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Copyright © 2020 Sam Bennet

Capa: Larissa Chagas


Foto de Capa: Adobe Stock
Arte e Diagramação: Sam Bennet
Revisão: Karoline Panato

Esta é uma obra literária de ficção.


Todos os nomes, personagens e
acontecimentos retratados aqui são
produtos da imaginação da autora.
Qualquer semelhança com pessoas e
acontecimentos reais é mera
coincidência. Todos os direitos são
reservados à autora.
São expressamente proibidas a
distribuição ou reprodução de toda ou
qualquer parte desta obra por qualquer
forma, meio eletrônico ou mecânico sem
a prévia permissão da autora.
Plágio é crime!
Esta obra segue as regras do Novo
Acordo Ortográfico
Bem-vindos ao submundo,
vocês estão preparados para esta
jornada?
Quando comecei a escrever
este livro, quis reimaginar a história de
Hades e Perséfone, transformá-la em
algo menos fantasioso, mas que ainda
permanecesse cativante e intenso. Com
um Hades que, em vez de ser um deus,
fosse o chefe de uma gangue poderosa
que comandava o submundo do crime e
uma Perséfone (Raven) extremamente
forte e corajosa e que, acima de tudo,
nenhum dos dois tivesse medo de sentir,
de demonstrar amor, carinho, lealdade e
fragilidade. Pois todos nós, como seres
humanos, somos vulneráveis,
principalmente às emoções.
Tenho plena noção da minha
responsabilidade como autora e repudio
até mesmo a mera possibilidade de
passar alguma ideia errada com este
livro. O submundo do crime não deve
ser romantizado ou glamourizado, e o
conteúdo aqui abordado não deve ser
tratado como qualquer tipo de paralelo à
realidade. Este é um romance que se
passa num universo completamente
fictício, diferente do mundo no qual
vivemos.
É também necessário advertir
que este livro possui gatilhos
relacionados à violência doméstica, uso
de álcool e drogas ilícitas. Beautiful
Monsters contém cenas gráficas de
violência física, bem como linguagem
imprópria e conteúdo sexual explícito.
Assim, é recomendado para maiores
de 18 anos. Evidencio, porém, que não
há cenas de abuso sexual ao longo
dessas páginas.
Este livro não compactua com
relacionamentos abusivos, tampouco
com qualquer tipo de violência, seja ela
física, psicológica ou sexual.

Desejo a todos uma boa


leitura.
Para uma maior imersão na história,
convido todos a conhecerem a playlist
de Beautiful Monsters no Spotify e o
trailer disponível no YouTube.
Para a 6fuc, minha segunda
família
No Submundo não há
misericórdia, apenas justiça.
— Rick Riordan
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO CATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E DOIS
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
CAPÍTULO VINTE E SEIS
CAPÍTULO VINTE E SETE
CAPÍTULO VINTE E OITO
CAPÍTULO VINTE E NOVE
CAPÍTULO TRINTA
CAPÍTULO TRINTA E UM
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO
CAPÍTULO TRINTA E CINCO
CAPÍTULO TRINTA E SEIS
CAPÍTULO TRINTA E SETE
CAPÍTULO TRINTA E OITO
CAPÍTULO TRINTA E NOVE
CAPÍTULO QUARENTA
CAPÍTULO QUARENTA E UM
CAPÍTULO QUARENTA E DOIS
CAPÍTULO QUARENTA E TRÊS
CAPÍTULO QUARENTA E QUATRO
CAPÍTULO QUARENTA E CINCO
CAPÍTULO QUARENTA E SEIS
CAPÍTULO QUARENTA E SETE
CAPÍTULO QUARENTA E OITO
CAPÍTULO QUARENTA E NOVE
CAPÍTULO CINQUENTA
CAPÍTULO CINQUENTA E UM
CAPÍTULO CINQUENTA E DOIS
CAPÍTULO CINQUENTA E TRÊS
CAPÍTULO CINQUENTA E
QUATRO
CAPÍTULO CINQUENTA E CINCO
CAPÍTULO CINQUENTA E SEIS
CAPÍTULO CINQUENTA E SETE
CAPÍTULO CINQUENTA E OITO
CAPÍTULO CINQUENTA E NOVE
CAPÍTULO SESSENTA
CAPÍTULO SESSENTA E UM
CAPÍTULO SESSENTA E DOIS
CAPÍTULO SESSENTA E TRÊS
CAPÍTULO SESSENTA E QUATRO
CAPÍTULO SESSENTA E CINCO
CAPÍTULO SESSENTA E SEIS
CAPÍTULO SESSENTA E SETE
EPÍLOGO
CAPÍTULO EXTRA I
CAPÍTULO EXTRA II
AGRADECIMENTOS
REDES SOCIAIS
Eu gostaria de ser seu lindo
inferno
Seu lindo inferno
Beautiful Hell – Adna

Eu estava distraída no meu


primeiro turno no Pandemônio.
A cidade no interior do Arizona
que havia se tornado meu novo lar era
exatamente o que eu esperava: um
lugarzinho no meio do deserto, cheio de
pessoas perdidas. Havia algo sombrio
em Carmine e, ao mesmo tempo em que
isso despertava minha curiosidade, me
deixava aterrorizada. Nos meus
primeiros dias, tentei desesperadamente
procurar um emprego razoável, mas não
encontrei nada. Nada além do
Pandemônio, que parecia ser o bar mais
conhecido das redondezas.
O lugar era meio pitoresco,
bastante parecido com o que se espera
de um característico bar do sul. E eu
havia sido contratada fácil demais.
Apenas falei com a bartender, uma
garota alta e franzina chamada Fiona, e
ela me admitiu no mesmo instante,
pedindo para eu aparecer para o
trabalho na noite seguinte. Não reclamei.
Eu precisava muito de dinheiro. O
salário era inesperadamente alto para o
cargo de garçonete. No momento, pensei
ter tirado a sorte grande, mas, no dia
seguinte, quando Fiona me instruiu sobre
minhas funções, soube que tinha algo
errado com o lugar.
— Não seja intrometida —
avisou ela, enquanto secava alguns
copos com um pano branco. — Faça seu
trabalho e apenas isso. Não faça
perguntas e fique longe do porão.
— Por quê? O que há no
porão? — Deixei escapar a pergunta,
estreitando meus olhos em sua direção.
Ela rapidamente parou o que estava
fazendo e me fitou de trás do balcão de
madeira do bar.
Fiona era jovem, talvez pouco
mais velha do que eu. Tinha cabelos
castanhos num corte pixie e olhos verdes
bem redondos. Seu nariz era pontudo e
suas sobrancelhas, bem finas. Usava
uma maquiagem pesada, com muita
sombra nos olhos e roupas
completamente pretas. Várias tatuagens
enfeitavam seus braços finos.
— Não vai durar neste emprego
se não souber manter seus comentários
para você mesma. A outra garçonete não
durou.
Muitas coisas passaram pela
minha cabeça quando ela disse aquilo.
Seu tom era muito sério, bem como a
feição em seu rosto pálido. Eu não era
boa em ficar longe de problemas, mas,
desde que fui embora de Dallas, estava
determinada a tentar. O Pandemônio
parecia ser uma grande, grande
encrenca. E se eu não precisasse tanto
daquele maldito dinheiro, eu teria ido
embora naquele mesmo instante.
— O que houve com a outra
garçonete? — perguntei, cruzando os
braços. Eu precisava saber disso. Fiona
gargalhou, voltando a secar o copo.
— Bem, ela se apaixonou pelo
chefe.
Franzi o cenho. Parecia um
motivo meio fútil. Eu não deixaria nada
ficar entre mim e meus objetivos.
Principalmente, algo tão tolo quanto
aquilo.
— Garanto que não terei o
mesmo problema — rebati, me
endireitando. Fiona deu de ombros,
meio desinteressada.
— Se você diz.
Suspirei, deixando a conversa
morrer para lá, e levei minhas coisas
para o vestiário dos funcionários, que
ficava no corredor atrás de portas
duplas de madeira, no canto direito do
salão principal. Eu era a única garçonete
de um bar bem grande como aquele.
Havia muito trabalho a fazer. Estava
determinada a enterrar minha
curiosidade, como Fiona ordenara,
apesar dessas regras me incomodarem.
Tudo aquilo me lembrava da minha
antiga casa, para a qual eu nunca
desejava voltar.
Após guardar minha mochila no
armário de metal designado a mim,
voltei ao salão para ajudar Fiona com os
preparativos para o início do turno da
noite. As caixas de som na parede foram
ligadas, e logo a melodia de um rock
clássico começou a tocar. Descobri bem
rápido que o movimento ali era alto.
Provavelmente, isso se dava porque o
Pandemônio ficava perto do campus da
Universidade de Carmine. Próximo do
alojamento estudantil e das casas de
irmandades, era o local perfeito para os
universitários encherem a cara.
Entre anotar os pedidos,
entregar as comandas na cozinha, levar
os pratos que estavam prontos e limpar
as mesas, eu corria de um lado para
outro, sem parar. Tudo estava correndo
bem para o meu primeiro dia, eu não
havia derrubado nada e nem me
confundido com os pedidos. Até que três
rapazes entraram, chamando a atenção
de todos ao redor. Todos os três vestiam
preto e caminharam pelo bar como se
fossem donos do local.
Parei para analisá-los. O garoto
da direita tinha traços do leste asiático,
com cabelos curtos e escuros, pele cor
de marfim. Estava sorrindo e
conversava com os amigos. Era bem
bonito. Todos os três eram. O da
esquerda era mais baixo do que os
outros e parecia ter descendência da
Ásia Central. Os cabelos eram raspados
e ele parecia quieto e observador. Foi
no rapaz do meio que meus olhos
focaram, entretanto.
Ele era diabolicamente lindo.
Era o mais alto dos três.
Provavelmente, mais alto do que a
maioria das pessoas. Seus cabelos
estavam penteados para trás. Eram de
um profundo tom de preto, tal qual seus
olhos, que estavam fixos numa mesa
vaga perto da janela, e contrastavam
com a cor alva da sua pele. Não havia
sequer a sombra de uma barba em seu
maxilar, mas muitos desenhos e
tatuagens cobriam seus braços e
pescoço.
Quando ele e seus amigos se
sentaram, o garoto alto olhou ao redor,
provavelmente procurando pela
garçonete. Não demorou até seus olhos
me encontrarem, se estreitando ao me
encarar. Retribuí seu olhar, me sentindo
tensa sob seu escrutínio. Ele me
analisava descaradamente, as
sobrancelhas franzidas como se
estivesse intrigado com algo.
Engoli em seco e puxei o
bloquinho de anotações do bolso,
fazendo meu caminho até a mesa deles.
— Bem-vindos ao Pandemônio.
O que vão pedir? — perguntei,
direcionando o olhar para o rapaz que
havia captado minha curiosidade. Ele
parecia surpreso ao me fitar, como se eu
fosse um fantasma. Sua atenção sobre
mim estava me deixando nervosa.
Eu era boa em me adaptar,
desempenhava bem qualquer papel ou
função que precisasse. Tive que
aprender a fazer isso bem cedo. Não me
intimidava com facilidade, mas ainda
assim me incomodei com aquele cara.
Ele tinha os olhos mais escuros que eu
já vira. Eram como dois buracos negros
olhando para dentro de mim.
O outro garoto, o que era
sorridente e tinha um ar divertido no
rosto, pigarreou e quebrou o silêncio
constrangedor. Fiquei feliz em desviar
meu olhar para ele. Não parecia tão
ameaçador quanto o outro.
— Quero o hambúrguer do dia,
fritas com cheddar e bacon, uma porção
extra grande de anéis de cebola e um
sundae duplo, por favor.
Ergui as sobrancelhas, surpresa
para a quantidade de comida que uma
pessoa só era capaz de comer, e me
apressei para anotar tudo na próxima
página em branco do meu bloco de
notas.
— Bebida pra acompanhar?
— Uma cerveja.
— Certo, só vou precisar ver
sua identidade. — Uma risada cortante
soou, soube instantaneamente que vinha
do cara alto. Levantei os olhos na sua
direção.
Ele não estava rindo por humor.
Era por pura arrogância.
Ergui uma sobrancelha,
observando-o.
— Você é mesmo nova na
cidade, amor — falou, antes de
umedecer os lábios com a língua e
sorrir.
Eu quase engasguei.
Trinquei o maxilar, me
contendo para não fazer uma careta.
Previsível. Rapaz bonito e sexy com
personalidade repugnante. Eu odiava um
clichê como aquele.
— O que foi que você disse?
— devolvi, incrédula.
Ele estreitou seus olhos para
mim antes de endireitar as costas,
cruzando os braços sobre o peito. Isso
fez com que eu notasse a tatuagem em
seu bíceps. Era uma rosa preta. Os
traços eram bonitos. Ele tinha belas
tatuagens, na verdade.
— Disse que é nova na cidade.
— Não, você me chamou de
amor. — Seus lábios se repuxaram num
sorriso de canto. Foi naquele instante
que eu senti meu sangue ferver sob
minhas veias. Ele estava provocando.
— Algum problema com isso,
amor?
Ele me encarava fixamente, me
desafiando em silêncio. Seus olhos
travavam uma batalha contra os meus.
Ele me deixava nervosa. Talvez fosse
mais do que seu jeito, talvez fosse sua
aparência sedutoramente sombria. Seu
rosto anguloso, forte e desenhado sobre
uma pele clara. Eu odiava a maneira
como ele me intimidava.
Abri a boca para despejar uma
boa gama de insultos a ele, mas, antes
que eu pudesse fazê-lo, a voz de Fiona
soou pelo ambiente.
— Raven. — Olhei por sobre o
meu ombro na direção dela. A garota
tinha as mãos apoiadas sobre o balcão.
— Pode vir aqui um minuto?
Assenti em sua direção antes de
voltar meu olhar à mesa.
— Raven, huh? — o tatuado
continuou. — É um belo nome.
Revirei os olhos e ignorei sua
observação.
— O que mais vão pedir?
O garoto de cabelos raspados
pediu um cheeseburger e um
refrigerante. O outro, o arrogante, tomou
seu tempo, lendo e relendo o cardápio
várias vezes. Provavelmente para me
irritar. No fim, após uns três ou quatro
minutos, pediu apenas uma cerveja.
— Juro que tenho mais de vinte
um. — Ele sorriu com escárnio,
tombando a cabeça para o lado ao me
olhar.
Bufei, girando sobre os
tornozelos antes de me distanciar. Pisei
duro até a cozinha, onde deixei a
comanda, e voltei para o bar.
— O que foi? — perguntei a
Fiona, que me observava atentamente.
Meu humor despencara até o
inferno. O imbecil arrogante conseguiu
me irritar — não que essa fosse uma
tarefa muito difícil. Eu era impulsiva e
tinha a língua afiada demais para o meu
próprio bem. Agora isso poderia botar
tudo a perder. Não havia chance de
manter aquele emprego se eu começasse
a insultar qualquer cliente que me tirasse
do sério.
— Teve algum problema lá? —
Fiona apanhou três garrafas de cerveja
no freezer atrás dela e as deslizou sobre
o balcão na minha direção.
Dei de ombros.
— Só um cliente que não queria
me mostrar sua identidade para pedir
álcool.
Fiona arregalou os olhos e
perguntou, chocada:
— Pediu a identidade deles?
Franzi o cenho.
— É claro. Você disse que eu
deveria fazer isso.
Ela riu alto, tanto que teve que
tapar a boca com a mão para conter o
som. Permaneci olhando-a confusa.
O que eu estava perdendo?
— Queria ter visto a cara deles
— Fiona comentou, voltando a fazer os
drinks para as pessoas sentadas do outro
lado do balcão do bar. — Deve ter sido
engraçado.
— O quê?
— Nada. Deixa pra lá. Volte ao
trabalho.
Bufei, mas obedeci.
Mesmo após entregar seus
pedidos e me focar nos outros clientes,
tentando me concentrar no trabalho, eu
ainda sentia seus olhos sobre mim, me
seguindo e observando atentamente. Tal
como um predador calculando o
momento perfeito para dar o bote.

Quando o despertador para o


primeiro dia de aula tocou eu soltei um
palavrão, puxando o travesseiro para
que este cobrisse meu rosto. A noite
passara muito rápido, meu corpo não
tivera tempo para se recuperar da
madrugada anterior — que,
surpreendentemente, havia me deixado
mais cansada do que o primeiro turno no
Pandemônio.
Bufei antes de finalmente
perceber que não havia outra saída além
de levantar e resolver a minha vida.
Seria bom ocupar minha cabeça com
algo que eu gostava: arte.
Me levantei, sentando-me sobre
a cama, e me deparei com Libby Roman,
minha colega de quarto que havia
chegado há quatro dias, sentada numa
das escrivaninhas com uma bandeja com
dois copos de café nas mãos.
Apesar de eu conhecê-la há
pouco tempo, não era difícil notar que a
garota era otimista e alegre todo o
tempo, o que contrastava fortemente com
a minha personalidade totalmente avessa
àqueles conceitos
Ainda assim, ficar perto de
Libby levantava o meu humor. Eu
gostava dela e, considerando minha má
sorte, eu poderia ter sido obrigada a
compartilhar o quarto com alguém muito
pior e mais difícil de lidar.
— Bom dia, raio de sol! —
falou Libby, abrindo um sorriso de
dentes brancos perfeitos.
A garota era estonteantemente
linda. Sua pele era negra, num tom claro
de ocre, e seus cabelos escuros caíam
em trancinhas ao redor de seus ombros.
As íris tinham uma exótica cor de âmbar
e havia um piercing prateado de argola
em seu nariz. Ela vestia cores vibrantes
como sua personalidade, suas preferidas
eram o rosa e o amarelo. Libby havia se
encarregado da decoração do nosso
pequeno, porém aconchegante,
dormitório. Haviam pôsteres, desenhos
e fotos aleatórias espalhadas por todas
as paredes. Apesar de ser do tipo neutra
e básica, eu tinha gostado do resultado.
Me levantei e fui em sua
direção, aceitando de bom grado a
cafeína que deveria me manter de pé o
dia todo. Não pude evitar um bocejo
antes de beber um bom gole da bebida
fumegante.
— Vamos, Raven, anime-se.
Somos calouras! — Libby abriu um
sorriso. — O que aconteceu ontem?
Você chegou tão tarde… — Levantei
meus olhos para ela. Tomei mais um
gole para ter tempo de pensar numa
resposta.
— Não quis te acordar. —
Libby franziu o cenho. Eu sabia que a
garota era curiosa sobre mim,
principalmente porque ela havia
despejado um monte de informações
suas, e eu não havia compartilhado
nenhuma minha. — Fiquei até mais tarde
no trabalho.
— Pensei que seu turno
acabasse às onze. — Ela estreitou seus
olhos para mim.
— É, mas resolvi ficar um
pouco mais para me certificar de ter
terminado todas as minhas tarefas.
Pude perceber que minha
resposta não a convenceu. Entretanto,
antes que ela pudesse insistir no assunto,
depositei o copo na mesa e saí andando
em direção ao banheiro.
— Vou tomar um banho antes de
ir, não precisa me esperar.
— Tudo bem — concordou
Libby. Acenei para ela e entrei no
banheiro, fechando a porta.

Eu segurava a bolsa em meu


ombro enquanto caminhava pelo campus
da universidade. Era um dia ensolarado.
Aparentemente, calor nenhum era o
bastante para o Arizona. O sono e o
cansaço não me permitiam ficar animada
com o início das aulas. Círculos escuros
emolduravam meus olhos, olheiras que
nenhuma maquiagem conseguiria
disfarçar. Eu bocejava e arrastava meus
pés.
— Quase não te reconheci sob
esse chapéu e óculos escuros. — Uma
voz atrás de mim fez meu corpo gelar.
Assim que me virei e dei de cara com
Stephen, respirei aliviada.
Retirei os óculos escuros e o
pendurei na gola da minha blusa branca.
Stephen colocou as mãos nos bolsos e
começou a caminhar ao meu lado.
— Desculpe, não queria te
assustar — continuou ele.
O rapaz colocou para trás os
longos cabelos loiros, que terminavam
um pouco acima dos seus ombros. Sua
pele era dourada com um bronze
natural.
Engoli em seco.
Eu demoraria a me acostumar
com sua presença novamente. Na
verdade, eu ainda me perguntava se fora
uma boa ideia voltar a passar tempo
com ele. Apesar do ressentimento que eu
ainda guardava sobre as circunstâncias
em que as coisas entre nós acabaram, eu
precisava estar em Carmine. Sabia que
nós dois estávamos ali pelo mesmo
motivo: era o lugar mais seguro para
quem estava fugindo de Dallas — e de
Joel McKinley.
E ele também era a única
pessoa que eu conhecia capaz de me
ajudar.
— Ainda estou me
acostumando — falei, me referindo ao
chapéu preto que cobria minha cabeça.
— Não precisa agir como uma
fugitiva se disfarçando, Raven.
— Mas é exatamente isso o que
eu sou — rebati, enfiando as mãos nos
bolsos. — Uma fugitiva. Nós dois
somos.
Ele ficou em silêncio por um
instante. Falar em alto e bom som que
estávamos fugindo era muito menos
confortável do que fingir que éramos
dois jovens normais começando suas
vidas numa nova cidade.
— Carmine é o último lugar em
que McKinley nos procuraria, sabe
disso. Você está segura aqui.
Ainda assim, era difícil.
Depois de tantos anos vivendo com
medo, parecia muita ingenuidade pensar
que eu finalmente estava livre de tudo
aquilo.
— Como está depois de ontem
à noite? — Stephen sorriu, se referindo
à nossa sessão no galpão. — Espero não
ter deixado marcas.
— Não sou uma garotinha
frágil, Stephen, apesar do que você deve
achar de mim — falei, defensivamente,
antes de cruzar os braços.
Stephen sempre teve o péssimo
hábito de me subestimar. Eu suspeitava
que havia sido esse o motivo de ele ter
me deixado para trás há três anos,
quando fugiu de Dallas. Ele achava que
eu não conseguiria aguentar os
momentos difíceis que viriam com a
fuga. Se ele pelo menos soubesse tudo o
que eu havia passado, talvez mudasse de
opinião.
Talvez eu não devesse culpá-lo
pelo o que fizera, afinal ele estava
apenas tentando sobreviver. Mas era
difícil pensar assim, principalmente
depois de Astrid.
Caminhamos em silêncio por
algum tempo.
— Sabe, as coisas não
precisam ficar esquisitas entre nós.
Principalmente depois de ontem —
falou, tentando aliviar o clima.
Stephen era bonito. Tinha uma
beleza rústica que costumava me
parecer como um sopro de ar fresco num
dia escaldante. Seus olhos eram azuis e
brilhantes e sua barba era bem feita,
expondo um maxilar liso e uma boca
familiar.
— Eu agradeço por tudo,
Stephen, mas acho que não foi uma boa
ideia. — Eu não pensei com clareza
quando apareci lá ontem depois do
trabalho. Achei que seria capaz de ficar
tão perto dele de novo sem me lembrar
do nosso passado.
As feridas não se curaram
ainda. O sentimento não desaparecera
completamente. Mesmo após três
malditos anos, as memórias de nós dois
me assombravam.
Stephen assentiu. Havia um
vinco entre suas sobrancelhas quando
olhou diretamente nos meus olhos.
— Se você não quiser aparecer
hoje à noite, eu entendo, mas realmente
espero que vá. Podemos fazer dar certo,
Raven.
Respirei fundo e não respondi.
Meus olhos, ao desviarem dos
dele, se prenderam na placa de cobre e
aço sobre o gramado em frente ao
prédio atrás de Stephen. Gravado em
dourado na placa havia um nome
familiar ao qual era dedicado àquela ala
da universidade.
— Wrath. — Li em voz alta e
senti um calafrio percorrer minha
espinha.
Era a primeira vez que eu via
algo sobre aquela família desde que
chegara em Carmine. Cogitei até a
possibilidade de eles não existirem de
verdade, o que seria muito frustrante
para mim. Afinal, os Wrath eram o
motivo de eu estar naquela cidade.
Mas, considerando o que eu
sabia sobre eles, me surpreendia o fato
de seu nome estar em um prédio
acadêmico. Não era o que eu estava
esperando.
— Ah! — exclamou o loiro
antes de voltar a andar. O segui. —
Eles.
— Quem são, exatamente?
— Multimilionários, donos de
metade da cidade, a família mais
poderosa daqui.
— Joel tinha razão em temê-
los, então.
— É, acho que sim.
Eu não sabia muito sobre os
Wrath, apenas que eles eram o motivo
pelo o qual McKinley não pisava em
Carmine. E meu padrasto só poderia
temer alguém pior do que ele, o que me
assustava um pouco, mas garantia a
minha segurança. Seja lá quem eles
fossem, eram criminosos também.
Grandes e poderosos, pelo visto.
Não continuamos o assunto,
Stephen não gostava de falar sobre nada
relacionado à nossa vida em Dallas.
Embora ele não estudasse na
universidade, me guiou até o prédio de
Belas Artes onde eu teria minha
primeira aula. Stephen estava se
mantendo por perto desde que soubera
que eu me mudara para Carmine. Talvez
só para se certificar de que eu estava
bem. Eu havia sobrevivido ao inferno,
afinal.
Enquanto andava pelo campus,
eu observava os arredores com atenção,
olhando para os jovens que caminhavam
sobre o gramado com livros e copos de
café nas mãos.
Era surpreendente que numa
cidade isolada no interior do Arizona,
cercada por nada além do deserto,
houvesse tantas pessoas. Os prédios no
centro da cidade eram altos e bonitos. A
universidade também era bem atrativa,
com muitas árvores em volta. As casas
das irmandades estavam enfeitadas com
faixas e decorações para a recepção dos
calouros.
O prédio central do campus
tinha a estrutura semelhante ao panteão
romano, com enormes colunas na
fachada. Aquela era a grande ala
administrativa, a reitoria. Ao nos
aproximarmos de lá, uma cena captou
nossa atenção.
Levantei uma sobrancelha.
— Lá está ele — anunciou
Stephen, repentinamente mal-humorado,
e cruzou os braços. — Hades Wrath
fazendo sua entrada triunfal.
Era um carro totalmente preto,
reluzente e extravagante, um Camaro,
que estacionou na última vaga
remanescente que havia ali. Quando a
porta do motorista se abriu e ele desceu
do carro, tudo fez sentido.
Era o garoto arrogante de olhos
negros e tatuagens que havia me deixado
furiosa no Pandemônio, no dia anterior.
Ele usava óculos escuros e uma jaqueta
de couro, que cobria os desenhos que
adornavam seus braços. Algumas
pessoas ao redor também pararam para
observar, como se ele fosse uma estrela
de cinema.
Nas costas de sua jaqueta
estava bordado o mesmo símbolo que
estampava a placa na fachada do bar
onde eu trabalhava. Uma caveira muito
expressiva, com olhos profundos e um
sorriso cheio de dentes. Uma coroa
adornava o topo do crânio. Sobre o
desenho estava a palavra "Pandemônio",
que instantaneamente passou a adquirir
um novo significado para mim.
O rapaz — Hades — fechou a
porta do seu carro estupidamente caro e,
assim que eu dei um passo para trás,
tentando fugir de seu campo de visão,
ele me avistou.
Ele tirou os óculos escuros do
rosto e seus lábios se repuxaram num
sorriso torto quando me reconheceu.
Hades piscou um dos olhos para mim
antes de continuar andando, sem se
importar com toda a atenção que havia
atraído para si. Provavelmente, ele
gostava de um espetáculo, o que
combinava com a personalidade
egomaníaca que ele supostamente
apresentava.
Wrath, a família mais poderosa
da cidade. Reis de negócios ilícitos cuja
extensão eu desconhecia. Eu sabia que
eles eram perigosos. Ouvi isso durante
toda minha vida.
— Você o conhece? —
perguntou Stephen, virando-se para mim.
Provavelmente a pequena piscadela de
Wrath não havia passado despercebido
por ele.
Dei de ombros.
— Sim, atendi ao babaca lá no
bar ontem. Não sabia quem ele era. — O
loiro assentiu levemente, mas ainda
havia um pouco de preocupação em seus
olhos.
— Acredite em mim, Raven, é
melhor continuar sem saber. Hades
Wrath é ruim — advertiu, sério. — Não.
— Logo se contradisse. — Ele é algo
pior, muito pior.
Algo perigoso, algo perverso
Como o toque do diabo
Algo mau
Something Evil - The Hot
Damns feat. Marc Scibilia

Quando as aulas do dia


acabaram eu respirei aliviada. Estava
feliz por poder ocupar minha cabeça
com tanta inspiração. Queria me focar
completamente na faculdade. Após
passar três semanas em Carmine fazendo
nada além de procurar um emprego, era
bom finalmente sentir que as coisas
estavam começando a dar certo.
Com a lista de livros de
história da arte em mãos, fui até a
biblioteca, que ficava do outro lado do
campus. No caminho, tomei um tempo
para conhecer melhor a Universidade.
Os prédios eram bonitos, com
enormes janelas de vidro e a perfeita
fusão de uma arquitetura clássica e
contemporânea.
Enquanto passava pelo
gramado em frente ao refeitório,
entretanto, percebi que havia alguém
tentando me alcançar.
Olhei por sobre o ombro e um
garoto branco, pálido e magro acenou e
sorriu para mim. Eu não fazia ideia de
quem ele era, então apenas acelerei o
passo. Ele não desistiu e correu até se
aproximar e caminhar ao meu lado. O
fitei de soslaio, percebendo que usava
um blazer marrom por cima de uma
camisa verde e uma gravata borboleta.
Ergui uma sobrancelha,
curiosa.
Seu visual não era nada comum,
e achei legal sua autenticidade.
— Hey — disse ele, abrindo
um sorriso. — Gostei do chapéu.
O rapaz era bonito. Tinha olhos
verdes e cabelos castanhos muito lisos.
Tinha uma mochila carteiro de couro
pendurada em seu ombro. Ele colocou
as mãos nos bolsos das calças.
Eu quase me esqueci do chapéu
preto que cobria meus cabelos e que
combinava com as calças skinny e as
botas que eu usava, todos da mesma
cor.
— Eu te conheço? —
perguntei.
— Sou George. George Hale
— se apresentou antes de estender uma
mão para mim. O cumprimentei, apesar
de um pouco hesitante. — Você é a
Clarke, não é? Está na minha turma de
história da arte.
— Raven — corrigi enquanto
nos aproximávamos da grande escadaria
da biblioteca.
— Você também é nova na
cidade, certo? — George puxou assunto.
Franzi o cenho antes de assentir com a
cabeça. — Bem, então temos que ficar
juntos. — O fitei com uma sobrancelha
levantada, ele explicou: — Precisamos
de aliados ou eles vão nos engolir
vivos.
— Eles?
— Há uma hierarquia aqui,
ainda não percebeu? — Dei de ombros.
— Tem as garotas ricas e populares da
Kappa Beta Tau, os atletas bombados da
Gama Zeta Phi, os que descendem de
uma longa linhagem de nerds, como
Zachary Bowen e os outros alunos do
grupo de debate. Sem mencionar os
caras do departamento de Ciências. —
George se aproximou e diminuiu o tom
de voz, como se estivesse prestes a
contar um segredo. — Honestamente,
eles são loucos.
Pisquei, atordoada com tanta
informação que havia sido despejada
sobre mim. Porém, logo minha atenção
foi desviada.
As enormes estantes de madeira
abarrotadas de livros que surgiram no
meu campo de visão me distraíram
assim que passamos pela entrada da
biblioteca.
As janelas ao redor do prédio
eram de belos vitrais coloridos. O lugar
ainda estava vazio, com as mesas de
estudo vagas, mas era impossível não
notar a magnificência do lugar.
Tirei do bolso da calça um
pedaço rasgado de papel pautado e dei
uma olhada na lista escrita com meus
garranchos antes de seguir para o
departamento de Belas Artes, no
segundo andar.
— Não dou a mínima para o
que acontece ou não aqui — respondi
após alguns segundos, subindo os
degraus de madeira.
George me seguiu.
— Mesmo assim, você precisa
de um amigo e eu sou o melhor que você
irá encontrar nesse quesito. — Sorri e
voltei a olhá-lo.
George parecia um cara legal.
Do tipo excêntrico e que não costumava
se encaixar, exatamente como eu.
— Certo, Hale. — Ele sorriu
também, ajeitando os cabelos. Só então
percebi como ele era bons centímetros
mais baixo que eu e que usava sapatos
oxford de couro nos pés. — Você cursa
Artes Visuais também?
— Não, não. — Ele balançou a
cabeça rápido. — Isso seria um grande
desastre. Eu estudo História.
Aquilo estranhamente
combinava com ele, já que o rapaz
realmente se vestia como se vivesse no
passado, dois séculos atrás.
Assim que viramos em um dos
corredores do segundo andar,
paralisamos como estátuas. Hades Wrath
tinha o corpo de uma garota prensado
contra uma estante. Os braços dela
estavam ao redor dos ombros de Hades
e o rosto dele, enterrado na curva do
pescoço dela.
Arregalei os olhos diante da
cena.
— Pelo amor de Deus,
arrumem um quarto! — interrompeu
George, falando em alto e bom tom,
estragando meu plano de sair
silenciosamente, sem ser notada.
O casal nos fitou
imediatamente, se distanciando. A garota
era baixinha. Tinha os cabelos escuros
cacheados e o corpo, voluptuoso. Ela
corou de vergonha quando percebeu o
flagra. Ao contrário dela, Hades não
pareceu se importar.
Ele colocou para trás os fios do
seu cabelo que estavam bagunçados
antes de olhar na nossa direção.
Primeiro seus olhos se
prenderam em mim e eu percebi que
estes não brilhavam em arrogância como
das outras vezes em que o vi. Ele me
fitava de maneira curiosa e hesitante,
mas, assim que alternou o olhar para
George, o conhecido sorriso de escárnio
voltou ao seu rosto.
Wrath pegou na mão da garota
e, assim que eles passarem por nós, o
rapaz bagunçou os cabelos de George.
— Até mais, Georgie — falou
com a voz rouca e sarcástica. Então
olhou para mim de novo. — Raven.
Após me cumprimentar, os dois
se afastaram.
Bufei, me virando pra Hale.
— Vocês se conhecem? —
perguntei, incrédula. Ele revirou os
olhos antes de finalmente adentrarmos
ao corredor de livros.
— Ele é meu primo e não é tão
ruim quanto parece — explicou. — Na
verdade, foi só por isso que eu vim pra
esse fim de mundo, ao invés de ir para
qualquer outra universidade do país.
Meus pais acham que se eu estudar junto
com Hades me tornarei tão brilhante
quanto ele.
Levantei as sobrancelhas em
surpresa.
— Brilhante? — perguntei.
Eu não imaginaria Hades desse
jeito.
Rico, bonito e mimado, pensei
que seria o clichê do atleta
descerebrado. Mas, pensando bem,
atleta realmente não combinava com o
seu jeito. Ele se encaixava mais no
espectro de bad boy.
— Ele é o melhor estudante de
Direito de sua turma — e de todas as
outras também.
Meu queixo caiu.
Ao que parecia, havia julgado
Hades muito mal.
Chacoalhei a cabeça.
— Chega de falar desse cara.
Ele não vale nosso tempo — encerrei o
assunto e logo comecei a vasculhar as
prateleiras à procura do primeiro livro
da lista.
— Tem razão, Clarke. —
George estalou a língua e eu revirei os
olhos, mas um sorriso ainda pairava em
meu rosto e eu não conseguia disfarçá-
lo.

O Pandemônio tinha um
movimento altíssimo, o que tornava o
trabalho muito pesado para apenas uma
garçonete. Ainda assim, eu estava
gostando da rotina agitada.
Em certo momento da noite
daquela segunda-feira, quando todas as
mesas já estavam ocupadas e servidas,
um grupo de homens vestindo trajes
sociais entrou.
Logo me endireitei atrás do
balcão, observando-os. Eles nem
olharam ao redor, seguiram reto,
passaram pelo bar, e entraram na porta
dos fundos que levava ao porão. Ergui
as sobrancelhas, curiosa, antes de me
virar para Fiona.
A garota não parecia ter sequer
notado o movimento do grupo de
homens. Ela continuava sentada ao meu
lado lendo um livro surrado e com
páginas amareladas.
Tamborilei as pontas dos dedos
sobre a superfície de madeira do
balcão.
Sabia que havia algo estranho
sobre aquele bar. Além do misterioso
porão e as regras sobre não fazer
perguntas, eu também me lembrava
claramente de ver Hades Wrath vestindo
uma jaqueta com o símbolo do
Pandemônio.
O que aquilo significava,
afinal?
Apesar do meu interesse
incômodo em desvendar os segredos
daquele lugar, deveria seguir o conselho
de Fiona e ficar longe daqueles
assuntos.
Varri o salão com meu olhar,
procurando algum trabalho que me
distraísse. Todos estavam bem,
entretanto. A maioria comia porções de
alguma fritura e bebiam cerveja.
Já eram quase dez da noite
quando Fiona, sem tirar os olhos de seu
livro, disse:
— Hoje vamos fechar o bar
mais cedo. Às dez e meia.
Normalmente o Pandemônio
funcionava em pleno vapor até às três ou
quatro da madrugada. Eu saía às onze e
Fiona dava conta do movimento do resto
da noite. Mas, provavelmente, aquilo
tinha a ver com seja lá o que estivesse
ocorrendo no porão.
— Por quê? — A pergunta saiu
antes que eu pudesse conter.
Fiona ergueu os olhos verdes
na minha direção. A sombra preta em
sua pálpebra estava mais forte naquela
noite, combinava com o batom cor de
café que cobria seus lábios finos. A
camiseta escura que ela vestia tinha a
gola e as mangas rasgadas
propositalmente. Ela era estilosa, eu não
podia negar.
Antes que Fiona pudesse me
responder, outro grupo de pessoas
elegantes demais para um bar
universitário entrou. Eles pareciam no
limite entre antipáticos e furiosos
quando caminharam — ou melhor,
marcharam — para a porta escura nos
fundos do bar. Um deles, um careca alto,
me olhou de soslaio até desaparecer no
corredor.
— Está aí sua resposta — foi
tudo o que Fiona disse.
Quando meu turno acabou e
fechamos o Pandemônio, ajudei a
bartender a limpar as mesas e o balcão.
Fizemos tudo em pleno silêncio, mas por
dentro eu me remoía em perguntas.
Eu não me considerava
exatamente do tipo bisbilhoteira, mas
estava realmente curiosa e aflita sobre o
que acontecia de verdade naquele lugar.
Não podia evitar. Sentia como se
estivesse novamente na casa que vivia
em Dallas, onde não podia falar tudo o
que pensava nem agir de acordo com
minha vontade.
Assim que Jordan, o
cozinheiro, passou por nós e se
despediu, fui até o banheiro dos
funcionários. Peguei minha bolsa e meu
casaco de dentro de um dos armários de
metal que lá haviam, e saí de volta para
o salão.
Estava convencida a apenas
cumprimentar Fiona e ir embora dali o
mais rápido possível. Entretanto, me
estagnei em frente ao bar, encarando a
garota que lavava os últimos copos.
— Vamos, Raven, pergunte de
uma vez. Consigo sentir daqui o seu
desespero — ralhou Fiona, sem olhar
para mim.
Engoli em seco e cedi. Me
aproximei, sentando num dos banquinhos
à sua frente.
— O que há no porão? —
perguntei de uma só vez, fazendo com
que ela levantasse a cabeça e me
encarasse.
Fiona abaixou o copo e apoiou
as mãos sobre o balcão. Ela estreitou os
olhos para mim, cerrando os cílios em
hesitação.
Várias hipóteses passavam por
minha cabeça e nenhuma delas era boa.
Frequentemente, nossa imaginação
aumenta as proporções de uma situação
material que, na verdade, é muito
simples. O que eu esperava, então, era
que Fiona revelasse algo trivial que nem
mesmo remotamente se aproximasse das
terríveis possibilidades que eu havia
maquinado em minha mente desde o dia
anterior.
— Você concordou em não se
meter nisso — respondeu, me fazendo
respirar fundo.
— Eu sei — falei, desapontada
—, mas imaginar as piores hipóteses
possíveis está me matando. Preciso
saber no que estou me metendo.
— Não posso dizer. — Fiona
simplesmente deu de ombros.
— Eu não vou embora até você
me contar. — No jogo da teimosia eu
frequentemente ganhava.
Uma parte da minha cabeça
dizia que era melhor eu ir, que era
melhor não saber. A dúvida poderia ser
ruim, mas talvez a resposta me
atormentasse muito mais. Talvez eu não
fosse capaz de lidar com a verdade e
perdesse aquele emprego que eu tanto
precisava para pagar a dívida.
Não havia mais volta, porém.
Eu tinha começado, então precisaria ir
até o final.
Fiona me esquadrinhou em
silêncio por um longo momento,
parecendo se encontrar em um dilema.
Por fim, ela cedeu.
—Você tem ideia de quanto
dinheiro um cassino clandestino pode
gerar?
Levantei as sobrancelhas,
surpresa.
— Um cassino? Como os de
Las Vegas? — Fiona comprimiu os
lábios para conter uma risada.
— Mais ou menos. — Ela
maneou a cabeça.
Eu sabia algo sobre cassinos e
jogos de azar, mas não muito, apenas o
que Connor me contara.
Não importava se você
ganhasse o jogo, quem realmente levava
o prêmio era o cassino. Tudo lá era
programado e calculado para o lucro
dos donos do estabelecimento. Não era
realmente baseado na sorte, como os
jogadores acreditavam. Um cassino
clandestino, escondido nas sombras,
devia ter mais vantagens. Sem impostos
e sem fiscalização, eles podiam viver
sob suas próprias regras. Podiam jogar
sujo.
Então era isso o que havia no
porão?
— E quem está por trás disso?
— Uma gangue — respondeu,
séria, enquanto me olhava fixamente.
Aquela palavra ressoou na
minha cabeça pelos vários segundos
seguintes.
A porra de uma gangue agindo
bem diante de mim. No porão do bar em
que eu trabalhava.
— Isso não te incomoda? —
perguntei, indignada. — O bar em que
trabalhamos aceita hospedar um covil de
criminosos.
Dessa vez Fiona não disfarçou
a risada. Franzi o cenho.
— Não seja inocente, garota. O
Pandemônio não é apenas um bar, nós
somos os criminosos. — Meu queixo
caiu e eu me segurei num dos bancos à
frente do balcão, porque provavelmente
o choque teria me feito despencar.
— Por que está me contando
isso?
Fiona deu de ombros. Havia um
ar de divertimento em seu rosto.
— Você é nova na cidade. A
maioria das pessoas aqui sabe quem nós
somos ou pelo menos desconfia, mas
não você. O chefe achou que seria
melhor se você não soubesse, mas fiquei
com pena. Acho que não é uma sensação
muito boa quando todos sabem sobre
algo, menos você. E iria acabar
descobrindo em algum momento, era
apenas questão de tempo.
Eu não respondi, estava atônita.
Meus olhos estavam grudados em Fiona
enquanto eu a esperava desmentir aquela
história absurda. Eu estava esperando
que ela começasse a gargalhar e dizer:
"você precisava ver a sua cara"
enquanto eu respirava aliviada. A
morena, entretanto, não poderia estar
mais séria. Ela me olhava com uma de
suas finas sobrancelhas levantadas,
esperando alguma reação que não fosse
o semblante catatônico que eu
apresentava naquele instante.
Eu havia perdido a voz,
contudo, porque estava furiosa com o
destino. De todos os bares em Carmine,
por que eu tinha que trabalhar naquele
que pertencia a uma gangue? Eu havia
fugido daquilo, daquela vida, e pra quê?
Apenas para acabar novamente naquele
mundo.
Senti minhas mãos começarem
a suar. Estava nervosa. Não sabia
realmente o que eu deveria fazer a
seguir.
Movi meus olhos para as portas
de madeira da entrada do bar. Eu ainda
podia ir embora. Passaria por aquela
porta e não voltaria no dia seguinte.
Ficaria o mais distante possível daquele
lugar e daquela gangue.
Balancei a cabeça, incrédula.
— Você é um deles então?
Trabalha para um chefe do crime, um
cara mau e perverso.
Eu conhecia aquilo. Não havia
como ser bom ou certo. Pessoas assim
eram como Joel e Connor. Malucos
descontrolados ou psicopatas frios. Em
qual dos dois tipos o chefe do
Pandemônio se enquadrava?
Senti nojo só pensar que, de
alguma forma, eu fazia parte daquilo. Eu
trabalhava ali. Trabalhava para uma
pessoa assim.
Os horrores que meu padrasto
faziam todos os dias surgiram em minha
mente e senti gosto de bile invadir minha
boca.
Fiona, entretanto, apenas riu.
Ela riu.
— Vocês são assassinos? —
voltei a perguntar, temendo a resposta.
Eu estava enlouquecendo.
Dei um longo suspiro, retirando
o maço de cigarros do bolso traseiro da
minha calça e acendendo um. Eu não
deveria fumar em um ambiente fechado,
mas eu estava nervosa. E, ao que
parecia, o Pandemônio não vivia sob as
regras convencionais mesmo.
— Não é nada assim. — Fiona
deu de ombros. — Raven, esta cidade
vive sob as regras do chefe. Ele controla
as coisas por aqui e, acredite ou não, ele
não é o vilão dessa história.
Franzi o cenho. Um cara só
controlando uma cidade inteira era
tirania.
Dei uma longa tragada no
cigarro, apoiando as mãos sobre o
balcão. Inquieta, passei as mãos pelos
cabelos, soltando-os. Eu realmente
precisava dar logo o fora dali.
— Caras assim ascendem e
caem o tempo todo. Uma hora a polícia
vai descobrir esse esquema e vocês
estarão todos encrencados — falei,
tentando fazê-la entender a gravidade da
situação. — Ninguém está acima da lei.
Essa cidade não é dele.
— Bem — começou ela,
tirando o cigarro dos meus dedos e
levando-o aos próprios lábios —, eu
não diria isso a Hades Wrath.
— Espera, o que disse? Hades
Wrath?
— Ele é o deus do submundo,
não é? — rebateu ela, achando graça.
Então tudo se encaixava. A
maneira como Hades agira no bar, como
se estivesse em casa. Explicava o
motivo de ele usar a jaqueta com o
símbolo do bar. Porque não era apenas
um bar.
Eu já deveria imaginar que os
Wrath estavam por trás daquilo. Eu
sabia que eles eram criminosos
poderosos, afinal. E, se eram tão ricos e
dominavam grande parte da cidade
como Stephen dissera, então eles não
tinham realmente que se preocupar com
a possibilidade de serem pegos pela
polícia.
Eu me encontrava no cerne da
máfia de Carmine, aquela de que meu
padrasto tanto fugiu.
Antes que eu pudesse dizer
qualquer coisa, as portas do bar se
abriram.
Virei a cabeça, olhando por
sobre o ombro. Um grupo de rapazes
entrou. O último a passar pela soleira
foi Hades. À sua frente estava um
daqueles que acompanharam Wrath no
bar no dia anterior. Mais duas pessoas
faziam parte do grupo: um cara alto, de
pele negra retinta, como ébano, e cabeça
raspada, e uma garota. Ela era branca,
alta e tinha longos cabelos de um
vermelho muito vivo. Eram todos
jovens.
Quatro deles mal olharam na
minha direção, como se eu não estivesse
realmente ali. Eles seguiram pelo
corredor que levava até o escritório do
chefe. O chefe cuja identidade eu
desconhecia até pouco tempo atrás.
Hades Wrath, diferente dos
outros, andou lenta e
despreocupadamente pelo bar. Não tinha
pressa para seguir seus amigos lá pra
baixo. Ele colocou as mãos nos bolsos
da calça preta, seus braços desenhados
estavam cobertos pela jaqueta de couro
do Pandemônio.
— É uma bela noite, não acha?
— falou, se aproximando de mim.
Trinquei o maxilar, sem
acreditar que aquilo estava acontecendo.
Balancei a cabeça, exasperada com a
situação, e voltei meu olhar para Fiona.
— Certo, já chega pra mim. Eu
me demito.
Eu não aguentaria continuar ali,
sabendo que aquele cara, o herdeiro rico
e popular da Universidade de Carmine,
tinha uma gangue. Gangues faziam coisas
ilegais e, embora Fiona tivesse dito que
não era como eu imaginava, eu sabia que
eles estavam envolvidos com tráfico e
contrabando, no mínimo — sem
mencionar o tal cassino clandestino que
operava no porão.
Tudo aquilo me lembrava da
minha antiga vida muito mais do que eu
gostaria. Quando fugi, estava certa de ter
deixado toda aquela sujeira para trás.
Agora os horrores daquela vida
pareciam extremamente próximos
novamente.
Girei sobre os calcanhares e
fiz menção de andar em direção à saída.
Entretanto, o toque gelado de uma mão
segurando levemente meu pulso me fez
parar. Me virei lentamente, os olhos
grudados na mão de Hades. Letras que
formavam a palavra HELL estavam
tatuadas em seus dedos. Ele me soltou
no segundo seguinte, recolhendo sua
mão de volta ao seu bolso.
— O que você sabe? —
perguntou ele, os olhos baixos em minha
direção.
Dei um passo para trás,
tentando fugir da fragrância cítrica e
amadeirada do seu perfume. Nossa
diferença de altura era gritante. Hades
parecia ter algo em torno de 1,90m, o
que fazia meus 1,66m parecerem
irrelevantes.
— O suficiente — respondi,
entredentes. O canto de seus lábios se
ergueu num quase sorriso.
— Aposto que sabe muito
menos do que imagina. — Cruzei os
braços, de repente me sentindo exposta e
vulnerável.
— Não me importo com o que
você pensa, estou dando o fora daqui. —
Hades mal deixou eu terminar minha
frase.
— Eu aumento o seu salário em
50% — disse, simplesmente.
Eu parei e ergui lentamente meu
olhar para o rosto dele. Hades atingira o
ponto certo quando se tratava de mim
naquele momento. Eu gostaria de dizer
que minha moral era inabalável. Que
nem por toda a quantia do mundo eu me
envolveria nesse esquema, que nunca
quebraria a promessa que fiz a mim
mesma de ficar o mais distante possível
daquele mundo. Mas eu precisava
daquela grana. Precisava muito. Estava
praticamente desesperada.
Eu não conseguiria me manter
em Carmine por muito tempo sem meu
salário, e também não poderia ir atrás
de Astrid para ajudá-la, pagar a dívida.
Estreitei meus olhos para
Hades. Aquele dinheiro podia ser
irrisório para os Wrath, mas com certeza
significava muito para mim. O bastante
para eu pensar em aceitar sua oferta.
Mordi meu lábio inferior.
— Quero o dobro do que
recebo agora — joguei a proposta e vi
de soslaio quando Fiona arregalou os
olhos. Hades apenas sorriu.
— Não seja gananciosa, amor.
— Rolei os olhos. Eu queria vomitar
toda vez que o cretino me chamava
daquela maneira. — 70% ou nada feito.
Ele estendeu uma mão para
mim. Respirei fundo antes de cruzar os
braços. Eu não tocaria nele novamente.
Meu plano era simples: juntar a
quantia suficiente para pagar a dívida e
depois dar o fora. Com um salário como
aquele, eu esperava que não fosse
demorar muito.
— Tudo bem — aceitei, por
fim. Hades deu um sorriso e abaixou a
mão. Antes de me virar para poder
finalmente ir embora, o fitei de maneira
fria. — E só pra constar, eu teria
aceitado os 50%.
Quis fazê-lo se sentir um tolo,
mas Wrath apenas passou a língua sobre
os lábios. Os olhos escuros brilhando,
mostrando-me que meu plano havia
falhado.
— E eu teria dobrado e até
triplicado o seu salário.
Balancei a cabeça, incrédula.
Mesmo que o dinheiro não
significasse nada pra ele, por que
desperdiçar tanto esforço apenas com
uma garçonete completamente
substituível? Provavelmente existiam
dezenas de garotas dispostas a aceitar
aquela grana e não ver problema em
ficarem caladas diante do que se
passava ali sob seus olhos, no
submundo.
— Por quê? — perguntei.
Hades inclinou a cabeça,
pensando por um segundo.
— Gosto da ideia de ver seu
belo rosto toda noite. — O sorriso
cresceu em seus lábios.
Então era aquilo. Ele queria me
manter ali porque eu o divertia.
Segurei com mais força a bolsa
contra meu corpo.
— Fique longe de mim — falei
ríspida.
Não o dei tempo para uma
resposta, me virei e andei rápido em
direção à porta. Antes de eu finalmente
sair, entretanto, ouvi sua voz uma última
vez atrás de mim.
— Foi um prazer fazer
negócios com você, Raven.
Senti como se tivesse feito um
acordo com o diabo.
Mas eu sei onde você vai
quando sai
Podemos deitar se você quiser
Tentando descobrir o que você
quer
Porque você é do tipo que
consegue o que quer
FRZZN - OZZIE feat. Teflon
Sega
Era sexta-feira quando eu
finalmente resolvi aparecer na Electric.
Depois daquela primeira noite
com Stephen, eu pensei muito se deveria
ou não voltar. Não queria ter que lidar
com todas as coisas mal resolvidas entre
nós, mas a ideia de fazermos aquelas
sessões fora minha, pra começar.
Quando cheguei em Carmine, e o
encontrei ali, eu pedi por aquilo. Pedi
para que ele me ajudasse. Stephen nem
pensou antes de aceitar — talvez, por
causa da sua consciência pesada, ele
acreditasse que, de alguma forma, estava
em dívida comigo.
Mas depois da primeira semana
de trabalho no Pandemônio, eu percebi
que precisava extravasar tudo, descontar
minha frustração. A Electric era uma boa
maneira de fazer isso e, entre ouvir os
comentários cínicos de Hades e ter que
servir cerveja para criminosos, lidar
com Stephen parecia a tarefa mais fácil
da minha agenda.
Quando cheguei no galpão,
fiquei um tempo parada na calçada
olhando para sua fachada. O letreiro
azul neon estava meio apagado e não
existiam janelas para ver se ainda havia
alguém lá. Era uma hora mais tarde do
que Stephen combinara comigo na
semana passada, então ele poderia já ter
ido embora. Quando não compareci nos
últimos dias, ele provavelmente
presumira que eu não voltaria mais.
Respirei fundo e tentei
empurrar a grande porta cinza do
galpão, que cedeu, demonstrando que
não estava trancada. As luzes brancas,
fracas e esparsas do lugar estavam
acesas. A Electric era bem ampla por
dentro. Tinha as paredes também cinzas
e um ringue no centro.
Sentado na beirada, esperando,
estava Stephen. Seus cabelos loiros
estavam presos com um elástico em sua
nuca. Ele estava sem camisa, exibindo
seu torso nu. Sua pele branca tinha um
leve brilho dourado de um bronzeado
natural. Ele usava apenas calças de
moletom e seus pés estavam descalços.
Mexia no celular, despreocupadamente.
Resisti ao impulso de
simplesmente recuar e fingir que nunca
havia aparecido, e dei alguns passos
para dentro da academia.
Quando eu soube que Stephen
era professor de luta no centro da
cidade, pensei que poderia finalmente
aceitar a proposta que ele fizera quando
eu tinha catorze anos. Ele começara a
treinar quando ainda era bem jovem,
para descontar a raiva. Depois, se
tornou questão de necessidade para não
ser esmagado no mundo em que
vivíamos.
Stephen se oferecera para me
ensinar a me defender durante toda a
nossa adolescência, mas eu pensava que
aquilo não era pra mim. Agora, após ter
fugido de Dallas, eu precisava estar
preparada caso alguém fosse me
procurar.
A primeira sessão de treino não
fora tão intensa, eu não me machuquei
— diferente do que pensava Stephen.
Não fui às outras aulas porque ficar tão
perto dele era estranho e me deixava
confusa.
Assim que adentrei ao grande
espaço, Stephen levantou a cabeça e
seus olhos logo encontraram os meus.
Coloquei as mãos nos bolsos da calça e
dei passos incertos em sua direção. Ele
deixou o celular de lado e se levantou,
saltando do ringue. Sua figura era alta e
esguia, com músculos muito bem
delimitados em seus ombros e peito.
— Que bom que veio — disse
ele, abrindo um sorriso gentil. Dei de
ombros.
— Vamos começar logo —
falei, retirando o casaco preto de
moletom e os tênis em meus pés. Prendi
os cabelos num rabo de cavalo alto com
um elástico que estava em meu pulso e
passei por ele, subindo no ringue.
Stephen não me seguiu instantaneamente,
entretanto. Quando percebi que ele
continuava parado lá em baixo, me
encarando, levantei uma sobrancelha. —
O que foi?
— Está tudo bem? Você parece
meio tensa — observou ele, franzindo o
cenho.
Suspirei.
— É só o trabalho — respondi
num tom casual, tentando amenizar a real
importância do que estava acontecendo
no Pandemônio.
Stephen finalmente se
aproximou. Apoiou as mãos no chão do
ringue, que era pelo menos um metro
acima do chão, e subiu com um
impulso.
— Disse que estava
trabalhando em um bar. Qual é o nome?
Hesitei em lhe contar a
verdade, porque eu sabia que Stephen
iria surtar diante daquilo.
Provavelmente, ficaria zangado e me
acusaria de ser irresponsável. Mas,
pensando bem, eu não me importava
com o que ele pensava. Stephen perdera
há muito tempo o direito de opinar nas
minhas decisões.
— Pandemônio — respondi,
cruzando os braços. Stephen, então,
ficou sério. — O que foi?
— Você não sabe sobre o que
realmente é esse lugar, não é?
— Você sabe? — Stephen
balançou a cabeça e bufou, diminuindo a
distância entre nós com passos duros.
— Todos conhecem a gangue de
Hades Wrath. É pra eles que você está
trabalhando, Raven.
— Não, eu sou só a garçonete
— rebati. Ele me analisou com seus
olhos claros por alguns segundos, com
certeza duvidando da minha sanidade.
— Você está mesmo disposta a
entrar nesse mundo de novo? — Havia
certa decepção em sua voz. Fechei os
olhos e respirei fundo, já exausta
daquele assunto.
Eu tive aquela discussão
comigo mesma durante toda a semana.
Estava numa encruzilhada e as
circunstâncias me atormentavam. Eu
estava tentando me convencer, contudo,
de que conseguia fazer aquilo. Seria por
pouco tempo, afinal. Não significava
que eu compactuava com os negócios da
gangue ou que era um deles.
— Eu só sirvo pratos em troca
de dinheiro. Bastante dinheiro, Stephen.
Mais do que o suficiente para eu
resolver as coisas. Caso não se lembre,
eu tenho uma dívida a ser paga.
— A dívida nem é sua! —
argumentou ele, se exaltando.
— Não vou falar sobre isso
com você, Stephen.
— É sério isso? Você fica
brava comigo por ir embora, mas não
com Astrid? Ela tinha a obrigação de
ficar, Raven, não eu.
— Chega! — o interrompi,
agora realmente irritada. — Você não
opina nas minhas escolhas, Stephen. Não
mais.
Ele ficou parado, com as mãos
na cintura, me olhando cansado.
Stephen estava certo. Sua
partida não doera, nem de longe, como a
de Astrid. Ainda assim, as
circunstâncias eram diferentes. Eu
estava disposta a perdoá-la porque ela
era a única família que eu tinha, a única
que já conheci. Era a última pessoa que
eu ainda tinha no mundo.
Stephen deu um longo suspiro.
— Eu não vou ficar tranquilo
com você lá, Raven. Nunca.
— Sinto muito, mas não posso
fazer nada a respeito. — Dei de ombros.
— Se você não pode mais me ajudar,
então eu vou embora.
Fiz menção de sair, mas ele
logo se postou no meu caminho.
— Eu não disse que não te
ajudaria — falou, sério. — Inclusive,
quanto mais eu treinar você, maiores são
as chances de você dar um soco na cara
do Wrath. — Stephen abriu um sorriso.
— Eu quero distância dele e de
sua gangue. — Eu nem sabia por que
havia sentido necessidade de me
explicar. — Só estou lá para trabalhar
no bar, não quero me envolver com as
coisas ilegais feitas por Hades e seus
amigos.
— Não sei se tem opção
estando tão perto. — Mordi o interior da
bochecha, não deixando de me perguntar
se havia alguma verdade no que ele
falava. — Só toma cuidado com eles,
‘tá?
Engoli em seco ao assentir.
Após nos alongarmos, Stephen
começou com suas lições. Ele parecia
estar ainda mais motivado a me ensinar
a me defender. Ele era bom naquilo.
Em um dos movimentos ele
estava à minha frente, sua mão direita
fechada ao redor do meu pescoço, mas
sem apertar ou pressionar. Stephen me
dissera o que fazer. Eu deveria levantar
o braço esquerdo e bater a lateral dele
contra seu pulso. Assim que eu o fiz, sua
mão se afrouxou do meu pescoço e eu
pude acertar suas pernas com chutes,
para que ele caísse. Ele me segurou,
entretanto, de modo que também fui ao
chão.
Terminei por cima de Stephen,
uma mão apoiada ao lado de cada um de
seus ombros. Ele se aproveitou do
elemento surpresa e inverteu nossas
posições rapidamente, prendendo meus
braços acima da minha cabeça.
— Como você sairia dessa
situação? — perguntou ele.
Meu peito subia e descia com a
respiração ofegante. Eu estava suada, já
fazia mais de uma hora que estávamos
treinando e o rosto dele estava muito
perto do meu. Podia sentir sua
respiração na minha pele. Tentei me
soltar, incomodada com a proximidade,
mas ele pressionava meu corpo para
baixo com o seu.
— Vamos, Raven, você sabe o
que fazer.
Umedeci os lábios, sentindo o
coração bater forte e rápido em meus
ouvidos. Fechei os olhos e respirei
fundo. Ficamos em silêncio por alguns
segundos, eu ainda sentindo seu cheiro e
sua respiração muito de perto.
— Stephen…
Eu não sabia o que responder e
estava frustrada demais para tentar usar
os movimentos que ele me ensinou.
— Eu queria tê-la levado
comigo quando fui embora — falou
Stephen, de repente, me fazendo abrir os
olhos para encará-lo. Seus olhos azuis
da cor do mar me atingiam diretamente.
— Eu estraguei tudo.
— Você fez o que precisava
para salvar sua pele — respondi, sem
conseguir disfarçar o tom duro do meu
ressentimento.
Eu compreendia suas ações,
mas não conseguia esquecer ou seguir
em frente como se nada tivesse
acontecido.
Ele abriu a boca para dizer
mais alguma coisa, mas não o fez,
porque, desesperada para fugir daquela
conversa, eu finalmente executei o
movimento que me tirou daquela
situação. Dobrei um dos joelhos e o
atingi acima da pélvis, o empurrando de
cima de mim logo em seguida.
Me pus de pé de uma só vez e
saí do ringue, juntando minhas coisas em
seguida. Minha mochila e casaco
estavam jogados sobre um banco perto
da parede. Os apanhei bem rápido. Vi de
soslaio quando Stephen se levantou
também, sentando-se no chão com os
joelhos dobrados e os olhos seguindo
meus movimentos.
Eu não queria tocar naquele
assunto.
Sim, eu estava fugindo.
Dei as costas a ele e comecei a
caminhar apressadamente na direção da
saída. Abri a porta, mas antes que eu
pudesse sair, ouvi Stephen me chamar.
Olhei para ele por sobre o ombro,
percebendo como seu rosto parecia
carregar um silencioso arrependimento.
Ele não falou nada, talvez
também não soubesse o que dizer. Nossa
relação era confusa e complicada, e eu
não planejava conversar para tentar
resolvê-la. Nada jamais seria o mesmo
entre nós e eu precisaria seguir em
frente através dessa realidade.
Maneei os ombros levemente
antes de finalmente ir.
Estreitei meus olhos,
aproximando meu rosto ainda mais do
papel.
Mesmo após apenas uma
semana de aula, eu já havia percebido
que não era boa na disciplina de Arte e
Perspectiva. Embora prestasse muita
atenção nas fotos referenciais e em
outros desenhos desse gênero, tudo o
que eu estava criando ainda parecia
muito torto para mim.
Talvez aquela fosse a área mais
lógica da arte, provavelmente, por isso
parecia muito complexa pra mim.
E ter uma colega de quarto
andando de um lado para o outro de
maneira incessante, definitivamente, não
estava ajudando na minha concentração.
Me endireitei, recostando-me
na cadeira giratória da escrivaninha, e a
fitei. Libby estava se olhando no espelho
da parede ao lado da porta do banheiro.
Ela usava uma saia amarela e uma blusa
azul-escura de alcinhas. As trancinhas
castanhas de seu cabelo estavam presas
num rabo alto e volumoso. Seu rosto
estava bem maquiado. As cores ficavam
lindas sobre sua pele negra e brilhante.
— Vamos, Raven, você ficou
estudando o dia todo, merece uma folga.
— Ela tentou me convencer, olhando pra
mim através do reflexo no espelho. —
Vai ser nossa primeira festa
universitária, você não pode perder.
Mordi o lábio inferior.
Libby estava certa. Eu queria
aproveitar a melhor parte de estar na
Universidade e ser uma garota normal.
Eu fora a poucas festas no colegial,
somente às mais tediosas. Connor não
permitia que eu saísse com frequência.
Agora que eu era livre, poderia fazer o
que quisesse.
Estava meio hesitante, sem
saber o que esperar. Tudo o que eu sabia
sobre eventos de fraternidade era o que
assistira em comédias besteirol, e não
era muito animador. Mas eu precisava
me arriscar e sair um pouco.
Coloquei o lápis em minha mão
na escrivaninha e me levantei.
— O.k, você tem razão —
concordei e cruzei o quarto até meu
armário.
Só depois de abrir as suas
portas de madeira foi que eu percebi
que, com toda certeza, eu não tinha
roupa pra festa. Meus ombros caíram
enquanto eu analisava os jeans e as
camisetas simples e monocromáticas.
Tudo bem, eu podia lidar com
isso.
Estava prestes a retirar do
cabide uma regata preta padrão quando
Libby grunhiu atrás de mim. Ela
observava as roupas por cima do meu
ombro e não ficou feliz com o que viu.
— É isso o que você costumava
vestir no Texas? — perguntou, meio
sarcástica. — Não pretende usar isso na
festa, não é?
— Qual o problema? — rebati.
Ela apenas levantou uma
sobrancelha pra mim antes de arrancar a
peça das minhas mãos e arremessá-la de
volta no armário. Em seguida, foi até o
seu e começou a procurar lá.
— Hoje você vai com uma
roupa minha, mas você precisa comprar
mais peças que não sejam tão chatas e
sem graça. Elas não têm nada a ver com
você — falou Libby, vasculhando seu
guarda-roupa. — Posso ir com você ao
shopping no fim de semana.
— Combinado.
Quando fugi de Dallas, não
tinha levado muitas roupas, apenas o que
coube na maior mochila que consegui
encontrar naquela casa. Além disso, a
maioria das peças era muito gasta e
antiga. Sem dúvidas eu precisava
comprar coisas novas.
— Algum dia pretende me
contar sobre sua vida lá? — perguntou
ela, ainda procurando uma vestimenta
que não ficasse muito larga no meu
corpo demasiadamente franzino.
— Um dia — prometi, embora
duvidasse disso.
Eu detestava conversar sobre
meu passado.
Por fim, usei um vestido preto
que pertencia à irmã mais nova de
Libby. A peça havia se misturado com as
roupas dela por engano, mas acabou
sendo útil.
Ele terminava um pouco acima
do meio das minhas coxas finas e
pálidas. Suas alças eram bem estreitas e
seu modelo era um número maior do que
o ideal para meu corpo esquálido. Ainda
assim, combinou com a delineado preto
em meus olhos e o batom vermelho.
Sempre gostei de me maquiar, mas já
havia muito tempo que eu não o fazia.
Por fim, calcei um par de
sandálias. Ouvi uma vasta gama de
elogios vindos de Libby.
Toquei a maçã do meu rosto
enquanto me olhava no espelho. Não
havia mais olheiras sob meus olhos e eu
não parecia mais como um fantasma. Os
olhos cinzentos ganharam vida e brilho e
um sorriso pairava por meus lábios —
que ganharam volume com o batom.
Fiquei feliz ao perceber que também não
estava mais tão magra.
Meus cabelos escuros como a
noite estavam presos num rabo de
cavalo despojado, com alguns fios
caindo nas laterais do meu rosto.
Eu me sentia bonita pela
primeira vez em muito tempo.
Peguei uma pequena bolsa
emprestada de Libby, na qual coloquei
meu celular, o batom, um maço de
cigarros, um isqueiro e as chaves do
dormitório. Pendurei sua alça dourada
no ombro ao sairmos. Pegamos um táxi
até a fraternidade.
A Gama Zeta Phi — GZP —
estava lotada. Mesmo sem entrar eu
conseguia ouvir a música, um pop
estridente. No gramado em frente à casa
estavam algumas pessoas com copos e
garrafas de bebidas nas mãos. Libby e
eu passamos por elas antes de subirmos
os degraus que levavam à varanda, onde
se localizava a porta principal. Esta se
encontrava aberta, e assim que passamos
por ela nos vimos no hall de entrada. O
local estava infestado de jovens, até
mesmo nas escadas que levavam ao
segundo andar.
— Caramba, eu preciso de uma
bebida — falou Libby, pegando em
minha mão para me puxar com ela na
direção da cozinha. — Não fique longe
do meu campo de visão, Raven. E não
aceite bebidas de estranhos.
Assenti com a cabeça, apesar
de ela não poder ver.
Mesmo sendo inexperiente
quanto a fraternidades, eu conhecia as
regras básicas de sobrevivência de uma
garota numa festa.
Eu não conhecia quase ninguém
ali. Vi de relance um dos membros do
Pandemônio, mas ele não deu muita
importância para a minha presença.
Em cima da ilha de mármore
cinza da cozinha havia baldes com gelo
abarrotados de garrafas de bebidas.
Libby e eu pegamos uma cerveja cada e
fomos para os fundos da casa. No
quintal estava uma enorme piscina — e
dentro dela vários universitários
bêbados e ainda vestidos.
Libby avistou de longe um
casal de amigos e nós fomos até lá.
— Deus, pensei que nunca
fosse encontrar vocês — berrou ela por
cima da música.
Eu conhecia a garota, Alina
Johnson, que fazia algumas matérias
comigo. Também era estudante de Artes.
Ela era loira, com fios longos,
ondulados e bagunçados. O contorno dos
olhos estava bem escuro com a
maquiagem e ela usava uma blusa
branca de mangas compridas e calças
jeans.
Fiquei aliviada com sua
presença. Pelo menos agora eu sabia que
conhecia duas pessoas ali, ao invés de
apenas uma.
— Já conhece a Raven? — A
loira me apresentou para o cara ao se
lado. — É caloura de Artes. A garota é
muito foda nos desenhos, você precisa
ver.
Dei um sorriso sem graça.
— Eu adoraria ver a sua arte
algum dia — disse ele, passando os
dedos pelos cabelos castanhos
encaracolados em sua cabeça. A outra
mão segurava um copo de plástico
vermelho. — Sou Harvey, é um prazer te
conhecer.
Ele sorriu com uma fileira de
dentes muito brancos e retos, mas não
conseguiu evitar de me olhar dos pés à
cabeça. Quando seus olhos se voltaram
para meu rosto, ele me encarou de um
jeito bem específico. Levantei uma
sobrancelha em sua direção, mas por fim
o cumprimentei de volta.
Se ele queria flertar, eu não iria
me opor. Harvey era bem bonito e
poderia ser uma boa distração. Por
muito tempo Stephen foi tudo no que
pensei, eu realmente precisava conhecer
outros caras.
Coloquei minha mão sobre a
sua e apertei, cumprimentando-o.
— O prazer é meu, Harvey.
— Então, de onde você é? —
Puxou conversa.
Olhei de soslaio para Libby,
que logo desviou o olhar e entrou numa
conversa banal com Alina. Ela sabia
bem que eu não gostava de falar sobre
mim e que, sempre que o assunto
aparecia, eu desconversava.
Pigarreei, voltando a olhar para
Harvey.
— Texas — respondi, forçando
um sorriso simpático.
— É mesmo? De que lugar do
Texas?
— Uma cidade bem pequena do
interior, você não conhece. Nem aparece
nos mapas. — Harvey assentiu
lentamente. — E você, de onde é?
— São Francisco, Califórnia.
Ele não se importou em falar
sobre si mesmo e eu não me importei em
escutar. Ele era engraçado e parecia ser
bastante inteligente também. Era
estudante de Literatura e queria ser
professor, mas, definitivamente, não se
enquadrava como um nerd tradicional.
Era atleta e membro do conselho da
GZP.
Quando nossas bebidas
acabaram, ele sugeriu que fôssemos
buscar mais. Eu logo percebi que ele só
queria se distanciar das garotas para que
pudéssemos conversar a sós. Ele estava
usando um tom sugestivo em todas as
nossas interações.
Harvey pegou a minha mão e
me guiou de volta para dentro da casa.
Depois de pegarmos mais cervejas na
cozinha, não voltamos à área externa.
— Quer dançar? — perguntou,
aproximando a boca do meu ouvido para
que pudesse escutá-lo melhor.
Dei de ombros antes de dizer
um “é claro” e segui-lo para a sala de
estar, onde havia mais caixas de som e
um grupo de pessoas dançando coladas
umas nas outras.
Bebi um pouco mais de cerveja
e deixei-me levar pela música.
Você tem o diabo em seus
olhos
Você chegou e me pegou de
surpresa
Fale o que você quiser, eu não
vou voltar
Se você quer pegar a estrada,
então vamos lá
Devil Eyes - Hippie Sabotage
Muitas pessoas dançavam ao
meu redor. A maioria eram garotas, que
mexiam seu corpo de maneira sensual no
ritmo agitado da música. Já fazia algum
tempo que eu não dançava, mas me
deixei levar assim que Harvey colocou
as mãos na minha cintura. Eu segurava
em seus ombros, mantendo contato
visual o tempo todo.
Sua mão desceu devagar pela
lateral do meu quadril até encontrar a
pele da minha coxa após a barra do
vestido.
— Você é a garota mais bonita
que eu já conheci — sussurrou em meu
ouvido.
Quase revirei os olhos com o
clichê.
Não respondi seu elogio. Sabia
o que ele queria e ele achava que eu
precisava de floreios e bobagens
românticas para ceder. Assim que ele
fez menção de aproximar seu rosto do
meu, senti meu celular vibrando dentro
da bolsa, que eu estava mantendo colada
ao meu corpo para não perder.
Me afastei com um passo para
trás e puxei o aparelho lá de dentro. Não
conhecia muitas pessoas, e poucas
tinham meu número. Quando coloquei os
olhos no nome que brilhava na tela, meu
coração disparou e eu atendi a chamada.
Coloquei o celular sobre a orelha,
eufórica, enquanto tampava a outra por
causa do barulho.
— Astrid? — chamei alto,
quase gritando.
Não consegui escutar a
resposta, entretanto. Andei em passos
rápidos por entre as pessoas, esbarrando
com algumas delas no caminho, e fui em
direção à saída da casa. A música
diminuiu gradativamente até eu me ver
novamente na varanda da porta
principal.
— Alô? Astrid?!
Logo em seguida a ligação
caiu.
Soltei um palavrão alto antes
de discar novamente. Chamou por vários
segundos, mas caiu na caixa postal. Não
era possível.
Que diabos foi aquilo? Por que
ela ligaria e depois não atenderia o
telefone?
Fechei os olhos, me encostando
contra a parede e deixando minha
cabeça tombar para trás. Em anos,
aquela fora a primeira vez em que estive
realmente perto de falar com ela de
novo. E eu havia perdido a chance.
Minha mão foi novamente para
dentro da bolsa e tirou de lá o isqueiro e
um cigarro, que eu prontamente acendi.
Inspirei a nicotina para dentro
do meu organismo, ainda praguejando
muitos palavrões dentro da minha
cabeça. Instantaneamente, comecei a
sentir raiva das sandálias que apertavam
meus pés e das alças do vestido que
pinicavam minha pele.
Queria ir pra casa.
Expeli a fumaça lentamente
enquanto fitava a rua escura à frente da
irmandade.
Poucos minutos depois, um cara
saiu lá de dentro, se aproximando de
onde eu estava. Ele se encostou sobre a
balaustrada de madeira branca que
cercava a varanda, ficando na minha
frente, e cruzou os braços.
Logo o reconheci. Ele era um
dos membros da gangue de Hades. Tinha
cabelos castanhos raspados rente à
cabeça. Não conseguia identificar a cor
de seus olhos pela pouca luz do
ambiente, mas notei algumas tatuagens
em suas mãos e no pescoço, escapando
sob o tecido de sua blusa de mangas
compridas.
— Dia ruim? — perguntou ele.
Inclinei a cabeça levemente
para o lado, tirando o cigarro dos
lábios.
— Algo assim. — Foi a única
coisa que respondi.
— Quer desabafar? Dizem que
os estranhos são os melhores ouvintes.
— Estreitei meus olhos para ele.
Eu não confiava nele. Não
confiava em ninguém do Pandemônio.
Eles pareciam predadores, sempre à
espreita. Além disso, eram criminosos.
Eu sabia muito bem o que pessoas assim
faziam.
— Você não é um estranho. É
amigo de Hades Wrath.
— Usualmente as pessoas me
chamam de Khalil, mas você pode me
chamar de K.
Levantei uma sobrancelha.
Eu podia não estar na cidade há
muito tempo ou conhecê-los bem, mas
desconfiava do que Khalil estava
fazendo. Ele parecia estar me sondando.
Agora que eu havia descoberto sobre o
que era o Pandemônio de verdade, a
gangue de Hades deveria querer saber o
que eu pretendia fazer com a
informação.
Soltei um riso nasalado antes
de tragar novamente o cigarro.
— Não vai dar certo — falei,
expirando a fumaça. — Esse seu plano
de tentar se aproximar de mim para me
convencer a ficar calada sobre seus
negócios. Além disso, tenho certeza de
que todos já sabem.
Khalil sorriu.
— Pode ter certeza que sim. —
Ele riu. — E eu vim em paz, juro. Sem
segundas intenções. — Levantou as
mãos em rendição.
Desviei o olhar de volta para a
rua.
Antes que ele pudesse voltar a
dizer algo, outra pessoa saiu de dentro
da casa e veio até nós. Era a garota alta
de cabelos vermelhos do Pandemônio.
Outra deles, que ótimo,
pensei.
Ela não esperava me encontrar,
pois pareceu surpresa ao me ver. Me
mediu dos pés à cabeça com um olhar
que parecia conter nada além de repulsa.
Aquilo me deixou mais brava do que
desconfortável.
As pessoas daquela gangue
sequer me conheciam, mas continuavam
rondando como se apenas minha
presença fosse o suficiente para
incomodá-los ou deixá-los alertas.
— Selina. — Havia certo
desgosto na voz de Khalil ao pronunciar
aquele nome.
A garota era extremamente
bonita. Grandes olhos marcados, nariz
fino e delicado, batom vermelho
vibrante e um corpo alto e curvilíneo.
Ela usava um cropped preto e saia de
couro curta e apertada, expondo suas
longas pernas.
— O que está fazendo aqui
fora? Fugindo de toda a diversão? —
Selina levantou uma sobrancelha fina
para ele. O tom de sua voz era de
desafio. Ela cruzou os braços.
— Não estou interessado nos
seus joguinhos esta noite, obrigado —
ele a cortou, ríspido.
A tensão era palpável.
Provavelmente, era a hora de eu dar o
fora dali.
— Qual é, K? Todos amam
jogar comigo. — Selina tinha sarcasmo
escorrendo de sua voz de veludo. Seu
olhar felino logo se voltou para mim.
Ela inclinou a cabeça, mas não disse
nada.
Coloquei o cigarro entre os
lábios e saí, passando por ela e entrando
na casa novamente sem dizer nada.
Meu espírito festeiro já estava
morto e enterrado naquele momento e eu
só queria ir embora.
Procurei Libby por todos os
lugares, mas ela e Alina desapareceram.
Joguei a guimba do cigarro na lixeira da
cozinha e puxei um copo de vodca, que
desceu queimando pela minha garganta.
— Onde você estava? —
Harvey apareceu, com os cabelos
bagunçados e mais embriagado do que
dez minutos atrás. — Te procurei em
todo lugar.
Era uma mentira deslavada,
mas, levando em consideração o sorriso
malicioso em seus lábios, ele pretendia
retomar de onde paramos. Minha
vontade de tê-lo como a distração da
noite, entretanto, virara cinzas.
— Viu a Libby por aí? —
perguntei, elevando o tom de voz para
sobressair à música.
Harvey franziu o cenho.
— Ela deve estar com Alina.
— E onde está Alina?
— Não faço ideia.
Bufei.
— Se vê-la, pode dizer que eu
já fui?
— Mas você já vai? A festa
mal começou — ele argumentou, mas
continuei impassível. — Posso te dar
uma carona, pelo menos?
Levantei uma sobrancelha,
mirando meu olhar na garrafa de tequila
que ele tinha em mãos.
— Não mesmo, mas obrigada
pela gentileza.
Provavelmente, ele estava
bêbado demais para entender a minha
ironia, então apenas passei por ele,
dando um tapinha em seu ombro, e fui
direto para a saída. Passei reto pela
varanda antes de descer os degraus e
caminhar em direção à rua.
Eu não tinha dinheiro para um
táxi e o alojamento não era tão distante,
de modo que eu podia chegar até lá
caminhando.
Abracei meu próprio corpo e
virei a esquina, começando a subir a
rua. Meus pés certamente não ficariam
nada felizes com as marcas e bolhas que
surgiriam neles após eu andar tanto com
aquelas sandálias de salto — que eram
dois números menores que o meu.
A rua estava escura e gelada e
eu estava furiosa comigo mesma.
Após alguns minutos andando
eu percebi que talvez o alojamento fosse
mais distante do que eu calculara. Do
outro lado do campus, provavelmente.
Soltei um palavrão e olhei ao
redor, procurando alguém a quem
pudesse pedir carona. O lugar estava
totalmente vazio e silencioso, porém.
Sentei no meio-fio e retirei as
sandálias, alongando os pés antes de
voltar a andar, dessa vez descalça sobre
o asfalto úmido.
Foi então que ouvi o rugido alto
e violento de uma motocicleta. Ela
acelerou num solavanco até se
aproximar, depois reduziu
consideravelmente e continuou devagar
ao meu lado. Olhei por sobre o ombro,
mas não pude ver nada além de um
homem com capacete, jaqueta grossa e
coturnos.
Abracei meu corpo com mais
força e continuei a andar, acelerando
meus passos até quase correr. Ele
permaneceu me seguindo de perto,
contudo.
Meu coração batia em
disparada em meu peito. Eu olhava ao
redor, procurando alguém ou alguma
coisa que pudesse me ajudar. Não havia
nada.
Eu quis me virar e perguntar
logo o que diabos ele queria. Queria
xingar e me debater. Qualquer coisa que
não fosse o desespero de ser perseguida,
sem saber o que aconteceria. Estava
quase cedendo a esse impulso quando
um carro apareceu. Ele tinha os faróis
desligados quando ultrapassou a moto e
parou perpendicularmente no meio da
rua.
Reconheci o Camaro preto.
Praguejei alto, parando de
andar. A moto também parou.
Hades saiu de dentro do carro,
sequer fechou a porta, se aproximou da
moto a passos duros, como se já
soubesse quem era ali. No mesmo
instante, o motoqueiro tirou o capacete.
Espremi os olhos sob a luz
escassa, tentando identificar seu rosto
naquele breu. Seus cabelos eram curtos,
quase raspados, e um sorriso enfeitava
seu rosto. Eu sentia seu olhar em mim,
fixo e intenso, como se tentasse dizer
alguma coisa. Não entendi o que estava
acontecendo.
— Que merda está fazendo,
Hive? — perguntou Hades, num estado
de humor que beirava a cólera.
Pensei em continuar andando,
sumir logo dali enquanto eles se
resolviam. Entretanto, meus olhos
estavam presos à cena, observando cada
movimento deles. Eu não havia visto
Wrath na festa, talvez ele sequer
estivesse lá. E o outro, o motoqueiro que
estava me seguindo, chamou minha
atenção.
— Estou só me divertindo, não
fiz nada de errado. — Levantou as mãos
cobertas com luvas de couro.
A voz era tão familiar, mas eu
não lembrava de seu rosto.
Provavelmente, já havia cruzado com
ele na Universidade, talvez fizesse
alguma aula comigo.
— Vá se divertir de uma forma
menos doentia, então. Dê o fora daqui.
Agora.
Franzi o cenho.
Meu peito ainda subia e descia
de forma ofegante e eu sentia a
adrenalina correndo em minhas veias.
— Não sabia que ela estava
com você. Hades. Falta minha. — Pela
maneira como ele falou, ficou claro que
as coisas entre os dois eram pessoais.
Mais do que isso, Hive parecia estar
tentando fazer Hades perder o controle.
— Ela está.
— Não estou — neguei ao
mesmo tempo em que ele afirmou.
Engoli em seco, fitando-o.
Hades, entretanto, tinha seus olhos
cravados em Hive.
— Por que voltou para
Carmine? — Hades perguntou num tom
de voz firme, meio assustador.
— Não está feliz em me ver?
— Hive provocou, rindo.
— Desapareça da minha frente.
— Foi a resposta entredentes que ele
ganhou. — Agora.
Hive se voltou na minha
direção uma última vez, inclinando a
cabeça para me olhar. Não se demorou
muito, contudo. No instante seguinte, ele
colocou o capacete e disparou com a
moto num solavanco.
Levantei as sobrancelhas e
suspirei, surpresa com o desenrolar
daquela cena estranha — para dizer o
mínimo. De qualquer forma, não era da
minha conta.
Hades passou as mãos nos
cabelos em frustração. Fiz menção de
voltar a andar, mas sua voz me parou.
— Entre no carro, eu te levo.
— Me virei, olhando-o incrédula.
Ele estava mesmo me dando
uma ordem?
— Vá pro inferno — cuspi em
sua direção. Ele não pareceu se abalar,
apenas umedeceu os lábios antes que
estes formassem um sorriso de canto.
— Você não parece muito
confortável andando pelo asfalto
descalça, amor — observou Hades,
olhando para os meus pés. — Vamos,
por favor.
Ponderei, alternando meu olhar
entre a figura alta de Hades e a de seu
carro.
Meus pés doíam, eu estava
cansada e ainda um pouco apavorada
por ter sido seguida por aquele homem
desconhecido. Hive poderia voltar para
ter de mim o que estava buscando
quando me seguiu. Não sabia o que ele
queria e temia suas intenções.
Assim, cedi, caminhando até o
Camaro sem dizer nada.
Eu não deveria ter aceitado a
carona.
Eu o vi lá fora tentando falar
com ela
Você está tentando deixá-lo,
disse que eu sou o motivo
Diga que você é minha, eu sou
seu esta noite
Me conte mentiras
Oh, garota, me conte mentiras
Party Monster - The Weeknd
O carro estava silencioso. Até
demais.
Eu tinha um dos braços apoiados
no batente da janela aberta do Camaro.
A outra mão guiava o volante lentamente
pelas ruas escuras. Normalmente, eu
gostava de bem mais velocidade do que
aquilo, mas queria pegar leve com a
garota ao meu lado. Com certeza o
episódio com Hive já fora assustador o
suficiente. Ela não precisava de mais
adrenalina naquela noite.
Olhei de soslaio para a figura
de Raven. Ela estava tensa. Eu podia ler
sua postura facilmente. As pernas
grudadas uma na outra, os braços ao
redor do próprio corpo. Estava
praticamente colada na porta do
passageiro, mantendo a maior distância
possível de mim. O cheiro do seu
perfume havia impregnado o interior do
veículo assim que ela entrou ali. Doce e
suave. Adjetivos avessos à
personalidade dela, pelo o que eu
conhecia. Não a culpava por sua
hostilidade direcionada a mim, contudo.
Eu bem sabia que ela tinha muitos
motivos para desconfiar de mim e do
Pandemônio.
E pensar nela me distraiu do
ódio que me consumiria se eu focasse no
retorno de Hive. Eu, definitivamente,
preferia admirar a beleza quase
sobrenatural de Raven. Seus cabelos
eram tão escuros quanto a noite densa,
contrastando com o tom prateado de
seus olhos. Ela era linda.
Precisava admitir que havia a
subestimado. Quando ouvi sobre ela, a
garota que fugira da máfia do Texas,
pensei que desapareceria. Foi, no
mínimo, surpreendente vê-la em meu
bar.
Mas, naquela noite, ela não era
minha maior preocupação, Hive era. Eu
não podia acreditar que o desgraçado
estava de volta. Depois de todo o caos
que ele deixara, simplesmente retornou
como se nada tivesse acontecido. E
assim que o vi, todos os últimos
acontecimentos voltaram com tudo na
minha cabeça. O sentimento de raiva me
possuiu. Me contive para não quebrar
sua cara insolente e ingrata em mil
pedaços.
O maldito Hive novamente em
Carmine.
Trinquei o maxilar, pensando
em como poderia lidar com aquele
problema de maneiras que me
poupassem estresse e esforço — o que
parecia impossível.
Apertei o volante forte em
minhas mãos, até ver os nós dos dedos
empalidecerem.
Era mais do que vingança. Hive
precisava ser punido e era meu dever
assegurar isso. Eu havia passado muito
tempo tentando ensiná-lo o caminho
correto, a tomar as decisões certas. Não
obtive sucesso antes e agora era tarde
demais para isso.
— Quem era aquele cara? —
A voz de Raven quebrou o silêncio,
virando o rosto para mim. Os grandes
olhos cinzentos me encaravam
incisivos.
Havia algo escondido ali. Eu
podia ser um bastardo egoísta na grande
maioria das vezes, mas sentia algo
quando a olhava. Sabia, conhecendo
Joel McKinley, que Raven não tivera um
passado fácil. Conseguia enxergar isso
através de seu comportamento
irreverente, escondido por baixo da
armadura de sua rebeldia.
— Nick Wrath — respondi,
voltando a olhar para a pista —, meu
irmão.
Pelo menos era o que dizia
nosso sangue — ou parte dele. Eu não
considerava realmente que tinha um
irmão. Nicholas parou bem cedo de agir
como tal. Então, traiu a mim e aos
nossos amigos. Escolheu ser Hive em
vez de Nick. Era um covarde, afinal.
— Que relação amigável a de
vocês. — Ironia escorreu de seu tom de
voz. — Aquela conversa foi mesmo
muito fraternal.
Eu não pude evitar rir. Raven
brava era atraente, mas Raven sarcástica
era inexplicável.
Ela me olhou com o cenho
franzido por um par de segundos antes
de desviar o olhar para a frente.
— Normalmente as coisas entre
nós são mais feias do que aquilo —
expliquei, mas ela não insistiu no
assunto, apenas murmurou uma resposta
monossilábica que esbanjava
desinteresse.
— É bom que saiba que eu só
aceitei essa carona por sentir pena dos
meus pés.
Dei um riso nasalado, meus
olhos seguindo o caminho de suas
pernas pálidas até os tornozelos sobre o
assoalho do carro. A pele ainda estava
marcada em vermelho pelas tiras das
sandálias.
Eu realmente não esperava que
ela desse o braço a torcer. Afinal, a
garota parecia ser muito orgulhosa.
— É mesmo? Como vou me
recuperar de tamanha decepção? —
brinquei, também utilizando do recurso
preferido de Raven, a ironia. — Pensei
que você estivesse desesperada para
desfrutar da minha adorável companhia
nesse longo e turbulento trajeto.
Raven levantou uma
sobrancelha em julgamento e ergueu o
queixo.
— Você é uma piada.
Sorri.
Em pouco tempo, parei o carro
no estacionamento em frente aos prédios
do alojamento da Universidade. Me
recostei contra o banco de couro e
cruzei os braços, fitando Raven apanhar
seus sapatos jogados no assoalho e abrir
a porta.
— Não vai me agradecer pela
gentileza? — perguntei, ela rolou os
olhos e bateu a porta. Raven se inclinou
para baixo e me olhou pelo espaço da
janela abaixada.
— Da próxima vez você pode
enfiar sua gentileza em você-sabe-onde.
— Sorriu irônica antes de se virar e sair
andando. Com uma das mãos ela
segurava as sandálias, pisando descalça
sobre o asfalto.
— Tenha uma boa noite, amor
— provoquei, elevando o tom de voz
para que ela me escutasse. Raven apenas
se virou para me mostrar o dedo do
meio e continuou andando em direção
aos dormitórios.
Eu estava precisando beber,
por isso o próximo lugar no qual eu
parei foi o Pandemônio. Não havia
nenhum bar naquela cidade melhor do
que o meu.
Quando entrei no lugar já
passava da meia-noite, mas ainda estava
lotado. Era sábado, afinal. Todos
estavam desesperados para encher a
cara e esquecer de suas vidas
miseráveis.
Fiona trabalhava ágil atrás do
bar, preparando as bebidas e servindo
mesas. Alec a ajudava, já que era a
folga de Raven e estávamos com uma
garçonete a menos. Nesses momentos,
quando eu observava o caos em que o
Pandemônio se encontrava, me
arrependia de ter perdido Sophie.
Aquela deveria ser uma das minhas
regras, não dormir com as garçonetes.
No final, Sophie queria muito mais de
mim do que eu poderia lhe dar, então as
coisas ficaram complicadas e ela deu o
fora antes que seu coração se partisse. O
sexo valera a pena, ao menos.
Acenei com a cabeça na
direção de Alec, cumprimentando-o
quando passei por ele, e fui direto para
um dos bancos livres no bar. Cruzei os
braços sobre o balcão de madeira,
observando Fiona servir uma dose de
absinto para o homem ao meu lado.
Assim que ela me olhou, nem disse
nada, apenas encheu um copo com meu
uísque preferido e empurrou-o na minha
direção. Dei um bom gole e me voltei
para a bartender.
— Obrigado por avisar que a
besta estava à solta na cidade — falei,
fazendo Fiona rir e cruzar os braços.
Eu mal acreditei quando ela me
telefonara dizendo que meu irmão estava
de volta. Ele fora corajoso o bastante
para aparecer no Pandemônio — e em
Carmine, na verdade. Instantes depois,
foi Khalil quem ligou para dizer que o
desgraçado estava aos arredores do
campus. Percorri cada rua tentando
encontrá-lo. E, quando finalmente
consegui, me surpreendi com a cena de
ele aterrorizando Raven com sua
motocicleta patética.
Tomei o resto da bebida de uma
só vez e Fiona me serviu mais uma
rodada.
— O que vai fazer com ele? —
perguntou, estreitando os olhos para
mim.
Bufei alto.
— Estou cansado de ter que
lidar com ele. Frederik deveria fazer
algo, pra variar.
Fiona me lançou um olhar de
desaprovação e me arrependi no mesmo
instante por aquelas palavras.
— Você não quer isso de
verdade, Hades — contrariou ela. —
Seu pai é cruel e injusto.
Ela estava certa.
Passei minha vida inteira
tentando proteger meu irmão caçula das
garras de Frederik e, embora estivesse
furioso com Nicholas, não desejava
realmente que meu pai se envolvesse.
Desde que Frederik descobrira que Nick
não era seu filho legítimo, após minha
mãe confessar o adultério pouco antes
de morrer, estava fingindo que ele não
existia. E era melhor continuar assim.
— A culpa é exclusivamente de
Garrett Voich — continuou ela. — Ele
manipulou Nick da mesma maneira que
faz com todos os outros Daggers.
— Nick é igual a ele agora.
Pensar nos Daggers fazia um
gosto amargo invadir minha boca.
Mesmo antes do Pandemônio existir,
eles já estavam lá, assolando Carmine.
Destruíam tudo o que tocavam, como
uma praga.
— Não, não é. Ele se
arrepende, Hades, ou então não teria
desertado dos Daggers e ido embora.
— Talvez se arrependa disso,
mas ainda quer se vingar de mim. Só não
sei o que ele queria com Raven.
— O que ele poderia querer?
Ela é só uma garçonete. — Desviei o
olhar, mas o gesto não passou
despercebido por ela. Fiona me
conhecia bem demais para ignorar
aquilo. — O que você não está me
contando, Hades?
Muitas coisas, mas a principal
delas tinha a ver com Raven Clarke.
Ainda não tinha falado sobre a garota
com ninguém do Pandemônio, porque
queria ser cauteloso e não envolvê-los
no caminho do meu pai. Eu não
costumava guardar segredos da minha
melhor amiga, porém.
— Raven não é só uma
garçonete.
— Imaginei que não, pela
forma como você reagiu. Quem ela é?
— Não posso dizer, preciso
que confie em mim.
Eu não sabia ainda se a
conexão de Raven com a máfia do Texas
era conhecida por Nick, mas precisava
garantir que, caso não fosse,
permanecesse assim. Raven era uma
peça importante e se Nick ou Garrett
soubessem que ela estava em Carmine,
tinha certeza de que iriam entregá-la
para Joel McKinley em troca da
recompensa obscena que ele estava
oferecendo por ela. Ele daria dinheiro e
poder a quem levasse de volta sua filha,
que sabia demais para o próprio o bem.
E isso era tudo o que os Daggers
precisavam para serem capazes de
destruir o Pandemônio de uma vez por
todas.
Eles estavam fracos desde a
última vez, quando mandei pra cadeia
pelo menos um terço dos seus homens e
destruí a sede de seu motoclub.
Desapareceram por um tempo, mas
ainda estavam escondidos em algum
lugar de Carmine, apenas esperando a
oportunidade certa para agir.
Mas eu me perguntava: e se
Nick não soubesse sobre Raven? Por
qual outro motivo estaria a seguindo
naquela noite? Eu sabia que ele não
pretendia atacá-la. Meu irmão era um
canalha, mas nunca seria capaz disso.
— Sabe que eu confio —
respondeu Fiona após um suspiro. —
Tem outro problema, Selina estava com
Khalil. Ela já deve saber que Nick
voltou. Provavelmente está surtando
agora.
Foi minha vez de suspirar.
Hive mal tinha voltado e já
estava causando problemas demais.
Puxei meu celular do bolso e
digitei uma mensagem para a Selina,
perguntando onde ela estava. A resposta
não demorou para vir e não me
surpreendeu. Ela estava em meu
apartamento. Definitivamente, era
melhor do que fazendo alguma besteira
em algum outro lugar.
— Não a deixe ficar entre
vocês dois de novo. Os problemas entre
Nick e Selina são da conta deles apenas.
— Não se ele continuar sendo
um babaca com ela — contrariei, me
levantando. — A gente se vê, Fiona.
Acenei para ela, me virei e saí.
Os problemas com Nick
existiam há muito tempo, mas quando ele
envolveu Selina na equação, foi a gota
d'água pra mim. O resto que faltava para
o caos, eu mesmo implantei. Ela era
minha amiga. Crescera conosco,
presenciando todas as coisas horríveis
que envolviam a família Wrath, e
sempre ficou do meu lado. Ele iria
destruí-la se eu não tivesse me
envolvido.
Entrei no Camaro e dirigi para
meu apartamento. Com Alec no bar e
Khalil na GZP, a cobertura deveria estar
vazia e eu poderia conversar em paz
com Selina.
Tirei os sapatos no hall de
entrada e os coloquei alinhados sob o
aparador. Tirei também a jaqueta,
jogando-a sobre a ilha da cozinha junto
ao molho de chaves.
Tudo em minha casa era
perfeitamente organizado. Eu prezava
por aquilo. Era parte da obsessão por
controle que eu herdara de Frederik.
Subi as escadas de meias,
desejando desesperadamente tomar um
banho frio. Fui diretamente para a minha
suíte, porque eu sabia que era lá que
Selina estaria.
Não me surpreendi ao encontrá-
la deitada em minha cama. Ao lado, na
pequena cômoda, uma garrafa de vodca
jazia pela metade. Selina usava lingerie
preta de renda semitransparente,
expondo sua pele rosada que se moldava
sobre as curvas de seus quadris e seios.
A maquiagem estava borrada em seu
rosto, denunciando que estivera
chorando.
— Aquele desgraçado voltou
— ela falou. Tirei o relógio do meu
pulso e o coloquei sobre a cômoda.
Selina soltou um muxoxo.
Entre nós dois havia só sexo,
mas entre ela e Nick as coisas foram
piores. A grande estátua de gelo de
cabelos vermelhos entregou seu coração
à pior pessoa no mundo além de mim.
Depois que ele se foi, não nos
importamos em usar um ao outro como
distração. Era assim que tudo
funcionava entre nós e estávamos bem
com aquilo. Eu nunca poderia dar mais
do que isso para ninguém, de qualquer
forma.
Contudo, talvez fosse melhor
reverter nossa amizade colorida. Tudo
estava prestes a ficar muito complicado
e eu não queria que ela se ferisse ainda
mais.
— Mas não vamos falar sobre
esse imbecil hoje, sim? — continuou
ela, se levantando e vindo até mim.
Olhei em seus olhos cor de
oliva enquanto ela se aproximava,
colocando as mãos em meu peito.
Balancei a cabeça.
— Vá para casa, Selina. As
coisas tendem a não terminar bem
quando tanto sentimento está envolvido
— a interrompi de sua tentativa falha de
arrancar minha blusa e me afastei,
cruzando o quarto até a porta do
banheiro. — Vou chamar um táxi.
Retirei o celular do bolso de
trás da calça, mas fui parado por sua
mão agarrando meu braço.
— O que foi? Por que não
quer? — Levantei uma sobrancelha,
encarando-a. Selina estava bêbada e
chateada. Amanhã não lembraria de
nada do que disse. — É por causa da
garçonete, não é? Você está agindo
estranho desde que ela apareceu.
— Você não sabe do que está
falando, Selina — respondi, impassível.
— O quarto de hóspedes está disponível
pra você passar a noite. Vá descansar,
foi um dia longo para todos nós. — Fiz
menção novamente de me virar, mas a
ruiva entrou na minha frente.
Selina não poderia saber sobre
Raven. Ela era leal a mim, mas eu já
previa o que ela diria se soubesse de
tudo. A forasteira era problema, poderia
causar a guerra que eu estava evitando
há anos. Eu precisava calcular muito
bem os movimentos ao redor dela, ou
acabaria estragando tudo.
— Me diz, Hades, isso tem a
ver com a ligação do McKinley?
O Pandemônio sabia apenas
que uma garota fugira da máfia do Texas,
levando com ela muitos segredos
importantes. Mas, se eu bem conhecia a
mente engenhosa de Selina, diria que ela
estava prestes a ligar todos os pontos.
Além disso, Frederik já havia feito sua
escolha, eu precisava agora reduzir os
danos consequentes dela. Ter o
Pandemônio envolvido na situação
apenas pioraria tudo.
— Esqueça esse assunto —
falei, sério, olhando firme em seus
olhos. Ela obedeceu e não insistiu, mas
também não se afastou. Estava
determinada a conseguir o que queria.
— Você me amava? — mudou
de assunto, amaciando a voz feito
veludo. — É por isso que brigou com
Nick?
Seus lábios alçaram meu
pescoço, onde ela distribuiu beijos até o
maxilar. Em momentos como aquele,
Selina queria apenas duas coisas: briga
ou sexo. Provavelmente, naquele
instante ela desejava ambos. Segurei-a
pelos ombros e a afastei devagar,
estreitando meus olhos para ela.
Quando meu irmão a magoou e
partiu, Selina e eu bebemos e transamos
todas as noites por pelo menos um mês.
Queríamos nos afogar um no outro e
esquecer nossas vidas. Fomos uma boa
distração por um tempo. Olhando agora
para a situação, percebi que aquilo tinha
sido um erro.
O que fizemos durante todo
aquele tempo não a ajudou a superar,
apenas piorou tudo. Dormir com o irmão
do seu namorado traidor podia parecer
uma boa vingança, mas não quando se
repetia com frequência. Provavelmente,
Selina sempre voltava porque eu era a
última ligação entre ela e meu irmão.
— Vá para seu quarto, Selina
— repeti, firme.
A ruiva deu um passo para trás,
me olhando como se estivesse,
finalmente, caindo em si. Se ela se
lembrasse daquilo amanhã, sentiria
raiva de si mesma. Selina não era assim.
Ela era orgulhosa e independente,
odiava demonstrar vulnerabilidade.
Entrei no banheiro e fechei a
porta. Tomei um longo banho gelado
para esfriar a mente.
Fiona estava certa, no fim das
contas. Mesmo que Selina tivesse uma
parte significativa na história, o conflito
entre Nick e eu começara bem antes de
eles ficarem juntos. Nós nos arruinamos
sozinhos e precisaríamos resolver
aquilo sozinhos também.
Depois de terminar e sair com
apenas uma calça de moletom e os
cabelos molhados caindo na testa, me
deparei com Selina dormindo
confortavelmente enrolada em minha
cama. Suspirei e me aproximei,
pegando-a no colo e saindo para o
corredor do segundo andar do
apartamento. Caminhei com ela em meus
braços até a última porta, onde entramos
no quarto de hóspedes. Coloquei-a
delicadamente sobre a cama e a cobri
com o edredom. A observei se
acomodar sobre o travesseiro, jogando
os longos cabelos vermelhos para trás.
Mesmo que parecesse
demasiadamente cruel às vezes, Selina
era minha amiga e eu odiava Nick por
ter quebrado seu coração.
Quando fiz menção de sair,
ouvi sua voz embolada.
— Não deixe eles descobrirem.
Me virei, estreitando os olhos
para olhá-la sob a penumbra.
— O quê?
— Hades Wrath tem um
coração.
Ri nasalado, indo até a porta.
Me detive sob o batente, fitando Selina
uma última vez.
— Há controvérsias sobre isso.
Qualquer lugar que você
quiser que eu te leve, eu vou
Mas há coisas sobre mim que
você simplesmente não sabe
Se eu te dissesse onde eu
estava
Você ainda me chamaria
querido?
E se eu te contasse tudo
Você me chamaria de louco?
Dark Star - Jaymes Young
Um mês antes

