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Capa: NK Floro
Tudo pelo garoto
RIBEIRO, Jariane
2ª Edição — julho de 2021
Sumário
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
Epílogo
1
A gente meio que pensa que as coisas irão mudar quando um
novo ano letivo tem início, mas na verdade encontramos as mesmas pessoas,
durante as mesmas quatro horas e remoemos a opinião delas nas vinte horas
restantes como se soubessem algum segredo que não somos capazes de
entender, ou então que, apesar de termos a mesma idade, já viveram bem
mais coisas.
Para ser sincera, acredito que a maioria das pessoas de dezessete
anos estão meio perdidas na vida. É aquele limbo em que você tem que ter
responsabilidade, mas não sabe dizer exatamente em que, ou então que quer
transar e conhecer os prazeres que os demais colegas sussurram pelos
corredores, mas não sabe exatamente com quem, ou se quer mesmo, ou se só
está curiosa porque é o que as pessoas andam fazendo.
Não costumo passar muito tempo refletindo sobre minha
existência, ou pensando no fato dos meus colegas de escola me acharem a
maior esquisitona, mas digamos que nos últimos dias ando preferindo pensar
no quão fracassada é minha vida social do que em meus pais brigando o
tempo todo e me usando como se eu fosse uma espécie de cola que mantém o
casamento fracassado, mas ainda resistindo.
Pensar na minha inaptidão social me faz lembrar dele, aquele
garoto que também fica na biblioteca e escolhe ler os mesmos livros que eu.
Temos contato através da ficha de leitura um do outro, ou quando eu deixo
um desenho meu perdido entre as páginas amareladas de uma história que eu
gostei demais.
Ele está no segundo ano e eu no terceiro. É mais novo do que eu e
tem um jeito quieto e de quem parece ter um senso de humor sagaz, ou talvez
ele seja apenas tão entediante quanto todos os garotos que estudam comigo,
mas é difícil pensar em alguém que gosta de Percy Jackson como entediante,
quer dizer, como alguém que leu coração de tinta pode ser como aqueles
garotos que coçam o saco quando pensam que ninguém está olhando? Não
que ele não possa coçar suas partes baixas, mas o que quero dizer é que ele
não parece ser o tipo de garoto que é mal educado o suficiente para coçar as
bolas e achar que isso é algo visto como legal.
O meu melhor amigo, Jota, diz que eu deveria parar de esperar
pelo momento perfeito e simplesmente ir lá, arrancar o livro das mãos dele e
dar um beijo de língua naquela boca gostosa que o faria ver estrelas. Jota
usou exatamente estas palavras, mas ele tem certa tendência ao exagero e
acho que é porque gosta muito de novelas mexicanas e séries turcas que só
ele consegue encontrar.
Eu sei que nunca vou chegar nele, arrancar o livro das suas mãos
e dar um beijão. Primeiro porque estaríamos na biblioteca, segundo porque eu
poderia ser acusada de assédio sexual e isso seria a maior vergonha e
terceiro... bem, eu sou gorda e preciso saber se ele gosta de meninas do meu
tipo antes de amarrar meu bode naquela cerca. Nossa que péssima analogia,
isso é o que dá quando suas férias são em uma fazenda e você ouve dicas
amorosas de uma mulher de setenta e sete anos que só teve um homem na
vida e em uma época em que um aperto de mão já poderia ser considerado
um avanço e tanto.
— Eu juro por Deus que se você passar mais um ano olhando
para aquele cara sem fazer nada, eu simplesmente irei lá e colocarei a boca no
trombone.
Jota diz isso quando eu hesito em frente à porta da biblioteca,
colocando a mão na cintura e fazendo a barra do seu moletom com desenhos
de zebra subir. Meu melhor amigo é bem mais corajoso do que eu em todos
os aspectos. Ele é negro, gay e completamente assumido para a família e
todos que o veem. Usa unhas coloridas, lápis de olho e roupas com muito
mais estilo do que eu seria capaz de descrever. Somos considerados os
excluídos da turma, mas eu não me importo muito com esse rótulo. Gostamos
de nos definir como a gorda e o gay. Nos intitular de uma forma que
poderiam usar para nos ofender é a nossa maneira de mostrar o dedo do meio
para todos os babacas que se acham no direito de nos definir.
— Prometo que vou fazer alguma coisa — sussurro e o empurro
para o lado oposto. — mas eu só quero ter certeza que faço o tipo dele.
— Pensei que já tivéssemos chegado à conclusão de que você é
uma grande gostosa, Nick, e que será uma ilustradora de livros infantis
fodona daqui uns anos.
— Eu estou trabalhando nesse negócio de me olhar no espelho e
me achar uma grande gostosa, mas eu quero que o Leonardo me ache uma
grande gostosa também.
— Como que o Léo vai te achar isso se você nunca conversou
com ele?
— Lemos os mesmos livros.
— Eu também já li o mesmo livro que o Carlos e a gente odeia
ele.
Ambos fazemos uma careta com a menção do nome. Carlos é o
cara mais idiota que já tivemos o desprazer de conhecer. O grande prazer dele
é intimidar as pessoas porque só vendo o medo no olhar de outros
adolescentes é que consegue compensar o fato de que seu cérebro é do
tamanho de um caroço de azeitona.
— Prometo que vou pensar em uma forma de criar coragem e
falar com ele.
— Você disse isso no começo do ano passado, Nick.
— Ano passado ele ainda estava no primeiro ano.
— E o que tem?
— Não é estranho eu estar caidinha por um cara mais novo?
— E não é estranho o fato de eu usar maquiagem quando todos
dizem que eu preciso ser mais contido?
— Não, porque é assim que você se sente bem.
— Então um número não pode dizer por quem você deve se
apaixonar.
E é claro que o Jota tem razão, mas nem isso fará com que eu crie
coragem. Já faz mais de um ano e ainda assim ele tem sido uma das poucas
coisas boas que eu consigo enumerar sobre esta droga de escola.
2
Teve um tempo em que meus pais estavam preocupados com a
minha baixa autoestima. Algo no fato de eu ser sarcástica e mal-humorada e
não frequentar as festas que os filhos dos amigos deles iam fez com que um
sinal de alerta surgisse e uma consulta com uma psicóloga especialista em
adolescentes fosse marcada.
Para ser sincera, eu não sabia como que uma estranha com
jeitinho de Barbie e com um caneta cara na mão poderia ter para me dizer que
fizesse com que eu me olhasse no espelho e não me sentisse o monte de
banhas que me acusavam de ser todos os dias. É aquele negócio que de tanto
te chamarem de algo, você meio que passa a acreditar que é tudo de ruim que
dizem.
