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O Pandemônio tinha um
movimento altíssimo, o que tornava o
trabalho muito pesado para apenas uma
garçonete. Ainda assim, eu estava
gostando da rotina agitada.
Em certo momento da noite
daquela segunda-feira, quando todas as
mesas já estavam ocupadas e servidas,
um grupo de homens vestindo trajes
sociais entrou.
Logo me endireitei atrás do
balcão, observando-os. Eles nem
olharam ao redor, seguiram reto,
passaram pelo bar, e entraram na porta
dos fundos que levava ao porão. Ergui
as sobrancelhas, curiosa, antes de me
virar para Fiona.
A garota não parecia ter sequer
notado o movimento do grupo de
homens. Ela continuava sentada ao meu
lado lendo um livro surrado e com
páginas amareladas.
Tamborilei as pontas dos dedos
sobre a superfície de madeira do
balcão.
Sabia que havia algo estranho
sobre aquele bar. Além do misterioso
porão e as regras sobre não fazer
perguntas, eu também me lembrava
claramente de ver Hades Wrath vestindo
uma jaqueta com o símbolo do
Pandemônio.
O que aquilo significava,
afinal?
Apesar do meu interesse
incômodo em desvendar os segredos
daquele lugar, deveria seguir o conselho
de Fiona e ficar longe daqueles
assuntos.
Varri o salão com meu olhar,
procurando algum trabalho que me
distraísse. Todos estavam bem,
entretanto. A maioria comia porções de
alguma fritura e bebiam cerveja.
Já eram quase dez da noite
quando Fiona, sem tirar os olhos de seu
livro, disse:
— Hoje vamos fechar o bar
mais cedo. Às dez e meia.
Normalmente o Pandemônio
funcionava em pleno vapor até às três ou
quatro da madrugada. Eu saía às onze e
Fiona dava conta do movimento do resto
da noite. Mas, provavelmente, aquilo
tinha a ver com seja lá o que estivesse
ocorrendo no porão.
— Por quê? — A pergunta saiu
antes que eu pudesse conter.
Fiona ergueu os olhos verdes
na minha direção. A sombra preta em
sua pálpebra estava mais forte naquela
noite, combinava com o batom cor de
café que cobria seus lábios finos. A
camiseta escura que ela vestia tinha a
gola e as mangas rasgadas
propositalmente. Ela era estilosa, eu não
podia negar.
Antes que Fiona pudesse me
responder, outro grupo de pessoas
elegantes demais para um bar
universitário entrou. Eles pareciam no
limite entre antipáticos e furiosos
quando caminharam — ou melhor,
marcharam — para a porta escura nos
fundos do bar. Um deles, um careca alto,
me olhou de soslaio até desaparecer no
corredor.
— Está aí sua resposta — foi
tudo o que Fiona disse.
Quando meu turno acabou e
fechamos o Pandemônio, ajudei a
bartender a limpar as mesas e o balcão.
Fizemos tudo em pleno silêncio, mas por
dentro eu me remoía em perguntas.
Eu não me considerava
exatamente do tipo bisbilhoteira, mas
estava realmente curiosa e aflita sobre o
que acontecia de verdade naquele lugar.
Não podia evitar. Sentia como se
estivesse novamente na casa que vivia
em Dallas, onde não podia falar tudo o
que pensava nem agir de acordo com
minha vontade.
Assim que Jordan, o
cozinheiro, passou por nós e se
despediu, fui até o banheiro dos
funcionários. Peguei minha bolsa e meu
casaco de dentro de um dos armários de
metal que lá haviam, e saí de volta para
o salão.
Estava convencida a apenas
cumprimentar Fiona e ir embora dali o
mais rápido possível. Entretanto, me
estagnei em frente ao bar, encarando a
garota que lavava os últimos copos.
— Vamos, Raven, pergunte de
uma vez. Consigo sentir daqui o seu
desespero — ralhou Fiona, sem olhar
para mim.
Engoli em seco e cedi. Me
aproximei, sentando num dos banquinhos
à sua frente.
— O que há no porão? —
perguntei de uma só vez, fazendo com
que ela levantasse a cabeça e me
encarasse.
Fiona abaixou o copo e apoiou
as mãos sobre o balcão. Ela estreitou os
olhos para mim, cerrando os cílios em
hesitação.
Várias hipóteses passavam por
minha cabeça e nenhuma delas era boa.
Frequentemente, nossa imaginação
aumenta as proporções de uma situação
material que, na verdade, é muito
simples. O que eu esperava, então, era
que Fiona revelasse algo trivial que nem
mesmo remotamente se aproximasse das
terríveis possibilidades que eu havia
maquinado em minha mente desde o dia
anterior.
— Você concordou em não se
meter nisso — respondeu, me fazendo
respirar fundo.
— Eu sei — falei, desapontada
—, mas imaginar as piores hipóteses
possíveis está me matando. Preciso
saber no que estou me metendo.
— Não posso dizer. — Fiona
simplesmente deu de ombros.
— Eu não vou embora até você
me contar. — No jogo da teimosia eu
frequentemente ganhava.
Uma parte da minha cabeça
dizia que era melhor eu ir, que era
melhor não saber. A dúvida poderia ser
ruim, mas talvez a resposta me
atormentasse muito mais. Talvez eu não
fosse capaz de lidar com a verdade e
perdesse aquele emprego que eu tanto
precisava para pagar a dívida.
Não havia mais volta, porém.
Eu tinha começado, então precisaria ir
até o final.
Fiona me esquadrinhou em
silêncio por um longo momento,
parecendo se encontrar em um dilema.
Por fim, ela cedeu.
—Você tem ideia de quanto
dinheiro um cassino clandestino pode
gerar?
Levantei as sobrancelhas,
surpresa.
— Um cassino? Como os de
Las Vegas? — Fiona comprimiu os
lábios para conter uma risada.
— Mais ou menos. — Ela
maneou a cabeça.
Eu sabia algo sobre cassinos e
jogos de azar, mas não muito, apenas o
que Connor me contara.
Não importava se você
ganhasse o jogo, quem realmente levava
o prêmio era o cassino. Tudo lá era
programado e calculado para o lucro
dos donos do estabelecimento. Não era
realmente baseado na sorte, como os
jogadores acreditavam. Um cassino
clandestino, escondido nas sombras,
devia ter mais vantagens. Sem impostos
e sem fiscalização, eles podiam viver
sob suas próprias regras. Podiam jogar
sujo.
Então era isso o que havia no
porão?
— E quem está por trás disso?
— Uma gangue — respondeu,
séria, enquanto me olhava fixamente.
Aquela palavra ressoou na
minha cabeça pelos vários segundos
seguintes.
A porra de uma gangue agindo
bem diante de mim. No porão do bar em
que eu trabalhava.
— Isso não te incomoda? —
perguntei, indignada. — O bar em que
trabalhamos aceita hospedar um covil de
criminosos.
Dessa vez Fiona não disfarçou
a risada. Franzi o cenho.
— Não seja inocente, garota. O
Pandemônio não é apenas um bar, nós
somos os criminosos. — Meu queixo
caiu e eu me segurei num dos bancos à
frente do balcão, porque provavelmente
o choque teria me feito despencar.
— Por que está me contando
isso?
Fiona deu de ombros. Havia um
ar de divertimento em seu rosto.
— Você é nova na cidade. A
maioria das pessoas aqui sabe quem nós
somos ou pelo menos desconfia, mas
não você. O chefe achou que seria
melhor se você não soubesse, mas fiquei
com pena. Acho que não é uma sensação
muito boa quando todos sabem sobre
algo, menos você. E iria acabar
descobrindo em algum momento, era
apenas questão de tempo.
Eu não respondi, estava atônita.
Meus olhos estavam grudados em Fiona
enquanto eu a esperava desmentir aquela
história absurda. Eu estava esperando
que ela começasse a gargalhar e dizer:
"você precisava ver a sua cara"
enquanto eu respirava aliviada. A
morena, entretanto, não poderia estar
mais séria. Ela me olhava com uma de
suas finas sobrancelhas levantadas,
esperando alguma reação que não fosse
o semblante catatônico que eu
apresentava naquele instante.
Eu havia perdido a voz,
contudo, porque estava furiosa com o
destino. De todos os bares em Carmine,
por que eu tinha que trabalhar naquele
que pertencia a uma gangue? Eu havia
fugido daquilo, daquela vida, e pra quê?
Apenas para acabar novamente naquele
mundo.
Senti minhas mãos começarem
a suar. Estava nervosa. Não sabia
realmente o que eu deveria fazer a
seguir.
Movi meus olhos para as portas
de madeira da entrada do bar. Eu ainda
podia ir embora. Passaria por aquela
porta e não voltaria no dia seguinte.
Ficaria o mais distante possível daquele
lugar e daquela gangue.
Balancei a cabeça, incrédula.
— Você é um deles então?
Trabalha para um chefe do crime, um
cara mau e perverso.
Eu conhecia aquilo. Não havia
como ser bom ou certo. Pessoas assim
eram como Joel e Connor. Malucos
descontrolados ou psicopatas frios. Em
qual dos dois tipos o chefe do
Pandemônio se enquadrava?
Senti nojo só pensar que, de
alguma forma, eu fazia parte daquilo. Eu
trabalhava ali. Trabalhava para uma
pessoa assim.
Os horrores que meu padrasto
faziam todos os dias surgiram em minha
mente e senti gosto de bile invadir minha
boca.
Fiona, entretanto, apenas riu.
Ela riu.
— Vocês são assassinos? —
voltei a perguntar, temendo a resposta.
Eu estava enlouquecendo.
Dei um longo suspiro, retirando
o maço de cigarros do bolso traseiro da
minha calça e acendendo um. Eu não
deveria fumar em um ambiente fechado,
mas eu estava nervosa. E, ao que
parecia, o Pandemônio não vivia sob as
regras convencionais mesmo.
— Não é nada assim. — Fiona
deu de ombros. — Raven, esta cidade
vive sob as regras do chefe. Ele controla
as coisas por aqui e, acredite ou não, ele
não é o vilão dessa história.
Franzi o cenho. Um cara só
controlando uma cidade inteira era
tirania.
Dei uma longa tragada no
cigarro, apoiando as mãos sobre o
balcão. Inquieta, passei as mãos pelos
cabelos, soltando-os. Eu realmente
precisava dar logo o fora dali.
— Caras assim ascendem e
caem o tempo todo. Uma hora a polícia
vai descobrir esse esquema e vocês
estarão todos encrencados — falei,
tentando fazê-la entender a gravidade da
situação. — Ninguém está acima da lei.
Essa cidade não é dele.
— Bem — começou ela,
tirando o cigarro dos meus dedos e
levando-o aos próprios lábios —, eu
não diria isso a Hades Wrath.
— Espera, o que disse? Hades
Wrath?
— Ele é o deus do submundo,
não é? — rebateu ela, achando graça.
Então tudo se encaixava. A
maneira como Hades agira no bar, como
se estivesse em casa. Explicava o
motivo de ele usar a jaqueta com o
símbolo do bar. Porque não era apenas
um bar.
Eu já deveria imaginar que os
Wrath estavam por trás daquilo. Eu
sabia que eles eram criminosos
poderosos, afinal. E, se eram tão ricos e
dominavam grande parte da cidade
como Stephen dissera, então eles não
tinham realmente que se preocupar com
a possibilidade de serem pegos pela
polícia.
Eu me encontrava no cerne da
máfia de Carmine, aquela de que meu
padrasto tanto fugiu.
Antes que eu pudesse dizer
qualquer coisa, as portas do bar se
abriram.
Virei a cabeça, olhando por
sobre o ombro. Um grupo de rapazes
entrou. O último a passar pela soleira
foi Hades. À sua frente estava um
daqueles que acompanharam Wrath no
bar no dia anterior. Mais duas pessoas
faziam parte do grupo: um cara alto, de
pele negra retinta, como ébano, e cabeça
raspada, e uma garota. Ela era branca,
alta e tinha longos cabelos de um
vermelho muito vivo. Eram todos
jovens.
Quatro deles mal olharam na
minha direção, como se eu não estivesse
realmente ali. Eles seguiram pelo
corredor que levava até o escritório do
chefe. O chefe cuja identidade eu
desconhecia até pouco tempo atrás.
Hades Wrath, diferente dos
outros, andou lenta e
despreocupadamente pelo bar. Não tinha
pressa para seguir seus amigos lá pra
baixo. Ele colocou as mãos nos bolsos
da calça preta, seus braços desenhados
estavam cobertos pela jaqueta de couro
do Pandemônio.
— É uma bela noite, não acha?
— falou, se aproximando de mim.
Trinquei o maxilar, sem
acreditar que aquilo estava acontecendo.
Balancei a cabeça, exasperada com a
situação, e voltei meu olhar para Fiona.
— Certo, já chega pra mim. Eu
me demito.
Eu não aguentaria continuar ali,
sabendo que aquele cara, o herdeiro rico
e popular da Universidade de Carmine,
tinha uma gangue. Gangues faziam coisas
ilegais e, embora Fiona tivesse dito que
não era como eu imaginava, eu sabia que
eles estavam envolvidos com tráfico e
contrabando, no mínimo — sem
mencionar o tal cassino clandestino que
operava no porão.
Tudo aquilo me lembrava da
minha antiga vida muito mais do que eu
gostaria. Quando fugi, estava certa de ter
deixado toda aquela sujeira para trás.
Agora os horrores daquela vida
pareciam extremamente próximos
novamente.
Girei sobre os calcanhares e
fiz menção de andar em direção à saída.
Entretanto, o toque gelado de uma mão
segurando levemente meu pulso me fez
parar. Me virei lentamente, os olhos
grudados na mão de Hades. Letras que
formavam a palavra HELL estavam
tatuadas em seus dedos. Ele me soltou
no segundo seguinte, recolhendo sua
mão de volta ao seu bolso.
— O que você sabe? —
perguntou ele, os olhos baixos em minha
direção.
Dei um passo para trás,
tentando fugir da fragrância cítrica e
amadeirada do seu perfume. Nossa
diferença de altura era gritante. Hades
parecia ter algo em torno de 1,90m, o
que fazia meus 1,66m parecerem
irrelevantes.
— O suficiente — respondi,
entredentes. O canto de seus lábios se
ergueu num quase sorriso.
— Aposto que sabe muito
menos do que imagina. — Cruzei os
braços, de repente me sentindo exposta e
vulnerável.
— Não me importo com o que
você pensa, estou dando o fora daqui. —
Hades mal deixou eu terminar minha
frase.
— Eu aumento o seu salário em
50% — disse, simplesmente.
Eu parei e ergui lentamente meu
olhar para o rosto dele. Hades atingira o
ponto certo quando se tratava de mim
naquele momento. Eu gostaria de dizer
que minha moral era inabalável. Que
nem por toda a quantia do mundo eu me
envolveria nesse esquema, que nunca
quebraria a promessa que fiz a mim
mesma de ficar o mais distante possível
daquele mundo. Mas eu precisava
daquela grana. Precisava muito. Estava
praticamente desesperada.
Eu não conseguiria me manter
em Carmine por muito tempo sem meu
salário, e também não poderia ir atrás
de Astrid para ajudá-la, pagar a dívida.
Estreitei meus olhos para
Hades. Aquele dinheiro podia ser
irrisório para os Wrath, mas com certeza
significava muito para mim. O bastante
para eu pensar em aceitar sua oferta.
Mordi meu lábio inferior.
— Quero o dobro do que
recebo agora — joguei a proposta e vi
de soslaio quando Fiona arregalou os
olhos. Hades apenas sorriu.
— Não seja gananciosa, amor.
— Rolei os olhos. Eu queria vomitar
toda vez que o cretino me chamava
daquela maneira. — 70% ou nada feito.
Ele estendeu uma mão para
mim. Respirei fundo antes de cruzar os
braços. Eu não tocaria nele novamente.
Meu plano era simples: juntar a
quantia suficiente para pagar a dívida e
depois dar o fora. Com um salário como
aquele, eu esperava que não fosse
demorar muito.
— Tudo bem — aceitei, por
fim. Hades deu um sorriso e abaixou a
mão. Antes de me virar para poder
finalmente ir embora, o fitei de maneira
fria. — E só pra constar, eu teria
aceitado os 50%.
Quis fazê-lo se sentir um tolo,
mas Wrath apenas passou a língua sobre
os lábios. Os olhos escuros brilhando,
mostrando-me que meu plano havia
falhado.
— E eu teria dobrado e até
triplicado o seu salário.
Balancei a cabeça, incrédula.
Mesmo que o dinheiro não
significasse nada pra ele, por que
desperdiçar tanto esforço apenas com
uma garçonete completamente
substituível? Provavelmente existiam
dezenas de garotas dispostas a aceitar
aquela grana e não ver problema em
ficarem caladas diante do que se
passava ali sob seus olhos, no
submundo.
— Por quê? — perguntei.
Hades inclinou a cabeça,
pensando por um segundo.
— Gosto da ideia de ver seu
belo rosto toda noite. — O sorriso
cresceu em seus lábios.
Então era aquilo. Ele queria me
manter ali porque eu o divertia.
Segurei com mais força a bolsa
contra meu corpo.
— Fique longe de mim — falei
ríspida.
Não o dei tempo para uma
resposta, me virei e andei rápido em
direção à porta. Antes de eu finalmente
sair, entretanto, ouvi sua voz uma última
vez atrás de mim.
— Foi um prazer fazer
negócios com você, Raven.
Senti como se tivesse feito um
acordo com o diabo.
Mas eu sei onde você vai
quando sai
Podemos deitar se você quiser
Tentando descobrir o que você
quer
Porque você é do tipo que
consegue o que quer
FRZZN - OZZIE feat. Teflon
Sega
Era sexta-feira quando eu
finalmente resolvi aparecer na Electric.
Depois daquela primeira noite
com Stephen, eu pensei muito se deveria
ou não voltar. Não queria ter que lidar
com todas as coisas mal resolvidas entre
nós, mas a ideia de fazermos aquelas
sessões fora minha, pra começar.
Quando cheguei em Carmine, e o
encontrei ali, eu pedi por aquilo. Pedi
para que ele me ajudasse. Stephen nem
pensou antes de aceitar — talvez, por
causa da sua consciência pesada, ele
acreditasse que, de alguma forma, estava
em dívida comigo.
Mas depois da primeira semana
de trabalho no Pandemônio, eu percebi
que precisava extravasar tudo, descontar
minha frustração. A Electric era uma boa
maneira de fazer isso e, entre ouvir os
comentários cínicos de Hades e ter que
servir cerveja para criminosos, lidar
com Stephen parecia a tarefa mais fácil
da minha agenda.
Quando cheguei no galpão,
fiquei um tempo parada na calçada
olhando para sua fachada. O letreiro
azul neon estava meio apagado e não
existiam janelas para ver se ainda havia
alguém lá. Era uma hora mais tarde do
que Stephen combinara comigo na
semana passada, então ele poderia já ter
ido embora. Quando não compareci nos
últimos dias, ele provavelmente
presumira que eu não voltaria mais.
Respirei fundo e tentei
empurrar a grande porta cinza do
galpão, que cedeu, demonstrando que
não estava trancada. As luzes brancas,
fracas e esparsas do lugar estavam
acesas. A Electric era bem ampla por
dentro. Tinha as paredes também cinzas
e um ringue no centro.
Sentado na beirada, esperando,
estava Stephen. Seus cabelos loiros
estavam presos com um elástico em sua
nuca. Ele estava sem camisa, exibindo
seu torso nu. Sua pele branca tinha um
leve brilho dourado de um bronzeado
natural. Ele usava apenas calças de
moletom e seus pés estavam descalços.
Mexia no celular, despreocupadamente.
Resisti ao impulso de
simplesmente recuar e fingir que nunca
havia aparecido, e dei alguns passos
para dentro da academia.
Quando eu soube que Stephen
era professor de luta no centro da
cidade, pensei que poderia finalmente
aceitar a proposta que ele fizera quando
eu tinha catorze anos. Ele começara a
treinar quando ainda era bem jovem,
para descontar a raiva. Depois, se
tornou questão de necessidade para não
ser esmagado no mundo em que
vivíamos.
Stephen se oferecera para me
ensinar a me defender durante toda a
nossa adolescência, mas eu pensava que
aquilo não era pra mim. Agora, após ter
fugido de Dallas, eu precisava estar
preparada caso alguém fosse me
procurar.
A primeira sessão de treino não
fora tão intensa, eu não me machuquei
— diferente do que pensava Stephen.
Não fui às outras aulas porque ficar tão
perto dele era estranho e me deixava
confusa.
Assim que adentrei ao grande
espaço, Stephen levantou a cabeça e
seus olhos logo encontraram os meus.
Coloquei as mãos nos bolsos da calça e
dei passos incertos em sua direção. Ele
deixou o celular de lado e se levantou,
saltando do ringue. Sua figura era alta e
esguia, com músculos muito bem
delimitados em seus ombros e peito.
— Que bom que veio — disse
ele, abrindo um sorriso gentil. Dei de
ombros.
— Vamos começar logo —
falei, retirando o casaco preto de
moletom e os tênis em meus pés. Prendi
os cabelos num rabo de cavalo alto com
um elástico que estava em meu pulso e
passei por ele, subindo no ringue.
Stephen não me seguiu instantaneamente,
entretanto. Quando percebi que ele
continuava parado lá em baixo, me
encarando, levantei uma sobrancelha. —
O que foi?
— Está tudo bem? Você parece
meio tensa — observou ele, franzindo o
cenho.
Suspirei.
— É só o trabalho — respondi
num tom casual, tentando amenizar a real
importância do que estava acontecendo
no Pandemônio.
Stephen finalmente se
aproximou. Apoiou as mãos no chão do
ringue, que era pelo menos um metro
acima do chão, e subiu com um
impulso.
— Disse que estava
trabalhando em um bar. Qual é o nome?
Hesitei em lhe contar a
verdade, porque eu sabia que Stephen
iria surtar diante daquilo.
Provavelmente, ficaria zangado e me
acusaria de ser irresponsável. Mas,
pensando bem, eu não me importava
com o que ele pensava. Stephen perdera
há muito tempo o direito de opinar nas
minhas decisões.
— Pandemônio — respondi,
cruzando os braços. Stephen, então,
ficou sério. — O que foi?
— Você não sabe sobre o que
realmente é esse lugar, não é?
— Você sabe? — Stephen
balançou a cabeça e bufou, diminuindo a
distância entre nós com passos duros.
— Todos conhecem a gangue de
Hades Wrath. É pra eles que você está
trabalhando, Raven.
— Não, eu sou só a garçonete
— rebati. Ele me analisou com seus
olhos claros por alguns segundos, com
certeza duvidando da minha sanidade.
— Você está mesmo disposta a
entrar nesse mundo de novo? — Havia
certa decepção em sua voz. Fechei os
olhos e respirei fundo, já exausta
daquele assunto.
Eu tive aquela discussão
comigo mesma durante toda a semana.
Estava numa encruzilhada e as
circunstâncias me atormentavam. Eu
estava tentando me convencer, contudo,
de que conseguia fazer aquilo. Seria por
pouco tempo, afinal. Não significava
que eu compactuava com os negócios da
gangue ou que era um deles.
— Eu só sirvo pratos em troca
de dinheiro. Bastante dinheiro, Stephen.
Mais do que o suficiente para eu
resolver as coisas. Caso não se lembre,
eu tenho uma dívida a ser paga.
— A dívida nem é sua! —
argumentou ele, se exaltando.
— Não vou falar sobre isso
com você, Stephen.
— É sério isso? Você fica
brava comigo por ir embora, mas não
com Astrid? Ela tinha a obrigação de
ficar, Raven, não eu.
— Chega! — o interrompi,
agora realmente irritada. — Você não
opina nas minhas escolhas, Stephen. Não
mais.
Ele ficou parado, com as mãos
na cintura, me olhando cansado.
Stephen estava certo. Sua
partida não doera, nem de longe, como a
de Astrid. Ainda assim, as
circunstâncias eram diferentes. Eu
estava disposta a perdoá-la porque ela
era a única família que eu tinha, a única
que já conheci. Era a última pessoa que
eu ainda tinha no mundo.
Stephen deu um longo suspiro.
— Eu não vou ficar tranquilo
com você lá, Raven. Nunca.
— Sinto muito, mas não posso
fazer nada a respeito. — Dei de ombros.
— Se você não pode mais me ajudar,
então eu vou embora.
Fiz menção de sair, mas ele
logo se postou no meu caminho.
— Eu não disse que não te
ajudaria — falou, sério. — Inclusive,
quanto mais eu treinar você, maiores são
as chances de você dar um soco na cara
do Wrath. — Stephen abriu um sorriso.
— Eu quero distância dele e de
sua gangue. — Eu nem sabia por que
havia sentido necessidade de me
explicar. — Só estou lá para trabalhar
no bar, não quero me envolver com as
coisas ilegais feitas por Hades e seus
amigos.
— Não sei se tem opção
estando tão perto. — Mordi o interior da
bochecha, não deixando de me perguntar
se havia alguma verdade no que ele
falava. — Só toma cuidado com eles,
‘tá?
Engoli em seco ao assentir.
Após nos alongarmos, Stephen
começou com suas lições. Ele parecia
estar ainda mais motivado a me ensinar
a me defender. Ele era bom naquilo.
Em um dos movimentos ele
estava à minha frente, sua mão direita
fechada ao redor do meu pescoço, mas
sem apertar ou pressionar. Stephen me
dissera o que fazer. Eu deveria levantar
o braço esquerdo e bater a lateral dele
contra seu pulso. Assim que eu o fiz, sua
mão se afrouxou do meu pescoço e eu
pude acertar suas pernas com chutes,
para que ele caísse. Ele me segurou,
entretanto, de modo que também fui ao
chão.
Terminei por cima de Stephen,
uma mão apoiada ao lado de cada um de
seus ombros. Ele se aproveitou do
elemento surpresa e inverteu nossas
posições rapidamente, prendendo meus
braços acima da minha cabeça.
— Como você sairia dessa
situação? — perguntou ele.
Meu peito subia e descia com a
respiração ofegante. Eu estava suada, já
fazia mais de uma hora que estávamos
treinando e o rosto dele estava muito
perto do meu. Podia sentir sua
respiração na minha pele. Tentei me
soltar, incomodada com a proximidade,
mas ele pressionava meu corpo para
baixo com o seu.
— Vamos, Raven, você sabe o
que fazer.
Umedeci os lábios, sentindo o
coração bater forte e rápido em meus
ouvidos. Fechei os olhos e respirei
fundo. Ficamos em silêncio por alguns
segundos, eu ainda sentindo seu cheiro e
sua respiração muito de perto.
— Stephen…
Eu não sabia o que responder e
estava frustrada demais para tentar usar
os movimentos que ele me ensinou.
— Eu queria tê-la levado
comigo quando fui embora — falou
Stephen, de repente, me fazendo abrir os
olhos para encará-lo. Seus olhos azuis
da cor do mar me atingiam diretamente.
— Eu estraguei tudo.
— Você fez o que precisava
para salvar sua pele — respondi, sem
conseguir disfarçar o tom duro do meu
ressentimento.
Eu compreendia suas ações,
mas não conseguia esquecer ou seguir
em frente como se nada tivesse
acontecido.
Ele abriu a boca para dizer
mais alguma coisa, mas não o fez,
porque, desesperada para fugir daquela
conversa, eu finalmente executei o
movimento que me tirou daquela
situação. Dobrei um dos joelhos e o
atingi acima da pélvis, o empurrando de
cima de mim logo em seguida.
Me pus de pé de uma só vez e
saí do ringue, juntando minhas coisas em
seguida. Minha mochila e casaco
estavam jogados sobre um banco perto
da parede. Os apanhei bem rápido. Vi de
soslaio quando Stephen se levantou
também, sentando-se no chão com os
joelhos dobrados e os olhos seguindo
meus movimentos.
Eu não queria tocar naquele
assunto.
Sim, eu estava fugindo.
Dei as costas a ele e comecei a
caminhar apressadamente na direção da
saída. Abri a porta, mas antes que eu
pudesse sair, ouvi Stephen me chamar.
Olhei para ele por sobre o ombro,
percebendo como seu rosto parecia
carregar um silencioso arrependimento.
Ele não falou nada, talvez
também não soubesse o que dizer. Nossa
relação era confusa e complicada, e eu
não planejava conversar para tentar
resolvê-la. Nada jamais seria o mesmo
entre nós e eu precisaria seguir em
frente através dessa realidade.
Maneei os ombros levemente
antes de finalmente ir.
Estreitei meus olhos,
aproximando meu rosto ainda mais do
papel.
Mesmo após apenas uma
semana de aula, eu já havia percebido
que não era boa na disciplina de Arte e
Perspectiva. Embora prestasse muita
atenção nas fotos referenciais e em
outros desenhos desse gênero, tudo o
que eu estava criando ainda parecia
muito torto para mim.
Talvez aquela fosse a área mais
lógica da arte, provavelmente, por isso
parecia muito complexa pra mim.
E ter uma colega de quarto
andando de um lado para o outro de
maneira incessante, definitivamente, não
estava ajudando na minha concentração.
Me endireitei, recostando-me
na cadeira giratória da escrivaninha, e a
fitei. Libby estava se olhando no espelho
da parede ao lado da porta do banheiro.
Ela usava uma saia amarela e uma blusa
azul-escura de alcinhas. As trancinhas
castanhas de seu cabelo estavam presas
num rabo alto e volumoso. Seu rosto
estava bem maquiado. As cores ficavam
lindas sobre sua pele negra e brilhante.
— Vamos, Raven, você ficou
estudando o dia todo, merece uma folga.
— Ela tentou me convencer, olhando pra
mim através do reflexo no espelho. —
Vai ser nossa primeira festa
universitária, você não pode perder.
Mordi o lábio inferior.
Libby estava certa. Eu queria
aproveitar a melhor parte de estar na
Universidade e ser uma garota normal.
Eu fora a poucas festas no colegial,
somente às mais tediosas. Connor não
permitia que eu saísse com frequência.
Agora que eu era livre, poderia fazer o
que quisesse.
Estava meio hesitante, sem
saber o que esperar. Tudo o que eu sabia
sobre eventos de fraternidade era o que
assistira em comédias besteirol, e não
era muito animador. Mas eu precisava
me arriscar e sair um pouco.
Coloquei o lápis em minha mão
na escrivaninha e me levantei.
— O.k, você tem razão —
concordei e cruzei o quarto até meu
armário.
Só depois de abrir as suas
portas de madeira foi que eu percebi
que, com toda certeza, eu não tinha
roupa pra festa. Meus ombros caíram
enquanto eu analisava os jeans e as
camisetas simples e monocromáticas.
Tudo bem, eu podia lidar com
isso.
Estava prestes a retirar do
cabide uma regata preta padrão quando
Libby grunhiu atrás de mim. Ela
observava as roupas por cima do meu
ombro e não ficou feliz com o que viu.
— É isso o que você costumava
vestir no Texas? — perguntou, meio
sarcástica. — Não pretende usar isso na
festa, não é?
— Qual o problema? — rebati.
Ela apenas levantou uma
sobrancelha pra mim antes de arrancar a
peça das minhas mãos e arremessá-la de
volta no armário. Em seguida, foi até o
seu e começou a procurar lá.
— Hoje você vai com uma
roupa minha, mas você precisa comprar
mais peças que não sejam tão chatas e
sem graça. Elas não têm nada a ver com
você — falou Libby, vasculhando seu
guarda-roupa. — Posso ir com você ao
shopping no fim de semana.
— Combinado.
Quando fugi de Dallas, não
tinha levado muitas roupas, apenas o que
coube na maior mochila que consegui
encontrar naquela casa. Além disso, a
maioria das peças era muito gasta e
antiga. Sem dúvidas eu precisava
comprar coisas novas.