Eu estava cansada.
Mais do que isso, estava
exausta.
Minha última refeição fora no
dia anterior, hambúrguer e fritas. O sul
do país nunca esteve tão quente e com
aquele sol escaldante sobre mim ficava
difícil percorrer longas distâncias.
Ainda assim, eu tentava caminhar,
porque não poderia gastar todo o
dinheiro que havia roubado de Joel em
transporte, ou depois não conseguiria me
manter em Carmine. E eu não queria
chegar implorando ajuda para Stephen,
meu orgulho era maior do que isso.
Queria ter dinheiro o suficiente para me
sustentar na universidade até arrumar um
emprego — o que eu esperava que não
demorasse.
Assim que desci do quarto
ônibus, me vi em alguma cidade
aleatória do centro-oeste do Novo
México, sem dinheiro para um quinto
ônibus que me levaria até o Arizona.
Estava andando por estradas de terra
desérticas desde então, tentando chegar
à interestadual. Com sorte, lá eu
conseguiria carona com alguma alma
bondosa. Ou então, poderia me oferecer
para lavar pratos em qualquer
restaurante de beira de estrada, apenas
em troca de uma refeição ou de alguma
grana extra.
Apesar de cansada, não me
arrependia de ter fugido de casa. Não
importava o tipo de vida de merda que
me esperasse fora de Dallas, qualquer
coisa seria melhor do que o lugar onde
eu havia crescido. Mesmo que para isso
eu precisasse andar pelo deserto do
Novo México esperando a desidratação
ou a insolação — o que viesse
primeiro.
Em frente, a menos de um
quilômetro de distância, vi o que
parecia ser um posto de gasolina.
Consegui sorrir. Segurei com mais
firmeza a alça da mochila de couro em
minhas costas e comecei a caminhar com
mais determinação. Assim que me
aproximei, entretanto, percebi que
aquele lugar já estava abandonado há
muito tempo. A fachada estava caindo
aos pedaços. As janelas da loja de
conveniências estavam quebradas e,
através do vidro sujo e estilhaçado, eu
podia ver as dezenas de prateleiras
completamente vazias lá dentro.
Dei um longo suspiro, levando
a mão à nuca.
Me perguntei se Joel já havia
enviado seus homens atrás de mim. Eu
daria tudo para ver sua cara ao perceber
que eu tinha sumido. Provavelmente, ele
não se importaria com o que acontecesse
comigo, mas Connor sim. Ele sabia que
eu era valiosa, que poderia acabar com
seu império.
Arrastei os coturnos em meus
pés até o meio fio e me sentei na beira
da estrada completamente desértica, sob
a sombra que a cobertura do posto de
gasolina fornecia. Estava ofegante, com
os músculos doendo, precisava
descansar por um momento.
Retirei de dentro da bolsa o
toco quebradiço do que restara de um
lápis de carvão e o meu inseparável
caderno de desenhos. Abri numa página
em branco aleatória e comecei a
desenhar.
Havia um deserto de terra
vermelha, exatamente como aquele ao
meu redor, com montanhas pontiagudas
no horizonte e um céu muito azul e nada
esperançoso. Na verdade, tudo o que eu
queria naquele momento era um belo
manto de nuvens cinzentas sobre a minha
cabeça. No centro do desenho estava
uma garota, dava pra ver suas pernas
finas pelos shorts jeans gastos que ela
usava. Pernas ossudas e tornozelos finos
que terminavam num par de botas de
couro. Cabelos desgrenhados e cheios
de nós e olhos fundos e vazios. Ri ao
observá-la.
Ela era realmente uma
desgraçada sem sorte.
Foi logo em seguida que ouvi o
primeiro som após horas de um silêncio
perturbador. Era o barulho do motor de
uma motocicleta. Levantei o rosto,
colocando uma mão reta acima dos
olhos, na linha das sobrancelhas, para
que eu pudesse enxergar sem os fortes
raios solares atrapalhando. A moto logo
entrou em meu campo de visão. Era uma
daquelas grandes, pretas e reluzentes,
com detalhes em metal.
Pensei em me levantar e
sacudir os braços, pedindo ajuda feito
uma náufraga para o primeiro sinal de
vida que eu via em pelo menos seis
horas de caminhada. Não foi necessário,
entretanto, pois ele logo diminuiu a
velocidade e parou bem à minha frente.
Só então percebi que poderia
ser uma péssima ideia. Era um cara
desconhecido encontrando uma garota
jovem e sozinha no deserto. Eu não
precisava ter assistido a um só filme de
terror — ou a um noticiário sequer —
para saber que as chances daquela
situação terminar muito mal não eram
pequenas. Embora fosse difícil de
acreditar, haviam pessoas no mundo
piores do que Joel e Connor.
Mordi o interior da bochecha,
olhando ao redor. Se eu me visse numa
situação de risco, não havia para onde
fugir, nem ninguém para me ajudar.
Estava cercada por um deserto
escaldante e uma estrada reta e solitária,
que desaparecia no horizonte rochoso.
Me odiei um pouco por não ter
conseguido roubar nenhuma arma e
esconder na minha mochila junto com o
dinheiro que peguei do quarto de
Connor. Não teria como me defender se
fosse atacada.
Alternei meu olhar para o
homem em cima da motocicleta, poucos
metros à minha frente. Ele usava uma
regata de malha branca desfiada nas
mangas, revelando braços grandes,
musculosos e bronzeados. Algumas
tatuagens serpenteavam por seus bíceps.
Engoli em seco enquanto ele tirava o
capacete. O cara não parecia ser muito
mais velho que eu. Vinte e poucos anos,
provavelmente. Os cabelos eram
compridos, alguns centímetros acima de
seus ombros. O maxilar estava
escondido por uma barba cheia e as
maçãs do rosto eram esculpidas de
maneira proporcional.
Seu rosto brilhava em suor, o
nariz e as bochechas meio avermelhados
por causa do sol. Seja lá quem fosse,
estava na estrada no deserto há tanto
quanto eu. Parecia igualmente cansado.
— Precisa de ajuda aí, menina?
— perguntou, com a voz grave feito um
trovão.
Levantei uma sobrancelha em
sua direção.
Menina?
Me coloquei de pé, batendo as
mãos contra os shorts para me livrar da
terra e poeira do chão. Cruzei os braços
e o analisei por mais alguns segundos.
Ele era bonito. Bonito feito um modelo,
e com um carregado sotaque sulista feito
o meu. Assim que me aproximei um
passo, ele tirou os óculos escuros estilo
aviador que usava, e pude perscrutar
seus olhos arredondados.
Não era tão intimidador, apesar
de talvez ele querer parecer assim.
— Você é surda ou algo do
tipo? — voltou a perguntar, aumentando
o tom de voz até quase berrar.
Mesmo que ele não fosse um
psicopata assassino, concluí, era
extremamente hostil e mal-humorado.
— Não — gritei de volta. —
Eu escuto muito bem.
— Não vai me responder?
Precisa de ajuda?
Bufei.
— Acho que não de você —
retruquei, cogitando permanecer ali no
meio do nada em vez de aceitar alguma
ajuda daquele homem.
O desconhecido me
surpreendeu ao sorrir com a minha
resposta. Ele cruzou os braços sobre o
painel da moto.
— Quer uma carona? —
ofereceu, relaxando a voz e a expressão
em seu rosto. — Para onde está indo?
Talvez eu devesse mentir,
certamente seria o mais seguro. Ainda
assim, a possibilidade de ele estar
sendo honesto e me levar para o meu
destino fez meus olhos brilharem de
esperança e expectativa.
— Carmine, Arizona —
respondi com sinceridade.
— Você está bem longe de seu
destino, huh? Essa rota é conhecida
como a Jornada Del Muerto, sabe o que
isso significa?
Trinquei o maxilar.
Com certeza não poderia ser
algo bom.
— Pode me dar uma carona ou
não?
Ele ponderou por alguns
instantes antes de dar de ombros.
— Sobe aí. — Jogou o
capacete na minha direção. Me
atrapalhei para apanhá-lo no ar, mas
consegui segurar o objeto firme em
minhas mãos. Levantei a cabeça para
fitá-lo novamente.
Parecia muito com uma cilada,
mas não me permiti pensar muito sobre
isso. Eu estava desesperada e acabaria
morrendo e sendo devorada por abutres
caso continuasse vagando pelo deserto.
Recolhi minhas coisas do chão,
enfiando tudo na mochila, e andei rápido
em direção à moto. Coloquei o capacete
e subi em sua traseira.
— Qual o seu nome? —
perguntou, olhando-me por sobre o
ombro. De perto eu podia ver como íris
eram de um castanho profundo.
— Raven — respondi,
engolindo em seco. — E o seu?
— Nicholas. Nick.
— Legal — falei, sentindo
minhas mãos suarem com o nervosismo
da situação. — Obrigada pela carona.
— Acho que sua sorte acabou
de mudar, Raven.
Depois disso não houve tempo
para eu dizer mais nada. Nick arrancou
com a moto e fui obrigada a segurar em
seu corpo para não cair para trás. Era
óbvio que ele gostava de pilotar sua
máquina de maneira insana. As rodas
praticamente voavam sobre a estrada, o
deserto passando como um borrão ao
nosso redor.
Eu fiquei dividida entre fazer o
trajeto todo com os olhos fechados,
temendo meu destino na garupa daquele
estranho, ou prestar muita atenção em
cada curva que ele dava com sua moto,
para ter certeza de que estávamos indo
para onde ele prometera. Me acalmei
quando Nicholas saiu da pequena
estrada desértica e finalmente entrou na
interestadual, que era muito mais
movimentada e menos assustadora.
Talvez no fim da noite eu já estivesse no
Arizona.
Quando finalmente paramos, no
pôr do sol, não foi num abatedouro ou
no meio do mato onde ele pudesse me
esfolar, foi num restaurante perto de uma
cidadezinha, cuja existência eu
desconhecia. Apesar disso, o restaurante
estava lotado. Tinha cheiro de fritura e
cerveja barata, mas não me importei.
Estava faminta.
Pegamos uma mesa perto das
janelas e ele me disse para pedir o que
quisesse. Foi inevitável me sentir
desconfiada por sua gentileza. Não eram
muitas pessoas que estariam dispostas a
fazer aquilo por uma completa
desconhecida.
Não fiz cerimônia, porém. Pedi
um prato com um grande filé e uma
porção de fritas com refrigerante. Nick
não fez nenhuma observação sobre como
eu poderia comer um boi inteiro se visse
um na minha frente naquele momento,
mas tenho certeza que pensou isso.
— Então, menina, de onde você
vem? — perguntou, puxando assunto.
Rolei os olhos.
— Quer parar de me chamar de
menina?
— Quer responder às minhas
perguntas? — devolveu ele.
Bufei, me recostando contra o
estofado macio do assento.
— Texas — respondi,
genericamente. — E você?
— Carmine, na verdade. —
Levantei uma sobrancelha, surpresa. —
Você ficaria surpresa em saber como
esse mundo é pequeno, Raven.
— O que você estava fazendo
na Jornada Del Muerto se mora no
Arizona?
— Não moro no Arizona. Não
mais.
— E por que está voltando para
lá? — Fiz um monte de perguntas de
propósito. Queria testá-lo e saber se
realmente dizia a verdade. Nick não
parecia ter nada a esconder, contudo.
— Tenho negócios inacabados
a resolver com meu irmão — falou,
fechando o semblante.
— Não parece muito feliz com
a ideia de revê-lo — observei,
inclinando a cabeça. Ele desviou o olhar
na direção da janela, parecendo
pensativo de repente.
— Realmente não estou —
concordou com um aceno de cabeça. —
Tudo o que quero é acabar com aquele
desgraçado.
Depois daquilo, Nick mudou de
assunto de uma maneira abrupta que
deixou claro que ele não queria
continuar falando sobre seu irmão. Eu,
mais do que ninguém, sabia o quão
complicadas podiam ser as relações
familiares. Assim, não insisti no assunto.
— Você parece estar em busca
de algo — Nick constatou, roubando
uma batata frita do meu prato. Torci o
nariz para sua atitude, mas não o
repreendi.
— Um recomeço,
principalmente. — Dei de ombros antes
de acrescentar: — E uma vida melhor,
espero.
Ele se debruçou sobre a mesa,
projetando o corpo para frente para me
analisar de perto. Não sabia o que ele
estava procurando em meus olhos, mas
também não perguntei.
— Quer fugir do seu passado,
não é? Vou logo te avisando que isso não
vai funcionar, ele sempre vai voltar para
te assombrar. Tem que enfrentá-lo de
uma vez.
Estreitei meus olhos para ele.
— E o que você busca?
— Vingança.
Ele não titubeou antes de dizer
e pareceu saborear o gosto daquela
palavra. Um arrepio percorreu minha
espinha e eu vacilei, me distanciando até
minhas costas colarem no estofado.
Mesmo sem conhecê-lo, sua
determinação sombria me assustou como
o inferno.
Isto é o que acontece quando
eu penso em você
Eu tive que mudar meus jeitos
de jogar, ficou meio complicado pra
mim
É por isso que eu digo as
coisas que digo
Desse jeito eu sei que você não
pode me ignorar
Então me dê tudo de você em
troca de mim
Exchange - Bryson Tiller

Libby perguntou por que eu


estava parecendo com alguém que viu
um fantasma. Eu não soube responder, só
conseguia pensar em como fui estúpida
de não ter logo reconhecido o cara que
me salvou de uma provável morte no
deserto.
Após repassar a noite em que
me assustei com o motoqueiro me
seguindo pelas ruas escuras do campus,
tudo ficou muito claro. Era esse, afinal,
o motivo da sua voz ter parecido tão
familiar. Ele aparentava muito diferente
de como eu me lembrava, porém. O
Nick que me deu carona um mês atrás
tinha cabelos compridos e uma barba
enorme.
Foi apenas quando acordei no
dia seguinte que as peças começaram a
se encaixar. A relação complicada entre
ele e o irmão, o retorno para sua cidade
natal, Carmine. Não costumava acreditar
em destino, mas me parecia
coincidência demais que eu me
deparasse com os dois filhos de
Frederik Wrath, o maior inimigo do meu
padrasto, logo nos meus primeiros dias
na cidade. Embora tivesse fugido
intencionalmente para o território
daquela família, nunca pretendi me
envolver com aqueles negócios sujos
novamente. E, ainda assim, lá estava eu,
trabalhando diretamente para um deles.
Mesmo querendo manter
distância, não podia deixar de me
perguntar sobre o que havia por trás da
história dos irmãos Wrath. Jovens e
ricos, deveriam ter o mundo aos seus
pés. Mas, pelo pouco que Nick me
contara durante nossa longa viagem — e
pela maneira como reagiram na presença
um do outro — Nick e Hades pareciam
muito propensos a matar um ao outro a
qualquer instante. Algo muito sério
ocorrera entre eles.
Quando Nick e eu chegamos em
Carmine, após uma viagem de quase
dois dias, ele me deixou em frente ao
alojamento da Universidade e foi
embora, dizendo que precisava resolver
algumas coisas. Nunca mais tive notícias
suas e, para ser sincera, não tinha
pensado muito sobre ele durante as
últimas semanas. Tive preocupações
muito mais imediatas para isso. E, no
fim das contas, eu não sabia muita coisa
sobre ele. Não conversamos sobre
nossos passados, o meu em Dallas e o
dele em Carmine. Mas Nick me contara
que passara o último ano cruzando a
América em sua motocicleta. Esteve em
quase todos os países da América
Latina. Suas histórias pareciam
fascinantes.
Poderia ter sido uma
coincidência nosso encontro na noite de
ontem ou ele estava me procurando? O
que ele queria, afinal?
Mesmo sabendo pouco sobre
tudo aquilo, eu podia apostar que o
motivo que fizera Nick passar a ser
chamado de Hive era o mesmo que o
fizera ir embora da cidade.
Chacoalhei a cabeça, tentando
me livrar daqueles pensamentos. Os
problemas dos Wrath não eram da minha
conta. Já era arriscado demais estar
trabalhando no bar do Pandemônio, não
precisava entrar ainda mais fundo
naquele submundo.
— Estou indo encontrar Alina
na cafeteria, quer vir também? —
perguntou Libby quando estávamos
saindo do alojamento. Meu corpo
ansiava pela dose matinal de cafeína,
então aceitei.
A cafeteria em questão não
ficava muito distante, era dentro do
campus da Universidade. Chegamos em
pouco tempo e, assim que empurrei a
porta de vidro e adentrei no lugar, o
cheiro extraordinário de café e bolinhos
me envolveu. Olhei ao redor e logo
encontrei a garota loira sentada ao lado
da grande janela de vidro. Alina usava
um suéter de lã cinza, o que me fez
franzir o cenho. Estávamos ainda no
início do outono e sempre fazia calor
demais no Arizona, inclusive naquela
manhã ensolarada.
— Ela está bem? — perguntei
baixinho para Libby, que apenas deu de
ombros.
— Claro, por que não estaria?
Nos aproximamos da mesa, mas
só parecemos despertar a atenção de
Alina quando puxamos as cadeiras e nos
sentamos. A loira virou seu rosto para
nós e deu um sorriso tristonho antes de
baixar os olhos para a xícara de chá
fumegante entre suas mãos pálidas.
— O que aconteceu ontem,
Raven? Você sumiu de repente — ela
perguntou.
— Nada demais, eu precisava
ir embora e acabei não achando vocês.
Pedi a Harvey para avisá-las.
— Ele avisou — Libby disse,
girando o cardápio sobre a mesa de
madeira. — Harvey parecia muito
frustrado. Não ficamos muito mais
tempo depois, de qualquer maneira,
após Lane aparecer.
Senti uma dose de
ressentimento em sua voz ao citar aquele
nome.
— Lane? — indaguei.
— Lane Scott — Libby
respondeu no lugar de Alina.
— Meu namorado —
completou a loira. — Ele foi me buscar.
Balancei a cabeça,
compreendendo. Até então eu não sabia
que ela namorava, mas também não a
conhecia há muito tempo. Estranhei um
pouco o fato de Libby ter engolido em
seco e desconversado em seguida, mas
não me detive muito naquele
pensamento.
Me levantei para ir até o balcão
e pedi um café expresso sem açúcar.
Enquanto aguardava, George entrou e se
juntou à outra fila. Acenei para ele e o
rapaz abriu um sorriso, se aproximando
de mim após pedir seu latte
descafeinado e com leite de soja.
— Bom dia, Clarke —
cumprimentou.
Olhei para a sua escolha de
vestimenta daquele dia. Hale usava uma
camisa creme com suspensórios
vermelhos e uma calça marrom. Havia
um par de oxfords de couro em seus pés.
— Bom dia, Hale — devolvi,
também sorrindo. — Não te vi na festa
de sábado, você estava lá?
Ele riu como seu eu tivesse
acabado de lhe contar uma piada.
— Não vou em lugares como
festas de fraternidade, Clarke —
explicou, como fosse óbvio. George, em
seguida, ajeitou seus cabelos castanhos
com seus dedos lânguidos e suas unhas
pintadas de preto. — Não tem nada a
ver comigo.
— Sorte a sua, não foi mesmo
divertido — respondi sem ânimo.
Quando George e eu nos
viramos após apanhar nosso pedido no
balcão, dei uma olhada na direção da
mesa com Libby e Alina. Elas
conversavam e Alli parecia mais
animada.
— Estamos naquela mesa. —
Acenei com a cabeça na direção da
janela. — Quer sentar com a gente?
Hale deu de ombros e me
seguiu, puxando uma cadeira ao se
aproximar da nossa mesa. O apresentei
para Libby, uma vez que Alina já o
conhecia. George se enturmava bem. Ele
era do tipo interessante, que sempre
tinha algo a dizer para contribuir à
conversa. Enquanto tomava um gole do
meu café extra forte, me virei para a
janela. Prendi a respiração quando vi
Hades do outro lado da rua.
Ele tinha as mãos nos bolsos da
jaqueta de couro e um cigarro entre os
lábios. Khalil e o outro garoto, o
sorridente cujo nome eu desconhecia até
então, o acompanhavam de perto. Os
três estavam andando em direção ao
centro do campus e pareciam absortos
numa conversa.
Quase como se fosse uma força
magnética, o rosto de Hades se virou em
minha direção e seus olhos logo me
encontraram através do vidro da
cafeteria. Com uma das mãos ele tirou o
cigarro dos lábios, expirando a fumaça
lentamente, sem parar de me fitar. Ele
piscou um dos olhos para mim e sorriu,
antes de voltar a olhar para frente e
virar à direita com seus amigos,
desaparecendo do meu campo de visão.
Senti um arrepio quase que
instantâneo percorrer meu corpo.
Envolvi o copo do café com os dedos, o
calor sendo transmitido pouco a pouco
para minhas mãos. Meus olhos ainda
estavam grudados na rua, na qual
universitários iam e vinham
despreocupadamente. Um formigamento
estranho e uma sensação desconhecida
me acometiam toda vez que Hades
Wrath estava por perto, e isso me
incomodava muito. Sua arrogância e
cinismo me irritavam.
— Babaca — xinguei, mais alto
do que queria. Ao me virar de volta,
percebi que três pares de olhos confusos
me encaravam.
— Perdão? — George levantou
uma sobrancelha, com um ar divertido
no rosto.
— Como se não bastasse
apenas um Wrath por aqui, apareceu
outro. Hades tem um irmão — soltei,
com minha voz pingando indignação.
Alina e Libby piscaram, confusas.
— Está falando sobre Hades
Wrath? — Libby franziu o cenho, meio
incrédula.
— Ele me deu carona no
sábado, depois que cruzei com seu
irmão.
— Nicholas está de volta? —
Hale estava sério agora. Por um instante,
eu havia me esquecido que ele era parte
da família Wrath.
Passei as mãos nos cabelos, me
recostando contra o assento estofado.
— É o que parece. — Dei de
ombros. — Qual é a dele? Quero dizer,
os dois parecem se odiar.
George deu um longo gole em
sua bebida, fazendo um silêncio cair
sobre a mesa por alguns segundos.
— Nick surtou depois de
descobrir que não era realmente filho de
Frederik Wrath. Quando ele entrou para
a gangue rival ao Pandemônio, tudo
piorou. Ficaram em guerra por dois anos
até Nick sair da cidade.
Alina franziu o cenho e
indagou:
— Pandemônio? Ouvi dizer que
eram traficantes.
— É a gangue do Hades —
George explicou. — Eles controlam as
coisas por aqui agora. O Pandemônio
destronou os Daggers, que era o
motoclub local. Eles costumavam
instaurar o terror e o caos em Carmine,
mas Hades acabou com eles.
— Na época, a cidade inteira
comentava sobre isso — Libby falou. —
Os caras do Pandemônio são como
deuses por aqui. Fazem o que querem e
quando querem. Sexys e misteriosos.
Ela deu um sorriso malicioso.
Alina, por outro lado, torceu o nariz
para aquilo.
— É uma droga como as
autoridades da cidade não se importam
com todas as coisas ilegais que eles
fazem.
— Com todo o dinheiro que
conseguem, devem ter comprado a
polícia — especulou Libby.
Então, ao que parecia, existia
outra gangue em Carmine. Uma da qual
Nick fazia parte. Agora eu compreendia
a raiva de Hades e o motivo de ele ter
dito que seu irmão o traiu.
— O que aconteceu com os
Daggers? — perguntei para George, que
apenas deu de ombros.
— Perderam tudo, eu acho.
Devem estar escondidos como ratos nos
esgotos agora. Mas isso foi bom. Eles
eram realmente ruins.
— E o Pandemônio, não é? —
rebati, incomodada.
— Não — George respondeu
sem titubear. — Acredite, com o poder
que eles têm, poderiam ser bem piores.
Acho que só querem estabelecer algum
tipo de ordem nesta cidade maluca.
Era difícil acreditar naquilo,
principalmente conhecendo a reputação
dos Wrath. Joel temia Frederik por um
motivo. E eu duvidava que Hades
pudesse ser melhor que o pai. Ele estava
seguindo o mesmo caminho, afinal.
— Como você sabe tanto sobre
eles? — perguntou Alina, estreitando os
olhos.
— Somos primos. Eu sei que
não parece; afinal, eu sou muito mais
bonito. — Ele sorriu galante e piscou
pra ela.
Nós rimos.
— Vocês são próximos?
— Não muito. Minha mãe é
irmã da mãe de Hades, mas nunca
aprovou sua relação com Frederik.
Todos sabiam que os Wrath eram
problema, mas a tia Eve o amava.
Depois que ela morreu, nos
distanciamos de vez.
Ergui as sobrancelhas em
surpresa.
— A mãe de Hades morreu?
George apenas assentiu com a
cabeça, em silêncio. Um brilho de
tristeza percorreu seu olhar.
Fiquei quieta por um momento
também.
Se Frederik fosse mesmo uma
pessoa ruim como eu imaginava, com
certeza fora difícil para Hades e Nick
crescerem sem a mãe. Ainda mais para o
último, que não era filho legítimo do
grande e poderoso Frederik Wrath.
Talvez a vida daqueles dois irmãos não
tenha sido nada fácil, como eu estava
imaginando até aquele momento.
— Estou trabalhando para o
Pandemônio — confessei, após algum
tempo. Mas me apressei em acrescentar:
— Sou só a garçonete do bar deles, não
tenho interesse em seus negócios
ilegais.
— Trabalha para Hades Wrath?
— questionou Alina, meio incrédula.
— E como é isso? — Libby
parecia verdadeiramente animada com a
hipótese.
Apesar de estar em Carmine
por pouco tempo, foi o bastante para eu
notar que Hades era uma espécie de
lenda ao redor do campus. Seu círculo
de amigos era bastante restrito, de modo
que ninguém sabia muito sobre ele. De
qualquer modo, a Universidade se
dividia entre aqueles que o invejavam e
os que o desejavam. Mas Hades estava
alheio a todos eles, estava acima deles.
— Normal. Não conversamos
muito. Ele passa a maior parte do tempo
no escritório. Fiona e eu damos conta do
bar e do salão.
— Isso é muito legal. Você é
como um deles.
— Não — garanti, me
apressando em negar aquela ideia
extremamente absurda que me causava
náuseas. — Não tenho nada a ver com
eles.
Os três não tocaram mais
naquele tema, desviando para uma
conversa banal. Aquele pensamento,
porém, não saiu da minha cabeça. Todos
em Carmine sabiam, ou pelo menos
desconfiavam, das coisas que o
Pandemônio fazia. Assim, se a notícia
de que eu trabalhava para eles se
espalhasse, eu poderia ficar encrencada.
O submundo do crime era pequeno
demais e eu temia que a informação, de
algum modo, chegasse em Dallas.
— Harvey perguntou sobre
você — Libby mudou de assunto, me
fazendo levantar a cabeça em sua
direção. — Acho que ele realmente está
afim de você.
— Vocês fariam um casal tão
adorável. — Alina sorriu sonhadora,
colocando as mãos no rosto.
Fiz uma careta. Harvey parecia
um cara legal, mas apenas isso. Eu não
estava realmente interessada em me
envolver com alguém naquele momento.
E agora, estando tão perto daquilo do
qual eu mais queria fugir, temia que
fosse necessário ir embora em breve.
Não podia arriscar que Joel soubesse do
meu paradeiro.
Mas, primeiramente, precisava
pagar a dívida de Astrid e encontrá-la.
— Não estou interessada —
interrompi.
Deslizei as pontas dos dedos
sobre os sulcos na madeira do tampo da
mesa antes de beber o resto do meu café.
— Deveria dar uma chance pra
ele, Raven — Alina insistiu, me olhando
séria.
— Não quero nada com ele. —
Meu tom foi ríspido e a calou
imediatamente.
George, que me fitava de
maneira apreensiva, desconversou.
— Ouvi dizer que um dos
membros da Gama Zeta Phi foi preso.
No instante seguinte, disse que
precisava fazer uma ligação e me
levantei, pegando o copo de café e
andando em direção à saída da cafeteria
Queria falar com Stephen.
Embora meu orgulho rejeitasse a ideia
de pedir ajuda a ele, não havia outra
escolha. Se ele me ajudasse, poderia
encontrar Astrid mais rápido. Além
disso, era inevitável sentir falta das
nossas conversas. Ele costumava ser
meu melhor amigo. Seu apoio me
acalentou durante os anos difíceis que
vieram após a partida de Astrid.
Levei o aparelho à orelha,
mordendo meu lábio inferior em
expectativa. O que ouvi, entretanto,
estava bem longe de ser Stephen.
— Alô? — Era uma garota.
Uma voz de veludo que mais se
assemelhava a um ronronar.
— Hãn… — gaguejei, sem
saber o que dizer. — Deve ser engano.
— Acho que você quer falar
com o Stephen. Desculpe, ele está no
banho. Posso pedir para ele te
retornar, qual o seu nome?
Não falei mais nada, apenas
desliguei.
Amor, você não percebe? Estou
chamando
Um cara como você deveria
ter um aviso
É perigoso, estou me
apaixonando
Não há escapatória, não posso
esperar
Você é perigoso, adoro isso
Toxic - Britney Spears
Eu era muito estúpida.
Não apenas por telefonar para
Stephen, mas por querer ouvir sua voz,
por buscar apoio em alguém que me
abandonou num inferno sem nenhum
remorso. Para, mesmo sabendo que era
uma má ideia, alimentar um pouquinho o
que restara dos meus sentimentos por
ele. E eu nem sabia a proporção desses
sentimentos.
Como apagar da minha mente e
do meu coração, de uma hora para outra,
uma das únicas pessoas que já se
importaram comigo? Como
simplesmente superar a manhã em que
acordei e encontrei sua carta na cômoda
ao lado da minha cama dizendo que não
podia mais ficar ali e que sentia muito?
Ele era tudo o que me mantinha
sã enquanto coisas terríveis aconteciam
ao meu redor. Stephen cuidou de mim e
me protegeu. Mas, claramente, aquilo
importou mais a mim do que a ele. Ele
superou, afinal. Eu deveria estar
tentando fazer aquilo também.
Eu pensava nisso enquanto
deslizava o lápis com determinação — e
também certa agressividade — pela
página do meu pequeno sketchbook.
Inclinei levemente o rosto, estreitando
os olhos para as linhas cinzas que eu
havia desenhado. Desenhar costumava
ser a única coisa capaz de ordenar meus
pensamentos caóticos.
Naquela tarde, estava sentada
de pernas cruzadas sobre um banco
coberto pela sombra de uma grande
árvore no meio do campus. Logo seria o
início do meu turno no Pandemônio,
então eu estava tentando aproveitar. O
que me lembrava da pessoa cujo rosto
estava estampado no desenho.
Lá estava Hades, com seus
cabelos escuros penteados para trás, os
olhos que brilhavam em cinismo e as
diversas e curiosas tatuagens que
pintavam sua pele. Eu não saberia dizer
especificamente o que me gerou a
necessidade de desenhá-lo, mas tudo em
sua aparência era interessante — e não
apenas do ponto de vista artístico.
Na página do meu caderno,
Hades tinha o corpo apoiado contra a
parede, os braços cruzados e um cigarro
pendendo nos lábios. Fiquei com uma
pontada de frustração por não ter
conseguido representar perfeitamente o
ar de deboche que ele constantemente
trazia em seu rosto.
Bati a outra ponta do lápis
contra o caderno, analisando o desenho
como um todo.
Eu não deveria sequer estar
pensando em Hades Wrath por tempo o
bastante para achar que era uma boa
ideia desenhá-lo. Até mesmo estudar ele
em minha cabeça era perigoso. A
curiosidade que eu nutria por ele
poderia me levar direto ao lugar do qual
eu mais tentava fugir.
Fechei o caderno de uma só
vez. Ao mesmo tempo em que escapava
de mim um suspiro alto e cansado.
Assim que ergui a cabeça, captei a
imagem de Harvey correndo pelo
campus. Ele usava uma bermuda cinza e
uma regata vermelha. Os cabelos
cacheados estavam suados, balançando
conforme seus movimentos, e sua pele
branca parecia mais bronzeada sob o
sol. Harvey também me notou e logo
desacelerou o ritmo enquanto se
aproximava, até parar na minha frente.
— Hey, Raven —
cumprimentou, alongando os braços,
expondo os contornos dos músculos de
seus ombros e bíceps. — O que faz por
aqui?
Dei de ombros.
— Apenas estudando um pouco
ao ar livre. — Indiquei o caderno em
meu colo. Ele assentiu lentamente antes
de começar a alongar as pernas.
— Não sabia que corria —
falei, casualmente. Harvey sorriu,
achando que eu estava impressionada.
— Gosto de me manter em
forma, principalmente agora que a
temporada de futebol está prestes a
começar. — Apenas anuí em resposta,
meio entediada.
Antes que pudesse falar alguma
coisa que fomentasse nossa conversa
fiada ou colocasse um fim nela de vez,
um cara alto se aproximou. Ele também
estava correndo, usava roupas
esportivas e tinha porte atlético, ombros
largos e braços musculosos. Sua pele
era branca, seus cabelos eram quase que
completamente raspados. O rapaz me
mediu de cima a baixo antes de
cumprimentar Harvey.
— Ei, cara, você estava quase
ganhando. Desistiu? — perguntou ele,
ignorando minha presença. Harvey deu
de ombros antes de voltar os olhos para
mim e sorrir.
— Me distraí.
— Estávamos apostando
corrida ao redor do campus — explicou
o amigo dele, provavelmente
percebendo minha feição confusa.
— Raven, este é Lane Scott —
Harvey apresentou. Balancei a cabeça,
forçando um sorriso. Ele era o
namorado de Alina.
— Acho melhor eu ir, logo vai
escurecer — eu disse, decretando o fim
do diálogo e me levantando. Recolhi
meus materiais de desenho e minha
mochila no chão.
Cumprimentei Harvey com um
gesto de cabeça e um breve "a gente se
vê". Dei uma última olhada em Lane,
não conseguindo evitar a ojeriza que me
acometeu. Precisava me lembrar de
perguntar sobre ele à Libby mais tarde.
Eu gostava de andar até o
alojamento. Apesar de ser uma
caminhada de uns vinte minutos, era
revigorante passear sob a sombra das
árvores espalhadas pelo campus. Sem
dúvidas apreciava todo o tempo sozinha
que podia ter — mesmo que esses
momentos sempre me despertavam
memórias obscuras e me faziam remoer
meu passado.
Me perturbava a possibilidade
de nunca conseguir me desvincular da
garota que eu costumava ser em Dallas.
Odiava lembrar dela. Sempre
vulnerável, aterrorizada com tudo.
Acreditei, por um tempo, que aprender
com Stephen a lutar me ajudaria nisso.
Mas, refletindo mais profundamente
sobre isso, percebi que o efeito fora
exatamente o oposto.
Assim que cruzei o
estacionamento e me aproximei do
prédio dos dormitórios, me deparei com
a figura loira de Stephen sentada nos
degraus da entrada. Respirei fundo,
tentada a olhar ao redor à procura de
uma saída que me fizesse escapar
daquela situação. Contudo, ele logo me
avistou e se levantou, colocando as
mãos nos bolsos de seus jeans de cor
lavada.
— Raven — começou ele, mas
eu estava nervosa e o interrompi
prontamente.
— Não precisa se explicar, se é
isso o que veio fazer aqui.
Ele não me devia explicações
sobre a garota que atendera seu telefone.
Afinal, ele fora embora há anos,
destruindo, com isso, o que costumava
existir entre nós.
— Imaginei que era você a
garota do telefonema ao qual Donna se
referiu. Agora tenho certeza disso. —
Cruzei os braços, estreitando meus olhos
para ele. O loiro deu um longo suspiro.
— O que você quer de mim, Raven?
Balancei a cabeça.
— Honestamente? Nada. —
Dei de ombros. — Não devemos nada
um ao outro.
— Acredita mesmo nisso? —
Assenti veemente. — Então por que está
tão brava?
— Não estou brava. — Stephen
levantou uma sobrancelha, duvidando.
— Não com você, pelo menos. Talvez
comigo mesma. É só que… é difícil pra
mim. Foi fácil pra você ir embora, mas
eu sofri, Stephen. Sofri por anos. Mas eu
não estou aqui por sua causa. Quero
seguir em frente tanto quanto você quer.
A Donna me pegou de surpresa, mas nós
não temos nada. Você é livre para fazer
o que quiser.
— Não quero te magoar.
— É tarde demais para isso,
não acha? Só vamos esquecer isso, tudo
bem?
Ele assentiu, meio a
contragosto, e colocou as mãos nos
bolsos.
— O que você queria falar
comigo?
Suspirei.
— Astrid me ligou — falei, em
seguida vi o rosto dele se transformar
em pura preocupação. — Não consegui
falar com ela e nem retornar à ligação.
— Sinto muito, Raven. Mas se
ela entrou em contato antes então poderá
fazer novamente, certo?
Dei de ombros. Ele estava
tentando me fazer ser otimista, mas
talvez aquela tivesse sido a única
chance que eu tive de falar com Astrid.
Poderia nunca mais acontecer de novo.
Mordi o interior da bochecha
por um instante.
— Acha mesmo que Joel não
sabe onde ela está?
— Se ele soubesse já a teria
levado de volta — argumentou ele e eu
balancei a cabeça, anuindo.
— Provavelmente você está
certo — concordei, colocando a parte
da frente dos meus cabelos para trás. —
Teve alguma notícia deles ultimamente?
— Não, sinto muito. Eu me
afastei por completo de tudo aquilo
quando me mudei para cá.
— É claro.
Era o que nós dois queríamos
desde o começo. Distância daquele
mundo.
Um silêncio desconfortável —
tão diferente daquele que antes nos
embalava por horas a fio — recaiu
sobre o estacionamento. Segurei com
mais firmeza a mochila em meu ombro e
engoli em seco.
— Tenho que ir, meu turno no
Pandemônio começa em pouco tempo —
anunciei e, mesmo antes que ele pudesse
responder, comecei a me afastar.
Subi os degraus o mais rápido
possível e entrei no prédio sem ouvir
mais nenhuma palavra dele.

A noite no Pandemônio não


estava movimentada daquela vez. Eu
estava atrás do balcão do bar e Fiona
havia saído para atender um telefonema.
Eu tamborilava os dedos de uma mão
sobre a superfície de madeira e a outra
rabiscava esboços aleatórios no
sketchbook. Vez ou outra, meus olhos
passeavam pelo salão, apenas para se
depararem com este quase
completamente vazio. Era
compreensível, visto que a grande parte
dos frequentadores do bar
provavelmente ainda estava sofrendo
demais com a ressaca do fim de semana
para querer se embebedar de novo.
Enquanto minha mente flutuava
no ritmo da música que tocava baixinho,
eu desenhava displicentemente. Gostava
de esboçar estranhos. Era algo sobre
captar sua essência e, ao mesmo tempo,
brincar com as hipóteses sobre suas
personalidades. Naquele momento, eu
tinha na ponta do lápis os rostos dos
clientes do Pandemônio e me indagava
sobre suas vidas. O que poderia fazer
uma mulher bem vestida de meia-idade
beber sozinha quatro rodadas de
picklebacks[i] em plena segunda-feira à
noite? Quem, em sã consciência,
aguentaria tomar tantos drinks de uísque
seguidos de picles em menos de meia-
hora?
Quando a porta se abriu,
levantei o rosto, esperando a chegada de
mais clientes que pudessem me distrair.
No entanto, paralisei completamente
quando me deparei com Nick entrando
no bar. Ele varreu o salão com seu olhar
antes que este me encontrasse, então
marchou com seus coturnos em minha
direção, sentando-se num dos
banquinhos à minha frente.
Nick vestia apenas uma jaqueta
de couro marrom sobre seu torso nu e,
apesar das auto represálias, não pude
deixar de encará-lo. O cós de suas
calças era perigosamente baixo, de
modo que eu podia ver a barra da cueca
vermelha em seu quadril. Ele cruzou as
mãos sobre o balcão de madeira.
— Me vê uma cerveja —
pediu, rude. Notando minha hesitação,
ele enfiou uma mão no bolso da calça,
tirou de lá um bolo de notas e jogou
sobre o balcão.
Estalei a língua.
— Poupe seu dinheiro, custa só
três dólares — falei, fazendo questão de
não tocar na grana.
Me virei, indo até o
refrigerador, e apanhei uma garrafa de
cerveja. Com um abridor, arranquei o
lacre de metal e a deslizei na direção de
Nick. Arranjei algo para fazer,
organizando os copos e taças nas
prateleiras sob o balcão. De soslaio,
entretanto, eu conseguia ver a feição
pensativa dele. Não pude me conter e
ficar em silêncio por muito mais tempo.
Me aproximei.
— Eu não me lembrei de você
naquela noite. Você está diferente
demais e, honestamente, por que diabos
achou que seria uma boa ideia seguir
com sua moto uma garota sozinha no
meio da noite?
Nicholas permaneceu me
encarando. Seus olhos escuros eram a
única semelhança com o irmão. Ambos
eram muito bonitos, cada um à sua
maneira. A pele de Nick era bronzeada,
queimada pelo sol de todos os lugares
quentes que ele atravessara sobre sua
moto. Hades era pálido como um
vampiro, e parecia ser mais alto
também.
— Aquilo foi estúpido. Não
quis te assustar.
— Bem, você assustou. Muito.
— Eu não iria te atacar. Te
encontrar andando pelo campus foi uma
grande coincidência. Quis apenas
conversar.
Ele baixou os olhos, fugindo do
meu escrutínio.
— Deveria ter parado, descido
da moto e me chamado. Deveria ter dito
quem era.
— Mas então vi que você
estava com ele e logo não havia mais o
que ser dito.
Nicholas não fazia rodeios. Ele
não era de falar muito, na verdade.
Mesmo tendo passado pouco tempo com
ele, eu gostava de seu jeito reservado.
Pensei que ele poderia ser o primeiro
amigo que eu teria em Carmine.
— Eu não estou com Hades.
Nick riu.
— Ainda assim, aqui está você,
trabalhando no bar dele.
— Eu sou só a garçonete. —
Revirei os olhos, cansada de explicar
sobre meu trabalho no Pandemônio para
todo mundo.
— Nunca é só isso com meu
irmão — respondeu antes de beber mais
um pouco da cerveja.
— Para onde foi depois que me
deixou no alojamento naquele dia? Você
sumiu por semanas.
— Você faz perguntas demais,
menina — disse ele, exasperado. Cruzei
os braços sobre o balcão, fitando-o
atentamente. — Eu tinha umas coisas
para resolver.
Nick me dissera que voltaria
para destruir seu irmão. Eu não sabia
como ele faria isso, mas, levando em
consideração as coisas que George
dissera, talvez aquilo envolvesse os
Daggers.
Antes que eu tomasse coragem
para perguntar sobre aquilo, Fiona
surgiu dos fundos do bar. Ela levantou
as sobrancelhas, surpresa com a
presença de Nick. Mas não ficou irada,
como pensei que ficaria. Na verdade, eu
podia jurar que vi um sorriso pairando
em seu rosto. Ela veio para detrás do
balcão também.
— Hades não está aqui — falou
ela, cautelosa. — Se estivesse,
provavelmente você já estaria morto
agora.
O semblante dele se fechou e
ele trincou o maxilar.
— Duvido muito disso.
Afinal, o que Nicholas queria
quando resolveu aparecer no
Pandemônio? Apenas provocar seu
irmão?
— Deveriam conversar e
resolver tudo de uma vez — Fiona falou.
— Está louca se acha que isso
daria certo. — Notei que ele estava
ficando bravo pela maneira como, após
beber o resto de sua cerveja, ele bateu a
garrafa contra o balcão.
— Hades ficou do seu lado,
mesmo quando você o traiu. Ele ainda
tentou te ajudar e…
Nicholas e Fiona me fitaram ao
mesmo tempo, como se finalmente
percebessem que eu não deveria estar
ouvindo aquela conversa. Abri a boca
para dizer algo, mas Nick se adiantou.
— Eu respeito sua lealdade ao
meu irmão, Fiona. — Ele se virou
novamente para a bartender. — Mas
ninguém o conhece melhor do que eu.
Pare de tentar me convencer sobre as
virtudes de Hades. Ele é igualzinho ao
nosso pai. — Nick praguejou baixinho e
se corrigiu: — Ao pai dele.
Ela não disse mais nada depois.
Nick voltou seus olhos para mim, me
olhou por alguns segundos, então se
levantou e virou. Não saiu do bar,
entretanto, mas caminhou para uma mesa
desocupada. Ficou lá por algum tempo
até que outro homem entrou no
Pandemônio e se juntou a ele. Ambos se
cumprimentaram e começaram a
conversar.
Percebi o olhar desconfiado de
Fiona para eles.
— O que houve? — perguntei.
Ela não desgrudou o olhar daqueles dois
por um bom tempo.
— Aquele cara não deveria
estar aqui — falou ela, com a voz
levemente assombrada.
— Quem ele é?
— Ninguém — ela
desconversou. — Só fique de olho
neles, o.k.?
Assenti, ainda curiosa.
Fiona e eu voltamos ao trabalho
logo em seguida. Vez ou outra, eu olhava
na direção daquela mesa, intrigada. Os
dois não ficaram muito tempo ali,
entretanto. Quinze minutos depois, foram
embora.
Às segundas o Pandemônio
fechava mais cedo e o cassino não abria,
de modo que às dez em ponto
começamos a limpar e organizar tudo.
Foi nesse momento que uma garota
entrou no bar sozinha. Ela tinha a pele
negra e vibrante e os cabelos cacheados
e azuis. Um piercing prateado reluzia em
sua sobrancelha. Seus olhos foram
diretamente para Fiona e ela sorriu.
Levantei uma sobrancelha,
olhando para a bartender do outro lado
do bar. Seu rosto estava corado e ela
sorria timidamente. Carreguei a bandeja
com copos vazios até o balcão e sorri
assim que me aproximei dela.
— Nunca pensei que veria você
envergonhada — comentei, cruzando os
braços. A morena estreitou os olhos para
mim.
— Ela é só uma conhecida. —
Deu de ombros. Virei a cabeça, vendo a
garota sentada numa mesa perto da
porta.
— Sei. — Revirei os olhos,
voltando-me em sua direção. — Pode ir
com ela, eu fecho o bar hoje.
Fiona inclinou rosto para mim
antes de estalar a língua.
— Péssima ideia.
— Ótima ideia — contrariei.
— Você trabalha demais, merece uma
folga. — Ela mordeu os lábios, parecia
estar em um dilema. — Eu não vou
explodir o Pandemônio, Fiona. Pode
confiar em mim, vai dar tudo certo.
Ela suspirou, finalmente
cedendo e eu sorri.
— Não faça nada estúpido ou
terá que se resolver com Hades depois.
— Revirei os olhos novamente. Fiona
deu a volta no balcão e seguiu na
direção da garota. As duas trocaram um
selinho antes de partirem.
Após terminar de limpar as
mesas e o balcão, apaguei as luzes do
salão, feliz por não estar acontecendo
uma das reuniões esquisitas e
criminosas da gangue de Hades naquela
noite. Chegaria mais cedo em casa e
poderia estudar um pouco antes de
dormir.
Abri a porta do vestiário, mas,
assim que me deparei com a figura alta e
tatuada sentada no banco nos fundos do
cômodo, gritei de susto. Coloquei a mão
sobre o peito, respirando ofegante.
— Maldito — praguejei em
cólera. — De onde você surgiu?
Hades levantou o rosto
despreocupadamente para mim. Ele
usava uma camisa preta, os primeiros
botões soltos, revelando a pele de seu
peito marcada por desenhos. Seus
cabelos escuros não estavam alinhados
para trás como sempre. Estavam caindo
em seu rosto, sobre seus olhos. Wrath
colocou os fios para trás e sorriu.
— Entrei pela porta dos fundos.
— Deu de ombros. — Se vai me
desenhar, amor, então deveria ao menos
fazer jus ao meu porte físico
impressionante.
Foi então que meu olhar desceu
para suas mãos e logo eu não senti mais
nada além de raiva. Aberto sobre seu
colo estava o caderno de desenhos que
eu deixara ali minutos antes. Abri a boca
para dizer algo, mas estava chocada
demais para isso, senti o sangue subir
para meu rosto.
Para meu desgosto, ele
continuou:
— Posso posar pra você, se
preferir. Me diga apenas quando e onde
e eu estarei lá. — Levantei as
sobrancelhas, incrédula. Seu sorriso
aumentou. — Pelado, é claro.
Andei até ele e arranquei o
caderno de suas mãos, vendo a página
em que eu havia desenhado seus traços.
O fechei rapidamente, apertando o
objeto fortemente em minha mão. Hades
não se abalou, apenas cruzou as mãos
sobre o colo.
— Não tem o direito de mexer
nas minhas coisas. — Cruzei os braços,
fulminando-o com meu olhar.
— Você deixou seu caderno
aqui em cima pra qualquer um ver —
justificou. — Além disso, você me
desenhou.
Revirei os olhos.
— Eu desenho um monte de
estranhos, não se sinta especial.
— Tarde demais — falou,
passando a língua sobre o lábio inferior.
— Eu sou especial, amor.
— Se isso significa que você é
um desgraçado egomaníaco, então sim,
você é.
Após isso, abri um sorriso tão
irônico quanto o dele. Girei sobre os
calcanhares e saí rapidamente,
determinada a não permitir que ele
percebesse o quanto me afetava.
Você tem o hábito de quebrar
coisas
Você tem o hábito de usar as
pessoas
Você parece no controle, mas
está perdido por dentro
Você consegue o que quer, não
importa o custo
Você joga seus jogos sem
regras e sem senso de respeito
Você engana e mente,
causando dor sem pensar ou se
arrepender
Habit - Gabrielle Shonk

Mesmo após sair do bar, minha


frustração não desapareceu. Hades tinha
uma capacidade incômoda de se infiltrar
nos meus pensamentos sem que eu
permitisse. Era como um fantasma,
despertando meu interesse e
curiosidade. E aquilo não era, nem de
longe, um bom sinal.
Segurando com força a mochila
em meu ombro, virei a esquina antes de
parar e olhar para o percurso
considerável que me aguardava até o
alojamento. O tempo não estava fresco
para uma caminhada tranquila e
agradável, porém. O clima era quente e
abafado e eu mal conseguia pensar em
andar três passos. Enfiei a mão na bolsa,
à procura do meu celular. Eu iria chamar
um táxi. Após tatear lá dentro e nos
bolsos da minha calça, entretanto,
percebi que não estava com ele. Bufei,
sem acreditar que havia perdido meu
telefone.
Sentindo-me ainda mais
estressada, me virei e fiz o caminho de
volta ao Pandemônio. Pretendia revirar
cada centímetro daquele bar em busca
do meu celular. Não que houvesse muita
coisa importante nele, mas eu não podia
comprar outro. Além disso, ele era
minha última chance de contato com
Astrid.
Entrei na rua do beco para onde
dava a porta dos fundos do bar.
Esperava que Hades não houvesse a
trancado. O beco era úmido, com
algumas grandes latas de lixo nas
laterais. Eu podia facilmente imaginar
os ratos se esgueirando nos cantos do
chão de paralelepípedos.
Coloquei a mão sobre a
maçaneta de metal enferrujado e
empurrei, respirando aliviada quando a
porta cedeu e se abriu. Entrei e a fechei
novamente atrás de mim.
Cruzei o corredor dos fundos,
passando pelas portas do porão e do
vestiário. Franzi o cenho quando percebi
que as luzes do salão estavam acesas.
Eu tinha certeza de tê-las apagado
quando saí há alguns minutos.
O que Hades ainda fazia ali?
Antes de chegar ao arco que
levava ao salão, comecei a ouvir vozes.
Abri a boca para chamar por Hades,
mas, assim que o vi parado no centro do
bar, eu parei. Meus olhos se
arregalaram.
Hades não estava sozinho.
Apesar da situação em que o encontrei,
ele parecia tranquilo. Parecia no
controle, como sempre. Calmo demais
para alguém que tinha um revólver
prateado apontado direto para sua
cabeça.
— O grande Hades Wrath vai
morrer de uma maneira muito miserável.
Deveria começar a implorar por sua
vida — falou o outro homem. Não
conseguia ver seu rosto, já que estava de
costas para mim, mas parecia muito
mais nervoso do que Hades.
O balcão estava à minha
esquerda, ocultando a visão da minha
figura, abaixada e escondida atrás de um
pilar de madeira, no qual eu me
segurava e observava tudo atentamente.
Hades sorriu como o desgraçado
provocativo que era.
Prendi a respiração, pensando
que a qualquer momento eu veria seus
miolos espalhados pelas paredes de seu
bar.
— Deveria me conhecer
melhor, Chuck — Hades respondeu, com
a voz entediada. — Eu não imploro.
Nunca.
— Morra com sua arrogância,
Wrath.
Ele destravou a arma e eu
ofeguei, nervosa. Muito mais tensa do
que Hades parecia estar. Sem pensar
muito, agachei e me esgueirei para
detrás do balcão. Coloquei minha
mochila no chão e apanhei a primeira
garrafa de vidro da prateleira,
abraçando-a antes de voltar para detrás
do pilar.
— Você não vai sair dessa.
Pode me matar se quiser, mas estará
cavando sua própria prova em seguida.
Me levantei e fitei novamente a
cena. Nesse momento, Hades me
encontrou com seu olhar e me encarou
por cima do ombro do tal Chuck. Seu
rosto se inclinou alguns milímetros e
seus olhos se estreitaram para mim.
Antes que seu oponente pudesse se virar
para checar o que Hades tanto olhava,
contudo, este voltou a encará-lo.
— Meu pessoal irá atrás de
você e, quando eles estiverem te
esfolando vivo, você vai pensar em
como nada disso valeu a pena. — Hades
prosseguiu, tentando ganhar tempo.
Engoli em seco ao andar
lentamente na direção dos dois. Eu
segurava a parte de cima da garrafa de
modo firme com uma das mãos enquanto
me movia lenta e cautelosamente sobre o
assoalho de madeira. Chuck estava
falando alguma coisa, mas eu não ouvia.
Todo meu foco era em alcançá-lo por
trás na surdina. E Hades fez um bom
trabalho desviando a atenção dele. Foi
só quando eu estava parada bem perto e
levantando a garrafa que percebi que o
impacto poderia fazê-lo disparar a arma.
Não pensei muito sobre isso,
ergui o vidro e o acertei acima da nuca
com toda a força que eu tinha. Como eu
previa, seu dedo afundou
involuntariamente no gatilho e um som
alto de disparo soou, mas Hades não
estava na mira da arma quando isso
aconteceu. A garrafa se quebrou,
espalhando vodca e milhares de
estilhaços sobre o chão.
Chuck caiu imóvel.
Dei alguns passos para trás, os
olhos arregalados sobre a figura inerte
do homem. O reconheci naquele
momento. Era o rapaz com quem Nick se
sentara quando foi ao Pandemônio mais
cedo naquela noite.
— Ele está morto? — Minha
voz soou nervosa e meus olhos
procuraram por Hades, que estava
parado me observando estático a alguns
poucos metros de distância. — Eu o
matei?
Continuei andando para trás,
até sentir o balcão do bar em minhas
costas. Me virei de lado, apoiando-me
sobre ele enquanto olhava Hades se
aproximar de Chuck, abaixando-se e
colocando dois dedos no pulso do cara
homem que estava estendido de costas
sobre o chão.
— Não, só inconsciente —
anunciou, me fazendo respirar aliviada.
Levei uma mão à cabeça, sentindo-me
zonza. — Raven, você está bem? —
Hades veio até mim. — Você está
tremendo.
Wrath apanhou minhas mãos
nas suas, virando as palmas trêmulas
para cima. Ergui meu olhar para seu
rosto e senti um arrepio me percorrer.
De repente, minha garganta ficou
terrivelmente seca.
Eu estava assustada. Não por
ter tentado defender Hades — que
provavelmente teria sido morto se eu
não interviesse —, mas porque aquilo
me lembrou demais dos meus tempos em
Dallas e de quando precisei puxar um
gatilho. Pensei que nunca mais seria
capaz de agir numa situação de perigo
novamente, que nunca teria coragem o
suficiente. Ao que parecia, porém,
estava errada.
— Você está bem? — Hades
insistiu, massageando minhas mãos com
seus dedos gelados. Seu rosto estava
próximo, os olhos escuros me
perscrutavam com preocupação. —
Apenas respire.
Obedeci, respirando fundo três
vezes até diminuir o ritmo acelerado dos
meus batimentos cardíacos e parar de
tremer. Então, puxei minhas mãos de
volta. Hades suspirou e, em seguida,
tirou algo do bolso traseiro de sua calça
e estendeu na minha direção: meu
celular.
— Você esqueceu no vestiário.
Mordi o lábio inferior, fitando
o aparelho em suas mãos por alguns
segundos antes de apanhá-lo e enfiar no
bolso.
— Quem era ele? — perguntei,
indicando o rapaz com um meneio de
cabeça.
— Mais um dentre muitas
pessoas que me desejam morto. Mas
você não tem que se preocupar com
isso.
— Não estou preocupada —
garanti, ainda perturbada pela situação.
Em seguida, sem dizer mais
nada, peguei minha bolsa no canto do
balcão e saí em disparada pela porta
dos fundos. Andei rápido pelas ruas,
como se estivesse em fuga. Mal percebi
o longo trajeto. Quando dei por mim, já
estava na porta do meu dormitório.
Eles gostam de uma
inundação
Eu gosto disso na noite
Nós somos aqueles que ficam
Depraved - Mammals

Dei uma última olhada ao redor


do quarto, checando se estava
esquecendo alguma coisa. Estava
evitando olhar no espelho desde que
cheguei do Pandemônio na noite
passada, não precisava ver meu reflexo
para saber que estava péssima. Meus
cabelos estavam presos num
emaranhado em minha nuca. Estava
usando jeans pretos e um casaco de
moletom cinza, com minha mochila no
ombro e três livros a serem devolvidos
na biblioteca em meus braços.
Libby estava terminando de se
maquiar no banheiro quando abri a porta
do dormitório e me deparei com a figura
de Hades bem na minha frente. Prendi a
respiração por um instante, me
empertigando.
Wrath tinha os cabelos escuros
perfeitamente alinhados para trás. Suas
mãos estavam nos bolsos de sua jaqueta
e em seu rosto estava o familiar sorriso
presunçoso determinado a me arruinar.
Não esperava vê-lo tão cedo. Na
verdade, tudo o que eu desejava era
evitá-lo o máximo que conseguisse.
— O que está fazendo aqui? —
indaguei, num tom cansado de
indignação.
Tudo o que eu gostaria era ficar
longe de problemas, mas mesmo assim
eu conseguia me envolver em situações
em que tinha que escolher entre quebrar
uma garrafa na cabeça de um cara ou ver
meu chefe ser assassinado com um tiro
no meio da testa.
— Bom dia para você também,
amor.
Fechei o rosto numa carranca e
segurei os livros com mais firmeza
contra o corpo. Enquanto eu pensava
numa resposta sarcástica para revidar
seu cumprimento, Libby se aproximou
da porta. Ela olhou confusa para a cena
que se desenrolava em frente aos seus
olhos, mas por fim deu um risinho
malicioso.
— A gente se vê mais tarde
então, Raven — disse ela, passando por
nós e acenando com a cabeça na direção
de Hades.
Também saí. Fechei a porta
atrás de mim e comecei a andar pelo
corredor, ignorando a figura alta e
inconveniente que me seguia de perto.
— Podemos conversar? —
perguntou Wrath, andando rápido em
meu encalço.
— Não temos nada a conversar.
Além disso, este é o dormitório
feminino, você não deveria estar aqui —
argumentei, desviando do assunto que eu
sabia que ele queria abordar.
Virei em outro corredor e segui
até as escadas que levavam ao térreo e,
consequentemente, à saída do prédio.
O desgraçado riu com
arrogância e escárnio.
— Eu sou Hades Wrath, amor,
as regras nunca se aplicam a mim.
Balancei a cabeça,
impressionada com a quantidade de
egolatria que podia caber em uma
pessoa só. Acelerei o ritmo dos meus
passos e galguei os degraus da escadaria
com rapidez, mas não importava o quão
veloz eu fosse, Hades não precisava se
esforçar muito pra me alcançar. Assim
que empurrei as portas de vidro para
fora do alojamento, ele segurou meu
braço, se colocando à minha frente.
Parei com um suspiro alto, me rendendo,
e abracei os livros em frente ao peito,
como uma barreira entre nós.
— Está tentando fugir de mim?
— Estreitou seus olhos negros com um
brilho de diversão para mim.
Forcei um sorriso
completamente falso.
— Caramba, como percebeu?
Pensei que eu estava sendo sutil. —
Hades riu alto com a minha ironia. —
Diga logo o que você quer.
Ele passou a língua sobre os
lábios antes de cruzar os braços.
Esquadrinhei seu rosto, mas logo depois
me arrependi. Era difícil permanecer
determinada em evitá-lo e odiá-lo ao
mesmo tempo em que ele tinha aquela
aparência. Hades Wrath era a porra de
uma pintura Renascentista bem em frente
aos meus olhos. Tudo nele era
inacreditável demais para que eu
pudesse ignorar.
Era difícil permanecer ali
parada, olhando para seus olhos
profundos e seu sorriso charmoso
enquanto sentia o cheiro de seu perfume
— que provavelmente custava mais do
que eu poderia ganhar numa vida inteira.
Desejei não ter parado de fugir
dele.
— Você salvou minha vida —
constatou, impressionado.
— Só porque fui obrigada a
isso — argumentei.
— É claro. — Hades sorriu
ainda mais. — Parece que estou te
devendo um favor, amor.
O olhei com um misto de
desdém e incredulidade.
— O quê?
— Você me salvou e agora
estou em dívida com você, é assim que
as coisas funcionam — explicou ele
antes de dar de ombros, como se fosse
assim muito simples.
Balancei a cabeça, incrédula.
— Não estou interessada, mas
obrigada. — Tentei passar, mas ele me
impediu se postando novamente em meu
caminho. Bufei alto, levantando um
olhar furioso para ele. — Continue na
minha frente e você vai saber como é
levar uma joelhada capaz de te deixar
estéril.
— Você é corajosa pra cacete.
— Levantei uma sobrancelha. — Não
são muitas pessoas que teriam feito o
que você fez ontem. Obrigado.
Hades falava sério, olhando em
meus olhos com uma intensidade que me
deixou sem palavras por alguns
segundos.
Pigarreei, me endireitando.
— Nesse exato momento você
está fazendo eu me arrepender de ter
impedido aquele cara de te dar um tiro.
Ele sorriu.
— Vamos, faça um pedido.
Serei seu gênio da lâmpada particular.
— Qualquer coisa? —
perguntei, estreitando os olhos. Hades
assentiu e, por um momento, me
perguntei se ele era realmente capaz de
fazer qualquer coisa que eu lhe pedisse.
— Qualquer coisa.
— Bem, sendo assim… — Me
aproximei dele, como se fosse lhe contar
um segredo. — Quero que me deixe em
paz.
Tentei passar e novamente ele
me impediu.
— Sabe que eu não desisto
fácil, não é?
O fitei diretamente.
— Eu não estou interessada em
nada vindo de você, Wrath. Eu conheço
de perto esse submundo em que você
vive e não quero me aproximar desse
império que você criou, que te faz achar
que tem poder sobre tudo e todos —
falei, expondo cada palavra com clareza
para ter certeza de que se fixariam em
sua mente. — Vá caçar em outro lugar.
Hades ficou parado naquele
exato lugar quando passei por ele,
descendo os degraus da escada em
frente ao prédio. Marchei rápido e
decididamente para o estacionamento.
Quando já estava distante o suficiente,
dei uma olhada por sobre o ombro e vi
que ele ainda estava lá, estático.