Eu fui surpreendida. Primeiro porque chorei feito uma condenada
quando comecei a contar a droga que eram meus dias na escola e também
porque ela me entendeu e soube ouvir sobre meus problemas sem achar que
era um drama adolescente comum. Aquela mulher com o rosto bonito e
modos gentis não zombou da minha dor, pelo contrário, me colocou em
frente a um espelho e fez com que eu visse meu reflexo, não através das
lentes dos outros, mas com as minhas definições.
A parte mais difícil de se olhar no espelho é que todos os seus
defeitos estão ali te encarando de volta. Não tem como disfarçar as espinhas
do período menstrual, ou a tentativa fracassada de tentar fazer as próprias
sobrancelhas e muito menos refrear o impulso de procurar por defeitos.
Eu disse a psicóloga todos os meus defeitos. Os olhos que
pareciam grandes e com uma cor sem graça. Os cabelos crespos e as
bochechas rechonchudas e minha barriga avantajada junto de um traseiro
enorme e com celulites. Falei tanto sobre como tudo em mim era errado que
fiquei com a boca seca, mas também foi depois disso que ouvi a frase mais
surpreendente de todas:
— Você está achando que tudo isso são defeitos, ou enumerando
coisas que te fazem única, mas que te fizeram acreditar que era errado?
Eu não respondi e ela soube, mas desde aquele dia passei a me
esforçar para amar a garota que eu vejo no espelho todas as manhãs. É fácil
ser gentil com um estranho, mas difícil tratar a si mesma de igual maneira.
Foi depois que eu parei de andar de cabeça baixa e querendo me
fundir as paredes da escola que eu vi Leonardo. Ele sempre senta na mesma
mesa em frente à minha e lê livros parecidos com os meus. Não sei quem foi
que começou a copiar a lista de leitura do outro, só sei que descobri o nome
dele na ficha de empréstimos da biblioteca na última folha do terceiro livro
do Percy Jackson. Leonardo Vilaça, 1ª série do ensino médio.
Não sei em que momento me apaixonei por ele. Talvez lendo as
páginas de Percy Jackson e encontrando o olhar dele fixo no meu depois que
eu li a cena do primeiro beijo de Percy e Annabeth, ou durante a paixão de
Naomi por Ely e o fato de que ela jamais poderia ser amada do jeito que
queria. Foi em meio a cenas de amor que eu comecei a viver minha própria
história, mas, diferente dos livros, eu não sei o que fazer para que as coisas
aconteçam de verdade já que é meu último ano por aqui.
*
Eu não gosto de pensar que em alguns meses terei que decidir o
que farei pelo resto da minha vida. A forma como meus pais parecem
acreditar que eu vou fazer a escolha certa e deixá-los orgulhosos apenas faz
com que a sensação de peso em cima dos meus ombros triplique.
Eu amo desenhar e meu sonho é ser ilustradora de livros infantis.
Não é como se tivesse uma faculdade aqui na cidade especializada nisso,
então fico a todo momento procurando por segundas opções que para mim
são terríveis, mas que para meus pais são o suficiente para que pensem que eu
serei uma adulta responsável com casa própria antes dos trinta anos e
pagando o INSS e todas essas balelas que o governo retira de nossos salários
com a promessa de proporcionar uma aposentadoria digna, o que eu pouco
vejo ocorrendo de fato.
Estou no ônibus e voltando para casa. É sexta-feira e a primeira
semana de aula está oficialmente acabada, mas isso não me impede de estar
com dois folhetos nas mãos. Um que fala da faculdade de artes visuais e
outro de arquitetura e urbanismo. A primeira opção me deixa animada de
verdade e a segunda parece séria demais para combinar comigo, mas também
perfeita para meu pai e minha mãe. É meio irônico o fato de ninguém
aplaudir as pessoas que escolhem cursos de licenciatura. É como se as
pessoas da área de humanas não merecessem o mesmo prestígio de um
médico, por exemplo. É claro que o médico salva vidas, mas o artista dá cor
ao mundo e não existe médico bom sem aquela professora lá do primeiro ano
que o ensina a ler com amor e paciência.
Estou lendo as coisas que alguém formado em artes visuais pode
fazer quando algo em negrito no panfleto da universidade chama a minha
atenção: uma possibilidade é dedicar-se ao mercado da arte, trabalhando
em galerias, ou produzindo desenhos e ilustrações para o mercado
editorial ou comercial.
Descarto a folha sobre a faculdade de arquitetura e guardo a de
artes. Não é o prestígio que meus pais sonham para mim, mas é a
possibilidade de eu viver do meu sonho e não deixar de ser quem eu sou ao
ser sugada para o mercado de trabalho que só pensa em aposentadoria e
benefícios e esquece que precisamos gostar daquilo que fazemos.
Meu pai diz que trabalho não é para ser gostado, mas sim feito.
Isso explica muita coisa sobre ele e a forma como sempre chega frustrado do
serviço e acaba brigando com minha mãe a respeito de qualquer coisa idiota.
Acho que os adultos acabam esquecendo dos motivos pelo qual se casam e
que a vida pode ser algo além de contas a pagar e trabalho a ser feito. Não
quero ser uma adulta que esquece como é viver para algo além de um
trabalho que paga as minhas contas, mas que fode com a minha cabeça.
Sei que vai ser um longo caminho até eles aceitarem minhas
escolhas, mas eu quero que esse ano seja diferente, preciso que seja. Eu não
sei nada sobre ser adulta, mas sei que não quero ver minha vida passar sem
ter aproveitado como deveria.
Pensar na vida passando me lembra do Leonardo e do fato de que
esse meu crush já dura mais de um ano. Pensei até em fazer regime pra ele
me notar, mas Jota diz que se ele não gostar de mim como sou, então não me
merece.
3
Eu tenho um vício meio esquisito em programas de sobrevivência
e reality shows ruins e nenhum deles dão exemplos muito bons de como ser
notada por um garoto. É claro que eu sei que o Leonardo sabe da minha
existência, mas eu não sei se ele me olha no sentindo romântico da coisa. Não
sei nada sobre ele, a não ser que está no segundo ano e gosta de ler.
Meu melhor amigo é gay e é lógico que gosta de garotos, mas ele
é tão sem sorte no amor quanto eu. A gente tem experiência em não ser
paquerado, se é que isso pode ser algo de que uma pessoa possa se orgulhar.