— Algum dia pretende me
contar sobre sua vida lá? — perguntou
ela, ainda procurando uma vestimenta
que não ficasse muito larga no meu
corpo demasiadamente franzino.
— Um dia — prometi, embora
duvidasse disso.
Eu detestava conversar sobre
meu passado.
Por fim, usei um vestido preto
que pertencia à irmã mais nova de
Libby. A peça havia se misturado com as
roupas dela por engano, mas acabou
sendo útil.
Ele terminava um pouco acima
do meio das minhas coxas finas e
pálidas. Suas alças eram bem estreitas e
seu modelo era um número maior do que
o ideal para meu corpo esquálido. Ainda
assim, combinou com a delineado preto
em meus olhos e o batom vermelho.
Sempre gostei de me maquiar, mas já
havia muito tempo que eu não o fazia.
Por fim, calcei um par de
sandálias. Ouvi uma vasta gama de
elogios vindos de Libby.
Toquei a maçã do meu rosto
enquanto me olhava no espelho. Não
havia mais olheiras sob meus olhos e eu
não parecia mais como um fantasma. Os
olhos cinzentos ganharam vida e brilho e
um sorriso pairava por meus lábios —
que ganharam volume com o batom.
Fiquei feliz ao perceber que também não
estava mais tão magra.
Meus cabelos escuros como a
noite estavam presos num rabo de
cavalo despojado, com alguns fios
caindo nas laterais do meu rosto.
Eu me sentia bonita pela
primeira vez em muito tempo.
Peguei uma pequena bolsa
emprestada de Libby, na qual coloquei
meu celular, o batom, um maço de
cigarros, um isqueiro e as chaves do
dormitório. Pendurei sua alça dourada
no ombro ao sairmos. Pegamos um táxi
até a fraternidade.
A Gama Zeta Phi — GZP —
estava lotada. Mesmo sem entrar eu
conseguia ouvir a música, um pop
estridente. No gramado em frente à casa
estavam algumas pessoas com copos e
garrafas de bebidas nas mãos. Libby e
eu passamos por elas antes de subirmos
os degraus que levavam à varanda, onde
se localizava a porta principal. Esta se
encontrava aberta, e assim que passamos
por ela nos vimos no hall de entrada. O
local estava infestado de jovens, até
mesmo nas escadas que levavam ao
segundo andar.
— Caramba, eu preciso de uma
bebida — falou Libby, pegando em
minha mão para me puxar com ela na
direção da cozinha. — Não fique longe
do meu campo de visão, Raven. E não
aceite bebidas de estranhos.
Assenti com a cabeça, apesar
de ela não poder ver.
Mesmo sendo inexperiente
quanto a fraternidades, eu conhecia as
regras básicas de sobrevivência de uma
garota numa festa.
Eu não conhecia quase ninguém
ali. Vi de relance um dos membros do
Pandemônio, mas ele não deu muita
importância para a minha presença.
Em cima da ilha de mármore
cinza da cozinha havia baldes com gelo
abarrotados de garrafas de bebidas.
Libby e eu pegamos uma cerveja cada e
fomos para os fundos da casa. No
quintal estava uma enorme piscina — e
dentro dela vários universitários
bêbados e ainda vestidos.
Libby avistou de longe um
casal de amigos e nós fomos até lá.
— Deus, pensei que nunca
fosse encontrar vocês — berrou ela por
cima da música.
Eu conhecia a garota, Alina
Johnson, que fazia algumas matérias
comigo. Também era estudante de Artes.
Ela era loira, com fios longos,
ondulados e bagunçados. O contorno dos
olhos estava bem escuro com a
maquiagem e ela usava uma blusa
branca de mangas compridas e calças
jeans.
Fiquei aliviada com sua
presença. Pelo menos agora eu sabia que
conhecia duas pessoas ali, ao invés de
apenas uma.
— Já conhece a Raven? — A
loira me apresentou para o cara ao se
lado. — É caloura de Artes. A garota é
muito foda nos desenhos, você precisa
ver.
Dei um sorriso sem graça.
— Eu adoraria ver a sua arte
algum dia — disse ele, passando os
dedos pelos cabelos castanhos
encaracolados em sua cabeça. A outra
mão segurava um copo de plástico
vermelho. — Sou Harvey, é um prazer te
conhecer.
Ele sorriu com uma fileira de
dentes muito brancos e retos, mas não
conseguiu evitar de me olhar dos pés à
cabeça. Quando seus olhos se voltaram
para meu rosto, ele me encarou de um
jeito bem específico. Levantei uma
sobrancelha em sua direção, mas por fim
o cumprimentei de volta.
Se ele queria flertar, eu não iria
me opor. Harvey era bem bonito e
poderia ser uma boa distração. Por
muito tempo Stephen foi tudo no que
pensei, eu realmente precisava conhecer
outros caras.
Coloquei minha mão sobre a
sua e apertei, cumprimentando-o.
— O prazer é meu, Harvey.
— Então, de onde você é? —
Puxou conversa.
Olhei de soslaio para Libby,
que logo desviou o olhar e entrou numa
conversa banal com Alina. Ela sabia
bem que eu não gostava de falar sobre
mim e que, sempre que o assunto
aparecia, eu desconversava.
Pigarreei, voltando a olhar para
Harvey.
— Texas — respondi, forçando
um sorriso simpático.
— É mesmo? De que lugar do
Texas?
— Uma cidade bem pequena do
interior, você não conhece. Nem aparece
nos mapas. — Harvey assentiu
lentamente. — E você, de onde é?
— São Francisco, Califórnia.
Ele não se importou em falar
sobre si mesmo e eu não me importei em
escutar. Ele era engraçado e parecia ser
bastante inteligente também. Era
estudante de Literatura e queria ser
professor, mas, definitivamente, não se
enquadrava como um nerd tradicional.
Era atleta e membro do conselho da
GZP.
Quando nossas bebidas
acabaram, ele sugeriu que fôssemos
buscar mais. Eu logo percebi que ele só
queria se distanciar das garotas para que
pudéssemos conversar a sós. Ele estava
usando um tom sugestivo em todas as
nossas interações.
Harvey pegou a minha mão e
me guiou de volta para dentro da casa.
Depois de pegarmos mais cervejas na
cozinha, não voltamos à área externa.
— Quer dançar? — perguntou,
aproximando a boca do meu ouvido para
que pudesse escutá-lo melhor.
Dei de ombros antes de dizer
um “é claro” e segui-lo para a sala de
estar, onde havia mais caixas de som e
um grupo de pessoas dançando coladas
umas nas outras.
Bebi um pouco mais de cerveja
e deixei-me levar pela música.
Você tem o diabo em seus
olhos
Você chegou e me pegou de
surpresa
Fale o que você quiser, eu não
vou voltar
Se você quer pegar a estrada,
então vamos lá
Devil Eyes - Hippie Sabotage
Muitas pessoas dançavam ao
meu redor. A maioria eram garotas, que
mexiam seu corpo de maneira sensual no
ritmo agitado da música. Já fazia algum
tempo que eu não dançava, mas me
deixei levar assim que Harvey colocou
as mãos na minha cintura. Eu segurava
em seus ombros, mantendo contato
visual o tempo todo.
Sua mão desceu devagar pela
lateral do meu quadril até encontrar a
pele da minha coxa após a barra do
vestido.
— Você é a garota mais bonita
que eu já conheci — sussurrou em meu
ouvido.
Quase revirei os olhos com o
clichê.
Não respondi seu elogio. Sabia
o que ele queria e ele achava que eu
precisava de floreios e bobagens
românticas para ceder. Assim que ele
fez menção de aproximar seu rosto do
meu, senti meu celular vibrando dentro
da bolsa, que eu estava mantendo colada
ao meu corpo para não perder.
Me afastei com um passo para
trás e puxei o aparelho lá de dentro. Não
conhecia muitas pessoas, e poucas
tinham meu número. Quando coloquei os
olhos no nome que brilhava na tela, meu
coração disparou e eu atendi a chamada.
Coloquei o celular sobre a orelha,
eufórica, enquanto tampava a outra por
causa do barulho.
— Astrid? — chamei alto,
quase gritando.
Não consegui escutar a
resposta, entretanto. Andei em passos
rápidos por entre as pessoas, esbarrando
com algumas delas no caminho, e fui em
direção à saída da casa. A música
diminuiu gradativamente até eu me ver
novamente na varanda da porta
principal.
— Alô? Astrid?!
Logo em seguida a ligação
caiu.
Soltei um palavrão alto antes
de discar novamente. Chamou por vários
segundos, mas caiu na caixa postal. Não
era possível.
Que diabos foi aquilo? Por que
ela ligaria e depois não atenderia o
telefone?
Fechei os olhos, me encostando
contra a parede e deixando minha
cabeça tombar para trás. Em anos,
aquela fora a primeira vez em que estive
realmente perto de falar com ela de
novo. E eu havia perdido a chance.
Minha mão foi novamente para
dentro da bolsa e tirou de lá o isqueiro e
um cigarro, que eu prontamente acendi.
Inspirei a nicotina para dentro
do meu organismo, ainda praguejando
muitos palavrões dentro da minha
cabeça. Instantaneamente, comecei a
sentir raiva das sandálias que apertavam
meus pés e das alças do vestido que
pinicavam minha pele.
Queria ir pra casa.
Expeli a fumaça lentamente
enquanto fitava a rua escura à frente da
irmandade.
Poucos minutos depois, um cara
saiu lá de dentro, se aproximando de
onde eu estava. Ele se encostou sobre a
balaustrada de madeira branca que
cercava a varanda, ficando na minha
frente, e cruzou os braços.
Logo o reconheci. Ele era um
dos membros da gangue de Hades. Tinha
cabelos castanhos raspados rente à
cabeça. Não conseguia identificar a cor
de seus olhos pela pouca luz do
ambiente, mas notei algumas tatuagens
em suas mãos e no pescoço, escapando
sob o tecido de sua blusa de mangas
compridas.
— Dia ruim? — perguntou ele.
Inclinei a cabeça levemente
para o lado, tirando o cigarro dos
lábios.
— Algo assim. — Foi a única
coisa que respondi.
— Quer desabafar? Dizem que
os estranhos são os melhores ouvintes.
— Estreitei meus olhos para ele.
Eu não confiava nele. Não
confiava em ninguém do Pandemônio.
Eles pareciam predadores, sempre à
espreita. Além disso, eram criminosos.
Eu sabia muito bem o que pessoas assim
faziam.
— Você não é um estranho. É
amigo de Hades Wrath.
— Usualmente as pessoas me
chamam de Khalil, mas você pode me
chamar de K.
Levantei uma sobrancelha.
Eu podia não estar na cidade há
muito tempo ou conhecê-los bem, mas
desconfiava do que Khalil estava
fazendo. Ele parecia estar me sondando.
Agora que eu havia descoberto sobre o
que era o Pandemônio de verdade, a
gangue de Hades deveria querer saber o
que eu pretendia fazer com a
informação.
Soltei um riso nasalado antes
de tragar novamente o cigarro.
— Não vai dar certo — falei,
expirando a fumaça. — Esse seu plano
de tentar se aproximar de mim para me
convencer a ficar calada sobre seus
negócios. Além disso, tenho certeza de
que todos já sabem.
Khalil sorriu.
— Pode ter certeza que sim. —
Ele riu. — E eu vim em paz, juro. Sem
segundas intenções. — Levantou as
mãos em rendição.
Desviei o olhar de volta para a
rua.
Antes que ele pudesse voltar a
dizer algo, outra pessoa saiu de dentro
da casa e veio até nós. Era a garota alta
de cabelos vermelhos do Pandemônio.
Outra deles, que ótimo,
pensei.
Ela não esperava me encontrar,
pois pareceu surpresa ao me ver. Me
mediu dos pés à cabeça com um olhar
que parecia conter nada além de repulsa.
Aquilo me deixou mais brava do que
desconfortável.
As pessoas daquela gangue
sequer me conheciam, mas continuavam
rondando como se apenas minha
presença fosse o suficiente para
incomodá-los ou deixá-los alertas.
— Selina. — Havia certo
desgosto na voz de Khalil ao pronunciar
aquele nome.
A garota era extremamente
bonita. Grandes olhos marcados, nariz
fino e delicado, batom vermelho
vibrante e um corpo alto e curvilíneo.
Ela usava um cropped preto e saia de
couro curta e apertada, expondo suas
longas pernas.
— O que está fazendo aqui
fora? Fugindo de toda a diversão? —
Selina levantou uma sobrancelha fina
para ele. O tom de sua voz era de
desafio. Ela cruzou os braços.
— Não estou interessado nos
seus joguinhos esta noite, obrigado —
ele a cortou, ríspido.
A tensão era palpável.
Provavelmente, era a hora de eu dar o
fora dali.
— Qual é, K? Todos amam
jogar comigo. — Selina tinha sarcasmo
escorrendo de sua voz de veludo. Seu
olhar felino logo se voltou para mim.
Ela inclinou a cabeça, mas não disse
nada.
Coloquei o cigarro entre os
lábios e saí, passando por ela e entrando
na casa novamente sem dizer nada.
Meu espírito festeiro já estava
morto e enterrado naquele momento e eu
só queria ir embora.
Procurei Libby por todos os
lugares, mas ela e Alina desapareceram.
Joguei a guimba do cigarro na lixeira da
cozinha e puxei um copo de vodca, que
desceu queimando pela minha garganta.
— Onde você estava? —
Harvey apareceu, com os cabelos
bagunçados e mais embriagado do que
dez minutos atrás. — Te procurei em
todo lugar.
Era uma mentira deslavada,
mas, levando em consideração o sorriso
malicioso em seus lábios, ele pretendia
retomar de onde paramos. Minha
vontade de tê-lo como a distração da
noite, entretanto, virara cinzas.
— Viu a Libby por aí? —
perguntei, elevando o tom de voz para
sobressair à música.
Harvey franziu o cenho.
— Ela deve estar com Alina.
— E onde está Alina?
— Não faço ideia.
Bufei.
— Se vê-la, pode dizer que eu
já fui?
— Mas você já vai? A festa
mal começou — ele argumentou, mas
continuei impassível. — Posso te dar
uma carona, pelo menos?
Levantei uma sobrancelha,
mirando meu olhar na garrafa de tequila
que ele tinha em mãos.
— Não mesmo, mas obrigada
pela gentileza.
Provavelmente, ele estava
bêbado demais para entender a minha
ironia, então apenas passei por ele,
dando um tapinha em seu ombro, e fui
direto para a saída. Passei reto pela
varanda antes de descer os degraus e
caminhar em direção à rua.
Eu não tinha dinheiro para um
táxi e o alojamento não era tão distante,
de modo que eu podia chegar até lá
caminhando.
Abracei meu próprio corpo e
virei a esquina, começando a subir a
rua. Meus pés certamente não ficariam
nada felizes com as marcas e bolhas que
surgiriam neles após eu andar tanto com
aquelas sandálias de salto — que eram
dois números menores que o meu.
A rua estava escura e gelada e
eu estava furiosa comigo mesma.
Após alguns minutos andando
eu percebi que talvez o alojamento fosse
mais distante do que eu calculara. Do
outro lado do campus, provavelmente.
Soltei um palavrão e olhei ao
redor, procurando alguém a quem
pudesse pedir carona. O lugar estava
totalmente vazio e silencioso, porém.
Sentei no meio-fio e retirei as
sandálias, alongando os pés antes de
voltar a andar, dessa vez descalça sobre
o asfalto úmido.
Foi então que ouvi o rugido alto
e violento de uma motocicleta. Ela
acelerou num solavanco até se
aproximar, depois reduziu
consideravelmente e continuou devagar
ao meu lado. Olhei por sobre o ombro,
mas não pude ver nada além de um
homem com capacete, jaqueta grossa e
coturnos.
Abracei meu corpo com mais
força e continuei a andar, acelerando
meus passos até quase correr. Ele
permaneceu me seguindo de perto,
contudo.
Meu coração batia em
disparada em meu peito. Eu olhava ao
redor, procurando alguém ou alguma
coisa que pudesse me ajudar. Não havia
nada.
Eu quis me virar e perguntar
logo o que diabos ele queria. Queria
xingar e me debater. Qualquer coisa que
não fosse o desespero de ser perseguida,
sem saber o que aconteceria. Estava
quase cedendo a esse impulso quando
um carro apareceu. Ele tinha os faróis
desligados quando ultrapassou a moto e
parou perpendicularmente no meio da
rua.
Reconheci o Camaro preto.
Praguejei alto, parando de
andar. A moto também parou.
Hades saiu de dentro do carro,
sequer fechou a porta, se aproximou da
moto a passos duros, como se já
soubesse quem era ali. No mesmo
instante, o motoqueiro tirou o capacete.
Espremi os olhos sob a luz
escassa, tentando identificar seu rosto
naquele breu. Seus cabelos eram curtos,
quase raspados, e um sorriso enfeitava
seu rosto. Eu sentia seu olhar em mim,
fixo e intenso, como se tentasse dizer
alguma coisa. Não entendi o que estava
acontecendo.
— Que merda está fazendo,
Hive? — perguntou Hades, num estado
de humor que beirava a cólera.
Pensei em continuar andando,
sumir logo dali enquanto eles se
resolviam. Entretanto, meus olhos
estavam presos à cena, observando cada
movimento deles. Eu não havia visto
Wrath na festa, talvez ele sequer
estivesse lá. E o outro, o motoqueiro que
estava me seguindo, chamou minha
atenção.
— Estou só me divertindo, não
fiz nada de errado. — Levantou as mãos
cobertas com luvas de couro.
A voz era tão familiar, mas eu
não lembrava de seu rosto.
Provavelmente, já havia cruzado com
ele na Universidade, talvez fizesse
alguma aula comigo.
— Vá se divertir de uma forma
menos doentia, então. Dê o fora daqui.
Agora.
Franzi o cenho.
Meu peito ainda subia e descia
de forma ofegante e eu sentia a
adrenalina correndo em minhas veias.
— Não sabia que ela estava
com você. Hades. Falta minha. — Pela
maneira como ele falou, ficou claro que
as coisas entre os dois eram pessoais.
Mais do que isso, Hive parecia estar
tentando fazer Hades perder o controle.
— Ela está.
— Não estou — neguei ao
mesmo tempo em que ele afirmou.
Engoli em seco, fitando-o.
Hades, entretanto, tinha seus olhos
cravados em Hive.
— Por que voltou para
Carmine? — Hades perguntou num tom
de voz firme, meio assustador.
— Não está feliz em me ver?
— Hive provocou, rindo.
— Desapareça da minha frente.
— Foi a resposta entredentes que ele
ganhou. — Agora.
Hive se voltou na minha
direção uma última vez, inclinando a
cabeça para me olhar. Não se demorou
muito, contudo. No instante seguinte, ele
colocou o capacete e disparou com a
moto num solavanco.
Levantei as sobrancelhas e
suspirei, surpresa com o desenrolar
daquela cena estranha — para dizer o
mínimo. De qualquer forma, não era da
minha conta.
Hades passou as mãos nos
cabelos em frustração. Fiz menção de
voltar a andar, mas sua voz me parou.
— Entre no carro, eu te levo.
— Me virei, olhando-o incrédula.
Ele estava mesmo me dando
uma ordem?
— Vá pro inferno — cuspi em
sua direção. Ele não pareceu se abalar,
apenas umedeceu os lábios antes que
estes formassem um sorriso de canto.
— Você não parece muito
confortável andando pelo asfalto
descalça, amor — observou Hades,
olhando para os meus pés. — Vamos,
por favor.
Ponderei, alternando meu olhar
entre a figura alta de Hades e a de seu
carro.
Meus pés doíam, eu estava
cansada e ainda um pouco apavorada
por ter sido seguida por aquele homem
desconhecido. Hive poderia voltar para
ter de mim o que estava buscando
quando me seguiu. Não sabia o que ele
queria e temia suas intenções.
Assim, cedi, caminhando até o
Camaro sem dizer nada.
Eu não deveria ter aceitado a
carona.
Eu o vi lá fora tentando falar
com ela
Você está tentando deixá-lo,
disse que eu sou o motivo
Diga que você é minha, eu sou
seu esta noite
Me conte mentiras
Oh, garota, me conte mentiras
Party Monster - The Weeknd
O carro estava silencioso. Até
demais.
Eu tinha um dos braços apoiados
no batente da janela aberta do Camaro.
A outra mão guiava o volante lentamente
pelas ruas escuras. Normalmente, eu
gostava de bem mais velocidade do que
aquilo, mas queria pegar leve com a
garota ao meu lado. Com certeza o
episódio com Hive já fora assustador o
suficiente. Ela não precisava de mais
adrenalina naquela noite.
Olhei de soslaio para a figura
de Raven. Ela estava tensa. Eu podia ler
sua postura facilmente. As pernas
grudadas uma na outra, os braços ao
redor do próprio corpo. Estava
praticamente colada na porta do
passageiro, mantendo a maior distância
possível de mim. O cheiro do seu
perfume havia impregnado o interior do
veículo assim que ela entrou ali. Doce e
suave. Adjetivos avessos à
personalidade dela, pelo o que eu
conhecia. Não a culpava por sua
hostilidade direcionada a mim, contudo.
Eu bem sabia que ela tinha muitos
motivos para desconfiar de mim e do
Pandemônio.
E pensar nela me distraiu do
ódio que me consumiria se eu focasse no
retorno de Hive. Eu, definitivamente,
preferia admirar a beleza quase
sobrenatural de Raven. Seus cabelos
eram tão escuros quanto a noite densa,
contrastando com o tom prateado de
seus olhos. Ela era linda.
Precisava admitir que havia a
subestimado. Quando ouvi sobre ela, a
garota que fugira da máfia do Texas,
pensei que desapareceria. Foi, no
mínimo, surpreendente vê-la em meu
bar.
Mas, naquela noite, ela não era
minha maior preocupação, Hive era. Eu
não podia acreditar que o desgraçado
estava de volta. Depois de todo o caos
que ele deixara, simplesmente retornou
como se nada tivesse acontecido. E
assim que o vi, todos os últimos
acontecimentos voltaram com tudo na
minha cabeça. O sentimento de raiva me
possuiu. Me contive para não quebrar
sua cara insolente e ingrata em mil
pedaços.
O maldito Hive novamente em
Carmine.
Trinquei o maxilar, pensando
em como poderia lidar com aquele
problema de maneiras que me
poupassem estresse e esforço — o que
parecia impossível.
Apertei o volante forte em
minhas mãos, até ver os nós dos dedos
empalidecerem.
Era mais do que vingança. Hive
precisava ser punido e era meu dever
assegurar isso. Eu havia passado muito
tempo tentando ensiná-lo o caminho
correto, a tomar as decisões certas. Não
obtive sucesso antes e agora era tarde
demais para isso.
— Quem era aquele cara? —
A voz de Raven quebrou o silêncio,
virando o rosto para mim. Os grandes
olhos cinzentos me encaravam
incisivos.
Havia algo escondido ali. Eu
podia ser um bastardo egoísta na grande
maioria das vezes, mas sentia algo
quando a olhava. Sabia, conhecendo
Joel McKinley, que Raven não tivera um
passado fácil. Conseguia enxergar isso
através de seu comportamento
irreverente, escondido por baixo da
armadura de sua rebeldia.
— Nick Wrath — respondi,
voltando a olhar para a pista —, meu
irmão.
Pelo menos era o que dizia
nosso sangue — ou parte dele. Eu não
considerava realmente que tinha um
irmão. Nicholas parou bem cedo de agir
como tal. Então, traiu a mim e aos
nossos amigos. Escolheu ser Hive em
vez de Nick. Era um covarde, afinal.
— Que relação amigável a de
vocês. — Ironia escorreu de seu tom de
voz. — Aquela conversa foi mesmo
muito fraternal.
Eu não pude evitar rir. Raven
brava era atraente, mas Raven sarcástica
era inexplicável.
Ela me olhou com o cenho
franzido por um par de segundos antes
de desviar o olhar para a frente.
— Normalmente as coisas entre
nós são mais feias do que aquilo —
expliquei, mas ela não insistiu no
assunto, apenas murmurou uma resposta
monossilábica que esbanjava
desinteresse.
— É bom que saiba que eu só
aceitei essa carona por sentir pena dos
meus pés.
Dei um riso nasalado, meus
olhos seguindo o caminho de suas
pernas pálidas até os tornozelos sobre o
assoalho do carro. A pele ainda estava
marcada em vermelho pelas tiras das
sandálias.
Eu realmente não esperava que
ela desse o braço a torcer. Afinal, a
garota parecia ser muito orgulhosa.
— É mesmo? Como vou me
recuperar de tamanha decepção? —
brinquei, também utilizando do recurso
preferido de Raven, a ironia. — Pensei
que você estivesse desesperada para
desfrutar da minha adorável companhia
nesse longo e turbulento trajeto.
Raven levantou uma
sobrancelha em julgamento e ergueu o
queixo.
— Você é uma piada.
Sorri.
Em pouco tempo, parei o carro
no estacionamento em frente aos prédios
do alojamento da Universidade. Me
recostei contra o banco de couro e
cruzei os braços, fitando Raven apanhar
seus sapatos jogados no assoalho e abrir
a porta.
— Não vai me agradecer pela
gentileza? — perguntei, ela rolou os
olhos e bateu a porta. Raven se inclinou
para baixo e me olhou pelo espaço da
janela abaixada.
— Da próxima vez você pode
enfiar sua gentileza em você-sabe-onde.
— Sorriu irônica antes de se virar e sair
andando. Com uma das mãos ela
segurava as sandálias, pisando descalça
sobre o asfalto.
— Tenha uma boa noite, amor
— provoquei, elevando o tom de voz
para que ela me escutasse. Raven apenas
se virou para me mostrar o dedo do
meio e continuou andando em direção
aos dormitórios.
Eu estava precisando beber,
por isso o próximo lugar no qual eu
parei foi o Pandemônio. Não havia
nenhum bar naquela cidade melhor do
que o meu.
Quando entrei no lugar já
passava da meia-noite, mas ainda estava
lotado. Era sábado, afinal. Todos
estavam desesperados para encher a
cara e esquecer de suas vidas
miseráveis.
Fiona trabalhava ágil atrás do
bar, preparando as bebidas e servindo
mesas. Alec a ajudava, já que era a
folga de Raven e estávamos com uma
garçonete a menos. Nesses momentos,
quando eu observava o caos em que o
Pandemônio se encontrava, me
arrependia de ter perdido Sophie.
Aquela deveria ser uma das minhas
regras, não dormir com as garçonetes.
No final, Sophie queria muito mais de
mim do que eu poderia lhe dar, então as
coisas ficaram complicadas e ela deu o
fora antes que seu coração se partisse. O
sexo valera a pena, ao menos.
Acenei com a cabeça na
direção de Alec, cumprimentando-o
quando passei por ele, e fui direto para
um dos bancos livres no bar. Cruzei os
braços sobre o balcão de madeira,
observando Fiona servir uma dose de
absinto para o homem ao meu lado.
Assim que ela me olhou, nem disse
nada, apenas encheu um copo com meu
uísque preferido e empurrou-o na minha
direção. Dei um bom gole e me voltei
para a bartender.
— Obrigado por avisar que a
besta estava à solta na cidade — falei,
fazendo Fiona rir e cruzar os braços.
Eu mal acreditei quando ela me
telefonara dizendo que meu irmão estava
de volta. Ele fora corajoso o bastante
para aparecer no Pandemônio — e em
Carmine, na verdade. Instantes depois,
foi Khalil quem ligou para dizer que o
desgraçado estava aos arredores do
campus. Percorri cada rua tentando
encontrá-lo. E, quando finalmente
consegui, me surpreendi com a cena de
ele aterrorizando Raven com sua
motocicleta patética.
Tomei o resto da bebida de uma
só vez e Fiona me serviu mais uma
rodada.
— O que vai fazer com ele? —
perguntou, estreitando os olhos para
mim.
Bufei alto.
— Estou cansado de ter que
lidar com ele. Frederik deveria fazer
algo, pra variar.
Fiona me lançou um olhar de
desaprovação e me arrependi no mesmo
instante por aquelas palavras.
— Você não quer isso de
verdade, Hades — contrariou ela. —
Seu pai é cruel e injusto.
Ela estava certa.
Passei minha vida inteira
tentando proteger meu irmão caçula das
garras de Frederik e, embora estivesse
furioso com Nicholas, não desejava
realmente que meu pai se envolvesse.
Desde que Frederik descobrira que Nick
não era seu filho legítimo, após minha
mãe confessar o adultério pouco antes
de morrer, estava fingindo que ele não
existia. E era melhor continuar assim.
— A culpa é exclusivamente de
Garrett Voich — continuou ela. — Ele
manipulou Nick da mesma maneira que
faz com todos os outros Daggers.
— Nick é igual a ele agora.
Pensar nos Daggers fazia um
gosto amargo invadir minha boca.
Mesmo antes do Pandemônio existir,
eles já estavam lá, assolando Carmine.
Destruíam tudo o que tocavam, como
uma praga.
— Não, não é. Ele se
arrepende, Hades, ou então não teria
desertado dos Daggers e ido embora.
— Talvez se arrependa disso,
mas ainda quer se vingar de mim. Só não
sei o que ele queria com Raven.
— O que ele poderia querer?
Ela é só uma garçonete. — Desviei o
olhar, mas o gesto não passou
despercebido por ela. Fiona me
conhecia bem demais para ignorar
aquilo. — O que você não está me
contando, Hades?
Muitas coisas, mas a principal
delas tinha a ver com Raven Clarke.
Ainda não tinha falado sobre a garota
com ninguém do Pandemônio, porque
queria ser cauteloso e não envolvê-los
no caminho do meu pai. Eu não
costumava guardar segredos da minha
melhor amiga, porém.
— Raven não é só uma
garçonete.
— Imaginei que não, pela
forma como você reagiu. Quem ela é?
— Não posso dizer, preciso
que confie em mim.
Eu não sabia ainda se a
conexão de Raven com a máfia do Texas
era conhecida por Nick, mas precisava
garantir que, caso não fosse,
permanecesse assim. Raven era uma
peça importante e se Nick ou Garrett
soubessem que ela estava em Carmine,
tinha certeza de que iriam entregá-la
para Joel McKinley em troca da
recompensa obscena que ele estava
oferecendo por ela. Ele daria dinheiro e
poder a quem levasse de volta sua filha,
que sabia demais para o próprio o bem.
E isso era tudo o que os Daggers
precisavam para serem capazes de
destruir o Pandemônio de uma vez por
todas.
Eles estavam fracos desde a
última vez, quando mandei pra cadeia
pelo menos um terço dos seus homens e
destruí a sede de seu motoclub.
Desapareceram por um tempo, mas
ainda estavam escondidos em algum
lugar de Carmine, apenas esperando a
oportunidade certa para agir.
Mas eu me perguntava: e se
Nick não soubesse sobre Raven? Por
qual outro motivo estaria a seguindo
naquela noite? Eu sabia que ele não
pretendia atacá-la. Meu irmão era um
canalha, mas nunca seria capaz disso.
— Sabe que eu confio —
respondeu Fiona após um suspiro. —
Tem outro problema, Selina estava com
Khalil. Ela já deve saber que Nick
voltou. Provavelmente está surtando
agora.
Foi minha vez de suspirar.
Hive mal tinha voltado e já
estava causando problemas demais.
Puxei meu celular do bolso e
digitei uma mensagem para a Selina,
perguntando onde ela estava. A resposta
não demorou para vir e não me
surpreendeu. Ela estava em meu
apartamento. Definitivamente, era
melhor do que fazendo alguma besteira
em algum outro lugar.
— Não a deixe ficar entre
vocês dois de novo. Os problemas entre
Nick e Selina são da conta deles apenas.