Eu não estava realmente


interessada num happy hour no
Pandemônio depois do final do
expediente, mas aceitei quando Fiona
pediu para que eu aparecesse. Apesar de
desconfiar de seus amigos, gostava dela.
Na verdade, ela não se encaixava nem
um pouco no conceito que eu havia
construído a respeito de mafiosos e
membros de gangues.
Naquele momento, eu estava
sentada no bar, bebendo uma cerveja
enquanto conversava com Fiona e
Jordan, quando Khalil, Selina e o outro
rapaz que eu não conhecia entraram.
Olhei por sobre o ombro, fitando
descaradamente o trio da gangue de
Hades.
Selina me surpreendeu
novamente com sua beleza. Os cabelos
vermelho-vivo estavam presos num
longo rabo de cavalo. Ela usava um
cropped preto de renda e calças de
couro que deixavam suas pernas ainda
mais longas. A garota olhou pra mim por
um pequeno instante antes de sentar
numa das mesas.
Khalil foi o único que veio até
o bar, dando a volta e pegando uma
cerveja atrás do balcão. Sentou-se ao
meu lado depois disso.
— Bebendo sozinha? —
perguntou, abrindo sua garrafa e dando
um gole. Virei o rosto para olhá-lo. Seus
olhos dourados me olhavam intrigados.
Khalil era bem bonito. Ele tinha
a pele marrom, num tom único de
terracota, e tatuagens em seu pescoço,
subindo até a nuca. Usava a jaqueta com
a insígnia do Pandemônio, deixando
claro a todos que fazia parte da gangue
de Hades Wrath.
— Eu estava, até você me
atrapalhar — respondi, voltando meus
olhos para a garrafa de cerveja antes de
beber o resto do líquido.
— Você vai superar — falou,
sorrindo. — O que está achando de
trabalhar aqui?
Dei de ombros.
— Considerando o que tenho
que aguentar, deveria ganhar o triplo do
que ganho agora.
Khalil deu uma risada nasalada.
— Acho que está se referindo
ao episódio com Chuck na noite
passada. — Me virei para ele, franzindo
o cenho. — Hades me contou.
— O que vocês fizeram com
ele? — perguntei, um pouco apreensiva
com as possibilidades de respostas.
Uma parte de mim queria contar
ao Hades que poderia ser seu irmão
tramando contra ele. Afinal, Nick jurou
destruí-lo e, pouco antes de eu quebrar
uma garrafa na cabeça de Chuck, eles
estavam conversando juntos bem aqui no
Pandemônio.
A outra parte queria acreditar
que Nick era inocente e que isso não
passava de uma coincidência. Eu não
sabia, entretanto, se havia tal coisa
como coincidência ali naquela cidade.
Mas, além disso, por que ele faria algo
tão estúpido como planejar a morte de
Hades no próprio bar dele?
Mordi o interior da bochecha,
esperando pela resposta.
— Wade deu uma lição nele —
Khalil falou, simplesmente.
Diante da minha feição confusa
ele indicou com a cabeça o homem que
havia acabado de entrar no Pandemônio.
Ele era enorme. Tinha a pele negra, num
tom profundo de ébano. Era tão bonito
quanto os outros, tinha a mesma aura
misteriosa e, de certa maneira,
fascinante.
Seus cabelos eram raspados,
bem mais curtos que o de Khalil. Ele
inspecionou o bar inteiro, cumprimentou
Khalil com meneio de cabeça, e foi até a
mesa de Selina, sentando-se junto aos
outros.
— Ele está morto? —
sussurrei, apesar de me encontrar num
happy hour com criminosos e que aquele
tipo de assunto deveria ser mais do que
comum para eles.
Os lábios de Khalil se
repuxaram num sorriso de canto.
— Não, Raven, ele não está
morto — disse, como se fosse óbvio. —
Só está proibido de pisar em Carmine
novamente.
— E por que ele obedeceria?
— Estreitei meus olhos para ele.
— Porque ainda lhe resta um
pouco de sanidade.
— Pensei que vocês queriam
ser temidos — observei, num tom meio
zombeteiro.
— Nós somos. Não precisamos
deixar uma trilha de corpos para isso.
A simples menção dessa ideia
parecia deixar Khalil enojado. Franzi o
cenho.
Então, me lembrei de como
George falou sobre o Pandemônio.
Quase como se estivesse do lado deles.
— Ouvi histórias sobre sua
gangue — comentei, desviando o olhar
para a cerveja me minhas mãos.
— O que ouviu?
— Que vocês controlam as
coisas por aqui, que praticamente
mandam nos criminosos de Carmine.
Khalil riu.
— Essa é uma maneira de ver
as coisas, definitivamente. O
Pandemônio é a ordem no caos.
Acredite, Raven, não importa o quão
ruim as coisas pareçam agora, nada se
compara a como eram antes.
— Por causa dos Daggers?
— Você fez mesmo sua lição de
casa — Khalil sorriu, divertido. — É,
por causa deles.
— Aposto que nem todos nessa
cidade acham que vocês são heróis.
— E eu aposto que você é uma
delas — rebateu, sagaz. Não pude evitar
sorrir.
— Touché.
Talvez, de fato, houvessem
monstros em Carmine muito piores que o
Pandemônio. E os Daggers pareciam ser
um deles. Mesmo sem saber muito sobre
as coisas que eles faziam, fora o
suficiente para me assustar.
Minha atenção desviou
daqueles pensamentos quando meu
celular vibrou em meu bolso. Era uma
mensagem de Alina me convidando para
o que parecia ser uma típica festa que
rolava em Carmine, perto da saída da
cidade, num lugar chamado "Círculo".
Mordi o lábio inferior, ponderando.
Entre ir até lá e continuar no
Pandemônio cercada pelos estranhos
amigos de Hades, eu preferia ir. Arrastei
para trás o banco no qual estava sentada
e me levantei.
— Já vou indo — anunciei,
fazendo Fiona, Khalil e Jordan se
virarem para mim.
— Quer carona? Está indo para
os dormitórios?
— Na verdade, estou indo até a
saída da cidade. — Dei de ombros.
— Para o Círculo? — Levantei
uma sobrancelha. — Nós iríamos pra lá
no final da noite mesmo, podemos te
levar. Não é, pessoal? — Khalil
levantou a voz, atraindo a atenção dos
seus amigos, que rapidamente olharam
para nós.
Comecei a temer sobre o que
era o Círculo, afinal.
— Está atrás de adrenalina,
pequena Raven? — Selina provocou
enquanto terminava de tragar o seu
cigarro.
O garoto mais jovem sentado
ao lado dela se levantou. Seu cabelo era
escuro e espetado. Dentre todos, aquele
era o que tinha o ar mais jovial e
descontraído. Também era o que menos
parecia se encaixar numa gangue.
Parecia um típico atleta de fraternidade,
menos pela jaqueta. Foi inevitável
simpatizar com ele e sua postura leve.
— Eu com certeza estou —
disse ele, sorrindo. — A propósito, sou
Alec.
Ele tinha ascendência leste-
asiática. Seus olhos eram estreitos e
angulados e a pele tinha um tom dourado
de oliva.
— Raven — me apresentei. —
Então, o que é esse Círculo?
— Você vai ver — Alec falou.
Ele indicou com um gesto de cabeça
para que eu o seguisse até a porta. —
Vamos lá.
Você não faz ideia de que é
minha obsessão?
Quantos segredos você
consegue guardar?
Eu meio que esperava que
você ficasse
Querida, nós dois sabemos
Que as noites foram feitas
principalmente
Para dizer coisas que não se
pode dizer no dia seguinte
Do I Wanna Know? - Arctic
Monkeys

Estacionado em frente ao bar


estava uma impressionante caminhonete
4x4 azul. Wade assumiu a direção com
Khalil no carona. Alec, Fiona e eu
subimos na carroceria. Selina, sobre
uma enorme moto preta, liderava o
caminho pelas ruas de Carmine. Embora
o carro não estivesse em alta
velocidade, eu ainda me segurava. Alec,
estava agachado, se equilibrando com
destreza, enquanto Fiona checava
algumas das malas esportivas
depositadas ali.
Franzi o cenho.
— O que tem aí? — perguntei,
cutucando uma das malas com a ponta
do meu coturno. Fiona levantou a cabeça
para me olhar e deu um risinho irônico.
— Quer mesmo que eu
responda?
Praguejei mentalmente ao ouvir
aquilo.
Eu não precisava que ela
dissesse com todas as palavras para
entender do que aquilo se tratava. Eram
drogas.
Mordi o interior da bochecha.
Eu não estava realmente surpresa com
aquilo, mas estar tão perto de novo
daquele mundo fez meus ossos
estremecerem. Tracei uma ponte entre
Hades e Joel. Tirando o fato de os Wrath
serem podres de ricos, não havia muita
diferença entre meu padrasto e o garoto
tatuado para quem eu trabalhava. Ambos
eram criminosos que acreditavam poder
submeter todos ao seu crivo. E eu
ironicamente achava que podia ganhar
de um o dinheiro necessário para me
livrar de outro.
O que isso fazia de mim? Com
certeza alguém não muito melhor que
eles.
— Vão vender tudo isso no
Círculo hoje? — questionei, incapaz de
deixar aquele assunto morrer.
— Não — Alec se apressou em
negar. — Não somos nós que vendemos.
Não diretamente.
Concluí que aquilo significava
que haviam traficantes trabalhando para
o Pandemônio e que a gangue apenas
fornecia o produto, organizava tudo e
ficava com a maior parte do lucro. Era
assim em Dallas também.
Os traficantes que trabalhavam
para Joel e Connor estavam por toda
parte naquela casa. Eles eram os piores.
— Sei o que está pensando —
Fiona falou, após perceber o olhar em
meu rosto.
— Duvido muito — rebati.
— Essas pessoas conseguiriam
drogas de qualquer jeito, pelo menos o
Pandemônio regula o tipo que será
vendido, a quantidade máxima que cada
um pode comprar e a qualidade do que
consomem.
— Hades queria que eu ficasse
longe dos negócios dele e me ativesse
ao trabalho como garçonete. Não acho
que ele vai gostar de saber que vocês
estão conversando comigo sobre os
negócios da gangue.
Alec riu alto.
— Acho que essa regra virou
cinzas quando você acabou com o
desgraçado do Chuck Halston.
Fiz uma careta ao lembrar
daquilo.
— Você não aprova o que
fazemos — declarou Fiona, séria. — Se
fosse por causa de um senso moralista
comum, já teria ido embora,
principalmente depois do que aconteceu
com Chuck. Mas você continua aqui.
— Preciso do dinheiro —
argumentei.
— Acredito nisso, mas nem
mesmo o dinheiro teria feito você ficar
se estivesse assustada. Você odeia esse
mundo, mas não o teme.
— Onde quer chegar?
— Eu acho que você conhece
de perto tudo isso, Raven. Acho que já
foi como nós.
— Está errada — falei,
rispidamente. Aquilo não pareceu abalar
a convicção de Fiona, porém.
— Talvez.
O resto do trajeto foi feito em
silêncio. Eu soube imediatamente que
era o Círculo quando adentramos na
estrada de terra que levava a um posto
de gasolina onde jovens bebiam e
fumavam sentados no meio fio. Ao lado
havia um grande estacionamento, caixas
de som emitiam uma música estridente.
Ao redor delas, muitas pessoas
dançavam de forma livre ao som das
batidas. Do outro lado da estrada havia
um trailer solitário, de aparência gasta e
enferrujada.
A paisagem árida, típica do
Arizona, cercava o lugar. Havia algumas
árvores secas, de galhos retorcidos, e
arbustos esbranquiçados, queimados
pelo Sol. Os descampados desérticos se
estendiam até onde os olhos podiam ver.
Ao fundo, montanhas vermelhas
despontavam no horizonte.
Assim que a caminhonete parou
no estacionamento, ao lado de outros
carros, Fiona saltou de cima com
destreza. Então, tirou um maço de
cigarro do bolso e caminhou em direção
à loja de conveniência enquanto acendia
um cigarro. Respirei fundo, estava
prestes a me levantar e tentar imitá-la
quando os rapazes deram a volta e
abriram a caçamba. Khalil estendeu a
mão para mim e não recusei sua ajuda
para descer do carro.
Assim que me postei sobre o
chão, observei ele, Wade e Alec tirarem
as malas do carro, abrindo-as e
distribuindo seu conteúdo entre si.
Estavam separando e organizando.
Alec foi até a loja de
conveniência e eu o segui, intrigada.
Não entrei, entretanto, apenas observei
enquanto ele entregava parte dos pacotes
ao vendedor atrás do balcão. Suspirei
alto antes de andar para longe, cruzando
o estacionamento. Olhei ao redor,
procurando Libby e Alina. Não as
encontrei. Em vez disso, minha atenção
se prendeu na figura que saía do trailer e
se sentava nos degraus em frente à porta.
Um cão grande o seguiu para fora e
deitou ao seu lado.
Coloquei as mãos no bolso do
meu casaco e andei até lá. O rottweiler
levantou a cabeça ao notar minha
aproximação. Nick, que bebia uma
garrafa de cerveja, só notou minha
presença quando seu cachorro latiu,
desconfiado.
— Dodger! — Nick chamou
sua atenção antes de virar o rosto e se
deparar comigo. Ele levantou uma
sobrancelha antes de se endireitar. —
Raven? O que está fazendo aqui?
— Pra falar a verdade, não sei
— respondi, indo até o espaço vazio ao
seu lado e me sentando.
Ao sentir o ar quente da noite
me envolver, afastei os cabelos para
trás, com calor. Dobrei os joelhos,
colocando meus braços sobre eles.
— Quer beber alguma coisa?
— perguntou ele, aparentemente sem
saber muito o que dizer. Neguei com um
gesto de cabeça e olhei em seu rosto.
— Hades quase levou um tiro
ontem — falei, incapaz de não tocar
naquele assunto com ele. Eu precisava
saber. Nick deu de ombros e desviou o
olhar para o outro lado, levando a
garrafa aos lábios como se não desse a
mínima para aquela informação. —
Aquele cara com quem você estava
ontem, Chuck, tentou matá-lo. O
Pandemônio o expulsou da cidade.
Levou alguns segundos até que
Nick dissesse alguma coisa. Ele não
voltou a olhar para mim, contudo.
— Acha que estou envolvido
nisso? — perguntou, com certa
decepção em sua voz. — Acredite,
menina, quando eu quiser matar meu
irmão, farei isso com minhas próprias
mãos.
— Então por que ele quis matar
Hades?
Aquele nome tinha um gosto
agridoce em minha língua. Eu sentia um
misto de sensações ao pronunciá-lo.
Sentia principalmente o perigo à
espreita, se aproximando e me
observando. Como se estivesse cada vez
mais próxima do submundo que ele
representava.
— Nós éramos amigos, quando
ele trabalhava para o Pandemônio,
fazendo o trabalho sujo do meu irmão.
Depois que eu entrei para a gangue
rival, Chuck caiu fora e quis se juntar a
mim. Hades não aceitou. Acabou com o
cara. Tirou toda a grana dele. Acho que
é no mínimo compreensível o que Chuck
tentou fazer, não acha?
Engoli em seco. Toda história
tinha dois lados, no fim das contas.
— Se Chuck matasse Hades,
não haveria justiça para nenhum dos
lados.
— Às vezes vingança é justiça,
mesmo em sua forma mais crua e brutal.
Algumas vezes isso é tudo o que nos
resta. — Nick finalmente se virou para
mim. Eu via uma sombra em seus olhos,
igual à que via em Hades. Não era
apenas uma característica que
comprovava seu laço sanguíneo, era
algo mais. Os irmãos Wrath possuíam
olhos atormentados. — Você acredita em
mim?
Ponderei por alguns instantes.
Eu não o conhecia, não o suficiente para
saber quando ele estava mentindo.
Ainda assim, sentia uma enorme
necessidade de confiar em sua palavra.
Uma vez eu confiara minha vida e meu
futuro a Nicholas Wrath e ele havia
cuidado para que eu tivesse ambos.
Mas eu também ouvira histórias
terríveis sobre ele e os Daggers, e ainda
desconhecia a extensão das coisas que
fizera enquanto esteve lá.
— Talvez Chuck tivesse
motivos pessoais para matar Hades, mas
por que diabos você foi encontrá-lo
justo no Pandemônio?
— Eu não sabia dos planos
dele. Quis apenas conversar com um
velho amigo. Ao menos no bar do
Pandemônio eu sabia que não seria
morto.
Franzi o cenho.
— Como assim?
— Se os Daggers me pegarem
num dos bares que são do domínio
deles, vão me matar por eu ter
desertado. Eles não aceitam que saiam
da gangue. Ou você morre como um
Dagger ou é morto por um.
— Pensei que eles tivessem
perdido todo o poder e desaparecido de
Carmine.
— Eu também, mas Chuck disse
o contrário. Eles estão voltando e ainda
mais sanguinários.
Não entendia por que Nick
estava me contando aquilo, sabendo que
eu trabalhava para seu maior rival. Mas,
considerando o que ele disse, entre os
Daggers e o Pandemônio, talvez a
gangue de seu irmão fosse o menor de
seus problemas.
— Acha que Hades não te
mataria?
— Ele não teria coragem.
— Mas você teria para matá-
lo?
— Eu espero que sim.
Fiquei em silêncio por um
instante, impactada pela determinação
em suas palavras. Matar alguém nunca
era algo fácil, principalmente, porque
Nick falava de seu próprio irmão. Se
fizesse isto, seria corrompido para
sempre. Não haveria penitência alguma
que diminuiria as consequências de sua
decisão.
Eu esperava profundamente
que, assim como Hades, ele não tivesse
coragem de executar aquele plano.
— O que aconteceu entre vocês
dois, afinal? — Ele respirou fundo.
Após ficar alguns minutos em silêncio,
como se tivesse se perdido nos próprios
pensamentos, pensei que ele não
responderia. — Nick?
Ele deu um sorriso cansado
antes de olhar pra mim novamente.
— Fazia muito tempo que
alguém não me chamava assim.
Senti a tristeza em sua voz e em
seus olhos. Nick parecia uma alma
destruída e perdida, semelhante a mim.
Ambos não tínhamos uma família que
nos amasse e protegesse. Ambos
estávamos terrivelmente solitários.
— Em um certo momento eu
comecei a desafiar meu irmão — Nick
começou a responder à minha pergunta.
— Não tinha um motivo pessoal para
isso, mas eu havia acabado de descobrir
que a razão pela qual Frederik nos
tratava diferente era porque eu não era
realmente seu filho. Por isso, ele dava o
mundo a Hades e a mim sobrava apenas
as migalhas. — Engoli em seco e
desviei o olhar para minhas mãos. —
Eu estava revoltado com a situação e
logo as pequenas provocações ganharam
maior proporção. Não concordava com
a maneira como Hades conduzia as
coisas, como ele criou um império com
o Pandemônio. E eu cometi erros,
Raven.
— Se envolveu com os Daggers
apenas para provocar Hades?
— Não apenas isso. Eu queria
destruir o Pandemônio e os Daggers
eram os únicos capazes disso. Mas são
pessoas ruins demais, até mesmo para
mim. Esses caras são a maior encrenca
que você pode encontrar por aqui,
destroem tudo o que encontram. São o
tipo mais sujo de criminosos e, acredite
quando eu digo, não me orgulho do que
fiz.
Sem perceber, eu havia me
encolhido para longe de Nick. Mas ele
logo notou minha postura rígida e meu
corpo arrepiado.
— Não precisa ter medo de
mim, menina, eu não sou mais um deles.
Nunca concordei com as coisas que eles
faziam, eu só achava que era o caminho
mais rápido para destruir Hades.
— Mas você ainda quer isso —
contrapus.
— É, eu quero.
Fiquei em silêncio. Eu não
sabia realmente o que dizer diante do
que Nicholas me contara. Não sabia nem
se havia algo que devesse ser dito
naquele momento.
— Por que você nunca diz nada
sobre si mesma? O que houve com
você?
Dei um suspiro cansado antes
de voltar a encará-lo nos olhos.
— Não há nada que mereça ser
dito sobre mim.
— Eu duvido muito.
Comprimi os lábios numa linha
fina.
— Eu sei como é esse mundo.
Fui criada por criminosos. Dividia a
casa com traficantes — contei, sem
conseguir impedir aquelas memórias de
virem à tona em minha mente novamente.
— Quando eu fugi de lá, pensei que
nunca mais teria que encarar nada disso.
— Você não precisa. Pode dar
o fora do Pandemônio. Deve dar o fora
de lá.
Antes que eu pudesse
responder, sons altos de motor tomaram
conta do Círculo. Ergui a cabeça e olhei
ao redor, procurando a origem do
barulho. Logo um bando de motocicletas
grandes e escuras invadiram meu campo
de visão. Nick se levantou e eu o imitei.
Estreitei meus olhos para os homens
sobre as máquinas. Alguns eram bem
mais velhos. Usavam botas e coletes de
couro. A música parou e todos se
viraram para observá-los também.
— O que está acontecendo? —
perguntei, confusa. O pomo de Adão de
Nick desceu e subiu quando ele engoliu
em seco, nervoso.
— São eles — respondeu, com
a voz temerosa. — Os Daggers.
Eu não sou anjo
Não tenho nenhuma aura
Eu sou seu sonho mais obscuro
Eles me chamam de diabo
Vou roubar sua alma
Não há outra maneira
Eles me chamam de diabo
E você deveria ter medo
Call Me Devil - Friends in
Tokyo
Wade, ao meu lado, tinha os
punhos fechados e o maxilar travado,
sinais de que estava à beira do
descontrole — o que não era do seu
feitio.
— Vou matá-lo com minhas
próprias mãos — ele bradou, com a voz
rouca distorcida pela raiva. Ele olhava,
assim como eu, para o trailer e fez
menção de ir até lá. Eu sabia que teria
realmente ido e executado seu plano se
eu não tivesse me postado à sua frente.
— Eu também não gosto disso,
mas não tomaremos decisões
precipitadas — falei, fitando-o
fixamente. Suas narinas estavam
dilatadas e sua respiração, pesada.
— Vai deixar o desgraçado
acabar conosco? — rebateu ele, furioso.
— Não, não vou — garanti.
Coloquei uma mão em seu ombro. —
Sei que odeia Nick pelo o que ele fez
com Selina e, acredite, eu também
odeio.
— Você será fraco se tratá-lo
diferente de como tratamos nossos
inimigos.
— Nick pagará pelo o que fez
— prometi, sério. — No momento certo.
— Espero mesmo que sim —
retrucou antes de se distanciar, indo na
direção oposta.
Suspirei, acendendo um cigarro
enquanto encarava o casal do outro lado
da rua.
— O que você vai fazer com
ele? — Alec perguntou, depois de um
tempo.
Eu não sabia que Hive estava
morando na porra de um trailer bem no
meio do Círculo. Ele sabia que aquela
era a área do Pandemônio. Eram as
nossas festas, as nossas corridas. Sem
dúvidas, ele só resolvera se estabelecer
ali para me desafiar e isso só me fazia
odiá-lo mais.
A noite correra como o
esperado até aquele momento. Passamos
os pacotes para os traficantes da área
que trabalhavam para nós, eles nos
pagaram e estava tudo certo. Eu estava
me preparando para organizar a corrida
daquela noite.
A estrada de terra do Círculo
não era muito longa, mas era perigosa.
Muitas curvas estreitas e fechadas que
me deixavam entorpecido, com a
adrenalina correndo em minhas veias.
Aquele lugar existia há anos. Era a
maneira dos jovens de Carmine
esquecerem de suas vidas miseráveis.
Eles iam até ali e entravam em jogos que
sabiam que não poderiam ganhar.
Gostavam de perder o controle daquela
maneira.
Estava sendo uma noite boa
para os negócios, até eu descobrir que
meu irmão morava bem ali. Não apenas
isso, mas que ele estava tendo uma longa
e amigável conversa com Raven Clarke.
Quando ele fez sua aparição com a moto
naquela noite, pensei que havia a
deixado assustada. Raven sempre fez
questão de deixar evidente seu desprezo
por mim, mas se aproximou logo de
Nicholas, o desgraçado mais instável e
destrutivo que eu já conhecera?
Eu me perguntava o que ele
estava tramando. Com certeza não
estava aqui para semear a paz e
restabelecer os laços que ele mesmo fez
questão de explodir três anos atrás. Hive
estava planejando algo e eu temia que
envolvesse Raven na vingança que tanto
buscava.
Ele sabia quem ela era, afinal?
Talvez houvesse uma maneira
boa de fazer o que Frederik ordenara, no
fim das contas. Afinal, quanto mais
próxima Raven estivesse do
Pandemônio, mais segura estaria dos
nossos inimigos.
— Não sei — admiti,
expirando a fumaça. Desviei o olhar pro
céu absolutamente escuro. Nem as
estrelas brilhavam naquela cidade. —
Fiquem de olho nele, quero saber cada
mínimo movimento que ele fizer.
— Certo, capitão — disse
Alec, antes de rir. Levantei uma
sobrancelha, notando como seus olhos
estavam vermelhos e injetados e como
sua voz parecia embolada.
— Você já está chapado?
— Quando eu não estou? —
Alec riu ainda mais e eu revirei os
olhos.
Alec podia me tirar do sério
algumas vezes, mas ele era leal. Todos
eles eram. Antes de nossa mãe morrer,
não havia alguém em quem eu confiasse
mais do que Nick. Pensar nisso me
deixava ainda mais irado. Sua traição
acabou comigo.
Tensionei o maxilar, decidindo
se fazia uma cena expulsando-o do meu
território. Não pude pensar por muito
tempo, pois uma dezena de motocicletas
invadiram meu campo de visão,
desviando completamente o meu foco.
Dei passos lentos e cautelosos
em direção à estrada, meu rosto se
fechando. Meu olhar foi, instintivamente,
para Wade, que estava por perto. Ele
entendeu meu olhar e tirou da cintura sua
arma, se preparando para um possível
confronto.
Eu não gostava de andar
armado, ou de armas, em geral. Algumas
vezes, porém, elas eram necessárias.
Voltei meu olhar para as
grandes motocicletas vintage que faziam
seu showzinho, percorrendo a estrada
em alta velocidade.
— Mas que porra… — Khalil
surgiu do meu lado direito.
Desde que eu acabei com eles,
os Daggers remanescentes sumiram. Não
sabia para onde tinham ido, ou se
realmente partiram em algum momento.
Mas, depois que desapareceram,
Carmine voltou aos eixos. Depois do
caos vem a ordem. E o Pandemônio era
a ordem por ali.
Assisti com cólera até que a
frota finalmente parou, estacionando em
fileira. Joguei a guimba do cigarro no
chão e pisei sobre ela antes de me
aproximar daquele que estava na frente.
Garrett Voich, o filho da puta
que liderava a gangue. Ele estava ainda
montado em sua motocicleta. Seus
cabelos castanhos eram da altura dos
ombros. O bastardo era grande, mas isso
o tornava lento e desajeitado. Eu
pensava em como poderia derrubá-lo se
a situação chegasse à um embate físico,
mas sabia que ele não lutava limpo.
Provavelmente, havia um revólver em
sua cintura, ou ao menos um canivete
escondido em algum lugar de sua roupa.
Eles eram muitos, pelo menos uns
quinze. Não havia como acabarmos com
eles naquele instante, não sem sairmos
destruídos também.
— Hades Wrath — assobiou
Garrett, estreitando seus olhos para
mim. Inclinei a cabeça, parando sem
chegar muito perto. Eu podia ver de
soslaio que Khalil e Alec também se
aproximaram. — Bom revê-lo, amigo.
— Que porra você está fazendo
aqui?
Não havia como eu ser sequer
civilizado perto deles. O que eu queria
realmente era estourar sua cara. A culpa
de Nicholas ter fodido a própria vida
era, pelo menos em grande parte, de
Garrett e sua gangue.
Garrett riu sob sua barba
grossa. Ele era poucos anos mais velho
que eu, mas parecia muito mais. Rugas
enfeitavam sua testa e seus olhos azuis e
redondos. Sua pele branca estava
levemente bronzeada, com manchas
vermelhas sobre o nariz e as bochechas.
— Aquele garoto, Chuck
Halston, você por acaso sabe onde ele
está?
Cruzei os braços sobre o peito.
— Não faço ideia, e você?
Aquilo era exatamente o que eu
desconfiava. Chuck, assim como meu
irmão, era burro o bastante para ser
manipulado pelos Daggers. Mas, ao
contrário de Nick, Chuck nunca largou o
motoclub.
— Você é um cretino cínico e
arrogante, não é? — Seu sorriso
aumentou. — Sabe que agora haverá
retaliação, certo?
— Eu não me preocupo com
ameaças vazias de pessoas
insignificantes como você, Garrett
Voich. — Sorri. — Você é um inseto.
Sabe o que eu faço com insetos? Eu os
esmago, Garrett. E você sabe disso,
porque eu já te esmaguei uma vez. — O
homem continuou me encarando,
analisando cada movimento que eu fazia.
— Mas admiro sua coragem em tentar
voltar. Quero você e seus cães fora do
meu Círculo agora.
Girei sobre os calcanhares e
dei alguns passos de volta para o
estacionamento. Eu esperava que ele
finalmente caísse em si e percebesse a
estupidez que estava cometendo ao me
desafiar de novo. Foi então que um som
de tiro cortou o ar. Fechei os olhos e
praguejei.
Ele realmente havia perdido a
sanidade.
Balancei a cabeça e voltei a me
virar. Garrett tinha um braço estendido
ao céu e um revólver no topo. Ele
acreditava mesmo que podia me
assustar. Inclinei a cabeça em sua
direção.
— Não dê as costas para mim,
Wrath.
— Ou o quê? Me diz, Garrett, o
que você acha que pode fazer contra
mim? Você não se conformou em ter
perdido e voltou para ser derrotado
mais uma vez?
Garrett gargalhou. Logo em
seguida, como se tudo estivesse
combinado entre seus homens, os
Daggers aceleraram suas motos e
começaram a correr com elas ao redor
do Círculo.
Um deles acendeu um coquetel
molotov e tentou acertar na loja de
conveniências do posto de combustível,
mas sua mira era patética e não
conseguiu fazer a garrafa atravessar o
vidro da janela. Ainda assim, caiu
perigosamente perto de uma das bombas
de abastecimento. Outro descarregou sua
arma na caminhonete de Wade. E em um
par de segundos, o caos se instaurou. As
pessoas corriam de um lado para o
outro, gritando desesperadas.
— Tirem todos daqui — pedi
para Khalil e Alec, que rapidamente
começaram a se mover.
Selina também apanhou uma
arma e, assim como Wade, começou a
trocar tiros com os Daggers. Corri na
direção do meu carro, olhando ao redor
à procura de Fiona. No mesmo instante,
vi ela entrando num Ford junto a outras
pessoas. Todos corriam em direção aos
seus carros, Alec e Khalil os guiavam
com segurança. Um vulto borrado de
uma moto passou ao meu lado, indo para
o lado oposto da estrada, o que levava
pra fora da cidade. Ao checar o trailer
de Nick, vi que ele não estava mais lá,
tampouco sua moto.
Quando me virei, pronto para ir
até o Camaro pegar a arma no porta-
luvas e descarregá-la nos Daggers, me
deparei com a figura ofegante de Raven
parada no meio da rua.
Seus cabelos negros estavam
desgrenhados e ela me fitou com
enormes e arregalados olhos
acinzentados.
— O que faz aqui parada? —
perguntei, mas ela apenas me encarou
confusa.
Não esperei nem mais um
segundo por sua resposta, apanhei sua
mão e a puxei na direção do meu carro.
Ela não resistiu, me acompanhando
enquanto corríamos.
Se os Daggers a encontrassem
sozinha por ali, seria apenas questão de
tempo até eles descobrirem quem ela
era, e então tudo estaria ainda mais
fodido.
Abri a porta do Camaro para
Raven, que não titubeou antes de entrar.
Bati a porta com força e olhei ao redor
antes de dar a volta no carro e me sentar
sobre o assento do motorista. Engatei a
marcha ré e saí de lá cantando pneu.
— Você viu Libby e Alina por
lá? — Raven perguntou aflita, se
inclinando sobre o painel, procurando
com os olhos algo no meio do mar de
confusão. Continuei prestando atenção
na rua, enquanto manobrava
perigosamente e em alta velocidade em
direção à cidade.
— Quem?
A garota bufou alto e não me
respondeu. Vi de soslaio ela tentando
usar o celular para fazer uma ligação,
provavelmente para aquelas garotas que
mencionara. Quando levei meus olhos
ao retrovisor, soltei um palavrão ao
perceber a moto de Garrett me seguindo.
Bati no volante, com raiva.
O que diabos ele pretendia?
Parte de mim queria parar o
carro e lhe dar a briga que ele fora
buscar, mas não podia arriscar Raven. A
morena abaixou o celular e olhou para
trás diante da minha inquietação. Ela
soltou um grunhido.
— O que vamos fazer? —
perguntou ela, preocupada. Apertei o
volante com mais força sob minhas
mãos.
— É melhor colocar o cinto de
segurança, amor.
Em seguida, meu pé afundou no
acelerador, fazendo o carro guinar.
Peguei o acesso de volta a Carmine.
Não havia muitos carros na estrada, o
que facilitava o trabalho ao dirigir meu
carro, que atingia altas velocidades em
poucos segundos.
Chequei Raven de soslaio
algumas vezes. Ela parecia com medo,
mas estava bem. Na verdade, a garota
parecia mais preocupada com estarmos
sendo seguidos do que com o fato de que
eu praticamente voava sobre a pista.
Fiz uma curva fechada à
esquerda ao perceber que Garrett
continuava em meu encalço. O
desgraçado realmente não estava
disposto a desistir. Ele também tinha
bom controle sobre sua moto que, apesar
de não ser tão rápida, não derrapava nas
curvas. Tracei uma rota em minha
cabeça e a segui como a um GPS.
Precisava usar a velocidade a meu
favor. Acelerei ainda mais quando
chegamos no centro da cidade, que
definitivamente estava mais tumultuado.
Na grande avenida principal as
luzes do semáforo já indicavam o sinal
amarelo alguns metros à frente. Desviei
dos carros, contornando-os enquanto
acelerava o suficiente para passar antes
de mudar para o vermelho. Garrett teve
vantagem naquele momento, visto que
podia se esgueirar entre os carros. Para
a minha sorte, assim que atravessei o
outro lado da avenida, pude ver pelo
retrovisor um caminhão passar pelo
cruzamento vindo na horizontal, criando
uma barreira e deixando Garrett e sua
moto para trás.
Virei à direita rapidamente,
sem conseguir evitar o sorriso vitorioso
que brotou em meus lábios.
Diminuí gradativamente a
velocidade quando avistei meu prédio,
que era completamente preto, exceto por
algumas partes de vidro. Ele se
camuflaria na noite se não fosse por sua
fachada iluminada. Entrei com o carro
no estacionamento do subsolo.
Quando estacionei o carro em
minha vaga, olhei para a garota ao meu
lado. Raven tinha o corpo ereto, olhando
para a frente. Suas sobrancelhas estavam
levantadas enquanto ela parecia estar
maquinando algo a dizer.
— Isso foi uma aventura, huh?
— Sorri, tentando provocá-la a dizer
alguma coisa. Ela virou seu rosto para
mim, mas permaneceu em silêncio. Sua
testa estava franzida. — Vem, vamos
subir.
Raven hesitou por alguns
segundos, mas logo me seguiu para o
elevador privativo em direção à minha
cobertura.
Se eu bem conhecia os
Daggers, eles iriam vasculhar cada
canto da cidade à nossa procura. Eu não
duvidava que a gangue realmente
pudesse instaurar outra guerra em
Carmine se quisesse. Mesmo sem a
ajuda de Nick — considerando que ele
não voltara a ser um deles —, os
Daggers eram fortes e impulsivos.
Apesar de serem cães
selvagens e inescrupulosos, poderiam
tentar recuperar o reinado que tomei
deles. Mas não conseguiriam isso
sozinhos. Embora fossem numerosos, os
deixei sem dinheiro e sem reputação há
três anos. E eles nunca conseguiriam
reverter essa situação em Carmine. A
cidade era leal a mim. Além disso, eu
conhecia Garrett. Mesmo impulsivo, ele
não era tolo. Não teria me desafiado
publicamente se não tivesse cacife para
impor seu retorno. E isso significava
que ele conseguira apoio de alguém de
fora.
Mas por que alguém financiaria
um motoclub falido?
Assim que entramos no meu
apartamento, Raven olhou ao redor
impressionada. Seus olhos claros, quase
transparentes, captavam tudo ao redor
com um brilho de curiosidade. Os
cabelos extremamente pretos, quase
azulados, estavam uma bagunça ao redor
de seus ombros, mas ela permanecia
bonita. Ela provavelmente permaneceria
bonita de qualquer maneira, em qualquer
circunstância.
Observei-a ir até as enormes
janelas da sala de estar. Aqui de cima,
com vinte e cinco andares sob nós, era
possível ter uma vista panorâmica da
cidade, dos prédios iluminados que se
estendiam por quilômetros. Ao fundo,
nada além das montanhas que
permeavam o deserto.
Ela olhou pensativa através do
vidro por longos segundos. Coloquei as
mãos nos bolsos antes de me aproximar.
— É uma bela vista, não é?
Raven cruzou os braços e virou
o rosto na minha direção.
— Do tipo que a cobertura de
um chefão da máfia teria. — Passei a
língua sobre os lábios antes de sorrir.
O rosto de Raven parecia
desenhado por suas próprias mãos de
artista. Principalmente, quando ela
levantava o queixo de maneira petulante,
evidenciando as linhas de seu maxilar e
seu pescoço. Seus olhos eram o que
mais chamavam a atenção. Grandes
olhos cinzentos e frios, que pareciam um
portal diretamente para seu interior. Ao
olhar através delas, vi cicatrizes
estampadas em sua alma e
imediatamente tive minha confirmação.
Ela era uma sobrevivente. Talvez mais
do que ela mesma pudesse perceber.
— Eu sei por que você quer
tanto ficar distante de tudo isso. De mim.
— Ela levantou uma sobrancelha,
duvidando. — Eu sei sobre você, Raven
McKinley.
Ela ficou pálida. Seu rosto
perdeu toda a cor e eu pensei que a
garota fosse desmaiar bem ali, na minha
frente. Seus olhos se arregalaram e ela
deu alguns passos para trás, como se
temesse o que eu faria em seguida. Logo
após, contudo, ela se recompôs e
reergueu o escudo que a envolvia
constantemente. Engoliu em seco,
endireitou-se e me olhou diretamente
nos olhos. Seu rosto ficou limpo de
qualquer expressão.
— Como você descobriu?
Eu não podia dizê-la a verdade.
Não podia lhe falar que eu sabia
exatamente quem ela era no instante em
que coloquei meus olhos sobre sua
figura pequena e malcriada. Porque eu
havia sido avisado sobre ela. A filha de
um dos maiores traficantes do sul do
país não fugia sem que todo o submundo
do crime soubesse. E Joel fez questão
que todos estivessem cientes de que ele
estava à sua procura. Ele não foi muito
esperto quanto a isso, porém. Pois sua
tentativa de evitar que o resto de nós se
aproximasse dela só surtiu o efeito
contrário. Principalmente, considerando
que Frederik Wrath não tinha medo em
desafiar Joel.
Abri um sorriso totalmente
falso e presunçoso, me preparando para
mentir.
— Eu sou Hades Wrath, amor.
Pensei que, a essa altura, você já
soubesse o que isso significa.
Raven revirou os olhos.
— Significa que você tem
tendências megalomaníacas.
— Isso também — Sorri,
genuinamente dessa vez. — Mas naquela
noite, quando você quis se demitir e eu a
convenci a ficar, você me deixou
intrigado. O bastante para eu buscar
mais informações sobre você.
— Todas as garotas
financeiramente desesperadas chamam a
sua atenção? — Estalei a língua.
— Só aquelas que se esforçam
muito pra ficar fora do radar. — Fiz uma
pausa. — Normalmente elas têm um
motivo para isso.
Raven suspirou antes de
massagear as têmporas, pensando.
Joel McKinley não era
exatamente seu pai, mas todos sabiam
que era assim que ele a havia criado.
Isso significava que ele a via como sua
propriedade. Foi praticamente isso o
que ele disse quando me ligou, um aviso
tácito para que eu ficasse longe de sua
"garota encrenqueira e fujona" caso a
encontrasse.
Se ele soubesse que Raven
estava ali e que eu não a entreguei a ele,
o acordo entre McKinley e os Wrath
estaria acabado. Ele iria pisar em
Carmine e iniciaria uma guerra.
— O que vai fazer com essa
informação? — perguntou ela, após
algum tempo.
Pude notar a apreensão em sua
voz e me senti culpado. Aquilo não
acontecia com muita frequência. Eu
costumava fazer o que fosse necessário,
não importava o que as pessoas
achavam sobre isso. Era por isso que
estávamos no topo, era o que nos fazia
imbatíveis. Eu sabia bem das coisas que
precisaria sacrificar ao suceder meu pai
nos negócios da família. Raven era uma
peça naquele tabuleiro e nem ela mesma
sabia disso.
Sem remorso.
Aquelas palavras queimavam
na tatuagem sobre a pele na área das
minhas costelas. Não havia espaço para
sentimentos como esse naquele mundo.
— Guardarei seu segredo —
afirmei. — Você está segura aqui, amor.
Enquanto estiver sob a égide do
Pandemônio, McKinley não poderá
tocar em você.
Raven engoliu em seco. Os
braços envolveram seu corpo.
— Parece que é assim que você
paga sua dívida, então.
— Não. — Balancei a cabeça,
negando veemente. — Proteger você é
uma obrigação, não um favor.
Ela sorriu.
Ergui as sobrancelhas,
surpreso. O rosto dela ficava leve
quando sorria, se iluminava
completamente.
— Isso foi um sorriso? —
provoquei, rindo. — Que belo progresso
estamos fazendo.
— Cale a boca — respondeu,
rabugenta, antes de virar-se novamente
para a janela. Apesar de seus esforços
para esconder, não conseguiu evitar que
eu a visse sorrindo.
— Pode ficar aqui esta noite.
Se Garrett a viu em meu carro, isso
coloca um enorme alvo em suas costas.
— Raven grunhiu, nervosa. — O quarto
de hóspedes é no segundo andar, fim do
corredor. Sinta-se em casa.
Ela não se retirou logo, como
pensei que fosse acontecer. Permaneceu
ali, olhando para as luzes da cidade
abaixo de nós. Os braços estavam
cruzados sobre o peito. Estreitei os
olhos, fitando-a absorta em
pensamentos. Após alguns minutos, ela
finalmente quebrou o silêncio:
— Eu já fugi antes, há alguns
anos. Foi um ato impulsivo e idiota, eu
não pensei muito sobre. Apenas saltei da
janela do quarto durante a noite e saí
correndo. Um casal me encontrou
andando na rua sob a chuva. Fiquei na
casa deles por três dias, pensei que
finalmente havia escapado. No quarto
dia eu atendi à campainha. Me deparei
com Joel McKinley bem ali na minha
frente. O casal havia me vendido de
volta para ele por trezentos dólares. —
Raven ergueu seu rosto para mim,
encontrando meus olhos. — O que eu
quero dizer é que você poderia fazer
algo do tipo se quisesse. Então,
obrigada.
E a maldita culpa voltou.
Senti raiva também. Eu podia
vê-la, pequena e desesperada. Corajosa
o bastante para fugir de uma casa repleta
de homens armados até os dentes. Podia
imaginar a esperança que sentiu ao
pensar que havia escapado. Apenas para
que dois crápulas a vendessem como
uma maldita mercadoria por fodidos
trezentos dólares.
Trinquei o maxilar.
— Eu nunca a venderia — foi a
única coisa que respondi. Eu não sabia
realmente o que dizer, mas Raven
também não parecia se importar muito
com isso.
Ela acenou com a cabeça e
passou por mim, indo em direção às
escadas. A segui com meus olhos. A
garota parou no meio do caminho,
entretanto. Virou-se e olhou para mim
novamente.
— Não se atreva a sentir pena
de mim, Wrath.
Eu conhecia como as coisas
funcionavam em Dallas, como McKinley
fazia seus negócios. Ele era podre e eu
detestava saber que costumávamos ter
um acordo com ele. Tecnicamente ainda
tínhamos, mas não por muito tempo. Não
se o plano de Frederik desse certo. Em
breve, nossa "paz armada" se tornaria
uma guerra.
Conseguia imaginar nitidamente
como havia sido a vida de Raven por lá.
Provavelmente, fora brutal e difícil
como o inferno. Estávamos em lados
diametralmente opostos daquele mundo.
Raven era a consequência direta daquele
esquema, do submundo que eu ajudei a
construir. Não que toda essa vida tenha
me rendido nada além de glória —
afinal, foram difíceis os primeiros anos
no Pandemônio, com Frederik me
usando como bem queria e me obrigando
a fazer coisas das quais eu discordava
profundamente —, mas apesar das
partes ruins que eu enfrentara, para
Raven fora muito pior.
Eu não sentia pena dela,
entretanto. Ficava impressionado com
sua força e resiliência. A respeitava e
admirava. Afinal, ela era uma
sobrevivente. E parte de mim a queria
em meu time não apenas por causa das
ordens de Frederik.
— Eu não sinto — afirmei.
Raven balançou a cabeça.
— Bom.
Então ela alcançou as escadas,
subindo rapidamente para o segundo
andar. Soltei um longo suspiro. Eu
precisava muito de uma dose de uísque
naquele momento.
Você toma a forma de
Tudo o que me atrai
Não me tente, diabo
O que te faz tão especial
Para pensar que eu cederia
À essa dança entre você e eu,
diabo?
Devil Devil - MILCK
Eu acordei suada e ofegante,
com o toque do meu celular
reverberando dentro da minha cabeça.
Havia dormido feito pedra durante toda
a noite. Meu cérebro se desligou assim
que me deitei. Mas, apesar do sono
profundo que me acometeu, eu havia tido
muitos sonhos. Pensar novamente no
meu passado despertou mais memórias
sobre aquela época. Memórias que eu
pensei que estavam trancadas na parte
mais profunda da minha mente.
Coloquei a mão na nuca,
sentando-me sobre a cama. Só então,
olhando ao redor e percebendo que eu
estava bem longe do meu dormitório
pequeno e bagunçado, me lembrei da
noite anterior.
Eu estava no quarto de
hóspedes da cobertura de Hades Wrath
no centro da cidade.
Praguejei, mas não tive tempo
de remoer sobre minha atual condição.
Não com meu celular tocando
incessantemente. O apanhei e suspirei
aliviada ao ver o nome de Libby no
identificador de chamadas. Atendi
rapidamente.
— Caramba, Raven, onde você
esteve?
— Eu estou bem. Não te
encontrei lá no Círculo. Vocês
conseguiram sair antes de todo aquele
caos?
— Graças a Deus que Lane
nos tirou de lá antes das coisas ficarem
piores. Você não voltou para o
alojamento, onde está?
— Ãn… Você não acreditaria
se eu dissesse.
— Raven, você perdeu os dois
primeiros períodos. Tem certeza de que
está bem?
— Não se preocupe, estou indo
para o alojamento agora.
— O.k., te vejo mais tarde
então.
Assim que a chamada foi
encerrada eu percebi que já passavam
das onze da manhã. Coloquei a mão na
testa, pensando no que fazer. Esperava
que Hades tivesse ido para a aula e
deixado a porta destrancada para que eu
pudesse sair depois.
Saltei da cama, coloquei os
sapatos e fui até a porta do quarto,
abrindo-a. O segundo andar ficava no
mezanino, de modo que eu conseguia
espiar lá embaixo por sobre a
balaustrada de vidro do corredor. Tudo
naquele apartamento era caro e muito
organizado. As paredes e os móveis
seguiam uma paleta de cores específica:
preto, branco e cinza. Me peguei
imaginando sobre o quarto de Hades.
Certamente, seria uma suíte presidencial
muito luxuosa.
Ao me aproximar da escada,
ouvi sons de conversa e imediatamente
reconheci as vozes que vinham do
primeiro andar. A gangue do
Pandemônio estava em casa, para minha
falta de sorte.
Não sabia se todos eles também
tinham conhecimento de quem eu era,
mas estava confiando em Hades para
manter aquele segredo apenas para si.
Não que eu realmente confiasse nele,
mas, àquela altura da situação, eu não
tinha outra escolha.
Amarrei meu casaco na cintura
e prendi meus cabelos num rabo de
cavalo no topo da cabeça antes de
começar a descer os degraus. Ao mesmo
tempo eu pensava no que dizer a eles.
Talvez, e eu me agarrava àquela
possibilidade, o grupo estivesse tão
entretido em sua conversa que não
notaria quando eu me esgueirasse em
direção à saída.
Assim que cheguei no andar de
baixo, olhei à esquerda, na direção da
cozinha americana. Pude ver as costas
de Fiona e Khalil, sentados nos
banquinhos ao redor da ilha. Coloquei-
me na ponta dos pés e andei lentamente
em direção à porta do apartamento cor
de ébano com uma maçaneta prateada
extravagante.
Antes que eu pudesse alcançá-
la, entretanto, a voz de Hades soou alta e
clara atrás de mim:
— Olá, amor. Pensei que iria
dormir pelo resto do dia.
Fechei os olhos, praguejando
em silêncio por um segundo antes de me
virar devagar. O rapaz estava encostado
contra um dos pilares cor de grafite do
apartamento. Ele tinha os braços
cruzados sobre o peito. Usava apenas
uma camiseta branca, expondo as
tatuagens old school em seu braço. Os
cabelos estavam despenteados, caindo
naturalmente sobre suas têmporas. Um
sorriso bonito enfeitava seus lábios.
— Não vai ficar para o brunch?
— perguntou. Engoli em seco, fitando as
pessoas na cozinha que olhavam para
nós.
Balancei a cabeça.
— Deveria ter me acordado
três horas atrás. Perdi um dia de aula.
— E despertá-la do seu sono de
beleza? Eu não ousaria.
— Preciso ir agora. — Fiz
menção de me virar, mas novamente sua
voz me interrompeu.
— Coma alguma coisa pelo
menos. Eu te levo para o alojamento
depois.
Eu estava abrindo a boca para
negar quando meu estômago roncou alto
o suficiente para acordar o prédio todo.
Suspirei, sentindo que havia sido traída
pelo meu próprio corpo. Hades sorriu
vitorioso quando comecei a andar em
direção à cozinha. Lá estavam Khalil,
Fiona e Wade.
— Bom dia, raio de sol —
Fiona comentou assim que me
aproximei. Acenei brevemente antes de
ir até a cafeteira e me servir de uma
xícara.
O balcão da ilha estava repleto
de frutas, pães e bolos. Era um café da
manhã farto, à altura de todo o luxo do
apartamento. Hades combinava com
toda aquela aura extravagante, e eu tinha
certeza que ele gostava daquela vida.
Eu não sabia o que Hades havia
lhes contado, mas minha presença ali
não parecia ser uma surpresa. Após
encher a caneca com uma dose de
cafeína, me virei, encostando-me no
balcão.
— Selina e o xerife Callow
estão tentando rastrear Garrett essa
manhã — Khalil falou para Hades, que
havia se aproximado com as mãos nos
bolsos de suas calças pretas. Continuou
sua conversa como se eu não estivesse
ali — ou como se não se importasse que
eu ouvisse sobre os assuntos do
Pandemônio. — Ninguém sabe onde ele
está. É provável que Foxgriss não seja
mais onde os Daggers se escondem.
Hades soltou um palavrão.
Olhou para as mãos, pensando. Só então
reparei que ele estava descalço.
— Alguém se machucou ontem
à noite? — perguntei, atraindo seus
olhares para mim.
— Ninguém além do orgulho de
Hades — brincou Fiona.
— O que vocês vão fazer? —
Eu estava realmente preocupada com a
situação.
Os Daggers eram malditos
traficantes, se soubessem que eu tinha
qualquer relação, mesmo que mínima,
com o Pandemônio, poderiam investigar
quem eu sou. Hades disse que eu podia
ter um enorme alvo nas minhas costas e
se aquela gangue soubesse sobre mim,
não tinha dúvidas de que me entregariam
de bandeja para Joel em troca de
qualquer coisa.
Hades olhou para mim, mas
nenhum deles respondeu de prontidão.
— Precisamos descobrir onde
eles estão se escondendo e o que
planejam. Se voltaram, há um motivo. E
devem estar abastecidos. Alguém está
financiando-os e temos que descobrir
quem — respondeu ele.
— Não vão conseguir vender
nada em Carmine. — Wade entrou na
conversa, cruzando os braços próximo
ao pilar. — Todos sabem que temos o
monopólio por aqui.
O que ele queria dizer, concluí,
era que ninguém além da gangue do
Pandemônio podia traficar em Carmine.
Eles eram tão poderosos porque eram
exclusivos. Haviam conquistado aquilo
quando derrotaram os Daggers.
De repente, me lembrei do que
Nick dissera. Sobre como os Garrett
Voich queria sua cabeça após ele ter
abandonado o motoclub. Provavelmente,
era por isso que ele estava morando
Círculo. Embora odiasse o Pandemônio,
perto da gangue do seu irmão era o lugar
mais seguro pra ele. Estávamos numa
situação muito semelhante.
— Eles podem ir atrás do
Nick? — Deixei a pergunta escapar,
voltando-me para Hades.
Todos ficaram em silêncio,
paralisados como se eu tivesse dito o
nome do próprio anticristo.
— Talvez, mas meu irmão
caçou isso para si mesmo quando se
envolveu com os Daggers — respondeu
Hades, não parecendo se desestabilizar
com a menção de Nicholas.
— O que sabe sobre isso? —
Wade perguntou, os olhos castanho-claro
estreitos na minha direção.
Dei de ombros.
— Apenas o que Nick me
contou.
Fiona e Wade piscaram, como
se estivessem esperando algo. Hades
permaneceu me fitando, compenetrado.
Ele tinha aquele jeito controlado, como
se não houvesse uma só coisa que ele
fizesse que não fosse milimetricamente
planejada. Hades parecia ser muito bom
em ler as pessoas, e eu desconfiava que
ele tentava fazer isso com frequência
comigo.
— Não sabia que vocês dois
eram amigos próximos — disse ele,
sarcasmo escorrendo de suas palavras.
— É um velho conhecido meu
— retruquei, desafiando-o com o olhar,
provocando-o apenas para saber como
agiria.
Eu provavelmente estava
brincando com fogo naquele instante,
mas não era como se eu me importasse.
Não havia como as coisas ficarem
piores de qualquer forma. Mais cedo ou
mais tarde eles acabariam descobrindo
sobre minha ligação com Nick. Era
exatamente aquilo que Hades queria
arrancar através dos meus olhos. Ele me
encarava de uma maneira que tornava
impossível entender o que se passava
em sua cabeça. Seu rosto estava livre de
qualquer expressão. Calmo e
controlado, como na maioria das vezes
em que o vi.
Levantei uma sobrancelha,
esperando por mais perguntas de seu
interrogatório. Ele não insistiu no
assunto, entretanto. Dei um longo gole
no café.
— Vou falar com Delilah —
Fiona disse, retornando ao assunto
principal. — Ela vai saber se os
Daggers estiverem vendendo em
Foxgriss.
— Aquele seria o único lugar
no qual eles poderiam tentar traficar —
Wade concordou. — O único lugar onde
ainda podem ter algum tipo de
influência.
Foxgriss era o bairro mais
antigo de Carmine, pelo o que eu sabia.
Ficava um pouco afastado do resto da
cidade e talvez facilitasse o retorno dos
Daggers aos negócios, já que todo o
resto do território estava sob domínio
do Pandemônio.
Hades não parecia convencido,
porém.
— Voich não voltaria para
pegar de volta algumas migalhas em
Foxgriss. Ele não teria feito aquele
show se planejasse isso. Há algo maior
por trás.
— Seja o que for, vamos
descobrir — Khalil garantiu. Parecia
bastante pensativo, preocupado até.
— Ficarei de olho no Círculo
— Wade anunciou antes de se endireitar.
Vi de relance uma protuberância em sua
cintura. Sob o cós da calça. Uma arma,
talvez.
— Me mantenha atualizado —
pediu Hades. Ele recebeu um aceno de
cabeça como resposta.
Engoli em seco quando Wade
cumprimentou os seus amigos do
Pandemônio. Ele me olhou por um par
de segundos depois. Havia um misto de
desconfiança e curiosidade em seu
semblante. Mas ele não disse nada,
apenas se virou e saiu.
Silêncio recaiu no cômodo. Me
apressei para terminar o café e deixei a
xícara na pia antes de me virar para
Hades.
— Tenho que ir agora — falei,
com a voz firme.
Ele assentiu e liderou o
caminho até a porta. No caminho, pegou
as chaves que estavam no balcão e
calçou os sapatos sob o aparador. Me
despedi de maneira breve de Fiona e
Khalil e segui Hades, respirando
aliviada quando as portas metálicas do
elevador se fecharam.
Logo estávamos pelas ruas de
Carmine. O Sol estava brilhante no céu
azul, avisando que aquele seria mais um
dia quente no sul do Arizona. As janelas
do Camaro de Hades estavam abertas e
eu tinha meu rosto inclinado na direção
da brisa suave e dos raios de sol lá fora.
Ambos estávamos em silêncio,
mas eu sabia que, assim como a minha,
sua mente não estava calada. Ele dirigia
com apenas uma mão, enquanto seu
braço estava apoiado na porta do carro.
Eu observava Hades de soslaio, ora
admirando aquela beleza sombria e
quase inexplicável, ora temendo pelo
meu envolvimento na vida que ele
levava.
Em certo momento, mordi o
interior da bochecha, forçando-me a
pensar em outra coisa.
Durante toda a vida, estive
imersa naquele mundo. Todo maldito
minuto em que estive em Dallas passei
temendo pelo momento em que
finalmente morreria. Pelo dia em que
Connor decidiria que não iria mais me
proteger dos acessos de fúria de Joel e
dos homens nojentos que trabalhavam
para eles.
Era apenas questão de tempo
para aquilo acontecer. Com todos
aqueles homens armados andando pela
casa, reivindicando tudo o que tocavam,
a qualquer momento eu poderia levar um
tiro por minha incapacidade de manter a
boca fechada.
Ninguém se dava bem por tanto
tempo naquele tipo de negócio. Joel era
um fodido arrogante e pretensioso, e
isso, algum dia, o levaria a uma morte
certa. Principalmente, se Connor
resolvesse dar as costas a ele.
Stephen teria sido obrigado a
entrar naquele mundo também se não
tivesse fugido. Astrid e eu fomos as
consequências daquele negócio com as
quais ninguém se importara. Eles não
davam a mínima para o que acontecia
conosco. Para a rede de traficantes de
Joel, não éramos nada além de sua
propriedade. Ele poderia acordar num
belo dia e decidir que não gostava da
cor dos meus olhos, levantar sua arma e
me tirar de seu caminho — e McKinley
era instável o suficiente para isso. Seu
único empecilho durante todos aqueles
anos fora seu braço direito, Connor
Kamps, um homem frio e cruel que
sempre me defendeu, apesar de não ter
nenhum motivo aparente para isso.
Não parecia ser assim que as
coisas funcionavam em Carmine. Hades
realmente tinha tudo sob controle. Ele
estava no topo da pirâmide, afinal. Joel
fazia suas merdas para que alguém
acima dele, alguém como Wrath, ficasse
ainda mais rico. Pensar naquilo me
enchia de ódio. Ele era tão diferente e,
ao mesmo tempo, tão parecido com os
caras que eu conheci morando na casa
de um dos maiores traficantes do Texas.
E mesmo repudiando as coisas que ele
fazia, lá estava eu em seu carro —
provavelmente adquirido com dinheiro
sujo —, confiando a ele meu segredo e
minha segurança.
Não era hipócrita, então
preferia acreditar que eu também não
era tão diferente de todos esses
criminosos, afinal, eu não me importava
em usar aquele dinheiro para me
beneficiar. Era o dinheiro sujo de Hades
que eu guardava para pagar as dívidas
de Astrid e minha estadia no alojamento
da Universidade.
Hades e eu provavelmente
éramos mais parecidos do que eu
gostaria. Éramos dois lados da mesma
moeda, e isso me assustava mais do que
qualquer coisa.
— Me diga o que está
pensando, amor, quase posso ouvir as
engrenagens de sua mente trabalhando.
— Hades quebrou o silêncio, mas não
desviou seus olhos negros da pista. —
Pode me insultar se quiser, caso isso for
coloque um sorriso em seu rosto.
Revirei os olhos, tentada a
pular do carro em movimento apenas
para evitar continuar em sua presença
irritante. Tudo havia piorado agora que
descobri que ele sabia sobre meu
segredo. Todo o meu plano de criar
algum distanciamento entre nós havia
fracassado. Ele sabia sobre minha
identidade, o que, por fim, me deixava
em suas mãos. E não confiava na
palavra dele, de que manteria essa
informação apenas para si.
Após alguns segundos em
silêncio, algo me veio à cabeça.
A ideia de que eu estava
cometendo os mesmos erros de Astrid
me atormentou.
Engoli em seco, hesitante.
— Você conhece bem o Joel
McKinley? — perguntei, me virando
para olhá-lo.
Hades deu de ombros.
— Eu o vi uma ou duas vezes.
Meu pai é quem lida com os grandes
traficantes que trabalham para nós. Eu
fico apenas com a diversão. — Ele
olhou para mim antes de sorrir.
— Então o Pandemônio
trabalha para seu pai?
— Basicamente.
Torci o nariz, lembrando do que
George dissera sobre Frederik Wrath —
mais precisamente sobre como ele era
uma pessoa terrível. Se o Pandemônio
trabalhava para alguém assim, então
certamente não eram muito melhores que
isso.
Ainda assim, se os Wrath
tinham mesmo tanta influência, e certo
contato com Joel na época em que ainda
eram aliados, então poderiam saber
mais sobre a máfia de Dallas do que eu
imaginava. Talvez soubessem algo sobre
a mulher que passou tantos anos casada
com Joel McKinley.
— Pode perguntar qualquer
coisa — Hades incentivou, me fazendo
suspirar.
Balancei a cabeça.
— Eu só estava pensando que
talvez você pudesse conhecer uma
mulher chamada Astrid Clarke. Ela
costumava usar o sobrenome McKinley.
Foi embora de Dallas há uns 5 anos e
depois desapareceu, nunca tentou entrar
em contato, até recentemente. Astrid me
ligou, mas não consegui falar com ela.
Minha voz estava carregada de
frustração. Eu sabia que o telefonema
podia significar que Astrid sabia onde
eu estava, mas se isso era verdade,
então por que ela não havia tentado em
ligar de novo? E por que ainda não
havia tentando me encontrar? Ela sabia,
tanto quanto eu, que Carmine era o lugar
mais seguro para nós. Ela não precisaria
fugir ali.
— Nunca ouvi esse nome.
Quem é ela? — respondeu Hades,
arrancando de mim o fio de esperança
antes mesmo que eu o tecesse.
— Além de ser minha mãe,
também era a esposa de Joel. — Hades
me olhou. Os olhos escuros e
indecifráveis estavam presos nos meus.
Dei um longo suspiro cansado. — Foi
besteira achar que você saberia algo
sobre ela. Esqueça isso.
— Eu ouvi dizer que Joel era
casado, mas nunca soube com quem.
Nem sabia que ele tinha uma enteada.
Aquilo era compreensível.
— Ele não nos tratava como
família, de qualquer maneira.
— Vou fazer o que puder para
encontrá-la — garantiu Hades, me
surpreendendo.
Me virei para fitá-lo e me
deparei com seu semblante sério. Wrath
estava impassível e sua determinação
me fez acreditar que ele realmente
cumpriria aquela promessa. Talvez
estivesse apenas ansioso para pagar a
maldita dívida que julgava ter comigo.
Acenei com a cabeça, sem
saber o que falar. Eu não ia continuar
agradecendo-o. Ele não deixou a
conversa morrer, porém.
— Ela foi embora e a deixou
lá?
Eu gostava de manter a porta do
meu passado trancada a sete chaves,
embora nada disso houvesse impedido
que as pessoas comentassem sobre
minha vida enquanto morava em Dallas.
No Ensino Médio, todos sabiam que
meu padrasto era um criminoso. Eles
temiam se aproximar de mim, sequer me
dirigiam à palavra. Stephen havia sido o
meu único amigo a vida inteira. Até que
ele foi embora também.
Manter tudo pra mim me fez
sufocar e definhar por todos os anos que
se seguiram, principalmente, após
Stephen me deixar também. Era como eu
sempre estivesse sozinha lidando com
todo aquele inferno.
Engoli em seco, olhando para
minhas mãos em meu colo.
— Ela casou com Joel quando
eu tinha uns dois anos de idade —
comecei, sentindo, pela primeira vez em
muito tempo, vontade de contar sobre
aquele fardo para alguém. Hades fazia
parte daquele mundo também, no fim das
contas. — Ele a dava dinheiro para que
ela sustentasse seu vício em álcool e
antidepressivos, isso a fez ficar muito
endividada com ele. Astrid estava com
medo de que ele a matasse quando
percebesse que ela nunca poderia pagá-
lo de volta, então foi embora.
Hades ficou em silêncio por
alguns segundos, digerindo. Eu esperava
que ele honrasse a promessa e não
sentisse pena de mim. Odiava aquele
maldito olhar que algumas pessoas me
dirigiam quando sabiam quem eu era.
Simplesmente repudiava aquele
sentimento. Eu não precisava de pena,
aquilo não me levaria a lugar nenhum,
apenas me fazia sentir fraca e
deplorável — exatamente como Joel
quis que eu me sentisse durante toda a
minha vida.
— Acho que as pessoas fazem
qualquer coisa pela sobrevivência —
completei, querendo aliviar a carga da
minha história.
— Todos os pais deveriam ser
protetores e confiáveis, Raven.
Deveriam colocar a sobrevivência de
seus filhos acima das suas.
Me perguntei se sua mãe fizera
isso. A maneira como George falou
sobre Eve Wrath me fez desejar que ela
fosse minha mãe, porque, durante todos
os anos após Astrid me abandonar, me
ressenti dela. A odiei. Quando
finalmente consegui fugir, percebi que
de nada adiantaria nutrir tanto rancor. Eu
sentia mais falta dela do que qualquer
outra coisa. Queria ajudá-la, por isso o
dinheiro era tão importante. Se eu
pagasse sua dívida, então ela não
precisaria mais se esconder. Talvez ela
finalmente se sentisse segura o bastante
para me encontrar.
— As coisas frequentemente
não são como devem ser — respondi.
— Acho que você está certa —
ele concordou, com a voz sombria que
indicava que sua mente estava distante.
Franzi o cenho, tentada a
perguntar sobre sua família. Não queria
deixar as coisas mais esquisitas do que
estavam, entretanto, então não disse
nada.
Quando ele estacionou em
frente aos familiares prédios do
alojamento da Universidade, abri a
porta. Antes de sair do carro, parei e
olhei para ele uma última vez. Seu rosto
representava um enigma pra mim.
Principalmente, porque queria acreditar
que ele era mau, tanto quanto Joel ou
Connor. Contudo, eu não via isso em
seus olhos ou em suas atitudes. Sua
arrogância parecia mais como uma
armadura.
Humanizar Hades Wrath
poderia se tornar o início da minha
ruína. Ainda assim, não conseguia
evitar.
Meu garoto está sendo
suspeito, era sombrio
Mas agora ele é apenas uma
sombra
Ele simplesmente soa como se
estivesse tentando ser o pai
my boy - Billie Eilish

Três anos antes


Aquela casa em Foxgriss estava
caindo aos pedaços. As paredes estavam
encardidas, repletas de rachaduras e
teias de aranha. O piso de madeira do
hall de entrada parecia querer ceder. Era
como se toda a estrutura fosse
desmoronar a qualquer momento.
Assim que entrei fui acometido
por um cheiro forte cuja origem eu
preferia não conhecer. Ao meu lado
estavam Khalil Basher e Alec Young,
ainda mais perturbados que eu por
estarem ali. Não costumávamos ir a
Foxgriss. Estava claro que aquele era
um antro de problemas. Criminosos
espreitavam em cada esquina. A maioria
deles eram parte dos Daggers, a gangue
de motoqueiros local. Eu já desconfiava
há algum tempo que meu irmão estava
conseguindo drogas com eles, mas
quando ele começou a passar cada vez
mais tempo em Foxgriss, tive certeza.
— Parece que estou no pior
círculo do Inferno [ii]— reclamou Alec,
cobrindo o nariz com as mãos.
Bufei, olhando ao redor. Eu
queria muito dar o fora dali, mas não
podia fazer isso até encontrar o
inconsequente do meu irmão. Mal houve
tempo para que eu superasse o luto de
nossa mãe, porque, rapidamente, Nick
decidiu que destruiria a própria vida e
começou a buscar isso.
Embora eu compreendesse seu
lado; afinal, Eve mentiu durante toda
nossa vida sobre Frederik ser pai de
Nick, poderíamos ter enfrentado isso
juntos. Teríamos permanecido unidos se
não existisse uma parte do meu irmão
que me culpava pela maneira como
Frederik passou a tratá-lo quando
descobriu a verdade. Como se eu tivesse
escolhido ser o filho legítimo do pior
homem que já conheci.
— Vamos nos dividir. Eu
procuro no andar de cima e vocês
cobrem aqui embaixo — ordenei,
encarando os móveis velhos que
estavam dispostos na sala.
Não temia encontrar algum
Dagger que desejasse arrumar encrenca
comigo. Naquele momento, eu não
estava me importando com muita coisa.
E, durante todo o meu percurso até
aquela casa, só pensei em Selina
chorando em seu quarto. Wade ficara
para acalmá-la, mas eu sabia que não
teria sucesso. Seu coração estava
completamente estilhaçado.
Andei lentamente em direção às
escadas, vasculhando todo o lugar com
meus olhos. Algumas janelas estavam
quebradas e as paredes pichadas. Havia
muito lixo no interior da casa,
confirmando o que eu imaginava: ali era
mesmo onde ocorriam as festinhas
doentias dadas pelos Daggers. Muitas
garrafas de bebidas, latas, caixas de
pizza e pacotes de salgadinhos estavam
espalhadas pelo chão.
Ao alcançar o segundo andar,
me deparei com pessoas que estiveram
ali na noite passada. Elas estavam
caídas, desmaiadas pelo chão,
provavelmente cheias de álcool e
metanfetamina no organismo. Alguns
eram muito jovens, praticamente
crianças. Trinquei o maxilar ao desviar
dos adolescentes dormindo pelo
corredor. Aquilo só fazia minha raiva
por aqueles motoqueiros aumentar. Eles
estavam arruinando a vida de todos ali,
incluindo a do meu irmão.
Todas as portas estavam
escancaradas e eu chequei cada quarto.
Estava tentando controlar minha raiva.
Já havia perdido a conta das vezes em
que tive que tirar Nick daquela situação
de merda. Já fazia algumas semanas que
ele havia saído de casa para morar em
algum buraco com seus amigos de
Foxgriss, mas, mesmo assim, não desisti
de livrá-lo das enrascadas nas quais que
se metia. Após a morte de nossa mãe,
éramos a única família um para o outro.
Não importava se ele me odiasse, eu
permaneceria lutando para que ele não
se afundasse completamente em sua
própria desgraça.
O encontrei no banheiro.
Desmaiado dentro da banheira de ferro
fundido. Uma perna e um braço para
fora, a cabeça tombada contra a borda.
Os cabelos lisos e escuros estavam
molhados, caindo sobre seu rosto.
Garrafas vazias de cerveja estavam
espalhadas no chão, ao redor da
banheira. Apesar de tudo, aquela não
fora a pior situação na qual o encontrei.
Dei um longo suspiro,
marchando em sua direção.
— Nick, acorda — falei, firme.
Ele continuou imóvel ali, entretanto.
Revirei os olhos antes de dar um tapa
em seu rosto. — Vamos, Nicholas, eu
não estou num bom humor hoje.
O sacudi algumas vezes, mas de
nada funcionou. Comecei a me
preocupar com a possibilidade de ele
estar morto. Coloquei dois dedos na
lateral de seu pescoço e suspirei de
alívio quando senti seus batimentos.
Murmurei um palavrão antes de apanhar
uma das garrafas do chão, uma que ainda
estava preenchida com algum destilado,
e a entornei sobre seu rosto, de modo
que ele saltou, assustado e tossindo
como se estivesse se afogando.
Nick passou as mãos sobre os
cabelos, colocando-os para trás,
ofegante. Ele olhou ao redor,
desorientado, até me encontrar ali
parado ao seu lado. Seus olhos se
estreitaram, como se ele estivesse
processando minha presença.
— Que porra, Hades — xingou,
nervoso. — O que você está fazendo
aqui?
Seja lá o quão irado ele estava,
não chegava nem perto da minha cólera.
Semicerrei meus olhos para
ele.
— Selina está no hospital. Você
estava drogado pra caralho ontem à
noite. Tão drogado que vocês brigaram
e você a empurrou da escada.
Seu rosto perdeu toda a cor que
lhe restava. Nick arregalou os olhos, se
levantando como pôde sobre a banheira
vazia. Ele cheirava a álcool e fracasso.
Ainda estava meio atordoado, percebi
isso quando ele precisou se segurar na
parede para se equilibrar. Dei um passo
para trás, me distanciando dele.
— Não. Eu não fiz isso. — Sua
voz estava trêmula, dava pra notar que
ele não acreditava nas palavras que
dizia. Ele sabia que poderia ser verdade
e vi em seus olhos como isso o assustou.
— Hades, eu não fiz.
— É mesmo? Você se lembra?
Ele abriu a boca, pronto para
argumentar, mas logo a fechou. Seus
olhos ficaram vazios e opacos.
— Ela está bem? — perguntou
com a voz embargada.
— Está — falei, cruzando os
braços. — Você não a empurrou da
escada, Nick. Mas certamente poderia
ter feito isso e é apenas questão de
tempo para machucá-la fisicamente.
Enquanto continuar se afundando em
drogas, bebidas, andando entre os
Daggers, ela não estará segura perto de
você. Ninguém está.
Ele tomou um momento para
respirar, aliviado por aquela história
não ser verdade. Mas logo isso passou e
ele foi dominado pela raiva. Nick fez
menção de avançar em minha direção,
mas acabou tropeçando e caindo no
chão.
— Seu maldito! — xingou.
— Você não sabia se tinha feito
isso ou não, porque não se lembra da
metade das coisas que faz. Isso está
acabando com você, Nicholas, e eu
estou cansado de ter que ficar te
salvando dessas merdas o tempo todo.
Se você quer se destruir, pelo menos
tenha a decência de não levar ninguém
junto.
Alec e Khalil entraram no
banheiro e ajudaram a levantar meu
irmão e a carregá-lo até o carro. Eu não
sabia se minha tentativa de o assustar
seria o bastante para impedi-lo de usar
drogas novamente. Embora não soubesse
ainda, estava prestes a descobrir que o
desejo de Nick de foder com tudo era
maior do que eu imaginava.

Dois meses depois, as coisas


não estavam melhores. Ao menos Selina
estava determinada a se afastar dele,
embora ainda tivesse recaídas. Não
demorou para que eu percebesse que
meu irmão era um maldito caso perdido,
tão afogado em sua dor e autopiedade
que não enxergava nada além disso. Eu
sabia que ele queria vingança. De mim,
do nosso pai… Ele só via a própria
verdade e, apesar de ter tentado muito
ajudá-lo, eu havia perdido a paciência.
O grande estopim foi quando ele decidiu
se juntar oficialmente aos Daggers,
apenas para me desafiar.
Naquela noite havia uma festa
na casa de Lizzie Chapman. A garota era
a capitã das líderes de torcida e havia
me convidado pessoalmente, exigindo
minha presença. Eu sabia quais eram as
suas intenções. Era fácil ler seus desejos
através do seu corpo, a maneira como
ela deslizava o dedo por uma mecha
loira enquanto mordia os lábios de
gloss, esperando pela minha resposta ao
seu convite. Eu nunca poderia recusar
uma proposta tão generosa, então lá
estava eu, bebendo com os calouros da
Universidade de Carmine na irmandade
feminina mais popular do campus e
ouvindo um som eletrônico detestável.
Em certo momento, subi para o
quarto de Lizzie, no segundo andar. Ela
queria me mostrar o cômodo, que tinha
todos os tons de rosa possíveis. Estava
se esforçando muito para me
impressionar e eu ouvia cada palavra
sua. Após me apresentar à sua coleção
impressionante de sapatos, me levou até
a sacada da sua suíte. Segurando uma
garrafa de cerveja, com a lateral do
corpo encostado contra a balaustrada de
madeira, escutei sobre suas aventuras
em Dubai. Foi quando uma
movimentação lá embaixo chamou minha
atenção. Tentei deixar pra lá, mas um
estrondo alto soou, sendo seguido de um
alarme de carro. Não um carro qualquer,
mas o meu Porsche recém adquirido.
Trinquei o maxilar, virando o
rosto em direção ao jardim sob mim. Em
frente à casa estavam vários veículos
estacionados, bem como universitários
bêbados segurando copos de plásticos e
fumando. Ao redor do meu carro, que
tinha os faróis piscando e o vidro do
para-brisa completamente arruinado,
estavam os Daggers. Três deles. Chuck,
Slade e Hive — como meu irmão
passara a ser chamado desde que fora
iniciado como membro da gangue.
Estava segurando a garrafa tão
firme em minhas mãos que pensei que
poderia quebrá-la apenas com o punho.
Meus olhos estavam presos na cena
daqueles três desgraçados, armados com
tacos de beisebol e latas de spray,
vandalizando meu carro.
Larguei a garrafa sobre o
parapeito da sacada e entrei de volta na
casa. Eu via tudo vermelho enquanto
marchava pelos corredores e galgava os
degraus da escada rumo ao primeiro
andar. Poucas pessoas ainda estavam ali
dentro, visto que a maioria havia saído
para presenciar o show do meu irmão.
Eles abriram espaço para eu passar e,
quando me aproximei dos Daggers, reuni
todo meu autocontrole.
— Nicholas! — gritei num
rugido alto e rouco, atraindo a atenção
dele, que estava pichando as palavras
“garotinho do papai” em vermelho sobre
o capô do carro. — Que porra você
pensa que está fazendo?
Ele se virou para mim,
ostentando um sorriso sarcástico em
seus lábios. Os seus olhos, que sempre
me lembraram os de nossa mãe, estavam
agora opacos, cheios de rancor. Sua
regata branca estava rasgada, desfiada
nas barras e suja de tinta spray.
— Estou customizando seu
carro novo, irmãozinho, não gostou?
Eu estava irado. Só não caí
sobre ele e lhe dei a maior surra de sua
vida porque estava a todo momento
pensando no grande desgosto que isso
teria causado à nossa mãe. Eu mesmo
estava decepcionado pra cacete, apesar
de saber que parte daquilo era culpa do
desgraçado do nosso pai.
Olhei de soslaio para Chuck,
que parecia muito satisfeito com o caos
que causara. Talvez ele também tivesse
parcela de culpa. Afinal, foi ele que
encheu Nick de droga e o cercou de
violência, mesmo este sendo apenas um
adolescente triste e perdido. Embora
fosse tarde demais para recuperar meu
irmão, eu acabaria com os malditos
Daggers por aquilo. Seria uma vingança
doce. Meu pai estava certo quando
decidiu que precisaríamos destruí-los de
alguma maneira. A gangue de Garrett
Voich precisava de um rival à altura e eu
lhes daria isso.
— Quer saber, Hades? — falou
Nick, se aproximando de mim. Estreitei
meus olhos em sua direção. — Eu
finalmente entendi por que você quis
tanto afastar Selina de mim. Você quer
trepar com ela, não é?
O riso de escárnio dele cortou
o ar. Balancei a cabeça, incrédulo.
— Você está drogado, Nick.
— Meu nome agora é Hive! —
gritou, completamente fora de si.
Seus olhos estavam vermelhos
e seu semblante, sombrio. Nick era
impulsivo e rebelde por natureza, mas
sua instabilidade se tornou perigosa
para todos, incluindo ele mesmo, quando
Nick começou a se envolver com drogas
e com os Daggers. Ele expôs a parte
interna do seu antebraço esquerdo. Lá
estava a tatuagem, alguns centímetros
acima de seu pulso. Era um punhal com
o crânio de um bode na base e o nome
“HIVE” escrito sobre a lâmina.
Balancei a cabeça, subindo meu
olhar repleto de desgosto para encará-lo
novamente.
— Que bom que nossa mãe já
está morta, porque se visse o que você
se tornou, certamente iria se contorcer
de amargura.
Foi necessário apenas um
piscar de olhos para que, no segundo
seguinte, eu tivesse meu irmão
pressionando um canivete contra meu
pescoço. Seu rosto estava desfigurado
pela raiva. Em nada se parecia com o
pequeno garotinho que eu protegia das
surras de nosso pai. Ali estava alguém
que eu não reconhecia. Alguém por
quem eu havia perdido todo o respeito.
Ergui o queixo, sem fazer
nenhum movimento para detê-lo. Eu
duvidava que ele realmente tentasse me
matar, mas caso o fizesse, não viveria
por muito tempo. Provavelmente, ele já
sabia sobre o iminente surgimento do
Pandemônio e sua disposição para ir à
guerra com os Daggers.
— Vamos, Nicholas, nós dois
sabemos que você não tem culhões para
matar seu próprio irmão. Não precisa
fingir ser um babaca corajoso para seus
amigos delinquentes. Isso o torna
ridículo, não respeitado.
— Um dia eu arrancarei esse
sorriso arrogante do seu rosto, irmão.
Meu sorriso aumentou.
— Aguardarei ansioso por esse
momento.
Então, a lâmina deslizou para
longe da minha pele e de volta para seu
bolso. Seus olhos opacos diziam que
aquela ligação fraterna que irmãos
possuíam já não existia mais entre nós.
Havia sido rompida e não havia mais
volta.

Atualmente

Eu odiava jantar com meu pai.


