mas você é o homem da minha vida.”

A cerimônia é dentro da casa deles, mas a recepção é no jardim do


lado de fora. Está frio, mas a casa de Elke e Vladmir tem uma estufa de

vidro enorme e aquecida, onde cultivam suas plantas, e que hoje foi
totalmente decorada e parece outro lugar, servindo como salão para a
recepção.

— O Vladmir agora é meu tio por ter casado com a tia Elke? — Ivan

questiona enquanto Minerva ajusta a gravata de borboleta que ele está


usando. Ao seu lado, está Bartov, o cara com que ela tem saído nas últimas
seis ou sete semanas, o que Andreas considera como um recorde enquanto
implica com a amiga.

— Sim, você pode chamá-lo de tio, se quiser. Ele é amigo do papai e

da mamãe e ama muito a tia Elke.

— Ele é engraçado — Ivan diz com a mãozinha na minha barriga.

— Ele está enorme — Galina diz mantendo uma certa distância e se


dirigindo a Andreas. Eu coloco a mão nos ombros de Ivan mantendo meu
filho perto de mim, mas também puxaria Andreas para perto se pudesse. Ela
cumprimenta Minerva e seu namorado, depois faz o mesmo comigo e com

Andreas. Seus olhos voltam para Ivan. — Ele parece muito com você.

— É, ele parece mesmo — Andreas responde.

Andreas e Ivan são mesmo muito parecidos. Têm os mesmos cabelos,


olhos e até o jeito como arqueiam as sobrancelhas é parecido. Além disso,

eles têm uma relação linda. Andreas é um pai presente, que sempre acha
tempo para conversar com o filho, explicar as coisas. Ele passa horas no
chão do quarto de Ivan todas as noites, ajudando-o com a lição e, depois,
montando dinossauros, que são a nova obsessão do nosso filho.

— Quem é você? — meu filho pergunta com sua usual curiosidade.

— Eu sou irmã do noivo.

— O tio Vlad tem uma irmã?

— Tem, sim — eu respondo.

— Eu tenho que ir, urgências na empresa, mas é bom ver vocês, ver
que estão bem — Galina diz antes de sair. Andreas tinha me contado tudo
que ela confessou, e eu estava lá quando Galina falou para a polícia sobre

Mikhail na defesa do pai de Elke. Apesar de tudo, Pavlova tinha pego seis
anos de prisão.

— Mas é muito.... — Minerva começa a dizer, mas ela olha para Ivan
e controla sua língua normalmente tão afiada.
— Ela também é minha tia? A irmã do tio Vlad? — meu filho
questiona.

— Não! — eu digo rapidamente. Tão rápido que isso faz Andreas e


Minerva soltarem gargalhadas. — Ela não é sua tia.

— Tudo bem, eu já tenho muitos tios — Ele diz contando nos dedos

enquanto anuncia: “Tia Elke, Tio Niko, a dinda Minerva também é minha tia
porque o papai diz que é como se ela fosse a irmã dele, e também o tio....”

— A tia Anastasiya — a esposa de Philip diz se aproximando e


beijando nosso filho no topo da cabeça. — Você é a criança mais fofa do
universo! Andreas, quer trocar por um dos meus? Eu o deixo escolher entre

os dois mais velhos — ela diz sorrindo. Minerva fica rígida, e eu sei bem
por quê. Isso sempre acontece quando a esposa de Philip está por perto,
então, enquanto Andreas diz que não tem a menor chance dele aceitar aquela
troca, eu digo ao meu filho que vá com a dinda dele pegar um pouco de água,

e eles vão embora.

— Eu vou falar com o Philip — Andreas diz me dando um beijo no


rosto e, então, tocando no ombro de Anastasiya. Observo Philip do outro do
salão olhando para Minerva, que está segurando meu filho enquanto

conversa com o namorado.


Anastasiya me pergunta da gravidez, e eu me questiono se ela não viu
isso ou se realmente não sabe de nada. Não é problema meu. Questiono
como ela está, não nos vemos há alguns meses. O filho mais velho de
Anastasiya passa correndo por nós, e ela diz que precisa checar o que ele

está aprontando, me deixando sozinha.

Elke e Vladmir são anunciados alguns minutos depois e entram para a


primeira dança como marido e mulher. Eu estou sorrindo pela alegria da
minha amiga quando sinto um toque familiar no meu ombro e meu marido me

abraça por trás.

— Você sente falta de não termos tido isso? Uma cerimônia com
convidados, uma festa...

— Não. — Sinto a mão de Andreas na minha barriga. Estou sendo


honesta. Não gosto da atenção de uma festa, sei que ele também não gostaria.

— Há algumas coisas que eu faria diferente, você sabe, mas essa não é uma
delas. E você? Queria ter tido um casamento assim?

— Não, também não. Por mais complicadas que as coisas tenham sido
no nosso começo, eu amo tudo que temos hoje e acho que estamos
exatamente onde deveríamos estar.

Eu o entendo, me sinto exatamente assim. Quando eu olho para o meu


filho, para o meu marido, quando penso nessa criança que vai nascer e vejo
os sorrisos das pessoas que mais me importam e me sinto cercada de amor,
entendo que tenho tudo que sempre achei que não poderia ter.

Viro-me e fico na ponta dos pés beijando meu marido, que me aperta
contra seu corpo.

— Eu a amo tanto, Izolda — ele diz me puxando para a pista de dança,


onde outros casais além dos noivos já estão arriscando alguns passos. Eu
encosto a cabeça no peito se Andreas e sei que aqui, nos braços dele, estou
no meu lugar predileto no mundo todo.
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Danielle Viegas Martins nasceu em São Luís - MA, mas mudou-se para
a cidade do Rio de Janeiro em 2001. Tem formação em Letras, Português -
Inglês e Mestrado em Educação. Desde 2010, Danielle é funcionária pública

da UFRRJ.

A autora começou a escrever, publicando capítulos semanais do livro


“Estarei ao seu lado” na plataforma Wattpad em 2017, onde escrevia sob o

pseudônimo Tess91 para se preservar caso os leitores não se interessassem

por seus livros. Contudo, suas histórias já ultrapassaram dezenove milhões

de leituras online.

A autora sempre foi apaixonada por livros e entre os escritores

favoritos estão Aluísio de Azevedo, Ganymédes José e Charlotte Brontë.

Todos os livros da autora possuem um personagem Gustavo em homenagem

ao seu filho.

[1]
Босс: patrão. Tradução livre do russo.

[2]
Uccelino: passarinho. Tradução livre do italiano.

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