— Não se ele continuar sendo
um babaca com ela — contrariei, me
levantando. — A gente se vê, Fiona.
Acenei para ela, me virei e saí.
Os problemas com Nick
existiam há muito tempo, mas quando ele
envolveu Selina na equação, foi a gota
d'água pra mim. O resto que faltava para
o caos, eu mesmo implantei. Ela era
minha amiga. Crescera conosco,
presenciando todas as coisas horríveis
que envolviam a família Wrath, e
sempre ficou do meu lado. Ele iria
destruí-la se eu não tivesse me
envolvido.
Entrei no Camaro e dirigi para
meu apartamento. Com Alec no bar e
Khalil na GZP, a cobertura deveria estar
vazia e eu poderia conversar em paz
com Selina.
Tirei os sapatos no hall de
entrada e os coloquei alinhados sob o
aparador. Tirei também a jaqueta,
jogando-a sobre a ilha da cozinha junto
ao molho de chaves.
Tudo em minha casa era
perfeitamente organizado. Eu prezava
por aquilo. Era parte da obsessão por
controle que eu herdara de Frederik.
Subi as escadas de meias,
desejando desesperadamente tomar um
banho frio. Fui diretamente para a minha
suíte, porque eu sabia que era lá que
Selina estaria.
Não me surpreendi ao encontrá-
la deitada em minha cama. Ao lado, na
pequena cômoda, uma garrafa de vodca
jazia pela metade. Selina usava lingerie
preta de renda semitransparente,
expondo sua pele rosada que se moldava
sobre as curvas de seus quadris e seios.
A maquiagem estava borrada em seu
rosto, denunciando que estivera
chorando.
— Aquele desgraçado voltou
— ela falou. Tirei o relógio do meu
pulso e o coloquei sobre a cômoda.
Selina soltou um muxoxo.
Entre nós dois havia só sexo,
mas entre ela e Nick as coisas foram
piores. A grande estátua de gelo de
cabelos vermelhos entregou seu coração
à pior pessoa no mundo além de mim.
Depois que ele se foi, não nos
importamos em usar um ao outro como
distração. Era assim que tudo
funcionava entre nós e estávamos bem
com aquilo. Eu nunca poderia dar mais
do que isso para ninguém, de qualquer
forma.
Contudo, talvez fosse melhor
reverter nossa amizade colorida. Tudo
estava prestes a ficar muito complicado
e eu não queria que ela se ferisse ainda
mais.
— Mas não vamos falar sobre
esse imbecil hoje, sim? — continuou
ela, se levantando e vindo até mim.
Olhei em seus olhos cor de
oliva enquanto ela se aproximava,
colocando as mãos em meu peito.
Balancei a cabeça.
— Vá para casa, Selina. As
coisas tendem a não terminar bem
quando tanto sentimento está envolvido
— a interrompi de sua tentativa falha de
arrancar minha blusa e me afastei,
cruzando o quarto até a porta do
banheiro. — Vou chamar um táxi.
Retirei o celular do bolso de
trás da calça, mas fui parado por sua
mão agarrando meu braço.
— O que foi? Por que não
quer? — Levantei uma sobrancelha,
encarando-a. Selina estava bêbada e
chateada. Amanhã não lembraria de
nada do que disse. — É por causa da
garçonete, não é? Você está agindo
estranho desde que ela apareceu.
— Você não sabe do que está
falando, Selina — respondi, impassível.
— O quarto de hóspedes está disponível
pra você passar a noite. Vá descansar,
foi um dia longo para todos nós. — Fiz
menção novamente de me virar, mas a
ruiva entrou na minha frente.
Selina não poderia saber sobre
Raven. Ela era leal a mim, mas eu já
previa o que ela diria se soubesse de
tudo. A forasteira era problema, poderia
causar a guerra que eu estava evitando
há anos. Eu precisava calcular muito
bem os movimentos ao redor dela, ou
acabaria estragando tudo.
— Me diz, Hades, isso tem a
ver com a ligação do McKinley?
O Pandemônio sabia apenas
que uma garota fugira da máfia do Texas,
levando com ela muitos segredos
importantes. Mas, se eu bem conhecia a
mente engenhosa de Selina, diria que ela
estava prestes a ligar todos os pontos.
Além disso, Frederik já havia feito sua
escolha, eu precisava agora reduzir os
danos consequentes dela. Ter o
Pandemônio envolvido na situação
apenas pioraria tudo.
— Esqueça esse assunto —
falei, sério, olhando firme em seus
olhos. Ela obedeceu e não insistiu, mas
também não se afastou. Estava
determinada a conseguir o que queria.
— Você me amava? — mudou
de assunto, amaciando a voz feito
veludo. — É por isso que brigou com
Nick?
Seus lábios alçaram meu
pescoço, onde ela distribuiu beijos até o
maxilar. Em momentos como aquele,
Selina queria apenas duas coisas: briga
ou sexo. Provavelmente, naquele
instante ela desejava ambos. Segurei-a
pelos ombros e a afastei devagar,
estreitando meus olhos para ela.
Quando meu irmão a magoou e
partiu, Selina e eu bebemos e transamos
todas as noites por pelo menos um mês.
Queríamos nos afogar um no outro e
esquecer nossas vidas. Fomos uma boa
distração por um tempo. Olhando agora
para a situação, percebi que aquilo tinha
sido um erro.
O que fizemos durante todo
aquele tempo não a ajudou a superar,
apenas piorou tudo. Dormir com o irmão
do seu namorado traidor podia parecer
uma boa vingança, mas não quando se
repetia com frequência. Provavelmente,
Selina sempre voltava porque eu era a
última ligação entre ela e meu irmão.
— Vá para seu quarto, Selina
— repeti, firme.
A ruiva deu um passo para trás,
me olhando como se estivesse,
finalmente, caindo em si. Se ela se
lembrasse daquilo amanhã, sentiria
raiva de si mesma. Selina não era assim.
Ela era orgulhosa e independente,
odiava demonstrar vulnerabilidade.
Entrei no banheiro e fechei a
porta. Tomei um longo banho gelado
para esfriar a mente.
Fiona estava certa, no fim das
contas. Mesmo que Selina tivesse uma
parte significativa na história, o conflito
entre Nick e eu começara bem antes de
eles ficarem juntos. Nós nos arruinamos
sozinhos e precisaríamos resolver
aquilo sozinhos também.
Depois de terminar e sair com
apenas uma calça de moletom e os
cabelos molhados caindo na testa, me
deparei com Selina dormindo
confortavelmente enrolada em minha
cama. Suspirei e me aproximei,
pegando-a no colo e saindo para o
corredor do segundo andar do
apartamento. Caminhei com ela em meus
braços até a última porta, onde entramos
no quarto de hóspedes. Coloquei-a
delicadamente sobre a cama e a cobri
com o edredom. A observei se
acomodar sobre o travesseiro, jogando
os longos cabelos vermelhos para trás.
Mesmo que parecesse
demasiadamente cruel às vezes, Selina
era minha amiga e eu odiava Nick por
ter quebrado seu coração.
Quando fiz menção de sair,
ouvi sua voz embolada.
— Não deixe eles descobrirem.
Me virei, estreitando os olhos
para olhá-la sob a penumbra.
— O quê?
— Hades Wrath tem um
coração.
Ri nasalado, indo até a porta.
Me detive sob o batente, fitando Selina
uma última vez.
— Há controvérsias sobre isso.
Qualquer lugar que você
quiser que eu te leve, eu vou
Mas há coisas sobre mim que
você simplesmente não sabe
Se eu te dissesse onde eu
estava
Você ainda me chamaria
querido?
E se eu te contasse tudo
Você me chamaria de louco?
Dark Star - Jaymes Young
Um mês antes
Eu estava cansada.
Mais do que isso, estava
exausta.
Minha última refeição fora no
dia anterior, hambúrguer e fritas. O sul
do país nunca esteve tão quente e com
aquele sol escaldante sobre mim ficava
difícil percorrer longas distâncias.
Ainda assim, eu tentava caminhar,
porque não poderia gastar todo o
dinheiro que havia roubado de Joel em
transporte, ou depois não conseguiria me
manter em Carmine. E eu não queria
chegar implorando ajuda para Stephen,
meu orgulho era maior do que isso.
Queria ter dinheiro o suficiente para me
sustentar na universidade até arrumar um
emprego — o que eu esperava que não
demorasse.
Assim que desci do quarto
ônibus, me vi em alguma cidade
aleatória do centro-oeste do Novo
México, sem dinheiro para um quinto
ônibus que me levaria até o Arizona.
Estava andando por estradas de terra
desérticas desde então, tentando chegar
à interestadual. Com sorte, lá eu
conseguiria carona com alguma alma
bondosa. Ou então, poderia me oferecer
para lavar pratos em qualquer
restaurante de beira de estrada, apenas
em troca de uma refeição ou de alguma
grana extra.
Apesar de cansada, não me
arrependia de ter fugido de casa. Não
importava o tipo de vida de merda que
me esperasse fora de Dallas, qualquer
coisa seria melhor do que o lugar onde
eu havia crescido. Mesmo que para isso
eu precisasse andar pelo deserto do
Novo México esperando a desidratação
ou a insolação — o que viesse
primeiro.
Em frente, a menos de um
quilômetro de distância, vi o que
parecia ser um posto de gasolina.
Consegui sorrir. Segurei com mais
firmeza a alça da mochila de couro em
minhas costas e comecei a caminhar com
mais determinação. Assim que me
aproximei, entretanto, percebi que
aquele lugar já estava abandonado há
muito tempo. A fachada estava caindo
aos pedaços. As janelas da loja de
conveniências estavam quebradas e,
através do vidro sujo e estilhaçado, eu
podia ver as dezenas de prateleiras
completamente vazias lá dentro.
Dei um longo suspiro, levando
a mão à nuca.
Me perguntei se Joel já havia
enviado seus homens atrás de mim. Eu
daria tudo para ver sua cara ao perceber
que eu tinha sumido. Provavelmente, ele
não se importaria com o que acontecesse
comigo, mas Connor sim. Ele sabia que
eu era valiosa, que poderia acabar com
seu império.
Arrastei os coturnos em meus
pés até o meio fio e me sentei na beira
da estrada completamente desértica, sob
a sombra que a cobertura do posto de
gasolina fornecia. Estava ofegante, com
os músculos doendo, precisava
descansar por um momento.
Retirei de dentro da bolsa o
toco quebradiço do que restara de um
lápis de carvão e o meu inseparável
caderno de desenhos. Abri numa página
em branco aleatória e comecei a
desenhar.
Havia um deserto de terra
vermelha, exatamente como aquele ao
meu redor, com montanhas pontiagudas
no horizonte e um céu muito azul e nada
esperançoso. Na verdade, tudo o que eu
queria naquele momento era um belo
manto de nuvens cinzentas sobre a minha
cabeça. No centro do desenho estava
uma garota, dava pra ver suas pernas
finas pelos shorts jeans gastos que ela
usava. Pernas ossudas e tornozelos finos
que terminavam num par de botas de
couro. Cabelos desgrenhados e cheios
de nós e olhos fundos e vazios. Ri ao
observá-la.
Ela era realmente uma
desgraçada sem sorte.
Foi logo em seguida que ouvi o
primeiro som após horas de um silêncio
perturbador. Era o barulho do motor de
uma motocicleta. Levantei o rosto,
colocando uma mão reta acima dos
olhos, na linha das sobrancelhas, para
que eu pudesse enxergar sem os fortes
raios solares atrapalhando. A moto logo
entrou em meu campo de visão. Era uma
daquelas grandes, pretas e reluzentes,
com detalhes em metal.
Pensei em me levantar e
sacudir os braços, pedindo ajuda feito
uma náufraga para o primeiro sinal de
vida que eu via em pelo menos seis
horas de caminhada. Não foi necessário,
entretanto, pois ele logo diminuiu a
velocidade e parou bem à minha frente.
Só então percebi que poderia
ser uma péssima ideia. Era um cara
desconhecido encontrando uma garota
jovem e sozinha no deserto. Eu não
precisava ter assistido a um só filme de
terror — ou a um noticiário sequer —
para saber que as chances daquela
situação terminar muito mal não eram
pequenas. Embora fosse difícil de
acreditar, haviam pessoas no mundo
piores do que Joel e Connor.
Mordi o interior da bochecha,
olhando ao redor. Se eu me visse numa
situação de risco, não havia para onde
fugir, nem ninguém para me ajudar.
Estava cercada por um deserto
escaldante e uma estrada reta e solitária,
que desaparecia no horizonte rochoso.
Me odiei um pouco por não ter
conseguido roubar nenhuma arma e
esconder na minha mochila junto com o
dinheiro que peguei do quarto de
Connor. Não teria como me defender se
fosse atacada.
Alternei meu olhar para o
homem em cima da motocicleta, poucos
metros à minha frente. Ele usava uma
regata de malha branca desfiada nas
mangas, revelando braços grandes,
musculosos e bronzeados. Algumas
tatuagens serpenteavam por seus bíceps.
Engoli em seco enquanto ele tirava o
capacete. O cara não parecia ser muito
mais velho que eu. Vinte e poucos anos,
provavelmente. Os cabelos eram
compridos, alguns centímetros acima de
seus ombros. O maxilar estava
escondido por uma barba cheia e as
maçãs do rosto eram esculpidas de
maneira proporcional.
Seu rosto brilhava em suor, o
nariz e as bochechas meio avermelhados
por causa do sol. Seja lá quem fosse,
estava na estrada no deserto há tanto
quanto eu. Parecia igualmente cansado.
— Precisa de ajuda aí, menina?
— perguntou, com a voz grave feito um
trovão.
Levantei uma sobrancelha em
sua direção.
Menina?
Me coloquei de pé, batendo as
mãos contra os shorts para me livrar da
terra e poeira do chão. Cruzei os braços
e o analisei por mais alguns segundos.
Ele era bonito. Bonito feito um modelo,
e com um carregado sotaque sulista feito
o meu. Assim que me aproximei um
passo, ele tirou os óculos escuros estilo
aviador que usava, e pude perscrutar
seus olhos arredondados.
Não era tão intimidador, apesar
de talvez ele querer parecer assim.
— Você é surda ou algo do
tipo? — voltou a perguntar, aumentando
o tom de voz até quase berrar.
Mesmo que ele não fosse um
psicopata assassino, concluí, era
extremamente hostil e mal-humorado.
— Não — gritei de volta. —
Eu escuto muito bem.
— Não vai me responder?
Precisa de ajuda?
Bufei.
— Acho que não de você —
retruquei, cogitando permanecer ali no
meio do nada em vez de aceitar alguma
ajuda daquele homem.
O desconhecido me
surpreendeu ao sorrir com a minha
resposta. Ele cruzou os braços sobre o
painel da moto.
— Quer uma carona? —
ofereceu, relaxando a voz e a expressão
em seu rosto. — Para onde está indo?
Talvez eu devesse mentir,
certamente seria o mais seguro. Ainda
assim, a possibilidade de ele estar
sendo honesto e me levar para o meu
destino fez meus olhos brilharem de
esperança e expectativa.
— Carmine, Arizona —
respondi com sinceridade.
— Você está bem longe de seu
destino, huh? Essa rota é conhecida
como a Jornada Del Muerto, sabe o que
isso significa?
Trinquei o maxilar.
Com certeza não poderia ser
algo bom.
— Pode me dar uma carona ou
não?
Ele ponderou por alguns
instantes antes de dar de ombros.
— Sobe aí. — Jogou o
capacete na minha direção. Me
atrapalhei para apanhá-lo no ar, mas
consegui segurar o objeto firme em
minhas mãos. Levantei a cabeça para
fitá-lo novamente.
Parecia muito com uma cilada,
mas não me permiti pensar muito sobre
isso. Eu estava desesperada e acabaria
morrendo e sendo devorada por abutres
caso continuasse vagando pelo deserto.
Recolhi minhas coisas do chão,
enfiando tudo na mochila, e andei rápido
em direção à moto. Coloquei o capacete
e subi em sua traseira.
— Qual o seu nome? —
perguntou, olhando-me por sobre o
ombro. De perto eu podia ver como íris
eram de um castanho profundo.
— Raven — respondi,
engolindo em seco. — E o seu?
— Nicholas. Nick.
— Legal — falei, sentindo
minhas mãos suarem com o nervosismo
da situação. — Obrigada pela carona.
— Acho que sua sorte acabou
de mudar, Raven.
Depois disso não houve tempo
para eu dizer mais nada. Nick arrancou
com a moto e fui obrigada a segurar em
seu corpo para não cair para trás. Era
óbvio que ele gostava de pilotar sua
máquina de maneira insana. As rodas
praticamente voavam sobre a estrada, o
deserto passando como um borrão ao
nosso redor.
Eu fiquei dividida entre fazer o
trajeto todo com os olhos fechados,
temendo meu destino na garupa daquele
estranho, ou prestar muita atenção em
cada curva que ele dava com sua moto,
para ter certeza de que estávamos indo
para onde ele prometera. Me acalmei
quando Nicholas saiu da pequena
estrada desértica e finalmente entrou na
interestadual, que era muito mais
movimentada e menos assustadora.
Talvez no fim da noite eu já estivesse no
Arizona.
Quando finalmente paramos, no
pôr do sol, não foi num abatedouro ou
no meio do mato onde ele pudesse me
esfolar, foi num restaurante perto de uma
cidadezinha, cuja existência eu
desconhecia. Apesar disso, o restaurante
estava lotado. Tinha cheiro de fritura e
cerveja barata, mas não me importei.
Estava faminta.
Pegamos uma mesa perto das
janelas e ele me disse para pedir o que
quisesse. Foi inevitável me sentir
desconfiada por sua gentileza. Não eram
muitas pessoas que estariam dispostas a
fazer aquilo por uma completa
desconhecida.
Não fiz cerimônia, porém. Pedi
um prato com um grande filé e uma
porção de fritas com refrigerante. Nick
não fez nenhuma observação sobre como
eu poderia comer um boi inteiro se visse
um na minha frente naquele momento,
mas tenho certeza que pensou isso.
— Então, menina, de onde você
vem? — perguntou, puxando assunto.
Rolei os olhos.
— Quer parar de me chamar de
menina?
— Quer responder às minhas
perguntas? — devolveu ele.
Bufei, me recostando contra o
estofado macio do assento.
— Texas — respondi,
genericamente. — E você?
— Carmine, na verdade. —
Levantei uma sobrancelha, surpresa. —
Você ficaria surpresa em saber como
esse mundo é pequeno, Raven.
— O que você estava fazendo
na Jornada Del Muerto se mora no
Arizona?
— Não moro no Arizona. Não
mais.
— E por que está voltando para
lá? — Fiz um monte de perguntas de
propósito. Queria testá-lo e saber se
realmente dizia a verdade. Nick não
parecia ter nada a esconder, contudo.
— Tenho negócios inacabados
a resolver com meu irmão — falou,
fechando o semblante.
— Não parece muito feliz com
a ideia de revê-lo — observei,
inclinando a cabeça. Ele desviou o olhar
na direção da janela, parecendo
pensativo de repente.
— Realmente não estou —
concordou com um aceno de cabeça. —
Tudo o que quero é acabar com aquele
desgraçado.
Depois daquilo, Nick mudou de
assunto de uma maneira abrupta que
deixou claro que ele não queria
continuar falando sobre seu irmão. Eu,
mais do que ninguém, sabia o quão
complicadas podiam ser as relações
familiares. Assim, não insisti no assunto.
— Você parece estar em busca
de algo — Nick constatou, roubando
uma batata frita do meu prato. Torci o
nariz para sua atitude, mas não o
repreendi.
— Um recomeço,
principalmente. — Dei de ombros antes
de acrescentar: — E uma vida melhor,
espero.
Ele se debruçou sobre a mesa,
projetando o corpo para frente para me
analisar de perto. Não sabia o que ele
estava procurando em meus olhos, mas
também não perguntei.
— Quer fugir do seu passado,
não é? Vou logo te avisando que isso não
vai funcionar, ele sempre vai voltar para
te assombrar. Tem que enfrentá-lo de
uma vez.
Estreitei meus olhos para ele.
— E o que você busca?
— Vingança.
Ele não titubeou antes de dizer
e pareceu saborear o gosto daquela
palavra. Um arrepio percorreu minha
espinha e eu vacilei, me distanciando até
minhas costas colarem no estofado.
Mesmo sem conhecê-lo, sua
determinação sombria me assustou como
o inferno.
Isto é o que acontece quando
eu penso em você
Eu tive que mudar meus jeitos
de jogar, ficou meio complicado pra
mim
É por isso que eu digo as
coisas que digo
Desse jeito eu sei que você não
pode me ignorar
Então me dê tudo de você em
troca de mim
Exchange - Bryson Tiller
Atualmente
Libby e George me
acompanharam até o campo do time de
futebol americano da Universidade de
Carmine. A noite estava quente quando
chegamos lá. As arquibancadas estavam
lotadas. Não havia realmente muito o
que fazer naquela cidade, de modo que
todo entretenimento por ali era baseado
nos bares e nas festas e corridas do
Círculo.
— Eu odeio futebol —
reclamou George pela terceira vez,
fazendo-me revirar os olhos enquanto
subíamos as escadas para ocupar
assentos vazios.
Os grandes postes ao redor
irradiavam uma luz branca que
abrandava o breu do céu sem estrelas.
As pessoas estavam animadas esperando
pelo jogo de abertura da temporada de
futebol. Alguns torcedores da
Universidade estavam usando a camiseta
vermelha com o desenho da águia,
símbolo do time.
Me sentei na ponta da fileira e
Libby estava entre George e eu. Os dois
rapidamente iniciaram uma conversa
sobre um assunto aleatório e eu varri
meu olhar ao redor do campo,
procurando por Hades. Ele não parecia
estar em lugar algum, contudo.
Provavelmente, eu teria que esperar
para descobrir o porquê de estar ali.
— Você vai assistir à corrida
da Clarke no Círculo nesta sexta? —
Libby perguntou a George.
Eu estava tentando não pensar
naquilo, ou então ficaria mais do que
nervosa. A ideia de todos assistirem à
forasteira inexperiente disputar contra
um Dagger numa corrida era
assustadora.
— Claro, preciso me certificar
de que ela não será esmagada.
Não pude evitar rir.
— Uau, obrigada pelo voto de
confiança em mim.
George apenas sorriu, voltando
seu olhar para frente quando as líderes
de torcida entraram em campo para
darem início a partida. Elas pareciam
todas iguais vestidas com o uniforme
vermelho com detalhes em preto. Logo
os Red Hawks apareceram. Não foi
difícil localizar Lane, ele foi o primeiro
a entrar. Estava vestido de preto e
acenava para os torcedores que gritavam
seu nome.
Nesse exato momento, meu
celular vibrou contra o bolso do meu
jeans. Peguei-o e verifiquei a tela,
percebendo que o número que
telefonava não estava salvo nos
contatos.
Atendi rápido, desejando que
fosse a minha mãe do outro lado da
linha. No entanto, o que ouvi foi uma
voz grave e masculina.
— Raven?
Franzi o cenho.
— Nick? Tudo bem?
Ouvi ele dizer algo, mas não
consegui compreender uma só palavra
devido a intensa gritaria da multidão.
Praguejei antes de tampar o
outro ouvido.
— Eu não entendi, pode
repetir?
Ainda era impossível saber o
que ele falava do outro lado. Então
apenas me levantei e desci das
arquibancadas, saindo do campo em
direção ao estacionamento. Respirei
aliviada quando o barulho reduziu
gradativamente até que eu pudesse
identificar as palavras proferidas por
Nick.
— Raven — repetiu ele —,
preciso falar com você. Pode vir até o
trailer?
Havia algo em sua voz. Um tom
demasiadamente sério que eu nunca o
tinha visto usar.
— Agora?
— Sim, menina, agora.
— Não pode apenas dizer
sobre o motivo dessa urgência?
Antes que ele pudesse
responder, entretanto, sirenes soaram
cada vez mais altas até que as luzes
vermelhas e azuis do sinalizador
giroflex entraram no meu campo de
visão. Estreitei os olhos, incrédula
quando as três viaturas de polícia,
seguidas de um Camaro preto,
estacionaram em frente ao campo.
— Preciso ir — informei ao
telefone, sem tirar os olhos dos policiais
cruzando o estacionamento.
Assim que encerrei a chamada,
vi Hades saindo de seu carro e andando
ao lado do que parecia ser o chefe de
polícia de Carmine, na direção da
entrada do campo. Os policiais fardados
passaram reto por mim. O delegado, um
homem de meia idade, careca com barba
ruiva desbotada, por sua vez, me mediu
dos pés à cabeça antes de seguir seus
subordinados para dentro do estádio.
Hades parecia tranquilo, as mãos nos
bolsos da calça preta que usava.
— Me diz que isso tudo é para
o Lane — falei. Ele deu um sorriso
torto.
— Vai ser um espetáculo. Não
acha?
Me virei, desviando os olhos
para o campo atrás de nós. Não pude
deixar de abrir um sorriso enorme ao
ver Lane Scott ser algemado no meio de
centenas de pessoas chocadas.
Então, algo passou pela minha
cabeça. Franzi o cenho, voltando-me
para Hades.
— Alina aceitou denunciá-lo?
Ele deu um longo suspiro antes
de balançar a cabeça.
— Ele está sendo preso por
tráfico de drogas.
Aquilo não fazia sentido.
— O quê? Como? Pensei que
você comandasse o tráfico em Carmine.
— Eu comando. É por isso que
consegui criar provas de Scott tentando
encomendar drogas para as festas da
Gama Zeta Phi.
Percebi que, para denunciar
Lane por violência doméstica, Alina
precisaria se expor e passar por um
processo realmente difícil. Então, Hades
mexeu os pauzinhos para que ele fosse
preso, mesmo que não fosse pelo crime
que ele merecia.
Wrath percebeu a compreensão
invadir meu semblante.
— Os fins justificam os meios.
— Ele não vai conseguir se
livrar dessa? — perguntei, aflita.
— Vou garantir que não.
Acenei com a cabeça,
determinada a acreditar naquilo.
— Eu nem uso drogas, porra.
Tenho que fazer o teste antidoping todo
mês pra participar do time de futebol.
Vocês estão me ouvindo?! — A voz
alterada de Lane se aproximando atraiu
minha atenção. Ele estava algemado e
sendo direcionado para fora do campo
por um policial. Ao entrar no meu
campo de visão, Lane notou minha
presença. Logo seu rosto se retorceu em
ódio.
— Você tem algo a ver com
isso, não tem?!
Ele parou na minha frente, o
homem fardado ao seu lado trocando
olhares com Hades. Dei um passo na
direção de Lane, pensando em como ele
sempre pareceu patético com sua
arrogância. Olhei fundo em seus olhos
castanhos, sem remorso, lembrando dos
hematomas no corpo e na mente de
Alina. Não pude evitar quando levantei
a mão e atingi seu rosto com um tapa
forte.
Sua bochecha ficou
instantaneamente vermelha, mas não era
nada comparado ao que ele merecia.
— Sua cadela desgraçada!
Ele se debateu contra o
policial, tentando avançar em minha
direção. O homem fardado o segurou
firme e o puxou para longe, em direção
às viaturas. Segurei a mão direita contra
o peito, sentindo minha palma arder. A
satisfação que me inundava, entretanto,
só crescia enquanto eu assistia Lane ser
colocado no banco de trás e levado.
Então, Hades começou a rir. O
encarei.
— Nossa, amor, você é muito
boa em bater nas pessoas. Deveria fazer
isso mais vezes.
Olhei para minha mão, estava
vermelha e formigando. Hades a
apanhou e a avaliou com seu olhar
analítico.
— Tente bater com a mão
fechada, na próxima — sugeriu, ainda
inspecionando.
Entreabri os lábios, facilitando
a respiração enquanto o observava
concentrado. O toque dele na minha pele
atingia diretamente algo dentro de mim,
fazendo com que pura adrenalina fosse
injetada em minhas veias. Era a mesma
sensação de estar em um lugar muito
alto, olhando diretamente para a queda
abaixo de mim: um frio na barriga
intimidador e atraente.
Pigarreei, recolhendo minha
mão para longe dele.
— Zora está me ajudando
nisso. Ela é muito boa.
Hades me olhou, umedecendo
os lábios com a língua antes de sorrir.
— Sim, ela é.
Mordi o interior da bochecha,
sem saber ao certo o que dizer para
quebrar o silêncio constrangedor que
caiu sobre nós. Contudo, não foi
preciso, uma vez que a agitação de
dentro do campo atraiu nossa atenção.
Virei o rosto, vendo algumas pessoas
saindo das arquibancadas. O jogo, ao
que parecia, iria continuar.
George e Libby foram alguns
dos poucos que saíram, vindo
diretamente até mim assim que me
localizaram.
— Caramba, o que diabos
acabou de acontecer? — George
perguntou, mas pareceu ter sua resposta
assim que reparou na figura de Hades
parada ao meu lado.
— Olá, primo — cumprimentou
Wrath, acenando com a cabeça.
— Raven — chamou Libby e eu
me virei para ela. — Temos que falar
com a Alli.
Assenti.
Não sabia o que Nick desejava,
mas não podia dar as costas a Alina
numa situação tão complicada como
aquela. Eu esperava que o assunto que
ele pretendesse tratar pudesse aguardar
mais algumas horas.
Por fim, segui meus amigos,
dando um último olhar na direção de
Hades antes de me distanciar
completamente.
Se você fosse quem eu achei
que você fosse
Você não teria feito isso
Eu pensei que eu tinha feito
algo
Mas você faria qualquer coisa
Para me derrubar
$TING - The Neighbourhood
Sobreviva.
Com amor, mamãe.
Atualmente
— Desse jeito você vai acabar
quebrando os copos — ralhou Fiona
quando eu depositei de maneira bruta a
louça no balcão.
Revirei os olhos para seu
comentário.
Era o fim do turno e eu mal
podia esperar para sair dali. Desde que
tudo pareceu ser destruído por Nick
Wrath na noite passada, meu humor
estava indo de mal a pior. Mais do que
tudo, eu estava brava comigo mesma por
ter confiado e acreditado nele. Agora me
sentia uma tola por isso.
Bufei, sentindo-me cansada e
estressada.
A corrida seria no dia seguinte
e eu não estava preparada para o que
estava por vir.
— Vai dar tudo certo. — Fiona
tentou me reconfortar, debruçando-se
sobre o balcão para olhar-me
diretamente. — Hades não vai deixar
você perder.
Eu não sabia mais se podia crer
nisso, ou em qualquer outra coisa vindo
deles. Talvez eu não devesse perder a
confiança em Hades por algo que seu
irmão fez. Afinal, ele havia conseguido
com que Lane Scott fosse preso, como
prometera. Ainda assim, era difícil não
me sentir completamente frustrada.
— Pelo bem dele, é melhor que
não deixe.
Alguns clientes ainda rumavam
para o cassino, que funcionava até às
quatro da manhã. Eu saía às onze. Fiona,
Alec, Selina e Khalil se alternavam para
tomar conta do Pandemônio no período
da madrugada. Eu estava aprendendo
cada dia mais sobre como eles
funcionavam. Eles eram bem
organizados, provavelmente por isso
conseguiram ter o monopólio das
atividades ilegais de Carmine por tanto
tempo.
Em Dallas as coisas eram
diferentes. Joel tinha muitos empregados
e os dominava pelo medo. Ele não era
um bom estrategista, era uma bomba
relógio e Connor Kamps era a única
coisa que o impedia de explodir. Meu
padrasto colocava uma bala na cabeça
de qualquer um que não seguisse
rigorosamente o que ele mandava.