Tenho certeza que não.
— Já pensou na possibilidade dele ser um chato? — Jota pergunta
isso deitado no tapete da minha sala. É sábado à tarde e nenhum de nós tem
algo realmente interessante para fazer.
— Eu não acho que ele seja.
Jota me olha e eu percebo que mais uma vez está zombando da
minha cara.
— Faz um ano que vocês se olham e ficam sorrindo de forma
tímida um para o outro. No começo é fofo, mas está ficando ridículo, Nick!
— Já pensou se ele encontra alguém antes de eu ter coragem para
fazer alguma coisa?
— É um risco que você corre.
— Você é meu melhor amigo. Não deveria ser gentil e me
reconfortar?
— Querida, você está sendo uma trouxa. É mais fácil eu te ajudar
a fazer algo do que ouvir suas lamúrias quando o ano acabar, ou ele encontrar
alguém que não seja tão tímida.
— Mas é que...
— Você tem receio de ele não gostar de garotas gordas?
— É!
— Nick, você é linda. Ser gorda apenas faz parte da pessoa
incrível que você é.
— Nenhum garoto até hoje pensou assim.
— Deve ser porque nenhum deles te merecia.
Jota me diz as melhores coisas porque é meu amigo desde antes
da gente saber o significado dessa palavra, mas ambos sabemos que a maioria
dos garotos da nossa idade dão mais valor a um peitinho bonito do que
qualquer outra coisa no mundo.
Eu não sei como Leonardo é, mas gosto de pensar que é um
garoto gentil que vê mais em mim do que minha bunda enorme no uniforme
ridículo da escola.
— Já sei!
O grito de Jota faz com que eu quase caia do sofá.
— O que foi, seu doido?
Meu amigo praticamente quica de empolgação enquanto senta ao
meu lado.
— Semana que vem tem o carnaval da escola. Uma semana em
que a gente finge que estuda, mas na verdade fica no ginásio curtindo as
marchinhas ridículas e fazendo enfeites cafonas com papel crepom.
— E?
— Todas as turmas do ensino médio irão ficar no ginásio de
esportes, Nick. É a sua chance de conversar com seu príncipe silencioso.
— No meio de toda aquela gente que adora fazer piadas comigo?
Quer que eu cave minha própria cova e crie muito material para que zoem
comigo até o final do ano?
Jota cruza os braços e me olha com desdém.
— Você vai ser sutil, garota. E dá para não se importar com os
escrotos daquela escola? É por esse medo que faz um ano que você tem uma
paixão unilateral.
— Que tal uma declaração de amor tímida? — proponho,
lembrando dos inúmeros filmes sobre o universo adolescente que eu já
assisti.
— Mais tímido do que vocês dois? Isso é ridículo, Nick. Você até
consegue encontrar o garoto nos corredores pela cor do tênis dele e aí ficam
trocando olhares quando acham que ninguém está olhando. Ele não te olharia
tanto se não sentisse nada.
— Talvez só se pergunte se eu não sou uma psicopata.
— Eu vou dar na sua cara.
Olhamo-nos e então começamos a rir. É bom ter alguém com
quem dividir os dilemas, mesmo que essa pessoa me ache patética por ser tão
lerda.
— Não deixe a vida passar porque está com medo. — Jota pede e
aperta minha mão. — Pense que a resposta negativa você já tem. Se tentar
pode se surpreender.
— E se ele me magoar e partir meu coração?
— Ninguém morre de coração partido.
— Mas e aquela reportagem do Discovery? — questiono,
lembrando dos inúmeros documentários inúteis que eu assisto no meu canal
favorito.
— Você tem que começar a assistir a MTV e ao Disney Channel
como todo mundo da nossa idade, Nicole. De férias com o ex ensina muito
sobre a vida.
— Só se for a encher a cara e pegar o ex de todo mundo, não que
eu odeie assistir. É interessante ver até onde o ser humano chega para
alcançar a fama.
Jota me olha com desdém e toma o controle da minha mão,
colocando em seu reality show favorito. Sabemos que as pessoas da nossa
idade ficam saindo e curtindo a vida, mas também não tem nada de errado em
curtir o final de semana ao lado do melhor amigo, principalmente porque,
talvez, eu faça alguma coisa para mudar minha vida amorosa.
4
— Eu falei que iríamos fazer uma decoração cafona usando papel
crepom.
É segunda-feira de manhã e todas as turmas de ensino médio
estão espalhadas pelos dois ginásios da escola com o único objetivo de
decorar tudo para o carnaval. Ao invés das tradicionais marchinhas, o que
escapa das caixas de som que alguns alunos trouxeram é funk proibidão.
— Pelo menos a gente só tem que cortar os papéis.
Jota me olha com desdém e pega uma das tesouras dispostas na
mesa no fundo da quadra de basquete. Nossa missão é cortar os rolinhos de
papel crepom de forma que eles possam ser pendurados no teto, formando
uma espécie de cortina colorida e sem graça, mas que as professoras de
educação física e as diretoras parecem achar a última moda.
— Purpurina para todo lado seria lindo — Jota comenta enquanto
começa a cortar o pequeno rolo de papel rosa neon. — Eu até passaria em
minhas pálpebras para entrar no clima.
— Talvez seja exatamente por isso que não temos acesso a esse
material.
Jota apenas balança a cabeça e continua a cortar, alguns rolinhos
saem bem tortos e isso nos faz rir como dois bobos.
— Olha lá o seu homem.
Tomo um susto com o comentário, sentindo meu coração quicar
dentro do peito. Olho para a mesma direção que Jota e vejo Leonardo com as
demais turmas de segundo ano fazendo máscaras com cartolina. Ele está
sentado junto com alguns garotos e parece bem entrosado com a turma.
— Acho que ele é popular — Jota sussurra, abandonando a
tesoura. — Provavelmente fica na biblioteca porque gosta e não porque é
excluído como a gente.
— Nós não somos excluídos.
O olhar do meu amigo me diz que ele tem noção de que estamos
mentindo e eu forço um sorriso. A gente não é exatamente popular na turma,
sempre ficamos na nossa e acho que isso vem dos anos de bullying que
sofremos. É melhor ficar na nossa do que ser alvo de alguém que só se sente
superior ao intimidar os outros. Conversamos com as pessoas quando elas se
aproximam e não temos problemas quando nos colocam em outros grupos
para fazermos trabalhos porque geralmente os professores nunca separam eu
e Jota. Acho que no final das contas gostamos de ser apenas nós dois.