Mais do que tudo, odiava aquela casa.
Mesmo a ampla iluminação dos
ambientes incidindo sobre os móveis
modernos e pretos, não conseguia fazer
aquele lugar parecer menos sombrio e
perverso. A sala de jantar tinha uma
longa mesa de vidro escuro. Sobre ela
estava a farta refeição na qual eu mal
tocara. Eu estava à direita de Frederik
Wrath, vestido em toda sua glória em um
terno absolutamente preto, sentado na
cabeceira. Ele era alto e magro, olhos
vazios de qualquer emoção, como
buracos negros, parecidos demais com
os meus. Os cabelos grisalhos
perfeitamente penteados. Tudo nele
emanava controle. Odiava admitir, mas
eu me parecia muito com um verossímil
reflexo daquele homem-monstro que eu
aprendera a temer muito antes de saber o
significado desta palavra.
Não apenas em nossa
aparência, embora nossos olhos fossem
exatamente iguais. Nossos hábitos
também eram semelhantes. Eu sentia
repulsa pela ideia de ter sua
personalidade. Sua mente era brilhante,
mas seu coração era uma pedra gelada.
Ele parecia muito focado em
cortar seu Tournedos Rossini [iii]com a
frieza e elegância digna de Hannibal
Lecter. Estreitei meus olhos para
Frederik, sentindo um gosto de bile em
minha garganta. Eu não saberia dizer
quando o medo do meu pai havia se
tornado puro ódio, mas ali estava aquele
sentimento, borbulhando sob minhas
veias. Frederik bebeu um gole do vinho
fino em sua taça de cristal. Todos
pareciam muito confortáveis sob aquele
silêncio absoluto, principalmente
Amanda, minha nova madrasta.
A mulher estava sentada à
minha frente e, portanto, à esquerda de
seu namorado. Ela já estava ali,
assombrando aquela casa feito um
fantasma, há uns dois anos. Grande parte
da perda de controle de Hive havia sido
sua culpa. Não intencionalmente, é
claro. Poderia apostar que ela não sabia
onde estava se metendo quando decidiu
ir morar naquele palácio infernal.
Quando alternei minha atenção
para ela, vi algo. Não sabia
precisamente o que era, mas me deixou
intrigado. A sua aparência me pareceu
um pouco familiar, com os cabelos
escuros feito a noite e os olhos claros e
acinzentados, semelhantes a um céu
nublado.
Mas, pensando bem, ela não era
tão diferente de todas as outras
namoradas e amantes do meu pai. Elas
eram de aparência frágil e etérea,
exatamente como fantasmas. Exatamente
como minha mãe. Porque Frederik as
tirava de suas famílias sob falsas
promessas, apenas para acorrentá-las a
ele e sugar suas vidas pouco a pouco.
Era disso que ele se alimentava, o
desgraçado.
— Esse é o jantar mais
agradável que tenho em séculos —
murmurei, irônico. Aquele silêncio todo
fazia eu me sentir como se já estivesse
morto e sendo punido no purgatório.
Frederik levantou o rosto em
minha direção. As feições vazias e
apáticas de alguém que nunca sentiu
nada. Amor, felicidade e empatia eram
palavras desconhecidas para meu pai. O
homem era um fodido psicopata.
— Poderia quebrar o silêncio
fazendo o favor de me atualizar sobre
aquele assunto.
Eu sabia que ele estava se
referindo à Raven. Dei uma breve
olhada para Amanda, que parecia aérea
demais, flutuando em alguma realidade
paralela.
— Não há nada a dizer —
respondi, tentando evitar o assunto.
Aquilo me incomodava. A
ordem de Frederik e seu interesse em
Raven me assombravam. Queria, mais
do que tudo, poder mandá-lo para o
inferno. Dizer-lhe que o Pandemônio
não faria seu trabalho sujo e que eu não
seria uma peça em seu jogo doentio.
Mas eu não podia. Aquele homem ainda
era o poderoso Frederik Wrath, alguém
capaz de fazer coisas horríveis para
conseguir o que queria. Sim, eu o odiava
mais do que tudo, mas ainda o temia.
Não por mim, mas por todas as pessoas
ao meu redor que ele poderia ferir.
— Nenhum progresso? — ele
perguntou, incrédulo.
— Ainda não — reformulei. —
Mas terei em breve.
— Espero que não esteja
mentindo para mim, filho. Ou então,
você sabe, haverá consequências.
— Eu conheço bem as
consequências — falei, entredentes,
olhando de soslaio para os homens de
terno espalhados por aquela casa. Eram
mais do que apenas seguranças armados,
eram mercenários implacáveis que
trabalhavam para ele. Que tornavam
suas ameaças reais e muito, muito
perigosas.
— Bom. — Frederik voltou a
comer. — E já que teve a gentileza de se
juntar a nós nesse agradável jantar, então
deveria ser o primeiro a saber da
novidade — continuou ele, com as
palavras calculadas feito uma serpente.
Levantei uma sobrancelha. Eu
raramente me surpreendia com as
novidades do meu pai. Nada do que ele
dissesse faria eu me importar. Ele estava
fadado a ser um homem frio que só se
importava com dinheiro e poder. Tudo
sempre girou em torno disso.
— Finalmente irá fazer uma
consulta num psiquiatra?
Ele não riu. Na verdade, deu
um longo suspiro, como se estivesse
reunindo forças para não perder o
controle comigo. Até mesmo suas surras
eram sobre controle. Houve um
momento em que parei de sofrer, apenas
as recebia, alimentando meu ódio, e isso
me dava força para não desistir.
— Eu vou me casar —
anunciou, sem sequer mencionar
Amanda. Frederik conseguia fazer até
um casamento ser apenas sobre ele.
Permaneci em silêncio,
apanhando minha própria taça de vinho
e bebericando, tentando decidir o que
pensar a respeito. Eu não me importava
realmente com o que meu pai fazia da
própria vida. Estava condenado a ser
usado por ele em seu jogo de poder e me
conformei com isso, não havia nada que
fosse pior ou que pudesse me despertar
mais revolta e desgosto.
Ele puxou a mão de Amanda,
que permanecia silenciosa e pálida
sobre seu assento, e a estendeu para
mim. Primeiro, reparei em suas unhas
compridas e vermelhas. Depois, no anel
de aro prateado, que circundava o dedo
em formato de serpente, com uma pedra
de esmeralda cercada por pequenos
diamantes no lugar da cabeça.
Trinquei o maxilar, apertando a
taça firme em meu punho antes de
abaixá-la de volta à mesa, mantendo
meu toque sobre ela. É claro que nada
era feito sem segundas intenções por
Frederik Wrath. Até mesmo a porra de
seu noivado tinha algo para me provocar
e ferir. Ali estava o anel de Eve. Aquele
que eu tirei de seu dedo quando este
estava fino demais para segurar a joia.
Apertei meus dedos mais forte ao redor
da taça, sem conseguir tirar os olhos da
pedra verde.
— A farsa que é esse
casamento não vai fazer alguém mudar
de opinião sobre quem você é de
verdade, Frederik. — Minha voz soou
rouca, cheia de rancor. Ergui meus olhos
paras olhos escuros dele. — Todos já
sabem que você é o diabo.
Ele largou a mão de Amanda
sem cuidado nenhum, e ela rapidamente
a recolheu para seu colo. O medo cruzou
seus olhos claros quando ela os desviou
para baixo.
— Irei anunciar o noivado em
sua festa de aniversário — falou,
ignorando completamente as minhas
palavras.
— Eu já disse que não quero
essa maldita festa.
— Eu já disse que não dou a
mínima para o que você quer ou não —
rebateu.
Em algum momento meu aperto
sobre o cristal havia se tornado muito
forte. A taça se estilhaçou sobre meu
punho, fazendo a cor do vinho tinto
descer sobre meu antebraço e tingir a
toalha de linho da mesa. Percebi os
cortes dos cacos de vidro sobre a palma
da minha mão, mas mal senti dor. Meu
pai sequer se abalou.
Nenhum de nós disse mais
nada, apenas me levantei da mesa e saí
da sala.
Eu já fui alguma coisa em sua
mente?
Bem, eu pensei que eu era
alguém para você
Bem, eu só queria ser um lar
para você
Você me deixou como uma
pedra
E agora você está me puxando
de volta
Como posso me sentir tão
sozinha?
Lone - What So Not, Ganz,
JOY

Um pop contemporâneo tocava


baixinho na Electric quando entrei lá
durante a tarde. Eu nunca estivera na
academia durante seu pleno
funcionamento de dia, apenas na
madrugada, sendo treinada em sigilo por
Stephen, então me surpreendi com a
quantidade de pessoas que lá estavam.
Ao redor do ringue elas batiam em sacos
de pancada, pulavam corda, levantavam
peso e faziam flexões. Dentro dele, dois
homens grandes e fortes treinavam boxe.
Eles eram bons, seus movimentos eram
fortes e precisos.
— O que faz aqui?
A voz de Stephen chamou
minha atenção. Me virei para olhá-lo.
Seus cabelos loiros estavam presos num
pequeno coque. A pele dourada brilhava
com o suor. Ele tinha uma garrafa d’água
numa das mãos e uma toalha na outra.
— Podemos conversar? —
perguntei, determinada.
Não podia continuar com
aquilo. Ficar perto dele me fazia mal e
suas aulas não estavam funcionando.
Stephen acenou com a cabeça
antes de liderar o caminho até um banco
acolchoado do outro lado do galpão. Ele
se sentou e bebeu um grande gole de
água, olhando para mim e esperando que
eu começasse a falar. Me sentei ao seu
lado, virando-me para ficar de frente
para ele.
— Tem algo te incomodando —
observou Stephen após abaixar sua
garrafa. Seus olhos azuis inspecionavam
meu rosto, procurando algo que eu não
tinha certeza se estava lá. Meu olhar
caiu para baixo, em direção às minhas
mãos. — Você pode falar comigo sobre
isso, Raven. Um dia fomos melhores
amigos.
— Isso foi há muito tempo —
falei, rápido. — Não posso mais treinar
com você. Vou me matricular na Electric
com outro professor.
— Eu… — Ele pareceu ser
pego de surpresa. — Entendo sua
decisão, mas não acho que você precisa
continuar tentando aprender a lutar.
Raven, eles não virão atrás de você.
— Não há garantias, Stephen
— argumentei, frustrada.
Além disso, o cenário havia
mudado. Os Daggers apareceram e eu
temia o que fariam caso soubessem
sobre mim. Eu precisava saber me
proteger se as coisas ficassem
perigosas. A dependência que havia
criado de Stephen quando éramos
adolescentes só me tornou fraca e
deplorável. Eu confiava nele pra me
proteger também. Pensei que ele sempre
estaria lá, mas ele foi embora. E foi
difícil, mas sobrevivi. Não havia me
rendido naquela época e não o faria
agora. Eu finalmente havia
compreendido que, no fim das contas, só
podia contar comigo mesma para me
manter viva.
Após dizer o que queria, fiz
menção de me levantar, mas ele me
impediu com o toque suave de sua mão
em meu ombro.
— Você finalmente descobriu
que não é apenas uma garçonete no
Pandemônio? — falou, usando das
minhas palavras contra mim. Balancei a
cabeça, dando um longo suspiro
cansado. — Tem que sair de lá, Raven,
ou…
Levantei uma sobrancelha.
— Ou…? — o incentivei a
falar, mas ele desistiu de completar sua
frase, dando apenas um suspiro.
— Não quero que seja pega no
meio do fogo cruzado — explicou,
baixinho.
Ele já sabia sobre os Daggers,
então?
— Agora você se importa com
a minha segurança? Bastante irônico,
não é?
Stephen balançou a cabeça.
— Eu sempre me importei,
mesmo que você não acredite em mim.
Respirei fundo, colocando uma
mão sobre a nuca.
— Eu sei cuidar de mim,
Stephen. Aprendi da pior maneira. Você
não precisa se preocupar. — Finalmente
me levantei. Ele não me impediu dessa
vez, mas assim que eu me virei escutei
sua voz.
— Éramos crianças, Raven. —
O encarei por sobre o ombro. — Não
sabíamos nada sobre a vida, sobre amor.
Estávamos carentes e desesperados.
Éramos apenas duas crianças tentando
sobreviver, não sabíamos direito o que
estávamos fazendo. Tudo o que
sentimos, o que fizemos, foi baseado na
nossa experiência dentro daquele
cenário horrível e traumático. Não
podemos mais ser aquelas crianças.
Engoli em seco com aquela
revelação.
— Então, basicamente, você
está dizendo que só ficou comigo porque
eu era a única opção? — Minha voz saiu
rouca e entrecortada. Stephen franziu o
cenho, balançando a cabeça.
— Não foi isso o que eu quis
dizer.
— Eu te amava, Stephen, e foi
real pra mim — eu disse, olhando para
ele através da minha visão turva pelos
olhos marejados. — Mas talvez você
esteja certo, porque agora você só me
faz sentir fraca e miserável.
Eu me virei rápido quando uma
lágrima rolou pela minha bochecha.
Abracei meu corpo e andei para longe
dali a passos largos e urgentes, um
pouco desesperados. As lágrimas
corriam livres enquanto as memórias
bombardeavam minha mente. Agora
todas as lembranças apareciam ridículas
e superficiais.
Passei as mãos sobre o rosto,
secando as lágrimas, praticamente
correndo para fora do galpão. Foi então
que trombei contra uma pessoa. O
reconheci quando ele me segurou,
afastando-me levemente de si para olhar
no meu rosto.
— Raven, o que aconteceu?
Eu deveria ter me distanciado
dele no mesmo instante, mas uma parte
de mim ficou feliz ao vê-lo. Ergui meus
olhos até os dele.
— Tenho que sair daqui —
falei, em tom urgente. Nick tinha a testa
franzida e os olhos preocupados. Ele
assentiu e, sem fazer mais perguntas,
pegou minha mão na sua.
— Vamos, eu te levo.
Em seguida, nos dirigimos à
sua moto. Foi boa a sensação de
adrenalina que preencheu meu corpo
enquanto estava em sua garupa. Por um
momento, pude distanciar meus
pensamentos da bagunça que deixei
Stephen fazer em mim.
Depois que chegamos ao
alojamento, Nick me acompanhou em
silêncio até o prédio. Nos sentamos lado
a lado nos degraus da entrada. Ficamos
quietos por alguns minutos. Me senti
grata por ele não ter me interrogado,
porque eu estava envergonhada o
suficiente. Não era do tipo que
demonstrava fraqueza em público.
— Eu não sou assim. —
Quebrei o silêncio após um tempo. Nick
tinha as mãos entrelaçadas entre os
joelhos. Ele virou o rosto em minha
direção. — Uma garotinha chorona e
patética.
— Eu sei que não — garantiu
ele. — Você é forte demais o tempo
todo, menina, mas, cedo ou tarde, todo
mundo quebra. — Nick passou as mãos
sobre os cabelos curtos. — Deus sabe
que eu já quebrei. Pra caralho.
Suspirei, lembrando-me do que
ele havia me contado e me perguntando
o que havia além disso em seu passado.
Mas, no fim das contas, Nick estava
certo. Era impossível ser dura feito
rocha o tempo todo. E, apesar de não
querer admitir, o abandono de Stephen
me magoara. Me sentia vazia diante da
possibilidade daqueles sentimentos
nunca terem sido reais. De eu nunca ter
sido amada de verdade por ninguém.
Sentia como se tivesse sido
usada e descartada.
— Tinha um cara — comecei,
desabafando. — Gostei dele durante
grande parte da minha vida. Ele foi
embora há uns anos e acho que ainda
não superei isso. Não como ele, pelo
menos.
— Não acho que seja possível
superar alguém como você, Raven.
Meus lábios se repuxaram num
sorriso fraco. Nick sorriu também. Seus
grandes olhos escuros desceram dos
meus até pararem sobre minha boca. Só
então eu percebi como estávamos perto.
Podia sentir seu braço tocando o meu e
o cheiro amadeirado do seu perfume.
Gostei de como ele me olhou
naquele instante, foi bem diferente de
Stephen. E, por isso, não recuei de
imediato quando Nick aproximou seu
rosto do meu e colou nossas bocas. Ele
segurou minha nuca enquanto me beijava
lentamente, deslizando sua língua sobre
a minha. Já fazia algum tempo que eu
não beijava alguém e Nick fazia aquilo
parecer certo e reconfortante.
Mas não demorou muito até eu
perceber que era uma cilada. Eu não
podia me envolver com alguém daquele
mundo, nem iludir Nick, com a
possibilidade de algo sério surgir entre
nós. Me distanciei bruscamente, com
raiva de mim mesma por ter me deixado
levar pelo momento. Eu estava triste por
causa de Stephen, me sentindo frágil e
solitária.
— Eu não devia ter feito isso
— falei, franzindo a testa. Nick se
empertigou, surpreso.
Ele não teve tempo para falar
nada, porque a porta atrás de nós se
abriu. Ambos nos viramos para olhar
quem havia saído. Era Libby.
Me levantei num ímpeto, mas
Nick permaneceu parado no mesmo
lugar.
— Raven — ela chamou, e só
então percebi que ela estava com um
olhar preocupado, quase desesperado.
— É a Alina, ela precisa de nós.
Balancei a cabeça, rapidamente
sendo invadida pela preocupação
também. Vi de soslaio quando Nick se
levantou, segurando o capacete nas
mãos. Ele olhou para mim por sobre o
ombro antes de caminhar em direção à
sua moto parada no estacionamento, sem
se despedir. Engoli em seco e segui
Libby para dentro do prédio.
Nós subimos os degraus
apressadamente.
— O que aconteceu? —
perguntei, tentando acompanhar seu
ritmo enquanto ela corria escada acima.
A maneira como ela estava
agindo só estava me deixando mais
aflita. Se Alina estivesse passando mal,
Libby deveria ter ligado para a
emergência, não tentado me encontrar.
Pensei nas piores hipóteses e em
nenhuma delas eu tinha alguma utilidade
para ajudar.
— Libby? — Ela não
respondeu. Rapidamente chegamos ao
nosso andar.
Paramos em frente à porta do
nosso dormitório. Com a mão sobre a
maçaneta, Libby me olhou de uma
maneira que realmente me assustou.
Franzi o cenho, mas não fiz outra
pergunta, porque logo em seguida ela
abriu a porta e entrou. Me detive na
soleira, rapidamente encontrando a
figura de Alina encolhida em minha
cama, seu rosto estava virado em
direção à janela.
— Alli? — Libby a chamou
com a voz cautelosa. Alina tinha os
cachos dourados compridos e
desgrenhados caindo ao longo de suas
costas e usava um conjunto de pijamas
azuis que cobriam seu corpo todo.
Quando ela virou o rosto em
nossa direção, precisei me segurar no
batente da porta. Seu rosto pálido e
delicado estava uma bagunça. Um
grande hematoma roxo cobria seu olho
esquerdo. Seu lábio inferior estava
inchado e cortado por um pequeno talho
vermelho. Alina olhou diretamente para
mim com seus olhos azuis melancólicos
e eu senti minha boca secar.
— Foi ele, não foi? Aquele
desgraçado do Lane. — Eu estava quase
gritando. O rosto dela se contorceu de
medo. A loira encolheu-se sobre a cama,
dobrou os joelhos e os abraçou junto ao
corpo.
— Ele não teve culpa, eu… —
Alina estava falando com dificuldade,
como se tivesse chorado tanto que
perdeu a voz. — Eu o provoquei.
Tensionei o maxilar, sendo
arrastada pelas memórias do meu
passado. Então, subitamente, não era
mais Alina ali com o rosto desfigurado,
era minha mãe. Os cabelos longos e
escuros cortados na altura das orelhas
por Joel McKinley. Ele havia feito
aquilo na frente de todos os seus
capangas. Queria humilhá-la e reduzi-la
a pó.
Apesar de eu ter apenas seis ou
sete anos naquela época, me lembrava
perfeitamente de como assisti em
silêncio toda a cena, me esforçando para
não me afogar em lágrimas. Recordei
quando ela, com o rosto marcado por
hematomas, sendo exposta e agredida na
frente de todos aqueles homens, me dizia
o tempo todo para que eu não temesse
por ela.
“Não se preocupe, meu
passarinho, vai ficar tudo bem”, ela
falava enquanto ele cortava cada uma de
suas mechas negras, que caíam aos seus
pés no chão.
Pressionei com mais força o
batente da porta, sentindo um nó crescer
na minha garganta, as lembranças me
invadindo sem moderação. Mais tarde,
naquela noite, eu me ajoelhara atrás dela
sobre o colchão da cama de seu quarto e
passara meus dedos lânguidos pelos fios
curtos e disformes do seu cabelo.
"Eu mereci isso, meu amor, por
tê-lo desobedecido."
Eu tentei entender aquilo,
contudo quanto mais eu crescia e a via
apanhando por coisas como não lavar
um copo da maneira como Joel achava
que deveria ser lavado, mais eu
percebia que não era culpa dela. Nunca
foi culpa da minha mãe e também não
era culpa de Alina.
— Você precisa denunciá-lo —
falei, com a voz mais dura do que
pretendia. — Olhe pra você, Alina, ele
não pode sair impune por isso!
— Raven tem razão, Alli. Você
não pode se submeter a isso. Ele é um
crápula. — Libby me apoiou, mas Alina
parecia irredutível. Ela permanecia com
os olhos tristes, implorando ajuda.
— Não quero que ele fique
encrencado.
Franzi o cenho.
— Encrencado? Ele deve mofar
atrás das grades da cadeia!
Alina balançou a cabeça,
segurando suas pernas com mais força.
Olhei para Libby, tentando descobrir o
que deveria fazer. Astrid ficou com Joel
por mais de dez anos e só foi embora
porque não conseguia mais drogas por
ali. Porque ele havia a viciado em
metanfetamina e isso a destruiu de
dentro para fora.
Por quanto tempo Alina
continuaria nessa se ficássemos inertes?
As agressões iriam apenas aumentar de
proporção até que algum dia ela iria
parar no hospital — ou no necrotério.
Não esperei nem mais um
segundo antes de me virar e sair dali.
Marchei pelo corredor, ignorando a voz
de Alina, que me chamava desesperada.
Galguei os degraus para fora do
alojamento. Pisava duro enquanto
andava através do estacionamento e
pelas ruas do campus, em direção ao
estádio dos Red Hawks, o time de
futebol americano que Lane Scott
capitaneava.
Não foi difícil encontrá-lo. Ele
estava lá meio, conversando com seu
time. O início da temporada começava
em poucas semanas, então os treinos
deveriam estar ficando mais intensos.
Atravessei o gramado tomada
pela raiva. O rapaz alto e forte, de pele
branca e bronzeada, brilhando a suor,
rapidamente notou minha presença. Ele
se calou, olhando na minha direção, e
cruzou os braços. O resto do time
também prestou a atenção. Mantive o
olhar em Lane enquanto me aproximava
rápido dele. O empurrei agressivamente.
— Você é um maldito covarde!
— disse, empurrando-o de novo.
Lane franziu o cenho, segurando
meus pulsos antes que eu o tocasse
novamente. Ele olhou para seus
jogadores, o rosto rapidamente
adquirindo um semblante irado. Me
puxou bruscamente para longe dali.
Consegui me desvencilhar quando
estávamos quase do outro lado do
campo.
— Eu não sei que merda a
Alina te contou, mas ela tem tendência a
mentir.
Balancei a cabeça, olhando em
seus olhos castanho-escuros. Ele parecia
furioso e, com certeza, conseguia fazer
um belo estrago caso ficasse agressivo.
Lane era grande e forte, tinha o dobro do
tamanho de Alina.
— Você não vai sair impune
dessa — eu disse entredentes. Scott riu
em escárnio, como se nada do que eu
dissesse valesse de algo, o que só me
deixou ainda mais furiosa. Caras como
ele acreditavam estar acima de tudo e de
todos, que podiam se safar de qualquer
coisa. — É melhor anotar essas
palavras: eu vou ferrar com você, Lane
Scott.
— Vai mesmo, garotinha? Por
que não avisa ao juiz Gregory Scott para
preparar uma sentença para mim?
Respirei fundo.
É claro, o pai dele tinha que ser
um maldito juiz.
Lane colocou a mão sobre meus
cabelos, bagunçando-os como se eu
fosse uma criança tola e ingênua. Então,
piscou para mim e se virou, voltando
para o seu time.
Eu havia vivido o bastante para
saber que caras assim não eram
realmente punidos pela lei. Eles se
safavam, porque tinham dinheiro e
influência. Coloquei os cabelos para
trás, impaciente. Em seguida, sem
pensar muito, puxei o celular do bolso e
liguei para a única pessoa que poderia
ser mais poderosa que um juiz.
Suspirei aliviada quando ouvi
sua voz atendendo à chamada.
— Você ainda me deve um
favor, certo?
Okay, então você sai
Por aí quebrando corações
apenas para ver o que há
dentro deles
Você já parou para pensar que
Eu realmente preciso do meu
Para continuar viva?
Lyin King - Jhené Aiko
Eu caminhava pelo campus em
direção ao alojamento. A tarde não
havia sido muito produtiva. Eu tentei
fazer um estudo de paisagens no meu
caderno de desenhos, mas minha cabeça
estava um turbilhão, o que tornava
impossível me concentrar. Tudo o que
saiu sobre o papel foram riscos
disformes, nada realmente relevante.
Além disso, precisei interromper o
estudo, visto que meu turno no
Pandemônio começaria em breve, o que
talvez servisse para me manter distraída
e ocupada.
Assim que atravessei a rua da
biblioteca, ouvi meu nome ser chamado
por uma voz masculina. Harvey estava
em suas roupas de corrida, vindo em
minha direção. Respirei fundo e esperei
que me alcançasse. Não nos vimos muito
depois da festa, e eu não tinha planos de
mudar isso, considerando que ele era o
melhor amigo de Lane Scott.
— Raven, o que aconteceu? —
perguntou ao se aproximar. Me analisou
dos pés à cabeça, como se estivesse
procurando alguma coisa em minha
aparência. — Estão dizendo por aí que
você dormiu com Lane e depois surtou.
Meu semblante se fechou.
É claro que aquele canalha
havia achado uma maneira de se
justificar diante do seu time. Logo a
fofoca se espalhou.
Bufei, incrédula.
— Seu amigo é um agressor,
Harvey, foi isso o que aconteceu. — Ele
franziu o cenho, como se eu tivesse
acabado de dizer algo absurdo.
— Do que está falando?
Revirei os olhos.
— O garoto de ouro, capitão do
time de futebol, Lane Scott, gosta de
bater em mulheres! — Meu tom de voz
havia aumentado. Falei de maneira mais
clara possível, para que ele pudesse
absorver a informação.
Minha paciência estava por um
fio. Lane iria tentar fazer parecer como
se Alina e eu fôssemos loucas e todos os
amigos deles acreditariam em suas
mentiras. Talvez por isso Alina não
quisesse expô-lo. No fundo ela já sabia
que iria sair dessa história como a
culpada e, agora, era provável que eu
tivesse piorado toda a situação ao invés
de ajudar.
— Raven, você não sabe do
que está falando. Essa é uma acusação
muito grave. Você tem alguma prova
disso, por acaso?
Meu rosto se retorceu em asco
e logo dei um passo para trás.
— Além dos hematomas no
corpo da namorada dele?
— Deve ter sido apenas um mal
entendido.
Eu ri, porque aquilo era um
clássico. Ele faria todas as manobras
possíveis para justificar e defender o
amigo.
— Claro, é claro. — Balancei
a cabeça. Só de pensar que eu quase
havia beijado cara, sentia vontade de
vomitar. — Você me dá nojo. Fique
longe de mim.
Dei mais alguns passos para
trás, mas Harvey não parecia querer
deixar pra lá. Ele me seguiu.
— Espera, Raven, não precisa
deixar isso estragar o que há entre nós.
Levantei uma sobrancelha.
Não pude evitar de rir.
— Não há porra nenhuma entre
nós, Harvey, você está louco? — Fiz
menção de me virar, mas ele segurou
meu braço. Olhei para seu toque
apertado ao redor da minha pele antes
de encará-lo. — Se você preza pelas
suas bolas, é melhor me soltar agora.
Eu não deixaria nenhum homem
falar comigo daquela maneira. Não
deixaria nenhum homem me tratar como
eles costumavam tratar minha mãe.
Ele deve ter visto em meus
olhos que eu estava falando sério,
porque soltou meu braço no mesmo
instante, dando um passo para trás.
— Desculpe — murmurou,
parecendo envergonhado.
— Não toque em mim de novo
— adverti, praticamente rosnando.
Em seguida, antes mesmo que
eu pudesse ver, senti alguém se
aproximar atrás de mim. Harvey
levantou a cabeça para olhar e não
demorou para que engolisse em seco.
Ele ficou pálido como se estivesse
diante da própria morte.
— Há algum problema aqui?
Sua voz era grave e rouca, mas
controlada. Meu corpo inteiro se
arrepiou, como se uma descarga elétrica
tivesse percorrido minha coluna. Cruzei
os braços e Harvey se endireitou.
— Não, nenhum — respondeu
ele, com a voz mansa e trêmula feito um
filhote acanhado.
Patético.
— Eu não estava falando com
você. — Hades deu a volta e parou ao
meu lado. Seus olhos desceram até os
meus e ele me fitou, me inspecionando.
— Está tudo bem, amor?
Quando nossos olhares se
encontraram, quase fiquei extasiada pela
intensidade de suas íris. Os olhos de
Hades Wrath eram fascinantes. Eram tão
misteriosos, mas, ao mesmo tempo,
pareciam querer dizer algo. Era como se
ele lesse minha mente e trouxesse todas
as respostas que eu precisava bem ali,
em seus orbes profundamente noturnos.
Pisquei algumas vezes,
voltando à realidade, e pigarreei.
— Está, sim — assenti
positivamente. — O babaca já estava
indo embora.
Acenei com a cabeça na
direção de Harvey. Os lábios de Hades
se repuxaram num sorriso. Ele, então,
colocou a mão espalmada na base das
minhas costas enquanto caminhávamos
para longe. Antes de nos distanciarmos
completamente, olhei para trás e vi
Harvey nos acompanhando com o olhar,
enquanto permanecia parado com o
rosto em interrogação.
— Eu estava lidando com a
situação, não precisava que você
bancasse o herói em armadura reluzente
— reclamei.
Hades, mesmo após recolher
sua mão de volta para o bolso da
jaqueta, não se afastou. Caminhamos
lado a lado devagar, perto o suficiente
para que eu pudesse me questionar a
respeito da fragrância de seu perfume.
Precisava levantar a cabeça para olhar
em seu rosto, devido à nossa diferença
de altura.
— Acredite, amor, eu sei que
você não precisa ser salva e não há algo
do qual eu esteja mais distante do que
um príncipe encantado — falou, com
certo divertimento em sua voz. — Mas
intimidar vermes desprezíveis como
aquele cara é meu passatempo preferido.
É claro que ele sabia do efeito
que causava nas pessoas. Hades seria
intimidador por si só, mesmo se ninguém
soubesse que ele era líder da gangue que
comandava todos os negócios ilegais em
Carmine. Sua aparência já era
arrasadora. Os olhos sombrios, as
tatuagens, o modo como se vestia e até
mesmo a maneira como ele andava e
falava. Tudo em Hades Wrath irradiava
perigo.
Seu nome já dizia tudo. Ele era
a fúria do deus do submundo.
— Obrigada por aceitar me
ajudar na situação com o Scott — mudei
de assunto.
— Pareceu pessoal pra você.
Mordi meu lábio inferior,
desviando o olhar para o caminho à
minha frente e apertei o caderno de
desenhos contra meu corpo. Era como se
eu não pudesse esconder nada dele e eu
odiava aquilo. Odiava me sentir exposta
a Hades. Ele conhecia meu segredo, e
agora parecia que havia criado um mapa
sobre mim. A todo instante, seus olhos
me liam e não havia onde eu pudesse me
esconder. Ele tinha vantagem, sabia
sobre meu passado. E, embora eu
soubesse um pouco sobre Hades, ele
ainda era uma incógnita para mim.
— A relação de Astrid e Joel
não era das mais saudáveis —
expliquei, apreensiva. Com certeza,
aquilo não deveria ser novidade para
ele. Se ele conhecia bem o submundo do
crime, sabia que coisas assim eram
comuns.
Senti seu olhar queimando
sobre mim, mas não o fitei de volta.
— Deve ter sido um inferno —
disse, a voz pesada e sombria me
fazendo lembrar sobre as histórias
acerca de seu pai. — Ele fazia isso com
você também?
Balancei a cabeça.
— Eu fugia. — Dei de ombros.
— Era pequena e franzina, conseguia me
esconder nos lugares mais improváveis.
Depois de um tempo, Joel perdia o
interesse.
Hades sorriu.
— Garota esperta — soprou,
com certo orgulho em sua voz. Depois,
ficamos algum tempo em silêncio. —
Você nunca quis vingança? — Aquela
palavra me fez olhá-lo. — Sei o maldito
abutre que McKinley é. Ele mereceria
que você o fizesse pagar.
Não havia muito o que eu
pudesse fazer. Denunciá-lo à polícia
estava fora de cogitação. McKinley
deixara isso muito claro.
Balancei a cabeça.
— Sempre quis distância disso
tudo. Além do mais, não sei o que uma
garota poderia fazer contra o chefe do
tráfico do Texas.
— Não se subestime, amor.
Respirei fundo, alguma coisa
desconhecida tremia dentro de mim
quando ele me chamava daquela
maneira.
Pigarreei.
— Como vai conseguir ferrar o
juiz Scott?
Hades deu de ombros, como se
fosse tão fácil quanto tirar doces de
crianças. Percebi pelo seu olhar que ele
notara como eu sempre mudava de
assunto quando sentia que estava me
abrindo demais.
— Cães famintos jamais são
leais, Raven. E é exatamente isso o que
ele é. Um juiz corrupto de merda, que
decide a favor de quem lhe paga melhor.
Está completamente sujo.
Não me surpreendia. Alguém
como Lane com certeza havia aprendido
com outra pessoa a como ser um ser
humano desprezível, que acreditava
estar acima da lei. Ele deveria ser o
retrato perverso do seu pai.
Será que o mesmo acontecia
com os Wrath? Hades era como
Frederik?
Interrompendo nossa conversa
e os meus pensamentos, uma limusine
preta e reluzente estacionou ao nosso
lado na rua. Franzi o cenho, observando
curiosa. Hades praguejou e, logo em
seguida, o motorista desceu e contornou
o veículo para abrir a porta de trás.
Primeiro, vi a bengala preta
com o punho de prata brilhante no
formato da cabeça de uma serpente. A
mão que a segurava estava coberta por
uma luva. Eu o reconheci quando ele
saiu do carro, vestido num sobretudo
grosso demais para o clima quente do
sul. Os cabelos grisalhos perfeitamente
penteados para trás. O rosto frio feito
uma rocha.
Não tive dúvidas de quem ele
era.
Frederik Wrath, em toda sua
arrogância sobre sapatos de couro
importados e roupas caríssimas. De
dentro do carro saíram ainda dois
homens grandes — enormes — de terno.
Notei as armas em suas cinturas e logo
soube que eram seus seguranças.
— Pai? O que está fazendo
aqui?
Hades tinha a voz dura e o
corpo rígido ao meu lado. Sua
movimentação foi quase imperceptível,
mas eu notei — e tenho certeza que seu
pai também — quando ele se colocou à
minha frente, escondendo-me atrás de
seu corpo.
— Hades. — A voz de
Frederik era tão assustadora quanto sua
aparência. Ele se assemelhava muito a
um vampiro. Um corpo frio e
impenetrável, sem alma ou sentimentos.
Seus olhos escuros encontraram os meus
rapidamente e ele me fitou com
curiosidade. — Vim resolver alguns
assuntos pendentes na Sociedade
Histórica de Carmine. Não vai me
apresentar a essa bela garota?
Vi o pomo de Adão de Hades
se mexer quando ele engoliu em seco.
Paralisei atrás dele, nervosa com a
possibilidade de seu pai saber da minha
existência. Ainda assim, eu não podia
me dar ao luxo de demonstrar
intimidação ou medo em minha voz ou
no meu semblante, portanto, me
endireitei e dei um passo à frente, me
postando ao lado de Hades.
— Sou Raven. Raven Clarke.
— Eu havia dito aquele sobrenome de
propósito, esperando uma reação. O
semblante de Frederik permaneceu
impassível, contudo.
— Belo nome, senhorita
Clarke. — Ele deu um sorriso quase
imperceptível antes de olhar para Hades
novamente. — Deveria convidá-la à sua
festa de aniversário, filho.
Diante do silêncio que se
instalou após sua fala, ele apenas acenou
com a cabeça em nossa direção, se
despedindo antes de andar rumo ao
prédio com enormes janelas de vidro.
Foi seguido de perto por seus
seguranças armados. Passei as mãos
sobre os braços quando senti um
calafrio.
— Ele sabe sobre mim? —
perguntei, virando-me para Hades. Ele
tinha o maxilar tenso, os olhos ainda
estreitos e fuzilando a porta através da
qual seu pai havia sumido.
— Não, acredito que não. —
Nós voltamos a caminhar.
Sua resposta me deixou muito
aliviada.

Eu coloquei a bandeja prateada


sobre o balcão do bar. Fiona estava lá
atrás, com a usual expressão de tédio no
rosto. Ela fazia um drink para uma
garota de cabelo verde sentada ali no
bar com mais duas amigas. Os cabelos
escuros e curtos estavam bagunçados de
um jeito charmoso. Ela era muito bonita,
com os olhos verdes se destacando sob
a maquiagem pesada. E também era
muito ágil em seu trabalho com as
bebidas. A prática havia lhe feito ser
uma ótima bartender. E ainda era parte
da gangue do Pandemônio, o que me
deixava realmente intrigada.
Indo contra tudo aquilo que eu
planejara, estava me aproximando
daquele mundo de novo. Isso era
perceptível. Estava curiosa, para não
dizer fascinada, sobre os irmãos Wrath e
o Pandemônio. Queria saber mais sobre
eles, suas histórias, seus motivos.
Me debrucei sobre o balcão,
passando a ponta dos dedos pelos sulcos
da madeira. Assim que Fiona entregou
os coquetéis, secou as mãos e capturou
meu olhar. Ela sabia que eu queria lhe
fazer perguntas. De alguma maneira, ela
sempre sabia.
— Não é estranho? —
perguntei. — Fazer parte de uma
gangue?
Fiona deu de ombros, cruzando
as mãos sobre o balcão. As unhas curtas
estavam sempre pintadas de preto, o
esmalte um pouco descascado. Os dedos
se estendiam lânguidos e pálidos em
suas mãos pequenas. Ela era muito
magra, o que fazia suas maçãs do rosto
saltarem, bem como os ossos da
clavícula, o que lhe dava uma aparência
quase fantasmagórica.
— Não. Alguém tem que ficar
de olho naqueles garotos irresponsáveis.
Sorri. Havia carinho na
maneira como ela falava sobre eles.
— Não quis me contar sobre a
gangue no começo. Por quê?
Fiona bagunçou os fios
castanhos cortados de maneira irregular
sobre sua cabeça. As laterais eram
levemente raspadas, o que ressaltava os
diversos piercings prateados que
enfeitavam suas orelhas.
— Confiança é o que mantém o
Pandemônio unido e forte, mas essa é
uma vida que escolhemos. É brutal e
perigoso, não é fácil. Não há glamour na
violência — falou, antes de começar a
preparar alguns drinks. — As garçonetes
antes de você foram seduzidas pela
ideia que tinham sobre o Pandemônio,
sobre Hades. — Eu podia imaginar isso
claramente. — Quando a fantasia foi
destruída, não foi fácil para elas.
— Bem, ele foi um babaca por
iludi-las, em primeiro lugar — respondi.
Fiona deu de ombros, seu olhar dizendo
que havia mais sobre aquilo. Mais do
que ela estava disposta a me contar,
provavelmente. Pigarreei. — Como
você veio parar aqui? E, se é tão duro,
por que continua?
Fiona soltou um suspiro
nostálgico, como se estivesse sendo
invadida por memórias de seu passado.
Ela levantou a cabeça para mim.
— Eu era uma órfã sem teto,
batendo carteiras na rua pra sobreviver.
Meu pai era um Dagger. Ele e minha
mãe foram assassinados há muito tempo.
Depois disso, fiquei sozinha. Garrett
Voich não moveu um músculo para me
ajudar. Um dia, tentei roubar a carteira e
o celular de Hades. Eu quase consegui,
mas o cretino era esperto demais e
percebeu o que eu tinha feito. Mais
tarde, quando voltei para o beco onde eu
costumava dormir, ele estava lá
esperando. Hades me encontrou e não
estava bravo como eu imaginava, apenas
curioso. Nos tornamos amigos e ele
conseguiu que eu trabalhasse no
Pandemônio e morasse aqui nos fundos.
Fiona falava e trabalhava,
colocando as bebidas sobre a bandeja, e
eu não conseguia desviar os olhos
enquanto ouvia sua história. Tudo aquilo
era novo e desconhecido para mim.
Agora aqueles jovens pareciam bem
menos como criminosos e mais como
pessoas normais.
— Sou leal a Hades e ao
Pandemônio. Eles são minha família e,
apesar do perigo que é ter um alvo em
minha testa, eu nunca daria as costas a
eles.
O que eles faziam era perigoso,
eu sabia bem disso. Mesmo que Hades
se achasse intocável pelo seu dinheiro e
o poder de seu sobrenome, minha
opinião não mudara. Caras como ele
ascendem e caem o tempo todo. Eles
tiveram o controle da cidade até agora,
mas os Daggers mostraram estar
dispostos a acabar com isso. E mesmo
que eles não conseguissem, outros
surgiriam logo depois para desafiar o
Pandemônio. Quanto mais eles
continuassem naquela vida violenta,
mais se arriscavam, e um dia sua sorte
acabaria.
Passei alguns minutos pensando
naquilo, tanto que não percebi quando o
telefone de Fiona tocou. Ela me chamou
alguns segundos depois, trazendo-me de
volta dos meus devaneios.
— Raven, Hades te quer lá em
baixo.
Pisquei, um pouco incrédula.
No cassino clandestino do
Pandemônio?
— O quê? Por quê?
— Pode perguntar a ele
pessoalmente quando descer.
Ele disse: Oh, querida, você
sabe que nós vamos ser lendários
Eu sou um rei e você é uma
rainha e nós vamos deslizar pelo céu
Eu sei que você quer ir pro
céu, mas você é humano hoje à noite
Mas você se sente como um
jovem deus?
Young God - Halsey
Fiona empurrou uma bandeja
cheia de bebidas para mim antes de
voltar a atenção para um cliente recém
chegado. Não disse mais nada.
Suspirei, segurando o objeto firme em
minhas mãos enquanto me direcionava
ao porão, sem parar de pensar nas
possibilidades que fariam Hades me
chamar até lá.
A escada, assim como o salão
lá embaixo, era iluminada por luzes
amareladas. As paredes eram de
madeira. O chão era um carpete
vermelho, contrastando com as mesas
pretas e circulares espalhadas pelo
lugar. Havia muitas pessoas ali sentadas,
jogando. Outros apenas conversavam em
pé, sussurrando como se trocassem
segredos importantes.
Ao caminhar por entre as
mesas, observei como eles estavam
sérios com as cartas nas mãos, alguns
pegavam as bebidas na minha bandeja.
Uma mulher com um vestido cor-de-rosa
curto e apertado, e um cigarro entre os
dedos, pegou o Manhattan da bandeja.
Me analisou dos pés à cabeça antes de
sentar em sua cadeira e voltar para seu
jogo.
Em outra mesa localizei Selina.
Os cabelos vermelhos presos no topo de
sua cabeça tinham a mesma cor de seu
batom. O tomara que caia preto expunha
seus ombros alvos e pálidos. Ela me
encarava por cima do leque de cartas em
sua mão. Os olhos de felino seguiam
meus movimentos de longe.
Quando virei o rosto, encontrei
Hades. Ele também me encarava,
encostado contra um pilar de madeira,
bebendo uma dose de uísque. Coloquei a
bandeja já vazia sob um braço e levantei
o queixo, andando em sua direção.
Ele usava uma camisa preta
com os dois primeiros botões soltos e as
mangas arregaçadas, expondo as
tatuagens pretas sobre sua pele clara.
Mordi o interior da bochecha, ignorando
como o meu corpo se arrepiava sob seu
olhar.
— Me chamou? — Me segurei
para não desviar o olhar de seu rosto.
Ele abaixou o copo, colocando-o sobre
o aparador ao seu lado. Seus lábios se
repuxaram num sorriso de canto.
— O que você vê quando os
olha? — Hades perguntou, indicando os
jogadores com sua cabeça. Me virei,
fitando as pessoas ao redor das mesas e
dei de ombro.
— Pessoas que gostam de
jogar.
Eu havia visto algumas roletas
do outro lado do porão, e uma mesa de
bacará [iv] também. Havia muitos jogos
ali embaixo. Pareciam os mesmos
encontrados nos grandes cassinos de
Nevada.
— Nenhum deles consegue
resistir a um bom jogo de azar. Eles
entregam seu dinheiro de bom grado e
ficam à mercê da sorte. — Hades
colocou as mãos nos bolsos de sua
calça. — Um dia eles ganham e acham
que estão no topo, no dia seguinte
perdem tudo. É sempre assim. — Ele
olhou para mim e sorriu. — Exceto por
mim, é claro. Eu sempre venço.
Revirei os olhos, cruzando os
braços.
— Então você os engana?
Permite que pensem que podem ganhar e
então tira todo seu dinheiro?
— Ninguém vence a banca,
amor, essa é a regra dos cassinos. E por
aqui, eu sou a banca. — Hades piscou
um olho para mim.
Olhei novamente para as mesas.
Eu sabia como aqueles jogos
funcionavam. Nunca era realmente
lucrativo para os jogadores, o cassino
levava tudo. Hades parecia se certificar
disso no Pandemônio.
— Tomara que eu esteja
presente quando vencerem você.
Ele riu, atraindo meu olhar para
si. Passou uma mão sobre seu cabelo,
colocando-o para trás. Notei os diversos
anéis que enfeitavam seus dedos.
— Eu poderia te ensinar a
vencer de mim. Nunca encontrei um
jogador acima do meu nível até agora,
mas você poderia ser. — De alguma
forma, aquelas palavras pareciam ter
dupla conotação. Talvez fosse a maneira
como sua voz rouca soava, cheia de
intenções escondidas.
Levantei uma sobrancelha.
Connor, me ensinara a jogar o Texas
Hold'em[v]. Nunca treinei muito e,
embora Kamps fosse muito bom, eu
duvidava que poderia vencer Hades.
Algo me dizia que ele era realmente o
melhor jogador de pôquer na sala.
— Por quê? — perguntei. Eu
não estava realmente interessada em
jogar com ele — apesar de que vencê-lo
certamente massagearia meu ego.
— No pôquer nós jogamos com
as pessoas, não com as cartas. É preciso
saber ler os outros jogadores, prever
suas intenções e pensamentos. E,
obviamente, é preciso saber blefar.
Levantei uma sobrancelha,
curiosa.
— Acha que eu tenho essas
características?
— Acho que você pode
qualquer coisa que quiser — falou,
dando um passo em minha direção.
Ergui meus olhos para ele, sentindo meu
coração apertar com a ansiedade da
aproximação. — Acho que você nunca
mais deveria se sentir fraca ou
impotente.
Abri a boca para responder,
mas não houve tempo. Os olhos de
Wrath se desviaram do meu rosto para
algo atrás de mim, no qual se fixaram
por longos segundos. Me virei para
saber o que ele tanto encarava. Havia
um homem na mesa do Blackjack[vi].
Cabelos escuros e encaracolados. Usava
uma camisa branca comum. De longe,
parecia extremamente ordinário, mas,
embora eu não pudesse ver seu rosto de
onde estava, um sentimento de
familiaridade me acometeu.
Sem dizer nada, Hades foi até a
mesa do homem, que levantou a cabeça
para encará-lo. Ele tirou do bolso uma
carta semelhante à de um baralho
comum. Esta, entretanto, era vermelha e
metálica e foi colocada na mesa bem à
frente do homem de cabelos cacheados.
Alguém exclamou assustado ao
ver aquilo e logo todas as cabeças do
cassino se viraram naquela direção.
Franzi o cenho, sem entender nada.
Poucos segundos depois, Wade
apareceu, trajado completamente de
preto. Alto e forte, intimidador pra
cacete, ele colocou sua mão sobre o
ombro do homem, que se levantou num
pulo.
Wade não precisou obrigá-lo. O
homem o seguiu de bom grado para uma
porta de metal nos fundos do cassino.
Quando se virou, me dei conta porque
aquele jogador tinha um ar familiar. Eu
definitivamente conhecia aquele homem.
Connor Kamps, o braço direito
de Joel McKinley.
Meu corpo estremeceu de medo
e eu me encolhi, como se aquilo fosse
me tornar invisível caso seus olhos
pousassem sobre mim. Isso não
aconteceu, entretanto, e logo os dois
sumiram através da porta. Hades os
seguiu, completamente no controle da
situação, apesar da reação que havia
causado nos outros jogadores. Sem
pensar muito, fui atrás dele, andando
rápido em seu encalço.
— O que aconteceu? —
perguntei quando ele alcançou a porta,
abrindo-a.
— Ele estava contando. — Foi
a única resposta de Hades antes de ele
sair do cassino.
— Contando? — indaguei, mas
logo minhas sobrancelhas se levantaram
quando me dei conta do que ele estava
falando.
Aquilo era algo que Connor
fazia a mando de Joel em Las Vegas.
Contava cartas no Blackjack, causando
desvantagem ao cassino e levando tudo.
Dinheiro rápido e fácil. Quase sempre
se safava. Aparentemente, não no
Pandemônio. Mas, afinal, o que diabos
ele fazia ali?
Abri a porta de metal,
revelando uma noite gelada e úmida.
Degraus de pedra me levaram até o beco
atrás do bar, onde estavam os três.
Fiquei próxima à escada, olhando em
silêncio. Wade segurava Connor pelo
ombro.
— Então você gosta de contar
cartas, huh? — Hades perguntou.
Havia certo divertimento em
seu tom de voz, o que me fez questionar
sobre o que ele pretendia fazer com
Kamps. Este, por sua vez, parecia estar
se divertindo tanto quanto Hades. Os
olhos castanhos estavam tranquilos,
quase como se ele quisesse estar ali.
Franzi o cenho.
Um segundo mais tarde, seu
olhar capturou minha presença e o
sorriso em seu rosto aumentou.
— Ora, ora, ora. Raven
McKinley.
Aquela maldita voz familiar me
fez sentir novamente o gosto amargo de
estar ao redor de Joel e seus capangas.
Hades se virou para me olhar. Dei
alguns passos para frente, saindo das
sombras. Antes que eu pudesse pensar
no que dizer, ele se virou para Hades
novamente.
— Me deixem conversar com a
garota antes de vocês começarem seu
show — pediu ele.
Engoli em seco, sem saber o
que fazer. Hades olhou para mim de
novo, procurando uma resposta. Ele e
Wade estavam ali e talvez eu estivesse
me iludindo, mas confiava que eles não
deixariam Connor fazer nada contra
mim. Acenei discretamente para Hades,
afirmando que estava tudo bem. Então,
ele e Wade se afastaram alguns passos e
eu me aproximei.
Kamps era um bom soldado
para Joel. Diferente do meu padrasto,
ele era controlado, frio e manipulador, o
que, definitivamente, me deixava alerta
sobre o motivo da sua presença em
Carmine.
— Então, é o novo bichinho de
estimação do Pandemônio? — Havia
muito desdém em sua voz. Cruzei os
braços e levantei o queixo, sem me
deixar intimidar.
“Acho que você nunca mais
deveria se sentir fraca ou impotente.”
Pisquei, ouvindo a voz de
Hades dentro da minha cabeça.
Certamente, aqueles dois adjetivos me
descreviam perfeitamente em Dallas. Eu
não queria ser mais aquela garota,
entretanto. Eu não queria mais ter medo
de Joel e Connor.
— Estou fugindo, Connor, e
sobrevivendo. Ou pensou que eu
passaria minha vida toda servindo de
capacho pra você e os outros homens de
Joel pisar? Eu não sou Astrid. E com
certeza não vou voltar. Não viva, pelo
menos.
Ele riu.
— Tem ideia da bagunça que
causou ao ir embora? Você pode ser o
trunfo de qualquer um que queira
destruir a máfia de Dallas.
Aquilo era verdade. Por mais
que eu tentasse esquecer ao máximo as
memórias da máfia de Joel, eu tinha um
mapa sobre ela em minha cabeça.
Conhecia seu modus operandi, suas
vantagens e fraquezas. Com certeza,
algum rival de McKinley poderia tentar
me usar para destruí-lo. Inclusive
Frederik Wrath.
— Duvido ele vir me pegar
aqui e desafiar os Wrath. Mas e você, só
está aqui para irritá-los?
Connor levantou a manga
esquerda de sua camisa, expondo seu
antebraço e a tatuagem sobre ele. Uma
adaga com o nome “Rage” escrito sobre
a lâmina. Franzi o cenho, mas logo meu
semblante foi tomado pela compreensão.
— Você é um Dagger?
Dei um passo para trás. A
acusação deixou minha boca dormente,
como se a palavra fosse envenenada.
Senti Hades se movendo atrás de mim, e
logo ele se postou ao meu lado para,
fitando a tatuagem também.
— Trabalha para McKinley e
para Voich? — Claro que ele havia
escutado toda a conversa. — O que
estava fazendo aqui essa noite? Me
espionando?
Connor riu. Se isso fosse um
jogo de xadrez, provavelmente, ele
estava muitos movimentos à nossa
frente. Era quase como se já soubesse o
que iríamos fazer, como agiríamos.
— Eles queriam te dar um
aviso — respondeu, o tom de voz
inegavelmente ameaçador.
Eles? Garrett e McKinley
estavam trabalhando juntos?
Hades balançou a cabeça.
— Eles te mandaram aqui numa
missão suicida, sabe disso, não é?
Kamps não se abalou. Sua
arrogância era palpável. Eles achavam
que já haviam vencido.
— Caramba, todos estavam
certos. Você se acha mesmo muito
inteligente. — Connor balançou a
cabeça. — Nesse exato momento, os
Daggers estão no seu Círculo. Eles vão
criar influência sobre lá, vão tomar seus
homens, suas drogas. Logo o Círculo
não será mais seu. Então eles vão partir
para o… — Ele foi interrompido pelo
apito de seu celular. Seu semblante
fechou quando ele leu algo estampado na
tela.
Hades sorriu, provavelmente
sabendo do que se tratava a mensagem.
Ele tomou o controle da situação.
— Sabe de uma coisa? Você
não está mais em Dallas, cowboy. —
Hades deu um passo na direção de
Connor, que apesar de ser mais velho,
perto de Wrath parecia muito mais
inexperiente. — Essa cidade é minha, e
você está sendo um tolo se acha que as
pessoas que trabalham para mim não são
leais. Ninguém aqui vai dar nada de
bandeja para os fodidos Daggers. Se
vocês querem algo, vão ter que lutar por
isso.
Eu não sabia quando e como a
aliança entre Dallas e os Daggers havia
se formado, mas com certeza o ódio que
ambos nutriam pelos Wrath era o
catalisador. Eles queriam Carmine e,
para falar a verdade, eu tinha medo de
que conseguissem.
— Só me diga quando e onde
devemos vencer de você e, acredite,
estaremos lá. — Não sabia se o excesso
de confiança na voz de Kamps era sua já
conhecida arrogância ou se ele
realmente já tinha sua vitória garantida.
— Sexta-feira, às quinze horas,
no Círculo. Traga-me seu melhor
corredor. — Hades também parecia
confiante.
— Estarei lá. Eu vou correr.
— Como quiser.
Hades fez menção de se virar,
colocando a mão na base das minhas
costas para nos distanciarmos dele.
Entretanto, Connor não se deu por
satisfeito.
— Eu quero correr contra ela.
Senti o corpo de Hades ficar
rígido ao meu lado.
— Não. — Sua voz era dura e
impassível.
Minha boca ficou seca e minhas
mãos, tensas.
— Por quê? Não confia em na
garota para defender seu território?
Hades me fitou pensativo, os
olhos dizendo mais do que ele poderia
expressar em palavras. Queria implorar
a ele para que não fizesse isso. Ele não
seria tolo o suficiente para confiar sua
cidade, seu poder, a mim, seria? Abaixei
os olhos para seus lábios quando ele
sussurrou: “você consegue”.
Balancei a cabeça, um pouco
desesperada.
Ele havia enlouquecido?
— Vejo vocês na sexta — disse
Connor antes de se virar e sumir pela
rua.
Seu tom de voz novamente soou
demasiadamente confiante. Dessa vez,
entretanto, eu soube que não era apenas
arrogância. Ele sabia que iria vencer. Eu
era a garantia da derrota de Hades.
Tudo o que fazemos é errado
Estamos presos em uma malha
de mentiras
Escalar significa sair
Eu me sinto incomodado
porque estou aqui
Everything We Do Is Wrong –
Tuvaband
O grito de um Alec furioso
ressoou pelo ambiente:
— Desgraçados malditos!
Franzi o cenho do outro lado da
sala, observando-o arremessar na
parede uma almofada vermelha do sofá.
Estávamos no escritório do
Pandemônio e, honestamente, eu não
fazia ideia do motivo de estar presente
no que parecia ser a reunião de
emergência da gangue de Hades —
nenhum motivo, é claro, além de ter sido
convocada para uma corrida
automobilística para defender o
território dos criminosos para quem eu
trabalhava.
Por si só, essa era a situação
mais estranha na qual eu poderia me
imaginar. Ali também estavam presentes
Selina, Khalil, Alec e Wade. Enquanto
Fiona fechava o bar e terminava de
arrumar tudo, Hades resolvera contar
aos outros sobre a aliança entre os
Dallas e os Daggers.
Permaneci em silêncio durante
toda a discussão, sentada com as pernas
cruzadas na poltrona localizada no canto
mais afastado. Talvez eu não tivesse
absorvido todas as informações, mas
estar numa situação perigosa não era
realmente algo novo para mim. Eu não
estava assustada. O perigo e a
adrenalina eram velhos conhecidos
meus. Além disso, embora trabalhar
para o Pandemônio me colocasse em
risco, também me protegia das garras de
Joel e Connor.
Talvez eu pudesse ter tomado
alguma outra decisão sensata no
passado, algo que evitasse minha
aproximação com aquela gangue, mas
não havia mais nada que eu pudesse
fazer quanto a isso.
Não havia mais como fugir, eu
precisava enfrentar aquilo,
principalmente agora que Connor e Joel
estavam envolvidos na situação. Afinal,
meu paradeiro não era mais um mistério
para meus algozes. Só podia contar com
o Pandemônio para me ajudar a ficar
longe de suas garras.
Então, ao que parecia, eu teria
que lidar com o grande monstro que
aterrorizou minha infância estando tão
perto de mim novamente. E entre ser
levada de volta a Dallas e ajudar o
Pandemônio a vencer aquela batalha, eu
preferia a segunda opção. Embora não
soubesse muito sobre a gangue de
Hades, duvidava que eles tivessem
menos escrúpulos que Joel McKinley e
Connor Kamps. Ninguém era pior que
eles.
Aqueles minutos em silêncio,
sob a gritaria do escritório, me fez
pensar no que Hades havia dito sobre eu
querer ou não vingança. Durante grande
parte da minha vida, testemunhei vários
horrores em Dallas, o suficiente para
desejar a súbita morte de Joel todas as
noites. Mesmo que não pudesse
diretamente fazer algo contra ele, agora
eu podia ajudar quem tinha o poder para
isso. Hades e o Pandemônio eram a
única ameaça real ao Joel. Os únicos
que poderiam fazê-lo cair. Se, para
acabar com ele, eu precisasse ajudá-los,
eu o faria. Sem nem pensar duas vezes.
Voltei a prestar atenção na
discussão. Selina falava ao mesmo
tempo que Alec e, enquanto Khalil
tentava acalmar os ânimos, Hades
permanecia em silêncio. Encostado
contra a borda da sua escrivaninha de
ébano, ele tinha os braços cruzados
sobre o peito e o semblante que
denunciava o quanto sua mente estava
distante. Seus olhos escuros estavam
vazios. Era a primeira vez que eu o via
realmente preocupado. Respirei fundo
antes de me levantar.
— Então, o que eu preciso
fazer para ganhar?
E, rápido assim, atraí todos
aqueles pares de olhos para mim. O
silêncio absoluto se estendeu por longos
segundos no escritório enquanto eles me
encaravam. Meu olhar, entretanto, estava
em Hades, e no sorriso discreto que ele
exibia.
— Você não acha que vai
realmente correr no Círculo, não é? —
Selina perguntou, colocando as mãos na
cintura e atraindo minha atenção para si.
Suspirei.
— Eu estou errada ou foi essa a
exigência de Kamps? — Levantei uma
sobrancelha.
Selina sorriu, dando um passo
em minha direção.
— Selina… — advertiu Khalil.
— Não confiamos em você —
continuou a ruiva, ameaçadoramente. —
Você pode estar trabalhando para
McKinley ou para os Daggers. Todos
vimos você com o Hive no Círculo
semana passada.
Balancei a cabeça, incrédula.
— Não há ninguém que odeie
mais Joel McKinley do que eu — falei
sem vacilar, também dando um passo em
sua direção. — Ele destruiu a vida da
minha mãe e teria destruído a minha
também se eu não tivesse fugido de
Dallas. Nick me ajudou. Eu estava
perdida, andando há horas no deserto
quando ele me encontrou e me tirou de
lá. Então, Selina, eu sugiro que você não
fale sobre coisas das quais não entende.
Ela estreitou seus olhos verde-
oliva para mim, mas não respondeu.
— Puta que pariu! — Alec
exclamou, chocado, e passou as mãos
em seus curtos cabelos castanhos —
Você é a filha de Joel McKinley?!
— Eu era a enteada dele, na
verdade — corrigi.
— Não acredito que esteve
trabalhando como garçonete para nós
durante todo esse tempo.
Todos se calaram de novo.
Eu não apenas revelara que já
conhecia Nick antes mesmo de chegar
em Carmine, como também havia
exposto minha ligação com Joel e com a
rede de tráfico de Dallas, o que
praticamente me deixava nas mãos do
Pandemônio.
— Eu confio nela. — Khalil
quebrou o silêncio e eu o fitei, sem
conseguir esconder o sorriso de alívio
que surgiu no meu rosto. — Há algo
sobre o Kamps que poderia nos dar
vantagem sobre ele?
Cruzei os braços, pensando.
Connor Kamps era um estrategista,
controlado e esperto. Ele era bom em
enganar pessoas e havia sido o aliciador
de Joel por anos antes de ter sido
promovido a seu braço direito.
— Não se enganem, Joel pode
estar à frente da máfia do Texas, mas é
Kamps quem controla tudo dos
bastidores. Se não fosse por ele, Joel
não seria ninguém. Connor é um
estrategista nato. É trapaceiro, não joga
limpo — respondi, tensa.
Qualquer tipo de código de
honra que houvesse em gangues como o
Pandemônio, não existia em Dallas. Lá
era um ninho de serpentes e Joel era uma
bomba relógio.
— Ótimo, porque nós também
não. — Hades deu um passo à frente,
sua voz soando pela primeira vez desde
que entramos naquele escritório. —
Raven, você vai ganhar a corrida e eu
vou me certificar disso.
— Você e Connor pareciam
conversar como velhos amigos lá fora
— observou Wade, desconfiado.
Respirei fundo, tentando me
convencer de que aquilo não era uma
insinuação sobre eu estar do lado de
Connor.
— Ele sempre me protegeu —
expliquei. — Não sei o porquê, nem
quero saber. Ele me manteve viva contra
todas as probabilidades. Não estou
dizendo que sou grata a ele, o odeio
pelas coisas que já fez e o que é capaz
de fazer.
Talvez ele tenha sido o homem
que menos temi naquela casa, mas
somente porque ele sempre pareceu
extremamente empenhado em cuidar de
mim. Dentre todos os envolvidos na
máfia de Dallas, era o único que não
representava uma ameaça direta a mim.
Tentei reprimir meu nervosismo
sobre aquela situação. Wade e Selina
não confiavam em mim, desconfiavam
dos meus objetivos, e eu não os culpava
por isso. Afinal, eles mal me conheciam.
Talvez duvidassem da intensidade — e
legitimidade — do repúdio que eu sentia
por Joel.
Hades, contudo, achava que eu
venceria, ele tinha certeza disso. Eu não
sabia dizer se ele era muito tolo para
acreditar tão veemente nisso ou se
também pretendia trapacear.
Alternei meu olhar para os
outros. Wade permanecia no fundo da
sala, os braços cruzados contra o peito e
encostado na parede. Seus olhos escuros
e julgadores não desgrudavam de mim,
quase como se estivesse vigiando meus
movimentos.
— Eu posso lhes contar tudo o
que eu sei sobre Joel e Dallas, mas não
faço a menor ideia de como ele se uniu
aos Daggers.
— Bem — começou Khalil —,
aqueles vira-latas sempre desejaram o
controle do Pandemônio e a sua
influência. Eles achavam que ganhariam
se despertassem o medo nas pessoas.
Eles são realmente letais. Assaltos,
sequestros, incêndios criminosos, nada é
ruim o suficiente para que eles não o
façam.
— Eu já desconfiava que eles
estavam tendo o apoio de alguém fora da
cidade — Hades continuou, pensativo.
— Apesar de não ter imaginado que
McKinley estava por trás disso, faz todo
o sentido. Ele sempre quis romper a
aliança com meu pai e tomar a cidade
para si. Eles foram espertos unindo
forças com alguém que conhece como as
coisas funcionam em Carmine.
— Então, por que sugerir uma
corrida? Acha que isso será o suficiente
para conter os avanços deles? —
perguntei, voltando-me ao Hades. — Se
os Daggers são tão agressivos assim,
quem garante que eles vão aceitar o
resultado? Posso afirmar que Connor
não vai.
— Eles realmente não vão —
concordou Wrath. — Mas duvido que
possam conseguir aliados após você
humilhá-los na frente de todo mundo.
Ele está nos desafiando e vai perder.
Parecerá um tolo para todos da cidade.
Eu realmente esperava que seu
plano funcionasse. Passei a mão sobre a
nuca, me sentindo exausta. Eu precisava
mesmo descansar e pensar um pouco.
Muita coisa havia acontecido naquela
noite e se eu não me preparasse para as
consequências, elas me atropelariam.
— Certo, eu tenho que ir agora
— falei enquanto cruzava o escritório na
direção da porta.
— Eu posso te levar — Hades
sugeriu, mas só de pensar em ter que
dividir o espaço de seu Camaro com ele
novamente, eu sentia uma sensação
esquisita. Coloquei a mão sobre a
maçaneta.
— Não, eu quero andar —
disse, sem olhar para ele. Em seguida,
saí.

George me encarava com seus


olhos verdes e uma feição indecifrável
em seu rosto. Eu precisava desabafar
com alguém e ele era a melhor opção,
visto que conhecia Hades e todos os
outros no Pandemônio. Além disso, eu
gostava dele, o rapaz era um bom
ouvinte. As suas unhas pintadas de preto
tamborilavam sobre a mesa do
refeitório. Os anéis prateados reluzindo
em seus dedos, de repente, me fizeram
lembrar daqueles que Hades costumava
usar.
Eles eram um pouco parecidos,
no fim das contas.
— Então, deixe-me ver se
entendi bem — ele começou a falar,
cruzando os braços sobre a mesa e
estreitando os olhos para mim. — Você
é enteada de um traficante de drogas e
armas do Texas e está fugindo dele? —
Acenei com a cabeça e ele prosseguiu.
— Você era apaixonada pelo filho de um
dos capangas do seu padrasto e ele te
abandonou lá e fugiu para cá? — Dei um
longo suspiro antes de acenar
novamente. — Você vai correr no
Círculo para defender o território de
Hades Wrath?
Passei as mãos sobre os
cabelos e dei um sorriso fraco.
— Parece mesmo maluquice,
não é?
George assobiou, recostando-se
contra a cadeira.
— Pode apostar, Clarke, você é
insana pra cacete. — Ri com a maneira
como ele falou aquilo. — Sempre soube
que você escondia alguma coisa, só não
podia imaginar que era algo horrível
assim.
— Agora que todo o
Pandemônio sabe, eu precisava que
algum amigo, alguém do meu time,
soubesse. Precisava conversar sobre
isso com alguém.
George deu um grande sorriso e
colocou sua mão sobre a minha,
apertando levemente em consolo.
— Fico honrado em ser do seu
time, Raven Clarke. — Eu sorri e ele fez
uma pausa. — Mas, bem, se Hades está
garantindo que você vai vencer, então
acho que você não deve se preocupar
quanto a isso. Também acho que o
Pandemônio vai te proteger dos Daggers
e de Joel.
— Você confia muito nele —
observei. Ele deu de ombros, como se
fosse simples.
— Ele me ajudou quando
assumi minha sexualidade aos meus
pais. Apesar de fazer coisas
questionáveis, nunca foi sua escolha
entrar pra esse mundo. Frederik o
obrigou.
— Por isso o Pandemônio
trabalha para ele? — George assentiu.
Suspirei, me recostando contra a
cadeira.
— Acho que vou ter que
confiar nele também, suponho.
— Além disso, eu estarei no
Círculo para testemunhar sua vitória.
Escreverei sobre isso para a
posteridade — disse Hale, me fazendo
rir.
E então, meu olhar foi atraído
para Libby e Alina cruzando o refeitório
com bandejas em suas mãos. Era a hora
do almoço e elas se dirigiram para uma
mesa afastada, aos fundos do lugar. A
maquiagem havia feito um bom trabalho
cobrindo as marcas no rosto da loira,
mas ela ainda usava roupas de inverno
para esconder aquelas que estavam
espalhadas por seu corpo.
— Como ela está? — George
perguntou, também olhando para elas, e
eu suspirei.
Eu havia lhe contado sobre o
que acontecera com ela, principalmente
para esclarecer os boatos. O desgraçado
do Lane Scott havia espalhado por aí
que o motivo do término deles foi
porque ele estava dormindo comigo.
Seus colegas de time confirmaram a
história e agora todos estavam olhando
esquisito para mim — não que eu
realmente me importasse com isso.
Eu só me importava com Alina
nessa história. E ela estava muito
magoada por eu ter ido tirar satisfações
com Lane. Depois disso, ele terminou
com ela. Libby havia me dito tudo
aquilo, visto que Alina sequer olhava
em minha direção agora.
— Ela não está falando comigo,
mas sei que não deve estar sendo fácil.
Ele abusou tanto física quanto
psicologicamente dela, criou uma
dependência. Mesmo distante, o canalha
ainda exerce poder e controle sobre ela.
— George me fitou. — Reconheço o
padrão. Era a mesma coisa com minha
mãe e meu padrasto.
— Esse maldito deveria pagar.
— Eles vão — falei, firme, me
referindo aos dois.
— Os jornais estão dizendo que
o pai dele, o juiz Scott, foi suspenso por
tempo indefinido — comentou ele,
atraindo meu olhar.
Hades, ao que parecia, já
estava mexendo seus pauzinhos.
Segurei-me para não sorrir.
— É mesmo? Por quê?
— Alguém denunciou sua
proximidade com o promotor em um dos
casos. E, bem, sua credibilidade está em
xeque agora. Se isso for provado, todas
as suas decisões serão anuladas e ele
pode ir para a cadeia.
Lembrei-me, então, do que
Nick havia me dito aquela noite no
Círculo. Às vezes vingança é justiça.
Talvez nunca descobrissem as coisas
erradas que aquele juiz fazia se não
fosse por Hades. Joel e Lane nunca
seriam punidos se dependesse da lei,
então precisávamos agir fora dela. Não
podíamos deixá-los escapar, eu via isso
agora.
Fui egoísta ao fugir de Joel
apenas desejando me livrar de suas
garras e nunca mais vê-lo, esquecendo
de todas as garotas que nunca
escapariam da sua mansão. Tentei
colocar a culpa de lado durante as
últimas semanas, me convencendo que
não havia nada que eu pudesse fazer
para ajudá-las, mas só estava sendo
covarde.
O som alto de risadas chamou
minha atenção e atraiu meu olhar para a
entrada do refeitório. Trinquei o
maxilar. Lane e seus amigos do time de
futebol, inclusive Harvey, estavam
passando, fazendo questão de deixar
todos ali cientes de sua presença. Fitei a
mesa de Alina, notando como ela estava
apreensiva, com os braços ao redor do
próprio corpo, encolhida contra a
cadeira, como se estivesse tentando
ficar invisível.
— Vamos sair daqui — falei
para George antes de me levantar,
apanhando minha bandeja.
Ele também parecia bem
irritado com a presença do time de
futebol e me seguiu para a saída do
refeitório. Assim que passamos por eles,
entretanto, eu apanhei meu copo de suco
de uva e o entornei na figura patética e
arrogante de Lane.
— Mas que porra! — ele
gritou, assustado, e eu mordi os lábios
quando um sorriso se formou em meu
rosto ao assistir o líquido roxo-escuro
escorrendo por sua pele e manchando o
casaco do time.
— Caramba, Scott, acho que
não vi você parado aí no caminho —
comentei, cínica e sarcástica. — Falha
minha.
Lane ergueu seu olhar feroz em
minha direção e, por um momento,
pensei que ele fosse tentar avançar
sobre mim, mas um de seus colegas de
time pegou em seu braço e o puxou para
longe.
— Vem, cara, não vale a pena.
Sorri e acenei com a mão para
ele, o que só o deixou mais bravo
enquanto andava até uma mesa do outro
lado do refeitório. Olhei para Alina, que
assistia toda a cena com o rosto neutro.
Dei um sorriso reconfortante e uma
piscadela para ela antes de sair dali
acompanhada de George.
— Raven Clarke, quero ser
igual a você quando eu crescer — ele
disse, me fazendo sorrir enquanto
andávamos pelo corredor.
Após algum tempo, meu celular
vibrou no bolso, atraindo minha atenção.
O apanhei e franzi o cenho, olhando a
mensagem destacada na tela.
"Às 16h na Electric. Não se
atrase."
O número era desconhecido,
mas a curiosidade me guiou até a
Electric depois da aula. Eu ainda tinha
algumas horas até o início do meu turno
no Pandemônio, o que me dava uma
brecha para descobrir quem queria me
encontrar ali. Certamente, não era
Stephen, não depois de nossa discussão.
Quando cheguei no galpão, ele
estava com o mesmo movimento de
sempre. Olhei ao redor, procurando
Stephen. Não o encontrei, entretanto.
Nem Nick, que esteve ali da última vez
que o vi. Havia apenas pessoas
treinando, fazendo flexões, levantando
peso, pulando corda. Eu estava prestes a
girar meu corpo sobre os tornozelos e
sair dali quando uma voz rouca soou:
— Você está atrasada.
Meu olhar se prendeu na figura
encostada no ringue no centro do galpão.
Ela era uma mulher negra, de pele
retinta e brilhante, e de meia-idade, com
os cabelos totalmente raspados. Era
pequena, talvez menor que eu e, por
isso, passara despercebida por mim.
Usava um top esportivo, expondo seu
abdome definido.
— Quem é você?
— Zora Faber — disse. Aquele
nome combinava com ela. Ambos eram
pequenos, mas fortes e impactantes.
Como uma bala.
Ela não perguntou quem eu era,
provavelmente já sabia. Franzi o cenho,
confusa.
— Como conseguiu o meu
número e por que me chamou aqui?
Zora cruzou os braços.
— Estamos aqui para que você
nunca mais se sinta fraca e impotente.
Demorou um par de segundos
para que aquelas palavras se tornassem
familiares para mim. Ergui as
sobrancelhas, surpresa.
“Acho que você nunca mais
deveria se sentir fraca e impotente.” A
voz de Hades ressoou em minha cabeça.
— Hades? Isso é coisa dele,
não é?
— Ele disse que você queria
aprender a se defender, mas que não
tinha um professor à altura.
Mas como ele podia saber
disso?
— Ele andou me espionando?!
— acusei, levantando o tom de voz.
Zora continuou a me encarar com seus
grandes olhos castanhos e entediados.
— Essa cidade tem ouvidos,
garota.
Mordi o lábio inferior,
pensativa. Foi então que percebi algo
com o canto do olho. Virei a cabeça e
captei Stephen parado do outro lado do
galpão. Havia uma garota pendurada em
seu pescoço. Ela tinha os cabelos loiros
com as pontas cor-de-rosa e parecia
estar dizendo algo a ele. O rapaz,
entretanto, me encarava estático.
Trinquei o maxilar, sustentando seu
olhar.
— Vamos começar ou não? —
A voz impaciente de Zora soou
novamente e eu quebrei o contato com
Stephen, virando-me na direção dela.
— Vamos.
Durante as próximas duas
horas, Zora me ensinou tudo o que eu
precisava saber sobre como meu corpo
poderia ser minha melhor arma. Ela era
durona e isso me fez gostar dela no
mesmo instante. Seja lá de onde Hades a
conhecia, eu fiquei grata por ele ter
pedido a ela para me ajudar. Embora ela
não pegasse leve comigo, estava feliz ao
perceber que finalmente estava
aprendendo coisas úteis — diferente de
como era com Stephen. Eu estava
animada com o treinamento, ávida para
aprender o que Zora sabia.
Quando terminamos, eu estava
exausta. Caí sobre o chão do galpão,
escorando-me contra a parede e
bebendo o resto da água em minha
garrafa. Zora sentou-se ao meu lado, os
braços apoiados sobre os joelhos
dobrados.
— Bom trabalho. — Essas
foram suas únicas palavras para mim.
Assenti, sentindo o suor
rolando sobre minhas têmporas. Meu
peito subia e descia com minha
respiração ofegante. Tombei a cabeça
para trás, apoiando-a na parede.
Foi quando Nick Wrath surgiu
no meu campo de visão.
Me endireitei, sem conseguir
impedir que meus olhos passeassem
pelo corpo dele, dos pés à cabeça. Ele
era simplesmente lindo. Usava apenas
uma bermuda e casaco de moletom cinza
aberto, revelando um torso nu musculoso
e bronzeado, com algumas tatuagens
esparsas por sua pele.
Alternando meu olhar para
Zora, percebi que ela tinha os olhos
castanhos me fitando com desconfiança.
— Até amanhã garota. É melhor
não se atrasar novamente ou vou buscá-
la pela orelha — advertiu, após recolher
sua mochila do chão.
Me segurei para não rir. Após
ela se virar e se distanciar, dando uma
breve olhadela para Nick ao passar por
ele, o rapaz finalmente se aproximou.
— Oi — sussurrou, encostando
a cabeça contra a parede. — Então você
está treinando com a Medusa?
Franzi a testa para o apelido
que ele usou ao se referir à Zora e
levantei uma sobrancelha, confusa.
— Você a conhece?
Nick desviou os olhos, como se
pensar nisso o deixasse desconfortável.
Talvez tivesse algo a ver com sua
família e seu passado, que eu já sabia
não ter sido fácil.
— Ela era amiga da minha mãe.
Zora tentou cuidar da gente depois que
ela morreu. Ela também sabe que eu
teria sido a grande decepção da vida de
Eve.
Nick, definitivamente, não tinha
muitos fãs em Carmine. Então, por que
ele voltou? Só para se vingar? Se sim,
então era um grande desperdício de seu
tempo. Ele podia estar recomeçando em
algum lugar onde ninguém soubesse de
seu passado, onde não teria olhares de
julgamentos sobre si. Uma parte de mim
se perguntava quais coisas tão horríveis
ele fizera para ganhar tamanho
desprezo.
Eu não o conhecia de verdade.
Não sabia do que ele era capaz,
principalmente, influenciado por caras
como Garrett, o líder daquela gangue
suja.
— Por que você desertou dos
Daggers?
Os olhos escuros de Nick me
analisaram. Me perguntei se ele
conseguia perceber a hesitação que
surgira em mim diante da sua presença.
Não apenas por causa do nosso beijo,
mas também porque eu não conseguia
mais disfarçar meu desprezo pela
aliança que ele costumava ter com os
homens horríveis do motoclub de
Garret. Talvez duvidar da moral de Nick
fosse a coisa mais hipócrita que eu
pudesse fazer, mas, depois de saber
sobre o pacto dos Daggers com Joel
McKinley, tudo mudara. Eu estava
envolvida diretamente nessa guerra e
faria de tudo para que o Pandemônio
ganhasse, porque não podia permitir que
Joel vencesse e me levasse de volta.
— Eu não concordava com as
coisas que eles faziam. No começo,
parecia um pequeno preço a se pagar
para destruir meu irmão. Mas, quanto
mais eu mergulhava naquele mundo,
menos eu me reconhecia.
Nick passou uma mão sobre os
cabelos raspados e eu percebi a
mudança na sua postura quando ele
falava sobre o passado. Seu corpo ficou
rígido. Ele estava nervoso. Entreabri os
lábios, pronta para fazer mais uma
pergunta quando ele me interrompeu:
— Vai continuar me
interrogando para fugir daquele assunto?
Desviei o olhar para o treino
que acontecia no ringue no centro do
galpão. Eram duas mulheres lutando.
Elas eram fortes e ágeis. Seus
movimentos eram certeiros. Senti uma
pontada de inveja.
A respiração impaciente de
Nick fez com que eu pensasse no assunto
sobre o qual eu estava evitando de
lembrar.
Entrelacei as mãos entre os
joelhos e dei um longo suspiro.
— Foi só um beijo, Nick. Não
há nada para conversar sobre isso.
Ele balançou a cabeça,
concordando.
— Eu sei, foi um erro.
— Sim, foi.
Lá você está mais perto
Não seja tímido
Saia da minha cidade
Eu não ando sozinha
Então construa suas
esperanças
Apenas para morrer
Swell - Twin Caverns

Inclinei a cabeça, observando o


resultado do desenho. Minha mente
estava distante, fluindo enquanto minha
mão rabiscava livremente. Agora eu
olhava para o retrato da família Wrath
sobre o papel. Após ter cedido à minha
curiosidade e pesquisado sobre aquela
família ao ver Frederik em carne e osso
diante de mim, fiquei fascinada por uma
antiga fotografia dos Wrath que eu havia
encontrado na internet. Nele, os irmãos
ainda eram pequenos, talvez entre dez e
doze anos. Frederik tinha a mesma
aparência assustadora, mas sua esposa,
Eve, não poderia ser mais bonita. Ela
era alta e esguia, com cabelos pretos
como Hades. Parecia feliz naquela foto.
Gostei de esboçá-la. Ele
parecia leve e serena, diferente da figura
do homem ao seu lado, que se
assemelhava a um monstro.
Eu estava sentada na minha
cama no dormitório, os joelhos
dobrados e o caderno de desenhos sobre
minhas coxas. Do outro lado do quarto,
Libby pintava as unhas das mãos com
um tom de amarelo vibrante.
Definitivamente, aquela cor combinava
com ela e com as trancinhas cor-de-rosa
de seu cabelo.
— Não é pessoal. — Libby
quebrou o silêncio, me despertando dos
meus devaneios. Franzi o cenho e ela
levantou a cabeça para me encarar
alguns segundos. — Alina. Ela não te
odeia nem nada do tipo. Ela só está
confusa.
— Eu sei, tudo bem. Vou dar
todo o tempo e espaço que ela precisar.
Afastei o sketchbook,
fechando-o e colocando-o de lado na
cama. Estiquei as pernas e encostei a
cabeça contra a parede, fitando Libby.
Ela terminou com seu esmalte da cor e
intensidade do Sol e também relaxou
sobre a cama do outro lado do quarto.
— Ela ainda está triste, porque
acha que perdeu Lane. Nada do que eu
falo entra na cabeça dela e isso é tão
frustrante. — A garota parecia realmente
cansada.
Balancei a cabeça.
— Você é uma boa amiga,
Libby. Mas Lane cravou suas garras bem
fundo na mente de Alina, para que ela
nunca se voltasse contra ele. — Eu
reconhecia isso. Todos os homens
abusivos tinham a mesma maneira de
agir, afinal. — Sei que ela não quer
denunciá-lo, porém eu não vou ficar
parada para que ele continue fazendo
isso com outras garotas.
Libby suspirou.
— Você está certa, Raven. Mas
o pai dele é juiz, não sei se tem muita
coisa que possamos fazer.
— Estamos cuidando disso.
— Estamos?
Coloquei uma mecha de cabelo
preto atrás da orelha antes de explicar:
— Hades está me ajudando.
Seu sobrenome tem algum tipo de poder
por aqui, pelo menos agora ele está
usando esse privilégio para algo que
realmente importa.
Ela levantou as sobrancelhas
finas, surpresa.
— Foi por isso que o juiz Scott
foi suspenso? — Acenei com a cabeça,
confirmando. — Uau. Vocês estão
próximos, então? É por isso que aceitou
participar da corrida no Círculo para
defender o território dos Daggers? É o
que todos estão dizendo por aí.
Fiz uma careta ao pensar nessas
fofocas.
— Não vou fazer isso pra
defender o território do Pandemônio,
mas para impedir que os homens que
estão ajudando os Daggers consigam
algum poder. — Libby franziu o cenho,
sem entender. Respirei fundo,
entendendo que chegara o momento que
eu tanto evitara. — Meu padrasto
comanda a máfia de Dallas, eu estava
fugindo dele quando vim pra cá. Ele está
ajudando os Daggers, que desejam
retomar o controle da cidade.
O queixo dela caiu. Por um
instante, esperei uma reação sua. Na
escola na qual cursei o Ensino Médio,
em Dallas, todos sabiam sobre minha
origem. Tinham medo de se aproximar
de mim. Libby não pareceu ficar
horrorizada, porém.
— Era por isso que você nunca
falava sobre seu passado? — perguntou,
apreensiva. Suspirei e assenti com a
cabeça. — Sinto muito, Raven. Não
deve ter sido fácil. Estarei no Círculo
torcendo por você.
A calma de Libby me
surpreendeu e, sem dúvidas, me
tranquilizou. Fiquei feliz por tê-la
contado a verdade.
Sorri.
— Obrigada, Libby.
Logo em seguida, meu celular
vibrou sobre a cômoda ao lado da minha
cama. O apanhei, vendo uma mensagem
de Hades pairando na tela. Engoli em
seco antes de ler.
"Acho que você não vai querer
perder o amistoso dos Red Hawks hoje
à noite."
Estreitei os olhos para a frase,
confusa.
O que diabos ele estava
tramando?