Pensando bem, fora realmente um
milagre minha mãe e eu termos ficado
vivas por tanto tempo. Eu não sabia
muito sobre os Daggers, mas eles
pareciam tão violentos quanto
McKinley. Talvez até mais espertos.
E o erro de Hades
possivelmente era tê-los subestimado
por tanto tempo.
Após terminar de limpar as
mesas e pegar minhas coisas no
vestiário, saí do bar para a noite quente
que o fim de agosto reservava. Estava
pronta para ir para o dormitório e
estudar por mais uma ou duas horas
antes de dormir. No entanto, o grande
Camaro preto de Hades Wrath
estacionado ali em frente me disse que,
de alguma forma, as coisas mais uma
vez não seguiriam como eu havia
planejado.
A janela foi abaixada,
revelando a figura pálida e o sorriso
ladino do rapaz tatuado no banco do
motorista e eu imediatamente soube que
ele estava me esperando. Dei um longo
suspiro, aproximando-me do veículo.
— Quer dar uma volta? —
perguntou ele, apoiando o braço contra o
batente da janela do carro.
Levantei uma sobrancelha,
desconfiada.
— O que você está tramando,
Wrath?
O moreno passou a língua sobre
o lábio inferior, umedecendo-o antes de
deixar seu sorriso crescer.
— Entre e descubra, amor.
Suspirei e cruzei os braços,
hesitando por um milésimo de segundo.
Por fim, mesmo sabendo que
me arrependeria mortalmente, dei a
volta no carro e entrei no espaço do
carona. Estar naquele Camaro era quase
familiar para mim, e foi realmente
esquisito concluir isso.
Sem dizer mais nada, Hades
deu a partida, nos levando para longe de
seu bar e do centro da cidade. Percebi
qual era o nosso destino quando
entramos numa estrada de terra inóspita.
— Vai ter festa no Círculo
hoje? — indaguei, franzindo a testa.
— Não, mas amanhã é sua
corrida e você precisa aquecer — disse
ele, parando o carro alguns metros
depois do trailer de Nick, que, por sua
vez, estava completamente escuro e sem
sinal algum da presença dele. Me
perguntei se Hades havia se certificado
da ausência de seu irmão naquela noite.
— O que quer dizer com isso?
Hades virou o rosto em minha
direção.
— Hive pode ter estragado
minha ideia de trapacear. Agora, Kamps
vai estar esperando por isso. Mas, pelo
menos, não vamos ser pegos de
surpresa.
— O que vai acontecer? O que
Connor vai fazer?
— Provavelmente, ele fará
alguma exigência de última hora.
Levantei as sobrancelhas,
confusa.
— Pensei que eu era sua
exigência de última hora. — Hades
sorriu com o canto dos lábios.
— Meu irmão disse para
Connor exigir correr contra você porque
pensou que você fosse fraca. Pensou que
isso fosse nos desestabilizar. Ele sabe
que quando eu corro tenho meus
métodos para vencer. É perigoso e exige
técnica e experiência. Eles acharam que
você seria o alvo fácil que lhes daria
uma vitória sem esforço.
Fazia sentido, mas pensar
naquilo só me deixava com mais raiva
ainda de Nick. Ele havia me
subestimado. Na verdade, havia me
usado. Talvez, assim que soube que eu
conhecia seu irmão naquela noite em que
me seguiu de moto pelas ruas do
campus, ele tivera aquela ideia. Me usar
para atingir Hades e o Pandemônio.
Talvez o beijo e o flerte tivessem feito
parte disso também.
Trinquei o maxilar, desviando
os olhos para a paisagem completamente
escura e silenciosa que nos cercava.
Tudo o que eu desejara, quando
fugira de Dallas, era esquecer o passado
e me tornar alguém bem diferente de
quem eu costumava ser. Não queria mais
ser manipulada facilmente feito uma
marionete ou ficar à mercê das decisões
e vontades das pessoas ao meu redor.
Não queria, acima de tudo, ser
controlada.
Eu não os deixaria vencer.
Aquilo havia se tornado questão de
orgulho pra mim.
— Então, me ensine — falei,
decidida, e voltei meu olhar para Hades.
— Me ensine a correr como você.
Um sorriso genuíno apareceu
rosto inacreditavelmente belo e
esculpido de Hades. No instante
seguinte, estávamos trocando de lugar
nos assentos do Camaro. Coloquei as
mãos ao redor do volante, um pouco
incrédula que ele me deixaria correr no
seu carro absurdamente caro.
— Se Kamps for esperto, vai
pedir para escolher o carro em que você
for correr, mas ele não pode escolher um
menos potente que o dele. Eu costumava
sabotar o carro dos meus oponentes, mas
ele vai se certificar de que isso não
aconteça — Hades começou a explicar.
— Raven, você precisa saber que não
existem muitas regras nas corridas do
Círculo. É como um vale-tudo. Você tem
que estar preparada para uma colisão ou
um capotamento, porque ele vai tentar te
jogar para fora da pista a qualquer
custo.
Segurei a respiração por alguns
instantes, sentindo o medo se apoderar
de mim e arrepiar minha pele. Até
aquele momento, eu pensei que a pior
coisa que pudesse acontecer fosse os
Daggers vencerem. Agora, o risco de eu
morrer naquela corrida era real.
— Ei. — Senti o toque gelado
dos dedos de Hades contra o meu
queixo. — Você não vai se machucar,
amor. Isso está fora de questão.
Seus olhos escuros me olhavam
com intensidade, como se ele quisesse
fixar suas palavras na minha mente.
Engoli em seco antes de assentir
devagar com a cabeça.
— E se eu perder?
Ele não vacilou.
— Não vai.
Como ele podia confiar tanto
numa estranha? Eu nem mesmo gostava
dele — ou, ao menos, eu estava tentando
me convencer que não.
— Tem que admitir que essa é
uma possibilidade.
— Mesmo se Connor ganhar, e
ele não vai, morrerei antes de deixar que
os Daggers consigam a influência sobre
minha cidade. Nenhum deles conseguirá
o que quer. — Havia determinação em
sua voz e, por alguns instantes, deixei
que seu otimismo me contagiasse. Wrath
sorriu. — Não sou um bom perdedor.
— Ele não vai estar esperando
que eu tente jogá-lo para fora da pista
antes, não é?
Os olhos dele brilharam.
— Não. Com certeza não.
— Ótimo — falei, me
endireitando após apertar o cinto de
segurança. — Vamos correr.
Acelerar um carro como aquele
era uma sensação de outro mundo e foi
capaz de varrer o medo e receio para
longe.
— É tudo sobre ter o controle
do carro. Você domina a máquina, não o
contrário.
Eu acelerei até sentir a
adrenalina tomar conta do meu corpo.
Em alta velocidade não era tão fácil
comandar o carro e eu tinha medo que
ele derrapasse nas curvas — o que não
aconteceu, felizmente.
Depois que completei uma
volta ao redor do Círculo, Hades trocou
de lugar comigo para mostrar como ele
costumava fazer. No começo, tive que
me segurar pela maneira quase violenta
que ele corria. Era rápido. Muito
rápido. Eu deveria fazer algumas
daquelas manobras, curvas fechadas e
bruscas, se quisesse detonar Connor.
Nos alternamos a direção até que eu
perdesse completamente o receio e
começasse a me arriscar de verdade.
Pensei que ficaria mortificada de medo,
mas saber que Hades estava ali ao lado,
de alguma forma, me tranquilizava.
Pelo menos, se eu capotasse no
meio do deserto, não morreria sozinha.
Passamos toda a madrugada ali,
para nos certificarmos de que eu estava
pronta. Quando se aproximou das cinco
da manhã, Hades falou que queria me
mostrar um lugar. Deixei que ele
dirigisse até uma parte mais distante da
cidade. Ficar perto dele não estava mais
sendo tão intimidador. Era quase bom.
Carmine era cercada por um
terreno seco e montanhoso e foi numa
dessas colinas que ele parou. Quando eu
vi as pinceladas laranjas e luminosas
cortarem o céu, eu soube o que ele
estava planejando. Saímos do carro e
nos sentamos sobre o capô, de frente
para um deserto amplo e quase infinito.
Todo o isolamento daquela
região colaborava, provavelmente, para
que Carmine fosse dominada por
aquelas gangues. Não era uma terra sem
lei, mas a cidade vivia sob as leis
discricionárias do Pandemônio e eu
estava determinada a não fazer nenhum
juízo moral sobre isso. Não enquanto
estivéssemos do mesmo lado, pelo
menos.
— Nunca pensou em ir embora
daqui? — questionei, virando meu rosto
para encarar Hades.
Ele tinha os braços cruzados
sobre o peito e um vinco entre suas
sobrancelhas — este que sempre surgia
na expressão de Wrath quando ele
entrava num estado pensativo.
— Nunca — afirmou com
veemência antes de desviar seu olhar da
paisagem para mim.
— Nem em fazer outra coisa?
Hades negou com a cabeça.
— Não sei fazer nada além
disso.
— Isso não é verdade. —
Deixei escapar antes de pigarrear. Ele
levantou uma sobrancelha, interessado.
— Acho que você pode fazer qualquer
coisa que quiser.
Ele havia dito aquilo para mim
uma vez e o reconhecimento nas minhas
palavras o fez sorrir.
— Mas e você? Quais são seus
planos para depois que se formar na
faculdade e encontrar a sua mãe? —
Hades estava desviando do assunto.
Dei um longo suspiro.
— Eu não acho que ela queira
ser encontrada — admiti. — Nem por
mim. Não mais. Enquanto eu não puder
pagar a dívida dela, será impossível
convencê-la a sair de onde quer que ela
esteja escondida. Mas, depois que eu
conseguir dinheiro suficiente para isso,
vamos para algum lugar bem longe.
Talvez o Canadá ou onde ela possa se
sentir segura.
Por um instante, estranhei
aquela ideia. Não parecia mais tão
provável de se concretizar. No fundo,
parte de mim achava que eu nunca
encontraria Astrid. E aquele plano agora
me parecia mais como uma fuga covarde
do que qualquer outra coisa. Afinal, Joel
e Connor ainda estavam lá fora. E,
mesmo que eu os derrotasse na corrida,
eles não desistiriam. Não até que alguém
os parasse.
Hades ficou em silêncio por
algum tempo e eu voltei a olhar para a
paisagem desértica. O sol começava a
despontar no horizonte, fazendo com que
o céu se tornasse uma combinação
impressionante de luzes e cores. Me
imaginei colocando tudo isso em uma
tela.
— Todo o seu plano para o
futuro gira em torno de salvar sua mãe, o
que é bastante nobre, mas e quanto a
você? O que pretende fazer por si
mesma?
Abri a boca para argumentar,
mas eu não sabia o que dizer. Franzi o
cenho e balancei a cabeça.
— Eu vim pra Carmine para
fugir. E continuo aqui, na faculdade,
quando deveria estar fazendo algo mais
útil do que pensar em mim mesma.
— E quanto ao seu pai
biológico? — ele perguntou.
Respirei fundo. Eu quase nunca
pensava nele.
— Ele era um fuzileiro naval,
ao menos, foi o que Astrid me contou.
Os dois namoraram por poucos meses e
ele morreu em combate. Logo depois de
eu nascer ela e Joel começaram a se
envolver.
Hades ficou muito quieto,
parecendo pensativo.
— Não sabe mais nada sobre
ele?
— Nem mesmo seu nome. —
Dei de ombros.
— E Connor sempre te
protegeu sem nenhum motivo aparente?
— Assenti com a cabeça. Não demorou
para que eu compreendesse o que ele
estava sugerindo.
— Acha que ele é meu pai?
Hades não respondeu, mas não
precisou. A sugestão estava estampada
em seus olhos.
Eu estaria mentindo se dissesse
que aquela hipótese nunca passara por
minha cabeça. Afinal, por qual outro
motivo ele se importaria comigo?
Mas Connor era jovem. Pelo
menos dez anos a menos do que minha
mãe e não me lembrava dele estar
presente durante toda a minha vida. Ele
só apareceu após um tempo.
— Sobre o que você disse
antes, não pode se culpar por pensar em
si mesma de vez em quando, Raven.
Todos deveríamos ser prioridade para
nós mesmos. Além disso, sei que você
não teria começado a trabalhar para o
Pandemônio se não precisasse do
dinheiro principalmente para ajudar sua
mãe.
— Não seja hipócrita, Wrath.
Você continua aqui fazendo o trabalho
sujo do seu pai.
— E posso saber por que você
presume que isso não é exatamente o que
eu quero? Como você supõe que eu não
sou igual a ele?
Novamente, eu não soube o que
dizer. Suspirei, abraçando meu corpo.
Hades era um criminoso. O
líder de uma gangue perigosa, afinal.
Mas eu sabia que não era uma pessoa
má ou cruel. Do contrário, ele não teria
me ajudado, nem à Alina ou George. Se
ele fosse alguém desprezível, não seria
tão admirado por seus amigos e
respeitado naquela cidade. Eu sabia que
existia uma diferença entre ser
respeitado e ser temido. Joel e Connor
eram temidos, e por isso todos os
obedeciam. Hades, por outro lado,
parecia ser admirado. Eu sentia que o
Pandemônio trabalhava para ele porque
realmente queria, porque acreditava em
seus princípios e propósitos.
— Você é capaz de coisas
melhores do que isso — eu disse,
simplesmente.
— Não tenha tanta certeza
disso — contrariou ele, subitamente
mal-humorado — Você não me conhece,
amor, é melhor não fazer suposições
rasas sobre mim.
Me empertiguei, surpresa com
seu tom ríspido.
— Parece-me algo que um
covarde diria — rebati, irritada. — Tem
medo de se desvincular do seu pai?
Medo de desobedecê-lo?
Ele riu nasalado, balançando a
cabeça.
— Você não entende.
— Tem razão, não entendo.
Ficamos em silêncio por um
instante, apenas observando a aurora.
Talvez o Pandemônio pudesse
se tornar algo melhor se não fizessem
apenas o trabalho sujo de Frederik
Wrath. Afinal, eles conseguiam controlar
o crime em Carmine e tentavam fazer
tudo da maneira mais correta — na
medida do possível —, diferentemente
dos Daggers. Pelo o que eu sabia, a
gangue de Hades não agia da mesma
maneira violenta que os homens de
Garrett, não matava pessoas ou destruía
coisas pela cidade. Eu ainda tinha
princípios e nunca aceitaria ajuda-los se
eles demonstrassem que eram tão ruins
quanto Joel.
— Meu pai tem maneiras de me
obrigar a obedecê-lo.
Me virei para ele, as
sobrancelhas erguidas, em choque com
sua confissão.
— Ele o ameaça?
— Não. Não a mim.
Então, provavelmente os seus
amigos, talvez até mesmo seu irmão. Eu
não sabia, mas pude ver em seus olhos
como isso o chateava. Me senti mal por
tê-lo julgado. Nada era tão simples,
principalmente quando envolvia
assuntos familiares.
— Ele não pode te ter como
prisioneiro pra sempre — falei, tentando
reconfortá-lo de alguma maneira.
Ele não respondeu, mas eu vi
em seu rosto que aquelas palavras o
afetaram.
Eu estou começando a
acreditar que
Você não enxerga que
Eu te dei a minha vida
Eu queria que você nunca
tivesse prometido coisas
Que nunca iriam se realizar
Lyin King - Jhené Aiko
Eu estava naquela zona
fronteiriça entre estar acordada e
dormindo quando me senti ser
balançada. Franzi o cenho, resistindo.
Estava com sono, sentindo o corpo
mole, e me recusava a abrir os olhos.
Não parecia que eu tinha dormido o
mínimo de horas necessárias para não
me tornar um morto-vivo pelo resto do
dia.
— Raven. — A voz de Libby
soou distante. Ela tentou puxar a coberta
de mim, mas a segurei firme, cobrindo-
me completamente até a cabeça. —
Faltam trinta minutos para a corrida.
Que corrida?
Demorou alguns segundos para
que eu me desse conta e saltasse da
cama.
— Puta merda, a corrida. —
Passei a mão por meus cabelos, que
caíam sobre meu rosto. Estranhei os
raios de sol invadindo o quarto através
da janela. — Que horas são?
— Você dormiu a manhã toda
— explicou ela.
Eu havia perdido mais um dia
de aula. Que ótimo.
Foi então que as memórias da
noite passada invadiram minha mente. O
Sol já havia nascido quando eu chegara
nos dormitórios, e mesmo tentando me
convencer de que eu apenas cochilaria
por uma hora e meia antes de ir para a
aula, isso acontecera.
Xinguei alto após perceber que
ainda estava com as roupas do dia
anterior.
— Por que você chegou tão
tarde? — Libby perguntou, seu tom de
voz carregava certa preocupação.
Não respondi. Voei até o
armário, vasculhando-o até encontrar
peças de roupas decentes.
— Só preciso de cinco minutos
— avisei, antes de entrar no banheiro e
fechar a porta.
Aquele provavelmente havia
sido o banho mais rápido de toda a
história. Eu sequer havia calçado os
tênis quando Libby me arrastou até o
estacionamento, onde George e Alina
nos esperavam no carro dele. Não houve
tempo para me preparar, ou para cogitar
simplesmente fugir o mais rápido
possível.
Enquanto os três dialogavam
sobre o que sabiam das famosas
corridas no Círculos, eu não ouvia nada.
Minha mente estava num lugar muito
longe dali, num terreno cheio de medo e
ansiedade. Eu mordia os lábios
incessantemente e tinha os olhos fixos na
paisagem passando pela janela.
Nunca havia me sentido tão
nervosa. Era como se meu coração fosse
subir todo o caminho até minha garganta
e saltar pela minha boca a qualquer
instante. Eu esfregava as mãos contra o
tecido dos shorts que eu usava, numa
tentativa de secar o suor delas. Era um
dia excepcionalmente quente para a
época do ano e eu sentia que estava
prestes a desmaiar. Por um momento, me
atentei àquela possibilidade.
Tateei ao redor, procurando
meu celular, e só então percebi que o
havia esquecido no dormitório.
Praguejei mentalmente ao mesmo tempo
em que começamos a nos aproximar da
familiar estrada do Círculo. Jamais eu
vira o lugar tão lotado como hoje. Quase
não achamos uma vaga no
estacionamento para a BMW de George.
Pessoas se reuniam ao redor do posto de
gasolina e perto da linha de partida, que
fora sinalizada com uma enorme faixa
xadrez pendurada acima da estrada.
Saltei do carro assim que ele
parou, sem saber o que fazer ou para
onde ir. Ao redor, a paisagem árida
nunca pareceu tão quente. Ninguém
estava incomodado com o Sol a pino.
Estavam ávidos para ver a forasteira
correndo.
Khalil apareceu de repente. Ele
estava eufórico quando me encontrou.
— Onde você estava? —
perguntou, meio irritado.
— Dormindo — respondi,
como se fosse óbvio.
Notei quando ele segurou uma
risada antes de me guiar até uma tenda
montada perto da loja de conveniências.
George, Libby e Alina nos seguiram.
Eram duas da tarde e, enquanto todos
estavam preocupados que eu realmente
tivesse desaparecido, eu estava
dormindo tranquila, alheia a tudo. Por
um momento, também tive vontade de
rir.
Lá dentro estava vazio e a
sombra da tenda foi refrescante. Muitas
caixas estavam espalhadas por lá,
algumas eram de bebidas.
— Nós vamos lá pra pista
encontrar um lugar — George falou,
entrando na minha frente. A única coisa
na qual eu prestava atenção, porém, era
o grito ensandecido da multidão lá fora.
— Você vai vencer, Clarke. Sei que vai.
Ele bagunçou os meus cabelos
de maneira fraternal, mas eu continuei
estática e muda, como se tivesse entrado
em pane.
— Boa sorte, garota! — Libby
disse, me abraçando. — Arrase com
esse imbecil.
Por fim, Alina também me
abraçou antes dos três saírem da
barraca.
Senti que estava prestes a
vomitar.
Pisquei, sem conseguir
processar nada.
— Amor.
A voz de Hades me fez
despertar.
Ele surgiu na minha frente, tinha
as mãos em meus ombros e seus olhos
preocupados fixos nos meus. Talvez
estivesse óbvio como eu estava
completamente aterrorizada. Engoli em
seco, olhando para o outro lado da
barraca, por onde Wade entrava. Ele se
deteve perto de uma mesa e começou a
conversar com Khalil. Estava muito
sério, quase preocupado.
— Raven, você não precisa
fazer isso. — Hades voltou a falar.
Me concentrei na figura do
rapaz à minha frente. Seus cabelos
estavam bagunçados, caindo levemente
sobre suas têmporas, e havia uma
sombra sobre seu maxilar, como se ele
não houvesse se barbeado recentemente.
Sua voz e seus olhos eram doces e gentis
e realmente me acalmaram. Desviei
minha visão para as tatuagens expostas
pela camiseta branca que ele usava. Os
desenhos subiam por seus braços e
pescoço, até as orelhas.
Uma comichão familiar surgiu e
eu fechei minha mão em punho,
desejando muito um cigarro.
— Preciso, sim — contrariei
ele, após alguns segundos. Então, dei um
passo para trás, me livrando do seu
toque suave. — Você sabe que eu
preciso.
— Não, se você não quiser —
insistiu ele.
Balancei a cabeça, respirando
fundo.
Não havia como fugir daquela
situação. Embora eu estivesse com
medo, praticamente aterrorizada, muita
coisa estava em jogo.
— Quero acabar logo com isso.
Onde está o maldito Kamps? — bradei,
nervosa.
E foi e então que um homem
entrou na tenda e veio na nossa direção,
carregando um sorriso arrogante em seu
rosto. Era o maior que eu já havia visto.
Connor estava mais do que confiante e
eu precisava explorar isso como uma
fraqueza.
— Se demorasse mais um
pouco, estaria desclassificado — Hades
falou, cruzando os braços. De repente,
não havia mais nenhuma sombra de
gentileza em seu rosto.
Connor inclinou a cabeça, me
olhando dos pés à cabeça antes de fitar
Wrath.
— Sorte a minha que eu
cheguei a tempo — ironizou, sua
mandíbula se movendo conforme ele
mascava um chiclete. Revirei os olhos.
— Wrath, quero falar com você.
Hades me encarou com o cenho
franzido por um par de segundos antes
de se distanciar, acompanhado de
Kamps.
Soltei um longo suspiro e
prendi os cabelos num rabo baixo em
minha nuca. Olhei ao redor, procurando
Khalil ou algum outro membro do
Pandemônio que pudesse me indicar o
que eu deveria fazer em seguida.
O que eu vi, no entanto, se
aproximando com botas, chapéu de
cowboy e óculos escuros me fez quase
cair sobre meus joelhos. Eu não
acreditava que ele estava ali mesmo,
vestindo uma horrível camisa de
estampa verde e marrom. As mãos
estavam na grande fivela metálica de seu
cinto. Quando me viu, completamente
chocada e prestes a correr, ele sorriu,
um palito pendia no canto de sua boca.
— Pensou que eu nunca
encontraria você? Que tolice, docinho.
Sua voz fez meu corpo se
retesar e lágrimas de ódio brotaram em
meus olhos. Eu sentia puro asco ao vê-lo
e ouvi-lo. Fechei as mãos em punhos,
me segurando para não o atacar e depois
correr o mais rápido que conseguisse.
Ergui o queixo.
— Veio até aqui para ver com
os próprios olhos como eu destruirei o
seu protegido? — Me esforcei para que
minha voz parecesse impassível. Não
queria que ele me achasse que eu era
fraca e vulnerável.
— Você ainda continua burra
igual à sua mãe, tal como eu me lembro
— Joel soprou, esquadrinhando meu
rosto, antes de estalar a língua. — Acha
que só porque a dívida dela foi paga
vocês estão livres?
Franzi o cenho.
Alguém havia pago a dívida de
Astrid?
Pisquei, ainda um pouco
incrédula, mas não deixei McKinley
notar meu choque.
— Você queria sua grana e
agora a tem. Isso acaba aqui, Joel.
— Tsc, tsc, tsc. — Ele
balançou a cabeça, dando um passo em
minha direção. — Posso fazer a
caridade de libertar sua mãe. Afinal, o
que mais eu vou fazer com ela? Mas
você é minha, passarinho. — Meu rosto
se contorceu em repulsa quando ele me
chamou pelo apelido que minha mãe
costumava chamar. — E, muito em
breve, você vai voltar para a gaiola da
qual nunca deveria ter saído.
Eu reuni todo o ódio acumulado
por anos e o deixei substituir o medo.
Dei um passo na direção de Joel,
olhando fundo em seus olhos castanhos,
levemente enrugados nos cantos
externos. Ele cheirava a bebida e a
todas as coisas ruins do mundo.
— Quer pagar pra ver? —
sibilei, entredentes.
Joel estreitou os olhos para
mim, e antes que ele dissesse mais
alguma coisa, Hades apareceu ao meu
lado. Os punhos estavam cerrados na
lateral de seu corpo. O encarei, alto e
imponente, com o maxilar trincado e os
olhos capazes de reduzir qualquer um a
pó.
Eu sabia que só podia ter sido
Hades quem pagou as dívidas da minha
mãe, mas por que ele faria isso?
— Não me lembro do momento
em que permiti que você respirasse o ar
da minha cidade, McKinley.
— Pensei que éramos aliados.
Ele cerrou os olhos na direção
de Hades, como se sua frase tivesse
algum duplo sentido oculto. Franzi o
cenho, sem entender.
— Eu apenas te suportava.
Agora está claro que deveríamos ter
acabado com você logo no começo.
Pouparia muito tempo e estresse.
O sorriso arrogante sumiu do
rosto de Joel e eu temi que ele tivesse
um surto violento que arruinasse nossa
chance de ganhar.
— Você não pode ficar aqui —
falei, rispidamente. — Se quer assistir à
corrida, vá lá pra fora.
Ele respirou fundo, como se
estivesse se controlando, mas não
insistiu.
— Nos veremos em breve —
ameaçou, antes de girar sobre os
tornozelos e se distanciar
Soltei o ar, aliviada com seu
distanciamento, e me virei para Hades.
— É hora de correr — falei,
determinada a acabar logo com aqueles
vermes.
De pé na calçada eu observei o
letreiro neon do clube diante de mim.
Depois da minha nada esperada vitória,
Libby quis comemorar. Passamos as
últimas duas horas no flat de Fiona,
esvaziando completamente nossas
cabeças enquanto nos arrumávamos para
passar a madrugada bebendo e
dançando. Alina também estava lá e eu
ficava feliz por ela estar se distraindo
de toda a situação com Lane.
Fiona dissera que todos
estariam na Foxy, uma boate legal no
centro da cidade, onde toda a emoção
também estava. A longa fila que se
estendia na entrada do clube
demonstrava sua fama e reputação.
Antes que esperássemos ali também,
Fiona apenas passou reto e acenou com
a cabeça para os seguranças que
guardavam as grandes portas de vidro.
Eles nem hesitaram ao permitir
nossa entrada.
— Andar com a maior gangue
da cidade tem sua vantagem — observou
Libby enquanto seguíamos Fiona pelo
hall de entrada que dava diretamente no
mezanino, onde se estendiam mesas e
sofás de couro vermelho.
A música era alta e o lugar
estava cheio e escuro, apenas sob luzes
estroboscópicas vermelhas. Olhei ao
redor, procurando por Hades e me
frustrando completamente.
— Ali estão eles. — Movi
meus olhos para a direção em que Fiona
apontou e fomos até lá.
Nos fundos do mezanino,
próximo a uma das escadas que levavam
para a pista de dança lá embaixo,
George e Alec estavam sentados em um
sofá atrás de uma mesa redonda de
vidro. Os dois estavam rindo de alguma
coisa, com drinks em suas mãos.
— Começaram a festa sem nós?
— brincou Fiona, se esgueirando e
sentando entre os dois. Ela roubou a
bebida de Alec e a virou de uma só vez.
Ri da reação dos meninos e
acenei para George. Ele usava uma
camisa estampada amarela e de mangas
curtas, os primeiros botões estavam
abertos. A pele de seu peito e têmporas
brilhava com um pouco de glitter. Hale
piscou para mim.
Olhei ao redor, encontrando
Khalil debruçado contra a balaustrada
do mezanino, encarando a pista abaixo
de nós. Fui até ele, me recostando ao seu
lado e atraindo sua atenção.
— A rainha da noite chegou —
ele assobiou, me fazendo rir, e se
endireitou. Rolei os olhos. — Foi uma
grande vitória hoje, Raven. Você merece
comemorar.
Me inclinei em sua direção
para que ele pudesse me ouvir sob o
som alto das batidas eletrônicas.
— Hades não veio? — titubeei,
forçando um tom casual. Meu interesse
não passou despercebido por K,
entretanto, que sorriu de maneira
sugestiva.
— Ele está resolvendo umas
coisas, deve chegar mais tarde.
Assenti, um pouco
decepcionada, e desviei o olhar para as
pessoas dançando sob nós.
Não sabia bem o porquê, mas
eu queria vê-lo. Desde o fim da corrida,
após ele se afastar e eu sair com Libby,
Alina e George, essa necessidade
começara a crescer dentro de mim.
Eu o queria por perto a todo
momento. Desesperadamente.
Não sabia mais como ficar
longe de seu magnetismo, embora eu
tivesse tentado muito.
Era tarde demais. Eu já estava
submersa naquele mundo. Submersa em
Hades Wrath.
Suspirei, voltando a olhar para
Khalil. Percebi, então, que ele estava
olhando para trás com uma expressão
pensativa enquanto encarava algo — ou
alguém. Naquela direção, encontrei
Alina sentada no braço do sofá de
couro. O vestido dourado e brilhante
combinava com os cachos loiros de seu
cabelo, que caíam sobre seus ombros.
As longas pernas cruzadas terminavam
em sandálias de salto. Seus olhos azuis
demonstravam tédio. Entendi
imediatamente por que ele parecia tão
hipnotizado.
Mais do que isso, Khalil estava
fascinado pela minha amiga.
Mordi o lábio inferior,
contendo um sorriso.
— Deveria chamá-la para
dançar — sugeri, aumentando o tom da
voz para chamar sua atenção.
Ele moveu os olhos para mim,
parecia levemente acanhado.
— Eu… — K não terminou a
frase. Provavelmente, não sabia o que
dizer.
— Alina precisa se divertir um
pouco. Os últimos dias foram difíceis.
Ele assentiu e hesitou um
pouco, mas, por fim, foi até ela.
Observei quando ele sussurrou algo em
seu ouvido e um sorriso iluminou o rosto
de Alli. Khalil apanhou a mão dela e a
guiou para a pista de dança.
Poucos minutos mais tarde,
Libby e eu descemos também.
A pista de dança estava cheia e
bastou tomar dois cosmopolitans para
que eu sentisse uma vontade
incontrolável de dançar. Me soltei
rapidamente e deixei que todas as
preocupações em minha mente se
esvaíssem. Libby conseguia dançar pior
do que eu, de modo que não pude evitar
gargalhar quando ela balançou o corpo
feito uma centopeia.
Depois de um tempo
dispensando os caras que se
aproximavam de mim, um rapaz alto e
forte o suficiente para ser um
halterofilista chamou Libby para dançar
e ela aceitou. Pisquei para ela e me
distanciei, indo me sentar num dos
banquinhos do bar enquanto bebericava
um mojito e observava a movimentação
ao redor.
Ainda não havia sinal algum da
presença de Hades. Provavelmente, ele
não apareceria. Suspirei, sentindo-me
tola por ficar tão frustrada. Então, me
endireitei e voltei a varrer o clube com
meus olhos. No mezanino, Alec e
George ainda estavam conversando e
Fiona dava uns amassos numa garota nas
escadas. Alina e Khalil pareciam presos
em seu próprio mundo, dançando juntos
lentamente na pista de dança ao mesmo
tempo que todos ao seu redor pulavam
com a batida agitada que o DJ tocava.