— Se ele é tão descolado quanto está parecendo, isso quer dizer
que não irá querer uma garota como eu. Talvez só me olhe porque por dentro
está achando hilário eu ousar ter um crush nele.
— Eu admito que só vemos ele na biblioteca — Jota sussurra,
ainda olhando descaradamente para a turma do segundo ano. — E que eu
cheguei a pensar que não era tão popular, mas isso também não quer dizer
que ele te ache engraçada. Não tem nada em você que seja motivo de piada.
— Ah, não? Então por que as pessoas me elegeram como a bunda
enorme da turma? E também a última opção para procriar em caso de um
apocalipse zumbi?
— Porque geralmente os garotos são idiotas.
— E o que garante que Leonardo não seja?
— O fato de que ele está te olhando nesse exato momento?
Quase engasgo com minha própria saliva, mas consigo manter a
compostura e olhar discretamente, através dos meus longos cabelos
cacheados, para onde Leonardo está. Ele realmente olha nessa direção, mas
será que é pra mim, ou eu e Jota apenas desejamos que seja?
— Sabe quem você parece, Nick? — meu amigo pergunta ao
jogar meus cabelos para trás dos ombros.
— Quem?
— Aqueles cachorros que correm atrás dos carros e não sabem o
que fazer quando o carro para porque estão acostumados demais a apenas
correr e nunca a chegar.
— Você não deveria me julgar, quer dizer, se gostasse de alguém
há tanto tempo quanto eu gosto dele, seria capaz de fazer alguma coisa...
Paro de falar porque bem nesse momento uma garota loira, alta e
bem bonita se aproxima de Leonardo, dando um beijo na bochecha dele e
sentando ao seu lado. A mão dela para no braço dele e eles conversam
alguma coisa e sorriem e nesse momento sinto como se meu coração tivesse
saltado do peito e sido chutado ao longo do ginásio.
— Ele já tem alguém — digo baixinho e abaixo a cabeça,
pegando a tesoura e voltando a recortar o papel crepom idiota.
— Talvez seja apenas uma amiga.
— E talvez eu só esteja sendo uma idiota.
Volto a me concentrar no trabalho, cortando o papel com mais
raiva e força do que o necessário, pensando no quão idiota eu fui ao colocar
desenhos dentro dos livros, olhar para ele e esperar que fizesse algo. É claro
que se Leonardo estivesse interessado teria dado um passo também e feito
alguma coisa. Ele deve me achar só uma gorda ridícula como todos os demais
garotos desse buraco que chamam de escola.
— Ei, para com isso, Nick. Vai se machucar ainda mais assim.
— E o que tem, Jota? Eu me sinto a maior otária e não só porque
gostei de alguém por um ano e que não fez nada para se aproximar de mim,
mas porque estou aqui desperdiçando quatro horas do meu dia em decoração
de carnaval, sendo que eu detesto carnaval porque a música alta me irrita, o
hit do ano sempre é podre e na televisão obrigam a gente a ficar vendo
votação de escola de samba no lugar da sessão da tarde que é muito melhor,
mesmo que seja a décima oitava vez que o filme passa.
— E eu que pensei em te convidar para ir no bloquinho do clube.
— Não ouse!
Meu melhor amigo sorri, deixando claro que está apenas
brincando, e então pega minha mão, apertando de leve meus dedos em um
gesto reconfortante.
— Mesmo ao lado dela, ele ainda está te olhando.
Levanto a cabeça ao ouvir isso e vejo Leonardo olhando em
minha direção. Quando vê que eu percebo, ele abaixa a cabeça e volta a
conversar com a garota.
— Tenta dar só um oi pra ele — Jota sussurra.
— E do que isso vai adiantar?
— Talvez isso o ajude a tomar uma atitude também.
— Só um cumprimento não vai fazer com que eu pareça uma
otária, não é?
— Claro que não! — ele me assegura e sorri. — Pode ser que
essa história de amor finalmente aconteça.
Não falo que talvez só seja tolice e não amor.
*
É a hora da saída. Finalmente podemos deixar para as turmas do
período vespertino continuar com o trabalho torturante de decorar a escola.
Eu estou me sentindo enjoada, quase como se pudesse vomitar o café da
manhã a qualquer momento, mesmo que Jota tenha me dito que
provavelmente eu sequer tenha algo no estômago. Só ele mesmo para achar
que essa informação é reconfortante.
— É só dar um cumprimento — repito pela milionésima vez e
aperto a mão de Jota.
— Eu não vou tocar piano, nem nada assim, mas eu preciso dos
meus dedos, Nick.
— Desculpa, estou apavorada.
Solto a mão de Jota e cerro os punhos, dizendo a mim mesma que
ficar tão nervosa assim é meio irracional. Tipo, eu já trabalhei em uma
sorveteria durante o verão e falei com um monte de gente desconhecida, mas
nenhum deles era minha paixão unilateral de um ano. Droga! E se eu ferrar
com tudo?
— Ele está no ponto de ônibus do outro lado da rua — Jota diz
quando passamos pelo portão da escola. — Vamos apenas atravessar
casualmente e aí você faz o que combinamos quando a gente passar na frente
dele.
Balanço a cabeça e respiro fundo, andando ao lado de Jota e
seguindo o aglomerado de alunos que está atravessando a faixa de pedestres.
Sinto meu estômago embrulhar ainda mais e até chego a pensar que devo ter
comido algo estragado.
— É agora ou nunca — Jota me incentiva.
Engulo em seco, tentando aplacar a ânsia de vômito, e me
aproximo do ponto de ônibus, vendo que Leonardo está sozinho e encostado
na parede de vidro. Ando mais devagar e então fico mais próxima dele.
—Oitudobem? Tchau!
Falo tudo isso em dois segundos, atropelando as palavras e
praticamente saindo correndo.
— Isso foi esquisito — Jota diz quando me alcança na próxima
esquina.
— Eu sei! Sou uma otária. Agora ele deve pensar que eu sou a
maior esquisita do mundo. Você acha que ele ouviu?
— Bem... ele te olhou e então ficou todo vermelho. Não pude ver
mais nada porque você saiu correndo feito doida.
— Eu te disse que não sei fazer esses negócios. Estraguei tudo.
Não vou ter coragem de pisar na biblioteca nunca mais.
— Você tem que entregar um livro amanhã, Nicole.
— Você entrega.