Libby e George me
acompanharam até o campo do time de
futebol americano da Universidade de
Carmine. A noite estava quente quando
chegamos lá. As arquibancadas estavam
lotadas. Não havia realmente muito o
que fazer naquela cidade, de modo que
todo entretenimento por ali era baseado
nos bares e nas festas e corridas do
Círculo.
— Eu odeio futebol —
reclamou George pela terceira vez,
fazendo-me revirar os olhos enquanto
subíamos as escadas para ocupar
assentos vazios.
Os grandes postes ao redor
irradiavam uma luz branca que
abrandava o breu do céu sem estrelas.
As pessoas estavam animadas esperando
pelo jogo de abertura da temporada de
futebol. Alguns torcedores da
Universidade estavam usando a camiseta
vermelha com o desenho da águia,
símbolo do time.
Me sentei na ponta da fileira e
Libby estava entre George e eu. Os dois
rapidamente iniciaram uma conversa
sobre um assunto aleatório e eu varri
meu olhar ao redor do campo,
procurando por Hades. Ele não parecia
estar em lugar algum, contudo.
Provavelmente, eu teria que esperar
para descobrir o porquê de estar ali.
— Você vai assistir à corrida
da Clarke no Círculo nesta sexta? —
Libby perguntou a George.
Eu estava tentando não pensar
naquilo, ou então ficaria mais do que
nervosa. A ideia de todos assistirem à
forasteira inexperiente disputar contra
um Dagger numa corrida era
assustadora.
— Claro, preciso me certificar
de que ela não será esmagada.
Não pude evitar rir.
— Uau, obrigada pelo voto de
confiança em mim.
George apenas sorriu, voltando
seu olhar para frente quando as líderes
de torcida entraram em campo para
darem início a partida. Elas pareciam
todas iguais vestidas com o uniforme
vermelho com detalhes em preto. Logo
os Red Hawks apareceram. Não foi
difícil localizar Lane, ele foi o primeiro
a entrar. Estava vestido de preto e
acenava para os torcedores que gritavam
seu nome.
Nesse exato momento, meu
celular vibrou contra o bolso do meu
jeans. Peguei-o e verifiquei a tela,
percebendo que o número que
telefonava não estava salvo nos
contatos.
Atendi rápido, desejando que
fosse a minha mãe do outro lado da
linha. No entanto, o que ouvi foi uma
voz grave e masculina.
— Raven?
Franzi o cenho.
— Nick? Tudo bem?
Ouvi ele dizer algo, mas não
consegui compreender uma só palavra
devido a intensa gritaria da multidão.
Praguejei antes de tampar o
outro ouvido.
— Eu não entendi, pode
repetir?
Ainda era impossível saber o
que ele falava do outro lado. Então
apenas me levantei e desci das
arquibancadas, saindo do campo em
direção ao estacionamento. Respirei
aliviada quando o barulho reduziu
gradativamente até que eu pudesse
identificar as palavras proferidas por
Nick.
— Raven — repetiu ele —,
preciso falar com você. Pode vir até o
trailer?
Havia algo em sua voz. Um tom
demasiadamente sério que eu nunca o
tinha visto usar.
— Agora?
— Sim, menina, agora.
— Não pode apenas dizer
sobre o motivo dessa urgência?
Antes que ele pudesse
responder, entretanto, sirenes soaram
cada vez mais altas até que as luzes
vermelhas e azuis do sinalizador
giroflex entraram no meu campo de
visão. Estreitei os olhos, incrédula
quando as três viaturas de polícia,
seguidas de um Camaro preto,
estacionaram em frente ao campo.
— Preciso ir — informei ao
telefone, sem tirar os olhos dos policiais
cruzando o estacionamento.
Assim que encerrei a chamada,
vi Hades saindo de seu carro e andando
ao lado do que parecia ser o chefe de
polícia de Carmine, na direção da
entrada do campo. Os policiais fardados
passaram reto por mim. O delegado, um
homem de meia idade, careca com barba
ruiva desbotada, por sua vez, me mediu
dos pés à cabeça antes de seguir seus
subordinados para dentro do estádio.
Hades parecia tranquilo, as mãos nos
bolsos da calça preta que usava.
— Me diz que isso tudo é para
o Lane — falei. Ele deu um sorriso
torto.
— Vai ser um espetáculo. Não
acha?
Me virei, desviando os olhos
para o campo atrás de nós. Não pude
deixar de abrir um sorriso enorme ao
ver Lane Scott ser algemado no meio de
centenas de pessoas chocadas.
Então, algo passou pela minha
cabeça. Franzi o cenho, voltando-me
para Hades.
— Alina aceitou denunciá-lo?
Ele deu um longo suspiro antes
de balançar a cabeça.
— Ele está sendo preso por
tráfico de drogas.
Aquilo não fazia sentido.
— O quê? Como? Pensei que
você comandasse o tráfico em Carmine.
— Eu comando. É por isso que
consegui criar provas de Scott tentando
encomendar drogas para as festas da
Gama Zeta Phi.
Percebi que, para denunciar
Lane por violência doméstica, Alina
precisaria se expor e passar por um
processo realmente difícil. Então, Hades
mexeu os pauzinhos para que ele fosse
preso, mesmo que não fosse pelo crime
que ele merecia.
Wrath percebeu a compreensão
invadir meu semblante.
— Os fins justificam os meios.
— Ele não vai conseguir se
livrar dessa? — perguntei, aflita.
— Vou garantir que não.
Acenei com a cabeça,
determinada a acreditar naquilo.
— Eu nem uso drogas, porra.
Tenho que fazer o teste antidoping todo
mês pra participar do time de futebol.
Vocês estão me ouvindo?! — A voz
alterada de Lane se aproximando atraiu
minha atenção. Ele estava algemado e
sendo direcionado para fora do campo
por um policial. Ao entrar no meu
campo de visão, Lane notou minha
presença. Logo seu rosto se retorceu em
ódio.
— Você tem algo a ver com
isso, não tem?!
Ele parou na minha frente, o
homem fardado ao seu lado trocando
olhares com Hades. Dei um passo na
direção de Lane, pensando em como ele
sempre pareceu patético com sua
arrogância. Olhei fundo em seus olhos
castanhos, sem remorso, lembrando dos
hematomas no corpo e na mente de
Alina. Não pude evitar quando levantei
a mão e atingi seu rosto com um tapa
forte.
Sua bochecha ficou
instantaneamente vermelha, mas não era
nada comparado ao que ele merecia.
— Sua cadela desgraçada!
Ele se debateu contra o
policial, tentando avançar em minha
direção. O homem fardado o segurou
firme e o puxou para longe, em direção
às viaturas. Segurei a mão direita contra
o peito, sentindo minha palma arder. A
satisfação que me inundava, entretanto,
só crescia enquanto eu assistia Lane ser
colocado no banco de trás e levado.
Então, Hades começou a rir. O
encarei.
— Nossa, amor, você é muito
boa em bater nas pessoas. Deveria fazer
isso mais vezes.
Olhei para minha mão, estava
vermelha e formigando. Hades a
apanhou e a avaliou com seu olhar
analítico.
— Tente bater com a mão
fechada, na próxima — sugeriu, ainda
inspecionando.
Entreabri os lábios, facilitando
a respiração enquanto o observava
concentrado. O toque dele na minha pele
atingia diretamente algo dentro de mim,
fazendo com que pura adrenalina fosse
injetada em minhas veias. Era a mesma
sensação de estar em um lugar muito
alto, olhando diretamente para a queda
abaixo de mim: um frio na barriga
intimidador e atraente.
Pigarreei, recolhendo minha
mão para longe dele.
— Zora está me ajudando
nisso. Ela é muito boa.
Hades me olhou, umedecendo
os lábios com a língua antes de sorrir.
— Sim, ela é.
Mordi o interior da bochecha,
sem saber ao certo o que dizer para
quebrar o silêncio constrangedor que
caiu sobre nós. Contudo, não foi
preciso, uma vez que a agitação de
dentro do campo atraiu nossa atenção.
Virei o rosto, vendo algumas pessoas
saindo das arquibancadas. O jogo, ao
que parecia, iria continuar.
George e Libby foram alguns
dos poucos que saíram, vindo
diretamente até mim assim que me
localizaram.
— Caramba, o que diabos
acabou de acontecer? — George
perguntou, mas pareceu ter sua resposta
assim que reparou na figura de Hades
parada ao meu lado.
— Olá, primo — cumprimentou
Wrath, acenando com a cabeça.
— Raven — chamou Libby e eu
me virei para ela. — Temos que falar
com a Alli.
Assenti.
Não sabia o que Nick desejava,
mas não podia dar as costas a Alina
numa situação tão complicada como
aquela. Eu esperava que o assunto que
ele pretendesse tratar pudesse aguardar
mais algumas horas.
Por fim, segui meus amigos,
dando um último olhar na direção de
Hades antes de me distanciar
completamente.
Se você fosse quem eu achei
que você fosse
Você não teria feito isso
Eu pensei que eu tinha feito
algo
Mas você faria qualquer coisa
Para me derrubar
$TING - The Neighbourhood

Alina reagira melhor do que eu


imaginava com a notícia da prisão de
seu ex-namorado. Apesar de ter chorado
muito, não foi pelo Lane. Era porque
ela, finalmente, estava livre.
Seu apartamento era pequeno,
mas confortável. A luz amarelada da
luminária sobre a cômoda dava um ar
aconchegante ao ambiente. E haviam
livros abarrotando cada canto daquele
lugar.
Alina ficou deitada em sua
cama, tomando um chá enquanto
desabafava. Ouvimos atentamente cada
um de suas palavras e compartilhamos
de sua dor. Aquele momento fez bem a
todas nós.
— Sinto muito, Raven —
lamentou ela, com a voz embargada. —
Me desculpe por tê-la culpado pelo meu
término com Lane. Eu só… pensava que
não seria nada sem ele.
Sentada na poltrona ao lado de
sua cama, coloquei minha mão sobre a
sua. Os hematomas em seu rosto
delicado haviam desaparecido quase
que completamente. Ainda assim,
olheiras profundas emolduravam seus
olhos.
— Não tem que se desculpar.
Sei sobre as coisas que ele fez você
pensar.
— Sabe? — Ela franziu o
cenho. Balancei a cabeça.
— Presenciei essa situação
antes. Minha mãe passou grande parte da
vida nas mãos do meu padrasto, um
homem terrível. Ele a manipulava,
agredindo-a física e psicologicamente a
todo instante. Não pude ficar calada ao
ver Lane fazendo isso com você.
Ela apertou minha mão de
volta, entrelaçando nossos dedos. Libby,
que estava sentada com as pernas
cruzadas no pé da cama, secou uma
lágrima que escapou pelo canto do olho.
— Ele também vai ter o que
merece — ela disse, certa daquilo.
Respirei fundo, forçando-me a não
lembrar de como minha mãe ficava após
as brigas com Joel.
— Espero que sim.
— Então Hades te ajudou a
ferrar o Lane e o pai dele? — perguntou
Ali, de volta àquele assunto.
— Sim, ele fez praticamente
tudo, na verdade.
— Talvez Hades Wrath não
seja uma pessoa tão ruim quanto dizem.
— Ela fungou, levando a xícara de chá
fumegante até os lábios.
Mordi o lábio inferior,
lembrando do que ele disse.
Os fins justificam os meios.
Talvez o Pandemônio fosse um
meio para um fim.
— Talvez — concordei,
pensativa.
Foi então que lembrei da
ligação urgente de Nick. Me
empertiguei, preocupada. Precisava ir
até o trailer e conferir por mim mesma o
que estava acontecendo.
Após me certificar de que
Alina ficaria bem, e Libby ter dito que
dormiria ali naquela noite, me senti
tranquila para sair. Chamei um táxi e, no
hall do prédio do alojamento, esperei
que ele chegasse. Não demorou muito.
Assim que o carro parou no
Círculo vazio, meus olhos rapidamente
foram para o trailer de Nick. Olhei
através da janela. A noite escura engolia
toda a paisagem desértica ao redor,
exceto o posto de gasolina e o trailer do
outro lado da rua de terra. Percebi,
primeiro, o Camaro reluzente parado ali
e destoando de todo o resto da
paisagem. As luzes vindas de dentro da
casa de Nick iluminavam a cena confusa
e violenta que se desenrolava bem ali na
frente. Nick estava no chão coberto de
poeira enquanto tentava se desvencilhar
de Hades que, por sua vez, parecia
dominado pela cólera enquanto socava
seu irmão.
Meu queixo caiu e meus olhos
se arregalaram.
— Devo chamar a polícia? —
perguntou o motorista, preocupado. Abri
a porta do carro de maneira urgente.
— Não — foi a única coisa que
eu disse antes de saltar dali e correr na
direção dos dois.
O ar frio da madrugada me
envolveu e eu lamentei não ter colocado
um casaco antes de sair. Envolvi meu
corpo com os braços assim que os pés
se fixaram no chão e meus olhos,
naquela cena horrível. Havia gotas de
sangue sobre a areia.
Latidos altos vinham de dentro
do trailer. Dodger provavelmente estava
preso lá dentro, mas tentava
desesperadamente sair, dando pancadas
fortes na porta de metal, que parecia
prestes a ceder.
Voltei meu olhar para os irmãos
Wrath.
— Que porra vocês estão
fazendo? Parem com isso! — gritei, mas
eles não deram ouvidos. Hades
permaneceu desferindo socos em Nick.
Olhei ao redor, procurando
algo que pudesse fazer. Temia que
Hades matasse o próprio irmão naquele
momento. O táxi já tinha desaparecido.
Praguejei alto, arrependida por não tê-lo
mandado ligar para a polícia. Não tinha
certeza de que conseguiria dar conta de
impedir Nick e Hades de executarem seu
plano. Afinal, os irmãos Wrath sempre
disseram que um dia se matariam, eu só
não imaginar que estaria lá para
testemunhar.
Nick conseguiu inverter as
posições, se colocando sobre Hades,
uma das mãos esmagando o pescoço do
irmão, fazendo com que o rosto dele
ganhasse uma cor escarlate assustadora.
Meus olhos estavam arregalados e eu me
sentia mais impotente do que nunca.
Não acreditei no que estava
vendo quando Nick usou a mão livre
para desembainhar um revólver
prateado e apontar seu cano para a
cabeça de Hades. Meu coração batia
forte e a adrenalina havia tomado
minhas veias. Ao mesmo tempo em que
tudo acontecia muito rápido, eu assisti
cada movimento em câmera lenta.
— Nick! — gritei. Para a minha
surpresa, ele me olhou. O rosto coberto
de sangue e hematomas. — Você não
quer fazer isso.
— Acredite, menina, eu quero
muito — ele rosnou e, pela primeira
vez, eu o temi de verdade. Meu corpo se
arrepiou.
— Por favor, não. — Minha
voz falhou. Eu não queria acreditar que
aquilo realmente estava acontecendo.
Enquanto Nick me encarava,
Hades aproveitou para se desvencilhar
do aperto em seu pescoço. Ele jogou o
peso do seu irmão para trás, fazendo-o
cair no chão. O revólver voou de sua
mão aterrissando a alguns centímetros
dos meus pés. Engoli em seco quando
Hades chutou a lateral do tronco de
Nick, fazendo-o urrar de dor.
Os dois realmente acabariam
mortos se eu não fizesse nada.
Sem pensar muito, me abaixei e
apanhei a arma. Depois, levantei o
braço, apontando seu cano para o céu
denso e escuro. A sensação de segurar
um revólver novamente foi estranha,
familiar demais, mas não me detive
nessas memórias. Destravei a arma e
atirei para o alto. Precisou que eu
disparasse três tiros para que Hades e
Nick parassem.
Respirei aliviada quando
Hades se afastou, cambaleando para
trás. Seus cabelos pretos bagunçados
caíam levemente sobre seus olhos, seu
peito subia e descia agitado. A camiseta
branca estava suja de terra e sangue.
Meu braço despencou de volta
até a lateral do meu corpo, alívio me
preenchendo completamente.
Nick sentou-se sobre o chão,
um braço apoiado sobre o joelho da
perna dobrada. Ambos me fitaram em
silêncio, esperando. As íris escuras que
eles compartilhavam estavam caóticas e
mais sombrias do que nunca. Eu temia
ao imaginar o que teria acontecido se eu
não tivesse resolvido ir até ali naquela
noite.
— Qual é a merda do problema
de vocês?! — vociferei. Todo meu medo
e apreensão foram substituídos por
raiva. Então me lembrei do metal frio
que minha mão envolvia. Olhei para
Nick com indignação. — Por que diabos
você tem um revólver?
Minha pergunta pareceu tola
assim que soou através dos meus lábios.
Eles eram criminosos, afinal. E Nick
sempre planejara matar Hades talvez
utilizando aquela arma.
— Eu precisava de algo para
me defender se os Daggers viessem
atrás de mim — falou com a voz baixa,
um tanto quanto envergonhado. — Ou
quando o desgraçado do meu irmão
finalmente resolvesse me enfrentar.
Nick encarou Hades com um
olhar que mais parecia um explosivo. O
mais velho não notou. Ele não estava
prestando atenção no irmão, estava
olhando pra mim.
— Por que vocês resolveram se
matar hoje? O que diabos aconteceu? —
eu ainda estava gritando. Não sabia se
conseguiria parar. Eu estava eufórica e
muito, muito brava. — Por que precisam
agir como duas crianças selvagens? Eu
juro por Deus que, da próxima vez, eu
mesma mato os dois.
Nick passou as mãos no cabelo,
apreensivo. Ele estava inquieto, e Hades
estava muito silencioso. Não era apenas
por causa do antigo ódio que eles
nutriam um pelo outro. Alguma coisa
havia acontecido.
Franzi o cenho, confusa.
— Por que não diz para ela o
que você fez, Hive? Deixe de ser um
maldito covarde e conte a ela.
Hades quebrou seu silêncio e
suas palavras me fizeram voltar a temer
o motivo que desencadeara toda aquela
situação. Movi meu olhar para Nick, que
encarava fixamente o chão empoeirado.
Ele parecia mesmo envergonhado e
arrependido.
— Eu ia te contar hoje mais
cedo, Raven. Eu juro.
— O que você fez? —
perguntei, lenta e pausadamente.
— Eu estava bebendo aqui
quando Slade apareceu.
Levantei uma sobrancelha.
— Quem diabos é Slade?
— Um Dagger — respondeu
Hades no lugar de Nick.
— Um amigo — corrigiu o
outro. — Ele me disse que finalmente o
Pandemônio iria perder tudo, que havia
um novo cara que era capaz de tirar a
influência de Hades. Quando ele me
contou o plano, eu disse que não daria
certo. Disse que assim que meu irmão
soubesse que estava sendo desafiado,
iria propor uma corrida no Círculo,
porque é isso o que ele sempre faz. É
como ele tem a vantagem, manipulando
as corridas para ganhar. Eu disse a ele
para exigir correr contra você. Disse
que era a única maneira de ele ganhar,
porque você é inexperiente. Eu disse
que você poderia fazer Hades perder
seu Império.
O revólver caiu da minha mão
e tombou contra o chão de poeira. Minha
garganta havia secado e, junto a ela,
todas as palavras que eu conhecia. Ele
havia me usado como uma carta na
manga para destruir seu irmão. Eu já
desconfiava que Hades trapaceava em
suas corridas. Mas agora, o que antes
era nosso trunfo havia se tornado nossa
queda.
— Você… — gaguejei,
incrédula. — Você me colocou nisso
mesmo após eu tê-lo contado sobre meu
passado.
— Eu sei — Nick disse, após
um longo suspiro.
— O que eles vão fazer agora?
— perguntei, tentando manter-me calma.
— Eu não sei, eu não sou um
Dagger. Eles não me contam seus
planos, não confiam em mim desde que
eu desertei.
— E ainda assim você os
ajudou? — Dei um passo em sua
direção. Raiva e decepção borbulhavam
dentro de mim. — O cara novo, de quem
seu amigo falou, veio de Dallas. Ele
trabalha para a porra do meu padrasto.
Um cara que trafica mulheres e mata
pessoas como se não fossem nada. É
esse tipo de gente que você quer no
poder? Tudo isso por inveja do seu
irmão?
Nick se levantou. Ele me
olhava com arrependimento, mas não
comprei aquilo. Eu não conseguia mais
acreditar em nada em relação a ele.
Talvez todos estivessem certos ao seu
respeito. Ele ainda era o Hive e ainda
faria qualquer coisa só por vingança, até
mesmo me envolver naquilo, sabendo o
quão perigoso seria. Ele havia me
colocado diretamente no radar e ao
alcance de Joel McKinley.
— Raven, eu estava bêbado.
Não tinha ideia do que estava fazendo.
Só estava pensando em como queria me
vingar.
— Os Daggers não são muito
melhores que isso e você esteve com
eles por anos! — rebati. — Também
esteve bêbado durante todo esse tempo?
— Ele ficou em silêncio e eu engoli em
seco, ainda chocada. — É por isso que
você é um pária. Porque ninguém confia
em você. Uma vez traidor, sempre
traidor, certo?
Eram palavras fortes e eu tinha
consciência disso. Elas o atingiram, eu
pude perceber. Seus ombros caíram e
seus olhos esvaziaram, se tornando
orbes opacos. Engoli em seco, sentindo-
me enojada e atordoada.
— Raven — Hades chamou, se
pronunciando pela primeira vez.
Neguei com a cabeça.
— Preciso dar o fora daqui —
falei para mim mesma antes de fazer
menção de me virar.
— Eu te levo — Hades se
prontificou.
— Não. — Gesticulei com a
mão para que ele parasse. — Vou
andando.
Girei sobre os tornozelos,
passando as mãos nos cabelos num
misto de raiva e frustração, e cruzei os
braços enquanto andava pelas ruas
desérticas de terra batida, característica
daquela área de Carmine. Eu estava a,
pelo menos, cinco quilômetros de
distância do alojamento, mas não me
importa. Ao menos eu poderia usar
aquele tempo para pensar.
Poucos minutos após me
distanciar do trailer, o som de um carro
atrás de mim fez com que eu me virasse,
assustada. Era o Camaro de Hades, ao
qual eu não dei muita importância e
continuei andando. Ele não parou para
dizer nada, apenas continuou me
seguindo lentamente durante todo o
trajeto até os dormitórios.
Quando finalmente cheguei, o
fitei novamente através da janela
abaixada do motorista. Um de seus olhos
estava roxo e havia sangue em seu
supercílio. Ele também estava arrasado
pelo o que acontecera, eu sabia disso.
Não acreditava nem por um segundo que
não houvesse uma parte dentro dele que
ainda buscava recuperar seu irmão
caçula.
Apesar do silêncio, seu olhar
me consolou. Mesmo que por poucos e
efêmeros segundos.
Você sabe que eu não jogo
limpo
Às vezes você tem que quebrar
as regras
Podemos chamar isso de amor,
ou chamar de nada
Como você faz o perigo
parecer tão lindo?
Ainda não te conquistei, mas
não posso imaginar te perder
Sacrifice - Black Atlas feat.
Jessie Reyez

Seis anos antes

Eu gostava de ter um segredo.


Isso me fazia parecer, mesmo
que numa ótica muito patética e
distorcida, uma menina normal. Era
como eu queria ser, igual às garotas que
não queriam ser minhas amigas na
escola. Queria ser bonita, divertida.
Acima de tudo, eu queria ter problemas
normais para me preocupar. Queria
pensar em festas e garotos e não ficar
completamente aterrorizada ao
contemplar sobre meu futuro.
Então, ter beijado o garoto que
cresceu comigo e que eu deveria ver
como um irmão era um segredo bem-
vindo. Pelo menos, assim, eu poderia
desviar minha mente do fato de que
minha mãe parecia mais próxima da
morte a cada dia ou de que, depois que
ela morresse, sua dívida seria minha e
eu apodreceria naquele lugar, me
tornaria o bichinho de estimação do
homem mais monstruoso que eu já
conheci.
Stephen se preocupava comigo.
Ele era otimista demais, e não gostava
da minha percepção sobre minha vida,
então eu não conversava com ele sobre
isso. Nunca lhe disse como eu odiava a
mim mesma e a maioria das coisas ao
meu redor — exceto ele. Porque Stephen
era o único que se importava comigo,
que percebia minha existência.
No fim da tarde eu havia
andado da escola — onde passei várias
horas estudando na biblioteca — até a
enorme casa que eu compartilhava com,
provavelmente, grande parte dos
traficantes do Texas. Assim que entrei na
cozinha, senti minha barriga roncar alto.
Havia poucas pessoas ali naquela tarde,
fato que melhorava meu dia em quase
cem por cento.
Murmurando uma música
qualquer, abri a geladeira, colocando a
cabeça lá dentro para aproveitar do ar
gelado que ela emanava.
Assim que visualizei as
prateleiras vazias — não
completamente, visto que havia várias
garrafas de cerveja e um pote de
maionese —, me senti murchar.
Continuei encarando a completa
ausência de comida ali. Minha garganta
secou e eu senti vontade de chorar.
Normalmente, os capangas mais idiotas
de Joel eram responsáveis por cuidar da
casa — isso porque minha mãe, apesar
de passar o dia todo ali sem fazer nada,
estava sempre dopada demais para
lembrar o próprio nome. Assim,
provavelmente eles haviam esquecido
de passar no supermercado naquela
semana. Ou apenas não se importaram o
suficiente para tal. Eles não davam a
mínima se eu e minha mãe tínhamos ou
não comida em casa.
Dei um longo suspiro, fazendo
uma anotação mental para me lembrar de
comer porções maiores no almoço da
escola.
Fechei a geladeira e girei sobre
os calcanhares, procurando o que fazer.
Stephen ajudava seu pai nos trabalhos
ilegais dele depois que saía da aula, o
que significava que eu ficaria sozinha ali
até à noite.
Saí dali determinada a procurar
Astrid. Normalmente, ela estava
dormindo àquela hora do dia. A chamei
ao pé da escada, mas não obtive
resposta. Não me surpreendi e comecei
a subir os degraus. A casa não era
decorada. Era completamente fria e
impessoal, o que não significava que era
organizada. Enquanto andava escada
acima, por vezes tive que desviar de
latas de cerveja e peças de roupa
espalhadas pelo chão.
— Mãe? — chamei novamente,
ouvindo minha voz ecoar pelo corredor
vazio do segundo andar.
Bufei, brava por ela
provavelmente estar desmaiada e
bêbada na banheira de sua suíte. Assim,
marchei direto para meu quarto.
Descalcei os chinelos, deixando-os no
meio do caminho, e fui até a janela, onde
eu pretendia me sentar e assistir ao
anoitecer do fim do verão. Meu quarto
também não estava muito limpo, mas
metade do lixo espalhado por ele não
era meu. Os homens que trabalhavam
para Joel não tinham noção alguma de
privacidade. Usavam todos os cômodos
da casa como se tudo pertencesse a eles.
Desgraçados.
Antes que eu pudesse alcançar
a janela, entretanto, vi o pedaço
amassado de papel sobre minha cama e
franzi o cenho, me aproximando dali. O
apanhei em minhas mãos e comecei a ler
as letras borradas e disformes.

Meu passarinho, sei que as


coisas não deveriam ser assim. Eu
queria que você ainda fosse pequena,
para que eu pudesse tomá-la em meus
braços e protegê-la de todo o mal que
eu trouxe para a sua vida. Talvez você
nunca me perdoe, mas tudo bem porque
eu não mereço nada além do seu ódio.
Eu tive que ir embora. Sei que você
estará muito melhor sem mim. Você é
mais forte do que eu jamais poderei ser.
Quando sair desse inferno e se estiver
disposta a deixar eu me redimir, ligue
para o número no verso.

Sobreviva.
Com amor, mamãe.

E foi naquele momento que eu


desmoronei completamente pela
primeira vez.

Atualmente
— Desse jeito você vai acabar
quebrando os copos — ralhou Fiona
quando eu depositei de maneira bruta a
louça no balcão.
Revirei os olhos para seu
comentário.
Era o fim do turno e eu mal
podia esperar para sair dali. Desde que
tudo pareceu ser destruído por Nick
Wrath na noite passada, meu humor
estava indo de mal a pior. Mais do que
tudo, eu estava brava comigo mesma por
ter confiado e acreditado nele. Agora me
sentia uma tola por isso.
Bufei, sentindo-me cansada e
estressada.
A corrida seria no dia seguinte
e eu não estava preparada para o que
estava por vir.
— Vai dar tudo certo. — Fiona
tentou me reconfortar, debruçando-se
sobre o balcão para olhar-me
diretamente. — Hades não vai deixar
você perder.
Eu não sabia mais se podia crer
nisso, ou em qualquer outra coisa vindo
deles. Talvez eu não devesse perder a
confiança em Hades por algo que seu
irmão fez. Afinal, ele havia conseguido
com que Lane Scott fosse preso, como
prometera. Ainda assim, era difícil não
me sentir completamente frustrada.
— Pelo bem dele, é melhor que
não deixe.
Alguns clientes ainda rumavam
para o cassino, que funcionava até às
quatro da manhã. Eu saía às onze. Fiona,
Alec, Selina e Khalil se alternavam para
tomar conta do Pandemônio no período
da madrugada. Eu estava aprendendo
cada dia mais sobre como eles
funcionavam. Eles eram bem
organizados, provavelmente por isso
conseguiram ter o monopólio das
atividades ilegais de Carmine por tanto
tempo.
Em Dallas as coisas eram
diferentes. Joel tinha muitos empregados
e os dominava pelo medo. Ele não era
um bom estrategista, era uma bomba
relógio e Connor Kamps era a única
coisa que o impedia de explodir. Meu
padrasto colocava uma bala na cabeça
de qualquer um que não seguisse
rigorosamente o que ele mandava.
Pensando bem, fora realmente um
milagre minha mãe e eu termos ficado
vivas por tanto tempo. Eu não sabia
muito sobre os Daggers, mas eles
pareciam tão violentos quanto
McKinley. Talvez até mais espertos.
E o erro de Hades
possivelmente era tê-los subestimado
por tanto tempo.
Após terminar de limpar as
mesas e pegar minhas coisas no
vestiário, saí do bar para a noite quente
que o fim de agosto reservava. Estava
pronta para ir para o dormitório e
estudar por mais uma ou duas horas
antes de dormir. No entanto, o grande
Camaro preto de Hades Wrath
estacionado ali em frente me disse que,
de alguma forma, as coisas mais uma
vez não seguiriam como eu havia
planejado.
A janela foi abaixada,
revelando a figura pálida e o sorriso
ladino do rapaz tatuado no banco do
motorista e eu imediatamente soube que
ele estava me esperando. Dei um longo
suspiro, aproximando-me do veículo.
— Quer dar uma volta? —
perguntou ele, apoiando o braço contra o
batente da janela do carro.
Levantei uma sobrancelha,
desconfiada.
— O que você está tramando,
Wrath?
O moreno passou a língua sobre
o lábio inferior, umedecendo-o antes de
deixar seu sorriso crescer.
— Entre e descubra, amor.
Suspirei e cruzei os braços,
hesitando por um milésimo de segundo.
Por fim, mesmo sabendo que
me arrependeria mortalmente, dei a
volta no carro e entrei no espaço do
carona. Estar naquele Camaro era quase
familiar para mim, e foi realmente
esquisito concluir isso.
Sem dizer mais nada, Hades
deu a partida, nos levando para longe de
seu bar e do centro da cidade. Percebi
qual era o nosso destino quando
entramos numa estrada de terra inóspita.
— Vai ter festa no Círculo
hoje? — indaguei, franzindo a testa.
— Não, mas amanhã é sua
corrida e você precisa aquecer — disse
ele, parando o carro alguns metros
depois do trailer de Nick, que, por sua
vez, estava completamente escuro e sem
sinal algum da presença dele. Me
perguntei se Hades havia se certificado
da ausência de seu irmão naquela noite.
— O que quer dizer com isso?
Hades virou o rosto em minha
direção.
— Hive pode ter estragado
minha ideia de trapacear. Agora, Kamps
vai estar esperando por isso. Mas, pelo
menos, não vamos ser pegos de
surpresa.
— O que vai acontecer? O que
Connor vai fazer?
— Provavelmente, ele fará
alguma exigência de última hora.
Levantei as sobrancelhas,
confusa.
— Pensei que eu era sua
exigência de última hora. — Hades
sorriu com o canto dos lábios.
— Meu irmão disse para
Connor exigir correr contra você porque
pensou que você fosse fraca. Pensou que
isso fosse nos desestabilizar. Ele sabe
que quando eu corro tenho meus
métodos para vencer. É perigoso e exige
técnica e experiência. Eles acharam que
você seria o alvo fácil que lhes daria
uma vitória sem esforço.
Fazia sentido, mas pensar
naquilo só me deixava com mais raiva
ainda de Nick. Ele havia me
subestimado. Na verdade, havia me
usado. Talvez, assim que soube que eu
conhecia seu irmão naquela noite em que
me seguiu de moto pelas ruas do
campus, ele tivera aquela ideia. Me usar
para atingir Hades e o Pandemônio.
Talvez o beijo e o flerte tivessem feito
parte disso também.
Trinquei o maxilar, desviando
os olhos para a paisagem completamente
escura e silenciosa que nos cercava.
Tudo o que eu desejara, quando
fugira de Dallas, era esquecer o passado
e me tornar alguém bem diferente de
quem eu costumava ser. Não queria mais
ser manipulada facilmente feito uma
marionete ou ficar à mercê das decisões
e vontades das pessoas ao meu redor.
Não queria, acima de tudo, ser
controlada.
Eu não os deixaria vencer.
Aquilo havia se tornado questão de
orgulho pra mim.
— Então, me ensine — falei,
decidida, e voltei meu olhar para Hades.
— Me ensine a correr como você.
Um sorriso genuíno apareceu
rosto inacreditavelmente belo e
esculpido de Hades. No instante
seguinte, estávamos trocando de lugar
nos assentos do Camaro. Coloquei as
mãos ao redor do volante, um pouco
incrédula que ele me deixaria correr no
seu carro absurdamente caro.
— Se Kamps for esperto, vai
pedir para escolher o carro em que você
for correr, mas ele não pode escolher um
menos potente que o dele. Eu costumava
sabotar o carro dos meus oponentes, mas
ele vai se certificar de que isso não
aconteça — Hades começou a explicar.
— Raven, você precisa saber que não
existem muitas regras nas corridas do
Círculo. É como um vale-tudo. Você tem
que estar preparada para uma colisão ou
um capotamento, porque ele vai tentar te
jogar para fora da pista a qualquer
custo.
Segurei a respiração por alguns
instantes, sentindo o medo se apoderar
de mim e arrepiar minha pele. Até
aquele momento, eu pensei que a pior
coisa que pudesse acontecer fosse os
Daggers vencerem. Agora, o risco de eu
morrer naquela corrida era real.
— Ei. — Senti o toque gelado
dos dedos de Hades contra o meu
queixo. — Você não vai se machucar,
amor. Isso está fora de questão.
Seus olhos escuros me olhavam
com intensidade, como se ele quisesse
fixar suas palavras na minha mente.
Engoli em seco antes de assentir
devagar com a cabeça.
— E se eu perder?
Ele não vacilou.
— Não vai.
Como ele podia confiar tanto
numa estranha? Eu nem mesmo gostava
dele — ou, ao menos, eu estava tentando
me convencer que não.
— Tem que admitir que essa é
uma possibilidade.
— Mesmo se Connor ganhar, e
ele não vai, morrerei antes de deixar que
os Daggers consigam a influência sobre
minha cidade. Nenhum deles conseguirá
o que quer. — Havia determinação em
sua voz e, por alguns instantes, deixei
que seu otimismo me contagiasse. Wrath
sorriu. — Não sou um bom perdedor.
— Ele não vai estar esperando
que eu tente jogá-lo para fora da pista
antes, não é?
Os olhos dele brilharam.
— Não. Com certeza não.
— Ótimo — falei, me
endireitando após apertar o cinto de
segurança. — Vamos correr.
Acelerar um carro como aquele
era uma sensação de outro mundo e foi
capaz de varrer o medo e receio para
longe.
— É tudo sobre ter o controle
do carro. Você domina a máquina, não o
contrário.
Eu acelerei até sentir a
adrenalina tomar conta do meu corpo.
Em alta velocidade não era tão fácil
comandar o carro e eu tinha medo que
ele derrapasse nas curvas — o que não
aconteceu, felizmente.
Depois que completei uma
volta ao redor do Círculo, Hades trocou
de lugar comigo para mostrar como ele
costumava fazer. No começo, tive que
me segurar pela maneira quase violenta
que ele corria. Era rápido. Muito
rápido. Eu deveria fazer algumas
daquelas manobras, curvas fechadas e
bruscas, se quisesse detonar Connor.
Nos alternamos a direção até que eu
perdesse completamente o receio e
começasse a me arriscar de verdade.
Pensei que ficaria mortificada de medo,
mas saber que Hades estava ali ao lado,
de alguma forma, me tranquilizava.
Pelo menos, se eu capotasse no
meio do deserto, não morreria sozinha.
Passamos toda a madrugada ali,
para nos certificarmos de que eu estava
pronta. Quando se aproximou das cinco
da manhã, Hades falou que queria me
mostrar um lugar. Deixei que ele
dirigisse até uma parte mais distante da
cidade. Ficar perto dele não estava mais
sendo tão intimidador. Era quase bom.
Carmine era cercada por um
terreno seco e montanhoso e foi numa
dessas colinas que ele parou. Quando eu
vi as pinceladas laranjas e luminosas
cortarem o céu, eu soube o que ele
estava planejando. Saímos do carro e
nos sentamos sobre o capô, de frente
para um deserto amplo e quase infinito.
Todo o isolamento daquela
região colaborava, provavelmente, para
que Carmine fosse dominada por
aquelas gangues. Não era uma terra sem
lei, mas a cidade vivia sob as leis
discricionárias do Pandemônio e eu
estava determinada a não fazer nenhum
juízo moral sobre isso. Não enquanto
estivéssemos do mesmo lado, pelo
menos.
— Nunca pensou em ir embora
daqui? — questionei, virando meu rosto
para encarar Hades.
Ele tinha os braços cruzados
sobre o peito e um vinco entre suas
sobrancelhas — este que sempre surgia
na expressão de Wrath quando ele
entrava num estado pensativo.
— Nunca — afirmou com
veemência antes de desviar seu olhar da
paisagem para mim.
— Nem em fazer outra coisa?
Hades negou com a cabeça.
— Não sei fazer nada além
disso.
— Isso não é verdade. —
Deixei escapar antes de pigarrear. Ele
levantou uma sobrancelha, interessado.
— Acho que você pode fazer qualquer
coisa que quiser.
Ele havia dito aquilo para mim
uma vez e o reconhecimento nas minhas
palavras o fez sorrir.
— Mas e você? Quais são seus
planos para depois que se formar na
faculdade e encontrar a sua mãe? —
Hades estava desviando do assunto.
Dei um longo suspiro.
— Eu não acho que ela queira
ser encontrada — admiti. — Nem por
mim. Não mais. Enquanto eu não puder
pagar a dívida dela, será impossível
convencê-la a sair de onde quer que ela
esteja escondida. Mas, depois que eu
conseguir dinheiro suficiente para isso,
vamos para algum lugar bem longe.
Talvez o Canadá ou onde ela possa se
sentir segura.
Por um instante, estranhei
aquela ideia. Não parecia mais tão
provável de se concretizar. No fundo,
parte de mim achava que eu nunca
encontraria Astrid. E aquele plano agora
me parecia mais como uma fuga covarde
do que qualquer outra coisa. Afinal, Joel
e Connor ainda estavam lá fora. E,
mesmo que eu os derrotasse na corrida,
eles não desistiriam. Não até que alguém
os parasse.
Hades ficou em silêncio por
algum tempo e eu voltei a olhar para a
paisagem desértica. O sol começava a
despontar no horizonte, fazendo com que
o céu se tornasse uma combinação
impressionante de luzes e cores. Me
imaginei colocando tudo isso em uma
tela.
— Todo o seu plano para o
futuro gira em torno de salvar sua mãe, o
que é bastante nobre, mas e quanto a
você? O que pretende fazer por si
mesma?
Abri a boca para argumentar,
mas eu não sabia o que dizer. Franzi o
cenho e balancei a cabeça.
— Eu vim pra Carmine para
fugir. E continuo aqui, na faculdade,
quando deveria estar fazendo algo mais
útil do que pensar em mim mesma.
— E quanto ao seu pai
biológico? — ele perguntou.
Respirei fundo. Eu quase nunca
pensava nele.
— Ele era um fuzileiro naval,
ao menos, foi o que Astrid me contou.
Os dois namoraram por poucos meses e
ele morreu em combate. Logo depois de
eu nascer ela e Joel começaram a se
envolver.
Hades ficou muito quieto,
parecendo pensativo.
— Não sabe mais nada sobre
ele?
— Nem mesmo seu nome. —
Dei de ombros.
— E Connor sempre te
protegeu sem nenhum motivo aparente?
— Assenti com a cabeça. Não demorou
para que eu compreendesse o que ele
estava sugerindo.
— Acha que ele é meu pai?
Hades não respondeu, mas não
precisou. A sugestão estava estampada
em seus olhos.
Eu estaria mentindo se dissesse
que aquela hipótese nunca passara por
minha cabeça. Afinal, por qual outro
motivo ele se importaria comigo?
Mas Connor era jovem. Pelo
menos dez anos a menos do que minha
mãe e não me lembrava dele estar
presente durante toda a minha vida. Ele
só apareceu após um tempo.
— Sobre o que você disse
antes, não pode se culpar por pensar em
si mesma de vez em quando, Raven.
Todos deveríamos ser prioridade para
nós mesmos. Além disso, sei que você
não teria começado a trabalhar para o
Pandemônio se não precisasse do
dinheiro principalmente para ajudar sua
mãe.
— Não seja hipócrita, Wrath.
Você continua aqui fazendo o trabalho
sujo do seu pai.
— E posso saber por que você
presume que isso não é exatamente o que
eu quero? Como você supõe que eu não
sou igual a ele?
Novamente, eu não soube o que
dizer. Suspirei, abraçando meu corpo.
Hades era um criminoso. O
líder de uma gangue perigosa, afinal.
Mas eu sabia que não era uma pessoa
má ou cruel. Do contrário, ele não teria
me ajudado, nem à Alina ou George. Se
ele fosse alguém desprezível, não seria
tão admirado por seus amigos e
respeitado naquela cidade. Eu sabia que
existia uma diferença entre ser
respeitado e ser temido. Joel e Connor
eram temidos, e por isso todos os
obedeciam. Hades, por outro lado,
parecia ser admirado. Eu sentia que o
Pandemônio trabalhava para ele porque
realmente queria, porque acreditava em
seus princípios e propósitos.
— Você é capaz de coisas
melhores do que isso — eu disse,
simplesmente.
— Não tenha tanta certeza
disso — contrariou ele, subitamente
mal-humorado — Você não me conhece,
amor, é melhor não fazer suposições
rasas sobre mim.
Me empertiguei, surpresa com
seu tom ríspido.
— Parece-me algo que um
covarde diria — rebati, irritada. — Tem
medo de se desvincular do seu pai?
Medo de desobedecê-lo?
Ele riu nasalado, balançando a
cabeça.
— Você não entende.
— Tem razão, não entendo.
Ficamos em silêncio por um
instante, apenas observando a aurora.
Talvez o Pandemônio pudesse
se tornar algo melhor se não fizessem
apenas o trabalho sujo de Frederik
Wrath. Afinal, eles conseguiam controlar
o crime em Carmine e tentavam fazer
tudo da maneira mais correta — na
medida do possível —, diferentemente
dos Daggers. Pelo o que eu sabia, a
gangue de Hades não agia da mesma
maneira violenta que os homens de
Garrett, não matava pessoas ou destruía
coisas pela cidade. Eu ainda tinha
princípios e nunca aceitaria ajuda-los se
eles demonstrassem que eram tão ruins
quanto Joel.
— Meu pai tem maneiras de me
obrigar a obedecê-lo.
Me virei para ele, as
sobrancelhas erguidas, em choque com
sua confissão.
— Ele o ameaça?
— Não. Não a mim.
Então, provavelmente os seus
amigos, talvez até mesmo seu irmão. Eu
não sabia, mas pude ver em seus olhos
como isso o chateava. Me senti mal por
tê-lo julgado. Nada era tão simples,
principalmente quando envolvia
assuntos familiares.
— Ele não pode te ter como
prisioneiro pra sempre — falei, tentando
reconfortá-lo de alguma maneira.
Ele não respondeu, mas eu vi
em seu rosto que aquelas palavras o
afetaram.
Eu estou começando a
acreditar que
Você não enxerga que
Eu te dei a minha vida
Eu queria que você nunca
tivesse prometido coisas
Que nunca iriam se realizar
Lyin King - Jhené Aiko
Eu estava naquela zona
fronteiriça entre estar acordada e
dormindo quando me senti ser
balançada. Franzi o cenho, resistindo.
Estava com sono, sentindo o corpo
mole, e me recusava a abrir os olhos.
Não parecia que eu tinha dormido o
mínimo de horas necessárias para não
me tornar um morto-vivo pelo resto do
dia.
— Raven. — A voz de Libby
soou distante. Ela tentou puxar a coberta
de mim, mas a segurei firme, cobrindo-
me completamente até a cabeça. —
Faltam trinta minutos para a corrida.
Que corrida?
Demorou alguns segundos para
que eu me desse conta e saltasse da
cama.
— Puta merda, a corrida. —
Passei a mão por meus cabelos, que
caíam sobre meu rosto. Estranhei os
raios de sol invadindo o quarto através
da janela. — Que horas são?
— Você dormiu a manhã toda
— explicou ela.
Eu havia perdido mais um dia
de aula. Que ótimo.
Foi então que as memórias da
noite passada invadiram minha mente. O
Sol já havia nascido quando eu chegara
nos dormitórios, e mesmo tentando me
convencer de que eu apenas cochilaria
por uma hora e meia antes de ir para a
aula, isso acontecera.
Xinguei alto após perceber que
ainda estava com as roupas do dia
anterior.
— Por que você chegou tão
tarde? — Libby perguntou, seu tom de
voz carregava certa preocupação.
Não respondi. Voei até o
armário, vasculhando-o até encontrar
peças de roupas decentes.
— Só preciso de cinco minutos
— avisei, antes de entrar no banheiro e
fechar a porta.
Aquele provavelmente havia
sido o banho mais rápido de toda a
história. Eu sequer havia calçado os
tênis quando Libby me arrastou até o
estacionamento, onde George e Alina
nos esperavam no carro dele. Não houve
tempo para me preparar, ou para cogitar
simplesmente fugir o mais rápido
possível.
Enquanto os três dialogavam
sobre o que sabiam das famosas
corridas no Círculos, eu não ouvia nada.
Minha mente estava num lugar muito
longe dali, num terreno cheio de medo e
ansiedade. Eu mordia os lábios
incessantemente e tinha os olhos fixos na
paisagem passando pela janela.
Nunca havia me sentido tão
nervosa. Era como se meu coração fosse
subir todo o caminho até minha garganta
e saltar pela minha boca a qualquer
instante. Eu esfregava as mãos contra o
tecido dos shorts que eu usava, numa
tentativa de secar o suor delas. Era um
dia excepcionalmente quente para a
época do ano e eu sentia que estava
prestes a desmaiar. Por um momento, me
atentei àquela possibilidade.
Tateei ao redor, procurando
meu celular, e só então percebi que o
havia esquecido no dormitório.
Praguejei mentalmente ao mesmo tempo
em que começamos a nos aproximar da
familiar estrada do Círculo. Jamais eu
vira o lugar tão lotado como hoje. Quase
não achamos uma vaga no
estacionamento para a BMW de George.
Pessoas se reuniam ao redor do posto de
gasolina e perto da linha de partida, que
fora sinalizada com uma enorme faixa
xadrez pendurada acima da estrada.
Saltei do carro assim que ele
parou, sem saber o que fazer ou para
onde ir. Ao redor, a paisagem árida
nunca pareceu tão quente. Ninguém
estava incomodado com o Sol a pino.
Estavam ávidos para ver a forasteira
correndo.
Khalil apareceu de repente. Ele
estava eufórico quando me encontrou.
— Onde você estava? —
perguntou, meio irritado.
— Dormindo — respondi,
como se fosse óbvio.
Notei quando ele segurou uma
risada antes de me guiar até uma tenda
montada perto da loja de conveniências.
George, Libby e Alina nos seguiram.
Eram duas da tarde e, enquanto todos
estavam preocupados que eu realmente
tivesse desaparecido, eu estava
dormindo tranquila, alheia a tudo. Por
um momento, também tive vontade de
rir.
Lá dentro estava vazio e a
sombra da tenda foi refrescante. Muitas
caixas estavam espalhadas por lá,
algumas eram de bebidas.
— Nós vamos lá pra pista
encontrar um lugar — George falou,
entrando na minha frente. A única coisa
na qual eu prestava atenção, porém, era
o grito ensandecido da multidão lá fora.
— Você vai vencer, Clarke. Sei que vai.
Ele bagunçou os meus cabelos
de maneira fraternal, mas eu continuei
estática e muda, como se tivesse entrado
em pane.
— Boa sorte, garota! — Libby
disse, me abraçando. — Arrase com
esse imbecil.
Por fim, Alina também me
abraçou antes dos três saírem da
barraca.
Senti que estava prestes a
vomitar.
Pisquei, sem conseguir
processar nada.
— Amor.
A voz de Hades me fez
despertar.
Ele surgiu na minha frente, tinha
as mãos em meus ombros e seus olhos
preocupados fixos nos meus. Talvez
estivesse óbvio como eu estava
completamente aterrorizada. Engoli em
seco, olhando para o outro lado da
barraca, por onde Wade entrava. Ele se
deteve perto de uma mesa e começou a
conversar com Khalil. Estava muito
sério, quase preocupado.
— Raven, você não precisa
fazer isso. — Hades voltou a falar.
Me concentrei na figura do
rapaz à minha frente. Seus cabelos
estavam bagunçados, caindo levemente
sobre suas têmporas, e havia uma
sombra sobre seu maxilar, como se ele
não houvesse se barbeado recentemente.
Sua voz e seus olhos eram doces e gentis
e realmente me acalmaram. Desviei
minha visão para as tatuagens expostas
pela camiseta branca que ele usava. Os
desenhos subiam por seus braços e
pescoço, até as orelhas.
Uma comichão familiar surgiu e
eu fechei minha mão em punho,
desejando muito um cigarro.
— Preciso, sim — contrariei
ele, após alguns segundos. Então, dei um
passo para trás, me livrando do seu
toque suave. — Você sabe que eu
preciso.
— Não, se você não quiser —
insistiu ele.
Balancei a cabeça, respirando
fundo.
Não havia como fugir daquela
situação. Embora eu estivesse com
medo, praticamente aterrorizada, muita
coisa estava em jogo.
— Quero acabar logo com isso.
Onde está o maldito Kamps? — bradei,
nervosa.
E foi e então que um homem
entrou na tenda e veio na nossa direção,
carregando um sorriso arrogante em seu
rosto. Era o maior que eu já havia visto.
Connor estava mais do que confiante e
eu precisava explorar isso como uma
fraqueza.
— Se demorasse mais um
pouco, estaria desclassificado — Hades
falou, cruzando os braços. De repente,
não havia mais nenhuma sombra de
gentileza em seu rosto.
Connor inclinou a cabeça, me
olhando dos pés à cabeça antes de fitar
Wrath.
— Sorte a minha que eu
cheguei a tempo — ironizou, sua
mandíbula se movendo conforme ele
mascava um chiclete. Revirei os olhos.
— Wrath, quero falar com você.
Hades me encarou com o cenho
franzido por um par de segundos antes
de se distanciar, acompanhado de
Kamps.
Soltei um longo suspiro e
prendi os cabelos num rabo baixo em
minha nuca. Olhei ao redor, procurando
Khalil ou algum outro membro do
Pandemônio que pudesse me indicar o
que eu deveria fazer em seguida.
O que eu vi, no entanto, se
aproximando com botas, chapéu de
cowboy e óculos escuros me fez quase
cair sobre meus joelhos. Eu não
acreditava que ele estava ali mesmo,
vestindo uma horrível camisa de
estampa verde e marrom. As mãos
estavam na grande fivela metálica de seu
cinto. Quando me viu, completamente
chocada e prestes a correr, ele sorriu,
um palito pendia no canto de sua boca.
— Pensou que eu nunca
encontraria você? Que tolice, docinho.
Sua voz fez meu corpo se
retesar e lágrimas de ódio brotaram em
meus olhos. Eu sentia puro asco ao vê-lo
e ouvi-lo. Fechei as mãos em punhos,
me segurando para não o atacar e depois
correr o mais rápido que conseguisse.
Ergui o queixo.
— Veio até aqui para ver com
os próprios olhos como eu destruirei o
seu protegido? — Me esforcei para que
minha voz parecesse impassível. Não
queria que ele me achasse que eu era
fraca e vulnerável.
— Você ainda continua burra
igual à sua mãe, tal como eu me lembro
— Joel soprou, esquadrinhando meu
rosto, antes de estalar a língua. — Acha
que só porque a dívida dela foi paga
vocês estão livres?
Franzi o cenho.
Alguém havia pago a dívida de
Astrid?
Pisquei, ainda um pouco
incrédula, mas não deixei McKinley
notar meu choque.
— Você queria sua grana e
agora a tem. Isso acaba aqui, Joel.
— Tsc, tsc, tsc. — Ele
balançou a cabeça, dando um passo em
minha direção. — Posso fazer a
caridade de libertar sua mãe. Afinal, o
que mais eu vou fazer com ela? Mas
você é minha, passarinho. — Meu rosto
se contorceu em repulsa quando ele me
chamou pelo apelido que minha mãe
costumava chamar. — E, muito em
breve, você vai voltar para a gaiola da
qual nunca deveria ter saído.
Eu reuni todo o ódio acumulado
por anos e o deixei substituir o medo.
Dei um passo na direção de Joel,
olhando fundo em seus olhos castanhos,
levemente enrugados nos cantos
externos. Ele cheirava a bebida e a
todas as coisas ruins do mundo.
— Quer pagar pra ver? —
sibilei, entredentes.
Joel estreitou os olhos para
mim, e antes que ele dissesse mais
alguma coisa, Hades apareceu ao meu
lado. Os punhos estavam cerrados na
lateral de seu corpo. O encarei, alto e
imponente, com o maxilar trincado e os
olhos capazes de reduzir qualquer um a
pó.
Eu sabia que só podia ter sido
Hades quem pagou as dívidas da minha
mãe, mas por que ele faria isso?
— Não me lembro do momento
em que permiti que você respirasse o ar
da minha cidade, McKinley.
— Pensei que éramos aliados.
Ele cerrou os olhos na direção
de Hades, como se sua frase tivesse
algum duplo sentido oculto. Franzi o
cenho, sem entender.
— Eu apenas te suportava.
Agora está claro que deveríamos ter
acabado com você logo no começo.
Pouparia muito tempo e estresse.
O sorriso arrogante sumiu do
rosto de Joel e eu temi que ele tivesse
um surto violento que arruinasse nossa
chance de ganhar.
— Você não pode ficar aqui —
falei, rispidamente. — Se quer assistir à
corrida, vá lá pra fora.
Ele respirou fundo, como se
estivesse se controlando, mas não
insistiu.
— Nos veremos em breve —
ameaçou, antes de girar sobre os
tornozelos e se distanciar
Soltei o ar, aliviada com seu
distanciamento, e me virei para Hades.
— É hora de correr — falei,
determinada a acabar logo com aqueles
vermes.

Eu entrei na pista segurando nas


mãos enluvadas um capacete e,
conforme andava na direção dos carros,
eu era flanqueada por Khalil e Hades.
Eu mordia o interior da bochecha,
tentando focar apenas no automóvel
esportivo vermelho que me esperava e
não na multidão ao meu redor. Wrath
estava certo sobre Kamps querer fazer
exigências. Connor escolhera o carro no
qual eu correria, e Hades escolhera o
dele. Assim, ambos teriam certeza de
que ninguém estava trapaceando.
Quando chegamos na linha de
partida, Connor já estava ao lado de seu
carro, encostado na lataria branca com
um ar de vitória no rosto. Desviei o
olhar dele e engoli em seco, sentindo
minhas mãos escorregadias sob as luvas
pretas de couro.
Assim que paramos, me virei,
ficando de costas para meu oponente.
Varri o grupo de pessoas ao redor com
meus olhos, tentando procurar meus
amigos. Percebi que não havia ninguém
próximo ao trailer. Na primeira fileira
do outro lado da rua eu identifiquei
Fiona, Selina e Alec, que segurava um
enorme cartaz escrito "Raven Detona".
Soltei uma risada nasalada.
— Raven, concentre-se em
abrir distância entre você e ele —
Khalil aconselhou, atraindo minha
atenção para seu rosto. — Se ele tentar
investir contra você, se esquive.
Assenti.
— Não precisa tentar atacá-lo.
Pode ser mais rápida se focar em correr
enquanto ele está concentrado em te
jogar para fora da pista — Hades
completou, com certa preocupação em
sua voz.
— Farei absolutamente tudo o
que for necessário para vencer —
garanti, olhando no fundo de seus olhos.
Isso significava que, caso eu
precisasse jogar meu carro contra o dele
para vencer, eu não hesitaria.
Hades apanhou o capacete das
minhas mãos e o colocou delicadamente
em minha cabeça, prendendo-o para que
ficasse seguro. Era a primeira vez em
que eu o via nervoso de verdade. Havia
um vinco em sua testa, ele parecia
pensativo.
Parecia estar… com medo?
— Não vou morrer hoje, Wrath
— falei, tentando acalmá-lo. Seus olhos
baixaram para os meus.
— Eu sei. — Havia certa
confiança em sua voz. Mais do que eu
esperava. Ele pegou minhas mãos,
ajeitando as luvas em seguida. — Eu te
desejaria sorte, mas você não precisa.
Hades acariciou a pele do meu
pulso sobre a luva. Depois, abaixou a
viseira e deu um passo para trás.
— Deixe o carro pronto durante
a contagem regressiva — instruiu
Khalil. — Solte o freio antes do fim da
largada.
— Certo — assenti e dei a
volta no carro para me sentar no banco
do motorista, sem sequer olhar na
direção de Kamps.
Prendi o cinto de segurança e
liguei o carro, soltando o freio de mão.
Senti a máquina começar a vibrar
levemente. O som do motor tornou tudo
mais real.
Reparei Selina andando até a
linha de largada segurando uma grande
bandeira e um megafone. Ela usava um
top apertado com o símbolo do
Pandemônio e shorts jeans.
Hades se aproximou da janela
do passageiro e eu virei a cabeça para
fitá-lo. Seria mais fácil se ele estivesse
sentado ao meu lado como na noite
passada.
Ele sorriu após dizer:
— Faça ele chorar, amor.
Então, se distanciou com
Khalil.
Selina começou a contagem,
falando através do megafone.
10, 9, 8…
Folguei um pouco meu pé
sobre o pedal do freio, sentindo o carro
se impulsionar, querendo acelerar.
7, 6, 5, 4…
As janelas estavam abaixadas e
eu ouvi Connor me chamar,
provavelmente para fazer algum
comentário arrogante e provocativo.
Permaneci com os olhos na pista
asfaltada, ignorando-o.
3, 2, 1…
Soltei o freio e afundei o pé no
acelerador assim que Selina abaixou a
bandeira quadriculada. O carro disparou
feito uma bala. Troquei a marcha com
rapidez e destreza e continuei
acelerando, segurando o volante firme
em minhas mãos. Não percebi o
momento exato em que Connor me
ultrapassou, mas ele estava alguns
metros à minha frente.
Praguejei, acelerando tanto que
meu sangue se tornou pura adrenalina.
Senti gotas de suor se acumularem na
minha testa sob o capacete. Engatei a
última marcha quando o indicador de
velocidade mudou de uma ponta a outra
no painel, e diminuí a distância entre os
carros. Eu estava no encalço de Connor,
virando levemente o volante para
acompanhar o formato da pista, que
circundava rochas e cactos típicos do
deserto.
Ficava grata por Hades ter
treinado comigo na noite anterior.
Conhecer o terreno seria um elemento
decisivo para meu desempenho.
Quando me direcionei mais
para o canto, planejando uma
ultrapassagem, Kamps embicou seu
carro para a direita, colocando-se como
um obstáculo. Desviei e continuei a
correr, tentando seguir o conselho de
Khalil e me manter fora de um embate
direto. Entretanto, meu adversário tentou
jogar seu carro na parte da frente do
meu, com a intenção de me empurrar
para a área pedregosa, às margens da
pista.
Tentei ampliar distância entre
nós dois para evitar suas investidas, mas
ainda estávamos emparelhados. Reduzi
drasticamente a marcha em uma curva
fechada, puxando o freio de mão para
não derrapar. O soltei logo em seguida,
voltando a acelerar com tudo. A
dianteira do meu carro ultrapassou a de
Kamps em alguns centímetros, mas,
antes que eu pudesse contar vantagem, o
desgraçado virou sua frente para a
direita e atingiu minha lateral,
empurrando-me ainda mais para a
direita.
Soltei um palavrão, mas
consegui manter controle sobre o carro
ao diminuir um pouco a velocidade. Vi
pelo retrovisor quando o carro de
Connor derrapou e morreu. Sorri,
acelerando mais e mais. Parecia que a
linha de chegada ficava cada vez mais
distante. Kamps se recuperou rápido e
logo estava colado na minha traseira. E,
se eu o conhecia, ele estaria fervendo
em fúria. Tive minha confirmação
quando ele bateu contra o para-choque
traseiro do meu carro. Com o impacto, o
carro se desestabilizou na pista e eu não
sabia se deveria frear um pouco para
controlá-lo ou tentar acelerar mais para
deixar meu adversário para trás.
— Merda, merda, merda —
praguejei.
Eu estava girando o volante
para impedir o carro de sair do
percurso, costurando instavelmente
sobre o limite da pista. Isso o deu
vantagem e fui ultrapassada novamente.
Xinguei, voltando ao centro da pista e
fazendo meu carro voar nela para
alcançar Kamps.
Eu precisaria fazê-lo bater se
quisesse ganhar aquela corrida.
Apertei o volante com mais
força, até ter certeza de que os nós dos
meus dedos estavam embranquecidos
por baixo da luva. Eu tinha consciência
de que a lataria do carro agora estava
amassada, mas não possuía nenhum dano
grave.
Assim que me coloquei em seu
encalço, desviei para ficar lado a lado
com o carro branco. Joguei minha
dianteira contra a lateral dele, forçando-
o a diminuir a velocidade. Então, o
ultrapassei uns bons metros em uma
curva perigosa, uma que precedia um
grande agrupamento de rochas altas.
Logo após ela, freei
bruscamente e parei o carro atravessado
na pista. Connor não o veria a tempo,
visto que a curva era muito fechada e ele
estaria acelerando como um louco para
me alcançar. Controlei minha
respiração, sentindo meu peito subir e
descer ofegante.
Aquilo poderia dar muito,
muito errado.
A frente do seu carro poderia
bater na lateral da minha, esmagando a
cabine do motorista. Eu não sairia viva
se houvesse uma colisão ali.
Engoli em seco, mas não deu
tempo de pensar mais.
O carro branco surgiu na curva,
em alta velocidade. Assim que me viu,
como eu esperava, freou bruscamente.
Entretanto, permaneceu em movimento
por mais alguns metros graças à inércia.
Ele derrapou, girando para fora da pista
em direção às rochas, onde colidiu e
amassou todo o capô de seu carro, que
rapidamente começou a soltar fumaça.
Sorri satisfeita, mas não perdi
tempo. Engatei a primeira marcha e
manobrei o carro, voltando a correr.
Virei numa curva que retornava até a
estrada principal do Círculo, onde
cruzei a linha de chegada pouco tempo
depois.
Ouvi gritos distantes soarem e
vi de relance algumas pessoas
comemorando, mas não assimilei nada.
Permaneci parada dentro do
carro imóvel, encarando o volante.
Pisquei algumas vezes, sem acreditar
que realmente tinha vencido. Soltei o
cinto e tirei o capacete, jogando-o no
banco do passageiro. O som dos gritos
era alto e estridente. Meus olhos
estavam presos nas mãos trêmulas em
meu colo.
Me assustei quando a porta do
carro foi subitamente aberta e eu ergui a
cabeça, encontrando os olhos brilhantes
de Hades e um sorriso em seu rosto.
Saltei do carro e, antes que pudesse
raciocinar, enlacei seu pescoço e o
abracei. Ele ficou parado por alguns
segundos, talvez surpreso demais, mas
não demorou muito para que eu sentisse
seus braços ao redor da minha cintura,
me apertando contra si.
— Eu consegui — sussurrei,
sem acreditar.
— Eu nunca duvidei disso,
amor.
Fechei os olhos, inalando o
cheiro dele e sentindo a proximidade da
nossa pele.
Naquele momento, eu realmente
senti que era capaz de qualquer coisa.
Desejo cruel, perigo em nossa
consequência
Ei, você quer governar o
mundo?
Nas minhas veias, você me fez
rezar
Leve-me, eu preciso de você na
minha corrente sanguínea
Preciso do seu fogo contra a
minha pele
Continue voltando porque é
você que eu desejo
Bloodstream - Transviolet

De pé na calçada eu observei o
letreiro neon do clube diante de mim.
Depois da minha nada esperada vitória,
Libby quis comemorar. Passamos as
últimas duas horas no flat de Fiona,
esvaziando completamente nossas
cabeças enquanto nos arrumávamos para
passar a madrugada bebendo e
dançando. Alina também estava lá e eu
ficava feliz por ela estar se distraindo
de toda a situação com Lane.
Fiona dissera que todos
estariam na Foxy, uma boate legal no
centro da cidade, onde toda a emoção
também estava. A longa fila que se
estendia na entrada do clube
demonstrava sua fama e reputação.
Antes que esperássemos ali também,
Fiona apenas passou reto e acenou com
a cabeça para os seguranças que
guardavam as grandes portas de vidro.
Eles nem hesitaram ao permitir
nossa entrada.
— Andar com a maior gangue
da cidade tem sua vantagem — observou
Libby enquanto seguíamos Fiona pelo
hall de entrada que dava diretamente no
mezanino, onde se estendiam mesas e
sofás de couro vermelho.
A música era alta e o lugar
estava cheio e escuro, apenas sob luzes
estroboscópicas vermelhas. Olhei ao
redor, procurando por Hades e me
frustrando completamente.
— Ali estão eles. — Movi
meus olhos para a direção em que Fiona
apontou e fomos até lá.
Nos fundos do mezanino,
próximo a uma das escadas que levavam
para a pista de dança lá embaixo,
George e Alec estavam sentados em um
sofá atrás de uma mesa redonda de
vidro. Os dois estavam rindo de alguma
coisa, com drinks em suas mãos.
— Começaram a festa sem nós?
— brincou Fiona, se esgueirando e
sentando entre os dois. Ela roubou a
bebida de Alec e a virou de uma só vez.
Ri da reação dos meninos e
acenei para George. Ele usava uma
camisa estampada amarela e de mangas
curtas, os primeiros botões estavam
abertos. A pele de seu peito e têmporas
brilhava com um pouco de glitter. Hale
piscou para mim.
Olhei ao redor, encontrando
Khalil debruçado contra a balaustrada
do mezanino, encarando a pista abaixo
de nós. Fui até ele, me recostando ao seu
lado e atraindo sua atenção.
— A rainha da noite chegou —
ele assobiou, me fazendo rir, e se
endireitou. Rolei os olhos. — Foi uma
grande vitória hoje, Raven. Você merece
comemorar.
Me inclinei em sua direção
para que ele pudesse me ouvir sob o
som alto das batidas eletrônicas.
— Hades não veio? — titubeei,
forçando um tom casual. Meu interesse
não passou despercebido por K,
entretanto, que sorriu de maneira
sugestiva.
— Ele está resolvendo umas
coisas, deve chegar mais tarde.
Assenti, um pouco
decepcionada, e desviei o olhar para as
pessoas dançando sob nós.
Não sabia bem o porquê, mas
eu queria vê-lo. Desde o fim da corrida,
após ele se afastar e eu sair com Libby,
Alina e George, essa necessidade
começara a crescer dentro de mim.
Eu o queria por perto a todo
momento. Desesperadamente.
Não sabia mais como ficar
longe de seu magnetismo, embora eu
tivesse tentado muito.
Era tarde demais. Eu já estava
submersa naquele mundo. Submersa em
Hades Wrath.
Suspirei, voltando a olhar para
Khalil. Percebi, então, que ele estava
olhando para trás com uma expressão
pensativa enquanto encarava algo — ou
alguém. Naquela direção, encontrei
Alina sentada no braço do sofá de
couro. O vestido dourado e brilhante
combinava com os cachos loiros de seu
cabelo, que caíam sobre seus ombros.
As longas pernas cruzadas terminavam
em sandálias de salto. Seus olhos azuis
demonstravam tédio. Entendi
imediatamente por que ele parecia tão
hipnotizado.
Mais do que isso, Khalil estava
fascinado pela minha amiga.
Mordi o lábio inferior,
contendo um sorriso.
— Deveria chamá-la para
dançar — sugeri, aumentando o tom da
voz para chamar sua atenção.
Ele moveu os olhos para mim,
parecia levemente acanhado.
— Eu… — K não terminou a
frase. Provavelmente, não sabia o que
dizer.
— Alina precisa se divertir um
pouco. Os últimos dias foram difíceis.
Ele assentiu e hesitou um
pouco, mas, por fim, foi até ela.
Observei quando ele sussurrou algo em
seu ouvido e um sorriso iluminou o rosto
de Alli. Khalil apanhou a mão dela e a
guiou para a pista de dança.
Poucos minutos mais tarde,
Libby e eu descemos também.
A pista de dança estava cheia e
bastou tomar dois cosmopolitans para
que eu sentisse uma vontade
incontrolável de dançar. Me soltei
rapidamente e deixei que todas as
preocupações em minha mente se
esvaíssem. Libby conseguia dançar pior
do que eu, de modo que não pude evitar
gargalhar quando ela balançou o corpo
feito uma centopeia.
Depois de um tempo
dispensando os caras que se
aproximavam de mim, um rapaz alto e
forte o suficiente para ser um
halterofilista chamou Libby para dançar
e ela aceitou. Pisquei para ela e me
distanciei, indo me sentar num dos
banquinhos do bar enquanto bebericava
um mojito e observava a movimentação
ao redor.
Ainda não havia sinal algum da
presença de Hades. Provavelmente, ele
não apareceria. Suspirei, sentindo-me
tola por ficar tão frustrada. Então, me
endireitei e voltei a varrer o clube com
meus olhos. No mezanino, Alec e
George ainda estavam conversando e
Fiona dava uns amassos numa garota nas
escadas. Alina e Khalil pareciam presos
em seu próprio mundo, dançando juntos
lentamente na pista de dança ao mesmo
tempo que todos ao seu redor pulavam
com a batida agitada que o DJ tocava.
Não muito distantes do casal,
Libby e o desconhecido estavam aos
beijos, o que me fez rir um pouco com
sua urgência.
Era meio patético eu ser a
única do grupo a estar sozinha. Depois
de tanto tempo no inferno, eu não tinha
certeza se, de fato, sabia como me
divertir.
Determinada a provar a mim
mesma que sim, eu sabia e podia,
terminei meu coquetel e incentivei os
dois caras ao meu lado para uma
competição de shots de tequila. Até
aquele momento, eu havia ignorado seus
olhares indiscretos para mim, e, mesmo
sem conseguir determinar se eu os
achava bonitos ou não, eles eram os
únicos que também estavam no bar
querendo se embriagar.
Antes de decidir que queria ir
para a universidade e ter uma vida
normal fora de Dallas, passei semanas
frequentando bares e bebendo feito
louca para esquecer como eu fora
abandonada por Stephen. Eu tinha
experiência com tequila, e isso me
garantiu a segunda vitória do dia quando
eu tomei cinco shots em menos de
cinquenta segundos.
— Porra, isso foi a coisa mais
sexy que eu já vi — um deles, acho que
o loiro de cabelos encaracolados, disse.
Revirei os olhos, já me
sentindo entorpecida pela bebida, e
voltei para a pista de dança. Perdi a
noção do tempo me movendo
despreocupadamente no ritmo da
música. Dancei com três ou quatro caras
que se aproximaram, mas eles
desistiram quando perceberam que suas
presenças eram irrelevantes para mim.
Não estava interessada em beijar
nenhum deles.
Mesmo quando o DJ anunciou a
hora das músicas lentas para o deleite
dos casais, eu permaneci dançando
sozinha — bêbada demais para pensar
em como isso me fazia parecer. Não
sabia se estava parecendo sensual ou
ridícula ao balançar meus quadris
lentamente de um lado para o outro, os
olhos fechados e a cabeça jogada para
trás.
Duas músicas depois, ao abrir
os olhos, encontrei instantaneamente o
rapaz alto com os braços tatuados
apoiados no parapeito de vidro do
mezanino, alguns metros acima de mim.
Hades me encarava com um olhar
indecifrável, como se eu fosse a única
naquela pista de dança lotada. Ele
observava atentamente cada um dos
meus movimentos, como se estivesse me
estudando.
Senti meu corpo se arrepiar, o
calor subindo todo o caminho dos meus
pés até a cabeça.
Semicerrei os olhos para
Hades, um pouco brava por ele ter
demorado tanto. O cretino não podia
simplesmente aparecer depois de horas
e me transformar numa chama
incandescente e sedenta só por admirá-
lo.
Me virei para o outro lado,
determinada a cortar o contato visual, e
continuei a dançar, me convencendo de
que não me importava tanto assim com
sua presença e que ele sumiria se eu
apenas o ignorasse. Poucos instantes
depois, eu soube que estava
completamente errada quando um par de
mãos tocaram a minha cintura.
Fechei os olhos, sentindo seu
peito rígido contra as minhas costas, e
não consegui ficar brava por estar tão
feliz com a aproximação. Suspirei em
deleite quando seus dedos gelados
encontraram a faixa de pele exposta
entre o cropped e a saia de couro que eu
usava. O toque de sua outra mão se
direcionou para o meu braço direito,
subindo lentamente por sua extensão até
chegar ao meu pescoço. Ele afastou os
meus cabelos, deixando minha nuca
exposta. Senti sua respiração quente
próxima à minha pele.
Os saltos que eu usava
diminuíram um pouco nossa diferença de
altura, o que permitiu que eu tombasse a
cabeça contra seu ombro.
— Você demorou — sussurrei.
— Desculpe. — Sua voz soou
pesarosa ao pé do meu ouvido.
Me virei, ficando de frente para
ele, e coloquei os braços ao redor do
seu pescoço. Eu queria olhar em seus
olhos profundamente escuros. Inclinei a
cabeça para fitá-lo em toda a sua
expressão séria e sexy e deslizei uma
mão para o seu rosto, arrastando-a
contra a pele macia e lisa de sua
mandíbula. Passei o polegar por seus
lábios finos naturalmente rosados.
— Você é tão bonito — falei,
admirando os traços perfeitos de seu
rosto.
— E você está bêbada —
rebateu ele, ainda com um braço ao
redor da minha cintura.
— Você não? — Levantei uma
sobrancelha.
Wrath balançou a cabeça.
— Não agora — disse ele. —
Não quando eu não quero estar.
Engoli em seco, aproximando
meu corpo do dele conforme ele me
guiava no ritmo da música. Estávamos
dançando muito devagar, mas tudo no
que eu prestava atenção era nele. Na
maneira intensa com a qual ele me
fitava, no seu cheiro de perfume
importado e loção pós-barba, no meu
peito colado ao seu...
Ele subiu dois dedos pela
extensão da minha coluna antes de
emaranhá-los em meus cabelos.
— Hades Wrath está sempre no
controle de tudo, não é? — provoquei,
desafinando um pouco por causa do
álcool.
— Menos quando eu estou
perto de você, ao que parece.
Sua voz soou grave e rouca,
fazendo todos os pelos do meu corpo se
arrepiarem. Inclinei a cabeça para
observá-lo. Queria compreender o que
aquilo significava, mas todos os meus
sentidos estavam entorpecidos, de modo
que apenas ri.
— Você continua bonito quando
eu não estou bêbada.
Hades soltou uma risada
nasalada e eu pensei ter visto uma
sombra de frustração em seus olhos, mas
não me atentei muito àquilo.
— Continuo, sim — confirmou,
presunçoso. — Mas você nunca
admitiria isso se estivesse sóbria.
Ele tinha um ponto.
Álcool realmente era coragem
líquida. Agora eu podia admitir pra mim
mesma como Hades Wrath era sexy
como o inferno e como eu queria muito
beijá-lo.
Segurei seu rosto entre minhas
mãos e me coloquei na ponta dos pés,
levando minha boca até a dele.
Entretanto, Hades desviou, de modo que
o beijo avassalador que eu desejava se
tornou um leve encostar dos meus lábios
em sua bochecha.
Bufei, me afastando para
encará-lo. No processo, tropecei em
meus próprios pés e ele precisou me
segurar pela cintura para que eu não
desmoronasse no chão.
— Não faça agora algo do qual
você vai se arrepender amanhã, amor —
pediu com a voz arrastada, quase como
se ele estivesse sentindo dor física.
— Eu ainda quero te beijar
mesmo quando não estou alcoolizada —
falei, muito perto de implorar para que
ele me beijasse.
Hades levou uma mão para meu
rosto e seu polegar alisou suave e
carinhosamente minha pele. Ele tinha os
olhos em chamas encarando meus
lábios.
— É melhor eu ir. — Ele se
desvencilhou de mim.
Pareceu frio e indiferente, o
que me deixou furiosa.
Onde estava o maldito Hades
Wrath provocativo e sarcástico que eu
conhecia? Aquela sua versão
melancólica e contida ali na minha
frente não era nem um pouco divertida.
Segurei-o pelo ombro.
— Não seja um estraga
prazeres, Wrath. — Ele me olhou por
alguns segundos antes de fazer
novamente menção de se virar. — Seu
irmão não foi tão dramático quando eu o
beijei.
Eu falei alto o suficiente para
algumas pessoas ao redor olharem em
nossa direção. Hades me encarou com
olhos indecifráveis. Mesmo bêbada eu
me arrependi daquelas palavras. Apenas
tentara machucá-lo gratuitamente.
Eu nunca vira um olhar tão
apático e, ao mesmo tempo, tão intenso e
cheio de significado quanto o de Hades
naquele momento.
Eu queria que ele revidasse,
que dissesse alguma coisa, qualquer
coisa. Ele não podia apenas ser
indiferente quanto àquilo.
Mas Hades se virou sem dizer
nada e foi embora de qualquer maneira.

— Nunca mais vou beber na


minha vida — falei, uma hora após
acordar na manhã de sábado, abraçada
ao vaso sanitário.
Eu sentia que meu interior era
pura gelatina. Minha cabeça doía e a
qualquer mísera claridade de sol
incomodava meus olhos. Eu estava
sentada no box do banheiro me sentindo
completamente deplorável. Não que
Libby estivesse muito melhor. Ela estava
deitada sobre o tapete do banheiro, os
braços e pernas estendidos enquanto ela
encarava o teto. Apesar de nossa
maquiagem borrada e do meu cabelo
desgrenhado, as trancinhas cor-de-rosa
dela permaneciam impecáveis.
— Você acha que eu peguei
herpes daquele cara? — ela perguntou
com a voz trêmula de medo.
— É pouco provável —
respondi. — Você sabe como eu acabei
quebrando o salto?
Libby balançou a cabeça,
negando, e eu dei um longo suspiro.
Não me lembrava de nada
depois de chegar ao bar. Tudo o que
tinha na memória era a imagem de um
Khalil muito interessado em Alina. Todo
o resto estava completamente nebuloso.
Talvez eu tivesse dançado tanto na pista
que o salto da sandália se partira em
meu pé.
Mas eu me recordava
vividamente de ter passado parte da
madrugada colocando pra fora do meu
organismo todo o mix de bebidas que
tinha ingerido naquela noite.
— Não faço a menor ideia —
murmurou ela.
Antes que eu pudesse dizer
mais alguma coisa, o toque familiar do
meu celular começou a berrar no quarto.
A pessoa parecia determinada a não
desistir de me ligar, pois o toque nunca
cessava, fazendo minha cabeça doer
tanto que parecia prestes a explodir.
Bufei alto e me levantei,
motivada a acabar com aquela tortura,
arrastando os pés descalços sobre o
carpete do dormitório completamente
escuro.
Essa era, de longe, a maior
ressaca de toda a minha vida.
— Alô? — sussurrei quando
atendi o aparelho sem sequer checar o
identificador de chamadas.
— Por que as donzelas estão
se escondendo? Vocês estão perdendo
uma linda tarde de sábado.
A voz de George parecia
especialmente estridente naquele
momento.
— Pretendo não sair deste
dormitório por pelo menos duas décadas
— anunciei, colocando os dedos numa
das têmporas ao sentir minha cabeça
latejar.
— Bem, é uma pena. Temos um
evento para ir hoje à noite. Pego vocês
aí às oito.
— Espera, por que você está
tão feliz? Cadê seu mau-humor depois
de uma noite como a de ontem? Tenha
uma ressaca horrível como todo ser
humano normal, pelo amor de Deus.
— Minha noite foi ótima, não
tive motivos para me embriagar. Já
você…
Franzi o cenho, confusa.
Eu não me lembrava da maior
parte da noite passada, o que me
deixava realmente preocupada. Afinal,
bêbados falavam e faziam coisas
vergonhosas e lamentáveis. Era
perturbador não saber o que eu havia
feito.
— Do que você está falando?
— Não sei o que houve. Num
minuto você estava agarrada ao Hades,
como se ele fosse a última molécula de
oxigênio do mundo. No outro, ele
estava marchando para fora da boate
pronto para declarar o apocalipse.
Bati a mão contra meus lábios,
que se separaram completamente quando
meu queixo caiu ao chão.
Flashes confusos daqueles
momentos cruzaram minha mente. Fechei
os olhos, me lembrando de estar tão
próxima de Hades que podia sentir seu
perfume e o ritmo constante de sua
respiração.
Eu esperei por horas até ele
chegar na Foxy, mas não me lembrava
exatamente do momento em que ele
aparecera.
Droga, eu não me lembrava de
quase nada.
— Eu preciso de mais
informações. O que mais você viu?
Eu segurava firme o celular e
minha voz soou completamente
desesperada.
— Nada — respondeu,
simplesmente. — Mas não se preocupe,
todos fazem merda quando estão
bêbados. Não fique aí sentindo pena de
si mesma. Nos vemos em breve.
Ele desligou.
Grunhi, completamente
chocada, antes de procurar rapidamente
o nome de Hades na minha lista de
contatos. A ligação chamou mais vezes
do que eu pude contar e, por fim, caiu na
caixa postal.
Arremessei o celular na cama,
frustrada, ao mesmo tempo em que soltei
um palavrão. Em seguida, passei os
dedos por entre os fios cheios de nós em
minha cabeça.
Eu não conseguia organizar
meus pensamentos e minhas emoções o
suficiente para entender o que eu sentia
por Hades. Ele me deixava irritada. Me
empurrava em direção ao limite da
minha sanidade. E eu tentei odiá-lo,
tentei muito vê-lo como um inimigo, mas
ele insistia sempre em me ajudar. E
apesar de todos os alertas sobre não me
deixar envolver, meu corpo gritava toda
vez que estava perto dele.
Cada vez que eu mergulhava um
pouco mais na escuridão que era Hades
Wrath, descobrindo as coisas que ele
escondia, menos eu conseguia repudiá-
lo. Entretanto, eu não sabia como agir.
Afinal, ele deixara bem claro que eu não
o conhecia de verdade. Eu não tinha a
menor ideia do que ele pensava, do que
sentia, do que queria.
Provavelmente alimentar aquilo
era um terrível erro. Hades era Hades e,
enquanto o céu fosse azul e o inferno
fosse quente, ele seria complicado e
perigoso.
Eu sairia perdendo no fim
daquela história.
Você se levanta, eu caio
Eu me firmo, você rasteja
Você se contorce, eu me
transformo
Quem será o primeiro a
queimar?
Você está desistindo e eu estou
cansada
Desse cabo de guerra ao qual
estamos brincando
Black Sea - Natasha Blume
Depois de algum tempo, entrei
num consenso comigo mesma e decidi
não deixar aquela confusão me
perturbar. Começou a chover e eu
precisava arrancar de mim os resquícios
da ressaca. Após um banho e uma
aspirina, eu parecia completamente
renovada. Libby e eu nos arrumamos
para ir até onde George pretendia nos
levar — seja lá onde fosse.
Vestindo um par de botas de
cano curto, calças jeans e uma jaqueta
de couro preta por cima de uma blusa
branca, eu entrei no carro dele pouco
depois do rapaz avisar que estava
estacionado em frente ao alojamento.
Libby com certeza estava
vestida para o MET Gala quando se
sentou no banco de trás. Usando suas
roupas extremamente estilosas e com o
rosto maquiado perfeitamente, ninguém
ousaria dizer que ela passara as últimas
horas numa ressaca horrível.
George me encarou assim que
eu deslizei sobre o assento do
passageiro. Seus olhos verdes me
inspecionaram de cima a baixo.
Cruzei as mãos no colo após
ligar o rádio.
— Vai ou não nos dizer para
onde está nos levando?
Ele sorriu, dando partida no
carro.
— Vocês vão ver. — Foi a
única resposta que George deu, me
fazendo revirar os olhos.
— Tem notícias da Alina? —
perguntou Libby.
— Não — soprou George, com
um sorriso malicioso no rosto. — Mas
acredito que ela ficará incomunicável
por algum tempo, já que foi embora com
Khalil ontem à noite.
— Uau — Libby exclamou
animada. — E quanto a você e Alec?
Pareciam muito íntimos ontem.
— Prefiro não dizer nada que
me incrimine — George respondeu, com
malícia.
Sorri.
Eu lembrava vagamente de ter
sugerido que K chamasse Alli para
dançar, mas não pensei que as coisas
fossem terminar assim. Apesar disso, eu
estava feliz por ela. Khalil parecia ser
um cara legal e eu confiava em seu
caráter. Não saberia precisar quando ou
como aquilo acontecera, mas grande
parte dos meus receios quanto àquela
gangue se atenuaram. Eles não eram,
nem de longe, tão ruins como eu
imaginara.
Aquela corrida mudara muita
coisa, aparentemente. Meu círculo de
amigos se aproximou demais do
Pandemônio. Mesmo Alina, que sempre
deixara claro sua reprovação pelo o que
a gangue de Hades fazia, havia cedido.
Certamente, existia algo hipnotizante no
Pandemônio e não era só eu que estava
sendo atingida por isso.
George estacionou numa vaga
diante de uma enorme e bela construção.
Ela era quase que completamente feita
de vidro. Tinha a estrutura moderna,
com arestas brancas e faixas de tecido
vermelho caindo de cada lado da
entrada flanqueada por seguranças. A
placa prateada no chão ali em frente
trazia em letras iluminadas as palavras:
Galeria de Evelyn Florence.
— Não sabia que havia uma
galeria de artes na cidade — falei,
surpresa, ao sair do carro para debaixo
do grande guarda-chuvas preto que
George abrira para nos proteger da
garoa.
Eu fiquei instantaneamente
animada.
Eu era fascinada por artes
desde que descobrira sua capacidade
para me fazer esquecer da realidade.
Poderia passar horas imersas em
desenhos e pinturas. Em alguns
momentos, aquilo era a única coisa
capaz de me alegrar. Era através da arte
que eu tapava o buraco enorme que
existia dentro de mim.
Mesmo minha antiga escola
fazendo excursões para museus e
galerias, eu nunca fora permitida a ir em
nenhuma delas. Assim, eu me contentava
com fotografias na internet. Aquele
seria, de fato, meu primeiro contato
direto com obras feitas por artistas
profissionais.
— É um lugar mágico, você vai
amar — garantiu meu amigo.
Quando entramos no hall,
George fechou o guarda-chuvas e deixou
no suporte metálico próximo à porta.
Um lustre enorme de cristal
decorava o ambiente, bem como um
tapete vermelho e estampado sobre o
chão de mármore cinza. À direita havia
uma mulher num terninho azul
distribuindo folhetos sobre a exposição,
mas eu não estava prestando atenção
nela. Meus olhos estavam
completamente fixos na enorme
fotografia que ocupava grande parte
daquela parede. Reconheci de imediato
a mulher pálida de nariz reto e pontuado
e ossos zigomáticos protuberante.
— Essa é a…? — sussurrei
para George ao meu lado. Ele acenou
com a cabeça, colocando as mãos nos
bolsos de sua calça bege.
— A mãe de Hades? Sim, é ela
— confirmou. — Tia Eve era artista e
fundou essa galeria quando tinha a nossa
idade. Ela era a melhor.
Eu não fazia a menor ideia.
— Nossa, ela era tão bonita —
observou Libby, fascinada.
— Hoje é aniversário de sua
morte e suas últimas obras inéditas estão
em exposição pela primeira vez —
George informou, apontando para o
folder que estava sendo distribuído.
Quando nos viramos para
seguir galeria adentro, eu estava ansiosa
para ver as criações daquela mulher. Do
lado oposto, à nossa esquerda, havia
uma cafeteria. Meu olhar rapidamente
encontrou o de Hades, sentado num dos
sofás ao lado de Selina. Na mesma
mesa, mas de costas para mim, pude
reconhecer as figuras de Alec e Fiona.
Wrath parecia ter sido o único
a notar de imediato nossa presença e eu
ainda não conseguira desvendar o
significado na maneira como ele me
olhava.
Eu queria muito ser capaz de
ler seus pensamentos.
Pisquei, saindo de transe
quando Alec olhou para trás, notando o
foco do olhar do amigo, e acenou. Segui
George e Libby naquela direção. O
sorriso de Alec para Hale foi
extremamente sugestivo. Eles se
cumprimentaram com um abraço e eu
acenei com a cabeça para Selina, que
continuava sentada em seu lugar,
observando-me atentamente.
Ela parecia um corvo, sempre
rondando e eu não compreendia o
motivo de sua hostilidade comigo.
— Como você está depois da
noite de ontem? — perguntou Fiona,
chamando minha atenção, com um
sorriso maldoso nos lábios. — Não
sabia que você era tão divertida, Clarke.
Eu poderia ter ficado vermelha
de vergonha ao lembrar de todas as
coisas lamentáveis que eu
provavelmente fizera na madrugada
anterior, mas eu estava nervosa demais
para isso. Queria resolver tudo com
Hades de uma vez. Precisava apenas que
ele dissesse o motivo pelo qual ficara
tão bravo ontem.
— Quero falar com você —
falei, direta, olhando para ele.
Com isso, andei até o outro
lado do ambiente, que cheirava a café e
baunilha, e cruzei os braços, esperando.
Hades se aproximou com as mãos nos
bolsos do casaco. Ele não estava com a
jaqueta do Pandemônio como de
costume. Usava um sobretudo preto
sobre uma blusa da mesma cor e de gola
alta, cobrindo todas as incríveis
tatuagens que ele possuía.
Engoli em seco, meio sem
saber o que dizer.
— Eu não me lembro de muita
coisa da noite passada, mas sei que você
estava lá. Eu posso ter dito ou feito algo
sob a influência da bebida…
— Você estava sob a influência
da bebida quando beijou Hive também?
— rebateu ele, duro e frio, exatamente
como seu rosto parecia naquele
momento.
Pisquei algumas vezes,
completamente estática.
A memória voltou aos poucos.
Eu tentei beijá-lo e, quando ele desviou
das minhas investidas, eu lhe contei que
beijara Nick.
Passei as mãos pelos cabelos,
praguejando.
— Eu… — Balancei a cabeça,
fazendo uma careta ao lembrar daquilo.
— Não vou pedir desculpas por isso.
Quem eu beijo não é da sua conta e você
não tem o direito de ficar bravo comigo
por isso.
Hades suspirou, os ombros
caindo em seguida. Ele passou as mãos
no rosto e depois na nuca, como se
estivesse se sentindo frustrado consigo
mesmo. Quando me olhou novamente,
suas barreiras estavam caídas. Não
havia mais frieza estampando seu rosto.
— Eu sei — admitiu, cansado.
— Eu sei, amor.
Não esperava que ele fosse dar
o braço a torcer tão rápido assim. Fiquei
realmente surpresa.
Hades parecia magoado e eu
tinha medo de me questionar sobre o
motivo disso. Talvez eu soubesse a
resposta, mas não queria admitir para
mim mesma.
— Me desculpe por ter tentado
te beijar ontem — sussurrei,
envergonhada.
Evitei pensar no que ele
deveria ter achado de mim quando
investi nele daquele jeito, mas com
certeza devo ter parecido muito patética.
Repreendi a mim mesma por ter jogado
fora, em apenas uma noite, o orgulho que
eu cultivara durante uma vida inteira.
Hades balançou a cabeça.
— Por favor, não peça
desculpas por isso.
Engoli em seco, tendo ainda
mais certeza do que eu não queria
aceitar.
Me apressei em mudar de
assunto.
— Obrigada por pagar a dívida
da minha mãe. Prometo devolver cada
centavo assim que puder.
Eu mal podia esperar para ligar
e deixar um recado para ela, dizendo
que, finalmente, não era mais preciso ter
medo. As coisas podiam melhorar e nós
poderíamos ficar juntas.
— Não — Hades cortou,
rápido. — Eu tenho mais dinheiro do
que posso gastar, com certeza tenho mais
do que preciso. É bom saber que ele foi
usado para algo que vale a pena, pra
variar. Além disso, pareceu importante
pra você.
— E é — assenti. — Você não
imagina o quanto. Sinto muito pela sua
mãe. George me contou.
Com certeza era difícil passar
por aquele dia, principalmente após
presenciar o perecimento da própria
mãe, dia após dia. George dissera que
Hades cuidara dela quando o pai não
dava a mínima. Aquela era uma bagagem
enorme para se carregar sozinho e eu
duvidava que Hades a compartilhasse
com alguém.
— Isso é tudo o que restou
dela. — Ele acenou com a cabeça,
indicando ao redor. — Minha mãe sabia
reconhecer o talento quando via um. Ela
teria gostado dos seus desenhos. Você é
muito, muito boa nisso, amor. Tanto
quanto ela.
Pensar naquilo, em poder ser
uma artista profissional como ela, fez
meus olhos se encherem de lágrimas e
eu rapidamente pisquei para me livrar
delas. Talvez ele estivesse certo quando
dissera que eu deveria pensar em mim
mesma um pouco. Eu amava arte e
sempre pensei que a universidade era a
única maneira de eu ser alguém e poder
escapar das garras de Joel. Nunca
planejara um futuro fazendo o que eu
amava.
Nunca, até aquele momento, me
imaginei como artista.
Depois que fomos chamados
pelo resto dos nossos amigos, George,
Libby e eu entramos para dar uma
olhada na exposição. Havia muitas
pessoas por ali apreciando as artes
espalhadas pelas paredes brancas da
sala circular. Com certeza, grande parte
da cidade conhecia a falecida artista.
Arregalei meus olhos assim que
adentrei ao salão de exposição.
Definitivamente, eu não estava
preparada para aquilo. Senti um nó
crescer na minha garganta ao observar o
padrão em suas pinturas.
As obras de Eve eram cheias
de emoção. Eu conseguia sentir a
intensidade apenas ao observá-las. Ela
usava cores escuras, melancólicas e em
todos os seus quadros parecia haver uma
tempestade de sentimentos. Poderia
imaginá-la facilmente atrás de um
cavalete, nos últimos anos de sua vida,
triste, solitária e doente, transpondo toda
emoção que podia para suas obras,
falando através delas.
Senti meu coração apertar
quando parei diante de uma enorme
pintura. O fundo era uma mistura de
verde e azul e em primeiro plano havia
as silhuetas de dois pequenos garotos.
Eles estavam no chão, cercados por
lobos. Raios cortavam o céu noturno na
tela e parecia tão real que eu quase
podia ouvir o som das trovoadas. Os
meninos, entretanto, pareciam pacíficos,
rindo enquanto disputavam uma pequena
adaga. Estavam completamente alheios
aos lobos de olhares famintos ao seu
redor.
Rapidamente compreendi que
os garotos eram Hades e Nicholas.
— Perturbador, não? — Eu
estava tão distraída que mal notei a
aproximação de Zora.
Ela tinha os olhos fixos na
imagem. Usava uma calça social creme
de cintura alta. Os braços estavam
cruzados em frente ao corpo e seu rosto
carregava uma expressão pensativa.
— Eu não diria isso —
contrariei, inclinando a cabeça ao voltar
a encarar a pintura.
As pinceladas pareciam quase
intuitivas. Não era exatamente uma obra
clássica, onde as medidas e proporções
eram perfeitas e calculadas e todos os
padrões e formas eram harmoniosos.
Aquele quadro era completamente
passional, caótico.
— Gosto da técnica dela —
concluí, admirada.
Zora suspirou antes de passar a
mão sobre o queixo e se virar, sentando-
se no banco de madeira de frente para o
quadro. Me sentei ao seu lado.
— Nick me disse que você era
uma grande amiga de Evelyn.
Ela deu de ombros.
— Eu era a única amiga dela.
Isso, é claro, antes de seu marido
proibi-la de me ver.
Havia rancor em sua voz. Um
pouco de saudosismo também. Enquanto
eu esquadrinhava seu rosto, reparei na
tatuagem um pouco desbotada em sua
pele negra e iluminada. Sobre seu
ombro, em letras cursivas delicadas
demais para o estilo rústico de Zora,
estava escrito Evelyn.
Ela baixou o olhar para as
mãos sobre seu colo, parecia estar
segurando o choro.
Tudo começou a fazer sentido.
— Você a amava — deixei
escapar, impressionada.
Bati os dedos sobre os lábios
assim que percebi que tinha dito em voz
alta.
Zora não pareceu se importar,
entretanto.
— Não era recíproco — ela
disse com pesar, antes de engolir em
seco.
— Talvez fosse. — Tentei
consolá-la. — Talvez ela apenas
estivesse com medo.
— Acho que nunca saberei.
Eu quis abraçá-la naquele
momento, mas ela não parecia ser muito
o tipo que gostava de contato — ou de
demonstrar vulnerabilidade. Percebi
isso quando ela logo secou uma lágrima
que escapou pelo canto de um de seus
olhos. Me reconheci um pouco nela
naquele momento. Quando o assunto era
emoções, nós duas éramos parecidas.
Era uma história triste. O
mundo não fora mais gentil com elas do
que comigo ou minha mãe. Era uma
realidade cruel, mas cada uma de nós
tinha seu próprio calvário para suportar.
Suspirei, desviando o olhar
para o arredor. As pessoas pareciam tão
admiradas quanto eu ao se depararem
com obras tão impactantes. Entre eles,
avistei Stephen. Rapidamente, desviei
meu olhar para o lado oposto, onde
encontrei outra pessoa. Ele tentava se
camuflar sob um moletom cinza, mas vi
seu rosto de relance e imediatamente o
identifiquei. Suas mãos estavam nos
bolsos enquanto ele encarava um dos
quadros.
Respirei fundo, hesitando por
alguns instantes. Por fim, me levantei e
fui até lá. Cruzei os braços ao seu lado,
percebendo quando sua postura mudou
ao notar minha presença.
— Parabéns por ganhar a
corrida.
Não havia emoção em sua voz.
Estava apenas apático.
Ignorei, porque falar sobre
aquilo me faria pensar em como ele
conspirara para a minha derrota.
— Sinto muito pela sua mãe. —
Mudei de assunto. — Não deve estar
sendo fácil pra vocês.
Nick me encarou sob o capuz.
Ainda havia resquícios dos hematomas
causados por seu irmão algumas noites
atrás. Um de seus olhos estava um pouco
roxo e inchado.
— Eu estraguei tudo, não foi?
— A emoção em sua voz me atingiu feito
a bala de um canhão. — Eu sempre
estrago tudo com todo mundo. —
Nicholas voltou seus olhos para o
quadro. — Tenho sorte da minha mãe
não estar aqui para testemunhar todas as
coisas ruins que eu fiz.
Dei um longo suspiro,
organizando os pensamentos em minha
mente. Eu não queria dizer a coisa
errada ou ser cruel, pois isso só seria
chutar cachorro morto.
— Posso não a ter conhecido,
mas duvido que ver os dois filhos se
odiando até a morte era algo que Eve
quisesse.
Nick travou o maxilar.
— Não seja gentil comigo, sei
que deve me odiar agora.
— A vida bateu forte contra
nós, Nick. O mundo não teve piedade da
gente. Ambos conhecemos a dor de
perto, mas podemos escolher como
vamos agir diante dela. Você e Hades
são tolos demais para perceber que,
após tanta perda, vocês ainda têm um ao
outro. Fingem que não, mas ainda se
importam e se amam. — Ele virou seu
rosto para mim e me olhou como se eu
tivesse acabado de cometer um crime.
Balancei a cabeça. — Tem noção do que
eu daria para ter algo assim?
— Raven…
— Não posso dizer que te
perdoo pelo que fez, mas você está
perdido, Nick. E precisa encontrar logo
seu próprio caminho e escolher um lado,
antes que seja tarde demais.
Ele me olhou em silêncio por
alguns segundos, digerindo aquelas
palavras. Dei um breve sorriso e me
distanciei. Aquela era uma trilha que ele
teria que percorrer sozinho.
Me juntei a George e Libby
para vermos o resto da exposição.
Parte de mim queria acreditar
que, após a derrota de Connor na
corrida, tudo voltaria ao normal e eu não
precisaria me aprofundar ainda mais
naquele mundo que sempre desprezei.
Eu estava enganada, entretanto.
Porque, naquela madrugada, houve um
grande incêndio que transformou a
galeria Evelyn Florence em meras
cinzas.
E todos os dias
Estou aprendendo sobre você
As coisas que mais ninguém vê
E o fim chega cedo demais
Como sonhar com anjos
E partir sem eles
Angels - The xx