Não muito distantes do casal,
Libby e o desconhecido estavam aos
beijos, o que me fez rir um pouco com
sua urgência.
Era meio patético eu ser a
única do grupo a estar sozinha. Depois
de tanto tempo no inferno, eu não tinha
certeza se, de fato, sabia como me
divertir.
Determinada a provar a mim
mesma que sim, eu sabia e podia,
terminei meu coquetel e incentivei os
dois caras ao meu lado para uma
competição de shots de tequila. Até
aquele momento, eu havia ignorado seus
olhares indiscretos para mim, e, mesmo
sem conseguir determinar se eu os
achava bonitos ou não, eles eram os
únicos que também estavam no bar
querendo se embriagar.
Antes de decidir que queria ir
para a universidade e ter uma vida
normal fora de Dallas, passei semanas
frequentando bares e bebendo feito
louca para esquecer como eu fora
abandonada por Stephen. Eu tinha
experiência com tequila, e isso me
garantiu a segunda vitória do dia quando
eu tomei cinco shots em menos de
cinquenta segundos.
— Porra, isso foi a coisa mais
sexy que eu já vi — um deles, acho que
o loiro de cabelos encaracolados, disse.
Revirei os olhos, já me
sentindo entorpecida pela bebida, e
voltei para a pista de dança. Perdi a
noção do tempo me movendo
despreocupadamente no ritmo da
música. Dancei com três ou quatro caras
que se aproximaram, mas eles
desistiram quando perceberam que suas
presenças eram irrelevantes para mim.
Não estava interessada em beijar
nenhum deles.
Mesmo quando o DJ anunciou a
hora das músicas lentas para o deleite
dos casais, eu permaneci dançando
sozinha — bêbada demais para pensar
em como isso me fazia parecer. Não
sabia se estava parecendo sensual ou
ridícula ao balançar meus quadris
lentamente de um lado para o outro, os
olhos fechados e a cabeça jogada para
trás.
Duas músicas depois, ao abrir
os olhos, encontrei instantaneamente o
rapaz alto com os braços tatuados
apoiados no parapeito de vidro do
mezanino, alguns metros acima de mim.
Hades me encarava com um olhar
indecifrável, como se eu fosse a única
naquela pista de dança lotada. Ele
observava atentamente cada um dos
meus movimentos, como se estivesse me
estudando.
Senti meu corpo se arrepiar, o
calor subindo todo o caminho dos meus
pés até a cabeça.
Semicerrei os olhos para
Hades, um pouco brava por ele ter
demorado tanto. O cretino não podia
simplesmente aparecer depois de horas
e me transformar numa chama
incandescente e sedenta só por admirá-
lo.
Me virei para o outro lado,
determinada a cortar o contato visual, e
continuei a dançar, me convencendo de
que não me importava tanto assim com
sua presença e que ele sumiria se eu
apenas o ignorasse. Poucos instantes
depois, eu soube que estava
completamente errada quando um par de
mãos tocaram a minha cintura.
Fechei os olhos, sentindo seu
peito rígido contra as minhas costas, e
não consegui ficar brava por estar tão
feliz com a aproximação. Suspirei em
deleite quando seus dedos gelados
encontraram a faixa de pele exposta
entre o cropped e a saia de couro que eu
usava. O toque de sua outra mão se
direcionou para o meu braço direito,
subindo lentamente por sua extensão até
chegar ao meu pescoço. Ele afastou os
meus cabelos, deixando minha nuca
exposta. Senti sua respiração quente
próxima à minha pele.
Os saltos que eu usava
diminuíram um pouco nossa diferença de
altura, o que permitiu que eu tombasse a
cabeça contra seu ombro.
— Você demorou — sussurrei.
— Desculpe. — Sua voz soou
pesarosa ao pé do meu ouvido.
Me virei, ficando de frente para
ele, e coloquei os braços ao redor do
seu pescoço. Eu queria olhar em seus
olhos profundamente escuros. Inclinei a
cabeça para fitá-lo em toda a sua
expressão séria e sexy e deslizei uma
mão para o seu rosto, arrastando-a
contra a pele macia e lisa de sua
mandíbula. Passei o polegar por seus
lábios finos naturalmente rosados.
— Você é tão bonito — falei,
admirando os traços perfeitos de seu
rosto.
— E você está bêbada —
rebateu ele, ainda com um braço ao
redor da minha cintura.
— Você não? — Levantei uma
sobrancelha.
Wrath balançou a cabeça.
— Não agora — disse ele. —
Não quando eu não quero estar.
Engoli em seco, aproximando
meu corpo do dele conforme ele me
guiava no ritmo da música. Estávamos
dançando muito devagar, mas tudo no
que eu prestava atenção era nele. Na
maneira intensa com a qual ele me
fitava, no seu cheiro de perfume
importado e loção pós-barba, no meu
peito colado ao seu...
Ele subiu dois dedos pela
extensão da minha coluna antes de
emaranhá-los em meus cabelos.
— Hades Wrath está sempre no
controle de tudo, não é? — provoquei,
desafinando um pouco por causa do
álcool.
— Menos quando eu estou
perto de você, ao que parece.
Sua voz soou grave e rouca,
fazendo todos os pelos do meu corpo se
arrepiarem. Inclinei a cabeça para
observá-lo. Queria compreender o que
aquilo significava, mas todos os meus
sentidos estavam entorpecidos, de modo
que apenas ri.
— Você continua bonito quando
eu não estou bêbada.
Hades soltou uma risada
nasalada e eu pensei ter visto uma
sombra de frustração em seus olhos, mas
não me atentei muito àquilo.
— Continuo, sim — confirmou,
presunçoso. — Mas você nunca
admitiria isso se estivesse sóbria.
Ele tinha um ponto.
Álcool realmente era coragem
líquida. Agora eu podia admitir pra mim
mesma como Hades Wrath era sexy
como o inferno e como eu queria muito
beijá-lo.
Segurei seu rosto entre minhas
mãos e me coloquei na ponta dos pés,
levando minha boca até a dele.
Entretanto, Hades desviou, de modo que
o beijo avassalador que eu desejava se
tornou um leve encostar dos meus lábios
em sua bochecha.
Bufei, me afastando para
encará-lo. No processo, tropecei em
meus próprios pés e ele precisou me
segurar pela cintura para que eu não
desmoronasse no chão.
— Não faça agora algo do qual
você vai se arrepender amanhã, amor —
pediu com a voz arrastada, quase como
se ele estivesse sentindo dor física.
— Eu ainda quero te beijar
mesmo quando não estou alcoolizada —
falei, muito perto de implorar para que
ele me beijasse.
Hades levou uma mão para meu
rosto e seu polegar alisou suave e
carinhosamente minha pele. Ele tinha os
olhos em chamas encarando meus
lábios.
— É melhor eu ir. — Ele se
desvencilhou de mim.
Pareceu frio e indiferente, o
que me deixou furiosa.
Onde estava o maldito Hades
Wrath provocativo e sarcástico que eu
conhecia? Aquela sua versão
melancólica e contida ali na minha
frente não era nem um pouco divertida.
Segurei-o pelo ombro.
— Não seja um estraga
prazeres, Wrath. — Ele me olhou por
alguns segundos antes de fazer
novamente menção de se virar. — Seu
irmão não foi tão dramático quando eu o
beijei.
Eu falei alto o suficiente para
algumas pessoas ao redor olharem em
nossa direção. Hades me encarou com
olhos indecifráveis. Mesmo bêbada eu
me arrependi daquelas palavras. Apenas
tentara machucá-lo gratuitamente.
Eu nunca vira um olhar tão
apático e, ao mesmo tempo, tão intenso e
cheio de significado quanto o de Hades
naquele momento.
Eu queria que ele revidasse,
que dissesse alguma coisa, qualquer
coisa. Ele não podia apenas ser
indiferente quanto àquilo.
Mas Hades se virou sem dizer
nada e foi embora de qualquer maneira.
Todos na Universidade só
falavam sobre o incêndio na galeria.
Boatos envolvendo os Wrath estavam
sendo espalhados por sussurros nos
corredores, como se qualquer um tivesse
o direito de expor sem nenhuma empatia
a história daquela família para o mundo
inteiro. Ouvi coisas terríveis sobre
Hades e Evelyn, mas tentei abstrair cada
uma daquelas palavras. Afinal, nenhum
deles sabia realmente alguma coisa
sobre aquela história não.
Entretanto, não ajudou o fato de
Zachary Bowen, o maior fofoqueiro da
turma de artes do primeiro ano, estar
sentado bem atrás de mim durante a
aula. E, apesar de ser um dos melhores
alunos da turma, julgava todo mundo ao
seu redor.
— Bem, acho que foi merecido
— ele murmurou baixinho, conversando
com a garota ao seu lado. — Os Wrath
são o câncer de Carmine e deveriam ser
eliminados de vez.
A sala estava imersa na
penumbra, visto que a professora
transmitia no quadro, através de um
projetor, algumas imagens de obras com
referências à mitologia greco-romana,
que tinham a ver com o projeto que
deveríamos fazer na próxima semana.
Me obriguei a desviar minha atenção
das fofocas de Bowen quando a
professora McPhil passou para a
próxima imagem.
Ergui meus olhos para a
projeção da fotografia de uma bela
escultura. Embora eu nutrisse um apego
especial à desenhos e pinturas, achava
esculturas fascinantes. Me parecia
extraordinária a habilidade de dar forma
a um pedaço de pedra, conseguindo
reproduzir com exatidão as texturas dos
tecidos ou até mesmo a pressão dos
dedos na pele humana.
A obra diante de mim
apresentava um casal. O homem, à
esquerda, tinha uma longa barba e uma
coroa em sua cabeça. Ele tentava
segurar uma mulher, que parecia
desesperada para fugir dele. Ao lado do
casal, sentado no chão, estava uma
criatura que parecia um cão de três
cabeças. Não consegui identificar a
obra, apesar de ela parecer, de alguma
forma, familiar.
— O Rapto de Proserpina, de
Gian Lorenzo Bernini — denominou
McPhil. — Alguém sabe dizer qual o
nome de Proserpina na mitologia grega?
— Perséfone — sussurrei, um
pouco surpresa quando a compreensão
me invadiu.
Eu gostava de estudar sobre
mitologias, principalmente a greco-
romana, mas não tinha um conhecimento
muito profundo sobre ela. Conhecia os
nomes e histórias dos deuses mais
famosos. Entre eles, estava Hades.
Outro aluno respondeu à
pergunta, de modo que a professora
prosseguiu:
— Perséfone era filha de Zeus
e Deméter e, certo dia, foi raptada por
Hades, o deus do submundo. Lá ela
resistiu ao domínio do deus por muito
tempo, mas acabou comendo uma
semente de romã. Ao provar de um
alimento do submundo, parte de sua
alma passou a pertencer ao mundo
inferior e seu casamento com Hades foi
selado. Após um acordo com Zeus,
Hades permitiu que Perséfone vivesse
metade do ano na Terra, contanto que na
outra metade, durante o outono e o
inverno, ela permanecesse com ele no
submundo.
Fiquei hipnotizada por aquela
história conforme McPhil a contava. Era
tão triste e trágica, mas deu sentido à
escultura. Perséfone — conhecida como
Proserpina na mitologia romana — fora
levada sem seu consentimento à
escuridão da Terra dos Mortos. Era
obrigada a viver lá e a tristeza de seu
destino marcava as estações frias e sem
cor.
Na obra de Bernini, estava
evidente a angústia no rosto de
Perséfone e foi inevitável me solidarizar
por ela e sentir, de certa forma, alguma
familiaridade com aquele sentimento. A
dor de viver em um ambiente marcado
por desesperança e violência.
Aquela história desencadeou
em mim uma série de reflexões. Entre
elas, uma questão: poderia Perséfone ter
se apaixonado por Hades e optado por
viver no submundo se o livre arbítrio
não tivesse sido arrancado dela? Se
fossem outras as circunstâncias, se ela
pudesse ter o direito de escolha, teria
optado por ficar?
Permaneci imersa em
devaneios até que McPhil acendeu a luz,
encerrando a demonstração das obras
que deveriam nos inspirar, e passou a
instruir sobre o projeto.
Quando a aula chegou ao fim,
eu estava pensativa a preocupada diante
daquela tarefa. Seria muito complicado
executar dez obras em menos de dois
meses.
O plano inicial, explicou
McPhil, era expor o trabalho de todos os
alunos na galeria de Eve Wrath para o
público, mas isso foi antes do local ser
destruído pelo fogo completamente. Eu
não sabia se os Wrath tinham planos de
reconstruir o lugar, mas, se o fizessem,
com certeza levaria bastante tempo. Não
era possível levantar um lugar grande e
bonito como aquele de um dia para o
outro.
Após arrumar meu armário e
apanhar minha bolsa, peguei o celular
guardado no bolso externo dela. Não
havia nenhuma mensagem ou chamada
perdida. Acessei a tela inicial e abri a
página dos contatos. Busquei
roboticamente pelo número que Astrid
me forneceu há tantos anos e iniciei a
chamada.
Eu já havia lhe deixado tantos
recados que perdi a conta. Pensei que,
se ela soubesse que não devia mais nada
à máfia de Dallas, não iria mais se
esconder. Isso, contudo, não havia
ocorrido ainda e eu estava perdendo as
esperanças de que um dia fosse
reencontrá-la. Assim como todas as
outras, aquela chamada caiu na caixa
postal.
Bufei alto e arremessei o
celular dentro da minha bolsa. Nesse
momento, Alina se aproximou, alegre e
saltitante.
— O que vai fazer hoje à noite?
— perguntou, levantando uma
sobrancelha fina e loira.
— Estudar. — Dei de ombros.
— Tenho um imenso projeto para fazer,
e pouquíssimo tempo pra isso.
Fechei a porta de metal do
armário e me virei para ela, ajeitando a
bolsa sobre o meu ombro.
O longo corredor estava
preenchido de alunos, a maioria ia em
direção às portas de vidro da saída com
o fim das aulas.
Alina estava diferente. Eu
sempre a via usando suéteres e jeans
durante as aulas, mas naquele dia ela
usava um vestido magenta de alças, com
um colar prateado caindo sobre o busto.
Os últimos vestígios físicos da agressão
de Lane haviam sumido totalmente. O
cabelo dela estava mais cacheado e
brilhante, tal como os olhos e o sorriso
fácil, que passou a surgir em seus lábios
com frequência.
Ela não costumava ser assim,
nem um pouco. Na verdade, era
totalmente o oposto.
Mesmo que ela nunca tivesse
compreendido o motivo de eu ter agido
para dar a Lane o que merecia, mesmo
que tivesse me odiado para sempre,
teria valido à pena. Alina havia voltado
à vida, afinal.
— Vai ter noite da pizza no
apartamento dos meninos — explicou
ela, empolgada.
Segurei um sorriso.
— Meninos? — Levantei uma
sobrancelha, curiosa.
— Hades, Alec e Khalil —
Alina disse, antes de andar ao meu lado,
me acompanhando em direção à saída
do prédio de Belas Artes. — Wrath vai
cozinhar. Você vai, não é?
Era interessante ver como
Alina, Libby e George haviam se
aproximado do Pandemônio a ponto de
parecerem uma coisa só. Eu ficava feliz
com aquilo, gostava dos meus amigos
todos juntos. Teria aceitado a proposta
de prontidão se o mero pensamento de
dividir um cômodo com Hades não
fizesse um nó surgir em meu âmago.
Depois do episódio em seu
quarto, decidi que era melhor me afastar
de Hades, porque sabia que não era
forte o suficiente para resistir ao meu
desejo. Se ele se aproximasse daquela
maneira novamente e pedisse para que
eu parasse de fugir, e eu cederia.
E aquilo não podia acontecer
em hipótese alguma, mesmo que a ideia
de vê-lo cozinhar fosse terrivelmente
tentadora.
Soltei um suspiro frustrado.
— Não posso, tenho que
estudar — fingi lamentar.
Eu deveria me afastar dele
tanto quanto fosse possível. Precisava
me desintoxicar de Hades Wrath.
— Ah, Raven, qual é? Vai ser
bom para nós, precisamos nos distrair.
Posso te ajudar a adiantar o projeto
depois.
Hades realmente precisava de
um tempo da guerra com os Daggers.
Todos haviam percebido como o
incêndio na galeria havia o afetado e
uma noite de distração com os amigos
iria ajudar.
— Acho melhor não.
Então, subitamente, Alina parou
de frente para mim. Analisou-me e
inspecionou-me com seus olhos azuis
semicerrados, como se estivesse
tentando ler meus pensamentos.
— O quê? — indaguei,
franzindo o cenho.
— O que há entre você e
Hades? Parece que você está o evitando
como se tivessem dormido juntos.
Arregalei os olhos antes de
balançar a cabeça, negando veemente.
— Não dormimos juntos,
acredite.
— Então o que foi? Eu vejo
como vocês se olham, Raven, não dá pra
disfarçar uma coisa assim — Alina
falou, séria, me fazendo desviar os olhos
para o outro lado do corredor. Pensar
em minha situação com Hades era a
última coisa sobre a qual eu queria fazer
naquele momento. — Vocês dois são
como…
— Fogo e pólvora? —
completei, suspirando ao me lembrar da
citação trágica de Shakespeare. Alina
apenas balançou a cabeça e resolvi
mudar de assunto após pigarrear. —
Mas e quanto a você e Khalil? Parece
que estão bem próximos.
Aquilo era, definitivamente, um
eufemismo de minha parte. Khalil e
Alina pareciam completamente
embriagados um pelo outro.
A loira corou, envergonhada.
— Eu sei que parece que estou
indo muito rápido após tudo o que
aconteceu, mas… — Ela suspirou,
colocando uma mecha de cabelo atrás da
orelha. — Ele me faz tão bem. Eu nunca
tinha sido tratada assim antes, é como
um conto de fadas. — Sorri com a
maneira doce e delicada com a que ela
falava. — Mas ainda é tão cedo… Céus,
eu devo ser tão ingênua e estúpida.
— Ei — a repreendi,
colocando uma mão em seu ombro. —
Ninguém tem o direito de te julgar por
nada, Ali. Se você se sente bem perto do
Khalil, se isso a faz feliz, então é o que
deve fazer. Foda-se todo o resto.
Ela sorriu antes de assentir.
Quando passamos pelas portas
de vidro e descemos os degraus até o
pátio frontal da Universidade, logo
notamos uma cena incomum. Havia um
grande aglomerado de alunos parados
sobre o gramado, observando curiosos.
Estacionados do outro lado da
rua estavam três viaturas de polícia que
pareciam escoltar uma limusine preta.
Franzi o cenho, dando alguns passos à
frente.
Então, Hades entrou no meu
campo de visão. Ele estava sendo
guiado por policiais e seguranças para
fora do departamento de Direito em
direção ao carro.
Como sempre, ele era o sol ao
redor do qual orbitava todo o caos de
Carmine.
— O que diabos aconteceu? —
perguntou Alina ao meu lado,
preocupada.
Hades nem sequer olhou para
os lados antes de entrar no carro,
acompanhado por dois seguranças. Em
seguida, as viaturas seguiram
flanqueando a limusine para longe do
campus.
— Gente. — George apareceu,
ofegante e descabelado pela primeira
vez. — Três empresas ligadas às
Consolidações Wrath foram assaltadas
durante a noite. Mas não foi só isso,
interceptaram e roubaram um dos
carregamentos de droga do Pandemônio
na entrada da cidade.
— O quê?! — indaguei,
completamente em choque. Percebi
quando Alina, ao meu lado, abraçou o
próprio corpo, se encolhendo.
Balancei a cabeça.
— Isso aconteceu no mesmo
momento do incêndio? — perguntei e
ele assentiu.
Ao que parecia, o fogo na
galeria havia sido apenas uma cortina de
fumaça. Um truque para distrair os
Wrath da real jogada deles. Enquanto
todo o foco do Pandemônio estava nas
chamas, destruindo completamente o
legado da mãe de Hades, eles estavam
sendo atingidos do outro lado por seus
inimigos.
— Isso não parece com os
Daggers — George continuou, confuso.
— Eles não têm homens, armas ou
coragem o suficiente para fazer algo
desse tamanho.
— É porque não foram eles —
afirmei. — Foi Joel McKinley.
— É… — Alina suspirou. —
Acho que a noite da pizza acaba de ir
por água abaixo.
Me separei de Alina, que não
me acompanhou aos dormitórios pois foi
direto para a livraria onde estava
trabalhando, e prendi meus cabelos, me
preparando para a curta caminhada até o
alojamento.
Antes que pudesse cruzar a
praça central do campus, porém, percebi
que todos que caminhavam por ali
olhavam para um conjunto de dois
carros e uma moto. Era impossível não
reconhecer de longe algum membro
Pandemônio. A gangue, que sempre
despertou o interesse de todo mundo,
estava ainda mais em foco devido aos
últimos acontecimentos. Ninguém
conseguia evitar os olhares curiosos
sobre o grupo.
Eles estavam parados no
estacionamento. A conhecida
caminhonete azul de Wade, o Volvo de
Khalil e, de pé, encostada em sua moto,
estava Selina, com os braços cruzados e
sua usual expressão intimidadora no
rosto.
Me aproximei intrigada. A
janela do Volvo se abaixou, revelando
Khalil.
— O que estão fazendo aqui?
— perguntei para ele, que apoiou o
braço no batente da janela.
— Esperando por você.
— Estou indo ao alojamento.
— Eu sei. Mas as coisas estão
ficando perigosas e você se tornou o
centro das atenções após a corrida no
Círculo. Sozinha você é um alvo fácil
para nossos inimigos.
Suspirei resignada e frustrada
por ele estar certo. Se Joel ainda
estivesse na cidade, ele não hesitaria
antes de ir atrás de mim e, embora eu
estivesse avançando nos treinos com
Zora, ainda não era boa o suficiente para
dar conta de homens grandes e armados
sozinha. E eu detestava isso, mas
precisava ter paciência.
— Entra logo no carro, Clarke
— ralhou Selina, exasperada.
Revirei os olhos e, apesar de
parte de mim desejar provocá-la, não a
contrariei. Dei a volta no Volvo e abri a
porta do carona, entrando no veículo.
— Sei que é uma droga de
situação, mas temos que proteger uns
aos outros — Khalil falou, dando ré no
carro para sair do estacionamento.
Coloquei o cinto de segurança e
olhei através da janela. Algumas
pessoas ainda se viravam para olhar na
nossa direção enquanto passávamos, nos
distanciando da parte principal do
campus. Também vi Selina, se
aproximando pela direita, inclinada
sobre sua moto. Ela permaneceu
acelerando até ultrapassar o Volvo,
disparando à nossa frente na rua.
— Eu soube dos assaltos de
ontem — falei, depois de alguns
segundos em silêncio.
— Os jornais só estão falando
sobre isso. Vão explorar o assunto até
não poderem mais.
— O que vai acontecer agora?
— Honestamente, não sei. Se
começarem a investigar esses comércios
paralelos vinculados às empresas Wrath,
vão acabar descobrindo sobre o
Pandemônio e todo o nosso esquema
ilegal.
— Pensei que vocês tinham a
polícia no bolso.
— Só a polícia de Carmine,
mas o que ocorreu ontem pode chamar
atenção de um peixe muito maior.
Havia uma coisa que McKinley
temia mais do que tudo: o FBI. Ele não
havia sido esperto o suficiente para
fazer uma aliança com a polícia de
Dallas, tampouco com os federais. Vivia
se escondendo, como o covarde que era.
E ele tinha suas maneiras de
garantir que não o denunciássemos.
— Ele não vai deixar pra lá —
eu disse. — Joel McKinley sempre
deixou claro seu desejo de tomar o
território de Carmine. Agora que ele
começou, não vai parar.
— Vamos lutar, então — Khalil
respondeu, determinado. Não era fácil
aceitar que uma guerra havia sido
iniciada em Carmine e que, de alguma
forma, eu estava envolvida. — Temos
que recuperar o carregamento de drogas
que foi roubado.
Aquilo não fez sentido pra mim.
Afinal, Hades era rico e o Pandemônio,
influente.
— Por quê? Vocês não podem
simplesmente encomendar mais?
— Não agora que estamos sob
os holofotes de todos. Precisaríamos
esperar a poeira baixar e, nesse meio
tempo, os Daggers podem ganhar poder
e influência em parte da cidade.
— Mas vocês não têm a
lealdade dos clientes e traficantes de
Carmine?
— Temos, sim. Mas receio que
eles irão vender as nossas drogas para
aqueles para os quais os traficantes do
Pandemônio são impedidos de vender.
— Franzi o cenho. Khalil me olhou
brevemente, notando a confusão em meu
rosto, e explicou: — Carmine não é
mais uma terra de ninguém. O
Pandemônio regulamenta quais drogas
podem entrar na cidade e para quais
pessoas devem ser vendidas. Nossos
traficantes não podem oferecer nada em
escolas, por exemplo.
Levantei as sobrancelhas,
surpresa. Já havia percebido que o
Pandemônio era bastante organizado,
mas ainda não tinha conhecimento de
como tudo funcionava na prática.
— Aposto que há pessoas que
discordam dessas regras — comentei.
— Com certeza. E são elas que
podem fazer os Daggers crescerem
novamente. Agora que eles têm nossas
drogas, nosso dinheiro e nossa
vulnerabilidade, podem ascender ao
poder.
Aquela possibilidade me
deixou enjoada. Não podia acreditar que
Joel estava tão perto de se tornar ainda
mais poderoso. Caso isso acontecesse e
ele tomasse Carmine, eu duvidava que
algo pudesse derrubá-lo depois. E ele
permaneceria fazendo todas as coisas
terríveis que eu havia presenciado
durante toda minha vida. Ficaria impune.
Não podia deixar isso
acontecer.
— Precisamos impedi-los.
É tudo para você
Você começa a mudança e eu
dou a verdade
É tudo para você
Eu não conseguia parar
Não conseguia parar de me
importar
Couldn't Stop Caring - The
Spiritual Machines
Eu soube, quando vi os policiais
e seguranças me esperando do lado de
fora do prédio da faculdade de direito,
que algo ruim havia acontecido. Mas,
após o incêndio na galeria, não havia
muita coisa que pudesse me abalar. Nem
mesmo a possível queda do império da
minha família. Eu tive certeza, quando
entrei na limusine do meu pai e fui
escoltado até a mansão Wrath, que seria
arrastado para aquela crise por meu pai.
Frederik não era muito de se
descontrolar. Eu sabia que havia
herdado isso dele: a impassibilidade.
Entretanto, quando o assunto era sua
grande e intocável fortuna, ele se
desestabilizava. Agora, as empresas
Wrath estavam sob ataque. Os acionistas
e investidores não queriam estar a bordo
de um navio prestes a afundar. E, desde
que o barco era o nosso sobrenome e o
mar era uma Carmine instável, atacada
por gangues de traficantes e
motoqueiros, a situação ia de mal a pior.
Nós sempre mantivemos o
controle sobre aquela cidade. Frederik
se certificava daquilo. Era por isso que
comandávamos de perto os negócios
ilegais por ali. Enquanto nós éramos o
maior poder de Carmine, nossas
empresas iam bem e, consequentemente,
o nosso dinheiro também.
As Consolidações Wrath tinham
várias empresas menores ligadas à ela.
Pequenos negócios de fachada que
encobriam as movimentações criminosas
por trás destas, como o Pandemônio.
Havia dezenas espalhadas pela cidade.
Entretanto, três agora estavam
completamente incapacitadas de
funcionar após serem roubadas e
depredadas pelo fodido Joel McKinley.
— O xerife Callow está
tentando disfarçar a origem e o
funcionamento daqueles negócios, mas o
incêndio trouxe muita atenção para nós.
Se o FBI descobrir e resolver investigar,
estamos acabados — meu pai falou, de
pé, virado para a janela de seu
escritório, observando o jardim ao redor
da propriedade.
Ele estava cansado. Mais do
que isso, estava furioso. Eu percebia
isso, porque ele não se descontrolava
nunca. Ainda assim, eu sentia o ódio por
detrás de suas palavras. A maneira como
ele as dizia, fria e impessoal, era apenas
uma máscara. Talvez eu nunca tivesse o
visto tão bravo e perto de surtar como
naquele momento.
Seu blazer estava jogado sobre
a poltrona atrás de sua mesa de mogno.
Frederik usava apenas uma camisa, com
as mangas arregaçadas e amassadas na
altura dos cotovelos e os primeiros
botões soltos. Em sua mão havia um
copo de uísque pela metade.
— Vamos contornar essa
situação — garanti, mesmo não tendo
certeza disso.
Eu estava postado do outro
lado do escritório, meu ombro
encostado contra o batente da porta
aberta. Preferia mesmo me manter
distante dele e daquele cômodo repleto
de memórias horríveis tanto quanto o
possível.
— Espero que agora você
comece a seguir minhas ordens à risca,
filho — disse ele, antes de beber um
gole da bebida em seu copo. Em
seguida, se virou para mim.
Aquelas palavras familiares de
oito anos atrás ecoaram em minha
cabeça e eu senti um gosto amargo tomar
conta da minha boca.
Nunca antes meu pai parecera
tão velho. Bolsas escuras sob os olhos e
rugas em sua testa e no canto de sua
boca. Parecia mais magro e pálido
também, como se a cada nota de dólar
perdida fosse equivalente a um ano de
sua expectativa de vida. Frederik Wrath
precisava de dinheiro e poder, como
precisava de oxigênio e eu sei que ele
preferiria ser esfolado vivo a perder seu
império. Tudo aquilo o faria definhar e,
para ser honesto, eu não poderia me
importar menos.
Aquela vida parecia pertencer
menos a mim a cada dia que se passava.
Bastou que Raven entrasse na
minha vida para que eu começasse a
questionar tudo. Ela havia dito, alguns
dias atrás, que eu era melhor do que
aquilo. Melhor do que os planos que
meu pai fizera para mim. Havia sido
difícil me imaginar em outra situação, já
que sempre fui sua marionete. Fazia seu
trabalho sujo e nunca me importei com
isso.
Até aquele momento.
— Deve ser acompanhado
pelos guarda-costas que eu contratei.
Apenas aquele seu amigo, Wade, não é
capaz de te proteger.
— Eu me defendo sozinho — o
interrompi. — Não preciso dos seus
lacaios para isso.
Frederik tomou uma longa
respiração, colocando os nervos em
seus lugares.
— Tudo o que você precisava
fazer era impedir uma insurreição na
porra da minha cidade. Agora temos a
máfia do Texas e os Daggers atrás de
nós. Posso saber, exatamente, como
você pretende controlar essa situação?
— Darei um jeito — garanti,
mas ele não parou.
— Era pra pegarmos McKinley
desprevenido, com nossa carta na
manga, não o contrário. Tem alguma
ideia do que o fez tomar coragem para
atacar? Havia alguma maneira de ele ter
descoberto que a garota está aqui?
— Não faço ideia de como ele
ficou sabendo.
Não era verdade, não
completamente. Desconfiava que Nick
houvesse contado para algum de seus
amigos Daggers sobre Raven, mas não
tinha certeza. Connor não pareceu
chocado, nem mesmo surpreso, ao vê-la
naquela noite do lado de fora do
cassino.
Parte da raiva de Frederik
vinha do fato de que ele pretendia atacar
Joel primeiro. Não sabia exatamente o
que o fizera mudar de ideia e colocar
fim a aliança que eles mantinham, mas
ele estava determinado a usar Raven,
desde que ela aparecera em Carmine,
para derrotar McKinley.
Joel, no fundo, sempre desejou
nosso território, mas o acordo o
impedira de reivindicá-lo. Algo havia
mudado para que ele tomasse coragem
para atacar.