— Nós entregamos.
Resolvo não discutir, mas não consigo evitar de me sentir
patética.
5
Não consigo evitar ficar pensando sem parar no quão idiota eu
fui. Consegui parecer patética com apenas uma frase, mesmo que Jota diga
que é normal ficar nervosa em um primeiro contato. Evitei dizer que primeiro
contato pareceu muito as coisas que dizem nos filmes de ficção científica
quando Nova York é invadida pela milionésima vez.
Eu tento me concentrar nas coisas que tenho para fazer, mas por
causa da porcaria do carnaval nem tarefa da escola tenho, só me resta
desenhar e a única cena que não sai da minha cabeça é o quão idiota eu pareci
mais cedo.
Desenho tudo nos mínimos detalhes, Leonardo lá parado com os
fones de ouvido caído em cima dos ombros, os cabelos castanhos bagunçados
e os olhos azuis destacados contra a pele branca, dando mais ênfase nas
sardas salpicadas por suas bochechas. Ele é tão lindo que faz com que eu me
sinta uma batata em comparação. Tipo, o que um cara desses iria querer
comigo? Será que existe uma diferença entre eu ter autoestima e parecer tola?
Eu sei que ele faz meu coração saltar do peito e eu ficar
escutando sem parar ANAVITÓRIA como se todas aquelas músicas fossem
sobre nós. A gente pode ter uma música com quem nunca falou?
Decido deixar os questionamentos de lado e abandono o desenho
inacabado mesmo, jogando o bloco dentro da mochila de qualquer jeito e me
forçando a dormir para tentar cessar os pensamentos do quão tola eu pareci.
De certa forma funciona, pois acabo acordando com o som
irritante do despertador e a primeira coisa em que penso, depois do quanto
odeio a música que me acorda todos os dias, é que eu poderia simplesmente
fingir uma doença e não aparecer na escola o resto da semana, mesmo que
covardia não combine tanto assim comigo.
Visto o uniforme, camiseta branca e calça de moletom azul com o
nome da escola bordado, e ajeito meus cabelos rebeldes, escovando os dentes
e pegando a mochila no canto do quarto.
Encontro Jota na esquina de casa e vamos para escola em
silêncio, com sono demais para conversar.
— Primeiro na biblioteca? — ele pergunta quando já estamos
chegando ao portão.
— Não quero pisar nunca mais lá.
— Deixa de ser covarde, Nicole.
E com essa frase encorajadora, meu melhor amigo praticamente
me arrasta em direção a biblioteca e nem a desculpa de que esqueci o livro
ajuda porque ele sabe muito bem que eu nunca saio de casa sem um livro
para me distrair das pessoas chatas.
Entro na biblioteca sentindo como se meu estômago tivesse
ficado para trás de mim do tanto que dói. Aproximo-me da mesa de Evelina,
a bibliotecária, com as mãos trêmulas. Ela sorri de um jeito gentil quando
entrego o livro. Tento corresponder, mas acho que pareceu mais é que eu
estava com paralisia facial.
Assim que entrego o livro, Jota me cutuca exatamente nas
costelas, o que faz com que eu solte um gemido bem constrangedor.
— Ele está vindo pra cá — ele diz em meu ouvido.
— Vou correr — sussurro, tentando esquecer a dor nas costelas
para dar no pé. — Em que direção vamos?
Jota sacode a cabeça e então sai praticamente correndo, indo para
os fundos da biblioteca e me deixando com cara de tacho enquanto vejo
Leonardo se aproximar segurando uma caixinha rosa com um laço branco.
Ele sorri para mim conforme se aproxima e eu olho para os lados,
pensando que a garota bonitona de ontem deve estar atrás de mim, mas não
há sinal dela e talvez ele apenas esteja sorrindo para Evelina.
— Oi — ele diz assim que para na minha frente, suas bochechas
adquirindo uma coloração rosada que o deixa fofo. — Eu amo cozinhar. Fiz
isso pra você.
Ele me entrega a caixinha e sai rapidamente, indo para a mesa de
sempre. Olho para Evelina e vejo que ela sorri.
— Finalmente — sussurra e ergue o polegar.
Sorrio, sentindo como se meu coração fosse saltar do peito.
Encontro Jota me olhando no corredor dos livros de geografia e o vejo ir
sentar na nossa mesa. Olho para Leonardo e ele está com a cabeça abaixada.
Segurando a caixinha com o maior cuidado, sento na frente do
meu melhor amigo e abro a embalagem, encontrando um cupcake rosa com
várias estrelas em cima da cobertura brilhante.
— Coma para ele ver que gostou — Jota sussurra, parecendo
estar nas nuvens.
Concordo e olho para Leonardo, percebendo que ele está me
olhando também. Tento deixar a timidez de lado ao experimentar o bolinho,
sentindo a maciez da massa e o sabor doce e gostoso.
Ele cozinha bem e talvez seja o melhor cupcake que já comi na
vida, principalmente porque não tomei café da manhã.
— Deus, você comeu tudo!
Arregalo os olhos diante do que meu melhor amigo diz.
— Eu não deveria? — questiono guardando a embalagem na
caixinha, decidida a mantê-la para sempre como uma boa lembrança.
— Não sei. Você parecia que não comia há vinte anos, Nick! Isso
não é sexy.
Estou prestes a contestar quando sinto minha garganta começar a
arder e a sensação horrível de que está ficando inchada, dificultando a
passagem de ar. Minha língua parece estar ficando mais grossa e eu balanço
os braços, chamando a atenção de Jota.
Meu melhor amigo entende o que está acontecendo e pula por
cima da mesa, vindo imediatamente para o meu lado.
— Chamem uma ambulância, ela está tendo anafilaxia! Nicole,
cadê a epinefrina?
Sacudo a cabeça, me sentindo zonza e indicando que não trouxe a
porcaria do remédio autoinjetável que deveria estar sempre ao meu alcance.
Jota arregala os olhos, mas eu não consigo ver o que acontece em seguida
porque perco a consciência.
*
— Bem, ele não poderia adivinhar que você teria uma alergia
alimentar grave.
Apenas olho para Jota e então torno a ver meu rosto no pequeno
espelho de mão que meu melhor amigo me emprestou.
Depois de eu perder a consciência, por cerca de um minuto, os
bombeiros chegaram e eu fui trazida às pressas para cá, a UPA. Jota está
comigo enquanto meus pais ainda não chegam, mas já estou bem. Fui
socorrida rapidamente e só vou ter que lidar com minha cara inchada por
alguns dias.