Eu estava desenhando na minha


cama no dormitório quando a notícia do
incêndio chegou. De início, fiquei em
choque com tamanha tragédia. Depois,
só consegui pensar em como Hades
deveria estar se sentindo, e essa
preocupação me levou até seu
apartamento, onde o resto do
Pandemônio estava. Foi difícil de
acreditar que aquele lugar incrível que
eu visitara apenas uma vez, horas atrás,
deixara de existir e, mesmo vendo tudo
com meus próprios olhos, ainda não
parecia real.
Olhei no relógio e engoli em
seco quando percebi que já passavam
das três da manhã. Estávamos em
silêncio há pelo menos meia hora, o
único som era proveniente da enorme
TV na sala de estar da cobertura de
Hades. O noticiário local transmitia as
imagens dos bombeiros se esforçando
para apagar o fogo que já consumira
completamente a galeria. Nada sobrara
além de restos carbonizados.
Todas as obras viraram cinzas.
Alec, consumido pelo
nervosismo, já tinha tomado quase uma
garrafa inteira de uísque. Sentado num
dos banquinhos ao redor da ilha da
cozinha, ele parecia tão melancólico
quanto o resto de nós. Ninguém sabia o
que dizer, mas eles não precisavam falar
nada realmente. Eu sabia que estavam se
sentindo apreensivos.
Percebi o motivo pelo qual
Fiona uma vez se referira ao
Pandemônio como sua família. Era
exatamente isso o que eram e eles
estavam ali, juntos, compartilhando a
dor de Hades. Seus amigos e
companheiros leais que o amavam muito
mais do que seu pai.
Por um instante, me senti grata
por participar daquilo. Nunca pensei
que poderia encontrar aliados ou amigos
numa gangue no meio do deserto, mas ali
estava eu. E me sentir parte daquilo,
parte do Pandemônio, não me assustou,
inesperadamente. Foi quase
reconfortante, como se, pela primeira
vez, eu estivesse entre os meus
semelhantes. Não precisava me
esconder ali. Além disso, tínhamos
também em comum o fato de que nos
importávamos com Hades.
Ele, por sua vez, estava sozinho
trancado em seu quarto há mais de duas
horas, sofrendo em silêncio.
Me recostei contra o sofá
macio e George, ao meu lado, deitou sua
cabeça em meu ombro.
Não sabia ao certo o que
estávamos esperando. Talvez, que Hades
saísse lá de dentro com um plano para
destruir os Daggers de uma vez por
todas. Afinal, era óbvio quem estava por
trás daquele incêndio repentino e
improvável. O fogo fora criminoso, os
bombeiros disseram.
Aquela era a forma dos
Daggers anunciarem que não haviam
simplesmente aceitado sua derrota no
Círculo.
— Ele não pode ficar lá para
sempre — Selina quebrou o silêncio
após bufar impaciente, colocando-se de
pé.
Movi meus olhos em sua
direção e levantei uma sobrancelha. Ela
jogou os cabelos vermelhos sobre o
ombro ao andar até a cozinha americana,
tomando a garrafa das mãos de Alec e
virando um grande gole que drenou todo
o conteúdo. George se endireitou e
trocou um olhar cúmplice comigo antes
de revirar os olhos.
— Ele só precisa de um tempo
— Khalil, sentado numa poltrona à
nossa frente, rebateu, cruzando as mãos
tatuadas entre os joelhos. — Isso é o
mínimo que podemos dar a ele.
Suspirei, fitando o lustre
moderno pendurado acima de nossas
cabeças. Eu sentia raiva, em primeiro
lugar. E sabia que era exatamente assim
que Alec se sentia também. Por isso, ele
estava tão silencioso, afogando-se em
álcool.
Minha vontade era de me
levantar dali e procurar por Connor e
Garrett em cada maldito canto daquela
cidade. Eles jogariam sujo até ter a
cabeça de Hades. Era por isso que ele
não podia se desestabilizar. Os Daggers
fariam aquilo ser pessoal para ele. O
atingiriam diretamente para enfraquecê-
lo e derrotá-lo, tomando sua cidade.
Então, apesar de acreditar que
ele merecia um tempo sozinho para
digerir, eu estava um pouco preocupada
também.
— Garrett não pode achar que
nos atingiu — Selina continuou.
— Mas ele atingiu — George
argumentou, levantando-se também.
Ele passou as mãos pelos
cabelos castanhos despenteados e eu
pude notar como seu olhar se demorou
sobre Alec antes que ele fitasse Selina.
— Foi o Hive. — Wade entrou
na conversa. — Eu o vi mais cedo na
galeria.
Ressentimento escorria de suas
palavras.
— Ele não faria isso — falei,
um pouco aflita. — Eve também era a
mãe dele.
Provavelmente, eu era a maior
tola do mundo por isso, mas não
conseguia acreditar que Nick faria algo
assim. Apesar dos erros que ele havia
cometido, eu vi o arrependimento em
seus olhos quando ele estava cercado
pelas pinturas de sua mãe.
E me parecia que Nick não era
do tipo que fazia coisas ruins porque
não se importava com nada, mas porque
sentia tudo de maneira muito intensa e
não sabia como lidar com isso.
Todos na sala me encararam e
eu engoli em seco.
— Está do lado dele? — Selina
perguntou, incrédula, com os olhos
semicerrados em minha direção. — Ele
quase arruinou tudo na corrida!
— Eu sei — rebati, me
levantando. Suspirei, passando as mãos
pelos cabelos e andei em direção às
enormes janelas da sala. — E eu não
vou perdoá-lo por isso.
— Raven está certa — Fiona se
pronunciou após uma longa tragada no
cigarro preso entre seus lábios. A garota
estava deitada no sofá com as pernas
cruzadas sobre o braço estofado da
mobília. — Nick pode ser um
desgraçado traidor, mas ele amava Eve
e nunca faria isso. Nem mesmo para
atingir Hades.
Selina balançou a cabeça,
incrédula.
— De que lado vocês estão,
afinal? — perguntou, a acusação
implícita em sua frase. — Nick feriu a
todos nós com sua traição e, como se já
não bastasse, ele continua a ferrar com a
gente mesmo de longe.
Levantei uma sobrancelha.
Fiona se levantou de súbito, os
coturnos pretos batendo contra o chão de
mármore quando ela o fez.
— Já chega, Selina — falou,
exasperada, aumentando o tom de voz.
Os curtos cabelos castanhos estavam
bagunçados, caindo sobre sua testa. —
Você não vai querer entrar nesse
assunto, não é?
O silêncio caiu sobre a sala
novamente.
A ruiva engoliu em seco e deu
um passo para trás, encostando contra
um dos pilares espalhados pelo primeiro
andar do apartamento. Seus ombros
caíram e ela desviou o olhar para a noite
chuvosa através das janelas. Estreitei
meus olhos enquanto a fitava. Sua
postura rígida e defensiva se dissolveu e
seus olhos verdes demonstraram
fragilidade, bem como a maneira como
ela abraçou o próprio corpo.
O que Fiona quis dizer com
aquilo?
Ninguém ousou tocar de novo
no assunto. Fiona bufou antes de esticar
o corpo para apagar o cigarro no
cinzeiro de cristal reluzente sobre a
mesa de centro. Cruzei os braços,
sentindo a tensão palpável que surgira.
— Hive pode não ter
incendiado a galeria com as próprias
mãos, mas os Daggers sabem todas as
nossas fraquezas por causa dele —
Khalil continuou, sério, enquanto girava
um anel em seu dedo.
Ele tinha razão.
— Nunca saberemos com
certeza quem incendiou — George
disse, com a voz cansada.
Ao menos, era o que a polícia e
os bombeiros disseram. Mas não havia
dúvidas de quem estava por trás
daquilo.
— Foi alguém que esteve lá
esta noite — Selina falou. — Ele
precisava ver como a estrutura da
galeria estaria hoje. Quantas câmeras e
quantos guardas seriam. Precisava
conhecer o terreno antes de executar seu
plano.
— Nós sabemos quem foi —
Alec interviu, endireitando-se sobre o
banco. — E deveríamos ir acabar com o
desgraçado do Garrett agora mesmo —
ele bradou, em cólera.
— Não sabemos onde os
Daggers estão se escondendo, gênio —
Fiona rebateu. — Ou eu mesma já teria
arrancado os olhos da cara dele.
Massageei minha têmpora.
— Eu vou falar com o Hades
— falei, de repente, atraindo todos os
olhares da sala de volta para mim.
— O quê? Claro que não! —
Selina quase gritou. Quando percebeu
sua reação exagerada, pigarreou e
endireitou o corpo, cruzando os braços.
— Quero dizer, provavelmente ele não
quer ver ninguém agora.
— Aposto que ele gostaria de
ver a Raven — Khalil contrariou.
— Eu discordo. — Selina
balançou a cabeça negativamente e eu
bufei.
— E quem vai me impedir de
subir? — perguntei, estreitando os olhos
na direção dela. — Você?
Ela se calou.
Ao atravessar a sala e ir até as
escadas, olhei rapidamente para George,
que me lançou uma piscadela.
Quando alcancei a metade dos
degraus, já estava arrependida da minha
decisão. Mas não me permiti parar.
Coloquei uma mecha ondulada
de cabelo atrás da orelha enquanto
esquadrinhava o corredor do mezanino.
Eu lembrava da localização do quarto
de hóspedes onde eu dormira há algumas
semanas, mas, como K e Alec moravam
ali também, eu não fazia ideia de qual
das portas levava à suíte de Hades.
Respirei fundo enquanto andava
lentamente até o fim do corredor.
Quando alcancei a porta, bati meu punho
levemente contra sua superfície.
— Hades, sou eu — falei, tão
baixo que eu duvidava que ele pudesse
ter escutado.
Após alguns segundos sem
resposta, levei minha mão até a
maçaneta, me surpreendendo ao
encontrá-la destrancada. Empurrei a
porta só um pouco, abrindo uma fresta, e
espiei o interior do quarto, que se
encontrava em um denso e sepulcral
silêncio.
Quando identifiquei o rapaz
sentado na cama, de costas para mim e
virado em direção às janelas, abri a
porta completamente e entrei no
cômodo, fechando-a silenciosamente
atrás de mim.
O quarto de Hades era
exatamente como eu imaginava. Os tons
escuros de cinza e preto estavam por
toda a mobília. Estantes contendo livros,
porta-retratos e alguns itens de
decoração se estendiam pela parede
oposta à enorme cama king size de
edredom preto no qual ele estava
sentado.
Das janelas do quarto ainda era
possível ver os resquícios da tragédia
que marcou a noite, havia um grande
volume de fumaça, vindo de não muito
longe, que dançava em direção ao céu.
Suspirei, desviando meu olhar para
Hades, que estava sem camisa, com os
cotovelos apoiados sobre as coxas,
cobrindo o rosto com as mãos.
Deixei meu olhar percorrer as
curvas dos músculos de suas costas, dos
ombros largos até o cós da calça, que
estava caído em seu quadril, revelando a
barra de uma cueca branca. Engoli em
seco, me forçando a erguer o olhar para
todas as tatuagens que compunham a
obra de arte que ele carregava em sua
pele.
Dei um passo em sua direção,
reconhecendo rapidamente o que parecia
ser uma releitura da pintura Anjo Caído,
de Alexandre Cabanel, tatuada em suas
costas. Naquela versão, havia um arco
gótico sobre a cabeça de Lúcifer e suas
grandes asas negras se estendiam atrás
dele. O anjo estava na mesma posição
do quadro: um braço cobrindo parte do
rosto, deixando seus olhos em
evidência. Era o conhecido e
reverenciado olhar de raiva e
ressentimento, com as sobrancelhas
curvadas e uma lágrima lhe escapando
pelo canto do olho.
Eu simplesmente amava aquela
pintura, mas vê-la na pele de Hades a
ressignificou completamente para mim.
Um trecho escrito cobria a
escápula esquerda dele, bem acima da
figura de Lúcifer, estreitei meus olhos
para enxergar, mas não consegui ler
naquela distância.
Hades deixou as mãos
deslizarem para longe do seu rosto e
moveu levemente a cabeça para a
direita. Ele capturou minha presença
com o canto dos olhos e eu me
aproximei, passando por ele e me
sentando ao seu lado. Observei seu rosto
pálido, notando grandes olheiras sob os
olhos. Seus orbes negros carregavam
uma tempestade de dor e raiva que
partiu meu coração. Era exatamente
como o olhar do anjo caído desenhado
em sua pele.
— Eu não sei o que dizer —
sussurrei, olhando para as mãos dele. Os
nós dos dedos ainda estavam
machucados da briga com seu irmão.
— Não diga nada — pediu,
desviando o olhar para a visão da
cidade noturna através das janelas.
Temi estar invadindo a
privacidade dele. Ninguém gostaria de
ficar tão exposto e vulnerável assim.
— Se você quiser ficar
sozinho, eu posso…
Me levantei, e, assim que senti
o toque gelado quando ele segurou
minha mão, as palavras sumiram
completamente do meu vocabulário. Ele
ergueu o rosto para mim, as escleróticas
estavam avermelhadas e os cabelos
escuros bagunçados, caindo levemente
sobre os olhos. Rapidamente, uma
descarga elétrica surgiu em minha mão,
tomando conta de todo meu corpo pouco
tempo depois.
— Fique — soprou Hades. —
Por favor, amor.
Engoli em seco e voltei a me
sentar ao seu lado. Ele não soltou a
minha mão, entretanto. Guiou o dorso
dela até pousá-lo sobre sua coxa
esquerda. Hades traçou as linhas da
minha palma com a ponta de seus dedos
e, de repente, aquele toque se tornou
extremamente íntimo e pessoal.
— Aquele lugar era a última
coisa que restara dela. — Ele quebrou o
silêncio após algum tempo. — Tudo o
que ela construiu, o que mais amava,
virou pó.
Balancei a cabeça.
— Não é verdade — contrariei,
atraindo seu olhar para o meu rosto. —
Você e seu irmão são o verdadeiro
legado dela. Vocês são o que ela mais
amava.
Hades sustentou meu olhar de
maneira intensa antes de dar um riso
nasalado, exalando frustração.
— Então ela não estaria muito
orgulhosa do que nos transformamos.
— Vocês são humanos, Hades,
não são perfeitos, mas ela ama vocês de
qualquer maneira. É isso o que as mães
fazem.
O canto de sua boca se repuxou
em um pequeno sorriso triste e ele
colocou sua mão sobre a minha,
entrelaçando nossos dedos. Separei
meus lábios e, nesse exato momento, os
olhos de Hades se prenderam neles. Eu
não sabia quando havíamos nos
aproximado tanto, mas ali estavam nós
dois. Eu sentia o ar quente de sua
respiração tocando minha pele e seu
cheiro me inebriava.
Eu sabia que ele estava prestes
a me beijar. Talvez eu mesma o fizesse
se ele hesitasse um pouco mais. Mas, ao
mesmo tempo em que eu ansiava por
aquilo, ficava aterrorizada.
Me afastei um pouco e
pigarreei.
Para evitar encará-lo, me
foquei em suas tatuagens. Deslizei minha
mão para longe da sua e a pousei em seu
ombro. Apoiei o joelho direito na cama
e me inclinei para inspecionar o trecho
escrito em sua pele que eu não
conseguira ler antes.
Sorri ao reconhecer as palavras
de Shakespeare e li em voz alta:
— “Esses prazeres violentos
têm fins violentos, e morrem em seu
triunfo, como o fogo e a pólvora, que, ao
se beijarem, se consomem. O mais doce
mel repugna por sua própria doçura, e
seu sabor confunde o paladar.”
Hades passou a língua sobre os
lábios antes de sorrir.
— Romeu e Julieta — falou.
— Gosta de Shakespeare? —
perguntei, buscando seus olhos.
— Tanto quanto gosto de
respirar. — Vi seus olhos serem
invadidos por nostalgia. — Era o que a
minha mãe lia para nós antes de
dormirmos.
Levantei as sobrancelhas,
surpresa.
— Não é um clássico da
literatura infantil, não é mesmo? —
brinquei.
— Ela não tinha muita aptidão
para livros infantis e literatura inglesa
era tudo o que havia em sua estante. Não
tínhamos idade o suficiente para
entender nem uma palavra sequer desses
livros, mas parecia lindo quando ela lia
em voz alta.
Sorri ao pensar no pequeno
Hades deitado em sua cama enquanto
ouvia palavras complicadas e encarava
sua mãe com seus enormes olhos pretos
admirados.
Gostaria de ter tido uma mãe
como Eve.
— Ela ficou tempo demais
presa ao meu pai — continuou ele, após
alguns segundos. — Ela poderia ter sido
muito mais se não fosse por ele podando
suas asas a todo instante.
— George me disse que você
ficou ao lado dela nos últimos
momentos. Isso não é algo fácil de se
fazer.
Aquilo me deixava realmente
impressionada. Eu mal conseguia olhar
para minha mãe em seus piores
momentos, quando parecia estar
definhando pelo vício. Não conseguia
nem imaginar como deveria ser ver uma
pessoa enquanto ela definhava e morria.
— Quando você é tudo o que
outra pessoa tem, seu único vínculo com
a sanidade, assisti-la morrer se torna
assustadoramente fácil, na verdade. É
quase reconfortante.
Engoli em seco diante daquelas
palavras.
Percebi, então, que Hades era
todo quebrado por dentro. Era um
mosaico belo, sombrio e triste. Ele
tentava mascarar isso sob suas piadinhas
ácidas e comentários inapropriados, mas
estava bem ali.
Agora eu conseguia ver além
do chefe de gangue implacável ou do
garoto rico e arrogante, e novamente me
encontrava aterrorizada diante do que
via — e do que sentia.
— Não se atreva a sentir pena
de mim, Clarke — Hades falou,
imitando o que um dia eu lhe disse. Suas
palavras, entretanto, soaram divertidas e
me fizeram rir.
— Eu não sinto — garanti.
— Bom… — soprou ele antes
de aproximar seu rosto lentamente do
meu.
Me afastei automaticamente.
Hades me escrutinou intrigado, como
alguém que tenta entender uma equação.
— Por que você continua
fugindo de mim, amor?
Fechei os olhos, descansando a
testa contra seu ombro.
Não sabia precisar em
palavras, mas ele me deixava com
medo. Medo de gostar de alguém como
ele, alguém que levava aquele tipo de
vida. Alguém tão parecido comigo.
Ficava aterrorizada ao conjecturar sobre
o que aquilo significava, no que aquilo
me tornava.
— Somos como fogo e pólvora,
que se consomem e causam uma
tragédia. Teremos um fim violento e
trágico.
Não me restaram dúvidas
quanto aquilo. Eu não mudara de ideia,
ainda achava que o submundo destruía
tudo e todos e eu não suportaria aquilo.
Assumi, então, que eu ficava
aterrorizada com a possibilidade de
Hades reivindicar meu coração, porque
eu sabia que aquilo não acabaria bem.
Eu tive certeza, naquele exato
momento, de que Hades Wrath estava
destinado a ser minha catástrofe.
O silêncio de Hades me dizia
que ele sabia disso também.
Quando a guerra começar
Quando o mundo der as
cartas
Se a mão for difícil
Juntos podemos consertar seu
coração
Agora que está chovendo mais
do que nunca
Saiba que ainda teremos um ao
outro
Você pode ficar debaixo do
meu guarda-chuva
Umbrella - Rihanna feat. Jay-
Z

Todos na Universidade só
falavam sobre o incêndio na galeria.
Boatos envolvendo os Wrath estavam
sendo espalhados por sussurros nos
corredores, como se qualquer um tivesse
o direito de expor sem nenhuma empatia
a história daquela família para o mundo
inteiro. Ouvi coisas terríveis sobre
Hades e Evelyn, mas tentei abstrair cada
uma daquelas palavras. Afinal, nenhum
deles sabia realmente alguma coisa
sobre aquela história não.
Entretanto, não ajudou o fato de
Zachary Bowen, o maior fofoqueiro da
turma de artes do primeiro ano, estar
sentado bem atrás de mim durante a
aula. E, apesar de ser um dos melhores
alunos da turma, julgava todo mundo ao
seu redor.
— Bem, acho que foi merecido
— ele murmurou baixinho, conversando
com a garota ao seu lado. — Os Wrath
são o câncer de Carmine e deveriam ser
eliminados de vez.
A sala estava imersa na
penumbra, visto que a professora
transmitia no quadro, através de um
projetor, algumas imagens de obras com
referências à mitologia greco-romana,
que tinham a ver com o projeto que
deveríamos fazer na próxima semana.
Me obriguei a desviar minha atenção
das fofocas de Bowen quando a
professora McPhil passou para a
próxima imagem.
Ergui meus olhos para a
projeção da fotografia de uma bela
escultura. Embora eu nutrisse um apego
especial à desenhos e pinturas, achava
esculturas fascinantes. Me parecia
extraordinária a habilidade de dar forma
a um pedaço de pedra, conseguindo
reproduzir com exatidão as texturas dos
tecidos ou até mesmo a pressão dos
dedos na pele humana.
A obra diante de mim
apresentava um casal. O homem, à
esquerda, tinha uma longa barba e uma
coroa em sua cabeça. Ele tentava
segurar uma mulher, que parecia
desesperada para fugir dele. Ao lado do
casal, sentado no chão, estava uma
criatura que parecia um cão de três
cabeças. Não consegui identificar a
obra, apesar de ela parecer, de alguma
forma, familiar.
— O Rapto de Proserpina, de
Gian Lorenzo Bernini — denominou
McPhil. — Alguém sabe dizer qual o
nome de Proserpina na mitologia grega?
— Perséfone — sussurrei, um
pouco surpresa quando a compreensão
me invadiu.
Eu gostava de estudar sobre
mitologias, principalmente a greco-
romana, mas não tinha um conhecimento
muito profundo sobre ela. Conhecia os
nomes e histórias dos deuses mais
famosos. Entre eles, estava Hades.
Outro aluno respondeu à
pergunta, de modo que a professora
prosseguiu:
— Perséfone era filha de Zeus
e Deméter e, certo dia, foi raptada por
Hades, o deus do submundo. Lá ela
resistiu ao domínio do deus por muito
tempo, mas acabou comendo uma
semente de romã. Ao provar de um
alimento do submundo, parte de sua
alma passou a pertencer ao mundo
inferior e seu casamento com Hades foi
selado. Após um acordo com Zeus,
Hades permitiu que Perséfone vivesse
metade do ano na Terra, contanto que na
outra metade, durante o outono e o
inverno, ela permanecesse com ele no
submundo.
Fiquei hipnotizada por aquela
história conforme McPhil a contava. Era
tão triste e trágica, mas deu sentido à
escultura. Perséfone — conhecida como
Proserpina na mitologia romana — fora
levada sem seu consentimento à
escuridão da Terra dos Mortos. Era
obrigada a viver lá e a tristeza de seu
destino marcava as estações frias e sem
cor.
Na obra de Bernini, estava
evidente a angústia no rosto de
Perséfone e foi inevitável me solidarizar
por ela e sentir, de certa forma, alguma
familiaridade com aquele sentimento. A
dor de viver em um ambiente marcado
por desesperança e violência.
Aquela história desencadeou
em mim uma série de reflexões. Entre
elas, uma questão: poderia Perséfone ter
se apaixonado por Hades e optado por
viver no submundo se o livre arbítrio
não tivesse sido arrancado dela? Se
fossem outras as circunstâncias, se ela
pudesse ter o direito de escolha, teria
optado por ficar?
Permaneci imersa em
devaneios até que McPhil acendeu a luz,
encerrando a demonstração das obras
que deveriam nos inspirar, e passou a
instruir sobre o projeto.
Quando a aula chegou ao fim,
eu estava pensativa a preocupada diante
daquela tarefa. Seria muito complicado
executar dez obras em menos de dois
meses.
O plano inicial, explicou
McPhil, era expor o trabalho de todos os
alunos na galeria de Eve Wrath para o
público, mas isso foi antes do local ser
destruído pelo fogo completamente. Eu
não sabia se os Wrath tinham planos de
reconstruir o lugar, mas, se o fizessem,
com certeza levaria bastante tempo. Não
era possível levantar um lugar grande e
bonito como aquele de um dia para o
outro.
Após arrumar meu armário e
apanhar minha bolsa, peguei o celular
guardado no bolso externo dela. Não
havia nenhuma mensagem ou chamada
perdida. Acessei a tela inicial e abri a
página dos contatos. Busquei
roboticamente pelo número que Astrid
me forneceu há tantos anos e iniciei a
chamada.
Eu já havia lhe deixado tantos
recados que perdi a conta. Pensei que,
se ela soubesse que não devia mais nada
à máfia de Dallas, não iria mais se
esconder. Isso, contudo, não havia
ocorrido ainda e eu estava perdendo as
esperanças de que um dia fosse
reencontrá-la. Assim como todas as
outras, aquela chamada caiu na caixa
postal.
Bufei alto e arremessei o
celular dentro da minha bolsa. Nesse
momento, Alina se aproximou, alegre e
saltitante.
— O que vai fazer hoje à noite?
— perguntou, levantando uma
sobrancelha fina e loira.
— Estudar. — Dei de ombros.
— Tenho um imenso projeto para fazer,
e pouquíssimo tempo pra isso.
Fechei a porta de metal do
armário e me virei para ela, ajeitando a
bolsa sobre o meu ombro.
O longo corredor estava
preenchido de alunos, a maioria ia em
direção às portas de vidro da saída com
o fim das aulas.
Alina estava diferente. Eu
sempre a via usando suéteres e jeans
durante as aulas, mas naquele dia ela
usava um vestido magenta de alças, com
um colar prateado caindo sobre o busto.
Os últimos vestígios físicos da agressão
de Lane haviam sumido totalmente. O
cabelo dela estava mais cacheado e
brilhante, tal como os olhos e o sorriso
fácil, que passou a surgir em seus lábios
com frequência.
Ela não costumava ser assim,
nem um pouco. Na verdade, era
totalmente o oposto.
Mesmo que ela nunca tivesse
compreendido o motivo de eu ter agido
para dar a Lane o que merecia, mesmo
que tivesse me odiado para sempre,
teria valido à pena. Alina havia voltado
à vida, afinal.
— Vai ter noite da pizza no
apartamento dos meninos — explicou
ela, empolgada.
Segurei um sorriso.
— Meninos? — Levantei uma
sobrancelha, curiosa.
— Hades, Alec e Khalil —
Alina disse, antes de andar ao meu lado,
me acompanhando em direção à saída
do prédio de Belas Artes. — Wrath vai
cozinhar. Você vai, não é?
Era interessante ver como
Alina, Libby e George haviam se
aproximado do Pandemônio a ponto de
parecerem uma coisa só. Eu ficava feliz
com aquilo, gostava dos meus amigos
todos juntos. Teria aceitado a proposta
de prontidão se o mero pensamento de
dividir um cômodo com Hades não
fizesse um nó surgir em meu âmago.
Depois do episódio em seu
quarto, decidi que era melhor me afastar
de Hades, porque sabia que não era
forte o suficiente para resistir ao meu
desejo. Se ele se aproximasse daquela
maneira novamente e pedisse para que
eu parasse de fugir, e eu cederia.
E aquilo não podia acontecer
em hipótese alguma, mesmo que a ideia
de vê-lo cozinhar fosse terrivelmente
tentadora.
Soltei um suspiro frustrado.
— Não posso, tenho que
estudar — fingi lamentar.
Eu deveria me afastar dele
tanto quanto fosse possível. Precisava
me desintoxicar de Hades Wrath.
— Ah, Raven, qual é? Vai ser
bom para nós, precisamos nos distrair.
Posso te ajudar a adiantar o projeto
depois.
Hades realmente precisava de
um tempo da guerra com os Daggers.
Todos haviam percebido como o
incêndio na galeria havia o afetado e
uma noite de distração com os amigos
iria ajudar.
— Acho melhor não.
Então, subitamente, Alina parou
de frente para mim. Analisou-me e
inspecionou-me com seus olhos azuis
semicerrados, como se estivesse
tentando ler meus pensamentos.
— O quê? — indaguei,
franzindo o cenho.
— O que há entre você e
Hades? Parece que você está o evitando
como se tivessem dormido juntos.
Arregalei os olhos antes de
balançar a cabeça, negando veemente.
— Não dormimos juntos,
acredite.
— Então o que foi? Eu vejo
como vocês se olham, Raven, não dá pra
disfarçar uma coisa assim — Alina
falou, séria, me fazendo desviar os olhos
para o outro lado do corredor. Pensar
em minha situação com Hades era a
última coisa sobre a qual eu queria fazer
naquele momento. — Vocês dois são
como…
— Fogo e pólvora? —
completei, suspirando ao me lembrar da
citação trágica de Shakespeare. Alina
apenas balançou a cabeça e resolvi
mudar de assunto após pigarrear. —
Mas e quanto a você e Khalil? Parece
que estão bem próximos.
Aquilo era, definitivamente, um
eufemismo de minha parte. Khalil e
Alina pareciam completamente
embriagados um pelo outro.
A loira corou, envergonhada.
— Eu sei que parece que estou
indo muito rápido após tudo o que
aconteceu, mas… — Ela suspirou,
colocando uma mecha de cabelo atrás da
orelha. — Ele me faz tão bem. Eu nunca
tinha sido tratada assim antes, é como
um conto de fadas. — Sorri com a
maneira doce e delicada com a que ela
falava. — Mas ainda é tão cedo… Céus,
eu devo ser tão ingênua e estúpida.
— Ei — a repreendi,
colocando uma mão em seu ombro. —
Ninguém tem o direito de te julgar por
nada, Ali. Se você se sente bem perto do
Khalil, se isso a faz feliz, então é o que
deve fazer. Foda-se todo o resto.
Ela sorriu antes de assentir.
Quando passamos pelas portas
de vidro e descemos os degraus até o
pátio frontal da Universidade, logo
notamos uma cena incomum. Havia um
grande aglomerado de alunos parados
sobre o gramado, observando curiosos.
Estacionados do outro lado da
rua estavam três viaturas de polícia que
pareciam escoltar uma limusine preta.
Franzi o cenho, dando alguns passos à
frente.
Então, Hades entrou no meu
campo de visão. Ele estava sendo
guiado por policiais e seguranças para
fora do departamento de Direito em
direção ao carro.
Como sempre, ele era o sol ao
redor do qual orbitava todo o caos de
Carmine.
— O que diabos aconteceu? —
perguntou Alina ao meu lado,
preocupada.
Hades nem sequer olhou para
os lados antes de entrar no carro,
acompanhado por dois seguranças. Em
seguida, as viaturas seguiram
flanqueando a limusine para longe do
campus.
— Gente. — George apareceu,
ofegante e descabelado pela primeira
vez. — Três empresas ligadas às
Consolidações Wrath foram assaltadas
durante a noite. Mas não foi só isso,
interceptaram e roubaram um dos
carregamentos de droga do Pandemônio
na entrada da cidade.
— O quê?! — indaguei,
completamente em choque. Percebi
quando Alina, ao meu lado, abraçou o
próprio corpo, se encolhendo.
Balancei a cabeça.
— Isso aconteceu no mesmo
momento do incêndio? — perguntei e
ele assentiu.
Ao que parecia, o fogo na
galeria havia sido apenas uma cortina de
fumaça. Um truque para distrair os
Wrath da real jogada deles. Enquanto
todo o foco do Pandemônio estava nas
chamas, destruindo completamente o
legado da mãe de Hades, eles estavam
sendo atingidos do outro lado por seus
inimigos.
— Isso não parece com os
Daggers — George continuou, confuso.
— Eles não têm homens, armas ou
coragem o suficiente para fazer algo
desse tamanho.
— É porque não foram eles —
afirmei. — Foi Joel McKinley.
— É… — Alina suspirou. —
Acho que a noite da pizza acaba de ir
por água abaixo.
Me separei de Alina, que não
me acompanhou aos dormitórios pois foi
direto para a livraria onde estava
trabalhando, e prendi meus cabelos, me
preparando para a curta caminhada até o
alojamento.
Antes que pudesse cruzar a
praça central do campus, porém, percebi
que todos que caminhavam por ali
olhavam para um conjunto de dois
carros e uma moto. Era impossível não
reconhecer de longe algum membro
Pandemônio. A gangue, que sempre
despertou o interesse de todo mundo,
estava ainda mais em foco devido aos
últimos acontecimentos. Ninguém
conseguia evitar os olhares curiosos
sobre o grupo.
Eles estavam parados no
estacionamento. A conhecida
caminhonete azul de Wade, o Volvo de
Khalil e, de pé, encostada em sua moto,
estava Selina, com os braços cruzados e
sua usual expressão intimidadora no
rosto.
Me aproximei intrigada. A
janela do Volvo se abaixou, revelando
Khalil.
— O que estão fazendo aqui?
— perguntei para ele, que apoiou o
braço no batente da janela.
— Esperando por você.
— Estou indo ao alojamento.
— Eu sei. Mas as coisas estão
ficando perigosas e você se tornou o
centro das atenções após a corrida no
Círculo. Sozinha você é um alvo fácil
para nossos inimigos.
Suspirei resignada e frustrada
por ele estar certo. Se Joel ainda
estivesse na cidade, ele não hesitaria
antes de ir atrás de mim e, embora eu
estivesse avançando nos treinos com
Zora, ainda não era boa o suficiente para
dar conta de homens grandes e armados
sozinha. E eu detestava isso, mas
precisava ter paciência.
— Entra logo no carro, Clarke
— ralhou Selina, exasperada.
Revirei os olhos e, apesar de
parte de mim desejar provocá-la, não a
contrariei. Dei a volta no Volvo e abri a
porta do carona, entrando no veículo.
— Sei que é uma droga de
situação, mas temos que proteger uns
aos outros — Khalil falou, dando ré no
carro para sair do estacionamento.
Coloquei o cinto de segurança e
olhei através da janela. Algumas
pessoas ainda se viravam para olhar na
nossa direção enquanto passávamos, nos
distanciando da parte principal do
campus. Também vi Selina, se
aproximando pela direita, inclinada
sobre sua moto. Ela permaneceu
acelerando até ultrapassar o Volvo,
disparando à nossa frente na rua.
— Eu soube dos assaltos de
ontem — falei, depois de alguns
segundos em silêncio.
— Os jornais só estão falando
sobre isso. Vão explorar o assunto até
não poderem mais.
— O que vai acontecer agora?
— Honestamente, não sei. Se
começarem a investigar esses comércios
paralelos vinculados às empresas Wrath,
vão acabar descobrindo sobre o
Pandemônio e todo o nosso esquema
ilegal.
— Pensei que vocês tinham a
polícia no bolso.
— Só a polícia de Carmine,
mas o que ocorreu ontem pode chamar
atenção de um peixe muito maior.
Havia uma coisa que McKinley
temia mais do que tudo: o FBI. Ele não
havia sido esperto o suficiente para
fazer uma aliança com a polícia de
Dallas, tampouco com os federais. Vivia
se escondendo, como o covarde que era.
E ele tinha suas maneiras de
garantir que não o denunciássemos.
— Ele não vai deixar pra lá —
eu disse. — Joel McKinley sempre
deixou claro seu desejo de tomar o
território de Carmine. Agora que ele
começou, não vai parar.
— Vamos lutar, então — Khalil
respondeu, determinado. Não era fácil
aceitar que uma guerra havia sido
iniciada em Carmine e que, de alguma
forma, eu estava envolvida. — Temos
que recuperar o carregamento de drogas
que foi roubado.
Aquilo não fez sentido pra mim.
Afinal, Hades era rico e o Pandemônio,
influente.
— Por quê? Vocês não podem
simplesmente encomendar mais?
— Não agora que estamos sob
os holofotes de todos. Precisaríamos
esperar a poeira baixar e, nesse meio
tempo, os Daggers podem ganhar poder
e influência em parte da cidade.
— Mas vocês não têm a
lealdade dos clientes e traficantes de
Carmine?
— Temos, sim. Mas receio que
eles irão vender as nossas drogas para
aqueles para os quais os traficantes do
Pandemônio são impedidos de vender.
— Franzi o cenho. Khalil me olhou
brevemente, notando a confusão em meu
rosto, e explicou: — Carmine não é
mais uma terra de ninguém. O
Pandemônio regulamenta quais drogas
podem entrar na cidade e para quais
pessoas devem ser vendidas. Nossos
traficantes não podem oferecer nada em
escolas, por exemplo.
Levantei as sobrancelhas,
surpresa. Já havia percebido que o
Pandemônio era bastante organizado,
mas ainda não tinha conhecimento de
como tudo funcionava na prática.
— Aposto que há pessoas que
discordam dessas regras — comentei.
— Com certeza. E são elas que
podem fazer os Daggers crescerem
novamente. Agora que eles têm nossas
drogas, nosso dinheiro e nossa
vulnerabilidade, podem ascender ao
poder.
Aquela possibilidade me
deixou enjoada. Não podia acreditar que
Joel estava tão perto de se tornar ainda
mais poderoso. Caso isso acontecesse e
ele tomasse Carmine, eu duvidava que
algo pudesse derrubá-lo depois. E ele
permaneceria fazendo todas as coisas
terríveis que eu havia presenciado
durante toda minha vida. Ficaria impune.
Não podia deixar isso
acontecer.
— Precisamos impedi-los.
É tudo para você
Você começa a mudança e eu
dou a verdade
É tudo para você
Eu não conseguia parar
Não conseguia parar de me
importar
Couldn't Stop Caring - The
Spiritual Machines
Eu soube, quando vi os policiais
e seguranças me esperando do lado de
fora do prédio da faculdade de direito,
que algo ruim havia acontecido. Mas,
após o incêndio na galeria, não havia
muita coisa que pudesse me abalar. Nem
mesmo a possível queda do império da
minha família. Eu tive certeza, quando
entrei na limusine do meu pai e fui
escoltado até a mansão Wrath, que seria
arrastado para aquela crise por meu pai.
Frederik não era muito de se
descontrolar. Eu sabia que havia
herdado isso dele: a impassibilidade.
Entretanto, quando o assunto era sua
grande e intocável fortuna, ele se
desestabilizava. Agora, as empresas
Wrath estavam sob ataque. Os acionistas
e investidores não queriam estar a bordo
de um navio prestes a afundar. E, desde
que o barco era o nosso sobrenome e o
mar era uma Carmine instável, atacada
por gangues de traficantes e
motoqueiros, a situação ia de mal a pior.
Nós sempre mantivemos o
controle sobre aquela cidade. Frederik
se certificava daquilo. Era por isso que
comandávamos de perto os negócios
ilegais por ali. Enquanto nós éramos o
maior poder de Carmine, nossas
empresas iam bem e, consequentemente,
o nosso dinheiro também.
As Consolidações Wrath tinham
várias empresas menores ligadas à ela.
Pequenos negócios de fachada que
encobriam as movimentações criminosas
por trás destas, como o Pandemônio.
Havia dezenas espalhadas pela cidade.
Entretanto, três agora estavam
completamente incapacitadas de
funcionar após serem roubadas e
depredadas pelo fodido Joel McKinley.
— O xerife Callow está
tentando disfarçar a origem e o
funcionamento daqueles negócios, mas o
incêndio trouxe muita atenção para nós.
Se o FBI descobrir e resolver investigar,
estamos acabados — meu pai falou, de
pé, virado para a janela de seu
escritório, observando o jardim ao redor
da propriedade.
Ele estava cansado. Mais do
que isso, estava furioso. Eu percebia
isso, porque ele não se descontrolava
nunca. Ainda assim, eu sentia o ódio por
detrás de suas palavras. A maneira como
ele as dizia, fria e impessoal, era apenas
uma máscara. Talvez eu nunca tivesse o
visto tão bravo e perto de surtar como
naquele momento.
Seu blazer estava jogado sobre
a poltrona atrás de sua mesa de mogno.
Frederik usava apenas uma camisa, com
as mangas arregaçadas e amassadas na
altura dos cotovelos e os primeiros
botões soltos. Em sua mão havia um
copo de uísque pela metade.
— Vamos contornar essa
situação — garanti, mesmo não tendo
certeza disso.
Eu estava postado do outro
lado do escritório, meu ombro
encostado contra o batente da porta
aberta. Preferia mesmo me manter
distante dele e daquele cômodo repleto
de memórias horríveis tanto quanto o
possível.
— Espero que agora você
comece a seguir minhas ordens à risca,
filho — disse ele, antes de beber um
gole da bebida em seu copo. Em
seguida, se virou para mim.
Aquelas palavras familiares de
oito anos atrás ecoaram em minha
cabeça e eu senti um gosto amargo tomar
conta da minha boca.
Nunca antes meu pai parecera
tão velho. Bolsas escuras sob os olhos e
rugas em sua testa e no canto de sua
boca. Parecia mais magro e pálido
também, como se a cada nota de dólar
perdida fosse equivalente a um ano de
sua expectativa de vida. Frederik Wrath
precisava de dinheiro e poder, como
precisava de oxigênio e eu sei que ele
preferiria ser esfolado vivo a perder seu
império. Tudo aquilo o faria definhar e,
para ser honesto, eu não poderia me
importar menos.
Aquela vida parecia pertencer
menos a mim a cada dia que se passava.
Bastou que Raven entrasse na
minha vida para que eu começasse a
questionar tudo. Ela havia dito, alguns
dias atrás, que eu era melhor do que
aquilo. Melhor do que os planos que
meu pai fizera para mim. Havia sido
difícil me imaginar em outra situação, já
que sempre fui sua marionete. Fazia seu
trabalho sujo e nunca me importei com
isso.
Até aquele momento.
— Deve ser acompanhado
pelos guarda-costas que eu contratei.
Apenas aquele seu amigo, Wade, não é
capaz de te proteger.
— Eu me defendo sozinho — o
interrompi. — Não preciso dos seus
lacaios para isso.
Frederik tomou uma longa
respiração, colocando os nervos em
seus lugares.
— Tudo o que você precisava
fazer era impedir uma insurreição na
porra da minha cidade. Agora temos a
máfia do Texas e os Daggers atrás de
nós. Posso saber, exatamente, como
você pretende controlar essa situação?
— Darei um jeito — garanti,
mas ele não parou.
— Era pra pegarmos McKinley
desprevenido, com nossa carta na
manga, não o contrário. Tem alguma
ideia do que o fez tomar coragem para
atacar? Havia alguma maneira de ele ter
descoberto que a garota está aqui?
— Não faço ideia de como ele
ficou sabendo.
Não era verdade, não
completamente. Desconfiava que Nick
houvesse contado para algum de seus
amigos Daggers sobre Raven, mas não
tinha certeza. Connor não pareceu
chocado, nem mesmo surpreso, ao vê-la
naquela noite do lado de fora do
cassino.
Parte da raiva de Frederik
vinha do fato de que ele pretendia atacar
Joel primeiro. Não sabia exatamente o
que o fizera mudar de ideia e colocar
fim a aliança que eles mantinham, mas
ele estava determinado a usar Raven,
desde que ela aparecera em Carmine,
para derrotar McKinley.
Joel, no fundo, sempre desejou
nosso território, mas o acordo o
impedira de reivindicá-lo. Algo havia
mudado para que ele tomasse coragem
para atacar.
Me incomodava não saber os
reais motivos por trás da decisão deles
de instaurar uma nova guerra em
Carmine.
Engoli em seco, fechando
minhas mãos em punhos ao lado do meu
corpo.
— E a garota?
Trinquei o maxilar, tenso.
— Ela já disse tudo o que sabe.
Está nos ajudando.
— Está mesmo? — Meu pai
estreitou seus olhos absolutamente
pretos na minha direção. — Você
garante?
— Sim — afirmei, sem
dúvidas.
— Bem, eu não confio nela.
Tínhamos um acordo, lembra? Se
recorda do que aconteceria se você não
o cumprisse? Você não vai querer que eu
me envolva nisso agora, vai?
Seu tom era ameaçador, ele
sequer se esforçava para disfarçar.
Mas eu nunca poderia me
esquecer daquele acordo. Porque, ao
mesmo tempo em que eu tentava mantê-
lo, ficava cada vez mais difícil ver
Raven como uma peça naquele jogo.
Entretanto, eu não podia mais fingir que
tudo estava bem e que o trato não
existia. Acabar com aquilo tudo, o mais
rápido possível, seria o melhor para nós
dois.
E depois, quando eu tivesse
destruído completamente Garrett e
McKinley, eu a afastaria. Mesmo que
isso a magoasse, mesmo que me
destruísse, era melhor do que as outras
coisas que poderiam acontecer a ela,
caso meu pai resolvesse que cuidaria
disso com as próprias mãos.
— Eu disse que vou resolver
isso — repeti, me controlando também.
Eu podia lidar com as ameaças
de Frederik quando elas eram
direcionadas apenas a mim. Mas ele
havia descoberto a minha fraqueza bem
cedo. Eu nunca seria tão perfeito quanto
ele, porque era tolo o bastante para me
importar com as pessoas ao meu redor e
era assim que ele me manipulava.
Quando eu era um adolescente e não
queria obedecê-lo, ele ameaçava Nick.
Depois, passou a ter Fiona, Khalil e
todos os meus amigos em seu radar.
Agora, Raven Clarke era uma
presa e suas mãos doentias e eu era a
única coisa que estava impedindo-o de
esmagá-la.
Por enquanto.

Eu precisava urgentemente me
embebedar.
Queria fazer isso sozinho, por
isso fui a um bar mais distante,
localizado do outro lado da cidade, e
não o Pandemônio. Tudo o que eu sentia
naquele instante era culpa e remorso e,
enquanto me afogava em muitas doses de
rum, eu tentava encontrar uma solução.
Eu estava numa encruzilhada e
não havia nenhum caminho mais brando
a se tomar. Aquela era uma faca de dois
gumes e eu só esperava que Raven não
saísse ferida no fim de tudo. Eu podia
lidar com a minha destruição. Na
verdade, eu esperava por ela. Há muito
eu já havia aceitado o fim violento que,
provavelmente, me aguardava. Mas ela
não merecia isso.
Bati o copo vazio contra o
balcão de madeira antes de empurrá-lo
na direção do barman, que me serviu
novamente. O Scorpion era o bar mais
“barra pesada” que integravam o
patrimônio dos Wrath. Achamos melhor
nos apropriarmos dele dois anos atrás,
antes que os Daggers o fizessem. Apesar
dos olhares tortos que eu recebia dos
homens por ali, grande parte deles
bêbados e ansiando por uma briga, eu
estava apenas focado em preencher cada
uma das minhas veias com álcool para
esquecer de tudo.
O lugar era extremamente
escuro e mal arejado, com cheiro de
cigarro e cerveja barata impregnando
todos os cantos do ambiente. Um jogo de
beisebol passava na pequena televisão
no alto do bar, mas ninguém dava muita
atenção. A maioria dos homens por ali
bebiam, jogavam sinuca e conversavam
baixinho entre si, como se estivessem
praguejando em solo sagrado.
Provavelmente, já sabiam da
notícia sobre o escândalo dos Wrath. A
mídia não perdera a oportunidade de
dizer que os estabelecimentos atacados,
que pertenciam à nossa família,
pareciam muito com mecanismos de
lavagem de dinheiro.
Eu estava prestes a perguntar
logo o que diabos eles tanto
cochichavam quando uma pessoa
deslizou para o assento vazio ao meu
lado. Senti meu sangue ferver quando
percebi que era o maldito Hive.
— Que merda você está
fazendo aqui? — perguntei, ríspido, com
o corpo ficando rígido e tenso.
Meu irmão me ignorou por um
momento, pedindo uma cerveja ao
barman. Ele tirou a jaqueta, colocando-
a no banco a lado e cruzou os braços
sobre o balcão. Só depois que recebeu
sua bebida, ele me olhou.
— Esse é um maldito país livre
e eu posso ir para onde quiser —
respondeu, sua impaciência era um
reflexo da minha.
Eu não estava a fim de brigar
naquele dia. No momento, meus
problemas eram bem maiores que o
desgraçado vingativo e impulsivo do
meu irmão. Hive não parecia dar a
mínima também e, naquele instante, eu o
respeitei.
Deixei um leve sorriso pairar
sobre meus lábios.
— Sabe de uma coisa, Hive?
Você é um desgraçado sortudo por não
ser filho de Frederik Wrath — eu disse,
após alguns segundos. — Isso é como
ganhar em algum tipo de loteria cósmica
e você deveria se sentir grato por isso.
Está livre. Pode fazer o que quiser da
sua vida medíocre. Mas, ao invés de
aproveitar esse privilégio, está aqui
nesse inferno no deserto, me
atormentando. — Estalei a língua,
indignado, e me virei para ele. — Qual
a porra do seu problema?
Ele deu um suspiro exasperado.
— Nós dois estamos fazendo
tudo errado há anos, Hades. Por mais
que você não queira admitir, você
também tem sua conta de débito com o
karma.
Ri nasalado antes de acenar
com a cabeça.
— Estou tentando encontrar
uma maneira de fazer as coisas certo,
pra variar.
— Pela Raven? — perguntou
ele, me fazendo engolir em seco. Bebi
mais um gole do líquido amargo em meu
copo. A ausência de uma resposta minha
foi o bastante para ele. — E a história se
repete…
Sua menção à situação com
Selina me fez trincar o maxilar e me
recordar do beijo que Raven
mencionara.
Selina e eu fomos apenas sexo
e ambos sabíamos disso. As
circunstâncias eram completamente
diferentes.
Raven, no entanto, despertava
uma parte de mim que eu nem sequer
sabia que ainda existia. Me sentia
diferente perto dela. Era como ficar
próximo da luz após um longo período
imerso em trevas profundas.
Eu a desejava e aquilo estava
me corroendo pouco a pouco.
Principalmente, porque eu escondia
coisas sobre ela e, quando Raven
descobrisse, voltaria a me odiar. Toda a
mudança sutil, que ocorreu na forma
como ela me olhava, iria desaparecer.
— Não tem história nenhuma se
repetindo além de você fodendo tudo
com as garotas que se importam contigo.
Nick riu alto.
— Você deve ficar muito feliz
por poder consolar elas depois que eu
estrago tudo.
Balancei a cabeça.
— Pare de ser um imbecil o
tempo todo. Selina te amava. A última
coisa decente que você fez foi se
distanciar dela. Não arraste Raven para
as suas merdas também.
— Você gosta dela — soprou
ele, surpreso. Não neguei, embora
aquela informação pudesse impulsionar
o desejo do meu irmão de se aproximar
dela apenas para me provocar. — Puta
merda, você gosta mesmo dela!
Ele gargalhou como se tivesse
encontrado a piada mais engraçada do
mundo. Apenas bufei, desviando o olhar
para o outro lado. Definitivamente eu
não queria conversar com ele sobre
Raven.
— Cale a boca — murmurei.
— O grande egoísta sem culpa.
O frio e inatingível Hades Wrath… —
Hive assobiou. — Quer saber? No
começo, pensei que só estava brincando
com ela. Pensei que ela era mais uma
presa em sua teia. Alguém com quem
você queria apenas diversão. Mas o
jeito como você a olha ou fala dela…
Isso sim é novidade.
— O que você quer com ela?
— rebati, temendo a possibilidade de
ele machucá-la.
— Não é da sua conta.
— Você falou quem ela era
para os Daggers?
— Não — negou, tenso.
Estreitei os olhos, analisando
sua postura. Seu maxilar estava retesado
e os ombros, rígidos. Ele rejeitava a
ideia com seu olhar.
Ele não estava mentindo.
— Você não quer envolvê-la
nisso, Nicholas.
— Foi você quem a envolveu!
Agora ela está dentro do jogo e vai
sofrer as consequências disso por sua
causa. Sabe de uma coisa, irmãozinho?
Não acredito que você se aproximou
dela apenas casualmente. Seria muito
coincidência, não acha? A filha do
maior inimigo do seu pai, de repente, se
tornando sua aliada? Não acredito nessa
história.
— Acredite no que quiser.
Ele estava juntando as peças
facilmente, porque também conhecia o
modus operandi de Frederik Wrath.
— E Raven acha que sou eu
quem a está usando — Nick assobiou.
— Vai ser uma grande decepção, huh?
Bati forte com o punho na mesa,
fazendo um estrondo oco soar. Algumas
pessoas se viraram para observar. Nick
se empertigou.
— Fique longe disso, Hive.
Não vou pedir novamente.
— Não estou interessado em
ferrar com você dessa maneira, Hades.
Você vai se enforcar sozinho com essa
corda, não precisará da minha ajuda pra
isso.
Não lhe dei mais ouvidos.
Depositei algumas notas sob o copo
vazio e deixei no balcão. Me levantei e,
sem dizer mais nada, dei as costas ao
meu irmão.
De novo.
Quando eu era criança, eu
ouvia vozes
Algumas cantavam e algumas
gritavam
Você logo descobre que tem
poucas escolhas
Aprendi que as vozes
morreram comigo
Nunca dome seus demônios
Mas sempre os mantenha em
uma coleira
Arsonist's Lullabye - Hozier

Oito anos antes

Engoli em seco a dor que sentia,


me arrastando pelos degraus enquanto
subia as escadas em direção ao meu
quarto. Eu pretendia me trancar no
banheiro pela próxima hora, me permitir
chorar e colocar para fora toda a raiva e
mágoa que sentia. Eu não podia fazer
isso na frente do resto da família. Não
choraria na frente de Frederik, porque
era orgulhoso e nunca daria essa
satisfação a ele. Também não o faria
perto de Nick ou da nossa mãe, porque
eles precisavam acreditar que eu era
forte e que tudo estava bem.
Quando entrei no meu quarto e
notei o garoto de pijama, encolhido aos
pés da minha cama e abraçado aos
joelhos, percebi que meu plano de
lamentar sozinho e escondido havia
fracassado. Os cabelos castanhos
ondulados de Nick estavam espalhados
ao redor da sua cabeça, sobre suas
orelhas. Ele odiava cortar os cabelos,
aquilo irritava muito nosso pai.
Nick me encarou com olhos
lacrimejantes, que fizeram eu me sentir
muito culpado por não conseguir
protegê-lo de toda a desgraça que nos
cercava.
Fechei a porta silenciosamente
atrás de mim antes de entrar de vez no
cômodo com passos arrastados.
— Eu levo a surra e é você
quem chora? — brinquei, tentando
deixar o clima mais leve. Meu irmão
não riu, apenas se levantou e continuou
me encarando.
— Você está sangrando —
observou, com a voz amargurada.
Olhei para baixo, onde a
camiseta branca do meu pijama estava
empapada de sangue perto do meu
ombro direito. Puxei a gola para baixo,
inspecionando o talho que a fivela do
cinto do nosso pai havia feito em minha
pele.
Não parecia muito profundo,
mas, definitivamente, deveria levar
alguns pontos. Suspirei, cansado. Meu
corpo inteiro doía demais para eu ter
reparado naquilo antes.
— É só um arranhão — tentei
tranquilizá-lo ao passar por ele e
bagunçar seus cabelos, indo na direção
do banheiro.
Normalmente, Frederik nos
fazia escolher entre seu cinto ou sua
bengala. Na semana passada, foi a
bengala que deixou hematomas roxo-
esverdeados por toda as minhas costas.
Naquela manhã, quando ele descobriu
que Nick havia matado aula para ir ao
parque, havia sido seu cinto de couro
com fivela de prata.
Ele costumava me inclinar
sobre a mesa de madeira de seu
escritório para me bater. Então, quando
eu tinha a visão do jardim lá fora
através da janela à minha frente, a única
coisa que me mantinha firme era pensar
que eu estava apanhando para que Nick
não estivesse.
Eu poderia aguentar aquilo,
mas meu irmão de doze anos não.
— Um dia desses ele vai te
matar, Hades — Nick soou preocupado
enquanto me seguia para o banheiro da
suíte.
Engoli em seco novamente.
Queria tirar a blusa para poder
analisar as marcas que ele deixara
daquela vez, mas não podia fazer isso na
frente de Nicholas. Ele não suportaria.
— Não é tão ruim quanto
parece, juro — garanti, me virando para
ele.
— Sinto muito — lamentou,
com a voz embargada. O nó em minha
garganta cresceu.
Eu também queria chorar e
gritar e quebrar tudo ao meu redor. Mas
não podia fazer isso. Não com Nick ali
assistindo e minha mãe enferma no
quarto ao lado.
Coloquei uma mão em seu
ombro e apertei levemente, tentando
confortá-lo.
— A culpa não foi sua, ouviu?
Era minha obrigação protegê-
lo. Era o que nossa mãe queria. Ela
estava muito doente para impedir nosso
pai de nos punir. Eve passava metade do
dia na cama e a outra metade pintando
em seu ateliê no sótão.
— A mamãe vai morrer e se o
papai te matar então eu vou ficar
sozinho. Eu não quero ficar sozinho.
Alguma coisa dentro de mim
quebrou naquele instante.
Me abaixei, inclinando-me na
direção dele.
— A mamãe não vai morrer —
garanti, mesmo sabendo que aquilo
estava muito além do meu alcance.
— Você promete?
— Sim, Nick, eu prometo.
O puxei para mim e o abracei
contra meu corpo.
Me lembrei das palavras do
meu pai há poucos minutos quando ele,
enfim, se viu satisfeito de me bater.
Após eu me oferecer muitas vezes para
ser punido no lugar de Nick, quando ele
desobedecia, Frederik teve uma ideia.
Após me bater até se dar por satisfeito,
ele havia sussurrado em meu ouvido:
— Você gosta de receber os
castigos no lugar de seu irmão, não é?
Vamos combinar uma coisa, então. Toda
vez que ele me desobedecer, eu te
punirei, mas, quando for você a agir com
rebeldia, será Nick quem eu irei surrar.
Ao que parece, vocês se importam mais
um com o outro do que seguir as regras.
— Não me importo com suas
ameaças. Pode me bater o quanto quiser
— grunhi, entredentes, com meu rosto
pressionado contra a superfície gelada
da madeira de sua escrivaninha.
Frederik deu uma risada
fantasmagórica que fez meu corpo
inteiro se arrepiar.
— Pode ser, mas sei que você
se importa com a ideia do seu irmão ser
castigado.
— O que você quer de mim? —
perguntei, fechando os olhos e trincando
o maxilar com a dor lancinante que eu
sentia.
— Quero que me obedeça,
Hades. Quero que siga minhas ordens de
agora em diante. Que aceite os planos
que fiz pra você. Seja um bom herdeiro,
o meu sucessor.
— Nunca serei como você.
Mesmo tão jovem, eu já sabia o
suficiente sobre as coisas ilegais que
meu pai fazia. Ele tinha uma reputação,
era temido por sua falta de escrúpulos.
— A partir de hoje você vai
aprender a cuidar dos meus negócios.
Será assim ou então eu punirei o seu
irmão. Você decide.
Aquele havia sido apenas o
começo. Meu pai havia aprendido muito
bem sobre as minhas fraquezas. Ele se
tornaria perito em me chantagear,
ameaçando as pessoas que eu amava.
Era assim que ele me
controlava.
E agora estamos chorando e
amando
E agora estamos brigando e
tocando
Parece que estou fazendo amor
com o inimigo
Eu só posso ter você em
pequenas doses
Amar você é explosivo, você
sabe disso
Oh, amor, você é a pessoa
sobre a qual eles me avisaram
Agora eu simplesmente não
posso ficar sem
Small Doses - Bebe Rexha

Eu estava atrás do balcão do


Pandemônio, cobrindo Fiona que estava
no banheiro, quando Hades entrou no
bar. Ele estava diferente. Nos últimos
dois dias eu nem sequer havia o visto.
Apesar de estar tentando evitá-lo, não
esperava que ele fosse desaparecer
daquela maneira. Não o culpava, porém.
Todos sabiam que os Wrath estavam em
crise desde que todos começaram a
especular sobre os esquemas de
corrupção e lavagem de dinheiro
envolvendo as empresas da família.
Eu não sabia se era exatamente
por isso, mas, definitivamente, ele não
estava de bom humor quando atravessou
o assoalho de madeira, pisando duro
com seus coturnos. Os olhos pareciam
ainda mais pretos do que de costume —
se é que isso era possível —, e mais
impetuosos também.
Me lembrei, instantaneamente,
das primeiras vezes em que o vi. Olhos
frios e distantes, cabelos escuros
perfeitamente penteados para trás, um
sorriso pretensioso sempre escondido
no canto de sua boca. Parecia um grande
cretino arrogante e calculista, com seu
Camaro estúpido e comentários
sarcásticos. Eu realmente o odiei
quando o vi pela primeira vez. Agora,
quase dois meses depois, mesmo após
conhecê-lo melhor, ele havia voltado a
se parecer com aquele cara.
— Quero falar com você —
ordenou quando passou pelo balcão do
bar antes de seguir direto em direção ao
escritório — Agora.
Levantei as sobrancelhas,
ofendida. Não pude acreditar que ele
estava falando daquela maneira comigo.
— Sim, senhor. Em que mais
posso servi-lo? — cantarolei,
ironicamente. Hades se virou antes que
pudesse alcançar a porta do escritório.
Me olhou curioso e levantou uma
sobrancelha.
Ele ainda fazia parecer que
tudo ao meu redor pegava fogo. Bastava
ele me fitar para que eu incendiasse,
meu corpo inteiro se arrepiando. Eu
odiava como eu dificilmente conseguia
penetrar o seu escudo. Num minuto, eu
me sentia confortada por sua presença e,
no outro, sentia como se mal o
conhecesse. Sua inconstância me
incomodava.
Ergui o queixo, me endireitando
e cruzando os braços.
— Estou falando sério, Raven.
Trinquei o maxilar.
Ele havia cortado o velho
hábito de me chamar de amor, ao que
parecia. Mas eu sequer me importei com
isso. Principalmente, porque eu odiava
com todas as minhas forças aquele tom
arrogante que ele usava, como se todos
aos seu redor estivessem ali apenas para
executar suas ordens.
Hades não era assim. Aquilo
tudo era a porra de uma grande farsa que
encobria o que ele escondia por baixo.
— Eu também estou, Hades. —
Utilizei o mesmo tom duro e gelado que
o dele. — O que aconteceu para te
deixar tão irritado? Seu alfaiate errou a
medida das suas roupas ou o
combustível do seu Camaro acabou?
Ele não riu.
Não houve nem mesmo um
manear de cabeça, um olhar malicioso
ou um leve entortar de lábios sequer.
— Muito engraçado — ralhou,
estreitando os olhos para mim sem
nenhum humor. — Estarei te esperando
no escritório.
Então, ele se virou, abriu a
porta e sumiu lá dentro.
Algo estava errado.
As mudanças de humor dele me
deixavam confusa. Eu não sabia o que
ele queria ou esperava de mim, mas,
com toda certeza, eu não iria me sujeitar
às suas grosserias e caprichos.
Bufei, em cólera, e marchei até
sua sala, entrando atrás dele.
— Olha só, não me importa o
quanto sua vida é uma grande desgraça
ou se você está bravo e frustrado. Eu
não tenho culpa dos seus problemas —
eu disse com o tom de voz elevado,
batendo a porta atrás de mim. Hades se
virou, me fitando intensamente. —
Então, se vai agir como um babaca
insuportável, é melhor me avisar para
que eu me mantenha o mais distante
possível. Não preciso disso.
Deixei meus braços caírem na
lateral do corpo.
Ele não era o único frustrado
ali. Nós dois tínhamos, cada um, grandes
cargas de traumas em nosso passado. Eu
me abri com Hades e tudo o que ele
havia me dado até aquele momento foi
seu lado doce, pelo qual eu estava
caindo facilmente.
Mas agora, tudo ao nosso redor
estava começando a desmoronar. E,
apesar de precisar me afastar dele para
não perder o que sobrava da minha alma
para Hades Wrath, eu não queria que ele
voltasse a erguer aquela barreira perto
de mim.
Talvez eu estivesse sendo
injusta e egoísta, mas não me importei
com isso naquele instante.
Hades me encarou em silêncio
por longos segundos. O rosto
completamente impassível, sem esboçar
qualquer reação que traduzisse seus
pensamentos. Seu corpo estava tenso,
notei. Normalmente ele não era assim.
Alguma coisa havia mudado e eu queria
muito saber o que era, mas algo me dizia
que ele não contaria para mim.
— Tenho que recuperar o
dinheiro que meu pai perdeu para Dallas
— explicou, com a voz mecânica. — E,
para isso, você precisa me dizer tudo o
que sabe sobre a máfia de Joel
McKinley.
Inclinei a cabeça.
Hades me dissera que seu pai
tinha maneiras de obrigá-lo a obedecê-
lo, que usava de ameaças para isso.
E se Hades não estava sendo
diretamente ameaçado por Frederik,
quem estava?
Seja lá quem fosse o alvo, seu
pai havia acertado em cheio. Nunca
antes o vi com tanto medo.
Franzi o cenho, preocupada.
— Seu pai está com raiva por
causa dos ataques, não é? Ele acha que
isso é de sua responsabilidade? —
perguntei, me aproximando. Hades
continuou parado, me observando.
Esquadrinhei seu rosto. Ele parecia
cansado, tinha olheiras sob seus olhos e
a barba por fazer. Ele não respondeu. —
O que está te perturbando tanto?
Hades ficou em silêncio por
mais um tempo antes de dar um passo
em minha direção, me olhando como se
estivesse prestes a me revelar seu maior
segredo.
Pisquei, tensa e em expectativa.
— Eu preciso que você me diga
tudo o que sabe sobre os esquemas do
seu padrasto — ele repetiu, dessa vez de
maneira lenta e clara.
Assimilei devagar que ele não
iria me contar a verdade. Talvez não
confiasse em mim, mesmo após eu ter
vencido a maldita corrida.
Engoli em seco, atravessando o
escritório em direção ao sofá. Me sentei
e cruzei as mãos entre os joelhos, meus
olhos fixos no chão. Desviei minha
mente da minha preocupação com Hades
e foquei no que ele havia pedido.
Eu precisava ajudá-lo. Destruir
McKinley não era apenas um interesse
do Pandemônio, afinal. Eu tinha mais
motivos do que qualquer um ali para
odiá-lo, no fim das contar.
Forcei minha mente a vasculhar
nas memórias difíceis do meu passado
em Dallas e me lembrei de todas as
vezes em que ouvi as reuniões da máfia
de Dallas por detrás da porta. De como
os traficantes de Joel conversavam
livremente sobre esses assuntos na sala
de estar da casa enquanto bebiam
cerveja e comiam pizza amanhecida.
Eu me mantinha sempre por
perto, me esgueirando para escutar, em
busca de qualquer informação valiosa.
Como de costume, estava caçando uma
oportunidade, uma brecha para escapar.
Durante esse tempo, descobri muito
sobre o mundo do crime. Ouvi e vi
coisas que certamente daria tudo para
apagar da minha memória.
— Ele costumava dizer que
poderia ter muito lucro e vantagem caso
obtivesse poder sobre Carmine, mas que
também era muito difícil — comecei,
limpando qualquer vestígio de
ressentimento da minha voz. — Eu os
ouvia reclamando sobre os Wrath, que o
impediam de se aproximar daqui. Todos
os seus homens temiam uma guerra
contra Carmine. Foi por isso que
Stephen e eu consideramos por anos
fugir para cá. Era o lugar mais seguro
para nós.
Levantei os olhos e vi Hades
começar a andar de um lado para o outro
lentamente, com os braços cruzados e
uma feição pensativa em seu rosto.
— McKinley sempre pareceu
interessado demais nessa cidade.
Apesar de ele e meu pai terem uma
espécie de “paz armada” entre si, ambos
sabiam que, na primeira chance, Joel
tentaria investir contra Carmine.
— Mas por que ele resolveu
fazer isso agora? Por que começar uma
guerra nesse momento, sendo que
sempre temeu isso? — perguntei,
tentando juntar as peças.
Parecia um movimento óbvio
que Dallas tentasse se aliar a um inimigo
próximo dos Wrath, mas se Joel e
Frederik tinham mesmo um acordo de
paz, o que o fez quebrá-lo assim? Por
que os Daggers voltaram e por que se
aliaram ao meu padrasto logo agora?
Era apenas a política do “o inimigo do
meu inimigo é o meu amigo” ou havia
algo mais ali que não estávamos vendo?
Afinal, mesmo que eles
conseguissem derrubar o Pandemônio e
todo o império de Frederik, Joel e
Garrett não poderiam reinar sobre
Carmine ao mesmo tempo e eu duvidava
que eles estivessem dispostos a
compartilhar.
— Podemos descobrir isso
depois, mas primeiro temos que
recuperar o dinheiro que eles levaram
— Hades insistiu, parando em frente à
sua mesa, onde encostou o quadril, e me
encarou.
Balancei a cabeça.
— Ficou claro que a polícia
daqui trabalha para a sua família, por
que eles mesmos não descobrem?
Hades bufou antes de
massagear as têmporas, como se tivesse
acabado de encontrar outro problema a
ser solucionado.
— A polícia precisa ficar bem
longe das empresas-laranja do meu pai.
Desde que a discricionariedade do
xerife a benefício do Pandemônio atraiu
a atenção da corregedoria, estamos
todos na corda bamba. Caso os federais
descubram os negócios ilegais por trás
do nosso sobrenome, tudo estará
acabado — explicou ele, com certa
irritação na voz. — Temos que resolver
isso com nossas próprias mãos.
— Connor e Joel costumavam
esconder dinheiro e drogas em lugares
que ninguém nunca desconfiaria — falei.
Joel estava sempre tentando despistar as
autoridades do Texas, temendo que os
federais o pegassem. — Quais lugares
em Carmine poderiam passar
despercebidos por vocês e pela polícia?
Ele se desencostou da mesa,
passando as mãos pelos cabelos,
impaciente.
— Eu não sei, Raven. Poderia
ser qualquer coisa.
Suspirei, esticando as pernas e
me recostando contra o estofado
vermelho-escuro do sofá.
— Eles poderiam ter escondido
no mesmo covil onde os Daggers estão,
mas acho difícil que Connor confie neles
a esse ponto. Conheço ele, tenho certeza
de que está apenas usando Garrett.
— Estamos num beco sem
saída — Hades murmurou, como se
estivesse pensando alto.
Realmente parecia que sim. Eu
não conseguia imaginar como
poderíamos sair daquela situação
estando completamente no escuro.
Mesmo que eu conhecesse o modus
operandi da máfia de Dallas, sua
aliança com os Daggers os tornava
totalmente imprevisíveis. Eles poderiam
fazer qualquer coisa a partir dali e eu
não saberia como impedi-los.
Meus pensamentos foram
interrompidos por duas batidas na porta
do escritório. Hades soprou um “entre”
sem dar muita importância. No segundo
seguinte, Wade adentrou à sala, parando
a poucos metros da escrivaninha. Ele
parecia tão preocupado quanto nós. Ele
colocou as mãos nos bolsos da jaqueta
de couro com a insígnia do Pandemônio
e seu olhar recaiu sobre mim. Me fitou
com a mesma desconfiança de sempre
por poucos segundos antes de alternar
para Hades.
— Temos um problema —
anunciou, fazendo o amigo bufar. —
Estão dizendo que há um novo traficante
na área, vendendo material puro e da
melhor qualidade. O nome dele é Seven.
— Um Dagger? — perguntei.
Afinal, aquele nome parecia como os
apelidos típicos daquele motoclub.
Wade voltou a me olhar.
— Provavelmente.
— E ele já está vendendo as
drogas do nosso carregamento — Hades
completou antes de exclamar um
palavrão.
Exatamente como Khalil havia
previsto.
— Ninguém sabe nada sobre
esse tal Seven — Wade continuou,
frustrado.
— Fiquem de olho nele. Tentem
descobrir quem é — Hades pediu. Seu
amigo concordou com um meneio de
cabeça e se virou para sair.
Nós três, contudo, paralisamos
quando nos deparamos com uma figura
alta e de braços cruzados parada sob a
soleira da porta.
Nicholas Wrath.
Me empertiguei, prevendo uma
catástrofe.
Wade rosnou, dando um passo
na direção de Hive.
— Mas que porra você está
fazendo aqui?! — ele bradou.
Arregalei os olhos, chocada, e
me levantei, atraindo os olhos escuros
de Nick para mim.
Ele parecia péssimo. Estava até
pior do que na última vez em que o vi,
lamentando no aniversário da morte de
sua mãe. Mas, apesar do visual
desleixado, permanecia bonito.
Não sabia qual era o motivo de
Wade ter explodido daquele jeito, mas
pela maneira como fuzilava Nick com
um olhar de pura cólera, parecia ser
pessoal.
— Calminha, Wade. —
Levantou as mãos na altura dos ombros,
em rendição. — Eu vim em paz.
Mesmo sem ser convidado, ele
atravessou o arco da porta com suas
botas de combate e adentrou ao
escritório, olhando ao redor com as
mãos nos bolsos da jaqueta de couro
marrom. Não estava intimidado por
Wade, embora este fosse muito mais alto
e forte do que ele.
— Dê o fora daqui antes que eu
termine de quebrar os ossos do seu rosto
— ameaçou Wade, entredentes.
Franzi o cenho, aflita.
— Espera, Wade — pediu
Hades. — Quero ouvir o que meu irmão
tem a dizer.
Wade não pareceu feliz com
isso, mas não contrariou o amigo.
— Eles queimaram a galeria da
minha mãe — explicou Nick, olhando
diretamente para Hades. — Não me
importa se algum dia eu fui um deles.
Quero vingança.
Hades estreitou os olhos para o
irmão caçula.
— Acha que somos um caminho
para sua vingança? — Ele riu nasalado.
— Sua lealdade é frágil e escorregadia,
Hive. Eu não confiaria em você nem
para pegar minha correspondência,
quanto mais para algo grande como
acabar com os Daggers.
Nick estalou a língua.
— Não parece que você tem
muitas opções, irmão. E, ao julgar pelo
olhar de derrota na sua cara, você
precisa de toda ajuda que pode ter.
Hades pensou por alguns
instantes. Era difícil confiar em Nick
depois de tudo. Contudo, não parecia
realmente que ele estava do lado dos
Daggers daquela vez. Afinal, ele havia
engolido seu orgulho e oferecido ajuda
ao seu irmão. Isso parecia ser um grande
passo.
— Não vou acreditar nesse seu
teatro, Hive — Wade falou.
— Não me importo com o que
você acredita. Sabe de uma coisa? Você
deveria superar o que aconteceu e seguir
em frente.
— Eu não vou superar na…
— Chega! — intervi, elevando
o tom de voz. Eles se viraram na minha
direção. Suspirei, fitando Nick. — O
que você está sugerindo, exatamente?
— Quero me infiltrar nos
Daggers. Acabar com eles de dentro pra
fora.
Silêncio.
Pisquei, atônita, antes de
alternar meu olhar entre os três homens
naquele escritório.
— Muito conveniente —
resmungou Wade, ainda irado.
Hades balançou a cabeça,
incrédulo, e deu passo na direção de
Nick e disse:
— Você acha mesmo que eu
vou acreditar nisso? Você só quer se
beneficiar, custe o que custar.
Nick bufou, parecendo começar
a ficar irritado.
— Olha só, Hades, se você não
quer confiar, então o problema é todo
seu. Vou me infiltrar nos Daggers e
acabar com eles com ou sem sua ajuda,
mas, se estivéssemos trabalhando juntos,
poderíamos ser mais bem sucedidos
nisso.
— Hades — chamei, quando
ele abriu a boca prestes a retrucar seu
irmão. Seus olhos se voltaram para mim.
— Precisamos de ajuda.
Ele ponderou. Seus olhos
ficaram presos aos meus enquanto ele
pensava. Sabia que Hades estava
balanceando todos os prós e contras em
sua cabeça. Ele era puro orgulho e
teimosia e havia jurado acabar com
Nick, mas talvez aquela aliança fosse o
primeiro passo para reatar o laço
fraterno que havia sido rompido entre
eles. Todos precisávamos daquilo, os
dois acima de tudo.
— Já se esqueceu de como ele
nos traiu e não faz muito tempo? —
Wade acusou, com a voz cheia de
ressentimento.
Suspirei, negando.
Nicholas também havia me
traído e eu não havia o perdoado ainda.
Mesmo que tudo tivesse dado certo no
final, ele quis me sabotar e agiu para
isso. Ele jogou sujo. Ainda assim, ter
alguém de dentro colaborando conosco,
provavelmente, faria toda a diferença.
Eu acreditava de verdade quando ele
dizia que queria ajudar.
— Todos nós aqui temos um
objetivo em comum — comecei, me
aproximando deles. — Precisamos um
do outro para conseguir o que queremos.
Não somos crianças e podemos
trabalhar juntos para isso. Depois que
terminar, vocês todos podem se matar ou
sei lá, eu não ligo. Por enquanto, quero
acabar com Joel McKinley e farei o que
for necessário para tal. Farei qualquer
coisa.
Hades me fitou, trincando o
maxilar enquanto hesitava. Após alguns
segundos, entretanto, ele alternou o olhar
para seu irmão.
— Você também é um traidor
para Garrett. Acha mesmo que ele seria
tolo o suficiente para te aceitar de volta
como um filhotinho arrependido?
— Eu era o preferido dele. Era
o melhor. Além disso, Garrett sabe que
nos odiamos e, desde que ele acredite
que eu quero muito te destruir, vai me
querer de volta.
Nick cruzou os braços,
mantendo os ombros tensionados e sua
melhor pose de durão inabalável.
— Não. — Hades balançou a
cabeça. — Ele vai querer que você
prove que está do lado dele.
— Porra, você está mesmo
considerando isso? — Wade perguntou,
incrédulo. Hades não respondeu.
— Como você vai provar pra
ele? — indaguei ao Nick, aflita com as
possibilidades.
— Vamos deixar para pensar
nisso quando o momento chegar — Nick
falou, tranquilo.
— Isso é um erro — Wade
advertiu, olhando intensamente para
Hades. — Você deveria saber disso
mais do que qualquer um.
Em seguida, ele passou por
Nick, esbarrando seus ombros
propositalmente antes de seguir pela
porta e sair do escritório.
Hades bufou.
Eu não conseguia parar de
pensar em todas as maneiras como
aquele plano poderia dar errado. Se
Garrett descobrisse que Nick estava
infiltrado, provavelmente o mataria. E,
mesmo que os Daggers fossem
enfraquecidos ou caíssem, ainda
teríamos que lidar com Connor e Joel.
— Raven — Hades chamou,
atraindo minha atenção. — Você tem um
mapa sobre a máfia de Dallas em sua
mente. Por que não podemos apenas
entregar o que sabemos sobre McKinley
para os federais?
Engasguei, arregalando os
olhos.
Aquilo estava completamente
fora de cogitação.
— Não podemos envolver os
federais — explicitei, nervosa com
aquela possibilidade. — É uma péssima
ideia.
— Por quê?
— Porque Joel os tem em sua
folha de pagamentos — menti.
Senti um aperto no peito ao
pensar em contá-lo mais sobre aquilo,
porque aquela parte do meu passado
ainda me assombrava.
Hades cerrou os olhos para
mim, intrigado, mas não insistiu no
assunto. Logo a reunião acabou. Não
tínhamos muita expectativa e não
sabíamos nada além de que Nick estava
prestes a entrar, às cegas, no covil do
nosso inimigo.
Me sentindo encurralada
naquele escritório ao me ver novamente
sozinha com Hades após Nick ir
embora, saí de lá o mais rápido possível
em direção ao beco atrás do bar. Eu
precisava muito de um cigarro.
Quando cheguei lá, para minha
surpresa, me deparei com Fiona também
fumando. Acendi um cigarro e
rapidamente coloquei a nicotina para
dentro do meu organismo.
— Noite ruim? — ela
perguntou, parecendo estar um pouco de
mau humor também.
— Mais uma de muitas —
respondi, ranzinza, enquanto soprava a
fumaça e observava ela dançar no ar
noturno. — E você?
Fiona deu de ombros, passando
os dedos por entre os fios curtíssimos
dos seus cabelos. Bati o pé contra o
concreto do chão úmido das chuvas
recentes, ansiosa.
— O que houve?
Respirei fundo, colocando os
cabelos para trás, e olhei no rosto dela.
— Eu menti para o Hades —
confessei, sentindo-me segura para
desabafar com Fiona.
— Sobre o quê? — perguntou
ela.
Suspirei.
— Disse a ele que Joel
McKinley havia comprado o FBI e por
isso não podíamos denunciá-lo, mas não
é verdade. Ele teme os federais mais do
que tudo e garantiu que eu e as outras
não pudéssemos falar com a polícia.
— Que outras?
— Havia outras garotas. Elas
trabalhavam na casa e nas boates de
McKinley. Connor não as protegia como
fazia comigo.
— O que ele fez para garantir
seu silêncio?
— Joel criou um plano para
que, se a máfia de Dallas fosse
desmantelada pela polícia, elas fossem
apagadas, como uma queima de
arquivos. No menor sinal de que a
polícia pode estar perto de prender Joel,
todas essas garotas vão apenas sumir. —
Fiona me encarava apática. Desviei o
olhar do dela. — Eu fui embora e as
deixei lá e estava pronta para viver o
resto da minha vida tentando esquecê-
las. Esquecer como eu fui egoísta pra
cacete.
— Joel é um desgraçado filho
da puta. Não me surpreende as coisas
que ele tenha feito. Você é uma
sobrevivente, não pode se culpar pelas
coisas que ele fez. — Ela fez uma pausa.
— Mas sabe que não precisava ter
mentido para Hades sobre isso, não é?
Ele teria entendido. E, Raven, você não
tem mais que se preocupar com isso.
Vamos dar um jeito de ajudar essas
garotas.
Balancei a cabeça em
concordância.
McKinley não iria se safar de
novo, e por isso precisávamos ganhar a
guerra que ele começara.
— Eu sei — falei, antes de
engolir em seco. Eu havia entrado em
pânico e mentido, porque ainda me
sentia culpada por tê-las deixado pra
trás, principalmente depois do que uma
delas havia feito por mim. — Nunca
antes tive uma chance real de fazer
alguma coisa sobre isso, até agora.
Fiona franziu o cenho,
estreitando os olhos para mim.
Dei uma longa tragada no
cigarro antes de completar, saboreando
aquelas palavras:
— Eu vou matar Joel
McKinley.
Em uma terra de deuses e
monstros
Eu era um anjo
Vivendo no jardim do mal
Ninguém vai levar a minha
alma embora
Isso é o paraíso
O que eu realmente quero
É a inocência perdida
Gods & Monsters - Lana Del
Rey
Já fazia quase uma semana desde
que Nick dissera que se infiltraria nos
Daggers. Não tivemos mais nenhuma
informação sobre ele. Aquilo estava
martelava em minha cabeça todos os
dias. Eu estava esperando o caos
explodir a qualquer instante e aquela
ansiedade estava me enlouquecendo.
Eu havia passado os últimos
dias pensando muito sobre Dallas,
principalmente sobre Maria. A garota
que me salvara uma vez e que eu
abandonei, tal como Stephen e Astrid me
abandonaram. Tinha certeza de que ela
não iria querer que as ameaças de Joel e
Connor me impedissem de tentar
destruí-los. Precisava fazer isso.
O clima estava chuvoso na
sexta-feira quando eu, sob o capuz do
casaco preto, atravessei o campus em
direção à biblioteca, onde Khalil me
disse que Hades estaria estudando para
os testes da semana seguinte. O céu
estava gritando sobre mim, com nuvens
cor de chumbo e raios que o cruzavam
vez ou outra, iluminando-o.
Corri para dentro do enorme e
belo prédio da biblioteca, retirando o
casaco assim que entrei. Meus cabelos
estavam um pouco úmidos, presos num
rabo de cavalo. Passei as mãos sobre os
fios, ajeitando-os enquanto
esquadrinhava o espaço à minha frente.
Luzes amareladas clareavam o ambiente
composto por estantes em madeira
escura e mesas repletas de alunos
estudando. Andei pelos corredores,
procurando por ele.
Encontrei o moreno sentado ao
fundo do segundo piso, numa mesa
distante e solitária, cercado por algumas
pequenas pilhas de livros espessos com
capas de couro. Engoli em seco,
observando-o enquanto me aproximava.
Hades usava uma blusa preta de
mangas compridas e gola alta devido ao
clima frio. Sua inseparável jaqueta de
couro estava pendurada no encosto da
poltrona. Seus olhos estavam
completamente focados no livro aberto
sobre a superfície da mesa enquanto,
com uma das mãos, ele girava uma
caneta entre os dedos.
Era difícil não apreciar sua
beleza, esculpida naquele rosto
extraordinariamente frio. Hades era
surreal, com sua postura ereta perfeita e
os longos dedos pálidos deslizando
sobre as páginas dos livros.
Me sentei no assento vago à sua
frente, cruzando as mãos sobre a mesa.
Foi só então que ele notou minha
presença, levantando o rosto em minha
direção. Quando me fitou, seu olhar
demonstrou surpresa. Ao que parecia,
Hades realmente estava concentrado
demais em seus estudos para notar
minha aproximação.
— Oi — falei, simplesmente,
por falta de saber o que dizer.
O canto de seus lábios se
repuxou num sorriso charmoso. Ele
estava mais leve do que da última vez
em seu bar.
— Olá, amor.
Engoli em seco novamente,
tentada a pedir que ele parasse de me
chamar daquela maneira, porque isso só
dificultava as coisas para mim. Há dias
havíamos nos distanciado. Ele nem
sequer passava pelo bar durante as
noites. Quando precisava ir ao cassino,
entrava pela porta dos fundos, a que
ficava no beco atrás do Pandemônio.
Hades estava me evitando e
isso já estava claro. Eu deveria estar
feliz com essa atitude; afinal, aquela
noite em seu quarto eu havia dito a ele
que nunca poderia ceder ao sentimento
que havia entre nós.
Cheguei à conclusão de que a
pior parte era que ele não estava nem um
pouco disposto a me contar o que havia
acontecido.
Eu não podia culpá-lo. Não
quando era eu quem estava sendo
incoerente. Queria que ele se
distanciasse, porque tinha medo de me
apaixonar, mas quando ele fez
exatamente isso, me senti frustrada. Eu
não podia ter apenas uma parte de
Hades. Não podia ter apenas aquilo que
era fácil e que não me deixava confusa,
como eu queria. Com ele era tudo ou
nada. Eu havia lhe dito naquela noite
que tê-lo por inteiro, assumir de uma vez
meus sentimentos, me destruiria. Agora
eu não tinha mais certeza disso, porque
não ter parte nenhuma de Hades estava
sendo bem pior.
— Já está pronta para dizer por
que mentiu para mim? — perguntou. Ele
não estava bravo, entretanto. Sua voz
estava tranquila e relaxada, tal como sua
postura.
— Fiona te contou?
Hades deu de ombros.
— Ela não precisou — disse,
fechando o livro sobre a mesa. — Vi em
seu rosto naquela noite que algo estava
errado.
Dei um longo suspiro,
mordendo o lábio inferior em seguida.
Eu havia ido procurá-lo com o
propósito de contar a verdade, e foi o
que fiz naquele instante. Lhe disse
grande parte, omitindo apenas o que
envolvia Maria. Narrei com descrição
as cenas que me deixavam assustada e
que ainda desencadeavam pesadelos em
mim durante a madrugada. Aquelas
garotas vagando pelos corredores da
casa como fantasmas perdidos. Sempre
tão pálidas e franzinas, com ossos que
pareciam prestes a se partir. Nada me
aterrorizava tanto quanto seus gritos.
Hades ficou em silêncio
enquanto eu falava, permanecendo assim
por alguns instantes mesmo após eu
terminar. Tinha uma mão sobre o queixo
e um olhar vago, como se ainda
estivesse absorvendo todas as
informações. Enquanto isso, tirei do
bolso uma folha de papel dobrada — e
um pouco amassada —, colocando-a
sobre a mesa em seguida.
— Aqui tem o nome da maioria
dos homens que trabalham para Joel,
bem como a localização das casas e
esconderijos deles. Está tudo aí.
Deslizei o papel em sua
direção.
Não pude fazer muito por todas
as vítimas de Joel e Connor até aquele
momento, mas eu tinha uma memória
excelente que nunca me desapontava. E
cada informação que aprendi morando
em Dallas ficou armazenada em minha
mente. Sabia que precisaria delas em
algum momento, embora meu objetivo
nunca tivesse sido enfrentar meu
padrasto.
Hades apanhou o papel, dando
uma olhada no que estava escrito ali.
Depois, levantou seus olhos para mim.
— Prometo que não vamos
fazer nada que prejudique aquelas
garotas. Iremos agir com cautela a partir
de agora, amor. Deixaremos a polícia
longe disso.
— Obrigada — falei, olhando
no fundo de seus olhos por um instante.
— E quanto a você? Está pronto para me
contar por que estava tão aflito naquela
noite em seu escritório?
Foi sua vez de suspirar. Ele se
recostou contra a poltrona, hesitando.
— Meu pai estava me
pressionando, como sempre.
— Mas daquela vez parecia
diferente.
— Ele ameaçou você —
admitiu, sério. Levantei as sobrancelhas,
sem saber o que dizer. — Mas não se
preocupe, não vou permitir que ele
encoste em você.
— Eu sei.