Me incomodava não saber os
reais motivos por trás da decisão deles
de instaurar uma nova guerra em
Carmine.
Engoli em seco, fechando
minhas mãos em punhos ao lado do meu
corpo.
— E a garota?
Trinquei o maxilar, tenso.
— Ela já disse tudo o que sabe.
Está nos ajudando.
— Está mesmo? — Meu pai
estreitou seus olhos absolutamente
pretos na minha direção. — Você
garante?
— Sim — afirmei, sem
dúvidas.
— Bem, eu não confio nela.
Tínhamos um acordo, lembra? Se
recorda do que aconteceria se você não
o cumprisse? Você não vai querer que eu
me envolva nisso agora, vai?
Seu tom era ameaçador, ele
sequer se esforçava para disfarçar.
Mas eu nunca poderia me
esquecer daquele acordo. Porque, ao
mesmo tempo em que eu tentava mantê-
lo, ficava cada vez mais difícil ver
Raven como uma peça naquele jogo.
Entretanto, eu não podia mais fingir que
tudo estava bem e que o trato não
existia. Acabar com aquilo tudo, o mais
rápido possível, seria o melhor para nós
dois.
E depois, quando eu tivesse
destruído completamente Garrett e
McKinley, eu a afastaria. Mesmo que
isso a magoasse, mesmo que me
destruísse, era melhor do que as outras
coisas que poderiam acontecer a ela,
caso meu pai resolvesse que cuidaria
disso com as próprias mãos.
— Eu disse que vou resolver
isso — repeti, me controlando também.
Eu podia lidar com as ameaças
de Frederik quando elas eram
direcionadas apenas a mim. Mas ele
havia descoberto a minha fraqueza bem
cedo. Eu nunca seria tão perfeito quanto
ele, porque era tolo o bastante para me
importar com as pessoas ao meu redor e
era assim que ele me manipulava.
Quando eu era um adolescente e não
queria obedecê-lo, ele ameaçava Nick.
Depois, passou a ter Fiona, Khalil e
todos os meus amigos em seu radar.
Agora, Raven Clarke era uma
presa e suas mãos doentias e eu era a
única coisa que estava impedindo-o de
esmagá-la.
Por enquanto.
Eu precisava urgentemente me
embebedar.
Queria fazer isso sozinho, por
isso fui a um bar mais distante,
localizado do outro lado da cidade, e
não o Pandemônio. Tudo o que eu sentia
naquele instante era culpa e remorso e,
enquanto me afogava em muitas doses de
rum, eu tentava encontrar uma solução.
Eu estava numa encruzilhada e
não havia nenhum caminho mais brando
a se tomar. Aquela era uma faca de dois
gumes e eu só esperava que Raven não
saísse ferida no fim de tudo. Eu podia
lidar com a minha destruição. Na
verdade, eu esperava por ela. Há muito
eu já havia aceitado o fim violento que,
provavelmente, me aguardava. Mas ela
não merecia isso.
Bati o copo vazio contra o
balcão de madeira antes de empurrá-lo
na direção do barman, que me serviu
novamente. O Scorpion era o bar mais
“barra pesada” que integravam o
patrimônio dos Wrath. Achamos melhor
nos apropriarmos dele dois anos atrás,
antes que os Daggers o fizessem. Apesar
dos olhares tortos que eu recebia dos
homens por ali, grande parte deles
bêbados e ansiando por uma briga, eu
estava apenas focado em preencher cada
uma das minhas veias com álcool para
esquecer de tudo.
O lugar era extremamente
escuro e mal arejado, com cheiro de
cigarro e cerveja barata impregnando
todos os cantos do ambiente. Um jogo de
beisebol passava na pequena televisão
no alto do bar, mas ninguém dava muita
atenção. A maioria dos homens por ali
bebiam, jogavam sinuca e conversavam
baixinho entre si, como se estivessem
praguejando em solo sagrado.
Provavelmente, já sabiam da
notícia sobre o escândalo dos Wrath. A
mídia não perdera a oportunidade de
dizer que os estabelecimentos atacados,
que pertenciam à nossa família,
pareciam muito com mecanismos de
lavagem de dinheiro.
Eu estava prestes a perguntar
logo o que diabos eles tanto
cochichavam quando uma pessoa
deslizou para o assento vazio ao meu
lado. Senti meu sangue ferver quando
percebi que era o maldito Hive.
— Que merda você está
fazendo aqui? — perguntei, ríspido, com
o corpo ficando rígido e tenso.
Meu irmão me ignorou por um
momento, pedindo uma cerveja ao
barman. Ele tirou a jaqueta, colocando-
a no banco a lado e cruzou os braços
sobre o balcão. Só depois que recebeu
sua bebida, ele me olhou.
— Esse é um maldito país livre
e eu posso ir para onde quiser —
respondeu, sua impaciência era um
reflexo da minha.
Eu não estava a fim de brigar
naquele dia. No momento, meus
problemas eram bem maiores que o
desgraçado vingativo e impulsivo do
meu irmão. Hive não parecia dar a
mínima também e, naquele instante, eu o
respeitei.
Deixei um leve sorriso pairar
sobre meus lábios.
— Sabe de uma coisa, Hive?
Você é um desgraçado sortudo por não
ser filho de Frederik Wrath — eu disse,
após alguns segundos. — Isso é como
ganhar em algum tipo de loteria cósmica
e você deveria se sentir grato por isso.
Está livre. Pode fazer o que quiser da
sua vida medíocre. Mas, ao invés de
aproveitar esse privilégio, está aqui
nesse inferno no deserto, me
atormentando. — Estalei a língua,
indignado, e me virei para ele. — Qual
a porra do seu problema?
Ele deu um suspiro exasperado.
— Nós dois estamos fazendo
tudo errado há anos, Hades. Por mais
que você não queira admitir, você
também tem sua conta de débito com o
karma.
Ri nasalado antes de acenar
com a cabeça.
— Estou tentando encontrar
uma maneira de fazer as coisas certo,
pra variar.
— Pela Raven? — perguntou
ele, me fazendo engolir em seco. Bebi
mais um gole do líquido amargo em meu
copo. A ausência de uma resposta minha
foi o bastante para ele. — E a história se
repete…
Sua menção à situação com
Selina me fez trincar o maxilar e me
recordar do beijo que Raven
mencionara.
Selina e eu fomos apenas sexo
e ambos sabíamos disso. As
circunstâncias eram completamente
diferentes.
Raven, no entanto, despertava
uma parte de mim que eu nem sequer
sabia que ainda existia. Me sentia
diferente perto dela. Era como ficar
próximo da luz após um longo período
imerso em trevas profundas.
Eu a desejava e aquilo estava
me corroendo pouco a pouco.
Principalmente, porque eu escondia
coisas sobre ela e, quando Raven
descobrisse, voltaria a me odiar. Toda a
mudança sutil, que ocorreu na forma
como ela me olhava, iria desaparecer.
— Não tem história nenhuma se
repetindo além de você fodendo tudo
com as garotas que se importam contigo.
Nick riu alto.
— Você deve ficar muito feliz
por poder consolar elas depois que eu
estrago tudo.
Balancei a cabeça.
— Pare de ser um imbecil o
tempo todo. Selina te amava. A última
coisa decente que você fez foi se
distanciar dela. Não arraste Raven para
as suas merdas também.
— Você gosta dela — soprou
ele, surpreso. Não neguei, embora
aquela informação pudesse impulsionar
o desejo do meu irmão de se aproximar
dela apenas para me provocar. — Puta
merda, você gosta mesmo dela!
Ele gargalhou como se tivesse
encontrado a piada mais engraçada do
mundo. Apenas bufei, desviando o olhar
para o outro lado. Definitivamente eu
não queria conversar com ele sobre
Raven.
— Cale a boca — murmurei.
— O grande egoísta sem culpa.
O frio e inatingível Hades Wrath… —
Hive assobiou. — Quer saber? No
começo, pensei que só estava brincando
com ela. Pensei que ela era mais uma
presa em sua teia. Alguém com quem
você queria apenas diversão. Mas o
jeito como você a olha ou fala dela…
Isso sim é novidade.
— O que você quer com ela?
— rebati, temendo a possibilidade de
ele machucá-la.
— Não é da sua conta.
— Você falou quem ela era
para os Daggers?
— Não — negou, tenso.
Estreitei os olhos, analisando
sua postura. Seu maxilar estava retesado
e os ombros, rígidos. Ele rejeitava a
ideia com seu olhar.
Ele não estava mentindo.
— Você não quer envolvê-la
nisso, Nicholas.
— Foi você quem a envolveu!
Agora ela está dentro do jogo e vai
sofrer as consequências disso por sua
causa. Sabe de uma coisa, irmãozinho?
Não acredito que você se aproximou
dela apenas casualmente. Seria muito
coincidência, não acha? A filha do
maior inimigo do seu pai, de repente, se
tornando sua aliada? Não acredito nessa
história.
— Acredite no que quiser.
Ele estava juntando as peças
facilmente, porque também conhecia o
modus operandi de Frederik Wrath.
— E Raven acha que sou eu
quem a está usando — Nick assobiou.
— Vai ser uma grande decepção, huh?
Bati forte com o punho na mesa,
fazendo um estrondo oco soar. Algumas
pessoas se viraram para observar. Nick
se empertigou.
— Fique longe disso, Hive.
Não vou pedir novamente.
— Não estou interessado em
ferrar com você dessa maneira, Hades.
Você vai se enforcar sozinho com essa
corda, não precisará da minha ajuda pra
isso.
Não lhe dei mais ouvidos.
Depositei algumas notas sob o copo
vazio e deixei no balcão. Me levantei e,
sem dizer mais nada, dei as costas ao
meu irmão.
De novo.
Quando eu era criança, eu
ouvia vozes
Algumas cantavam e algumas
gritavam
Você logo descobre que tem
poucas escolhas
Aprendi que as vozes
morreram comigo
Nunca dome seus demônios
Mas sempre os mantenha em
uma coleira
Arsonist's Lullabye - Hozier
Eu acordei atordoada.
Minha cabeça doía como o
inferno e eu conseguia ouvir o som da
tempestade lá fora, o barulho furioso do
vento e dos relâmpagos. Demorei para
abrir os olhos, mas, quando o fiz,
percebi que não estava totalmente
escuro ao meu redor. Eu estava presa e
sentada numa cadeira, com as mãos
atadas atrás das costas. Minha roupa
estava molhada da chuva.
Arrastei os pés sobre o chão,
olhando em volta. Não havia muita coisa
naquela pequena sala, nada além de
estantes vazia e caixas de madeira
jogadas por ali. O piso e o teto eram de
madeira. Estava calor. Suor escorria
pela minha testa e, mesmo quando tentei
puxar os braços para me desvencilhar,
não funcionou.
Seja lá onde eu estava, era
velho e abandonado. A poeira fazia meu
nariz coçar.
Soltei um palavrão antes de
chamar o nome de Joel, com ira.
Eu tinha certeza de que era ele.
Ele deveria querer me intimidar, me usar
para chantagear Hades. Afinal, estava
acontecendo uma guerra em Carmine e
havia um preço pela minha cabeça. Eu
não apenas sabia muitas coisas contra a
máfia de Dallas, mas agora sabia
também sobre a de Carmine. Eu poderia
ser a carta na manga de qualquer um que
quisesse destruí-los.
Ou seja, os Daggers.
Assim que esse pensamento
cruzou minha mente, uma voz familiar
alcançou meus ouvidos.
— Olha só quem acordou. —
Nick deu a volta, entrando no meu
campo de visão.
Estreitei os olhos para enxergá-
lo sob a luz amarelada e tremeluzente
pendurada acima da minha cabeça.
Senti um gosto amargo na boca
quando o vi. O Nick gentil que me
resgatara do deserto e que me beijara
tão delicadamente havia desaparecido.
Trinquei o maxilar enquanto lhe
direcionava o olhar mais furioso que
podia.
— Seu desgraçado — rugi,
entredentes. — Me solte ou…
— Ou o quê? — Ele cruzou os
braços e sorriu, arrogante. Estava na
vantagem. Todas as ameaças que eu
poderia fazer seriam completamente em
vão naquele instante. — Ou você vai
ligar pro seu namorado?
Balancei a cabeça, incrédula, a
compreensão me tomando lentamente.
— Isso é por causa do Hades?
Foda-se, Nicholas, não me envolva
nessa rivalidade estúpida entre vocês.
Nick estreitou os olhos
castanhos para mim. Havia algo ali que
eu não conseguia ler.
— Você já está envolvida,
menina. Se envolveu quando escolheu
ficar do lado dele. E você fez isso bem
rápido, não é?
Franzi o cenho e abri a boca,
prestes a rebatê-lo, mas uma sombra
surgiu no canto do meu olho. Fitei
aquela direção, encontrando a figura de
Garrett descendo as escadas na parte
mais escura daquele pequeno depósito.
— Não brinque com a comida,
Hive.
Sua voz estava carregada de um
tom assustador que fez meus ossos
tremerem. O homem me analisou com
um sorriso predatório no rosto,
terminando de descer os últimos degraus
e girando um canivete nas mãos.
— O que é isso? Uma
convenção dos malditos Daggers?
Ele riu alto antes de coçar a
barba escura, me analisando dos pés à
cabeça. Eu não podia acreditar que
estava ali, completamente à mercê
daquela gangue — que, pelo o que eu
sabia, reunia os homens mais
inescrupulosos e nojentos da cidade. Eu
não queria pensar nas possibilidades.
Ainda assim, elas passavam no fundo da
minha mente como um trailer. Era um
terrível lembrete de que bastaria um
passo mal calculado para que eles se
vissem livres para fazer o que
quisessem comigo.
Me recordei de quando Hades
dissera que era provável que Voich
exigisse uma prova da lealdade de Nick.
Talvez fosse isso. Mas, mesmo assim,
não tornava toda a situação mais fácil.
Wade estava certo. Nunca
deveríamos ter confiado em Nick.
Engoli em seco.
— Não vou dar nenhuma
informação sobre o Pandemônio, se é
isso o que vocês estão buscando. — Me
surpreendi com o quão firme e
impassível minha voz soou.
Contudo, eu estava pronta para
apelar, caso fosse necessário. Eu
duvidava que alguém conseguisse me
encontrar ali, então as únicas opções
que eu tinha eram: esperar que eles
saíssem para tentar me soltar e fugir; ou
fazer o que eles pedissem para que me
soltassem logo. Eu não estava nem um
pouco disposta a ser um fantoche dos
Daggers. Não daria nada a eles.
Eu já estivera muito próxima da
morte antes e, inexplicavelmente, isso
não me aterrorizava mais.
— Eu não preciso que você
diga nada. — Garrett se inclinou na
minha direção, sorrindo. Claro, ele não
queria informações de mim, porque
Hive, provavelmente, lhe dizia tudo o
que ele precisava saber sobre o
Pandemônio. — Você está aqui porque é
a minha moeda de troca. Uma moeda
muito valiosa, pelo o que fui informado.
— Hades não vai cair nessa —
afirmei, com mais certeza do que eu
tinha de verdade.
— Se você acredita nisso,
então é mais idiota do que eu imaginava.
— O que você quer? Pelo o que
pretende me trocar?
— Acho que isso não é da sua
conta, gatinha.
Algo me dizia que não seria
uma troca simples.
— É uma armadilha, não é? —
Estreitei meus olhos para ele,
desconfiada. Garrett não respondeu. —
Hades não vai cair nessa — repeti,
tentando convencer a mim mesma.
Não sabia quem eu estava
tentando realmente convencer com
aquilo: meu sequestrador ou a mim
mesma.
— Me disseram que Hades
Wrath é um tolo quando se trata de você.
Virei meu rosto e olhei para
Nick. Ele estava silencioso e sem
esboçar nenhuma expressão. Eu queria
saber o que se passava em sua cabeça.
Eu realmente tinha me enganado quando
pensei que ele estava arrependido por
tudo o que fez? Ele havia mesmo
contado tudo aos Daggers e lhes
mostrado novamente qual era o melhor
caminho para nos atingir?
Eu estava mais decepcionada
do que brava.
— Podem me manter aqui o
quanto quiserem, mas você não vai ter o
que quer. — Dei de ombros.
Toda aquela falsa segurança, na
qual eu queria fazê-los acreditar, era
apenas patética.
Garrett deu um sorriso ainda
maior antes de aproximar os lábios do
meu ouvido, como se estivesse prestes a
contar um segredo. Me encolhi em asco,
tentando me distanciar o máximo que
podia.
— Acho que você está errada.
Acabarei com Hades e ainda ficarei com
você pra mim, de brinde. — Ele me
encarou. Estava assustadoramente perto.
O suficiente para que eu sentisse o
cheiro de cigarro e álcool que ele
emanava.
Sem pensar, recuei minha
cabeça o máximo que pude antes de
lançá-la contra o rosto de Garrett,
batendo com tanta força que uma dor
latejante logo me invadiu. Ele se
distanciou com o impacto, emitindo um
som que parecia algo entre um gemido e
um grunhido. O líder dos Daggers se
endireitou rapidamente, entretanto. Em
seguida, passou a mão sobre o nariz, que
havia sido atingido diretamente pelo
topo da minha testa. Olhou incrédulo
para o líquido vermelho viscoso que
manchou seus dedos, me fazendo sorrir.
Então, ele levantou seus olhos
escuros para mim. Toda sua arrogância
havia sido substituída por cólera. Bastou
que eu piscasse para que ele se atirasse
sobre mim. Sua mão segurou com força
minha mandíbula, impedindo-me de
desviar meu olhar dele. A pressão
estava doendo, mas não deixei isso
transparecer. Lentamente, Garrett
levantou a lâmina do seu canivete e a
levou na direção da minha bochecha,
pressionando o metal gelado e
enferrujado contra a minha pele.
— Não sei como você era
tratada lá em Dallas, mas com certeza
não era com a firmeza que merecia, ou
então não seria tão insolente. — Ele
intensificou a força, fazendo lágrimas
brotarem no canto dos meus olhos. Por
um momento, pensei que ele fosse
esmagar minha mandíbula.
— Garrett. — A voz de Nick
soou, quebrando o silêncio cadavérico
no qual ele se encontrava até aquele
instante. Apesar de ele ter repreendido
Garrett, demorou ainda alguns segundos
para que este me soltasse, fazendo-o de
maneira brusca e repentina.
Tossi algumas vezes,
respirando ofegante.
Garrett limpou a lâmina na
manga da jaqueta de couro preta que
usava, foi só então que senti o ardor em
minha bochecha. Olhei para baixo,
percebendo que ele havia feito um corte
em minha pele, e assisti inerte quando
uma gota de sangue caiu do meu rosto na
calça jeans, tingindo o tecido de
vermelho. Tomei uma respiração
profunda, tentando controlar a raiva que,
de repente, havia preenchido todo meu
interior.
Levantei a cabeça para encará-
lo.
— Eu juro — falei, reunindo
toda a minha força para que minha voz
soasse firme e forte. — Eu juro que
você vai pagar por isso.
Garrett me fitou, subitamente
retornando à sua arrogância anterior.
— Mal posso esperar, gatinha.
— Ele piscou antes de fazer menção de
se virar.
Não pensei antes de dizer:
— Você acha que Joel
McKinley e Connor Kamps estão do seu
lado, não é? — debochei. — Eu é quem
mal posso esperar para ver o grande e
arrogante Garrett Voich sendo passado
pra trás. Esse será um belo show.
Ele se voltou para mim,
cerrando os olhos.
Se tinha algo que eu havia
aprendido no mundo da máfia, era que a
raiva era a mais estúpida das emoções,
porque ela não nos permitia pensar
racionalmente. Ela levava ao
descontrole, que, por sua vez, levava à
fraqueza. E, quando se é fraco, é mais
fácil ser atingido e derrotado. Joel já
teria caído há muito tempo porque era
impulsivo como o inferno, se não fosse
por Connor — que era seu completo
oposto. E Garrett podia ser tirado do
sério facilmente, eu havia testemunhado
isso momentos atrás.
Eu queria destruir sua
confiança e seu controle.
— Eu cresci os observando,
então acredite quando eu digo, a máfia
de Dallas não faz amigos. Sequer
aliados. Eles usam as pessoas para
conseguir o que querem. Então, seja lá o
acordo que vocês fizeram, saiba que
eles não vão cumprir. No final disso
tudo, você vai se ferrar ainda mais do
que eu.
Eu estava conseguindo deixá-lo
desconfiado. Pude ver a sombra da
dúvida brilhando em seus olhos. O
homem não me respondeu. Apenas se
virou e saiu do cômodo — que parecia
ser um porão.
Sorri.
Aquela era a fraqueza que
deveríamos explorar para destruir a
aliança entre Dallas e os Daggers.
Minha alegria durou muito
pouco e meu sorriso se desfez
rapidamente quando Nick entrou no meu
campo de visão.
— Eu não sabia que ele iria te
machucar. Sinto muito.
Ri nasalado, incrédula.
— Ouça bem, Hive — anunciei,
olhando fundo em seus olhos. — Eu não
quero ouvir sua voz ou mesmo olhar
para sua cara. Nunca mais. Então, você
pode ir para o inferno.
Eu falei lenta e pausadamente
para que cada uma daquelas palavras se
prendesse em sua mente.
Vi seu pomo de Adão se mover
quando ele engoliu em seco.
— Hades estava certo quando
disse que Garrett iria querer que eu
provasse minha lealdade. Foi isso o que
ele mandou eu fazer.
Ele achava mesmo que aquilo
o escusava de tudo?
— Você me sequestrou e me
prendeu aqui. Está ajudando-o a
chantagear seu próprio irmão!
Eu estava indignada e com
muita raiva. Se não estivesse amarrada,
eu poderia matá-lo naquele momento.
Nick suspirou antes de tirar um
pequeno lenço vermelho do bolso
traseiro da calça. Em seguida, se
aproximou, levantando o pequeno
pedaço de tecido em direção ao corte
em meu rosto — cuja dor havia sido
anestesiada pelo ódio, que borbulhava
junto com o sangue quente em minhas
veias.
— Fique longe de mim — rugi,
elevando o tom de voz. Nick obedeceu.
— Raven, eu estou fazendo o
que é necessário para destruir os
Daggers. Naquela noite, você disse que
faria qualquer coisa para acabar com
seu padrasto. Quando o seu momento
chegar, você vai entender.
Olhei para ele por longos
segundos antes de falar, vagarosamente:
— Dê o fora daqui.
Novamente, ele obedeceu.
Eles sabem que você anda
como se fosse um deus
Não conseguem acreditar que
te tornei fraco
Strange Love - Halsey
Na segunda-feira, eu estava
tentando esquecer todo o caos de
Carmine e focar no que realmente podia
controlar: o projeto da srta. McPhil.
Tentei abstrair tudo da minha mente
enquanto fazia os esboços da próxima
pintura.
Meu corpo estava tenso,
contudo. E nem mesmo a música agitada
emitida pelos meus fones de ouvido
conseguia me fazer relaxar, de modo que
os desenhos não estavam ficando bons.
Arranquei a folha do meu caderno de
desenhos e a amassei em uma pequena
bola, deixando-a cair, no chão ao lado
da minha cama e se juntar às outras.
Eu estava também estressada
pelo teste de História da Arte que tivera
mais cedo naquele dia. Não que eu
houvesse me saído terrível nele, mas
tinha me deixado nervosa. Temia que
todas as coisas que estavam
acontecendo afetassem meu desempenho
e me fizessem fracassar na faculdade.
Suspirei, recomeçando o
desenho em uma folha em branco. Não
pude continuar, porém, pois a porta do
dormitório se abriu e Libby entrou
eufórica, atraindo minha atenção. Ela
estava agitada quando jogou sua bolsa
sobre a cama, vindo até mim.
— O que houve? — perguntei,
após tirar os fones dos ouvidos e me
sentar ereta, com as pernas cruzadas
sobre o colchão.
Ela jogou suas longas tranças
por sobre um ombro antes de se sentar à
minha frente.
— Você está famosa agora.
Todos estão falando sobre o que
aconteceu na festa do Hades.
Rolei os olhos.
Já estava me acostumando com
os boatos que rondavam Carmine.
Ninguém conseguia disfarçar o interesse
em fofocas por ali. Eu tinha ignorado
todos os olhares indiscretos que me
seguiram pelo campus naquela manhã.
Minha aparição ao lado de Hades na
festa havia gerado muitos boatos, mas eu
não me importava com o que falavam de
mim. Na verdade, eu já estava
esperando por isso quando saí do
dormitório no início do dia. Afinal,
Hades Wrath era o cara mais conhecido
da cidade. Sua família era rica e famosa.
Os holofotes estavam sobre nós quando
acompanhei Hades saindo de maneira
nada educada da própria festa, chocando
a todos os convidados.
— Que ótimo — murmurei sem
ânimo.
— É sério, Raven, sua foto está
em todos os tabloides. Eles querem
saber quem é a garota misteriosa que
roubou o coração de Hades Wrath.
Libby me estendeu seu celular,
cuja tela mostrava um site de fofocas
local. Apanhei o aparelho nas mãos e
fitei a matéria. Abaixo do texto havia
uma série de fotografias da festa.
Ampliei a primeira, que também estava
no centro da página. Fora tirada no
momento exato em que Hades e eu
entramos no salão de festas, meus
cabelos estavam bagunçados e o batom
havia sumido dos meus lábios.
Não pude evitar sorrir, me
lembrando da cara de irritação de
Frederik naquele momento.
Deslizei o dedo sobre a tela,
passando para a próxima imagem. Nela
mostrava o pai de Hades posando para a
foto, com sua postura arrogante e uma
taça de champanhe em sua mão. Quando
meus olhos recaíram sobre a mulher ao
seu lado, se arregalaram com o choque.
Eu provavelmente teria caído se não
estivesse sentada. Segurei o celular mais
firme em minha mão e o aproximei do
rosto, analisando a face da mulher que
eu me lembrava de ter visto de costas,
usando vestido verde.
Li a legenda abaixo.
Frederik Wrath e sua noiva,
Amanda Trammel.
Agora eu entendia porque sua
silhueta me parecera tão familiar
naquele momento.
A madrasta de Hades era minha
mãe.
Meus dedos começaram a
tremer, de modo que o celular
escorregou por entre eles e caiu no meu
colo. Cobri a boca com a minha mão,
sentindo como se todo o mundo
estivesse se deteriorando ao meu redor.
— Raven, o que houve? —
Libby se aproximou preocupada. — Seu
rosto está pálido, parece que viu um
fantasma.
Minha amiga acertou em cheio.
Eu tinha visto o fantasma da minha mãe.
Bem ali, mais próxima do que eu jamais
ousaria imaginar, ao lado de Frederik
Wrath.
A madrasta do Hades.
Passei as mãos sobre a cabeça,
emaranhando meus dedos por entre os
fios do cabelo.
Saltei de cima da cama com
urgência e alcancei o meu celular na
pequena cômoda ao lado da minha cama.
Os segundos voaram enquanto eu
procurava seu nome na lista de contatos.
Após iniciar a chamada, não
demorou para que eu ouvisse sua voz
trêmula. Pela primeira vez, após eu
tentar quase que diariamente nos últimos
meses, ela atendeu minha ligação.
— Passarinho?
Caí sentada sobre a cama,
completamente incrédula. Libby me
observava atentamente, como se eu fosse
desaparecer diante de seus olhos a
qualquer instante.
— Mãe… — Minha voz mal
saiu como um sussurro.
— Meu Deus, eu não pude
acreditar que era você mesma, bem na
minha frente, depois de todo esse
tempo…
Astrid — ou Amanda — falava
rápido, embolando as palavras numa
trama que me deixava zonza. Pisquei
algumas vezes, ainda em choque.
— O que você está fazendo
aqui? O que está fazendo com Frederik
Wrath? — Havia certo tom de acusação
em minha voz, mas não pude evitar.
Talvez aquela reação me
tornasse uma pessoa egoísta, mas eu me
sentia traída por minha própria mãe.
Porque ela havia me abandonado numa
casa cheia de traficantes e, enquanto eu
estava tentando sobreviver dia após dia,
ela estava aproveitando do luxo de ser a
próxima senhora Wrath.
— Ele me encontrou — Astrid
falou, sua voz não passava de um
soluço. — Me encontrou depois que eu
fugi de Dallas e prometeu que me
protegeria de Joel. Ele disse que iria te
salvar, meu pequeno passarinho…
— Bem, ele não fez isso. Eu me
salvei sozinha — rebati, repleta de
mágoa e ressentimento. — E mesmo
depois de tanto tempo você sequer
tentou ir até mim.
— Eu não sabia que você
estava em Carmine. Não soube até a
festa e mesmo depois disso eu tive
tanto medo. Frederik me mantém longe
de seus negócios, ele me vigia o tempo
todo. Meu bebê, eu sinto muito, muito
mesmo.
— Ele está te usando. Sempre
esteve. Você é a vingança de Frederik
Wrath.
Tudo parecia muito claro agora.
O pai de Hades estava se vingando de
Joel por ele ter engravidado Eve. Tudo
fazia sentido agora.
— Era a única maneira de eu
sobreviver, minha filha. Tente entender,
ele me ajudou a me desintoxicar. Estou
limpa há anos. E você está apaixonada
pelo filho de Frederik. Eu vi em seus
olhos naquela festa. Podemos ser uma
família de verdade, passarinho. Tudo
vai ficar bem agora.
Franzi o cenho, enojada.
— Ficou louca? Aquele homem
é tão ruim quanto Joel. Talvez pior.
— Você ama Hades ainda
assim, não é? Pode me culpar por amar
o pai dele?
— Hades não tem nada a ver
com Frederik! — eu estava gritando e
sequer percebi até aquele momento.
Meus olhos estavam cheio de lágrimas e
eu estava com tanta raiva.
Queria quebrar aquele quarto
inteiro e gritar até me sentir
completamente esgotada.
— Um dia você vai entender...
Desliguei na sua cara, deixando
o celular cair no chão em seguida.
Escondi o rosto com as mãos e
me permiti chorar.
— Raven… — Libby colocou
uma mão em meu ombro, tentando me
confortar, mas me afastei por instinto.
Senti minha cabeça e meu
coração doerem mais do que nunca.
Eu sempre havia fantasiado que
um dia encontraria minha mãe e que
seríamos uma família normal. Que
iríamos para bem longe de Dallas e de
homens como Joel. Agora eu estava
presa naquela teia, no fogo cruzado entre
McKinley e Wrath, e não podia mais
fingir que tudo ficaria bem. Minha mãe
não queria ser salva.
No fundo, ela sabia que estava
sendo usada e maltratada, sabia que seu
futuro marido não se importaria em me
esmagar com seu punho. Era óbvio que
ele adorava o poder e a glória, e era
capaz de vender o próprio filho em troca
de uma pilha de dólares. E, ainda assim,
Astrid não se importava com isso.
Minha mãe era viciada na dor
de amar homens que a odiavam.
Não saberia dizer quanto tempo
se passou comigo chorando de raiva,
abraçada aos meus joelhos. Libby tentou
se aproximar novamente e falar comigo,
entender o que estava acontecendo, mas
eu não queria falar.
Até que, de repente, senti um
cheiro familiar que instantaneamente
anestesiou a dor. Senti seu toque gentil
nas minhas costas e logo me virei em
sua direção, enlaçando seu pescoço com
meus braços.
— O que houve, amor? —
Hades perguntou baixinho em meu
ouvido, enquanto acariciava meus
cabelos. — Em quem eu devo bater por
fazer você chorar?
Sorri fraco contra seu pescoço.
Levantei o rosto alguns
centímetros, vendo Libby próxima à
porta. Sabia que ela havia o chamado e
estava grata por aquilo. Tentei transmitir
isso em meu olhar. Ela, por sua vez, deu
um sorriso acalentador e saiu,
provavelmente para nos dar um pouco
de privacidade.