— Pelo menos agora dá para termos certeza de que você não
ficaria bonita fazendo preenchimento labial.
Não consigo evitar e acabo mostrando o dedo do meio para Jota,
que começa a rir sem parar. Eu também estaria rindo, se eu não tivesse
corrido risco de morrer por alguns minutos e também pelo fato de que o cara
que eu gosto e a escola toda me viu sendo colocada na maca por três
bombeiros.
— Ela é fortinha, hein — um deles disse, para minha total
vergonha.
Eu até estaria protestando indignada, mas minha glote estava
fechando por causa da porcaria do amendoim que eu sequer senti o gosto.
Começo a coçar o braço e percebo que estou começando a ficar
toda embolada. A última vez que tive uma reação tão feia assim foi na sétima
série em uma festa junina em que acabei comendo amendoim sem querer e
minha professora da época não sabia direito o que fazer e mais uma vez foi
Jota quem me salvou ao pegar a epinefrina injetável na minha mochila.
— Porque tudo o que eu precisava era perder a dignidade na
frente do cara que eu gosto e agora ainda estar parecendo uma monstra
inchada e com vermelhidão no corpo todo.
Jota me olha e então começa a coçar a nuca, bem daquele jeito
que faz quando tem algo para me contar e sabe que eu não vou gostar muito.
— O cara que você gosta — ele diz, se aproximando de mim. —
Está ali no corredor, na recepção, praticamente quicando de tanta ansiedade
para saber como você está.
— O Leonardo está aqui?! — guincho e recebo um olhar de
advertência da enfermeira e um gesto de silêncio de um senhor idoso que está
do outro lado da enfermaria.
— Provavelmente ele pulou o muro atrás do laboratório de
química e andou até aqui, não é muito longe.
— Eu não quero saber como ele veio, Jota, só que não me veja
desse jeito!
Meu melhor amigo pensa em falar algo, mas nesse momento
meus pais entram e Jota tem que sair porque não pode ter muita gente na
emergência da UPA.
— Eu sempre te digo para trazer o remédio da alergia, Nicole —
mamãe diz, deixando transparecer o quão nervosa está.
— Você ao menos sabe se ainda está na data de validade? — meu
pai questiona, vindo para o meu outro lado.
— Acho que sim — digo, olhando de um para o outro e deixando
que me avaliem, mesmo sabendo que eles sabem exatamente o que acontece
comigo nessas situações.
— Tomei um susto quando recebi a ligação da escola — minha
mãe fala, pegando em minha mão. — Você poderia ter morrido. Já está bem
grande para saber perguntar o que tem nas coisas que compra.
— Eu não comprei, mãe. Foi presente.
— Tem que perguntar, Nick — papai insiste, parecendo tão
nervoso quanto minha mãe. — Nem sempre vai ter alguém que conheça sua
alergia por perto.
Concordo com tudo o que dizem e isso parece acalmá-los um
pouco. A enfermeira mal-humorada de antes pede para que um dos dois fique
comigo e o outro saia. Meu pai resolve voltar para o trabalho já que a
imobiliária não pode ficar fechada.
Meus pais são corretores de imóveis e isso é meio engraçado em
alguns momentos, principalmente porque eles têm mania de ficar avaliando
as casas legais por onde passamos, imaginando como devem ser por dentro.
— Tem um rapaz que deseja vê-la, Nicole — a enfermeira diz
cerca de uma hora depois. — Sua mãe terá de sair para que receba a visita.
— Jota não estava com você até agora? — mamãe questiona, sua
atenção focada no celular.
— Na verdade o rapaz se chama Leonardo.
— Quem é esse?
Não respondo, sentindo como se meu coração fosse saltar do
peito. A vergonha faz com que minhas bochechas ardam e piora quando
minha mãe me olha de um jeito meio engraçado.
— Ele é lá da escola — explico rapidamente.
— Presumo que queira vê-lo?
Abro a boca, pensando no que responder, mas minha mãe apenas
levanta, pega a bolsa e sai, dizendo que vai tomar um café. Tenho vontade de
pedir para que ela fique, pelo menos até que eu saiba o que dizer para ele, ou
a minha cara voltar ao normal.
É claro que não dá tempo porque menos de um minuto depois
vejo Leonardo entrando na sala e segurando as alças da mochila, parecendo
envergonhado e com as costas arqueadas, como se estivesse se sentindo
culpado também.
Leonardo arregala os olhos ao parar ao lado da minha cama e eu
tenho muita vontade de puxar o lençol para cima da minha cabeça, mas acabo
me esforçando para manter a compostura.
— Você está bem? — ele pergunta baixinho, olhando para mim e
ficando com as bochechas ruborizadas. — Eu sinto muito pelo que aconteceu.
— Tô bem — falo, minha voz soando rouca. — Você não tinha
como saber da minha alergia a amendoim.
— Coloquei muito amendoim na massa — Leonardo murmura,
olhando para os próprios pés.
— Está tudo bem, isso já aconteceu antes.
— Eu... Eu fiquei empolgado que você falou comigo ontem e
queria retribuir os desenhos. Eu amo cozinhar, quero estudar gastronomia no
futuro e gosto de programas de culinária e ontem vi um sobre cupcake e não
acho que tenha dado certo. Desculpa. Espero que fique bem.
Ele me olha, parecendo realmente triste, e então vira as costas,
saindo da enfermaria.
— Ei, Leonardo?
O chamo tão baixinho que a princípio penso que não ouviu, mas
então ele para de andar e se vira, me olhando.
— Eu... Eu... Você gostou dos meus desenhos?
Ele sorri e balança a cabeça em sinal afirmativo.
— São lindos.
Sorrio diante do elogio e o gesto me lembra de que eu devo estar
parecendo um mostro com a cara toda vermelha e inchada.
— Pena que eu não pude retribuir do mesmo jeito.
— Estava muito bom — o asseguro. — Eu adorei. Você cozinha
bem.
Ele sorri e então mexe no cabelo, parecendo tão sem jeito quanto
eu.
— A gente se fala na escola? — pergunta baixinho.
— Sim.
Leonardo balança a cabeça e então acena, saindo da enfermaria.
Sorrio porque ele perguntou se a gente iria se falar na escola.