Estreitei os olhos para a pintura


à minha frente. Inclinei a cabeça um
pouco para o lado, tentando enxergar
sob um novo ângulo. A perspectiva não
mudou, entretanto. Ainda parecia
extremamente vazio. As cores e formas
permaneciam lá, mas não havia
sentimento, confusão, intensidade…
Não me despertava nada, era
completamente ausente de qualquer
emoção.
Suspirei, abaixando o pincel e
o colocando no suporte do cavalete de
madeira clara. Meus ombros caíram e eu
passei as mãos sobre o rosto, afastando
a mecha de cabelo que escapava do meu
rabo de cavalo. A grande exposição que
garantiria dois terços da minha nota
seria em algumas semanas, e eu não
tinha nenhuma obra que valesse a pena
apresentar.
Um trovão alto rugiu lá fora, me
fazendo tremer sobre o banco de
madeira no qual estava sentada. As luzes
do estúdio de arte da Universidade
piscaram, me lançando no escuro por um
breve instante. Olhei por sobre o ombro,
através das enormes janelas atrás de
mim. O céu estava desmoronando em
uma forte tempestade e, provavelmente,
a energia cairia em breve — o que
arruinaria meus planos de ficar ali
pintando durante minha folga no
Pandemônio.
Já passavam das seis da tarde
e, com a tempestade, o campus estava
quase totalmente desértico. O estúdio
estava extremamente limpo e silencioso,
com todos os cavaletes organizados.
Quando a luz piscou de novo,
decidi que era melhor ir embora.
Minutos mais tarde eu me vi
sob a cobertura da entrada do prédio de
Belas Artes da Universidade, me
protegendo como podia da ventania,
enquanto tentava telefonar para George
vir me buscar. Após cair diversas vezes
na caixa postal, no entanto, desisti. Bufei
alto, olhando ao redor.
Definitivamente, a tempestade
estava muito pior do que eu imaginava.
Era difícil enxergar alguma coisa nítida
com a chuva forte que caía e tornava
tudo nebuloso, mas eu ainda podia ver
os galhos das árvores balançando
furiosamente.
O vento arremetia contra os
meus cabelos, fazendo-os ricochetear.
Abracei meu corpo com mais força, me
vendo sem saída. Eu poderia ficar
ilhada naquele prédio ou, apesar do meu
orgulho e hesitação, ligar para o meu
plano B. Suspirei, procurando na minha
lista de contatos. Assim que encontrei o
número de Hades, cliquei sobre ele.
Não demorou muito para que ele
atendesse.
Fui preenchida com altas doses
de alívio quando sua voz soou, mas,
assim que eu abri a boca para respondê-
lo, uma mão agarrou minha nuca, me
puxando para trás. O celular escapou do
meu toque antes que eu pudesse gritar, e
um tecido foi colocado sobre meu nariz
e boca. Um odor forte me invadiu,
entorpecendo meus sentidos. Me debati,
tentando ver quem estava me atacando.
Ele me segurava com força, apesar dos
meus esforços para me desvencilhar.
Então, tudo foi perdendo foco e
ficando preto lentamente.
Até eu finalmente perder a
consciência.

Eu acordei atordoada.
Minha cabeça doía como o
inferno e eu conseguia ouvir o som da
tempestade lá fora, o barulho furioso do
vento e dos relâmpagos. Demorei para
abrir os olhos, mas, quando o fiz,
percebi que não estava totalmente
escuro ao meu redor. Eu estava presa e
sentada numa cadeira, com as mãos
atadas atrás das costas. Minha roupa
estava molhada da chuva.
Arrastei os pés sobre o chão,
olhando em volta. Não havia muita coisa
naquela pequena sala, nada além de
estantes vazia e caixas de madeira
jogadas por ali. O piso e o teto eram de
madeira. Estava calor. Suor escorria
pela minha testa e, mesmo quando tentei
puxar os braços para me desvencilhar,
não funcionou.
Seja lá onde eu estava, era
velho e abandonado. A poeira fazia meu
nariz coçar.
Soltei um palavrão antes de
chamar o nome de Joel, com ira.
Eu tinha certeza de que era ele.
Ele deveria querer me intimidar, me usar
para chantagear Hades. Afinal, estava
acontecendo uma guerra em Carmine e
havia um preço pela minha cabeça. Eu
não apenas sabia muitas coisas contra a
máfia de Dallas, mas agora sabia
também sobre a de Carmine. Eu poderia
ser a carta na manga de qualquer um que
quisesse destruí-los.
Ou seja, os Daggers.
Assim que esse pensamento
cruzou minha mente, uma voz familiar
alcançou meus ouvidos.
— Olha só quem acordou. —
Nick deu a volta, entrando no meu
campo de visão.
Estreitei os olhos para enxergá-
lo sob a luz amarelada e tremeluzente
pendurada acima da minha cabeça.
Senti um gosto amargo na boca
quando o vi. O Nick gentil que me
resgatara do deserto e que me beijara
tão delicadamente havia desaparecido.
Trinquei o maxilar enquanto lhe
direcionava o olhar mais furioso que
podia.
— Seu desgraçado — rugi,
entredentes. — Me solte ou…
— Ou o quê? — Ele cruzou os
braços e sorriu, arrogante. Estava na
vantagem. Todas as ameaças que eu
poderia fazer seriam completamente em
vão naquele instante. — Ou você vai
ligar pro seu namorado?
Balancei a cabeça, incrédula, a
compreensão me tomando lentamente.
— Isso é por causa do Hades?
Foda-se, Nicholas, não me envolva
nessa rivalidade estúpida entre vocês.
Nick estreitou os olhos
castanhos para mim. Havia algo ali que
eu não conseguia ler.
— Você já está envolvida,
menina. Se envolveu quando escolheu
ficar do lado dele. E você fez isso bem
rápido, não é?
Franzi o cenho e abri a boca,
prestes a rebatê-lo, mas uma sombra
surgiu no canto do meu olho. Fitei
aquela direção, encontrando a figura de
Garrett descendo as escadas na parte
mais escura daquele pequeno depósito.
— Não brinque com a comida,
Hive.
Sua voz estava carregada de um
tom assustador que fez meus ossos
tremerem. O homem me analisou com
um sorriso predatório no rosto,
terminando de descer os últimos degraus
e girando um canivete nas mãos.
— O que é isso? Uma
convenção dos malditos Daggers?
Ele riu alto antes de coçar a
barba escura, me analisando dos pés à
cabeça. Eu não podia acreditar que
estava ali, completamente à mercê
daquela gangue — que, pelo o que eu
sabia, reunia os homens mais
inescrupulosos e nojentos da cidade. Eu
não queria pensar nas possibilidades.
Ainda assim, elas passavam no fundo da
minha mente como um trailer. Era um
terrível lembrete de que bastaria um
passo mal calculado para que eles se
vissem livres para fazer o que
quisessem comigo.
Me recordei de quando Hades
dissera que era provável que Voich
exigisse uma prova da lealdade de Nick.
Talvez fosse isso. Mas, mesmo assim,
não tornava toda a situação mais fácil.
Wade estava certo. Nunca
deveríamos ter confiado em Nick.
Engoli em seco.
— Não vou dar nenhuma
informação sobre o Pandemônio, se é
isso o que vocês estão buscando. — Me
surpreendi com o quão firme e
impassível minha voz soou.
Contudo, eu estava pronta para
apelar, caso fosse necessário. Eu
duvidava que alguém conseguisse me
encontrar ali, então as únicas opções
que eu tinha eram: esperar que eles
saíssem para tentar me soltar e fugir; ou
fazer o que eles pedissem para que me
soltassem logo. Eu não estava nem um
pouco disposta a ser um fantoche dos
Daggers. Não daria nada a eles.
Eu já estivera muito próxima da
morte antes e, inexplicavelmente, isso
não me aterrorizava mais.
— Eu não preciso que você
diga nada. — Garrett se inclinou na
minha direção, sorrindo. Claro, ele não
queria informações de mim, porque
Hive, provavelmente, lhe dizia tudo o
que ele precisava saber sobre o
Pandemônio. — Você está aqui porque é
a minha moeda de troca. Uma moeda
muito valiosa, pelo o que fui informado.
— Hades não vai cair nessa —
afirmei, com mais certeza do que eu
tinha de verdade.
— Se você acredita nisso,
então é mais idiota do que eu imaginava.
— O que você quer? Pelo o que
pretende me trocar?
— Acho que isso não é da sua
conta, gatinha.
Algo me dizia que não seria
uma troca simples.
— É uma armadilha, não é? —
Estreitei meus olhos para ele,
desconfiada. Garrett não respondeu. —
Hades não vai cair nessa — repeti,
tentando convencer a mim mesma.
Não sabia quem eu estava
tentando realmente convencer com
aquilo: meu sequestrador ou a mim
mesma.
— Me disseram que Hades
Wrath é um tolo quando se trata de você.
Virei meu rosto e olhei para
Nick. Ele estava silencioso e sem
esboçar nenhuma expressão. Eu queria
saber o que se passava em sua cabeça.
Eu realmente tinha me enganado quando
pensei que ele estava arrependido por
tudo o que fez? Ele havia mesmo
contado tudo aos Daggers e lhes
mostrado novamente qual era o melhor
caminho para nos atingir?
Eu estava mais decepcionada
do que brava.
— Podem me manter aqui o
quanto quiserem, mas você não vai ter o
que quer. — Dei de ombros.
Toda aquela falsa segurança, na
qual eu queria fazê-los acreditar, era
apenas patética.
Garrett deu um sorriso ainda
maior antes de aproximar os lábios do
meu ouvido, como se estivesse prestes a
contar um segredo. Me encolhi em asco,
tentando me distanciar o máximo que
podia.
— Acho que você está errada.
Acabarei com Hades e ainda ficarei com
você pra mim, de brinde. — Ele me
encarou. Estava assustadoramente perto.
O suficiente para que eu sentisse o
cheiro de cigarro e álcool que ele
emanava.
Sem pensar, recuei minha
cabeça o máximo que pude antes de
lançá-la contra o rosto de Garrett,
batendo com tanta força que uma dor
latejante logo me invadiu. Ele se
distanciou com o impacto, emitindo um
som que parecia algo entre um gemido e
um grunhido. O líder dos Daggers se
endireitou rapidamente, entretanto. Em
seguida, passou a mão sobre o nariz, que
havia sido atingido diretamente pelo
topo da minha testa. Olhou incrédulo
para o líquido vermelho viscoso que
manchou seus dedos, me fazendo sorrir.
Então, ele levantou seus olhos
escuros para mim. Toda sua arrogância
havia sido substituída por cólera. Bastou
que eu piscasse para que ele se atirasse
sobre mim. Sua mão segurou com força
minha mandíbula, impedindo-me de
desviar meu olhar dele. A pressão
estava doendo, mas não deixei isso
transparecer. Lentamente, Garrett
levantou a lâmina do seu canivete e a
levou na direção da minha bochecha,
pressionando o metal gelado e
enferrujado contra a minha pele.
— Não sei como você era
tratada lá em Dallas, mas com certeza
não era com a firmeza que merecia, ou
então não seria tão insolente. — Ele
intensificou a força, fazendo lágrimas
brotarem no canto dos meus olhos. Por
um momento, pensei que ele fosse
esmagar minha mandíbula.
— Garrett. — A voz de Nick
soou, quebrando o silêncio cadavérico
no qual ele se encontrava até aquele
instante. Apesar de ele ter repreendido
Garrett, demorou ainda alguns segundos
para que este me soltasse, fazendo-o de
maneira brusca e repentina.
Tossi algumas vezes,
respirando ofegante.
Garrett limpou a lâmina na
manga da jaqueta de couro preta que
usava, foi só então que senti o ardor em
minha bochecha. Olhei para baixo,
percebendo que ele havia feito um corte
em minha pele, e assisti inerte quando
uma gota de sangue caiu do meu rosto na
calça jeans, tingindo o tecido de
vermelho. Tomei uma respiração
profunda, tentando controlar a raiva que,
de repente, havia preenchido todo meu
interior.
Levantei a cabeça para encará-
lo.
— Eu juro — falei, reunindo
toda a minha força para que minha voz
soasse firme e forte. — Eu juro que
você vai pagar por isso.
Garrett me fitou, subitamente
retornando à sua arrogância anterior.
— Mal posso esperar, gatinha.
— Ele piscou antes de fazer menção de
se virar.
Não pensei antes de dizer:
— Você acha que Joel
McKinley e Connor Kamps estão do seu
lado, não é? — debochei. — Eu é quem
mal posso esperar para ver o grande e
arrogante Garrett Voich sendo passado
pra trás. Esse será um belo show.
Ele se voltou para mim,
cerrando os olhos.
Se tinha algo que eu havia
aprendido no mundo da máfia, era que a
raiva era a mais estúpida das emoções,
porque ela não nos permitia pensar
racionalmente. Ela levava ao
descontrole, que, por sua vez, levava à
fraqueza. E, quando se é fraco, é mais
fácil ser atingido e derrotado. Joel já
teria caído há muito tempo porque era
impulsivo como o inferno, se não fosse
por Connor — que era seu completo
oposto. E Garrett podia ser tirado do
sério facilmente, eu havia testemunhado
isso momentos atrás.
Eu queria destruir sua
confiança e seu controle.
— Eu cresci os observando,
então acredite quando eu digo, a máfia
de Dallas não faz amigos. Sequer
aliados. Eles usam as pessoas para
conseguir o que querem. Então, seja lá o
acordo que vocês fizeram, saiba que
eles não vão cumprir. No final disso
tudo, você vai se ferrar ainda mais do
que eu.
Eu estava conseguindo deixá-lo
desconfiado. Pude ver a sombra da
dúvida brilhando em seus olhos. O
homem não me respondeu. Apenas se
virou e saiu do cômodo — que parecia
ser um porão.
Sorri.
Aquela era a fraqueza que
deveríamos explorar para destruir a
aliança entre Dallas e os Daggers.
Minha alegria durou muito
pouco e meu sorriso se desfez
rapidamente quando Nick entrou no meu
campo de visão.
— Eu não sabia que ele iria te
machucar. Sinto muito.
Ri nasalado, incrédula.
— Ouça bem, Hive — anunciei,
olhando fundo em seus olhos. — Eu não
quero ouvir sua voz ou mesmo olhar
para sua cara. Nunca mais. Então, você
pode ir para o inferno.
Eu falei lenta e pausadamente
para que cada uma daquelas palavras se
prendesse em sua mente.
Vi seu pomo de Adão se mover
quando ele engoliu em seco.
— Hades estava certo quando
disse que Garrett iria querer que eu
provasse minha lealdade. Foi isso o que
ele mandou eu fazer.
Ele achava mesmo que aquilo
o escusava de tudo?
— Você me sequestrou e me
prendeu aqui. Está ajudando-o a
chantagear seu próprio irmão!
Eu estava indignada e com
muita raiva. Se não estivesse amarrada,
eu poderia matá-lo naquele momento.
Nick suspirou antes de tirar um
pequeno lenço vermelho do bolso
traseiro da calça. Em seguida, se
aproximou, levantando o pequeno
pedaço de tecido em direção ao corte
em meu rosto — cuja dor havia sido
anestesiada pelo ódio, que borbulhava
junto com o sangue quente em minhas
veias.
— Fique longe de mim — rugi,
elevando o tom de voz. Nick obedeceu.
— Raven, eu estou fazendo o
que é necessário para destruir os
Daggers. Naquela noite, você disse que
faria qualquer coisa para acabar com
seu padrasto. Quando o seu momento
chegar, você vai entender.
Olhei para ele por longos
segundos antes de falar, vagarosamente:
— Dê o fora daqui.
Novamente, ele obedeceu.
Eles sabem que você anda
como se fosse um deus
Não conseguem acreditar que
te tornei fraco
Strange Love - Halsey

Eu havia perdido a noção de


quanto tempo fiquei encarando o celular
sobre a mesa de centro na sala do meu
apartamento. Poderiam existir pelo
menos uma dezena de motivos pela
ligação de Raven ter sido interrompida,
mas eu só conseguia pensar nas piores.
Estava ansioso e impaciente. Sentado na
ponta do sofá, com os cotovelos
apoiados nas coxas, meus olhos não se
desprendiam do aparelho eletrônico,
esperando incessantemente que ela
retornasse à ligação e ignorando a
conversa de Alec, Fiona e Khalil na
cozinha.
Quando a tela do telefone
acendeu de repente e ele começou a
vibrar, voei em sua direção, apanhando-
o nas mãos e atendendo a chamada
rapidamente.
— Raven?! — chamei, à beira
de implorar para que ela respondesse
com um de seus comentários azedos.
Quando percebi que a voz do
outro lado da linha, com certeza, não era
a dela, senti um nó crescer em minha
garganta.
— Errou. Tente de novo.
Fechei os olhos, apertando o
celular com tanta força na mão que
pensei, por um momento, que ele fosse
se desfazer em um milhão de pedaços.
— Garrett — grunhi,
entredentes.
— Bom falar com você
novamente, velho amigo.
Levantei o olhar, percebendo
que agora meus amigos estavam atentos
em mim. Fiona havia se aproximado até
parar ao meu lado, ávida por notícias.
Ela estava nervosa, quase desesperada.
Havia alguns ruídos ao fundo
da ligação, o que me fez franzir o cenho,
preocupado.
— Se você tocou em um fio
sequer do cabelo dela, eu…
— Poupe-me de suas ameaças
vazias, Wrath. — Ele fez uma pausa
agoniante. — A garota está bem. Mais
do que isso, está se certificando de
tornar sua estadia bem desagradável
para mim.
Então os ruídos se tornaram
mais audíveis, formando palavras. Logo
reconheci o tom de voz irado de Raven
ao gritar:
— Garrett, seu filho da puta,
eu juro que vou arrancar os seus olhos
e comê-los no jantar!
Um breve sorriso surgiu em
meus lábios.
Minha garota.
— Não deveria subestimá-la —
adverti.
Eu preferi acreditar que aquele
era um sinal de que Raven estava bem.
Por enquanto.
— Mas não sou eu quem faz
isso — Garrett rebateu. — Ela sabe que
você está apenas a usando? — Trinquei
o maxilar. — Aposto que isso vai partir
o coraçãozinho dela.
Fechei a outra mão em punho,
tentando conter o ódio que crescia em
mim. Mas, ao pensar um pouco mais
sobre a situação, franzi o cenho.
Até então eu pensava que os
Daggers não sabiam da ligação de
Raven com McKinley. Eu não queria que
eles descobrissem, pois sabia muito bem
que isso a colocaria em perigo. Eu
duvidava que Connor e Joel também
iriam se arriscar contando a Garrett
sobre isso. Afinal, a garota poderia ser a
vantagem de qualquer um que quisesse
atingir a máfia de Dallas.
Sendo assim, apenas uma
pessoa poderia ter feito isso e, quando
me dei conta de quem, minha visão ficou
vermelha.
— Devo agradecer a Hive por
ter finalmente esclarecido tudo. Eu
realmente estava curioso para saber
quem era essa forasteira pela qual
você estava obcecado. Agora tudo faz
sentido.
Maldito.
Engoli em seco, juntando as
forças que ainda me restavam para
manter o controle.
— O que você quer? Diga-me
logo, sua voz já está me irritando.
Aquele tom que ele estava
usando, como se já saboreasse o doce
gosto da vitória, me deixava irado.
Não importava o que Garrett
estivesse pensando, ou se ele acreditava
que tinha toda a vantagem nas mãos.
Tudo o que me interessava naquele
momento era recuperar Raven.
— Acho que você sabe bem o
que eu quero. Me ligue quando estiver
disposto a fazer a troca.
Então, ele desligou.
Regulei minha respiração,
abaixando o celular lentamente. Se eu
estivesse certo, Garrett queria a mesma
coisa que tentou tomar de mim anos
atrás — com a ajuda do meu irmão.
Engoli em seco novamente, me
virando para fitar a paisagem de
Carmine através das janelas do topo do
prédio. O breu intenso do cair da noite
era quebrado apenas pelos relâmpagos,
que iluminavam o céu por uma fração de
segundos antes de ele retornar ao seu
estado natural. O vidro estava embaçado
pela chuva forte, de modo que eu não
conseguia nada além da sombra da
silhueta das construções ao redor.
Mesmo sem olhar para trás,
senti a presença de Khalil se
aproximando.
— Ligue para o xerife Callow.
Quero todos os policiais de Carmine
vasculhando cada canto dessa cidade.
Não me importo que passem a noite
inteira procurando — ordenei, sem
nenhuma emoção na voz antes de me
virar para ele.
Eu estava bravo demais para
extravasar apenas uma pequena
quantidade da minha ira. Na verdade, eu
estava prestes a explodir, apesar de
estar me esforçando muito para me
controlar.
— Hades, qual foi o preço
dele? — Khalil perguntou,
cautelosamente, com uma ruga de
preocupação em sua testa.
— Foi pequeno — respondi,
sentindo um nó se formar em minha
garganta. — Pequeno demais comparado
a ela.
— Vai dá-lo ao Garrett?
— Sim — assenti antes de
dizer, entredentes: — Mas depois vou
arrancar a cabeça dele. É por isso que
preciso que Callow o encontre.
— Precisa que meu pai
encontre quem? — Selina falou,
entrando na sala antes que eu pudesse
notar. Estava acompanhada de Wade.
Desviei meu olhar para ela por
um instante. A bota preta de cano longo
que ela usava estava tão lustrosa que
quase brilhava. Os longos cabelos
vermelhos estavam presos num rabo de
cavalo, expondo seu pescoço rosado. Às
vezes eu me esquecia que Selina era
filha do xerife.
— Garrett sequestrou a Raven
— Alec explicou antes de chutar um dos
banquinhos ao redor da ilha de mármore
preto na cozinha.
— Sempre soube que essa
garota iria nos trazer um monte de
problemas — Selina murmurou,
cruzando a sala para se jogar de bruços
em um dos sofás, sem parecer nem um
pouco preocupada. — Precisa mesmo
resgatá-la? Provavelmente, esse foi o
maior favor que nos fizeram em anos.
— Cale-se, Selina — Khalil a
interrompeu, parecendo perder a
paciência. — Ela é uma de nós agora, e
cuidamos uns dos outros.
Eu provavelmente estaria
furioso com a fala da ruiva se já não
estivesse blindado contra suas
provocações. Selina Callow era uma
garota mimada que poderia ser bastante
venenosa quando queria. Ela
direcionava muito bem seus comentários
ácidos para ferir as pessoas, mas eu era
imune a isso. No fim, eu sabia que tudo
aquilo era apenas uma armadura — por
mais irritante que fosse.
— Quero encontrar o
esconderijo de Garrett a tempo de
invadir e tomá-lo quando ele estiver
fora, libertando Raven — falei, voltando
ao assunto.
— É muito arriscado. O lugar
deve estar sob a proteção de homens do
McKinley. Mercenários — argumentou
Wade.
— Ele está certo, Hades, eu
tenho visto esses bastardos pela cidade.
Estão nos observando — Alec
continuou.
Bufei, buscando a confirmação
olhando para Khalil. Ele maneou
levemente a cabeça, assentindo.
— O que eles pediram, afinal?
— Selina se sentou e me olhou
inquisitiva.
Todos ali contavam comigo.
Raven contava comigo. Mas eu não
sabia realmente o que fazer. Eu não tinha
as respostas para aquela situação, e
talvez fosse porque eu não estava
enxergando de maneira fria, distante e
impessoal. Qualquer erro meu agora
custaria aos meus amigos.
Encarei a ruiva, lhe
respondendo apenas com o olhar. Todos
eles estavam lá da última vez, quando
quase perdemos. Se meu pai não tivesse
intervindo, teria sido o fim do
Pandemônio. Quando Selina
compreendeu, seus olhos se arregalaram
em choque por alguns segundos. Ela
saltou do sofá e veio até mim.
— Você não pode fazer isso —
disse, realmente abalada. Continuei a
encarando em silêncio. Selina colocou
as mãos no meu rosto e olhou no fundo
dos meus olhos. — Não vale a pena,
Hades. Isso vai nos enfraquecer,
principalmente depois de McKinley ter
desestabilizado as empresas e roubar o
dinheiro e as drogas. — Ela fez uma
pausa, aflita. — Esse vai ser o nosso
fim.
— Eu vou arriscar — afirmei,
impassível. Selina piscou, incrédula,
antes de deixar suas mãos caírem de
volta para a lateral de seu corpo.
— Não podemos abandonar
Raven — Fiona falou.
Me distanciei, indo em direção
ao Wade.
Ele estava nas ruas de verdade.
Era ele quem negociava com nossos
traficantes e eu sabia quão longe ele iria
pelo Pandemônio. Afinal, Wade lidava
com a parte verdadeiramente violenta
dos negócios, então eu confiava nele
para ser sincero sobre os riscos.
— Você já encontrou alguma
pista sobre o local onde os Daggers se
escondem? — perguntei, tenso. Wade
negou com a cabeça. — Acha que temos
chance de rastreá-los essa noite?
— Não com os policiais e não
nessa tempestade — ele respondeu,
apático. Murmurei um palavrão,
passando as mãos pelo cabelo. — Mas
eu posso segui-los de volta depois que
entregarem a Raven.
— Nem pensar, é muito
arriscado — interrompeu Selina,
entrando no meu campo de visão. —
Você sabe que, seja lá onde for esse
lugar, vai estar cheio de mercenários.
Sim, estaria. Mas agora era
tudo ou nada.
Olhei para Wade. Eu precisava
saber se ele estava realmente disposto a
fazer aquilo, caso contrário, não iria
obrigá-lo.
— Eu faço — Wade garantiu,
me encarando com seriedade.
— Seja cauteloso e não se
exponha — ordenei, vendo-o assentir
em seguida. — Depois que descobrir o
local, saia de lá e envie as coordenadas
para o Callow. — Ele assentiu com a
cabeça antes de se virar e caminhar na
direção do elevador. Olhei para Alec do
outro lado do cômodo. — Ajude Wade a
se preparar. Vamos pegar Garrett Voich
essa noite.
Após vê-los sair, andei em
direção ao minibar, servindo-me de uma
dose de uísque. Muitas coisas estariam
em jogo naquela noite e cada passo
precisava ser calculado.
— Você enlouqueceu de vez?
— Selina veio até mim, me empurrando
o suficiente para quase fazer eu derrubar
o copo de minha mão. Ergui meu olhar
para ela. — Está apostando o pescoço
de Wade. Isso sem falar em quão furioso
Frederik vai ficar quando descobrir
sobre esse acordo maluco!
Estreitei meus olhos para ela.
Em poucos momentos eu a vira
tão aflita como estava agora. Mas ela
podia achar o que quisesse, eu sabia dos
riscos.
— Deixe essas preocupações
sob meu encargo, Selina. Certifique-se
de que tudo correrá como o planejado.
— Que planos? — Ela cuspiu
as palavras de maneira acusatória. —
Você não tem nenhum, Hades. Vai
arruinar a todos nós por causa de uma
maldita garçonete. Se Wade morrer,
nunca vou te perdoar.
— Selina — Fiona chamou, em
tom de represália, e se levantou do sofá.
Selina não lhe deu ouvidos, porém.
Não respondi. Apenas a assisti
girar sobre seus saltos altos, cruzar o
apartamento e entrar no elevador, sem
dizer mais nada. Dei um longo suspiro e,
em seguida, entornei o conteúdo em meu
copo de uma só vez. Então, comecei a
encher mais uma dose. Fui impedido por
Khalil, entretanto, que colocou a mão em
meu braço.
— Tem que estar sóbrio para
fazer Garrett pagar — falou, calmo
como de costume.
Suspirei, abaixando a garrafa e
deixando-a sobre a superfície preta do
minibar. Então, me virei e andei até às
janelas, tenso.
— Raven não é apenas uma
garçonete — eu disse.
— Eu sei — respondeu depois
de algum tempo, postando-se ao meu
lado. Franzi o cenho, olhando-o por
sobre o ombro.
— Sabe?
— Todos sabem — Fiona
disse, vindo até nós.
Engoli em seco, voltando a
olhar para a imensidão preta lá fora.
— Ela está nessa por minha
culpa.
— Hades…
— Não. É verdade. Quando
McKinley nos disse que sua enteada
havia fugido, meu pai se certificou de
que iria encontrá-la. Mandou homens
para procurar por todo o Texas, mas não
foi necessário. Ela veio até nós. Até
mim. — Ri nasalado com a ironia. —
Frederik queria resolver tudo rápido e
do jeito dele. Ia mandar um de seus
homens mantê-la em cativeiro,
torturando-a até ela dizer tudo o que
precisávamos para derrotar o cartel de
Dallas. Depois, provavelmente, a
mataria. Então, eu fiz um acordo com
ele. Prometi que conseguiria respostas
do meu jeito, mantendo-a por perto,
contanto que ele não intervisse. Agora,
meu pai acha que eu estou falhando e
que ele precisa resolver as coisas
pessoalmente.
Frederik não se importava com
as pessoas. Ele tomava o que queria
quando bem entendia e não dava a
mínima para as consequências. Ele não
era melhor do que Garrett ou Joel.
— Você está tentando protegê-
la — Khalil argumentou, após pensar
por longos segundos.
Balancei a cabeça, negando.
— Tem que contar a verdade,
ou ela vai odiá-lo — Fiona, que
permaneceu muito quieta durante aquele
tempo, falou.
Eu também pensei que sim,
quando a vi pela primeira vez e a
convenci a continuar com o emprego no
bar. Estava fazendo aquilo porque meu
método era bem melhor que o de
Frederik, e, além disso, Raven era
apenas uma garota. Uma pessoa inocente
que estava tentando muito fugir daquele
mundo. Mas eu havia finalmente
percebido que não estava salvando-a,
mas condenando-a dia após dia.
Enquanto estivesse perto do
Pandemônio, ela estaria vulnerável ao
Joel, Garrett e ao meu pai. Talvez até a
mim. E, provavelmente, agora era tarde
demais para mudar isso.
Ainda assim, eu permaneceria
tentando impedir que as consequências
dos meus erros a arruinassem.
Tentaria até não poder mais.

O galpão onde Garrett aceitou


se encontrar para fazer a troca ficava no
meio de uma estrada, fora da cidade. Ao
redor só havia o deserto e a tempestade.
Esperava que a chuva intensa o
impedisse de notar que estava sendo
seguido pela caminhonete de Wade, que
se camuflava bem à noite.
O interior do galpão não tinha
nada além de sucata. O que um dia fora
uma indústria têxtil se tornara restos de
maquinários e entulhos enferrujados por
todos os lados. A parte elétrica ainda
funcionava, o que era um milagre devido
às circunstâncias. As luzes brancas
iluminavam o lugar por inteiro, enquanto
meus olhos estavam fixos nos portões
abertos, revelando nada além do breu
profundo lá de fora.
Eu estava impaciente, de pé no
centro do galpão, flanqueado por Khalil
e Wade. Deveria ter levado pelo menos
alguns dos homens do meu pai, mas eles
provavelmente contariam a ele sobre a
troca, e então haveria mais um problema
ainda maior na minha lista.
Não estávamos preparados o
bastante, principalmente se fosse uma
armadilha.
Garrett não pareceu surpreso
quando eu liguei para aceitar a proposta,
o que indicava que ele sabia muito bem
o que estava fazendo.
Fiona fora ficar com Alina,
Libby e George. Khalil falou por
telefone com sua namorada durante parte
do nosso caminho até o galpão. Ela
estava aterrorizada. Provavelmente, era
a primeira vez que se dava conta de que
o Pandemônio não brincava de ser uma
gangue. Nós convivíamos com o perigo
diariamente.
Quando o clarão de faróis
invadiu minha visão, me empertiguei.
Wade logo desembainhou sua pistola,
ficando a postos. Um carro foi
estacionado de frente para a entrada do
galpão e logo as luzes apagaram.
Demorou alguns segundos até três
figuras entrarem no meu campo de
visão: Garrett, Slade e Hive.
Meu corpo estava rígido e
tenso, mas, no instante seguinte, queimou
em cólera.
Hive puxou Raven para fora do
carro e em direção ao interior do
galpão. Ela estava vendada com uma
faixa de tecido preto e suas roupas
estavam sujas e rasgadas. Logo associei
a mancha vermelha de sangue em sua
blusa branca ao corte em seu rosto. Fiz
menção de ir até lá, mas Khalil me
repreendeu baixinho. No menor dos
meus movimentos aquele lugar poderia
se tornar uma zona de tiros.
Eu não sabia até que ponto
Nicholas estava encenando, mas,
definitivamente, eu quis matá-lo quando
ele soltou Raven de maneira abrupta,
deixando-a cair de joelhos à minha
frente. Garrett veio caminhando logo
atrás, com um pequeno curativo branco
sobre o nariz — que parecia estar um
pouco torto em seu rosto. Não havia
tanta arrogância em sua expressão
facial, não como eu imaginava. Na
verdade, uma ruga de preocupação se
encontrava em sua testa.
— Presumo que você vá
cumprir com a sua parte do acordo —
falou, frio.
Franzi meu cenho, analisando-
o. Depois, alternei meu olhar para Hive,
que também estava tenso. Cerrei
levemente meus olhos em sua direção,
tentando ler sua mente.
— Tudo estará pronto até
amanhã — garanti, após engolir o nó que
havia se formado em minha garganta.
— Foi ótimo fazer negócios
com você — Garrett disse, deixando um
pouco de ironia invadir seu tom de voz.
Depois, olhou para Raven, que
permanecia imóvel e quieta, de joelhos
entre nós dois. — A gente se vê,
gatinha.
Ele se virou sobre os seus
tornozelos, marchando de volta para o
seu carro. Hive hesitou, permanecendo
mais alguns segundos enquanto me
encarava. Em seguida, fez menção de
seguir Garrett e Slade quando eu o
chamei:
— Hive. — Meu irmão me
olhou e eu o encarei intensamente por
alguns segundos, o bastante para ele
entender o recado implícito ali.
Ele engoliu em seco e não
respondeu, apenas se virou e sumiu na
escuridão lá de fora, entrando no carro.
Logo os faróis se acenderam e o barulho
do motor soou quando deu a partida no
carro.
— Wade — chamei, no mesmo
instante que Khalil foi até Raven e
começou a cortar as cordas que
amarravam seus braços atrás das
costas. — Siga-os.
Meu amigo fez menção de
obedecer, mas Raven se levantou num
solavanco, puxando para baixo a venda
que lhe cobria os olhos.
— Não! — Ela veio até mim.
Franzi o cenho, inspecionando seu rosto.
— Não precisa segui-los.
— Por quê? — perguntei,
inclinando a cabeça.
Ela respirou fundo, se
endireitando.
— Porque eu sei onde estão se
escondendo — respondeu,
simplesmente.
— Raven, você está bem? —
Khalil perguntou, verificando o corte em
seu rosto.
— Estou. Não se preocupe —
ela o tranquilizou, voltando a me fitar.
— Eu decorei o caminho que ele fez até
chegarmos aqui. Garrett me levou para o
mesmo lugar onde ele e seus homens
estão, pude ouvi-los de onde eu estava
presa. Não fica longe. Uns dez minutos,
talvez.
— Você estava vendada —
contrapus.
— Sim, mas contei o tempo e
as curvas que fizeram. Não pararam em
nenhum semáforo e estavam em baixa
velocidade por causa da tempestade.
Não pude evitar o pequeno
sorriso que surgiu no canto dos meus
lábios. Raven era uma garota muito
esperta e, pelo olhar em seu rosto, eu
poderia jurar que agora ela desejava se
vingar dos Daggers.
— Vou ligar para Callow —
Khalil informou antes de puxar o celular
do bolso e se distanciar.
Voltei meu escrutínio para o
rosto de Raven. Havia poeira em seus
fios pretos e sobre suas bochechas.
Percebi um hematoma levemente
esverdeado no topo de sua testa, perto
da linha dos cabelos.
— Eles te bateram? —
perguntei, não conseguindo me impedir
de me aproximar.
Se meu irmão a houvesse
tocado, eu finalmente esqueceria de
todos os motivos que me seguravam de
acabar com ele.
— Ah, não. — Raven balançou
a cabeça. — Isso foi quando eu dei uma
cabeçada em Garrett. Ele acabou me
cortando porque ficou bravo por eu ter
quebrado seu nariz.
Havia divertimento em sua voz,
o que me fez sorrir de novo. Eu podia
enxergar nitidamente aquela cena, e isso
me enchia de satisfação.
Pouco tempo depois, Khalil se
aproximou para dizer que os policiais
nos encontrariam lá. Então, entramos de
volta no carro, comigo atrás do volante
e Raven ao meu lado, guiando-me. Eu
dirigia devagar enquanto ela tinha os
olhos fechados, fazendo o caminho
inverso no mapa que ela tinha desenhado
em sua mente.
— Vire à esquerda e continue
na estrada por mais quatro minutos —
falou, com confiança em sua voz.
— Faz sentido que eles estejam
se escondendo fora da cidade — Khalil
comentou, olhando o deserto pela
janela.
Não demorou muito até eu
perceber para onde estávamos indo. Não
era um caminho familiar, mas eu
conhecia cada canto daquela cidade.
Minha cidade.
— Eles estão na Igreja de Santa
Clemência — eu disse. — Avise o
xerife, Khalil.
Apesar de estar sendo difícil de
enxergar lá fora, eu consegui me
localizar e desliguei os faróis do carro
enquanto seguíamos na direção da velha
capela de madeira, da época em que
Carmine ainda era um vilarejo do Velho
Oeste. As luzes dela estavam acesas,
pude ver de longe. Alguns carros
estavam estacionados ao redor também,
provando que Raven não estava errada
quando disse que aquele era o
esconderijo deles.
Parei no meio da estreita rua de
terra, ficando aliviado quando a chuva
diminuiu um pouco de intensidade.
Estreitei meus olhos, encarando através
do vidro do para-brisa. Eles estavam
todos lá dentro. Não tinha ideia de
quantos homens eram, mas com certeza
não eram poucos e estariam armados.
— Faz sentido ser uma igreja
— Raven falou, se inclinando para
encarar para a estrutura do lugar. — Eu
estava no porão. Parecia como um
abrigo para furacões.
Franzi o cenho.
— Isso significa que deve
haver uma entrada por fora — eu disse,
me empertigando sobre o assento de
couro do carro. — É por lá que vamos
entrar.
Seria um confronto ruim caso
invadíssemos pela entrada principal,
dando de cara com eles. Provavelmente,
se tornaria um massacre bem rápido.
Assim que vimos as viaturas
policiais se aproximarem
silenciosamente pelo retrovisor, Khalil e
Wade saltaram do carro. Olhei para
Raven, que fazia menção de sair
também.
— Você espera aqui dentro —
falei, atraindo seu olhar para mim.
— O quê?! Não. — Ela
balançou a cabeça, irredutível.
— Raven, aquela casa está
cheia de mercenários armados. Não vou
colocá-la em perigo novamente.
Ela me olhou com suas
fascinantes íris prateadas, parecendo
indignada. Naquele instante, quis lhe
contar toda a verdade. Assustá-la e
magoá-la, apenas para que ela se
distanciasse o mais longe que pudesse
de mim. Afinal, só assim nós dois
estaríamos seguros.
— Sou completamente capaz de
me defender — argumentou. — Eu vou
lá com ou sem sua permissão.
Suspirei, deixando minha
cabeça cair contra o encosto do banco.
A garota não facilitava em nada para
mim. Depois de um par de segundos,
percebi que não havia como impedir
Raven Clarke.
Ela era uma força da natureza.
Me inclinei em direção ao
porta-luvas, abrindo-o e tateando seu
interior. Quando encontrei a Glock19
9mm, a apanhei e estendi para Raven,
que não hesitou em pegá-la. Sua
confiança me confirmou o que eu já
havia especulado: ela tivera uma arma
em suas mãos antes.
— Você vai ser a minha morte,
amor.
Eles não vão me deixar em paz
Mas eu não vou me cansar de
atear fogo na cidade
Até que meus problemas
tenham problemas comigo
Eles pensam que ganharam
Mas está apenas começando
Bury Me Face Down -
Grandson
Eu havia crescido cercada por
armas. Por homens que só sabiam falar a
língua da violência e que não tinham
piedade alguma correndo em seu sangue.
Gostaria de pensar que havia
permanecido intocada em meio a isso.
Por um tempo aquele fingimento tinha
bastado. A farsa de que eu era diferente
deles, que era inocente, de alguma
forma. Isso era besteira. Aquele mundo
fodeu com a minha cabeça e eu me
tornei parte dele. A sede por violência,
por vingança, me dominou assim que
toquei na arma que Hades me estendeu.
Naquele instante, eu soube que
não era tão diferente daqueles bastardos.
Porque não haveria clemência para os
meus inimigos caso eles cruzassem meu
caminho naquela noite.
Se eu visse Garrett ou Joel ou
Connor, eu atiraria. E não sentiria
remorso depois.
Fui abraçada pela chuva
quando saltei do carro. Meus cabelos se
encharcaram rapidamente, mas minha
mão direita permaneceu firme ao redor
da arma. Sentia uma familiaridade
aterrorizante ao segurá-la, mas a
confiança de que eu saberia o que fazer
se precisasse disparar a Glock me
tranquilizou.
Meu dedo estava localizado a
milímetros do gatilho e meus olhos
vasculhavam a fachada da velha igreja
de madeira branca e encardida. Olhei
por sobre o ombro por um segundo,
percebendo Hades conversando com o
xerife e o Wade.
Encarei a motocicleta
estacionada sobre a terra, do lado
esquerdo. A reconheci instantaneamente
como aquela sobre a qual viajei por
quilômetros no deserto do Novo
México, abraçada às costas de um
estranho. Um estranho que meses depois
me sequestraria.
Senti um gosto amargo na boca
ao me recordar disso.
De repente, todo o silêncio
sepulcral que repousava sob a chuva me
pareceu esquisito. Aquela era uma igreja
repleta de mercenários e traficantes. Um
grupo que estava sendo caçado não
apenas por toda a força policial da
cidade, mas também pela gangue mais
poderosa da região. Mesmo com a
tempestade — e talvez principalmente
por causa dela — eles deveriam estar
completamente alertas.
Dei um passo adiante, ouvindo
um estalar sob o solado do meu coturno.
Fitei o chão, afastando a bota e vendo
um pedaço de osso arranhado e roído.
Estreitei meus olhos de maneira
desconfiada e confusa. Assim que me
dei conta, entretanto, não houve tempo
de avisar a ninguém. Uma sombra preta
apareceu no meio da chuva, correndo de
furiosamente em minha direção ao
mesmo tempo em que rosnava e latia,
feroz.
Dodger, o cão de Nick.
— Mas que porra… — Hades
xingou, após assustar-se com a aparição
repentina do bicho.
— Não se mexam — adverti,
encarando o olhar ameaçador do
rottweiler. Ele mostrava os dentes,
presas afiadas demais para um animal
doméstico.
Ele fora treinado muito bem
como um cão de guarda. Isso ficou
evidente quando ele saltou sobre o capô
do carro ao meu lado, fazendo o alarme
disparar rapidamente, uma sirene alta
que poderia ser ouvida em qualquer
canto do deserto que nos cercava. No
segundo seguinte, a porta da igreja foi
aberta num solavanco e os tiros
começaram a cortar o ar.
Me abaixei instintivamente
contra a lateral do carro no mesmo
instante em que Hades apareceu ao meu
lado, tão veloz quanto era humanamente
possível. Ele agachou-se sobre mim,
protegendo-me com seu corpo.
Os policiais começaram a
revidar com os tiros, apoiados por Wade
e Khalil, tornando aquele lugar uma zona
de guerra.
— Quando eu contar até três,
você entra no carro e sai daqui —
Hades falou, de maneira preocupada.
Levantei a cabeça para encará-lo.
— Não.
Pela sua expressão, minha
resposta não o surpreendeu.
— Eu vou entrar, preciso pegar
de volta o dinheiro que eles roubaram
do meu pai antes que fujam com ele.
Balancei a cabeça.
— Não seja idiota, eles não
estão escondendo o dinheiro aí —
argumentei, aflita com a possibilidade
de Hades entrar sozinho num lugar cheio
de mercenários.
— Preciso arriscar. — O
desgraçado estava irredutível.
— Eu vou com você então.
No segundo seguinte, um tiro
acertou a lataria do carro, bem acima da
minha cabeça. Praguejei, me afastando
enquanto permanecia abaixada.
— Raven — Hades grunhiu.
O fuzilei com o olhar mais
indignado que podia.
— Estamos juntos nessa —
falei, colocando uma mão sobre seu
rosto.
Eu não o deixaria fazer aquela
burrada sozinho. Garrett não hesitaria
antes de colocar uma bala na cabeça de
Hades. E ele podia estar disposto a
arriscar seu próprio pescoço, mas eu
não estava.
Suas feições não se suavizaram
sob meu toque, entretanto. Ele me fitou
em silêncio, ponderando por longos
segundos.
— Tome cuidado e atire antes
deles.
Acenei uma vez com a cabeça,
tendo certeza de que eu não hesitaria, da
mesma forma como não hesitara da
última vez em que disparei uma arma.
Hades me olhou por mais um
par de segundos antes de se levantar por
um breve instante, pedindo a Khalil para
nos cobrir enquanto corríamos em
direção aos fundos da igreja. Assim que
ele nos gritou um "agora" de maneira
urgente, a mão de Hades se entrelaçou
na minha e começamos a correr. Ele era
rápido e liderava o caminho, me
puxando atrás de si. Senti alguns tiros
alvejarem o chão próximo aos meus pés
durante o percurso.
Nos agachamos contra a parede
de madeira da lateral da igreja, de onde
eu não podia mais ver os atiradores,
quando a alcançamos.
Meu peito subia e descia
ofegante, permaneci sentada sobre meus
tornozelos por mais alguns instantes.
Hades, por sua vez, se distanciou, indo
até a porta dos fundos, próxima a uma
árvore. Era a nossa entrada pelo abrigo
contra tornados. Afastei os fios de
cabelo que grudavam no meu rosto com
a chuva antes de levantar e segui-lo.
Assim que me aproximei,
Hades quebrou o cadeado e abriu a
porta de madeira, começando a descer
os degraus para o subsolo. O lugar
estava escuro, mas fiquei grata por
surgir um teto entre mim e a chuva. A
adrenalina me impedia de sentir o frio
congelante que seria causado por todas
as minhas roupas encharcadas.
Hades chutou algumas caixas
de papelão empilhadas do caminho,
então adentramos à sala suja e mal
iluminada que chamei de cativeiro por
poucas, porém torturantes, horas. Olhei
para o canto escuro do outro lado do
porão, na escada que levava para a
igreja sobre nós.
A movimentação apressada de
Hades chamou minha atenção
instantaneamente. Ele vasculhava como
louco as caixas e prateleiras,
arremessando-as furiosamente na parede
quando não encontrava nada.
Ele havia confessado a mim
que seu pai estava me usando para
chantageá-lo e eu observei com o
coração apertado enquanto ele, possuído
pelo desespero, procurava o que seu pai
queria.
Hades se importava, no fim das
contas. Pensar nisso me levantou outra
questão:
— O que Garrett exigiu para
me libertar?
— Quer mesmo falar sobre isso
agora? — rebateu, ajoelhado no chão
enquanto procurava sob uma tábua solta
no assoalho.
— Qual foi a troca, Hades? —
insisti, com mais do que mera
curiosidade.
Ele bufou, levantando a cabeça
para me olhar. Os fios pretos do seu
cabelo estavam em sua testa, caindo
úmidos sobre seus olhos. Nunca antes
ele parecera tão nervoso e à beira do
limite.
— Era você pelo bar do
Pandemônio.
— O quê?! — exclamei, quase
gritando.
Hades se levantou e atravessou
o porão, indo até uma pilha embaixo da
escada. Puxou algumas caixas de lá,
abrindo-as com seu canivete. Fui atrás
dele. Ele fechou os olhos, aliviado,
quando percebeu que era o carregamento
de drogas que os Daggers haviam
roubado dele. Ainda tinha uma parte ali
que não fora vendida por Seven.
— Não deveria ter feito essa
troca idiota — o recriminei, atraindo
novamente seu olhar sombrio sobre
mim. — Aquele bar é a sua vida.
— Não, não é. — Havia
certeza em sua voz e uma intensidade
nova em seus olhos enquanto ele me
fitava de maneira implacável. — Não é
nada comparado a…
Estreitei os olhos esperando,
ansiando, que ele completasse a frase.
Isso não ocorreu, entretanto. Pisquei,
frustrada e atordoada. Tiros soaram
novamente, mais altos e mais próximos,
me despertando.
— Vou subir, preciso garantir
que Garrett não escape. Fique aqui e
atire em qualquer um que aparecer.
Hades se virou, fazendo
menção de seguir na direção das
escadas. Dei um passo adiante.
— Não, eu…
— Por favor, Raven. — Ele me
olhou, tão agitado, completamente
desesperado que não consegui reagir. —
Faça o que eu peço só dessa vez, amor.
Acenei uma vez com a cabeça,
incapaz de responder em voz alta. Então,
ele subiu os degraus rapidamente até o
interior da igreja, fechando a porta atrás
de si.
Soltei o ar que eu não notei que
estava prendendo, atordoada como se
um furacão tivesse acabado de me
atropelar. Respirei fundo, controlando
meus batimentos cardíacos e afastando o
cabelo do rosto.
Não pude evitar me preocupar
enquanto os tiros soavam acima de mim.
Meus amigos estavam lá, no meio do
fogo cruzado. Hades estava lá.
Arriscando levar um tiro após me deixar
tão tragicamente confusa e arrebatada.
Tudo aquilo que eu tentei trancar num
baú, no lugar mais profundo e vazio
dentro de mim, parecia ter voltado à
vida.
Demorou alguns minutos para
os barulhos cessarem. E eu não sabia até
então que podia ter mais medo do
silêncio do que dos sons de tiros. A
arma estava empunhada em minhas
mãos, a mira apontada para a porta de
madeira no topo das escadas. Esperei e
esperei até não poder mais. Então,
dominada por um impulso muito mais
forte do que eu, galguei os degraus
escada acima, abrindo a porta em
seguida. Saí na lateral de um
confessionário, tendo primeiramente a
visão do altar, completamente arruinado.
Tudo ao redor era uma bagunça.
Os vitrais coloridos estavam
quebrados, restando apenas cacos de
vidro sobre o chão. A arma permanecia
firme em minhas mãos enquanto eu
explorava o local cautelosamente.
Respirei aliviada quando vi as naves
repletas por homens fardados. Havia
dois Daggers algemados sobre o chão,
sentados sobre os assentos de madeira, e
um morto, alvejado por tiros. Eu não
conhecia nenhum deles, mas os dois me
encararam como se estivessem me
amaldiçoando. Abaixei a arma,
caminhando pelo corredor central da
nave, entre os dois blocos de bancos sob
grandes abóbadas.
Corri para fora, procurando por
rostos conhecidos e trombei com Khalil
na saída, sobre os poucos e largos
degraus diante da porta da igreja.
— Ei, você está bem? —
perguntou, me inspecionando para se
certificar de que ainda possuía todos os
meus membros. Apenas assenti com a
cabeça, olhando lá pra fora.
Alguns policiais colocavam os
poucos Daggers que foram pegos dentro
das viaturas. A motocicleta de Nick,
bem como os carros deles, haviam
sumido. Provavelmente, os malditos
conseguiram fugir. Suspirei frustrada,
rapidamente encontrando a figura de
Hades correndo para o Camaro preto
estacionado nos cascalhos.
— Vou atrás dele — avisou,
entrando no veículo.
— Hades, espera — gritei de
volta, mas de nada adiantou.
Rapidamente, ele deu ré e voltou para a
estrada, tentando perseguir Garrett.
Bufei, jogando as mãos para o
ar. Antes que pudesse pensar, entretanto,
voltei para dentro da capela. Parei
diante de um Dagger ruivo com uma
cicatriz que lhe cruzava o rosto. O rapaz
estava sentado no chão, com uma algema
unindo-lhe os pulsos.
— Para onde Garrett foi? —
perguntei, olhando-o ameaçadoramente.
Ele ergueu os olhos escuros para mim,
levantando uma sobrancelha em deboche
antes de gargalhar.
— Acha que você me intimida,
boneca? Eu ouvi todas as histórias sobre
como você era a vadia preferida de
Connor Kamps.
Engoli em seco, sentindo meu
peito apertar e minhas veias serem
injetadas com pura cólera. Vi de soslaio
Khalil se aproximar, chamando meu
nome de maneira cautelosa. Apenas o
ignorei, levantando minha arma, o cano
apontado diretamente para a testa
daquele Dagger.
— Me diga para onde ele foi ou
eu juro por Deus que vou decorar as
paredes dessa igreja com o seu sangue
— gritei, com o dedo no gatilho.
Seus olhos tremeram e eu sorri
internamente, pressionando levemente
meu indicador no gatilho. Foi o bastante
para ele cobrir seu rosto com as mãos,
aterrorizado.
— Por favor… — ele pediu,
implorando por misericórdia.
Não havia mais sarcasmo em
sua voz. A soberba e as ofensas
misóginas haviam sumido.
— Raven — Khalil colocou a
mão sobre meu pulso. — Eles não
sabem de nada. Garrett e Joel garantiram
que seus lacaios soubessem apenas o
necessário. Eles são peões
descartáveis.
Bufei, me sentindo frustrada
pela décima vez naquela noite. Abaixei
a arma rápido e me afastei, indo
novamente em direção à saída. Khalil
parou ao meu lado, sob o arco das
grandes portas abertas. Fitei a chuva que
se derramava furiosamente na cidade ao
redor.
— Eles vão tomar o bar e não
podemos fazer nada — Khalil lamentou.
— Podem impedi-los — rebati,
virando-me em sua direção. — Por que
diabos respeitar um acordo se estamos
em guerra?
— Porque ele reivindicou uma
das duas coisas. Então, se não puder ter
o bar, irá atrás de você. E não haverá
troca alguma que poderá detê-lo.
Engoli em seco, aterrorizada
com aquela possibilidade.
— Eles estavam escondendo
aqui as drogas que roubaram do
Pandemônio. Estão no porão. — Mudei
de assunto.
Khalil deu um sorriso fraco,
tentando ser otimista.
— Ótimo, já é um começo —
falou, descendo os degraus de volta para
a chuva. — Vem, vou te levar até os
dormitórios.
Não era para lá que eu
realmente queria ir. Desejava ir para o
apartamento de Hades, junto com os
outros membros da gangue, para
podermos passar a madrugada tentando
achar uma saída para aquela situação.
Mas não lutei por isso. Me convenci de
que era melhor assim, então segui Khalil
para dentro da caminhonete de Wade.
Coloquei a arma na parte de
trás do cós da minha calça. Não estava
disposta a abdicar dela também,
principalmente com a ameaça dos
Daggers voltarem por mim. Me
acomodei no assento do carona, tomada
inevitavelmente pelo cansaço daquela
longa noite.
Olhei por um instante o terreno
através da janela, vendo Wade e os
policiais prendendo alguns dos Daggers,
guiando-os para as viaturas.
Suspirei.
— Hades vai ficar bem? —
perguntei, sem conseguir evitar, quando
Khalil começou a manobrar o carro para
nos tirar dali.
Ele suspirou, também
preocupado.
— Provavelmente, não —
respondeu, me fazendo notar como
aquilo doía nele. — Mas, se serve de
consolo, não sei se algum dia ele já
esteve realmente bem.
Desviei o olhar para o breu
chuvoso do outro lado da janela,
percebendo que não havia motivo algum
para aquilo me fazer sentir melhor.
Sangue jovem, o céu precisa de
um pecador
Você não pode trazer o inferno
com um santo
Sangue jovem, veio para
começar um tumulto
Alguém tem que trazer um
pouco do inferno
Raise Hell - Dorothy
Empreguei mais força no golpe
que desferi no saco vermelho pendurado
no teto da Electric. Meus braços
estavam em chamas, mas eu estava
determinada. Meus olhos estavam fixos
e focados no alvo. A posição do meu
corpo era perfeita, completamente
alinhada. Os joelhos estavam levemente
dobrados, afastados na medida certa.
Não me importava com o suor
escorrendo por minhas têmporas ou pela
maneira como meus músculos gritavam,
implorando por algum descanso. Eu
estava ali há cinco horas e não pretendia
parar.
Afinal, não havia mais onde eu
pudesse ocupar minhas noites, já que os
Daggers estavam no controle do bar
onde eu costumava trabalhar e não havia
nada que pudéssemos fazer a respeito.
Há dois dias tivemos que
limpar o Pandemônio dos nossos
pertences e entregar sua chave nas mãos
do asqueroso Garrett Voich. Ele estava
lá, com toda a sua arrogância, mesmo
após ter perdido cinco dos seus homens
e o seu esconderijo na velha capela.
Ele não precisava mais se
esconder agora. Garrett tinha vencido.
Embora tivéssemos recuperado parte
das drogas, eles ainda tinham nosso
dinheiro. E agora, com o domínio sobre
o bar, era apenas questão de tempo para
que adquirisse a influência que
precisava para acabar com o
Pandemônio. E eu odiava isso.
Estava tentando me convencer
de que aquela havia sido apenas uma
batalha ganha pelos Daggers. A guerra
ainda não tinha acabado. Eu iria me
certificar de que, no final, eu estivesse
do lado vencedor. E este nunca seria o
lado de Joel McKinley.
Eu ignorava a maneira como
Zora, que segurava o saco de pancadas,
me olhava, analisando-me, chocada.
Não podia culpá-la, já que eu parecia
estar possuída por algum tipo de espírito
violento. Talvez fosse isso mesmo,
porque tudo o que eu sentia era cólera.
Estava com raiva por ter sido pega por
Nick, em primeiro lugar, e por não ter
conseguido fugir depois. Estava com
muita raiva por Garrett ter escapado
quando invadimos seu quartel-general. E
estava irada por não podermos fazer
nada para recuperar o bar, visto que a
quebra do acordo me colocava como um
alvo.
Eu odiava servir como uma
moeda de troca.
Queria garantir que nada me
parasse da próxima vez. Queria me
certificar de que poderia me proteger e,
mais do que isso, partir para o ataque,
caso fosse necessário.
Estava chocada também com a
descoberta de que Hades abdicara de
seu bar por mim. Quando o confrontei
sobre isso na capela, ele não pareceu
tão afetado por perder aquele lugar.
Seus olhos não transmitiram, naquele
momento, tanta emoção quando
comparados a como estavam no instante
em que Garrett me libertara. Hades
pareceu muito mais perturbado no
galpão e isso não passou despercebido
por mim quando tirei a venda e o
encontrei ali, me inspecionando para se
certificar de que eu não estava ferida.
— Chega, está na hora de uma
pausa — Zora informou, soltando o saco
e se distanciando, caminhando até um
banco de madeira perto da parede, onde
estavam nossas coisas.
Parei, respirando ofegante, e
me virei para observar minha
treinadora. Ela parecia cansada também
e eu não a culpava. Havíamos treinado
por cinco horas seguidas durante dois
dias consecutivos, mas era a única
maneira. Eu precisava estar preparada
para que, da próxima vez que tentassem,
eles não conseguissem me pegar.
Deveria estar pronta para enfrentar
Connor Kamps, que estava sumido
desde a corrida, mas que eu sabia que
estava planejando algo.
Inspirei profundamente,
tentando acalmar meus batimentos
cardíacos. Por fim, me dei por vencida e
arrastei meus pés em direção ao banco,
deixando-me cair debilmente sobre o
assento. Tirei as luvas, colocando-as ao
meu lado, e comecei a puxar a bandagem
que envolvia minhas mãos. Quando elas
estavam livres, inspecionei a pele
avermelhada nas juntas dos meus dedos,
alongando-os em seguida.
— Vai acabar desmaiando de
exaustão se continuar assim — Zora
murmurou, sentando-se ao meu lado.
Então, sem avisar, puxou um
dos meus braços para seu colo. Grunhi
com a dor do movimento brusco,
lamentando enquanto fitava os
hematomas roxo-esverdeados
estampando a pele pálida dos meus
antebraços. Havia muitos deles. A
maioria fora causada no dia em que fui
amarrada de maneira bruta e me debati
feito louca para tentar me soltar. Os dias
intensos de treinamento estavam apenas
agravando os machucados.
Zora tinha mãos ásperas e
calejadas, mas inesperadamente
delicadas. Seus movimentos eram
suaves e certeiros enquanto ela passava
a pomada para dor muscular,
massageando meus braços. O cheiro
mentolado do remédio fazia meu nariz
coçar, mas o alívio foi quase
instantâneo.
— Aqueles homens parecem
ser invencíveis. Garrett, Connor, Joel…
Eles nunca param, nunca se cansam. Não
posso derrotá-los se continuar assim tão
fraca — falei, desviando o olhar para o
outro lado da academia, capturando a
presença de Stephen.
Uma sensação esquisita me
acometeu. Não era tristeza ou mágoa. Na
verdade, meu relacionamento com
Stephen agora parecia pertencer a uma
realidade paralela, muito distante. Não
me enxergava mais naquela menina que
o amou. Eu me sentia outra pessoa
agora, só não sabia se isso era um bom
sinal.
— Ninguém é invencível,
garota. Todo mundo é fraco, porque todo
mundo é ser humano e isso nos torna
vulneráveis. Mas você não é frágil como
a maioria. Está fortalecendo seu corpo,
transformando-o numa arma. Tem a
determinação necessária, só precisa da
paciência para isso.
Dei um longo suspiro, deixando
minha cabeça tombar contra a parede.
— Esse é o problema. Nunca
fui uma pessoa paciente.
— Mas vai aprender a ser. Vou
me certificar disso.
Zora percebeu que, de repente,
meus movimentos não eram mais apenas
de defesa. Eu queria revidar. Agora,
estava ansiando por um confronto direto
com Garrett ou Kamps. Não conseguia
mais ver os dias se passarem e o
Pandemônio continuar nas mãos
daqueles cretinos. Não podíamos mais
esperar.
— Eu não queria vingança
antes. Achava que nunca poderia
revidar. Mas agora, sinto que esse é meu
único propósito — eu disse, pensando
sobre tudo o que havia acontecido nas
últimas semanas. — Estou tão cansada
de fugir, de ser um alvo fácil. Os
Daggers me pegaram e me trocaram
como se eu fosse um objeto, uma
mercadoria.
— Você não tem que provar
nada a ninguém, Raven. Contanto que
saiba quem você é, não precisa de mais
nada.
Virei o rosto para fitá-la. Os
olhos grandes e castanhos me olhavam
de maneira terna. De alguma forma,
aquilo me tranquilizou.
— Quem você acha que eu sou?
Zora, o que você vê quando olha pra
mim?
Ela ponderou por alguns
segundos antes de responder:
— Alguém que está perdida. —
Ela fez uma pausa e eu franzi o cenho.
— Mas que está se encontrando.
Era como me sentia. Como se
houvesse encontrado, depois de muito
tempo, um propósito.
Uma hora depois, sentindo
muita dor na coluna e nos braços. A
fadiga muscular iria me matar pelo resto
do dia.
Juntei as minhas coisas e me
despedi de Zora, caminhando até a saída
da Electric em seguida. Tudo o que eu
queria era tomar um banho quente e cair
na cama. Mesmo sendo apenas sete
horas da noite, eu sentia que poderia
dormir imediatamente caso encontrasse
qualquer superfície plana e horizontal.
Antes que eu passasse pelas portas
abertas da academia, contudo, meu nome
foi chamado por uma voz conhecida,
familiar demais.
Suspirei, tentada a continuar
andando, mas, por fim, parei e me virei,
esperando que Stephen me alcançasse.
Ele me olhou com íris
brilhantes, havia certa admiração
quando me mediu lentamente, dos pés à
cabeça. Levantei uma sobrancelha,
esperando que dissesse logo o que
queria.
— Você está diferente. —
Stephen parecia sem palavras.
Eu me sentia diferente. Mais
forte e determinada, talvez.
— Diga logo o que quer,
Stephen.
— Quer tomar um café amanhã
ou algo assim? — O loiro colocou as
mãos nos bolsos da calça de moletom
azul-marinho que usava.
— Na verdade, não quero, não.
As sobrancelhas douradas do
rapaz quase bateram no teto, mesmo ele
tentando disfarçar a surpresa e o choque.
Me perguntei se ele acreditava
realmente que podia me usar feito um
ioiô. Chutar para longe quando não
queria mais e depois puxar de volta
quando bem desejasse.
— É verdade o que estão
dizendo agora? Sobre você ser da
gangue de Hades Wrath?
Dei de ombros.
— Acho que isso não é da
conta de ninguém.
Eu não queria ter mais nenhum
tipo de vínculo com Stephen. Talvez —
ou principalmente — porque ele
representava uma conexão com meu
passado. Eu não queria aquilo. Não
queria mais ser aquela garota iludida.
Stephen franziu a testa e seus
ombros caíram, parecendo um pouco
decepcionado.
— Pensei que quisesse
distância desse mundo, Raven.
Estalei a língua, balançando a
cabeça.
— E eu pensei que amava você.
Acho que ambos nos enganamos, então.
Em seguida, girei sobre os
tornozelos, caminhando aliviada para
fora da academia. Quando o ar noturno
da rua me abraçou, era como se um peso
enorme tivesse sido tirado das minhas
costas. Senti que a última linha que me
ligava ao passado fora rompida.
Finalmente, eu podia seguir em
frente.

Já passava das oito da noite


quando, após tomar banho, recebi uma
mensagem de um número desconhecido,
pedindo para me encontrar num bar
chamado Scorpion em quinze minutos.
Com uma única exigência: que eu fosse
sozinha. Pensei em não aceitar; afinal,
Carmine se tornara extremamente
perigosa para mim. Mas a última frase
da mensagem fez meus olhos brilharem.
Há uma forma de colocar um
fim nessa guerra, venha se quiser
descobrir.
Movida pela minha
impulsividade, prendi na cintura a arma
dada a mim por Hades e chamei um táxi
para me levar até o outro lado da
cidade. Eu não tinha um plano, e
duvidava muito que fosse gostar de ver a
pessoa que estava me esperando. Talvez
fosse mais um dos meus atos estúpidos,
mas, se existia qualquer chance de
recuperar o bar de Hades, eu precisava
tentar.
Aquele bar ficava em Foxgriss,
uma área perigosa e pouco habitada de
Carmine, onde nunca pisei. Sabia que
era por ali que os Daggers costumavam
se esconder alguns anos atrás. Aquelas
ruas desérticas com construções escuras
de madeira eram, por si só,
intimidadoras. Mas nada se comparava à
aparência do bar à minha frente. Ele
poderia facilmente ter saído de um filme
de faroeste, diante do qual ocorriam
duelos sangrentos.
Sem dúvidas parecia um lugar
assombrado, e todas as enormes e
metálicas motocicletas estacionadas na
calçada não poderiam ser um bom sinal.
Afinal, pelo o que eu sabia, os Daggers
eram o motoclub da região.
Assim que entrei no bar,
coloquei as mãos nos bolsos da jaqueta
de couro, endireitando minha postura. O
lugar estava cheio de homens e eles não
pareciam nada amigáveis. Atraí o olhar
de todos eles logo que passei pela porta,
esquadrinhando o salão com meus
olhos.
O cheiro de cerveja barata e
cigarros era ainda mais desagradável do
que o que costumava assolar o bar do
Pandemônio. A visibilidade no Scorpion
era péssima, o ambiente era muito
escuro, com o chão e as paredes pretas.
As únicas luzes eram provenientes do
letreiro neon atrás do balcão e das
esparsas lâmpadas fracas sobre minha
cabeça.
Quem quer que fosse, estava se
certificando de estar em um lugar
público, o que poderia indicar que não
tentaria nada contra mim. Por outro lado,
talvez tivesse me atraído para a cova de
leões, onde ninguém se importaria de
testemunhar alguns crimes contra a
forasteira intrometida. Entretanto, caso
ambas as hipóteses se confirmassem, eu
estava preparada — ao menos era o que
eu esperava.
Um homem grande e com mais
tatuagens do que eu pensei ser possível
se mexeu à minha direita, de modo que
eu instintivamente levei a mão à
protuberância na lateral do meu quadril.
Eu não hesitaria em me defender contra
o menor dos movimentos ameaçadores.
— Raven.
Fechei os olhos, praguejando
internamente ao ouvir aquela familiar
voz soando do outro lado do bar.
Respirei fundo antes de encarar Connor
Kamps, uma figura alta e forte próxima
ao tabuleiro de dardos pendurado na
parede de madeira, no qual algumas
pessoas treinavam a pontaria.
Caminhei até ele, de certa
maneira aliviada por poder desviar
minha atenção de todos os homens
estranhos ao meu redor.
— Parece que você está de
volta na cidade, infelizmente —
observei, medindo-o dos pés à cabeça.
Os cachos castanhos caíam levemente
sobre seu rosto frio. — Seus amigos
Daggers devem estar muito
decepcionados com a sua postura
negligente.
Ele sorriu nasalado, inclinando
a cabeça para me analisar.
— Sou leal a Joel McKinley,
apenas.
Cruzei os braços, levantando
uma sobrancelha.
— Não é isso o que a tatuagem
em seu antebraço diz, não é? Parece que
os Daggers têm problema com lealdade.
Por isso vocês são fra…
— Foda-se a tatuagem — ele
me interrompeu, repentinamente. —
Foda-se os Daggers.
Talvez Garrett já estivesse
desconfiando dos homens de Dallas;
afinal, ele pareceu enciumado quando eu
toquei naquele assunto noutro dia.
Provavelmente, era por causa das
atitudes de Connor, que, apesar de
também ser um Dagger, se importava
muito mais em ser a mão direita da
máfia do Texas. Aquilo comprovava
minhas suspeitas. A aliança entre
aqueles dois grupos era muito, muito
frágil, e talvez fosse o alvo ideal a ser
mirado se quiséssemos acabar com
ambos.
— Por que você me chamou
aqui, Kamps?
Ele hesitou por alguns
segundos, parecendo estar em conflito.
Mas, por fim, acenou com a cabeça na
direção de uma mesa vazia nos fundos
do bar. O segui até lá e nos sentamos de
frente um para o outro. Cruzei minhas
mãos sobre a superfície de madeira,
ainda esperando pela resposta à minha
pergunta.
— Vocês perderam, Raven. E
nem precisaram de mim pra isso.
Engoli em seco, começando a
me irritar.
— Veio aqui apenas para se
gabar? Porque talvez seja algo bem tolo
a se fazer, já que a guerra mal começou.
Connor balançou a cabeça.
— Vim oferecer um bote para
você saltar antes que esse navio afunde
e te leve junto.
Não pude evitar rir, incrédula.
— Está falando sério? —
Connor não tinha nenhum traço de humor
ou ironia em seu rosto. — Só pode estar
brincando comigo.
— Eu sempre te protegi, Raven.
Por que seria diferente agora?
Me lembrei instantaneamente
de quando Hades questionara sobre a
possibilidade de Connor ser meu pai.
Esquadrinhei seu rosto em
busca de qualquer traço semelhante ao
meu. Não havia nada, porém. Seus
cabelos eram de um castanho dourado,
cheio de cachos. Sua pele branca tinha
um tom de fundo puxado para a cor de
oliva e seus olhos eram de um verde
desbotado.
Não éramos nem um pouco
parecidos e, ainda assim, aquela
possibilidade me amedrontou.
Engoli em seco.
— Eu não preciso ser
protegida, muito menos por alguém
como você.
Kamps levantou as
sobrancelhas, provavelmente surpreso.
— Alguém como eu?
— Você é tão ruim quanto Joel
e não finja que me quer do seu lado para
me manter segura. Você quer me usar.
Quer que eu seja sua vantagem contra
Hades.
Ele se recostou contra a cadeira
de madeira, parecendo levemente
irritado.
— Acha que ele não quer a
mesma coisa de você? Acha mesmo
isso, Raven? Porque, se a resposta for
sim, você não é tão esperta quanto eu
pensava.
Bati a mão contra a mesa,
surpreendendo a mim mesma e,
novamente, chamando a atenção dos
homens que nos cercavam.
— Eles são meus amigos! —
rebati, elevando ao tom de voz. — E são
muito melhores do que você.
Foi sua vez de rir, alto e com
arrogância o suficiente para me tirar do
sério.
— Eu não teria tanta certeza.
Aposto que você não os conhece muito
bem, não é? Por qual outro motivo eles
iriam querer você, uma forasteira
rebelde, impulsiva e desesperada, no
grupo? Vai negar que eles descobriram
por você muita coisa sobre a máfia de
Dallas?
Engoli em seco.
Parte de mim temia aquilo.
Todos sabiam que eu poderia ser a carta
na manga de qualquer um que quisesse
destruir Joel McKinley. E, desde que ele
era a maior ameaça aos Wrath, fazia
sentido que tentassem me usar. Mas
Frederik não demonstrara interesse na
minha pessoa, e ninguém além de Hades
e Nick, até pouco tempo atrás, sabia
sobre meu passado.
Além disso, eu confiava no
Pandemônio. Não existia a menor
chance de acreditar que eles fariam
aquilo comigo. Que Hades faria aquilo
comigo.
— Hades Wrath vai acabar
causando a sua morte, Raven —
continuou ele, me fazendo suspirar
cansada. — Você não precisaria voltar
para Dallas. Não precisaria ser uma
refém de Joel.
Balancei a cabeça.
— Que porra você está
falando?
— Depois que acabar com o
Pandemônio, vou me livrar dos Daggers,
o que é bem mais do que o seu
namorado teve coragem de fazer. Então,
vou construir um império nessa cidade.
E você pode me ajudar. Joel ficará com
Dallas, mas Carmine será minha. Ela
poderia ser sua também.
Me debrucei sobre a mesa,
surpresa e um tanto incrédula com a
proposta. Connor sempre quis ter seu
próprio reino. Não era novidade alguma
que ele era mais inteligente e estratégico
que Joel.
Talvez eu pudesse me
aproveitar disso.
Mordi o interior da bochecha,
pensando. Após alguns segundos, estalei
a língua e, olhando fixamente em suas
íris escuras, perguntei:
— O quão disposto você está a
me ter em seu time?
Ele levantou uma sobrancelha,
um pouco esperançoso. Não contive o
sorriso que apareceu em meu rosto com
sua resposta.
— O bastante.
— É? — Estreitei meus olhos
em sua direção. — O suficiente para
uma aposta?
Connor se empertigou.
— O que você tem em mente?
— Pôquer — falei,
simplesmente, antes de dar se ombros.
— Nada além do bom e velho Texas
Hold'em.
— E o que vamos apostar? —
Kamps inclinou a cabeça, meio
desconfiado.
— Você ganha e eu mudo de
lado. Eu ganho e você convence Garrett
a devolver o Pandemônio.
— Acha que pode ganhar de
mim? — Não respondi. Havia
determinação o suficiente em meu olhar
para que ele soubesse. — Quer um jogo
limpo e honesto?
Eu mal podia acreditar que ele
realmente aceitaria aquilo.
— Não, Kamps. Pode jogar
sujo. Eu dou conta. — Fiz menção de me
levantar, mas, antes, algo passou pela
minha mente. — Por que eu? Havia
dezenas de garotas presas em Dallas.
Por que você me protegia?
Eu notei a mudança em sua
postura quando a pergunta atingiu seus
ouvidos. Aquilo o acertou em cheio.
— Eu… — Kamps suspirou,
hesitando em responder.
Me empertiguei, sentindo-me
nervosa. Minha garganta secou e senti
minhas mãos suarem.
— Connor, você não é o meu
pai, é?
Ele ficou surpreso com a
pergunta. Levantou as sobrancelhas
espessas e me olhou com espanto.
— Não, eu… não.
Respirei aliviada com sua
resposta.
— Então por quê?
— Prometi ao seu pai que
cuidaria de você.
Como ele podia ter conhecido
meu pai?
— Ele era fuzileiro naval.
Ele balançou a cabeça.
— Isso foi o que sua mãe lhe
contou. A verdade é que ele não passava
de um dos traficantes que trabalhavam
para McKinley. O submundo sempre
esteve no seu sangue, Raven. Você não é
melhor do que nós, no fim das contas.
Mordi meu lábio inferior,
digerindo a mentira da minha mãe.
— Sim, eu sou — contrariei,
embora não estivesse muito certa
daquilo. — Entrarei em contato.
Fiz menção de me virar para
sair logo daquele lugar perturbador.
Antes, porém, a voz de Kamps soou num
sussurro admirado.
— Você cresceu.
O olhei uma última vez, não
podendo negar a satisfação que senti ao
ver que ele me olhava com certo
respeito.
Dei de ombros e disse:
— É isso o que o submundo
faz.
Você precisava de mim
Oh, você precisava de mim
Para sentir um pouco mais e dar um
pouco menos
Sei que você odeia confessar
Mas meu bem, oh, você precisava de
mim
Needed Me - Rihanna
O apartamento de Fiona era mais
parecido com um estúdio do que
qualquer outra coisa. Era bem amplo e
iluminado, não havia muita divisão entre
os cômodos. Toda a decoração refletia o
estilo dela. As paredes tinham uma
pintura rústica que imitava cimento e
havia uma extensa coleção de discos em
estantes que tomavam grande parte do
espaço da sala. Era confortável e
aconchegante, eu gostava de ficar por
ali.
Como eu precisava muito
conversar sobre meu acordo com
Connor, escolhi Fiona como confidente.
Afinal, ela conhecia bem aquele mundo
e dava bons conselhos. Bebemos
cerveja sentadas no sofá da sala
enquanto eu lhe contava tudo. Ela ouvira
em silêncio, fumando tranquilamente.
— Bom, ao menos ele não é seu
pai — falou, quando eu terminei.
Ri alto. Sem dúvidas aquela
informação fora um grande alívio.
— O que acha do acordo?
— Acho que você está ferrada
— respondeu, sincera. Ela se inclinou
para apagar o cigarro no cinzeiro que
estava disposto sobre a mesinha de
centro.
Me surpreendi com a resposta,
levantando as sobrancelhas.
— Acha que eu não posso
vencer? — Fiona colocou para trás os
fios curtos de seu cabelo repicado e
cruzou as mãos entre os joelhos. Ela
estava bem séria. — Acho que essa é
uma enorme responsabilidade que você
não precisava tomar para si. Tenho
certeza de que Hades não a culpa pela
perda do bar. Foi uma decisão dele e sei
que ele faria de novo, quantas vezes
fosse necessário.
Suspirei, deixando minhas
costas caírem contra o encosto da
poltrona.
Talvez ele não me culpasse,
mas eu sim.
— Não posso ficar inerte
diante disso. Se há uma chance, mesmo
que mínima, tenho que tentar.
— Então acho melhor garantir
sua vitória.
— Eu irei.
Ela assentiu.
Eu não soube interpretar se
Fiona duvidava ou não daquilo, mas não
importava, no fim das contas. Embora
parecesse difícil, talvez quase
impossível, eu sabia que era capaz. Com
um suspiro, desviei o olhar para a
parede à minha frente, do lado oposto à
onde estava sentada. Acima de onde se
localizava a TV havia uma porção de
quadros pendurados na parede. Em sua
maioria, eram do Pandemônio reunido.
Um, porém, chamou minha atenção.
Naquela fotografia estavam Fiona e
Nick. Pareciam muito jovens, ainda
adolescentes. Ela estava montada nas
costas dele, mostrando a língua. Ele, por
sua vez, sorria, parecendo feliz.
Já desconfiava que os dois
costumavam ser próximos, mas não
pensei que eram tão próximos assim.
Não conseguia sequer imaginar o quão
difícil estava sendo para ela desde que
seu amigo imergira nas drogas. Ele
parecia limpo já há algum tempo, mas
sem dúvidas se afastara de todos seus
antigos amigos.
— Ele parece tão diferente —
observei. Fiona levantou a cabeça e seus
olhos rapidamente encontraram o foco
da minha atenção. Notei quando um
sorriso nostálgico cruzou seu rosto
brevemente.
— Ele era diferente. Era doce
e alegre. — A garota suspirou,
pensativa. — Essa parte de Nick morreu
junto com a mãe.
— É uma pena.
— É, sim — concordou. — E,
mesmo sabendo que não era o dever de
Selina salvá-lo do buraco no qual ele
mesmo estava se enterrando, acho que
também nunca vou perdoá-la por tê-lo
abandonado.
Fui surpreendida novamente.
Havia tanta coisa sobre eles que eu
ainda não sabia. Queria conhecer mais
sobre o Pandemônio. Queria tentar
compreendê-los, de alguma forma.
— O que aconteceu? —
indaguei.
— Ele passou por um momento
difícil, quando estava drogado —
começou Fiona, sem esconder o tom de
lamentação em sua voz —, nunca estava
presente. Passava cada vez mais tempo
com Chuck e Slade, fazendo sabe lá
Deus o quê em Foxgriss. Estava
instável, impossível de conviver.
Pensando bem, acho que Selina suportou
até demais. Eles namoraram durante
pouco tempo na época do colégio. Ela
saiu bem magoada, mas não foi nada
comparado a como Nick ficou. O
término o jogou na lama de vez.
— Hades também desistiu
dele? — Fiona deu de ombros.
— Não completamente, apesar
de querer que todos acreditem nisso.
Ainda espero que um dia tudo se resolva
entre eles.
Queria acreditar naquilo
também, embora meu ressentimento com
Nick permanecesse muito presente.
Fiona parecia ter muita certeza de que
ainda havia algo de bom nele, apesar de
tudo.
— Não sei se eu o perdoaria —
admiti, atraindo os olhos dela para mim.
— Não após ele ter me exposto a um
perigo tão grande como fez.
— Não tiro sua razão — Fiona
concordou. — Mas não deixe que isso
defina quem ele é pra você.
Fiquei em silêncio, refletindo.
Eu sabia que nem todos os
lados de Nick Wrath eram desprezíveis,
mas as coisas que ele era capaz de fazer
por vingança me assustavam.
Provavelmente, sua ex-namorada fizera
o certo em se afastar.
A história contada por Fiona
estava me fazendo enxergar Selina sob
uma nova perspectiva. Não sabia que
ela tinha passado por momentos tão
difíceis como aquele.
— Acho que ela me odeia —
falei, após um tempo.
— Selina praticamente odeia
todo mundo. Acho que ela só não confia
em você ainda.
— Talvez…
Algo, porém, me dizia que era
mais do que apenas aquilo.