Perto de Hades eu me sentia
capaz para enfrentar qualquer coisa, não
importava o quanto eu parecesse
pequena diante de todas as tragédias ao
meu redor. Ele fazia eu me sentir forte e
corajosa.
Me afastei para olhar nos seus
olhos e rapidamente ele levou sua mão
até meu rosto, secando as lágrimas que
rolavam pelas minhas bochechas. Então,
respirei fundo antes de dizer:
— Amanda Trammel é minha
mãe.
Hades franziu o cenho, confuso
e um pouco em choque. Contei a ele
sobre a foto que havia visto e a conversa
curta que tive com ela. Vi a raiva
invadir os poros dele, um a um.
— Frederik fez questão de que
eu visse minha mãe ali em seus braços.
Ele está usando nós duas para destruir
McKinley.
A maneira como ele me olhara
naquela festa era um aviso, uma ameaça
silenciosa. Agora eu percebia qual era
sua real intenção. Ainda assim, eu me
perguntava: por que ele nunca havia
chegado perto de mim? Se Frederik
queria nos usar, se ele estava com minha
mãe há anos, então sabia quem eu era.
Apesar disso, ele jamais fizera qualquer
movimento para tentar tirar de mim
alguma informação útil sobre seu
inimigo.
Por quê?
— Sádico desgraçado —
Hades cuspiu as palavras, trincando o
maxilar e passando os dedos pelos fios
escuros de seus cabelos.
Olhei em sua direção. Ele
parecia realmente surpreso com a
informação de quem sua madrasta
realmente era. Então Hades não estava a
par do plano de seu pai. Aquilo me
tranquilizou um pouco, mas também nos
arremessou no escuro. Não sabíamos
qual seria a próxima jogada de Frederik.
— No fim de tudo isso —
comecei a falar, atraindo sua atenção
para mim —, quando Joel e Garrett
caírem, vou me certificar de que
Frederik também irá.
Aquilo era um aviso. Hades
soube disso e, apesar do vinco de
preocupação entre suas sobrancelhas,
ele acenou com a cabeça, concordando.
Frederik entrou
permanentemente em minha lista. Queria
destruí-lo tanto quanto a Joel.
— Raven, eu sinto muito pela
sua mãe. Eu não fazia ideia…
Assenti, me levantando e
secando os últimos vestígios de
lágrimas salgadas do meu rosto.
— Precisamos recuperar o
Pandemônio. Tomar de volta a
vantagem.
Nos últimos dois dias após a
festa, passamos as tardes jogando
pôquer. Eu precisava treinar e estar
preparada para a disputa com Kamps,
que se aproximava cada vez mais. Ainda
assim, não importava o quanto eu
estudasse sobre o jogo, não parecia que
eu tinha qualquer chance vencer.
Hades se levantou também.
— Por isso nós vamos viajar
no próximo fim de semana.
Levantei uma sobrancelha,
confusa.
— Para onde?
— O melhor lugar para se
aprender a trapacear. — Ele fez uma
pausa antes de sorrir e anunciar:
— Las Vegas.
Tudo sobre você é magnético
Você realmente me pegou
agora
Você faz isso comigo tão bem
Hipnótico, tomando conta de
mim
Me faz sentir como outra
pessoa
Eu não quero voltar para
baixo
Hypnotic - Zella Day
Viajar pela estrada cercada pelo
deserto e o forte calor do sul me fazia
lembrar da amarga jornada que eu havia
feito para longe do Texas. Não era uma
boa memória. Entretanto, estar ali, no
banco do carona do Camaro de Hades,
não era nada parecido com isso. Eu
tinha as pernas cruzadas sobre o painel
enquanto embaralhava um grupo de
cartas em minhas mãos. Ao meu lado,
Wrath dirigia tranquilamente,
tamborilando os dedos repletos de anéis
prateados no volante, ao ritmo do rock
que tocava na rádio.
Um sorriso leve pairava nos
lábios de Hades, ele estava confortável,
talvez até feliz, em fazer aquela viagem.
Eu não estava muito diferente.
Era revigorante sair de
Carmine. Embora a situação lá não
estivesse boa, não havia nada que
pudéssemos fazer de imediato. Estava
sendo bom me afastar um pouco de toda
a situação com minha mãe, me
corroendo durante toda a última semana,
imersa num misto de tristeza, raiva,
decepção e incredulidade. Astrid fez eu
me sentir como uma tola e eu estava
desesperada para desviar meus
pensamentos dela.
Viajamos com a capota do
conversível abaixada, o Sol em nossas
cabeças e o vento balançando meus
cabelos. Mordi meu lábio inferior,
observando a tatuagem na lateral do
pescoço dele, atrás de sua orelha. Era
uma carta do rei de copas.
Muitos dos desenhos em sua
pele estavam expostos pela blusa preta
de mangas curtas e eu poderia ficar o
dia todo admirando-os.
— Certo, vamos de novo —
falei, voltando meus olhos para o
baralho em minhas mãos. Retirei uma
carta do meio, um cinco de espadas.
Mantive ela apenas para mim.
Hades virou seu rosto para a
carta em minhas mãos, olhando o dorso
dela por apenas um segundo, através dos
óculos escuros, antes de voltar a fitar a
pista.
— Cinco de espadas — ele
simplesmente adivinhou.
De novo.
Bufei alto, frustrada, abaixando
a carta e colocando-a de volta no monte.
Hades riu alto, arrogante com a sua
quarta vitória consecutiva. Eu tinha
encontrado aquele baralho quando
estava vasculhando o porta-luvas de seu
carro e ele havia garantido que poderia
adivinhar qualquer carta que eu retirasse
dali.
— Já chega, me diz como você
faz isso — perguntei, irritada.
Hades riu ainda mais.
— Um bom mágico nunca
revela seus segredos, amor.
Estreitei meus olhos em sua
direção.
— Mas você irá revelá-los
todos para mim, não é?
Minha voz saiu como o
ronronar de um felino manhoso, ao qual
Hades raramente podia resistir. Ele
deixara bem claro que eu era a exceção
de todas as suas regras.
Ele inclinou seu rosto
levemente para me olhar e, mesmo sem
poder ver seus olhos por detrás das
lentes escuras, eu sabia que havia um
brilho de malícia em suas íris. Hades
passou a língua sobre seu lábio inferior
antes de sorrir.
— As cartas são marcadas,
amor — revelou, apontando para o
dorso do baralho.
Franzi o cenho e peguei uma
delas, olhando para a parte de trás,
oposta a que continha o naipe. Era de um
preto fosco com estampas de arabescos
dourados que formavam desenhos
abstratos. Aparentemente eram todas
iguais, mas, analisando com mais
atenção, dava para perceber pequenas
diferenças entre elas. Levantei as
sobrancelhas, surpresa. Provavelmente,
Hades havia decorado todos os
padrões.
Sorri, impressionada.
— É assim que você sempre
vence no pôquer?
— Esse é apenas um dos muitos
truques que eu tenho.
Sua voz estava carregada de
duplo sentido, fazendo-me arrepiar
completamente. Engoli em seco,
voltando meu olhar para a estrada à
frente.
No instante seguinte, o toque
gelado da mão direita de Hades estava
na minha coxa esquerda, pálida e
descobertas pelos shorts jeans que eu
usava. Ele apenas deixou sua palma
repousando ali, a ponta dos dedos
roçando na parte interna da minha
perna.
Pigarreei, desviando o olhar
para as cartas em minha mão. Fingi
analisar os desenhos dourados
estampados ali quando, na verdade,
estava reunindo todo o meu
autocontrole. Porque o mero toque de
Hades já era o suficiente para me
desestabilizar e ele sabia muito bem
disso. O maldito estava se utilizando
dessa vantagem para me empurrar para
além das barreiras que eu tinha
imposto.
Tudo começara três dias atrás,
enquanto ele me beijava contra a estante
da seção de Direito Constitucional na
biblioteca. Me lembrei de quando o vi
ali, naquela mesma situação, com outra
garota meses atrás e um nó cresceu em
minha garganta.
— Não — eu dissera,
empurrando-o quando tudo o que eu
mais queria era tirar suas roupas bem
ali. — Não vou ceder a você fácil
assim, Wrath.
E Hades me olhara daquela
maneira capaz de enfraquecer os
joelhos.
— Quer apostar que vai? — ele
rebatera.
E, desde então, estávamos
jogando. Éramos ambos muito
orgulhosos e estava sendo uma disputa
acirrada: quem cederia primeiro e
perderia o controle. O que havia rendido
provocações muito divertidas, mas que
também estavam acabando comigo.
Hades estava se esforçando
para vencer e, muitas vezes, eu queria
jogar tudo pro alto e simplesmente
agarrá-lo.
Mesmo agora, o simples toque
de sua mão na minha perna, que poderia
parecer inocente num primeiro momento,
tinha um único propósito: me arrancar o
pouco controle que eu ainda tinha
naquela relação.
Então, quando eu pensava que
não podia piorar, ele subiu seus dedos,
arranhando levemente a parte interna das
minhas coxas em direção ao espaço
sensível entre as minhas pernas.
— O que você está fazendo? —
perguntei, num sopro rouco e patético.
Hades deu de ombros enquanto
seus dedos mergulhavam sob o tecido
folgado do jeans.
— Apenas me distraindo. Essas
viagens longas são bem entediantes.
Mordi o lábio inferior com
força e lutei contra a tentação de fechar
minhas pernas bem apertado. Hades era
um mestre naquele jogo e a minha
derrota parecia iminente — e muito
sedutora. Eu poderia apenas desatar os
cintos de segurança e subir em seu colo,
sentando sobre seu quadril.
Poderíamos fazer isso bem ali
no deserto, nenhum de nós dois teria
alguma objeção a fazer.
Mas eu queria vê-lo implorar.
Desejava que o sorriso arrogante em seu
rosto sumisse. E só então, após ele
declarar minha vitória, eu daria a ele o
que nós dois precisávamos
desesperadamente.
Havia muita teimosia dentro de
mim e eu mostraria a Hades que poderia
ser uma jogadora tão boa quanto ele.
Mordi um sorriso antes de dar
um suspiro demasiado dramático.
— Tem razão. Está muito calor
também — falei, colocando o baralho de
lado.
Enrolei meus dedos na barra da
regata branca que eu usava, puxando-a
para cima, tirando-a e arremessando-a
no banco de trás. Hades me olhou
chocado, flagrando o sutiã preto de
rendas que cobria meus seios. Quase
perdeu o controle do carro, que
escorregou para fora da pista em
direção ao deserto. Permaneci séria
quando desejava muito rir.
— Você também deveria se
livrar de todas essas roupas, amor. Está
muito mais fresco agora…
Hades sorriu, percebendo o que
eu estava fazendo, antes de recolher sua
mão de volta pro volante.
— Tão diabólica…
Sorri, olhando para a estrada.
Naquela rodada a vitória foi
minha.
Raven:
Cadê você? Pensei que
iríamos dançar.
Hades:
Do outro lado da rua, amor.
Eu andava incessantemente de
um lado para o outro em meu quarto.
Não consegui parar desde que Strauss
me ligara, dizendo que sua equipe tinha
Raven e Nick sãos e salvos. O alívio
que eu senti foi logo substituído por
preocupação. Raven matara Joel
McKinley e eu sabia que não deveria ter
sido fácil para ela. Tudo o que eu queria
naquele momento, tudo o que eu
precisava, era ter minha garota em meus
braços.
O resto do Pandemônio também
estava preocupado e queria vê-la.
Surpreendentemente, eles haviam se
apegado muito à Raven. Eu, porém, tinha
pedido a eles que nos deixassem
sozinhos naquela noite. Sabia que, muito
provavelmente, ela precisaria de um
tempo. Queria poder protegê-la disso.
Da culpa que Raven sentia o tempo todo.
Me endireitei quando a porta
do quarto se abriu e Raven entrou. Ela
estava descalça, com profundas olheiras
ao redor dos olhos claros. Parecia
exausta. Parei de andar e a observei, me
recordando da última vez em que nos
falamos. Ela estivera chateada comigo.
Talvez ainda estivesse.
Seus olhos cinzentos me
encararam por longos segundos enquanto
permanecíamos em silêncio, como se
estivéssemos esperando o outro tomar a
iniciativa. A perscrutei com cautela,
procurando qualquer indício de que
estivesse fisicamente ferida. Para meu
alívio, não encontrei nenhum.
Raven suspirou e puxou a barra
de sua blusa preta para cima, tirando-a e
deixando-a cair no chão. Em seguida,
abaixou as calças, permanecendo apenas
suas roupas íntimas. Girou sobre os
tornozelos, cruzando o quarto na direção
do banheiro enquanto tirava o sutiã. Ela
se livrou da calcinha também antes de
entrar, e, para minha surpresa, manteve a
porta completamente aberta. Um
segundo mais tarde, ouvi o chuveiro ser
ligado e logo o vapor quente do seu
banho invadiu o quarto.
Massageei a nuca, me sentindo
numa encruzilhada. Aquilo não era
comum, mas Raven tinha o costume de
ser imprevisível.
Sem pensar demais sobre a
situação, tirei minhas roupas também e a
segui para dentro do banheiro. Raven
estava de costas para mim, o rosto
erguido na direção ao jato d'água. A
água caía em sua cabeça, transformando
seus longos cabelos negros numa cascata
que descia pela extensão de suas costas.
Prendi a respiração ao entrar
no box de ladrilhos escuros, me
postando atrás dela.
— Pensei que não viria — ela
falou, dando um passo para longe do
jato de água quente.
Incapaz de manter minha mão
longe dela por muito tempo, afastei seus
cabelos das costas. Encontrando a pele
lisa e macia de suas costas.
— Achei que ainda estivesse
brava comigo — revelei, deslizando a
lateral do meu polegar contra a parte de
trás de seu ombro.
Raven se virou e se jogou sobre
mim, segurando-se firmemente em meus
ombros enquanto me abraçava,
enterrando a cabeça na curva do meu
pescoço. Minhas sobrancelhas se
ergueram com o movimento inesperado,
mas não demorei a reagir. Coloquei uma
mão na base de suas costas, enquanto a
outra afagava seus cabelos molhados.
— Queria que estivesse lá
comigo. Sinto muito — lamentou, com a
voz embargada, e, com isso, me
desmontou completamente.
Fechei os olhos, apertando-a
forte contra mim, como se ela pudesse
desaparecer a qualquer momento. Senti
meu peito apertar com agonia e
apreensão.
— O que houve, amor?
Converse comigo.
Senti ela balançar a cabeça.
— Não vamos falar sobre isso
agora, por favor.
Assenti, compreendendo.
Em silêncio, deslizei meus
dedos sobre a pele de sua coluna. Era
tão suave, quase etérea. Virei meu rosto,
o suficiente para aspirar o cheiro do seu
cabelo. Raven era tão pequena,
encaixando-se em mim como se
fôssemos peças de um mesmo quebra-
cabeças.
Suas mãos apertaram meus
ombros, subindo e descendo ao longo
dos meus braços. Ficamos assim por
alguns minutos, sentindo um ao outro,
trocando calor entre nossos corpos. Até
que eu me distanciei, apenas o suficiente
para me inclinar na direção da prateleira
de vidro e encher minha mão de
sabonete líquido perfumado. Raven
seguiu meus movimentos com os olhos e
eu a encarei firmemente enquanto
deslizava as mãos ensaboadas sobre sua
clavícula.
Ela ficou extremamente quieta e
eu tive que quebrar nosso contato visual
para me concentrar em limpá-la. Toquei
sutilmente seu pescoço, onde ainda
haviam marcas roxas carimbadas na
pele alva.
Eu passei aquele dia inteiro
pensando sobre o que acontecera na
noite passada. Não consegui me livrar
da imagem de Stephen a enforcando,
desejando tão intensamente sua morte, e
senti raiva de mim mesmo por não ter
estado lá para protegê-la. Mais cedo,
quando eu fora até a delegacia, estava
determinado a matar Stephen com as
minhas próprias mãos. Talvez eu tivesse
feito isso mesmo, se o xerife não me
impedisse. Que bom que me impedira;
afinal, não sabia se Raven teria me
perdoado caso contrário.
Respirei fundo, descendo os
dedos sobre a curva de seus seios até
sua barriga.
Havia algo especialmente
íntimo em tomar banho com outra
pessoa. Talvez por isso eu sempre
evitara esse momento com qualquer
outra garota.
Me impedindo de continuar
massageando sua barriga, Raven me
empurrou para que minhas costas se
chocassem contra a parede. Ela se
colocou na ponta dos pés e aproximou
sua boca da minha, senti sua respiração
em meu rosto. Acariciei sua bochecha,
tentando ler seus olhos.
Quais partes de si mesma
Raven havia sacrificado para matar Joel
McKinley?
Eu podia ver que algo a
assombrava.
Ela passou a ponta da língua
sobre meu lábio inferior, como se
estivesse experimentando meu gosto
antes de, finalmente, me beijar. Não
durou muito, entretanto. Logo ela
separou nossas bocas, me afastando com
uma mão espalmada em meu peito.
Raven beijou meu pescoço
enquanto sua mão arranhava meu
abdome. Ela dedilhava os músculos de
maneira decidida, levando sua mão cada
vez mais ao sul. Minha respiração ficou
mais pesada e, antes que ela descesse
mais, eu agarrei seu pulso, buscando
seus olhos.
— Raven — eu a chamei,
firme.
Queria que ela me dissesse o
que estava se passando em sua cabeça e
em seu coração. Raven parecia
perturbada e isso me corroía. Eu estava
preocupado.
Ela se endireitou. Estava tão
frágil, tão tragicamente quebrada.
— Eu só quero me perder em
você essa noite, Hades — explicou,
quase suplicante. — Preciso sentir
alguma coisa. Por favor.
Franzi o cenho, meus ombros
caindo em derrota. Seria mais fácil se eu
pudesse ouvir seus pensamentos, saber
por que ela temia tanto a ideia de me
revelar suas partes sombrias.
Apenas anuí uma vez com a
cabeça. Ela queria uma distração e eu
estava mais do que disposto em ser uma
naquela noite.
Meu gesto foi a confirmação
que ela precisava para descer seus
lábios pelo meu corpo, traçando uma
trilha de beijos em direção à minha
pélvis. Fechei os olhos quando ela se
ajoelhou diante de mim, sentindo seu
toque ao redor do meu pau antes que sua
língua quente percorresse meu
comprimento.
Um rosnado escapou de mim
quando ela me colocou em sua boca
quente. Minha mão foi instintivamente
para a sua cabeça, mas não a empurrei.
Aquilo era mais sobre ela do que sobre
mim. Me forcei a abrir os olhos.
Precisava assistir.
Raven segurava a base do meu
pau com uma mão, enquanto a outra
estava sobre minha coxa, as unhas curtas
fincadas na pele. Ela sugava e lambia
com vontade, movimentando a cabeça
para frente e para trás, empurrando-me
mais fundo em direção à sua garganta.
Me apoiei no vidro embaçado
do box, sendo envolvido pelo vapor
quente da água, grunhidos escapando por
entre meus lábios.
Prendi meu lábio entre os
dentes, sentindo-me delirar enquanto
Raven ia mais rápido. Ela ergueu seus
olhos para mim, me empurrando
completamente além do meu limite. Eu
estava dopado de tesão.
— Porra — gemi alto, sentindo
o sangue em minhas veias virar lava. —
Eu vou gozar.
Ela sorriu, se afastou e se pôs
de pé. Lambeu os lábios inchados e
vermelhos, que brilhavam molhados.
Aquela visão deveria estar num maldito
museu. Tomei meu tempo para admirar
seu torso nu, o corpo perfeitamente
esculpido que pedia pelo meu toque.
— Quero você dentro de mim
— ordenou, decidida. — Agora.
— Você que manda, amor.
Ensandecido, agarrei sua
cintura e inverti nossas posições,
pressionando-a contra a parede de
ladrilhos e atacando seus lábios, minha
língua clamava pela sua. Talvez eu
também estivesse precisando daquilo.
Sem sombra de dúvidas, eu iria precisar
do corpo de Raven sempre. Ela estava
em meu organismo, em minha corrente
sanguínea. Era irreversível.
Apertei a carne de seus quadris
entre os dedos antes de levantá-la,
impulsionando seu corpo leve para
cima. Instintivamente, Raven enlaçou
minha cintura com suas pernas,
segurando-se em meus ombros. Seus
olhos faiscavam de lascívia e eu
adorava aquilo, sabia muito bem sobre
os pensamentos sujos que rondavam sua
mente naquele instante. Queria ouvir
todos eles em voz alta.
— O que está esperando? —
Raven perguntou, parecendo
desesperada. — Me fode logo, Hades.
Sorri, me inclinando para
abocanhar um de seus seios, que
estavam empinados bem diante do meu
rosto. Mordi seu mamilo intumescido e
ela gritou, fechando os olhos e
começando a se esfregar sobre meu
abdome, em busca de fricção.
Ofegante, larguei seu peito para
olhar novamente para seu rosto. Alguns
fios de cabelo molhados estavam
grudados em sua testa e pescoço.
Acariciei seu rosto com uma mão,
enquanto a outra guiava meu membro
rijo para sua entrada.
Seu rosto se contorceu cada vez
mais de prazer, até nossas pélvis
estarem unidas e eu preencher seu
interior completamente. Seu sexo era
quente e apertado, contraindo-se contra
mim, tirando-me toda a sanidade.
Descansei minha testa contra a
de Raven, entorpecido com a maneira
como ela fazia eu me sentir. Então,
impulsionei meu quadril para trás
lentamente antes de arremeter em
seguida, indo mais fundo. A boca de
Raven se abriu quando um som rouco
cortou sua garganta e ela segurou mais
firmemente em mim. Estabeleci um ritmo
lento e torturante, penetrando-a
profundamente.
A garota logo perdeu a
paciência com tanta lentidão,
começando a rebolar e se esfregar
contra mim num frenesi absoluto. Fiz o
que ela queria e aumentei a velocidade.
O barulho da água do chuveiro não era o
suficiente para abafar os gemidos de
Raven ou o som dos nossos corpos se
colidindo ferozmente.
— Meu Deus — ela limitou-se
a dizer, revirando os olhos antes de me
abraçar.
Raven fechou a boca sobre meu
ombro, mordendo-me ao mesmo tempo
em que afundava as unhas sobre meus
braços, segurando-se firme enquanto
suas costas se chocavam contra a parede
no ritmo das minhas investidas. Aquilo
só fez inflamar ainda mais o incêndio
que havíamos iniciado naquele banheiro.
Empurrei-a contra os ladrilhos
enquanto metia cada vez mais forte. Eu a
fodi de maneira bruta. Era duro e
selvagem, beirava o animalesco. Talvez
aquela fosse nossa marca registrada. Era
impossível manter algum controle perto
um do outro.
Poderíamos causar uma
explosão a qualquer momento.
Bati meu quadril contra o de
Raven novamente, ainda mais forte, e
tive certeza de ter atingido algum lugar
dentro dela que a fez ruir
completamente. Seu corpo começou a
tremer. E eu mal pude admirá-la
enquanto gozava, porque logo atravessei
meu próprio orgasmo. Segurei-a mais
forte em seus espasmos, um gemido
rouco escapando de mim.
Respirei forte contra seu
pescoço, meu peito subindo e descendo
rápido com minha respiração ofegante.
Até que eu ouvi um soluço baixinho.
Franzi o cenho e me afastei para olhar
no rosto de Raven. Lágrimas estavam
presas entre seus cílios. Levantei seu
queixo com a curva do meu indicador,
obrigando-a a me fitar.
— Ei, o que houve? Eu te
machuquei? — O medo me invadiu
rapidamente. A ideia remota de tê-la
ferido poderia ser o suficiente pra me
destruir.
Raven balançou a cabeça,
pegando meu rosto entre as mãos.
— Você me faz sentir como se
eu não fosse completamente vazia por
dentro — lamuriou. Cada palavra me
atingiu como um punhal.
Engoli em seco, colocando
minha mão sobre sua bochecha como
uma concha.
— Você não é vazia —
contrariei, sério. — Como pode pensar
isso? Você é tudo, Raven.
Ela sorriu, seus olhos se
iluminando com um brilho que nunca
deveria deixá-los
— Nunca vi alguém passar de
obscenidades para romantismo tão
rápido como você, Hades Wrath.
— Esse é só um dos meus
vários dons, amor.
Raven riu, voltando a me
abraçar. Saí lentamente de dentro dela,
tomando-a em meus braços. Fechei o
chuveiro e a carreguei para a cama.
Passamos alguns minutos
deitados nus em silêncio. Um lençol
envolvia nossos corpos entrelaçados.
Ela tinha um dos braços sobre meu
tórax, segurando-me como se estivesse
se certificando de que eu não fosse sair
dali.
Não havia a menor chance de
eu ir a qualquer lugar sem ela. Nunca
mais.
Sua cabeça repousava
serenamente contra meu peito. Eu
acariciava seu ombro exposto, traçando
desenhos abstratos em sua pele com a
ponta dos dedos.
O medo de perdê-la era tão
grande que às vezes me sufocava.
Frequentemente vinha na forma de um
pesadelo horrível, mas eu me
tranquilizava quando abria os olhos e a
encontrava ali, dormindo de forma
tranquila tão perto de mim. Não sabia o
que faria se algo acontecesse com ela.
Fechei os olhos por um
instante, me rendendo ao sono que me
consumia lentamente. Até que sua voz
soou.
— Há um ano eu estava sozinha
na casa de Joel, ao menos era o que eu
pensava. Um de seus guardas tentou se
aproveitar dessa situação, entrou no meu
quarto e me ameaçou com uma faca.
Nunca gritei tanto em toda a minha vida.
Eu tive sorte, porque Maria me ouviu,
ela estava lá também. Arriscou a vida
naquele dia quando atacou o guarda para
me defender. Não sei o que teria
acontecido comigo se ela não tivesse
aparecido. Acho que teria feito tudo
para que ele me matasse em vez de…
Sua voz voltou a embargar. Ela
não conseguia dizer aquela palavra em
voz alta. Aquele era o favor que Maria
havia cobrado dela, então. Praguejei
internamente antes de me afastar para
poder olhar seu rosto.
— Vocês são muito fortes. Mais
do que qualquer um que já conheci.
Raven fungou, voltando a se
deitar sobre mim.
— Connor chegou e encontrou
nós duas lutando debilmente contra o
homem. Ele ficou furioso quando
descobriu o que o guarda tentou fazer.
Então me deu um revólver e pediu para
que eu matasse o homem que me atacou.
— Ela fez uma pausa breve. — Eu o
matei. O executei. E não senti nada
quando fiz isso. Hoje eu matei Joel
McKinley e também não senti nada. Que
tipo de pessoa eu sou?
— Uma sobrevivente —
respondi, atraindo seu olhar para mim.
— Eu soube disso na primeira vez em
que coloquei meus olhos sobre você.
Raven deu um sorriso fraco
antes de se inclinar e depositar um beijo
terno sobre a tatuagem que ficava do
lado esquerdo do meu peito. Bem acima
do coração. A caveira com a coroa,
símbolo do Pandemônio. Depois, ela se
aconchegou em meus braços e fechou os
olhos, seus traços ficando calmos e sua
respiração, tranquila.
Ela era uma lutadora nata.
Havia passado por tanta dor e
sofrimento e mesmo assim continuava de
pé, sobrevivendo. Não havia nada que
Raven Clarke não pudesse fazer.
Passei os dedos por seus
cabelos, sentindo sua respiração
tranquila em meu peito.
Decidi, assim, que não
esconderia mais nada dela. Eu a queria
em minha vida e não podia mais ser
egoísta. Iria lhe contar tudo.
— Eu amo você — confessei,
num sussurro. — Te amo mais do que
pensei que fosse possível amar outra
pessoa.
Não foi difícil dizer aquelas
palavras. Embora fosse a primeira vez
que as falava para alguém que não fosse
minha mãe ou meu irmão, não foi
estranho como eu imaginara. Foi natural.
Saiu quase que automaticamente.
Esperei ansioso para que ela
dissesse algo, mas só havia o silêncio.
Me inclinei, capturando um vislumbre
de seu rosto sereno. Raven estava
dormindo profundamente.
Sorri e depositei um beijo em
sua testa. Em seguida, permiti que minha
mente descansasse também.
Nunca mais me deixe sozinho
Minha guerra acabou
Seja meu abrigo desde o início
Minha guerra acabou
The War - SYML
O movimento do bar do
Pandemônio estava diminuindo
gradativamente, o que era
compreensível, já que o período de
provas finais do semestre começara e
logo os universitários estariam saindo
de Carmine para o recesso de fim de
ano. Os clientes do cassino voltaram
como cãezinhos arrependidos após
perderem muito dinheiro com os
Daggers. Ao menos algo bom após a
última sequência de desgraças.
Enquanto bebia uísque sentado
diante do balcão do meu bar eu me
sentia nostálgico. David Bowie tocava
baixinho nas caixas de som e a música
era reconfortante. Khalil estava à minha
frente, do outro lado do balcão, abrindo
uma cerveja para si mesmo. Fechamos o
Pandemônio mais cedo e, uma vez que o
cassino não abria às segundas-feiras,
tudo estava tranquilo.
Eu, por outro lado, estava
inquieto e contemplativo. Meu amigo
não parecia muito diferente de mim,
embora estivesse mais relaxado nos
últimos dias.
Estava sendo difícil focar
completamente no trabalho e esquecer
todo o resto, mas era o que eu precisava
fazer, porque se eu parasse e realmente
tentasse enfrentar a morte de Fiona e o
término com Raven, iria desmoronar.
Acho que me tornaria um bêbado
patético como meu pai, me afogando em
bourbon e deixando minha própria
consciência me torturar pelo resto da
minha vida.
— Alina me contou uma coisa
ontem — K quebrou nosso silêncio após
beber um gole de sua long neck.
Terminei o resto do conteúdo em meu
copo e ergui o olhar para ele.
Ele não me contara o que
estava acontecendo entre ele e Alina,
mas, desde o feriado na semana passada,
eles pareciam completamente loucos um
pelo outro novamente. Não sabia se era
uma boa ideia, mas também não iria
interferir. Ele gostava muito daquela
garota e ficava feliz ao seu lado. Ele
merecia aquilo, depois de tudo.
— O quê? — perguntei, sem
muito interesse.
— Raven recebeu uma
proposta para ir estudar artes em Nova
York.
Assim que Khalil me disse o
nome dela, capturou completamente
minha atenção. Meus ombros ficaram
tensos quando paralisei.
— Ela aceitou?
— Sim. Vai fazer uma
entrevista semana que vem.
Levantei as sobrancelhas,
surpreso.
— Isso é…
Eu não terminei a frase, apenas
sorri.
Me senti orgulhoso.
Raven era, obviamente, uma
artista muito talentosa, que nunca antes
teve reconhecimento. Finalmente,
haviam a notado. Ela merecia aquilo,
mais do que qualquer um. Seria sua
chance de recomeço, afinal. Um
recomeço bem longe de mim. Com
certeza isso era tudo o que Raven mais
queria — principalmente após o que
acontecera entre nós no feriado.
Eu não pude resistir ao vê-la
seminua parada no meio do meu quarto.
Aquele batom vermelho, as longas ondas
dos cabelos mais escuros que já vi
caindo ao redor de seus ombros… tudo
me atingira da maneira mais brutal
possível.
As memórias voltaram com
tudo. Lembranças daquelas poucas
semanas de paz que tivemos após voltar
de Vegas, com Raven abandonando seu
quartinho no alojamento para passar a
maioria das noites enrolada em meu
corpo nos lençóis da minha cama.