6
Meu rosto não demora a desinchar e dois dias depois já estou bem
o suficiente para voltar à escola. Confesso que me sinto apreensiva e animada
em igual medida. Jota diz que isso é perfeitamente normal e que apesar de
desastrosa, as coisas entre eu e Leonardo estão evoluindo. Tipo, há um ano
sequer conversávamos e agora ele já falou comigo, mesmo que tenha sido no
meu pior momento e na enfermaria de um hospital com uma enfermeira
ranzinza e um velhinho de setenta e oito anos que acha que os jovens fazem
tudo, com ênfase no “u”, errado.
Claro que ainda teve a parte maluca dos meus pais comprarem
epinefrina a ponto de formarem um pequeno estoque e colarem lembretes por
todo o meu quarto sobre como não posso me esquecer do medicamento e de
que tenho alergia alimentar a amendoim e certa intolerância a abacaxi,
mesmo que a fruta apenas deixe minha boca com aftas e não com a garganta
quase fechando de inchaço como amendoim.
O lado bom é que eu me aproveitei da sensibilidade deles em
relação a minha saúde para contar que pretendo cursar artes e não arquitetura,
ou qualquer outra profissão da tríade engenharia, direito e medicina. Meu pai
ficou meio chateado porque tem o sonho secreto que eu seja rica e minha mãe
aceitou melhor do que eu imaginei, apenas ressaltando que não queria que eu
fizesse tatuagens, fumasse maconha e começasse a vender minha arte na
praia. Não adiantou eu ressaltar que isso era preconceituoso e elitista da parte
dela.
— Pelo menos o fato do seu crush ter praticamente a envenenado
te ajudou a conversar com seus pais — Jota diz na sexta-feira de manhã,
quando estamos indo para escola.
— Sim e fiquei imensamente feliz da minha mãe achar que cursos
de licenciatura formam maconheiros que gostam de fazer tatuagens.
— Isso é errado de tantas formas.
— Eu sei e acho que até meu pai ficou meio chocado com o que
ela pensa, mas o que posso fazer? Pelo menos ela não começou a discursar
sobre como na época dela tudo era mais conservador.
— Querida, sua mãe foi jovem nos anos noventa, não preciso
nem te lembrar que nessa época já existia drogas, sexo e farra, não é?
— Acho que os pais gostam de ter amnésia seletiva para certos
assuntos.
Continuamos conversando sobre como minha mãe consegue
cuspir preconceito até chegarmos à biblioteca e eu ver Leonardo sentado na
mesa em que normalmente sento junto com o Jota.
— Vou andar por aí fingindo que tenho algo para fazer — meu
amigo diz ao ver para onde estou olhando.
Balanço a cabeça e ajeito os cabelos, agradecendo aos céus por
meu rosto não estar mais vermelho e inchado. Não sei bem o que fazer, mas
então Leonardo acena e eu sorrio feito uma pateta, mesmo que talvez ele
apenas queira ser meu amigo.
Porque nem sempre todo cara que é gentil com você quer alguma
coisa, tipo, talvez ele apenas ache os livros que eu leio legais e não goste de
mim de um jeito potencialmente romântico, embora eu queira muito que ele
goste de mim de um jeito romântico, mesmo sabendo que isso me leva a
outro patamar de problemas, dessa vez envolvendo minha língua e o que
posso não saber fazer com ela.
— Oi — falo baixinho ao sentar na frente dele.
— Oi, você parece bem.
— É, eu meio que melhorei, então minha cara não parece mais
uma lua cheia e eu não estou mais com a pele vermelha parecendo um
salmão...
Paro de falar, percebendo o quão idiota estou soando e
comprovando isso pelo jeito como Leonardo parece estar se esforçando para
não rir. Meu Deus, eu estou no terceiro ano do ensino médio, deveria saber
jogar o cabelo e fazer charme, não a começar a falar besteiras como se não
tivesse um filtro entre a boca e o cérebro.
— Fico feliz que você esteja bem — ele fala, sorrindo com o
canto da boca.
Jesus, se eu continuar olhando para esse garoto desse jeito vou
começar a babar e ele vai me achar uma maluca, mas como eu posso evitar
quando ele parece ainda mais bonito de perto? A boca dele é carnuda e rosada
e as sardas salpicadas por seu rosto o deixam ainda mais fofo, sem falar que o
cabelo dele é bagunçado, como se nem se importasse com isso, mas ficando
gostoso desse jeito. Eu acabei de pensar nele como gostoso? Pois é, agora sou
a maior pervertida.
— É, eu também. Quer dizer... é legal que você fique feliz por eu
estar bem e...
Engulo em seco e olho para o teto, querendo muito me enfiar
embaixo da mesa para evitar continuar falando besteiras e parecendo ainda
mais esquisita.
— Nicole?
Olho para Leonardo quando me chama, sentindo minha pele ficar
arrepiada pela forma como meu nome parece interessante em sua boca, sua
voz rouca e baixinha sendo capaz de fazer meu coração disparar.
— O que foi?
— Eu sei que as coisas entre nós começaram meio desastrosas,
mas... mas eu queria saber se você...
Ele não termina a frase e começa a coçar a nuca, parecendo sem
jeito. Mordo o cantinho da boca, querendo ser menos tímida e boba.
— Eu queria saber se você gosta de Jane Austen.
A pergunta inesperada me faz sorrir, mesmo que eu me sinta um
pouco decepcionada por ter esperado algo mais.
— Eu gosto de Orgulho e Preconceito. O livro e claro que o
filme, mas aquele de 2005 que tem o Matthew Macfadyen porque ele é
esquisito e bonito e quando ele fala que a ama ardentemente em meio a toda
aquela chuva, eu sinto como se meu coração fosse saltar do peito porque se
fosse eu no lugar da Elizabeth...
Interrompo minha defesa acalorada de Darcy quando vejo que
Leonardo está me olhando e sorrindo, o tipo de sorriso que chega aos olhos e
que o faz parecer ainda mais bonito.
— Eu gosto do relacionamento da Jane e do Charles Bingley e de
como a timidez acaba atrapalhando tudo e claro que acho o Darcy esnobe,
mas entendo que ele é um homem honrado e por isso você defendeu ele
calorosamente.
Sorrio e acabo escondendo o sorriso ao começar a roer a unha do
polegar. Ele gosta de Orgulho e Preconceito e nossa, achar um garoto da
minha idade que lê Austen é tão incrível que eu sinto que me apaixono um
pouco mais agora que ouvi a voz dele.
O sinal acaba tocando e quebrando o encanto do momento, nos
obrigando a pegar nossas mochilas.
— Eu quero te entregar isso — Leonardo fala quando eu levanto.
Ele me entrega um papel quadrado dobrado e sai da biblioteca
rapidamente. Sem entender nada, desdobro o papel e vejo a letra dele no
centro do quadradinho.
Leonardo
Faz mais de dez meses que começamos a namorar e eu não
poderia estar me sentindo mais feliz. Nicole é doce, gentil, engraçada e se
tornou minha amiga além de namorada. Hoje é a formatura dela e eu estou
me sentindo um pouco inseguro.
Meu amigo, Peterson, disse que na faculdade as coisas são
diferentes do ensino médio e que eu deveria me preparar para o fim desse
namoro de escola, ressaltando que as garotas universitárias acabam se
interessando por veteranos.
Eu sei que Nick não é assim e que o que temos é especial, mas
não consigo evitar aquela sensação ruim no estômago, afinal de contas, não
iremos ficar mais tão próximos no ano seguinte porque eu estarei concluindo
o ensino médio.
Verifico meu terno diante do espelho e encontro o celular no
bolso da calça, enviando uma mensagem a ela e dizendo que já estou a
caminho. Chamo meu pai e ele pega a chave do carro, andando ao meu lado
até a garagem. A noite está quente e o céu estrelado.
— Você parece preocupado — meu pai diz quando entramos no
carro.
— Você acha que a Nicole não vai querer continuar nosso
namoro no próximo ano por estar indo para a faculdade?
— Eu acho que a Nicole gosta muito de você, filho. Deveria
conversar com ela se está se sentindo inseguro.
— Eu não quero parecer idiota. Eu estou muito feliz por ela estar
prestes a ir estudar o curso dos sonhos e dou todo meu apoio.
— Mas isso não quer dizer que não possa se sentir inseguro,
ainda mais porque antes os dois estavam na mesma escola.
Balanço a cabeça, concordando, e fico em silêncio até
estacionarmos em frente à casa dela. Saio do carro e vejo quando Nicole abre
a porta.
Fico sem fôlego diante da visão dela em um vestido de baile. Está
linda e o tecido vermelho evidencia sua pele clara. Ele é longo e justo,
chamando atenção para seus seios e o colar que eu lhe dei e que não tira do
pescoço.
— Você está linda — falo quando desce as escadas, lhe dando um
beijo na bochecha. — A garota mais linda e cheirosa do mundo.
Ela dá uma risadinha tímida diante do elogio e eu sinto como se
meu coração fosse saltar do peito. Amo essa sensação de estar cada vez mais
apaixonado.
Meu pai nos leva até o auditório em que será a colação de grau.
Avistamos a família de Nicole próxima e eu fico junto deles enquanto ela se
reúne com a turma para o início da colação.
Vibro com ela a cada foto que mostra o ano e a aplaudo quando é
sua vez de receber o canudo. Os pais dela choram diante da primeira
conquista da filha rumo a vida adulta e ao final da cerimônia, todos vamos
para um restaurante comemorar.
Fico o tempo todo ao seu lado, segurando sua mão, beijando sua
bochecha, comemorando suas conquistas.
— Vamos lá fora — ela diz em certo momento, quando sua
família está distraída em uma conversa acalorada sobre futebol.
Pego em sua mão e a levo até um pequeno jardim nos fundos do
restaurante. Sentamo-nos em um banco de madeira e ela respira fundo, me
olhando daquele jeito de quando tem algo importante para dizer.
É agora que eu levo um pé na bunda.
— Léo — ela me chama baixinho, seu polegar girando nas costas
da minha mão. — Quero falar algo importante pra você, mas não sei se é a
hora pra isso.
— Eu não vou ficar magoado, não se preocupe.
— Magoado?
— Vai terminar, não é? — pergunto, sem coragem de olhar para
seu rosto.
— Terminar? Está doido, garoto. De onde tirou isso?
— É que você vai para a faculdade e eu estou feliz demais, mas
me sinto um pouco inseguro sobre você querer namorar alguém que ainda
está na escola.
Nicole sacode a cabeça e se aproxima, me beijando rapidamente e
acariciando meu rosto.
— Eu quero você, Leonardo e irei continuar querendo até se
estiver na China.
Ela diz isso e me beija novamente, fazendo meu corpo pegar
fogo.
— Então sobre o que queria conversar? — questiono sem fôlego
quando ela se afasta.
— Eu estava pensando que faz alguns meses que namoramos —
ela começa a falar, parecendo sem jeito. — E que não fizemos duas coisas
ainda.
— Quais coisas?
— Sexo e dizer o que sentimos um pelo outro. Eu não estou
apressando, mas é que o Jota falou sobre o que acontece na noite de
formatura nos filmes e eu...
— Eu te amo, Nicole. Não tem um dia que eu não tenha te amado
desde aquele corredor em que decidiu arriscar ficar comigo.
Os olhos dela se enchem de lágrimas e então ela me abraça forte,
colando seu corpo no meu. Ficamos assim por alguns minutos, até que ela
segura meus ombros e me olha, seus olhos ainda lacrimejantes.
— Eu te amo, garoto da biblioteca. Amo como jamais pensei que
seria capaz de amar alguém com somente dezessete anos. Não importa que eu
vá para a faculdade e você ainda esteja na escola. Irei te amar muito mais.
Sinto meus olhos se encherem de lágrimas também e a beijo, não
me importando com a possibilidade de alguém nos ver. Eu estou com minha
garota e me sinto ainda mais completo depois dessas confissões.
— Sobre o outro assunto — começo a falar de encontro a sua
boca. — Eu vou esperar até que você esteja pronta.
— E eu até que esteja pronto também — ela diz rindo,
acariciando meus cabelos. — No nosso tempo?
— Sempre.
Ela sorri, o tipo de sorriso que incendeia meu coração.
— Estou feliz por ter encontrado alguém tão azarado quanto eu
— ela fala e dá um beijo rápido em minha boca.
— Estou feliz por você ter me esperado ter coragem de ir até
você, Nicole.
Ela balança a cabeça, ainda sorrindo daquele jeito que faz meu
coração perder várias batidas.
— Pronto para ir comigo ao baile de formatura e namorar uma
garota da faculdade?
— Sim.
Estamos sorrindo quando nos levantamos e partimos para o baile
e entre uma dança e outra, um beijo e tantos, eu sinto mais uma vez que ela é
a minha garota perfeita e que não importa a diferença de idade, ou o que o
futuro nos reserva. Eu estarei disposto a enfrentar se estiver segurando a mão
dela.
Fim...