Memórias da época em que
Raven Clarke ainda sorria para mim e,
com isso, fazia eu me sentir como se não
fosse apenas um canalha vil e
miserável.
Meu corpo se arrepiou diante
da imagem de seu sorriso e senti um
aperto crescente em meu peito. Agora
deveria encarar o fato de que nunca mais
teria aquilo.
— Acho que vou precisar de
mais uísque pra digerir isso — anunciei,
com um suspiro. K deu um sorriso fraco,
mas compreensivo, e me serviu outra
dose.
— Sinto muito, cara — falou,
tentando me reconfortar.
Doía a ideia de ficar longe de
Raven, mas aquela era a minha sentença
e eu deveria passar o resto da minha
vida me arrependendo por ter estragado
tudo. Além disso, não podia me sentir
menos do que imensamente feliz por
ela.
O nosso encerramento seria
apenas o início para Raven.
Aquilo era muito melhor do que
a ideia de perdê-la da mesma forma que
perdi Fiona. Era reconfortante saber que
a mulher que eu amava estaria, em
breve, segura do submundo. Segura de
mim. Eu poderia viver com aquilo, mas
nunca poderia superar se algo ruim
acontecesse com ela. Apenas aquela
ideia parecia me ferir como metal em
brasa contra minha pele.
De fato, eu preferia morrer
dolorosamente do que ver Raven ferida.
— Vou sentir falta dela —
confessei, franzindo a testa e encarando
a madeira velha e gasta do balcão sob
minhas mãos.
— Eu sei disso, também vou
sentir. Nosso grupo está diminuindo,
huh?
Balancei a cabeça.
— Não tem chance alguma de
eu recrutar novos membros para o
Pandemônio. Fiona e Raven são
insubstituíveis.
— Nunca passou pela sua
cabeça, Hades? — Khalil ficou ainda
mais sério.
— O quê?
— Parar. Abandonar o
Pandemônio.
Eu pensara sobre isso na noite
em que Raven voltara de La Cuesta,
após matar seu padrasto. Eu não dormira
muito naquela madrugada, porque
poucas coisas me abalavam tanto quanto
as lágrimas de Raven. Eu pensara em
deixar tudo nas mãos dos nossos amigos.
Sabia que eles eram mais do que
capazes de tocar o Pandemônio pra
frente se eu me aposentasse. E eu faria
aquilo por ela sem pensar duas vezes.
Raven jamais me pediria para
abandonar, mas eu faria mesmo assim
pelo bem dela.
O Pandemônio não fora
inicialmente minha escolha, mas se
tornara isso com o passar do tempo.
Porque meus amigos e eu tornamos
aquilo em algo bom. Éramos a ordem no
caos. Naquela cidade, os criminosos
jogavam conforme as minhas regras.
Sem o Pandemônio, uma onda de crimes
hediondos iniciaria e a polícia jamais
seria capaz de conter isso.
Éramos um mal necessário.
— Não posso — respondi,
dando de ombro. — Sem nós, tudo isso
vai colapsar.
Khalil ficou em silêncio,
porque ele sabia que era verdade.
Carmine precisava do Pandemônio.
O tilintar do sino acima da
porta do bar interrompeu meus
pensamentos e eu me virei para olhar
quem estava entrando. Era uma mulher
alta, de meia idade e com cabelos
cacheados. Seu rosto me pareceu
familiar, mas eu não a conhecia.
— O bar está fechado — Khalil
informou.
— Estou procurando por Hades
Wrath — anunciou a mulher.
Franzi o cenho.
— Sou eu. — Desci do banco e
fui até ela.
A analisei brevemente.
Ela se vestia de maneira
elegante, com roupa social, e tinha uma
postura séria e profissional. Pensei, por
um instante, que ela pudesse trabalhar
nas empresas Wrath.
— Meu nome é Emily Turn. —
Ela estendeu a mão e, apesar de
relutante, a cumprimentei.
— Eu a conheço?
— Ainda não. — Emily se
endireitou. — Acabo de comprar a
galeria de artes da sua mãe. Ou o que
restou dela, pelo menos.
Minhas sobrancelhas se
ergueram em surpresa.
— Meu pai vendeu a galeria?
— Sim — assentiu, ainda
mantendo a seriedade. — Por uma
ninharia, inclusive.
Eu não estava por dentro dos
planos do meu pai, não desde que
discutimos em seu escritório e ele
impedira minha entrada na propriedade.
Para todos os efeitos, eu não era mais
seu filho.
No entanto, saber que ele
vendera a galeria da minha mãe para
alguém em vez de simplesmente destruí-
la me tranquilizou um pouco. Haveria
uma chance, mesmo que mínima, de que
ela fosse colocada em pé novamente.
— Eu vou reconstruir tudo —
continuou Emily, me surpreendendo
novamente. — Era uma grande fã do
trabalho de Evelyn e ela não merece que
seu legado seja esquecido.
Não consegui dizer nada por
um instante. Estava grato e emocionado
ao lembrar de Eve. Ver sua segunda casa
se transformar em cinzas me destruíra.
Realmente acreditei que a galeria
estivesse perdida para sempre.
Eu nem sequer sabia quem era
aquela mulher e talvez não devesse
confiar em sua palavra. Me incomodava
que a última esperança para a galeria
estivesse nas mãos de uma estranha.
Contudo, eu não tinha, naquele momento,
dinheiro o suficiente para reconstruir
todo aquele lugar e nem saberia o que
fazer se o tivesse.
— Esta é uma ótima notícia,
mas ainda não sei quem é você.
Cruzei os braços e estreitei
meus olhos para ela, não podendo evitar
a desconfiança.
— Sou uma grande apreciadora
de arte, trabalhei por dez anos no Museu
Metropolitano de Arte. Conheci sua
namorada na exposição das obras dela.
Ela me disse que talvez eu pudesse
comprar a galeria de Evelyn.
Raven nunca mencionara
aquilo. Não sabia, na verdade, se
houvera tempo para isso. Tudo
desmoronara tão rápido desde que
voltamos de Las Vegas — inclusive
nosso relacionamento.
E agora eu descobria que ela
provavelmente salvara uma das coisas
mais importantes para mim.
Olhei por sobre o ombro na
direção de Khalil. Ele estava tão sem
palavras quanto eu, com as mãos
apoiadas sobre o balcão de madeira e o
olhar atento em Emily e eu. Ao me
voltar novamente para ela, pigarreei.
— Essa galeria é a única coisa
que restou da minha mãe.
— Eu sei, é por isso que vim
aqui te dizer que você poderá interferir
e participar do processo de reconstrução
dela. Você conhecia Evelyn melhor do
que ninguém, afinal.
— Por que está fazendo isso?
Eu não podia evitar a
desconfiança. Sendo o rei do submundo
do crime, eu havia aprendido algumas
coisas. A primeira delas: não acreditar
em estranhos muito bem intencionados.
Na maioria das vezes eles estavam
apenas esperando a hora certa para
cravar um punhal em suas costas.
Emily não se ofendeu com meu
receio.
— Aquela galeria era um
famoso ponto turístico na cidade. Além
de desejar manter o legado de Evelyn,
sei que esse é um ótimo negócio. Vai ser
lucrativo para todos nós. — Ela cruzou
as mãos atrás das costas e se endireitou.
— Conheço sua fama, Wrath. E, estando
há tanto tempo no ramo do negócio da
arte, sei bem como ele pode gerar
dinheiro da forma errada. Falsificação,
contrabando, etc. Mas eu não gosto
disso. Quero saber se posso contar com
você para garantir que nada aconteça à
nossa galeria.
Respirei fundo antes de anuir
com a cabeça.
— Temos um acordo, então.
Mesmo contrariada, os
paramédicos me levaram ao hospital
numa das ambulâncias que chegaram no
deserto na noite em que Connor Kamps
morrera. Hades me acompanhara durante
todo o percurso. Embora eu acreditasse
que estava bem, os médicos me
examinaram e descobriram que eu tinha
sofrido múltiplas lesões da queda. Meu
braço esquerdo estava quebrado, bem
como um par de costelas. Eles temiam
que eu também tivesse sofrido um
impacto muito forte na cabeça, de modo
que eu precisara ficar em observação no
hospital por três dias.
Durante esse tempo, meus
amigos não me pouparam de visitas e
presentes para incentivar minha
recuperação — que enfeitavam cada
canto do quarto sem graça em que eu
estava.
Eu não conseguira ficar um
instante sozinha — não que eu quisesse
—, uma vez que Libby, Alina e George
estavam sempre por perto para me
adular. Eu apreciava sua companhia.
A pequena televisão suspensa
em frente ao leito sempre ficava ligada,
transmitindo os noticiários locais que só
falavam sobre o que acontecera naquele
deserto. Mesmo naquele momento, três
dias depois, quando eu me preparava
para ter alta, o telejornal exibia uma
matéria sobre isso.
“Três mortos e cinco feridos
em troca de tiros da polícia com
gangue de motoqueiros.” Era o nome da
matéria, escrito em letras garrafais
brancas na parte inferior da tela.
Suspirei, cansada, e voltei
meus olhos para o porta-retratos em
minha mão direita — a outra estava
levantada pela tipoia. Ele era um
presente de Khalil e fora deixado na
cômoda ao lado da cama. Me reconheci
na foto sob o vidro, embora datasse de
muitas semanas atrás, numa época em
que tudo estava menos complicado e eu,
mais feliz. Na noite da foto, a gangue do
Pandemônio estava reunida no salão do
bar, comendo pizza e bebendo cerveja,
pouco tempo depois que Hades e eu
voltamos de Vegas.
Fora a primeira vez que eu
chorei de tanto rir.
Mordi meu lábio inferior,
sentindo-me emocionada ao fitar Fiona
fazendo uma careta e mostrando o dedo
do meio. Estávamos os sete espremidos
para cabermos todos na fotografia e nós
duas tivemos que ficar na frente, pois
éramos as menores do grupo. Era bom
ter alguma evidência física de uma
memória tão incrível como aquela.
Engoli em seco a vontade de
chorar e coloquei o objeto dentro da
minha bolsa. Ao meu redor, Libby e
Alina se moviam pelo quarto, me
ajudando a arrumar todos os meus
pertences para que eu pudesse,
finalmente, voltar ao alojamento.
Quando dois toques suaves na
porta de madeira aberta do quarto
soaram, levantei a cabeça, encontrando
Hades parado na soleira. Ele nunca fora
me visitar sozinho até então, mas sempre
junto aos nossos amigos.
Agora ele estava ali diante de
mim, alto e imponente, mas nada
intimidador. Segurava balões coloridos
e um buquê de flores, que destoavam
completamente de sua postura de mau.
Um sorriso se formou em meu
rosto.
— Posso entrar? — perguntou,
olhando hesitante ao redor.
Alina e Libby, que estavam
colocando o resto das minhas coisas
numa bolsa, pararam e se entreolharam.
— Claro — Libby pigarreou.
— Nós duas estávamos indo até a
cantina mesmo.
— Estávamos? — Alina
indagou, confusa, mas foi puxada por
Libby na direção da porta. Elas
passaram por Hades, cumprimentando-o
com um aceno de cabeça, e sumiram no
corredor.
Ri baixinho, colocando de lado
a bolsa em meu colo. Hades também
sorriu e finalmente adentrou ao quarto.
— Uau, você tem uma bela
coleção aqui — observou, olhando para
os vasos de flores e o amontoado de
pelúcias sobre a superfície da cômoda.
Eu sequer sabia onde haveria
espaço em meu pequeno dormitório para
guardar tanta coisa. Não que eu fosse
continuar no alojamento por muito mais
tempo, já que ainda pretendia partir para
Nova York o mais rápido possível.
— Pois é, eles exageraram um
pouco.
As flores vinham,
principalmente, de Khalil e Wade. Os
ursos de pelúcia eram de Alec e George.
Eles traziam mais toda vez que
passavam no hospital para me ver.
— Eles se importam com você
— Hades disse, colocando suas flores
junto com as outras. Ele também
amarrou os balões na grade aos pés da
cama antes de voltar a ficar à minha
frente. — Assim como eu.
Seu rosto pálido estava repleto
de hematomas e seu lábio inferior, bem
inchado. O Dagger com quem ele lutara
três noites atrás fora impiedoso. Ainda
assim, Hades era implacavelmente
bonito e nada conseguia diminuir aquilo.
Ele parecia com alguém da realeza ou,
melhor, com uma pintura totalmente
perfeita e proporcional.
— Eu sei — assenti, cruzando
as mãos sobre meu colo. Pigarreei,
querendo mudar de assunto. — Então,
você falou com os Daggers?
Hades se endireitou e colocou
as mãos nos bolsos da jaqueta de couro
que usava.
— Falei, sim. Slade não sabia
que Connor dividiria o comboio. Foi
uma decisão de última hora. Mandou
três carros para o bar pelo centro e, para
se auto proteger, fez o caminho mais
longo pela estrada fora da cidade.
Balancei a cabeça, absorvendo
as informações. Não confiava em Slade
ou em nenhum outro Dagger, mas ele nos
entregara a localização de Connor e
convencera os outros de sua gangue a
entregarem todas as informações que
tinham para a polícia, quando poderiam
apenas ter fugido. Pareciam querer
mesmo honrar o acordo que selaram
com Hades e eu os respeitava por isso.
— Estão dispostos a sair da
cidade? — perguntei.
— Sim, irão sair.
— Bom.
Hades, então, franziu o cenho,
seu rosto se fechando numa expressão
séria e taciturna.
— Soube que você vai embora
de Carmine.
Engoli em seco, deixando meu
olhar cair para a minha mão. Os nós dos
meus dedos ainda estavam esfolados da
queda.
Mesmo tentando postergar, a
despedida inevitável chegara.
— Eu vou — confirmei, com
falsa determinação. — Só estou
esperando as coisas se acertarem com
Frederik e o FBI, para levar minha mãe
comigo. A decana remarcou a entrevista
para a semana que vem.
Hades anuiu com a cabeça e
deu um sorriso fraco.
— Isso é muito bom, amor.
Sempre foi tudo o que você sempre quis,
não é? Um novo começo.
Eu vi sinceridade em seus
olhos, mas não apenas isso. Aquelas íris
absurdamente densas e escuras também
estavam repletas de tristeza e
arrependimento e essa conclusão doeu
mais do que qualquer coisa que eu já
sentira.
— Estava esperando que você
me pedisse pra ficar, na verdade —
admiti, me sentindo tola.
— Se você quer ir, se isso te
fará feliz, não posso pedir que fique. E
você merece isso, Raven. Sei que houve
um tempo em que acreditava que não,
mas você merece ser feliz. Mesmo que
seja longe de mim.
Prendi a respiração por um
segundo, sentindo um nó crescer em
minha garganta. Era tão injusto que
acabasse daquela maneira e, ainda
assim, eu não conseguia imaginar outro
fim para nós dois.
Mordi meu lábio inferior,
tentando conter tudo o que eu queria lhe
falar naquele instante. Não mudaria
nada, de qualquer forma, talvez só
piorasse a dor e a mágoa.
Hades limpou a garganta e eu
percebi seu esforço para se recompor e
varrer qualquer vestígio de emoção de
seu rosto.
— Não vai ter que esperar
muito para ir, de qualquer forma. O
xerife Callow me disse que o mandado
de prisão do meu pai foi expedido hoje.
— O que vai acontecer depois?
Nenhuma autoridade duvidara dos
motivos do agente Doakes para executar
Connor. Ele disse... — E até mesmo
tentara me convencer. — Que Kamps
estava prestes a me matar, embora sua
arma estivesse caída no chão a pelo
menos um metro de distância. Ninguém o
questionara, porém. Na verdade, o
parabenizaram, como se ele tivesse
salvado a minha vida.
— Acho que Doakes vai
cumprir a promessa que fez a mim —
respondeu Hades, dando de ombros. —
Quando tentei fazer um acordo, ele disse
que, se Connor não acabasse comigo,
ele mesmo faria isso. Prometeu que
levaria todo o Pandemônio junto.
Aquela possibilidade me
deixava preocupada. Eu estava partindo,
deixando para trás todos os meus
amigos, a única família que já
conhecera, enquanto eles ainda não
estavam a salvo, quando ainda poderiam
sofrer e eu não estaria presente para
ajudá-los.
— Você não pode permitir isso,
Hades.
— Não irei — garantiu, com
determinação. — Mas você não tem que
se preocupar mais com isso, amor.
— Eu sempre vou me
preocupar com vocês.
Parte de mim ainda desejava
que ele me pedisse para ficar. Queria
pensar que ainda existia alguma chance
de resolver tudo. Porque, obviamente,
eu sentiria sua falta como o inferno. E
não sabia se suportaria tamanha tristeza.
Hades sorriu e abriu a boca
para dizer mais alguma coisa, mas o som
estridente do toque do meu celular o
interrompeu. Estiquei o braço bom para
apanhar o aparelho, que estava jogado
do outro lado da cama.
Era uma ligação da minha mãe.
Atendi a chamada cheia de
otimismo; afinal, ela estava prestes a ser
livre novamente. Minha frágil animação,
porém, foi destruída bem rápido pela
voz apavorada que soou do outro lado
da linha.
— Raven.
Me empertiguei, segurando o
celular com mais força contra minha
orelha.
— O que houve, mãe?
— É o Frederik, ele disse que
estava prestes a ser preso e agora está
fora de controle.
— O quê? Ele te agrediu?
— Ainda não, mas eu estou
muito assustada, ele está jogando
gasolina pela casa. Raven, eu…
A ligação caiu.
— Raven, o que aconteceu? —
Hades perguntou, dando um passo em
minha direção e colocando uma mão em
meu ombro. — Amor, você está pálida.
— Era minha mãe — expliquei,
ainda atônita. — Acho que Frederik vai
matá-la.
— Vamos. — Foi sua única
resposta.
Eu me levantei e o segui
quando corremos para fora do hospital.
Você sabe que o fogo está
correndo baixo
Nós estamos tentando
pertencer
Pegar os pedaços restantes de
nós
Nós estamos queimando
Nós somos as cinzas no chão
Se você pudesse me ver
correndo atrás de você
Se pudéssemos virar as horas
de volta no tempo
Circles - Ludovico Einaudi
feat. Greta Svabo Bech
Ir ao cemitério se tornara um
hábito. Naquela tarde, após Nick ir
embora, dirigi automaticamente até lá. O
lugar ficava acima de uma trilha
empoeirada e solitária, não muito
distante da estrada que levava à saída da
cidade. Muitas lápides frias e cinzentas
estavam espalhadas por ali, expostas
para serem castigadas pelo sol rigoroso
do Arizona. Eu nunca olhava para a
maioria delas, apenas para duas.
Os túmulos de Hades e Fiona
estavam localizados bem abaixo de uma
bela árvore e flores brancas. Era
praticamente a única vegetação ali, tão
perto do deserto, que ainda tinha galhos
cheios de folhas verdes e brilhantes. Era
como um símbolo de vida no meio de
tanta morte.
Frederik fora enterrado no
mausoléu dos Wrath, junto a seus
antepassados, mas Hades não. Eu sabia
que ele iria querer descansar durante a
eternidade junto de sua melhor amiga, e
não com a linhagem de velhos
insensíveis e gananciosos do seu pai.
Mordi o lábio inferior, fitando
os nomes de Hades e Fiona esculpidos
nas lápides de pedra cinza. Nunca me
acostumaria àquilo, à ideia de que eles
não estavam mais naquele mundo.
Ainda assim, quando estava ali,
parecia que estava mais próxima deles,
de alguma forma. E, mesmo não
acreditando muito no mundo espiritual,
esperava que, seja lá onde estivessem,
fosse um lugar feliz. Eles mereciam
aquilo, afinal. Mereciam a paz após
tantas batalhas árduas.
Mas, àquela altura, eu ainda
não me sentia como pensei que iria.
Quando Nick se fora, pensei que
finalmente conseguiria algum tipo de
encerramento, uma conclusão, uma vez
que tudo tivesse mudado. No entanto,
ainda era como se não tivesse acabado.
Como se houvesse uma ponta solta, uma
página faltando.
Eu teria que me acostumar com
aquela sensação de espera? Seria
sempre uma história em aberto para
mim?
Embora encarasse fixamente
aquelas lápides por minutos a fios, não
parecia que eu estava perto de conseguir
qualquer tipo de resposta para aquelas
perguntas.
Talvez eu fosse vagar pelo
mundo sem nenhum destino, apenas
esperando, ansiando, para que um dia eu
o reencontrasse novamente. Eu poderia,
concluí, acreditar em alguma divindade
ou plano espiritual se isso significasse
que no fim, depois da vida, nós
reencontraríamos aqueles que amamos e
perdemos.
— Você não facilitou as coisas
pra mim, Hades Wrath — falei,
tombando a cabeça para trás e voltando
meus olhos pro céu azul sem nuvens.
Estava um tempo ensolarado e otimista,
oposto a como eu me sentia. — Me
deixou maluca e confusa e eu te amei
tanto. Ainda amo. Como você pôde
achar que eu seria capaz de te odiar? —
Meus olhos marejaram novamente. Era
inevitável naqueles momentos. E mesmo
que me deixasse triste, eu não conseguia
abandonar o costume de conversar com
ele. Ainda que não fosse realmente ele,
apenas um pedaço de mármore. — Sinto
sua falta. Pra caralho. Daria tudo para
ouvir você me chamar de amor de novo.
Meu queixo começou a tremer e
eu fechei os olhos para conter o choro.
Eu estava me tornando uma bomba de
emoções à flor da pele, prestes a
explodir a qualquer momento.
Passei as mãos no rosto, me
sentindo exausta e um pouco tola. O que
eu estava esperando indo até aquele
cemitério todos os dias? Não era como
se ele fosse voltar, afinal. Ainda assim,
não existia outra opção para mim.
Mesmo que estivesse condenada a ir até
lá, apenas para sentir mais dor e
lamentar meus arrependimentos, aquela
era a única maneira de me manter sã,
porque nada nunca poderia ser pior do
que os momentos em que eu realmente
sentia que era possível morrer de
saudade.
Foi então que a rouquidão
familiar de uma voz soou atrás de mim,
como um eco que se prolongava numa
sala imensa e vazia.
— Olá, amor.
Paralisei.
Fiquei atônita, em estado de
choque, por alguns segundos antes de me
virar lentamente para encontrar o dono
daquela voz.
E era exatamente quem eu
imaginava.
Tampei minha boca com as
mãos, arregalando os olhos em
incredulidade. Não era possível que
Hades estivesse bem ali diante de mim,
com o sorriso torto que eu tanto
conhecia estampado no rosto. Cogitei a
possibilidade de ter perdido o que
restara da minha sanidade. Talvez fosse
um delírio, uma alucinação. Estes sinais
eram comuns em pessoas enlutadas.
Talvez fosse um fantasma.
Pisquei, e uma lágrima solitária
se desprendeu dos meus cílios e
escorreu pelo meu rosto. Chacoalhei a
cabeça, esperando que ele
desaparecesse, mas Hades permaneceu
ali. Esfreguei os olhos, sentindo meu
coração bater forte e desesperado, como
não fazia há mais de três meses. Como
se houvesse voltado à vida.
— Não é possível — sussurrei,
tentando convencer a mim mesma.
Ele estava tão bonito. Os fios
pretos de seu cabelo estavam maiores e
despenteados, como eu preferia. A barba
estava perfeitamente aparada, expondo
as linhas duras de seu maxilar liso e
esculpido.
Hades caminhou até mim,
diminuindo consideravelmente o espaço
entre nós. Quando parou, estava próximo
o suficiente para que eu o tocasse. E foi
exatamente o que fiz. Estendi minha mão
até a ponta dos meus dedos encostarem
em seu rosto.
Quase ofeguei ao sentir sua
pele macia e naturalmente gelada.
Um soluço me escapou e eu
mordi meu lábio inferior com força,
sentindo as lágrimas quentes rolarem
desenfreadamente pelas minhas
bochechas.
Segurei seu rosto entre as mãos.
Era tão palpável, tão real. Afastei a
parte de seu cabelo que caía levemente
sobre seus olhos e mergulhei naqueles
olhos surreais. Ele estava tão perto, eu
sentia sua respiração quente em minha
pele, acordando cada porção do meu
corpo que estivera adormecida. Deslizei
a curva do meu dedo indicador pelas
maçãs de seu rosto, passando pelas
têmporas até onde estavam localizados
os ossos zigomáticos e, em seguida,
descendo até seus lábios naturalmente
rosados. Eu mal precisava me esforçar
para recordar vividamente do gosto da
sua boca.
Não esperei mais nenhum
segundo para puxá-lo na minha direção,
sentindo de perto seu corpo contra mim.
Afundei meu nariz na curva de seu
pescoço e aspirei seu cheiro. Parecia um
sonho, como todos os outros que eu
tivera com ele durante aqueles três
meses. Mas nos sonhos nunca fora tão
real.
— Porra… — ele soprou, me
abraçando mais forte. — Senti tanto a
sua falta.
Então eu tive minha
confirmação de que tudo aquilo era, de
fato, real.
Minhas lágrimas estavam
molhando sua jaqueta, mas não me
importei. Por um instante, só consegui
pensar em como Hades estava de volta.
Acreditei que nunca mais fosse vê-lo,
mas ele estava agora em meus braços.
O que acontecera? Como ele
poderia estar ali?
Seu túmulo, onde o pó ao qual
seu corpo fora reduzido estava
enterrado, estava bem atrás de mim.
Não restou nada dele, os
policiais e bombeiros disseram: “Nada
além das cinzas”.
Empurrei-o bruscamente.
— Onde diabos você esteve?!
— perguntei, elevando o tom de voz.
Hades franziu o cenho. Ver seu rosto
belo e cínico e as tatuagens em seu
pescoço e braços só serviu para me
deixar mais irritada. Empurrei seu
ombro novamente. — Todos nós
lamentamos a sua morte. Tem noção do
quanto sofremos?
Sequei as lágrimas
furiosamente.
— Raven, eu…
— Sempre soube que era um
canalha manipulador, mas fingir a
própria morte? Isso foi cruel!
— Eu posso explicar — ele me
interrompeu. A contragosto, me calei e
esperei que o fizesse. Ele suspirou,
passando a mão pelos cabelos. — Você
sabe que Doakes queria minha cabeça a
qualquer custo. Ele não iria deixar pra
lá. Mesmo com Connor morto, ele não
desistiria até me destruir. E também
destruiria a vida de cada um no
Pandemônio. Eu não podia permitir, mas
não havia tempo para pará-lo. Eu
precisei arranjar mais tempo.
— E fez isso fingindo a própria
morte? — adivinhei, ainda pouco
convencida.
— Se eu saísse de cena, ele
deixaria o Pandemônio em paz. Foi a
única maneira. Strauss planejou tudo.
No começo, eu não quis aceitar. Sabia
que seria cruel. Então, houve o incêndio.
Depois de encontrar Astrid trancada no
banheiro e ajudá-la a sair, tentei voltar
para buscar meu pai. Ele estava no
escritório, mas o caminho para lá estava
totalmente inacessível. Saí por uma das
janelas laterais pouco antes da explosão.
A ideia só me ocorreu naquele momento
e eu tive que fazer isso. Não foi fácil,
principalmente quando ouvi seus gritos.
Não teria feito isso se houvesse outra
maneira, eu juro.
Ele se sacrificara, novamente.
Fizera isso pelo Pandemônio, sua
família.
Senti minha raiva se dissipar
aos poucos.
Cruzei os braços, trocando o
peso da perna.
— Mais alguém sabia? —
perguntei, o tom mais baixo dessa vez.
— Além da Strauss? Apenas o
Nick. Eu não podia fazê-lo passar por
algo assim. Tinha medo do que isso faria
com ele.
— Você podia ter me contado
— argumentei. Se ele tivesse me dito
seus planos, teria mudado tudo.
— Eu quis, mas era arriscado
demais. Strauss disse que Doakes
provavelmente iria te rondar nos dias
seguintes ao que acontecera a Connor.
— Ele suspirou, e pude ver em seus
olhos que ele estava cansado. Fora
difícil para Hades também. — No
primeiro mês, pedi a Nick que me
dissesse como vocês estavam, mas ele
não conseguiu. Falou que não suportava
vê-los sofrendo sem poder contar a
verdade, então se afastou.
Levantei as sobrancelhas,
compreendendo tudo. Agora fazia
sentido o comportamento evasivo de
Nick nas últimas semanas.
— O que aconteceu com
Doakes? — perguntei, com uma pontada
de preocupação em minha voz.
— Foi difícil provar os crimes
dele, mas conseguimos. Foram três
meses de investigação ininterrupta. Há
duas semanas encontramos uma
testemunha chave que nos ajudou a
expor o grande esquema de corrupção
dele. Doakes era o contato de vários
mafiosos dentro do governo, inclusive
Caesar Vance. Ele ganhava muito
dinheiro. Agora está preso.
Provavelmente vai pegar quarenta anos
na prisão federal.
Suspirei com alívio, mal
acreditando que aquele desgraçado
havia finalmente saído de nosso encalço.
O aperto em meu peito se afrouxou e o
peso em meus ombros, que estava ali há
tanto tempo, finalmente sumiu. Meu
corpo se arrepiou e senti meus olhos
voltarem a marejar novamente. Não
conseguia acreditar que era verdade.
Parecia perfeito demais, utópico
demais.
Mas, se fosse apenas um
delírio, não desejava nunca mais voltar
à sanidade.
Me senti leve e esperançosa
pela primeira vez em muito tempo,
vendo a cor e o brilho de tudo voltarem
lentamente.
— Acabou, amor. — Hades
sorriu, apanhando meu rosto entre as
mãos. Ele secou uma lágrima que
voltara a cair.
Era a primeira vez que eu
chorava de felicidade e era
maravilhoso.
Encerramento.
Era assim que se parecia, era
essa a sensação. Porque a última peça
do meu quebra-cabeças estava de volta,
e suas arestas encaixavam perfeitamente
nas minhas. Era Hades quem estava
faltando para que tudo ficasse completo
e eu pudesse colocar um ponto final
naquela parte da minha vida, para
finalmente iniciar a próxima.
— Ainda estou brava com você
— menti, após fungar. Eu já estava
cedendo ao seu olhar intenso e ao toque
carinhoso de seu polegar em minha
bochecha.
— Que eu me lembre, quando
cheguei aqui você estava dizendo que
me amava — se gabou.
— Porque pensei que estivesse
morto — retruquei. — E você também
disse que me amava. Um pouco antes de
caminhar para dentro de uma casa em
chamas. Poderia ter morrido de verdade,
seu babaca irresponsável. — Ele riu, os
olhos brilhando ao me fitar. — Além
disso, muita coisa mudou nesse tempo.
Agora eu sou sua chefe.
— Uau, gostei disso. Soa sexy
pra mim.
Ele passou a língua sobre os
lábios, atraindo meu olhar para sua
boca, antes de sorrir.
Bom demais para ser verdade.
— Não faça isso comigo de
novo — pedi, séria.
Não poderia sequer cogitar
perdê-lo novamente, eu mal tinha
sobrevivido da primeira vez.
— Não irei, amor — prometeu,
colocando uma mecha do meu cabelo
atrás da orelha. — Vou ficar pelo tempo
que você quiser que eu fique.
— Pra sempre — desejei.
— Combinado.
Hades se inclinou e encostou
seus lábios nos meus, suavemente. Me
senti aquecida por completo.
Soube que naquele momento
estávamos selando uma promessa e tive
certeza de que, de fato, tudo ficaria
bem.
Esta escuridão é a luz
Nós lutamos todas as noites
por algo
Quando o sol se põe nós somos
iguais
Metade nas sombras
Metade queimado em chamas
Não podemos olhar para trás à
toa
Eu te dei tudo
E é um belo crime
Beautiful Crime - Tamer
Um ano depois