Após sair do apartamento de


Fiona, já no meio da noite, algo —
talvez meu instinto — me levou até o
trailer estacionado na beira da estrada.
Quando dei por mim, já estava lá,
encarando com pesar a lataria
descascada e sentindo um nó crescer em
minha garganta, recordando-me de todas
as coisas que eu descobrira sobre Nick
e que me impeliram a querer dar-lhe
outra chance. Parte disso provinha do
sentimento de gratidão que eu ainda
nutria por ele; afinal, Nick me resgatara
no deserto e me levara em segurança até
Carmine.
Eu sentia como se estivesse em
dívida com ele de alguma forma, mas
todas as chances que eu poderia lhe dar
estavam perto de acabar, o que era
triste. Nick ainda era jovem demais para
que todos desistissem dele. E, no
entanto, parecia ser exatamente isso o
que ele queria — ou, ao menos, era o
que ele deixava a entender através de
suas ações.
Nunca poderia esquecer,
porém, o medo avassalador que eu
sentira quando Nick me prendera
naquele porão. Exatamente como Connor
e Joel costumavam fazer com algumas
pessoas, quando as levavam para a casa
onde morávamos. E eu sabia —
provavelmente Nick também — que
caso qualquer um dos Daggers tentasse
algo contra mim, não haveria nada que
ele pudesse fazer para impedir.
Fiquei parada sobre a terra em
frente ao trailer por tempo demais,
despertando apenas com os latidos do
cachorro. Me empertiguei, estreitando
os olhos para Dodger, o maldito animal
que destruíra nosso plano de invadir a
igreja.
Imediatamente a porta de metal
do trailer se escancarou, revelando a
figura de um Nick muito mal-humorado.
Seu torso estava nu, exibindo o peitoral
bronzeado que continha algumas
tatuagens — não tantas como seu irmão.
Ele levou um par de segundos pra notar
minha presença, mas, quando o fez,
pareceu ficar duas vezes mais irritado.
Não tive tempo de falar nada, ele
alcançou meu pulso e, num aperto firme,
me puxou para dentro, fechando a porta
com um golpe bruto e me pressionando
contra ela em seguida.
— Você enlouqueceu
completamente? — perguntou num
sussurro feroz. — O Círculo está cheio
de Daggers. Se um deles te visse
estaríamos ambos mortos.
O interior do trailer estava
imerso numa penumbra. Não havia nada
além da luz azulada da noite, que
invadia através das pequenas janelas.
Nick estava muito perto. Eu podia sentir
sua respiração no meu rosto e o calor
que seu corpo emanava.
— Eles só estão aqui porque
você os ajudou a vencer. Era para
destruí-los, estragar seus planos, não dar
tudo o que eles mais queriam de bandeja
— falei, entredentes, espalmando a mão
em seu peito para afastá-lo.
Nick estreitou os olhos para
mim, incrédulo.
— Você não sabe de nada! —
Apontou um dedo acusador para o meu
rosto, parecendo furioso.
Balancei a cabeça,
decepcionada.
Quando um cheiro familiar de
álcool invadiu minhas narinas, olhei ao
redor. Pude ver diversas garrafas vazias
de cerveja sobre a bancada da pia.
Suspirei, fitando Nick sob a
penumbra.
— Você estava bebendo?
Ele não respondeu. Ficou
quieto por longos segundos antes de
dizer, ignorando minha pergunta:
— Pensei que não quisesse
ouvir minha voz ou olhar na minha cara
nunca mais.
Engoli em seco, sentindo-me
arrepiar ao lembrar de como me senti
quando acordei e percebi que estava
presa num lugar desconhecido. Assim
que me dei conta de que Nick tinha me
sequestrado e me levado para o covil
dos Daggers, fui inundada por um
sentimento profundo de decepção. Ele
foi egoísta e inconsequente.
— Eu estava brava — disse,
simplesmente, mesmo sabendo que era
bem mais complicado que aquilo.
— Não está mais?
— É claro que estou, mas… Eu
precisava saber. Porque eu te defendi,
Nick. Eu acreditei em você e te defendi
mesmo depois de você ter me traído.
Nick deu alguns passos para
trás, abrindo o máximo de distância
possível entre nós, até encostar o
quadril numa das bancadas. Então,
cruzou os braços sobre o peito.
— Não sou leal a ninguém,
Raven. Mas, acredite, quando disse a
Garrett que poderíamos te sequestrar,
não foi pessoal.
A ideia de me levar até a igreja
havia sido dele, afinal.
Trinquei o maxilar, fechando as
mãos em punhos na lateral do meu
corpo. Precisei engolir em seco toda a
raiva que começou a borbulhar em mim.
— Não foi pessoal?! — rebati,
indignada, levantando o tom de voz. —
Você sugeriu me trancar num lugar cheio
de homens que poderiam fazer o que
quisessem contra mim?
Nick respirou fundo, como se
estivesse tentando manter a paciência.
— Era a única maneira de
atingir meu irmão e fazê-lo abdicar do
bar. Precisava disso — contou, dando
de ombros como se fosse muito simples.
— Os Daggers precisam achar que estão
em vantagem. Se ficarem confiantes,
então se tornarão fracos e eu poderei
destruí-los.
— Você me usou, então —
concluí. — De novo. Parece que você
acredita que sou um fantoche em suas
mãos e que pode me manipular para
atingir os seus propósitos. Foi por isso
que flertou comigo? Que se aproximou
de mim e me beijou aquele dia?
Nick riu alto, inclinando a
cabeça para trás enquanto gargalhava.
Como se eu fosse uma grande piada.
— Olha, menina, como eu
disse, não foi pessoal. Eu nunca lhe
garanti que era um bom homem ou que
tinha qualquer tipo de princípio.
Acredite, eu não tenho. E é assim que eu
sobrevivo nesse mundo. Não me importo
que o Pandemônio seja destruído como
consequência, nem que Hades seja
punido pelo pai por causa disso. Posso
ter esquecido minha vingança contra ele
por ora, para me concentrar em Garrett,
mas eu ainda o odeio.
Ele falava devagar, presumindo
que eu precisava de algum tempo para
assimilar suas palavras, como se
estivesse explicando algo a uma criança.
Pisquei, incrédula, antes de
explodir.
— Ah, pelo amor de Deus. —
Joguei as mãos para o alto. — Você está
tão cheio de pena de si mesmo que não
consegue enxergar nada além disso. Isso
tudo é porque não foi você o escolhido?
É apenas porque não é o filho legítimo
que herdou todo o império de merda de
Frederik Wrath? — Sua postura vacilou
e eu tive certeza de que estava chegando
perto. — Deus, Nicholas, eu entendo
que você passou por um período difícil,
mas você sempre teve seu irmão, sempre
teve amigos, foi você quem deu as
costas a eles. Você realmente é um
maldito ingrato e nada do que eu te disse
na galeria entrou nessa sua cabeça dura.
Nick permanecia estragando
tudo com seu irmão. Continuava
repetindo os mesmos erros. Não havia
mais como eu continuar a defendê-lo.
Ele tivera todas as chances do mundo
para mudar.
— O erro foi seu por ter
escolhido acreditar que eu era qualquer
coisa além de um bastardo vil e egoísta
— respondeu, impassível. Seu rosto
estava livre de qualquer emoção. Era
puro gelo. — Além disso, você mesma
disse que faria qualquer coisa pra
conseguir acabar com McKinley.
Franzi o cenho, dando um passo
em sua direção.
— Eu não arriscaria meus
amigos. Não os entregaria de bandeja,
arrastando-os de bom grado para a cova
dos leões. — Senti um bolo em minha
garganta e comecei a ficar com a voz
embargada. — As coisas que você é
capaz de fazer…
— Talvez seja o sangue ruim do
meu pai que também corre em minhas
veias — ele falou baixinho, atraindo a
minha atenção imediata.
— O quê?
— Joel McKinley é o meu pai,
Raven. Ele costumava trepar com a
minha mãe enquanto visitava Frederik
para discutir negócios.
Pisquei, em choque
Aquelas palavras ecoaram por
todos os segundos seguintes em que
fiquei em silêncio. Abri a boca para
tentar dizer alguma coisa, mas não pude
encontrar minha voz. Um arrepio
percorreu todo o meu corpo e, de
repente, eu estava morrendo de frio.
Pensei em Hades e em como
ele reagiria a essa informação. Ele
deveria saber? Se eu fosse ele, eu iria
querer? Talvez isso destruísse a imagem
e a memória que ele tinha da própria
mãe.
— Como você descobriu isso?
— finalmente consegui falar, de maneira
fraca, demonstrando como estava
completamente abalada com tamanha
revelação.
— Connor Kamps.
Me perguntei se ele sempre
soubera disso. Provavelmente, ele
revelara aquela informação naquele
momento apenas para desestabilizar
Nick. Kamps estava jogando, como de
costume.
— Mais alguém sabe?
— Ninguém que não esteja
nesse trailer. — Deu de ombros.
Respirei fundo, me sentindo
cansada e com um enorme peso
pressionando meus ombros.
— Sinto muito por isso —
falei, sinceramente, apesar de que talvez
ele não se importasse com meu consolo.
— Ninguém merece ter qualquer tipo de
ligação com aquele homem.
— Ele não significa nada pra
mim. — Novamente, havia apenas frieza
em seu semblante.
— Onde Garrett está se
escondendo agora? O que ele está
planejando, Nick? — Tentei, mais uma
vez.
Se pudéssemos pegá-los, então
recuperaríamos o Pandemônio e eu não
precisaria apostar a mim mesma em um
jogo de pôquer. Pensar em passar todos
os próximos anos da minha vida nas
mãos de Connor fazia meu estômago
embrulhar. Eu estava tentando evitar
aquele pensamento, afastando-o para o
fundo da minha mente para me
concentrar em resolver os problemas
imediatos.
— Não posso dizer — Nick
falou, me fazendo suspirar. — Estou
recuperando a confiança de Garrett e
não posso arriscar que você e meu
irmão estraguem tudo.
— Se você disser, podemos
pegá-lo e…
— Eu quero acabar com Garrett
com minhas próprias mãos, menina. É
meu direito.
Meus ombros caíram
Nick queria permanecer
sozinho, sem aliados. Não importava o
quanto tentássemos. Não dava pra salvar
alguém que não quer ser salvo.
— Connor vai trair os Daggers
— falei, surpreendendo a mim mesma.
— E talvez eu não devesse estar te
contando isso, porque ficou claro que
você não é leal a ninguém além de si
mesmo. Mas, se quer mesmo destruir
Garrett, tem que explorar esse ponto
fraco. Não vamos conseguir nada
enquanto a aliança entre eles perdurar
Ele ficou em silêncio, então me
virei para sair dali. Não havia mais
nada que eu pudesse fazer por Nick.
Assim que abri a porta de
metal, sua voz soou atrás de mim.
— Raven? — Me chamou, e eu
o olhei por sobre o ombro. — Se fosse
um universo alternativo... Se fôssemos
outras pessoas, eu poderia ter sido leal a
você.
Balancei a cabeça, não
podendo evitar me sentir
lamentavelmente triste.
Antes de sair, eu disse:
— Se fosse um universo
alternativo, Nick, eu nunca teria sequer
te conhecido.
E se a maneira como
começamos tornou isso algo
amaldiçoado desde o início?
E se isso só ficar mais frio?
Eu não quero dizer que o seu
amor é um jogo de espera
Waiting Game - BANKS

Na última semana, tudo no que


eu conseguia pensar era na maldita
aposta que havia feito com Connor
Kamps. Eu estava preocupada — para
não dizer aflita — de jogar fora o que
poderia ser a última chance de recuperar
o bar de Hades. Eu não era a melhor no
pôquer e, ironicamente, tudo o que eu
sabia fora ensinado por Connor.
Dominava o básico do Texas Hold’em.
Conhecia as regras básicas e havia
decorado todas as sequências de cartas
— e também não era nada mau quando
se tratava de blefe. Entretanto, eu não
podia contar com a sorte. Não era uma
circunstância normal, nem um oponente
normal e, sem dúvidas, não era uma
aposta normal.
Connor era o maior trapaceiro
que eu conhecia. Ele iniciara a vida na
máfia do Texas sendo pago para
trapacear em cassinos. Essa era sua
especialidade e, considerando seu
desejo de destruir o Pandemônio e tomar
Carmine para si, com certeza não iria
facilitar para mim.
Mas talvez eu pudesse utilizar a
sua arrogância contra ele. Afinal, ele
estava claramente me subestimando.
Suspirei, colocando de lado o
livro denominado A Arte do Pôquer que
eu havia pego na biblioteca da
Universidade mais cedo naquela sexta-
feira. Apesar de ter lido pelo menos
meia dúzia de livros sobre pôquer e
pesquisado muito na internet sobre
trapaças nesse jogo, eu ainda me
encontrava no escuro. Tudo parecia
muito superficial e teórico, diferente de
como era na prática. Com certeza,
Connor já conhecia todas aquelas dicas
abstratas; afinal, ele era um especialista.
Libby, que estava sentada no
sofá do apartamento de Alina lendo uma
revista, levantou a cabeça para me olhar.
Ela empurrou para cima os óculos
empoleirados na ponta do nariz e
semicerrou os cílios na minha direção.
Eu estava na poltrona do outro
lado da sala de estar. Ao fundo, uma
música clássica de um dos discos da
coleção de Ali tocava baixinho.
— Não pretende mesmo contar
a Hades sobre o jogo? — perguntou.
Suspirei, esticando as pernas.
— Não o vejo há dias. — Dei
de ombros.
Nem mesmo naquela sexta-
feira, véspera do seu aniversário, tive
notícias dele. Desde que ele perdera o
bar, esteve distante. E eu não sabia se
era porque me culpava por isso ou
porque seu pai estava me ameaçando. E
também não sabia qual das duas
hipóteses me incomodava mais.
Hades Wrath não saía da minha
cabeça. Havia se impregnado em meu
sistema como uma toxina. E, mesmo
distante, eu ainda tinha passado a última
semana planejando seu presente de
aniversário.
O quão tola isso me tornava?
— As últimas semanas foram
difíceis — Libby argumentou. — Alli,
Khalil te disse alguma coisa sobre isso?
Foi apenas naquele momento
que Alina despertou. Até então ela
estava muito quieta, absorta em
pensamentos, encolhida contra o braço
do sofá.
— Ah… Eu não tenho falado
com ele.
Ergui as sobrancelhas,
finalmente compreendo o motivo de ela
ter estado tão silenciosa e pensativa.
Libby afastou a revista e se endireitou.
— O que houve?
— Ele poderia ter morrido
facilmente na noite do tiroteio na capela.
Aquela não foi a primeira vez em que
ele se envolveu numa situação perigosa
e com certeza não será a última. Não
posso lidar com isso.
Engoli em seco.
Eu a compreendia. Não era uma
vida fácil até mesmo para mim, que
tinha crescido naquele submundo. O
Pandemônio estava constantemente em
risco, não existia nenhuma garantia perto
dele.
Alina dobrou as pernas e
abraçou os joelhos contra o corpo,
fitando o chão melancolicamente.
— Eu entendo totalmente —
falei, tentando confortá-la.
Ainda assim, era uma pena que
Alina e Khalil não ficassem juntos. Eles
pareciam fazer bem um ao outro.
— Como você não sente medo
desse mundo? — perguntou, olhando
para mim.
— Acho que é porque eu já
presenciei coisas bem piores.
— Sinto muito, Raven.
— Tudo bem.
Alina parecia arrependida.
Talvez de todas as suas escolhas.
Carmine não era um bom lugar para
quem desejava paz e tranquilidade. Ou
uma vida normal. No começo, pensei
que poderia ser. Que recomeçaria ali
como uma garota normal, uma mera
estudante de artes que trabalhava como
garçonete.
Agora, só de pensar nisso eu
tinha vontade de rir. Nunca teria dado
certo, porque eu simplesmente não era
uma garota comum. Nunca havia sido.
Carregaria a bagagem do meu passado
para sempre. Era parte de mim.
— É assustador passar em
frente ao Pandemônio agora — Libby
continuou, com a voz trêmula como se
sentisse arrepios só de lembrar. — Os
Daggers estão por todos os lados agora.
Eu estava evitando passar perto
do bar, porque ver as dezenas de
motocicletas na frente dele e a bandeira
com a adaga pendurada na fachada só
me deixava com ainda mais vontade de
dar o troco.
A porta do apartamento foi
aberta em um rompante, interrompendo a
conversa. Nós três instantaneamente nos
viramos naquela direção. George entrou
com uma grande caixa nos braços e
envelopes na boca. Libby logo se
levantou e foi até ele, apressando-se
para ajudá-lo.
— O que é isso? Véspera de
Natal? — brinquei, me levantando
também.
Ele depositou a caixa branca
sobre a mesa de madeira, entre a sala e
a cozinha, com a ajuda de Libby.
Depois, me encarou com as mãos na
cintura. Levantei as sobrancelhas,
esperando uma explicação.
— Sabem que amanhã à noite
vai acontecer a tradicional festa de gala
dos Wrath, não é?
Bufei, frustrada.
Frederik mencionara aquilo na
primeira e única vez em que o vi, mas
não pensei que iria realmente acontecer,
não depois do escândalo envolvendo as
Consolidações Wrath.
— Não sabia que a festa ainda
ocorreria — Alina falou, como se lesse
meus pensamentos.
— Frederik nunca perde uma
oportunidade de estar entre a alta
sociedade.
— O.k. — eu disse, cruzando
os braços. — Haverá uma festa em
comemoração ao aniversário de Hades.
E daí?
George rolou os olhos antes de
se aproximar. Ele usava uma camisa
amarela de mangas curtas, que caía
surpreendentemente bem em seu corpo
magro. As unhas estavam pintadas de um
rosa-pastel, combinando com o resto das
cores que compunham seu visual.
— E daí que nós fomos
convidados.
Ele distribuiu os envelopes
entre nós. Analisei aquele que tinha meu
nome numa bela letra cursiva sobre um
selo verde e bonito. Percebi, pela letra
W no centro, que era o brasão da
família.
Levantei as sobrancelhas,
surpresa e um pouco brava.
— Hades não fala comigo há
dias e de repente decide me convidar à
sua festa?
— Ele odeia a data do próprio
aniversário tanto quanto odeia as festas
do seu pai. Hades vai precisar do nosso
apoio amanhã.
Suspirei, deixando meus
ombros caírem, e balancei a cabeça.
Frederik era um homem mau e
ardiloso, que tentava manter controle
sobre o próprio filho ameaçando as
pessoas de quem ele gostava. Não era
justo. Ninguém merecia isso.
— O que há na caixa? — Libby
perguntou, curiosa. George sorriu.
— Estava na frente do seu
dormitório, encontrei quando fui lá
procurar por vocês. É para a Raven.
Franzi o cenho, alternando o
olhar para a caixa branca sobre a mesa.
Encarei o objeto por alguns segundos
antes de me aproximar a abrir. A
primeira coisa que vi foi um bilhete
escrito à mão, com a linda caligrafia que
imaginei ser de Hades. Apanhei o
pedaço de papel para lê-lo.
“Você fica extraordinária
nessa cor.”
Engoli em seco quando percebi
que havia um vestido na caixa. Um
vestido cuidadosamente dobrado, longo
e preto. Esbanjava luxo e bom gosto,
exatamente como o homem que o havia
escolhido. Fiquei sem fôlego por um
instante.
Hades me deixava tão confusa.
Eu não sabia realmente o que
ele queria e isso estava me perturbando.
Mas, naquele instante, eu decidi que iria
descobrir, de uma vez por todas.
Tentei não me sentir
completamente intimidada ao me
deparar, pela primeira vez, com a
mansão dos Wrath. Talvez tenha sido
apenas naquele instante que me dei conta
da fortuna obscena que pertencia àquela
família, tudo o que Hades herdaria.
Saber que grande parte daquilo fora
obtido ilegalmente não era,
definitivamente, nem um pouco
reconfortante. Mesmo assim, enquanto
eu caminhava sobre a trilha de pedras
que levava à enorme entrada da casa, eu
tentava me manter calma.
Era uma noite quente e toda a
alta sociedade do Arizona
provavelmente estava presente. Haviam
muitos carros extravagantes e limusines
reluzentes estacionadas ao redor. Era
triste perceber que nem um terço deles
estava ali para prestigiar o aniversário
de Hades. Com certeza, mal o
conheciam ou nem mesmo se
importavam com ele.
As sandálias de salto sob meus
pés acrescentaram bons centímetros à
minha altura, fazendo George, que
estava ao meu lado, parecer bem baixo.
Ele vestia um smoking verde e de
veludo. Não era nem um pouco
convencional, mas era a sua cara. Eu
tinha um braço enganchado no dele e
Libby também, do outro lado.
— Uau! — Libby exclamou,
quando passamos pelas portas duplas e
adentramos à mansão.
Era impossível não ficar
perplexa com tudo ao redor. Os móveis
pareciam ainda mais caros do que
aqueles que haviam na cobertura de
Hades. Todos tinham tons sóbrios, com
cores escuras que contrastavam com as
paredes e o chão de mármore,
completamente brancos. A decoração
era contemporânea, diferente da
estrutura externa da casa, que esboçava
uma bela arquitetura mediterrânea.
Obras de arte enfeitavam as
paredes. As pinturas eram bonitas. Eram
expressionistas, em sua maioria. Me
perguntei se elas haviam sido escolhidas
por Eve, quando ainda estava saudável.
Eram o único toque de emoção num
lugar que parecia tão frio e impessoal.
Os convidados seguiam pelo
hall de entrada e caminhavam em seus
trajes finos e elegantes na direção do
arco que levava a um salão na direita.
Fiz o mesmo trajeto, guiada pela
melodia suave de um piano.
— Caramba, quem tem um
salão de festas dentro de casa? — Libby
sussurrou, deslumbrada.
— Alguém com dinheiro
demais para o próprio bem — falei,
olhando ao redor
Lustres dourados estavam
espalhados pelo teto ornamentado.
Mesas redondas sob toalhas de linho
permeavam o salão e garçons
transitavam de um lado para o outro com
taças e canapés dispostos sobre
bandejas de prata em suas mãos. Em
cada canto da casa havia seguranças
vestidos com ternos preto e rostos
inexpressivos.
Frederik, ao que parecia, se
certificara de estar protegido caso seus
inimigos tentassem atacá-lo.
Cortinas de um tom verde-
escuro cobriam parcialmente as enormes
janelas do outro lado do salão. Perto
delas localizei Frederik, alto e pálido
como uma criatura sobrenatural. À sua
frente havia uma mulher de costas para
mim, usando um vestido branco. Seus
cabelos eram longos e pretos e sua
silhueta me parecia familiar. Minha
atenção não ficou sobre ela por muito
tempo, entretanto, porque o pai de
Frederik me olhava incessantemente,
quase como se estivesse tentando me
causar dor física.
Um arrepio me acometeu,
acompanhado de uma sensação ruim.
— É melhor eu começar a
beber se vou ter que aturar isso aqui —
George murmurou, me despertando. Me
voltei para ele, vendo-o esticar um
braço e capturar uma taça de champanhe
de uma bandeja. Ele a virou por
completo de uma só vez. — Tia Eve
tornava esses eventos chatos e bizarros
em algo esplendoroso. Ela era luz por
onde passava.
— Deve ter sido horrível viver
com Frederik — observei, enquanto o
encarava de longe. George concordou
com a cabeça.
— Agora ele está apenas
substituindo-a, como faz com um objeto
quebrado. Está por aí exibindo a
próxima senhora Wrath como a uma joia
cara. — Ele maneou a cabeça na direção
da mulher próxima de Frederik. O
homem tinha as mãos ao redor de sua
cintura de maneira possessiva.
— Hades tem uma madrasta?
— indaguei, surpresa. — Eu não fazia
ideia.
— Ele não gosta de falar sobre
a família. Além disso, não é como se a
presença de Amanda fosse muito
imponente. Duvido que Hades tenha
sequer conversado com ela em algum
momento. A mulher não é muito de
falar.
Balancei a cabeça, lamentando
em silêncio.
— Outra vítima nas garras do
Barba-Azul — Libby comentou.
Era triste como todos pareciam
perecer ao redor dos Wrath.
— Aí estão vocês! — A voz de
Alina nos surpreendeu no instante
seguinte. Nos viramos e vimos ela se
aproximar acompanhada de um belo
Khalil, que estava vestido para
impressionar.
Mesmo que ela tivesse um
milhão de ressalvas sobre aquele
relacionamento, minha amiga parecia
realmente brilhar e flutuar quando Khalil
estava por perto. Eles eram o perfeito
contraste um do outro. Completamente
opostos, mas igualmente radiantes.
— Isso aqui está tão… —
Libby deixou a frase em aberto, sem
conseguir encontrar o adjetivo perfeito.
— Insuportavelmente bizarro?
— Khalil completou, nos fazendo rir.
— É por isso que já estou
chapada — Fiona entrou na conversa,
falando de maneira arrastada, o que fez
todos rirem.
Ela era a única ali usando um
vestido curto e coturnos, mas eu não
conseguia enxergá-la de nenhuma outra
maneira, seu estilo era muito marcante.
Os cabelos curtíssimos estavam um
pouco bagunçados e havia uma
maquiagem preta pesada em suas
pálpebras. Logo os outros se
envolveram numa conversa animada e eu
me voltei para Fiona.
— Como o Hades está? —
perguntei.
— Ninguém sabe o que se
passa naquela cabeça teimosa —
respondeu, simplesmente. — Mas ele
tem passado os últimos dias tentando
conter os danos com Frederik.
Mordi a língua para impedir de
dizer meus planos para recuperar o
Pandemônio ao resto do grupo. Eu não
queria dar esperanças infundadas a
ninguém, principalmente porque eu
poderia perder miseravelmente.
— Onde ele está?
Fiona deu de ombros.
— Não sei. Com Selina, acho.
Em algum lugar por aí.
Assenti e disse que precisava
conversar com ele. Depois, me
distanciei do salão, indo em direção ao
vestíbulo. Pude sentir o olhar de
Frederik me seguindo durante todo o
caminho e essa sensação me deixou
tensa e com pressa para me afastar dele.
Procurei por Hades no térreo,
mas não havia sinal algum dele. Todos
os convidados se encontravam no salão,
fora dali havia apenas alguns
funcionários uniformizados e mais
seguranças. Todos sérios e polidos, me
olhando com desconfiança.
Assim que subi as enormes
escadas de mármore para o segundo
piso, entretanto, o encontrei. Vi a
silhueta alta e esguia de um homem
através das portas duplas de vidro que
levavam ao terraço. Ele estava sozinho,
para meu alívio.
Lá em cima estava muito
silencioso e parte das luzes estava
apagada. Andei devagar em sua direção,
segurando levemente o vestido para que
não tropeçasse em sua barra. Hades
parecia distraído, debruçado na
balaustrada, com um copo de uísque nas
mãos enquanto encarava a paisagem
desértica ao redor. Ele mal notou
quando abri a porta e saí para a brisa
noturna reconfortante.
— É meio triste passar o
aniversário bebendo sozinho enquanto
há uma festa inteira pra você lá em
baixo.
Hades se empertigou e me
olhou por sobre o ombro por um
segundo antes de se virar completamente
em minha direção. Em situações comuns,
Hades já era extraordinariamente bonito,
agora trajando um black-tie, com os
cabelos perfeitamente penteados para
trás, e o olhar compenetrado…
Ele ficava quente como o
inferno.
Hades não foi nada discreto ao
me analisar dos pés à cabeça, seu olhar
se demorando um instante a mais no
decote profundo entre meus seios. Em
seguida, fitou-me nos olhos.
— Eu estava certo quanto ao
vestido. Fica mesmo fantástico em você.
Engoli em seco e me aproximei
mais alguns passos, com o salto batendo
contra o chão de pedra polida. Só parei
quando não restava nada além de poucos
centímetros entre nós. Imediatamente fui
inebriada pela sua fragrância: um misto
de perfume importado e tabaco.
Hades me observava
atentamente, seguindo cada movimento
meu com seu olhar. Me apoiei na
balaustrada de pedra ao meu lado
esquerdo.
— Pensei que não viria. — Ele
quebrou o silêncio novamente e eu
respirei fundo.
— Pensei que não me quisesse
por perto.
— Eu a convidei.
— Depois de mal falar comigo
nas últimas semanas.
Hades respirou fundo, um vinco
se formando entre suas sobrancelhas.
— Não escolhi isso.
— Por causa das ameaças do
seu pai? — perguntei. Ele assentiu uma
vez. Pigarreei, me endireitando. — É
por isso que você me afastou, então?
Acha que assim vai estar me
protegendo?
Ele me encarou com os olhos
nublados, indecifráveis. Não havia
frieza ou calculismo em seus olhos.
Cada vez mais eu via o inabalável
Hades Wrath sair do seu tão confortável
controle sobre tudo e todos.
— Eu não vou sobreviver se
algo acontecer com você, amor — falou,
colocando uma mão sobre meu rosto. O
escudo de Hades estava caído naquele
momento. Ele estava se expondo para
mim. Completamente aberto e
vulnerável, bem na minha frente. — Se
você se machucar por minha causa…
Isso acabará comigo. Não vou me
perdoar. Nunca.
Coloquei minha mão sobre a
dele, meus dedos deslizando entre os
seus.
— Eu sei me defender. Não sou
uma garotinha frágil e você não tem que
me proteger. Eu vou lutar ao lado do
Pandemônio. Ao seu lado.
Hades se aproximou com um
olhar que pegava fogo. Como se pudesse
ultrapassar minhas barreiras também e
ver tudo o que se passava na minha
mente e no meu coração. Inclinou sua
cabeça levemente para me analisar
melhor. Senti que poderia derreter sob
seu escrutínio.
— Aquela noite no meu quarto
— Hades começou a falar antes de fazer
uma pausa para umedecer os lábios com
a língua, fazendo o ar secar dos meus
pulmões —, você basicamente disse que
queria distância. Então me diz, amor, eu
não te dei o que você queria?
Balancei a cabeça, tensa pela
expectativa.
Meu coração martelava
incessantemente em meu peito, como se
estivesse prestes a explodir. Percebi,
então, que nunca havia sentido nada
como aquilo. E agora tudo estava me
atingindo de uma só vez, porque eu
havia sufocado meus sentimentos por
Hades por tempo demais ao fugir
covardemente — o que de nada
adiantou. Tudo o que eu sentia ainda
estava lá, me corroendo lentamente.
Eu já estava cansada daquele
jogo.
— Não — consegui falar, após
um segundo. — Agora eu vejo que o que
eu quero é você. Não me importo que
seja a minha queda, contanto que você
caia também.
Minha cabeça estava inclinada
levemente para cima, porque nem
mesmo os saltos em meus pés
conseguiram equiparar nossas alturas.
Ele deslizou o polegar de
maneira suave sobre a pele da minha
bochecha antes de dizer:
— Eu já caí.
Hades, em seguida, me beijou.
Sua mão segurou a lateral do
meu rosto e seus lábios se colaram aos
meus. Era intenso e selvagem. Seu gosto
me invadiu e eu me agarrei a ele,
envolvida por seu sabor: uísque, menta e
um pouco de perigo. Foi como se tudo
tivesse ganhado cores pela primeira vez.
O sombrio e gelado mundo cinzento que
eu conhecia havia se desfeito naquele
instante.
Hades me empurrou para trás,
até minhas costas se chocarem contra a
parede de pedras da área externa da
casa. Não me importei com o impacto,
pois estava completamente focada em
beijá-lo, como se minha vida
dependesse disso. Como se o único ar
que eu precisava estivesse em seus
pulmões.
A língua de Hades era quente e
ansiava ao deslizar contra a minha. Seu
toque era certeiro e firme quando
escorregou pelo meu maxilar até meu
pescoço, enquanto sua outra mão me
mantinha de pé, sustentando meu corpo
para que eu não desmoronasse sobre
meus joelhos.
Hades Wrath era a
materialização de cada pensamento
impuro que eu já tive. Era como estar
diante de todos os meus pecados e,
ainda assim, não havia nada mais
próximo do céu que aquilo.
Quando o oxigênio nos
escapou, ele mordeu meu lábio inferior,
puxando-o levemente. Eu estava
ofegante e parecia que meu coração
explodiria em meu peito a qualquer
instante. Ficamos com as testas
grudadas, absorvendo a eletricidade que
fora disparada entre nossos corpos. Foi
naquele momento que eu soube que ele
sentia o mesmo que eu.
Aquilo que existia entre nós
não era comum. Havia algo mais ali,
algo que eu não conseguia decifrar.
Ele desceu o nariz até o início
do meu pescoço, aspirando meu cheiro
para si. Eu me segurava em seus
ombros, esperando por seus
movimentos. Hades emaranhou os dedos
entre os meus cabelos, segurando-os
antes de puxar para trás, fazendo minha
cabeça tombar e meu pescoço ficar
ainda mais exposto. Gemi baixinho e
fechei os olhos, apertando as pálpebras
e afundando minha mão nos fios pretos
de Hades também, bagunçando-os
completamente.
Não restaria nenhum vestígio
de controle nele e eu me certificaria
disso. Queria que, quando saísse daqui,
todos soubessem que ele estava
pecando.
Pecando comigo.
Hades deslizou a língua sobre a
minha garganta até a minha clavícula,
livre pelo longo decote do vestido. Fez
isso lentamente, como se saboreasse
uma sobremesa. Continuou descendo até
o vale entre os meus seios, deixando
para trás uma trilha ardente de beijos.
Estávamos ambos além do
limite. Esperamos muito tempo por isso
e agora havia apenas o desespero e a
urgência. Sentia como se estivéssemos
prestes a causar uma explosão.
Como fogo e pólvora.
Uma de suas mãos subiu pela
minha coxa exposta pela fenda lateral do
vestido, enquanto a outra entrelaçou seus
dedos na minha, prendendo-a acima da
minha cabeça, contra a textura rústica da
parede. Ofeguei em seus lábios, sentindo
sua respiração quente em minha pele.
— Deus, amor, você vai mesmo
ser a minha morte — sussurrou ele, com
a mão subindo até encontrar meu quadril
sob o vestido.
Busquei sua boca, precisando
provar mais de seu gosto. Era provável
que eu nunca tivesse o bastante de
Hades Wrath, eu sempre iria querer
mais.
Meu corpo estava pressionado
contra o seu, sem nenhum milímetro de
distância entre nós. Ele se assegurou
disso quando colocou sua perna entre as
minhas, de modo que eu ficasse montada
em sua coxa. Levei meus dedos livres
até sua gravata borboleta, desatando o
nó com pressa e os arrastei sobre a pele
tatuada do seu pescoço, descendo até
sua clavícula.
Hades quebrou o beijo,
respirando de maneira ofegante e
urgente, e descansou sua testa sobre a
minha, me olhando com seus olhos em
brasa.
— Vou parar por aqui, amor.
Porque, quando terminarmos isso, não
quero que seja uma rapidinha contra a
parede, quando podemos ser
interrompidos a qualquer momento. —
Quase abri a boca para dizer-lhe que,
com certeza, eu não me importaria,
contanto que pudesse aplacar um pouco
essa minha necessidade de tê-lo.
Contudo, logo ele começou a distribuir
uma trilha beijos pelo meu maxilar e em
direção ao meu ouvido, e eu esqueci de
tudo. — Quero tomar meu tempo para
explorar cada canto do seu corpo. E não
vou parar até nós dois desmaiarmos de
exaustão. — Hades mordiscou de leve o
lóbulo da minha orelha antes de
sussurrar:
— Isso é uma promessa.
Hades se distanciou para me
olhar e avaliou meu estado, sorrindo
malicioso quando testemunhou a maneira
como ele tinha me deixado.
Completamente à beira do precipício.
— Agora, vamos sair daqui. —
Hades entrelaçou sua mão na minha e me
guiou para fora do terraço.
Não me opus. Ele poderia me
levar para onde quisesse.
Você me fez sentir de novo
Me fez dançar em círculos
Em torno dos pedaços de seu
coração
Você me fez sentir de novo
Depois da última vez
Não achei que pudesse amar
Blue Blood - LAUREL
Quebrar as regras com Hades
era divertido.
Mesmo que Frederik me
intimidasse, eu não dei a mínima em
despertar sua fúria quando apareci no
salão com seu filho, nós dois
descabelados, eufóricos e de mãos
dadas. Todos estavam procurando por
Hades para o brinde em homenagem ao
seu aniversário e, quando entramos lá,
seus olhares surpresos e chocados
recaíram sobre nós.
Seu pai estava de pé sobre o
palco nos fundos do salão de festas, com
uma taça de champanhe nas mãos e uma
careta colérica no rosto, parecendo estar
prestes a perder o controle e surtar.
— Filho, venha até aqui para o
brinde, sim? — falou, entredentes, com
um sorriso patético e forçado nos
lábios.
Hades estalou a língua,
segurando mais forte em minha mão.
— Esse show é seu, pai, não
meu — rebateu, com escárnio. Então,
olhou para os convidados de olhos
arregalados e queixos no chão. —
Aproveitem a festa.
Eu mordi um riso que quis
escapar ao observar Frederik conter
uma síncope. Pisquei para Libby, que
parecia muito orgulhosa, sentada numa
das mesas com o resto dos nossos
amigos. Em seguida, Hades me puxou
para fora dali.
Andamos um bocado. Era uma
noite amena e caminhamos pelas ruas de
Carmine, conversando sobre bobeiras e
admirando o céu estrelado. Eu segurava
minhas sandálias com uma mão enquanto
a outra permanecia envolta pela de
Hades. Ele, por sua vez, segurava o
paletó preto sobre um dos ombros. As
mangas brancas da camisa estavam
arregaçadas na altura dos cotovelos,
expondo os desenhos de suas tatuagens,
e a gravata-borboleta estava desfeita,
pendendo sob o colarinho frouxo.
Ele estava leve como nunca vi
antes. Parecíamos um casal normal
caminhando sob o lugar, alegres e
apaixonados. Era, de fato, como um
sonho que nunca imaginei que pudesse
se concretizar. Me fazia acreditar que
tudo ficaria bem. E eu queria me ater
àquela ilusão, porque parecia muito
melhor do que o fim trágico que eu tinha
previsto para nós dois.
— Seu pai vai nos assassinar
de uma maneira lenta e cruel pelo o que
fizemos hoje — comentei, enquanto
entrávamos no campus da Universidade.
Hades começou a desenhar círculos no
dorso da minha mão com seu polegar,
pensativo. — Era uma festa importante.
— De fato — concordou,
inclinando a cabeça para olhar o céu. —
Ele queria que eu estivesse lá para
testemunhar seu pedido de casamento. A
festa era sobre meu pai, não sobre mim.
Estou cansado de ser seu refém.
Sorri, orgulhosa.
Hades merecia ser livre.
Acabamos deitados no chão, na
pista de corrida ao redor do campo de
futebol. Meus olhos estavam fixos no
céu, contando os pontos luminosos que
decoravam o manto preto-azulado acima
de nós. Era estranho estar no campus da
Universidade àquela hora da noite. Tudo
estava tão silencioso e desértico. O
único barulho que preenchia o ambiente
era o da respiração calma e pacífica de
Hades. Eu poderia facilmente dormir e
acordar ouvindo aquele som, que me
transmitia paz e tranquilidade.
— No que você está pensando?
— Hades quebrou o silêncio, após um
tempo. Virei a cabeça para olhá-lo, me
deparando com o breu de suas íris já
focado em mim. Ele me puxou para que
eu deitasse em seu peito e começou a
deslizar a ponta dos dedos pela extensão
da minha coluna, exposta pelo decote
nas costas do vestido. — Se for algum
pensamento impróprio, eu juro que
posso mudar de ideia e trepar com você
bem aqui no meio da pista. Você sabe,
ninguém ousaria me interromper.
Soltei um riso alto e um pouco
indignado — que, com certeza, serviu
para disfarçar minha excitação ao
pensar naquele cenário.
— Caramba, Wrath, você é tão
romântico — respondi, irônica,
levantando a cabeça para olhá-lo nos
olhos.
Ele passou a língua sobre o
lábio inferior antes de sorrir malicioso,
descendo ainda mais os seus dedos
gelados até o fim da minha espinha e sob
o tecido do vestido que cobria a minha
bunda.
— Não posso evitar, você
desperta meu lado selvagem.
Mordi um sorriso e o abracei
mais forte, com minha cabeça
repousando sobre seu peito, ouvindo as
batidas rítmicas do seu coração.
— Eu fiz um acordo com
Connor Kamps — confessei, de repente.
Hades parou a carícia que fazia em
minhas costas e eu levantei meu rosto
para poder ler seus olhos.
— Fez, é?
Engoli em seco e acenei com a
cabeça, confirmando.
— Ele apostou o Pandemônio
num jogo de pôquer.
— E…? — ele incentivou,
sabendo que havia mais naquela história
do que eu estava contando.
Respirei fundo antes de lançar
aquela bomba.
— Eu me apostei.
Hades levantou as sobrancelhas
e arregalou os olhos.
— Você o quê?!
Me afastei até me sentar ao seu
lado e dei um longo suspiro.
— Se eu vencer, Connor me dá
o Pandemônio. Caso ele vença, ele me
leva. — A testa de Hades se franziu em
preocupação e ele se sentou também. No
entanto, não deixei que ele dissesse
algo. — O Pandemônio se tornou a
minha família, Hades. Vocês me
resgataram dos Daggers, o mínimo que
eu poderia fazer é tentar recuperar o bar.
— Ele ficou em silêncio por um instante,
pensando. — Disse que poderia me
ensinar a ser melhor que você no Texas
Hold'em.
Ele respirou fundo antes de
assentir.
— Eu irei — afirmou, sorrindo.
— E se você for melhor que eu, então
será melhor que qualquer um.
Levantei uma sobrancelha.
— Você se garante tanto assim?
— Estreitei meus olhos e seu sorriso
aumentou.
— Não tenha dúvidas disso —
retrucou, arrogante, para então
aproximar seu rosto do meu. Colocou
uma mão sobre minha bochecha e me
beijou de maneira gentil e suave.
Quando nos distanciamos, Hades me
olhou de maneira intensa. — Você
sempre foi uma de nós.
Ouvir aquilo me fez ser
acometida por uma estranha sensação de
pertencimento. Como se, pela primeira
vez na vida, eu não estivesse sozinha.
Eles me aceitavam como parte do grupo.
Eu lutaria por eles e eles me
protegeriam.
— Agora você tem que ver seu
presente de aniversário — falei,
animada, e me levantei.
Estendi a mão para ajudá-lo a
ficar de pé e ele deu um risinho. Em
seguida, começamos a andar na direção
do departamento de Belas Artes.
— Pensei que ter você já fosse
o meu presente — comentou Hades.
Sorri, sentindo algo incendiar dentro de
mim.
O puxei pela mão para dentro
do prédio escuro, cuja única iluminação
provinha dos postes de luzes amareladas
lá de fora. Subi as escadas apressada,
com Hades em meu encalço, até
estarmos no estúdio no qual eu passava
longas horas do meu dia. Ali eu acendi
as lâmpadas e vi a sala clarear, fazendo
as telas e as estantes ganharem forma.
Caminhei até uma pintura em particular.
Ela estava perto das janelas e coberta
por uma lona preta repleta de manchas
coloridas de tinta.
Descobri a tela e encarei
novamente o que poderia ser a melhor
obra que eu já havia pintado. Fitei
Hades, ansiosa por sua reação.
Ele se aproximou com passos
curtos e lentos, as mãos nos bolsos da
calça social e uma expressão séria no
rosto, apesar do brilho de curiosidade
que havia em seus olhos. Analisou em
silêncio a pintura por muitos segundos, e
depois minutos.
— Pensei que você poderia ter
algo para lembrar dela e já que todas as
suas pinturas queimaram…
Hades continuou olhando para
o retrato de sua mãe, pintado com cores
de diferentes contrastes. A pele pálida,
os olhos de felino, com íris
profundamente escuras. Os cabelos
pretos como nanquim, exatamente iguais
aos de Hades.
— Amor, isso é… — Ele
parecia completamente sem palavras,
pela primeira vez. Seu olhar voltou para
mim. — É o melhor presente que já
recebi.
— Hades, você já deve ter
ganhado um milhão de coisas bem mais
caras e valiosas do que o quadro de uma
artista amadora.
Ele negou com um gesto de
cabeça, muito sério.
— Eu tinha tudo o que queria,
mas nada do que eu realmente precisava.
Até agora.
— Eve estaria orgulhosa —
garanti, apanhando sua mão na minha.
Ele voltou a olhar para o retrato.
— Eu não teria tanta certeza.
Neste momento, lembrei do que
Nick me contara. Um nó surgiu em minha
garganta conforme suas palavras
voltavam à minha mente.
Talvez aquela informação
mudasse para sempre a memória que
Hades tinha de sua mãe, mas ele
precisava saber.
— Hades, Nick me disse
algo… — comecei, atraindo de novo
seus olhos para mim. Respirei fundo. —
Disse que era filho de Joel McKinley.
Foi como se eu tivesse
disparado um tiro bem no peito de
Hades.
Seus ombros caíram e o brilho
esvaiu de seus olhos. Ele ficou ainda
mais pálido, encarando o vazio por
tempo o bastante para me deixar
preocupada.
— Hades…
— Faz sentido — disse ele, de
repente, voltando a me fitar. Passou a
mão sobre seus cabelos, um pouco
confuso. — Joel costumava vir a
Carmine há muitos anos, no começo de
sua aliança com Frederik. Acho que
minha mãe já se sentia solitária naquela
época, era praticamente uma prisioneira
do meu pai e McKinley rondava como
um abutre…
Suspirei, me sentindo mal por
ele. Por Nick e Eve também. Um arrepio
percorreu meu corpo, como se a
temperatura houvesse caído de repente.
— Acha que Frederik sabe?
— Talvez. — Pude notar que a
possibilidade preocupou Hades. —
Talvez a guerra entre os Wrath e
McKinley vá muito além de uma mera
disputa de território.

Na segunda-feira, eu estava
tentando esquecer todo o caos de
Carmine e focar no que realmente podia
controlar: o projeto da srta. McPhil.
Tentei abstrair tudo da minha mente
enquanto fazia os esboços da próxima
pintura.
Meu corpo estava tenso,
contudo. E nem mesmo a música agitada
emitida pelos meus fones de ouvido
conseguia me fazer relaxar, de modo que
os desenhos não estavam ficando bons.
Arranquei a folha do meu caderno de
desenhos e a amassei em uma pequena
bola, deixando-a cair, no chão ao lado
da minha cama e se juntar às outras.
Eu estava também estressada
pelo teste de História da Arte que tivera
mais cedo naquele dia. Não que eu
houvesse me saído terrível nele, mas
tinha me deixado nervosa. Temia que
todas as coisas que estavam
acontecendo afetassem meu desempenho
e me fizessem fracassar na faculdade.
Suspirei, recomeçando o
desenho em uma folha em branco. Não
pude continuar, porém, pois a porta do
dormitório se abriu e Libby entrou
eufórica, atraindo minha atenção. Ela
estava agitada quando jogou sua bolsa
sobre a cama, vindo até mim.
— O que houve? — perguntei,
após tirar os fones dos ouvidos e me
sentar ereta, com as pernas cruzadas
sobre o colchão.
Ela jogou suas longas tranças
por sobre um ombro antes de se sentar à
minha frente.
— Você está famosa agora.
Todos estão falando sobre o que
aconteceu na festa do Hades.
Rolei os olhos.
Já estava me acostumando com
os boatos que rondavam Carmine.
Ninguém conseguia disfarçar o interesse
em fofocas por ali. Eu tinha ignorado
todos os olhares indiscretos que me
seguiram pelo campus naquela manhã.
Minha aparição ao lado de Hades na
festa havia gerado muitos boatos, mas eu
não me importava com o que falavam de
mim. Na verdade, eu já estava
esperando por isso quando saí do
dormitório no início do dia. Afinal,
Hades Wrath era o cara mais conhecido
da cidade. Sua família era rica e famosa.
Os holofotes estavam sobre nós quando
acompanhei Hades saindo de maneira
nada educada da própria festa, chocando
a todos os convidados.
— Que ótimo — murmurei sem
ânimo.
— É sério, Raven, sua foto está
em todos os tabloides. Eles querem
saber quem é a garota misteriosa que
roubou o coração de Hades Wrath.
Libby me estendeu seu celular,
cuja tela mostrava um site de fofocas
local. Apanhei o aparelho nas mãos e
fitei a matéria. Abaixo do texto havia
uma série de fotografias da festa.
Ampliei a primeira, que também estava
no centro da página. Fora tirada no
momento exato em que Hades e eu
entramos no salão de festas, meus
cabelos estavam bagunçados e o batom
havia sumido dos meus lábios.
Não pude evitar sorrir, me
lembrando da cara de irritação de
Frederik naquele momento.
Deslizei o dedo sobre a tela,
passando para a próxima imagem. Nela
mostrava o pai de Hades posando para a
foto, com sua postura arrogante e uma
taça de champanhe em sua mão. Quando
meus olhos recaíram sobre a mulher ao
seu lado, se arregalaram com o choque.
Eu provavelmente teria caído se não
estivesse sentada. Segurei o celular mais
firme em minha mão e o aproximei do
rosto, analisando a face da mulher que
eu me lembrava de ter visto de costas,
usando vestido verde.
Li a legenda abaixo.
Frederik Wrath e sua noiva,
Amanda Trammel.
Agora eu entendia porque sua
silhueta me parecera tão familiar
naquele momento.
A madrasta de Hades era minha
mãe.
Meus dedos começaram a
tremer, de modo que o celular
escorregou por entre eles e caiu no meu
colo. Cobri a boca com a minha mão,
sentindo como se todo o mundo
estivesse se deteriorando ao meu redor.
— Raven, o que houve? —
Libby se aproximou preocupada. — Seu
rosto está pálido, parece que viu um
fantasma.
Minha amiga acertou em cheio.
Eu tinha visto o fantasma da minha mãe.
Bem ali, mais próxima do que eu jamais
ousaria imaginar, ao lado de Frederik
Wrath.
A madrasta do Hades.
Passei as mãos sobre a cabeça,
emaranhando meus dedos por entre os
fios do cabelo.
Saltei de cima da cama com
urgência e alcancei o meu celular na
pequena cômoda ao lado da minha cama.
Os segundos voaram enquanto eu
procurava seu nome na lista de contatos.
Após iniciar a chamada, não
demorou para que eu ouvisse sua voz
trêmula. Pela primeira vez, após eu
tentar quase que diariamente nos últimos
meses, ela atendeu minha ligação.
— Passarinho?
Caí sentada sobre a cama,
completamente incrédula. Libby me
observava atentamente, como se eu fosse
desaparecer diante de seus olhos a
qualquer instante.
— Mãe… — Minha voz mal
saiu como um sussurro.
— Meu Deus, eu não pude
acreditar que era você mesma, bem na
minha frente, depois de todo esse
tempo…
Astrid — ou Amanda — falava
rápido, embolando as palavras numa
trama que me deixava zonza. Pisquei
algumas vezes, ainda em choque.
— O que você está fazendo
aqui? O que está fazendo com Frederik
Wrath? — Havia certo tom de acusação
em minha voz, mas não pude evitar.
Talvez aquela reação me
tornasse uma pessoa egoísta, mas eu me
sentia traída por minha própria mãe.
Porque ela havia me abandonado numa
casa cheia de traficantes e, enquanto eu
estava tentando sobreviver dia após dia,
ela estava aproveitando do luxo de ser a
próxima senhora Wrath.
— Ele me encontrou — Astrid
falou, sua voz não passava de um
soluço. — Me encontrou depois que eu
fugi de Dallas e prometeu que me
protegeria de Joel. Ele disse que iria te
salvar, meu pequeno passarinho…
— Bem, ele não fez isso. Eu me
salvei sozinha — rebati, repleta de
mágoa e ressentimento. — E mesmo
depois de tanto tempo você sequer
tentou ir até mim.
— Eu não sabia que você
estava em Carmine. Não soube até a
festa e mesmo depois disso eu tive
tanto medo. Frederik me mantém longe
de seus negócios, ele me vigia o tempo
todo. Meu bebê, eu sinto muito, muito
mesmo.
— Ele está te usando. Sempre
esteve. Você é a vingança de Frederik
Wrath.
Tudo parecia muito claro agora.
O pai de Hades estava se vingando de
Joel por ele ter engravidado Eve. Tudo
fazia sentido agora.
— Era a única maneira de eu
sobreviver, minha filha. Tente entender,
ele me ajudou a me desintoxicar. Estou
limpa há anos. E você está apaixonada
pelo filho de Frederik. Eu vi em seus
olhos naquela festa. Podemos ser uma
família de verdade, passarinho. Tudo
vai ficar bem agora.
Franzi o cenho, enojada.
— Ficou louca? Aquele homem
é tão ruim quanto Joel. Talvez pior.
— Você ama Hades ainda
assim, não é? Pode me culpar por amar
o pai dele?
— Hades não tem nada a ver
com Frederik! — eu estava gritando e
sequer percebi até aquele momento.
Meus olhos estavam cheio de lágrimas e
eu estava com tanta raiva.
Queria quebrar aquele quarto
inteiro e gritar até me sentir
completamente esgotada.
— Um dia você vai entender...
Desliguei na sua cara, deixando
o celular cair no chão em seguida.
Escondi o rosto com as mãos e
me permiti chorar.
— Raven… — Libby colocou
uma mão em meu ombro, tentando me
confortar, mas me afastei por instinto.
Senti minha cabeça e meu
coração doerem mais do que nunca.
Eu sempre havia fantasiado que
um dia encontraria minha mãe e que
seríamos uma família normal. Que
iríamos para bem longe de Dallas e de
homens como Joel. Agora eu estava
presa naquela teia, no fogo cruzado entre
McKinley e Wrath, e não podia mais
fingir que tudo ficaria bem. Minha mãe
não queria ser salva.
No fundo, ela sabia que estava
sendo usada e maltratada, sabia que seu
futuro marido não se importaria em me
esmagar com seu punho. Era óbvio que
ele adorava o poder e a glória, e era
capaz de vender o próprio filho em troca
de uma pilha de dólares. E, ainda assim,
Astrid não se importava com isso.
Minha mãe era viciada na dor
de amar homens que a odiavam.
Não saberia dizer quanto tempo
se passou comigo chorando de raiva,
abraçada aos meus joelhos. Libby tentou
se aproximar novamente e falar comigo,
entender o que estava acontecendo, mas
eu não queria falar.
Até que, de repente, senti um
cheiro familiar que instantaneamente
anestesiou a dor. Senti seu toque gentil
nas minhas costas e logo me virei em
sua direção, enlaçando seu pescoço com
meus braços.
— O que houve, amor? —
Hades perguntou baixinho em meu
ouvido, enquanto acariciava meus
cabelos. — Em quem eu devo bater por
fazer você chorar?
Sorri fraco contra seu pescoço.
Levantei o rosto alguns
centímetros, vendo Libby próxima à
porta. Sabia que ela havia o chamado e
estava grata por aquilo. Tentei transmitir
isso em meu olhar. Ela, por sua vez, deu
um sorriso acalentador e saiu,
provavelmente para nos dar um pouco
de privacidade.
Perto de Hades eu me sentia
capaz para enfrentar qualquer coisa, não
importava o quanto eu parecesse
pequena diante de todas as tragédias ao
meu redor. Ele fazia eu me sentir forte e
corajosa.
Me afastei para olhar nos seus
olhos e rapidamente ele levou sua mão
até meu rosto, secando as lágrimas que
rolavam pelas minhas bochechas. Então,
respirei fundo antes de dizer:
— Amanda Trammel é minha
mãe.
Hades franziu o cenho, confuso
e um pouco em choque. Contei a ele
sobre a foto que havia visto e a conversa
curta que tive com ela. Vi a raiva
invadir os poros dele, um a um.
— Frederik fez questão de que
eu visse minha mãe ali em seus braços.
Ele está usando nós duas para destruir
McKinley.
A maneira como ele me olhara
naquela festa era um aviso, uma ameaça
silenciosa. Agora eu percebia qual era
sua real intenção. Ainda assim, eu me
perguntava: por que ele nunca havia
chegado perto de mim? Se Frederik
queria nos usar, se ele estava com minha
mãe há anos, então sabia quem eu era.
Apesar disso, ele jamais fizera qualquer
movimento para tentar tirar de mim
alguma informação útil sobre seu
inimigo.
Por quê?
— Sádico desgraçado —
Hades cuspiu as palavras, trincando o
maxilar e passando os dedos pelos fios
escuros de seus cabelos.
Olhei em sua direção. Ele
parecia realmente surpreso com a
informação de quem sua madrasta
realmente era. Então Hades não estava a
par do plano de seu pai. Aquilo me
tranquilizou um pouco, mas também nos
arremessou no escuro. Não sabíamos
qual seria a próxima jogada de Frederik.
— No fim de tudo isso —
comecei a falar, atraindo sua atenção
para mim —, quando Joel e Garrett
caírem, vou me certificar de que
Frederik também irá.
Aquilo era um aviso. Hades
soube disso e, apesar do vinco de
preocupação entre suas sobrancelhas,
ele acenou com a cabeça, concordando.
Frederik entrou
permanentemente em minha lista. Queria
destruí-lo tanto quanto a Joel.
— Raven, eu sinto muito pela
sua mãe. Eu não fazia ideia…
Assenti, me levantando e
secando os últimos vestígios de
lágrimas salgadas do meu rosto.
— Precisamos recuperar o
Pandemônio. Tomar de volta a
vantagem.
Nos últimos dois dias após a
festa, passamos as tardes jogando
pôquer. Eu precisava treinar e estar
preparada para a disputa com Kamps,
que se aproximava cada vez mais. Ainda
assim, não importava o quanto eu
estudasse sobre o jogo, não parecia que
eu tinha qualquer chance vencer.
Hades se levantou também.
— Por isso nós vamos viajar
no próximo fim de semana.
Levantei uma sobrancelha,
confusa.
— Para onde?
— O melhor lugar para se
aprender a trapacear. — Ele fez uma
pausa antes de sorrir e anunciar:
— Las Vegas.
Tudo sobre você é magnético
Você realmente me pegou
agora
Você faz isso comigo tão bem
Hipnótico, tomando conta de
mim
Me faz sentir como outra
pessoa
Eu não quero voltar para
baixo
Hypnotic - Zella Day
Viajar pela estrada cercada pelo
deserto e o forte calor do sul me fazia
lembrar da amarga jornada que eu havia
feito para longe do Texas. Não era uma
boa memória. Entretanto, estar ali, no
banco do carona do Camaro de Hades,
não era nada parecido com isso. Eu
tinha as pernas cruzadas sobre o painel
enquanto embaralhava um grupo de
cartas em minhas mãos. Ao meu lado,
Wrath dirigia tranquilamente,
tamborilando os dedos repletos de anéis
prateados no volante, ao ritmo do rock
que tocava na rádio.
Um sorriso leve pairava nos
lábios de Hades, ele estava confortável,
talvez até feliz, em fazer aquela viagem.
Eu não estava muito diferente.
Era revigorante sair de
Carmine. Embora a situação lá não
estivesse boa, não havia nada que
pudéssemos fazer de imediato. Estava
sendo bom me afastar um pouco de toda
a situação com minha mãe, me
corroendo durante toda a última semana,
imersa num misto de tristeza, raiva,
decepção e incredulidade. Astrid fez eu
me sentir como uma tola e eu estava
desesperada para desviar meus
pensamentos dela.
Viajamos com a capota do
conversível abaixada, o Sol em nossas
cabeças e o vento balançando meus
cabelos. Mordi meu lábio inferior,
observando a tatuagem na lateral do
pescoço dele, atrás de sua orelha. Era
uma carta do rei de copas.
Muitos dos desenhos em sua
pele estavam expostos pela blusa preta
de mangas curtas e eu poderia ficar o
dia todo admirando-os.
— Certo, vamos de novo —
falei, voltando meus olhos para o
baralho em minhas mãos. Retirei uma
carta do meio, um cinco de espadas.
Mantive ela apenas para mim.
Hades virou seu rosto para a
carta em minhas mãos, olhando o dorso
dela por apenas um segundo, através dos
óculos escuros, antes de voltar a fitar a
pista.
— Cinco de espadas — ele
simplesmente adivinhou.
De novo.
Bufei alto, frustrada, abaixando
a carta e colocando-a de volta no monte.
Hades riu alto, arrogante com a sua
quarta vitória consecutiva. Eu tinha
encontrado aquele baralho quando
estava vasculhando o porta-luvas de seu
carro e ele havia garantido que poderia
adivinhar qualquer carta que eu retirasse
dali.
— Já chega, me diz como você
faz isso — perguntei, irritada.
Hades riu ainda mais.
— Um bom mágico nunca
revela seus segredos, amor.
Estreitei meus olhos em sua
direção.
— Mas você irá revelá-los
todos para mim, não é?
Minha voz saiu como o
ronronar de um felino manhoso, ao qual
Hades raramente podia resistir. Ele
deixara bem claro que eu era a exceção
de todas as suas regras.
Ele inclinou seu rosto
levemente para me olhar e, mesmo sem
poder ver seus olhos por detrás das
lentes escuras, eu sabia que havia um
brilho de malícia em suas íris. Hades
passou a língua sobre seu lábio inferior
antes de sorrir.
— As cartas são marcadas,
amor — revelou, apontando para o
dorso do baralho.
Franzi o cenho e peguei uma
delas, olhando para a parte de trás,
oposta a que continha o naipe. Era de um
preto fosco com estampas de arabescos
dourados que formavam desenhos
abstratos. Aparentemente eram todas
iguais, mas, analisando com mais
atenção, dava para perceber pequenas
diferenças entre elas. Levantei as
sobrancelhas, surpresa. Provavelmente,
Hades havia decorado todos os
padrões.
Sorri, impressionada.
— É assim que você sempre
vence no pôquer?
— Esse é apenas um dos muitos
truques que eu tenho.
Sua voz estava carregada de
duplo sentido, fazendo-me arrepiar
completamente. Engoli em seco,
voltando meu olhar para a estrada à
frente.
No instante seguinte, o toque
gelado da mão direita de Hades estava
na minha coxa esquerda, pálida e
descobertas pelos shorts jeans que eu
usava. Ele apenas deixou sua palma
repousando ali, a ponta dos dedos
roçando na parte interna da minha
perna.
Pigarreei, desviando o olhar
para as cartas em minha mão. Fingi
analisar os desenhos dourados
estampados ali quando, na verdade,
estava reunindo todo o meu
autocontrole. Porque o mero toque de
Hades já era o suficiente para me
desestabilizar e ele sabia muito bem
disso. O maldito estava se utilizando
dessa vantagem para me empurrar para
além das barreiras que eu tinha
imposto.
Tudo começara três dias atrás,
enquanto ele me beijava contra a estante
da seção de Direito Constitucional na
biblioteca. Me lembrei de quando o vi
ali, naquela mesma situação, com outra
garota meses atrás e um nó cresceu em
minha garganta.
— Não — eu dissera,
empurrando-o quando tudo o que eu
mais queria era tirar suas roupas bem
ali. — Não vou ceder a você fácil
assim, Wrath.
E Hades me olhara daquela
maneira capaz de enfraquecer os
joelhos.
— Quer apostar que vai? — ele
rebatera.
E, desde então, estávamos
jogando. Éramos ambos muito
orgulhosos e estava sendo uma disputa
acirrada: quem cederia primeiro e
perderia o controle. O que havia rendido
provocações muito divertidas, mas que
também estavam acabando comigo.
Hades estava se esforçando
para vencer e, muitas vezes, eu queria
jogar tudo pro alto e simplesmente
agarrá-lo.
Mesmo agora, o simples toque
de sua mão na minha perna, que poderia
parecer inocente num primeiro momento,
tinha um único propósito: me arrancar o
pouco controle que eu ainda tinha
naquela relação.
Então, quando eu pensava que
não podia piorar, ele subiu seus dedos,
arranhando levemente a parte interna das
minhas coxas em direção ao espaço
sensível entre as minhas pernas.
— O que você está fazendo? —
perguntei, num sopro rouco e patético.
Hades deu de ombros enquanto
seus dedos mergulhavam sob o tecido
folgado do jeans.
— Apenas me distraindo. Essas
viagens longas são bem entediantes.
Mordi o lábio inferior com
força e lutei contra a tentação de fechar
minhas pernas bem apertado. Hades era
um mestre naquele jogo e a minha
derrota parecia iminente — e muito
sedutora. Eu poderia apenas desatar os
cintos de segurança e subir em seu colo,
sentando sobre seu quadril.
Poderíamos fazer isso bem ali
no deserto, nenhum de nós dois teria
alguma objeção a fazer.
Mas eu queria vê-lo implorar.
Desejava que o sorriso arrogante em seu
rosto sumisse. E só então, após ele
declarar minha vitória, eu daria a ele o
que nós dois precisávamos
desesperadamente.
Havia muita teimosia dentro de
mim e eu mostraria a Hades que poderia
ser uma jogadora tão boa quanto ele.
Mordi um sorriso antes de dar
um suspiro demasiado dramático.
— Tem razão. Está muito calor
também — falei, colocando o baralho de
lado.
Enrolei meus dedos na barra da
regata branca que eu usava, puxando-a
para cima, tirando-a e arremessando-a
no banco de trás. Hades me olhou
chocado, flagrando o sutiã preto de
rendas que cobria meus seios. Quase
perdeu o controle do carro, que
escorregou para fora da pista em
direção ao deserto. Permaneci séria
quando desejava muito rir.
— Você também deveria se
livrar de todas essas roupas, amor. Está
muito mais fresco agora…
Hades sorriu, percebendo o que
eu estava fazendo, antes de recolher sua
mão de volta pro volante.
— Tão diabólica…
Sorri, olhando para a estrada.
Naquela rodada a vitória foi
minha.

Depois de quatro horas e meia


de uma viagem muito longa e divertida,
chegamos no Scarlet Heaven, o hotel
cassino que iria nos hospedar pelo fim
de semana. Era um prédio alto e
prateado, com enormes janelas e uma
grande entrada luxuosa, com seguranças
flanqueando a porta de vidro diante da
qual se estendia um longo tapete
vermelho.
O Sol já estava se pondo
quando saltamos do Camaro e Hades
cumprimentou o manobrista como a um
velho amigo, arremessando-lhe a chave
do carro com um sorriso descontraído.
O homem apanhou-as no ar antes de
assobiar impressionado com o Camaro.
— Cada vez que vem aqui você
está com um carro mais caro que o
anterior, Wrath. Suponho que na próxima
vai ser uma nave espacial? — brincou
ele.
Hades apenas riu, estendendo
um braço atrás do meu pescoço,
colocando-o sobre meu ombro e me
guiando para o interior do hotel.
O lugar inteiro era puro luxo,
mas ninguém franziu o nariz para as
roupas informais e comuns que Hades e
eu usávamos e que destoavam de todo o
resto dos hóspedes. Aparentemente,
Hades Wrath era muito bem conhecido
em Las Vegas.
— Já esteve aqui antes, então?
— perguntei, enquanto atravessávamos o
hall do hotel.
— Poucas vezes. — Deu de
ombros. — Gosto de jogos e apostas.
Dei uma espiadela na grande
área do cassino enquanto esperávamos o
elevador para subir até nosso
quarto. Ainda não estava completamente
cheio, visto que era apenas o início da
noite, mas já havia algumas pessoas ali,
imersas em jogatina. A ausência
completa de janelas favorecia a perda
da noção do tempo — e do dinheiro —
ali dentro.
Quando subimos até nossa
suíte, no último andar do enorme prédio,
eu mal pude acreditar em todo o luxo
que compunha o lugar. Conseguia ver
meu reflexo no chão de mármore preto.
Havia um bar cheio de garrafas e taças
de cristal à esquerda, próxima de uma
mesa de sinuca vermelha. A televisão
ocupava quase que uma parede inteira.
As enormes janelas que iam até o teto
davam uma visão privilegiada dos
arranha-céus da Las Vegas Strip.
Eu estava verdadeiramente
impressionada.
Senti Hades se aproximar de
mim por trás, sua respiração quente na
minha nuca exposta pelo coque, no qual
meus cabelos estavam amarrados de
maneira precária.
— Suíte Royale, amor —
Hades sussurrou, no pé do meu ouvido,
como uma promessa.
Fechei os olhos por um
instante, o arrepio da expectativa me
consumindo.
Em seguida, fugi.
Praticamente, corri até as
escadas que levavam ao quarto no andar
de cima — não sem antes ouvir um
risinho satisfeito de Hades — e me
tranquei no banheiro.
Passei a próxima hora me
arrumando, após um longo e gelado
banho na ducha surreal que havia no
banheiro. Depois de pronta, me encarei
nos amplos espelhos iluminados por
LED ao redor. Meus lábios estavam
pintados de vermelho, da mesma cor do
vestido que abraçava meu corpo. Os
cabelos estavam soltos em ondas até o
meio das minhas costas, combinando
com a maquiagem escura em meus olhos.
Sandálias de salto abraçavam meus pés,
elevando-me alguns centímetros acima
do chão.
Eu estava mais nervosa do que
gostaria quando saí do quarto e desci as
escadas. Hades estava parado encarando
a paisagem através das janelas, as mãos
nos bolsos do seu terno, completamente
preto. Lá fora o céu já havia sido
engolido pela escuridão da noite.
Quando ele se virou para mim, tive o
vislumbre da tatuagem em seu peito, que
aparecia pela pequena fenda dos dois
primeiros botões soltos da camisa.
O medi dos pés à cabeça,
mordendo o interior da bochecha para
conter o que eu havia passado a chamar
de "efeito Wrath". Desejando provocá-
lo, fingi mal tê-lo notado. Ergui o queixo
e andei direto para a porta, segurando a
bolsa clutch prateada em minhas mãos.
Hades não demorou a me seguir,
parecendo curioso e um pouco
contrariado.
Enquanto estávamos no
elevador rodeado por espelhos, ele
falou:
— Soube que a banheira lá de
cima tem efeitos afrodisíacos.
Estalei a língua antes de me
virar para olhá-lo.
— Vou experimentar mais tarde
e depois te conto se os boatos são reais.
Hades riu, mas bastou fitá-lo
por um par de segundos para que eu
percebesse que ele estava imaginando a
cena em sua mente. Após as portas se
abrirem, ele me estendeu seu braço
curvado, no qual entrelacei o meu, e
caminhamos lado a lado. Descemos as
escadas para o cassino e eu varri meus
olhos pelo lugar, querendo captar tudo.
Havia um grande bar em
formato circular no centro do salão. Ao
redor estavam todas as mesas de jogos e
as máquinas caça-níqueis nas paredes
prateadas. Enormes lustres de cristais
estavam sobre nossas cabeças e
garçonetes desfilavam em saltos ainda
mais altos que os meus, equilibrando
bandejas cheias de coquetéis. Senti certa
inveja de sua destreza.
Eu nunca estivera em Las
Vegas, mas todo o clima daquele lugar
era familiar. Depois de Dallas e do
Pandemônio, aquele ambiente se tornara
comum para mim. Na verdade, aquelas
pessoas ali, extasiadas em perder e
ganhar dinheiro, pareciam exatamente
iguais àquelas que frequentavam o
cassino clandestino de Hades.
— Todos os cassinos são iguais
— Hades falou, enquanto me guiava até
uma mesa mais alta, pequena e vazia
perto do bar. — Tudo aqui é feito
apenas para beneficiar os donos do
hotel. Está vendo aquelas mulheres? —
Ele acenou com a cabeça na direção de
duas garotas altas e belas. Uma delas
estava sentada na mesa de pôquer e a
outra na de Blackjack. Assenti. — Elas
parecem estar bêbadas, mas só
consumiram soda a noite toda.
— Como você sabe? —
perguntei, me sentando na mesa à sua
frente. Ele cruzou as mãos sobre a
superfície, sorrindo.
— Porque elas trabalham para
o cassino e sua função é aumentar as
apostas da mesa. É o que Selina fazia no
Pandemônio.
Levantei as sobrancelhas,
surpresa.
— E você deduziu isso apenas
observando? — Havia muito ceticismo
em minha voz.
— É possível descobrir mais
coisas do que se imagina apenas
observando as pessoas — respondeu
Hades antes de interceptar uma
garçonete e apanhar dois martinis. Em
seguida, deslizou um deles na mesa em
minha direção.
— Certo, e o que mais você
pode descobrir olhando ao redor? —
Desafiei, tacitamente. Hades deu um
sorrisinho arrogante, cruzando os braços
sobre a mesa. Ele olhou ao redor.
Aceitei de bom grado a
pequena dose de álcool ao bebericar do
meu drink, mantendo minha atenção em
Hades. Seus olhos sombrios e analíticos
perscrutaram cada canto do cassino que
nos cercava. Poderia parecer
despretensioso para alguém de fora, mas
só porque ele sabia fingir muito bem.
Quando encontrou algo, após alguns
minutos, sorriu e meneou a cabeça
naquela direção.
— Mesa número 6 de
Blackjack — falou. Rapidamente a
localizei, era a mais próxima de nós.
— Parece igual às outras, para
mim. — Dei de ombros, fitando os
jogadores em seus trajes de gala.
— Parece, não é? Mas o dealer
[vii]
está favorecendo o apostador da
direita. Está separando as cartas do
baralho enquanto os outros jogadores
estão distraídos e dando as melhores
para seu comparsa.
Arregalei os olhos, mantendo-
os vidrado no homem alto e careca
vestido de terno atrás da mesa. Ele
representava a banca e distribuía as
cartas para os jogadores. Se Hades
estivesse certo, então ele estava
roubando o cassino. Captei um
movimento tão imperceptível que, por
um segundo, pensei estar imaginando. O
dealer inclinou levemente a última carta
do monte na direção do jogador da
direita, que trajava um terno dourado e
estampado nada discreto. Continuei
observando e mal acreditei quando o
dealer alterou a ordem das cartas no
baralho, colocando a que estava por
último no topo e colocando-a na frente
de seu parceiro quando chegou na vez
dele.
A coisa toda durou menos de
um segundo.
— O baralho exige mãos leves
e rápidas — Hades explicou e eu voltei
a me virar para ele.
— Um trapaceiro reconhece o
outro. — Estreitei meus olhos para ele.
Hades sorriu.
— Trapacear em jogos de
cartas é uma arte sutil.
— Você manipula as corridas
no Círculo e os jogos no Pandemônio.
Faz os apostadores acreditarem que
podem ganhar, apenas para arrancar seu
dinheiro.
— Eles são tolos se não
percebem o que estou fazendo. — Hades
deu de ombros. — Isso é o que todos os
cassinos fazem, afinal. A ausência de
janelas, as cores, as músicas, as
bebidas… tudo é milimetricamente
calculado para que os jogadores se
sintam confiantes para fazer apostas bem
altas. No fim da noite, eles saem após
ganhar em fichas menos dinheiro do que
apostaram no começo e mesmo assim
estão felizes.
— Connor foi banido de entrar
em vários cassinos aqui em Las Vegas
por trapacear nos jogos. Afinal, como
você disse, a banca não aceita perder
dinheiro.
— Contar cartas é mais fácil do
que se imagina — falou ele. — No
Texas Hold’em utiliza-se o mesmo
conceito do Blackjack: deve-se
acompanhar as cartas que continuam no
baralho e calcular as probabilidades. É
mais fácil se decorar quantas
possibilidades são para cada mão, mas
ainda assim terá que usar uma regra de
multiplicação para cada momento em
que…
— Ei, calma aí, nerd — o
interrompi, ficando zonza com tanta
informação. — Não há um jeito mais
fácil de trapacear? Se eu tiver que fazer
cálculos no meio da minha partida de
pôquer com o Kamps, então já posso
decretar minha derrota.
Hades deu uma risada nasalada.
— Bem, você pode utilizar de
distração e ilusão para alterar o baralho.
— Mordi o interior da bochecha,
pensando a respeito. Não seria fácil
enganar Connor Kamps, ele era o mestre
da trapaça. — Como eu disse, bons
trapaceiros têm mãos leves e rápidas,
mas também sabem manipular. Tem que
saber jogar com o seu rival e blefar
muito bem… — Hades fez uma pausa e
olhou ao redor por um instante. Depois,
se levantou. — Venha, vou demonstrar
na prática.
Então, ele apanhou uma carteira
de couro do bolso de sua calça, tirando
de lá duas notas de cem dólares e dando
uma delas para mim. Em seguida, me
guiou pela mão até o balcão onde
poderíamos trocar o dinheiro pelas
fichas. Após recebermos nossa moeda
de troca do cassino, seguimos até uma
mesa de Texas Hold’em com apostas
mínimas de cem.
Observar Hades Wrath jogar
pôquer era como assistir a um show
exclusivo dos Beatles ou algo
igualmente fascinante. Ele calculava
todos os seus movimentos e mantinha o
rosto frio e impassível, mesmo fazendo
apostas altas, enquanto os outros
jogadores se desestabilizavam com as
mãos ruins que tiravam. Depois que ele
ganhou com um Straight Flush[viii],
partimos para a mesa de Blackjack,
onde Hades venceu diversas rodadas
decorando as cartas da mesa.
No fim da noite, saímos do
cassino com mais fichas do que
podíamos carregar.
Adoro o seu corpo enquanto
você anda em minha direção
Você é o único que pode me
fazer rezar
Beba minhas lágrimas, estou à
sua mercê
Eu vou dar a minha alma,
sacrifique-me
Porque seu amor é sagrado
É sagrado
Holy - Zolita
Me inclinei sobre a mesa de
sinuca da Suíte Royale, rindo.
— Pensei que aquele homem
fosse te dar um soco — comentei.
Estreitei os olhos, analisando a
posição da bola número 10,
perigosamente próxima de um dos
vértices da mesa. Era a penúltima que
ainda não havia sido encaçapada, mas
eu estava prestes a mudar aquilo.
Antes que eu pudesse fazer a
tacada, entretanto, Hades se debruçou do
outro lado da mesa, atraindo minha
atenção. Seus olhos estavam fixos em
mim e ele sorria como se escondesse
intenções perversas. Apoiou os
antebraços na borda da mesa e
semicerrou os cílios enquanto me
escrutinava.
Levantei uma sobrancelha.
— Tentando me distrair,
Wrath?
— Acha que eu faria isso,
amor?
Ri nasalado.
Voltei meu olhar para as bolas
na mesa, segurando o taco com mais
firmeza e colidindo com sua
extremidade contra a pequena esfera
branca, que rolou e fez seu caminho em
direção à azul, empurrando-a para o
buraco.
Aquele jogo de bilhar estava
tão intenso quanto uma guerra. Eu sentia
a tensão sexual no ar, ficando mais
evidente a cada movimento de Hades.
Passei a língua pelo lábio
inferior, sorrindo com a minha vitória
iminente, e dei a volta na mesa, indo até
à última bola. Eu estava descalça, mas
ainda de vestido. Mal notava o frio do
mármore contra minhas solas, só
conseguia sentir o calor de compartilhar
o mesmo ambiente que Hades.
— Você é muito boa nisso —
ele soprou, admirado, observando eu me
aproximar e me postar no espaço entre
ele e a mesa.
Me inclinei, erguendo meus
quadris e curvando as costas, como se
estivesse apenas tentando encontrar o
ângulo perfeito para minha jogada. Esse
movimento fez minha bunda roçar na
pélvis de Hades, que estava estático
bem atrás de mim. Senti sua respiração
mudar, se tornando mais pesada.
Nós dois parecíamos muito
como dinamites prestes a explodir
naquele momento.
— Está tendo uma boa visão
daí? — ele perguntou, sarcástico. Sorri,
mordendo o lábio inferior.
— Sim, está perfeito.
Antes que eu pudesse fazer o
movimento, o taco foi arrancado da
minha mão e eu fui virada de maneira
brusca, minha lombar batendo contra a
borda da mesa. Meus olhos se
arregalaram em surpresa.
— Não terminei de jogar —
argumentei, em tom de represália.
— Mas eu sim.
Em seguida, ele me beijou. Na
verdade, atacou seria a palavra mais
apropriada. Seus lábios me consumiram
como chamas quentes, selvagens e
sedentas. Hades estava me
reivindicando, sua língua parecia travar
uma batalha acirrada contra a minha.
Contrariando meus próprios
instintos, espalmei uma mão em seu
peito, empurrando-o.
— Hades…
Meu orgulho estava brigando
comigo, porque eu não queria ceder.
Não queria desmontar toda vez que ele
me tocasse, mas parecia quase
inevitável.
— Você venceu — ele
sussurrou contra a pele do meu pescoço,
entre beijos molhados que distribuía ali
e em todo o caminho até meu ouvido. —
Não me importo de perder pra você.
Ofeguei, puxando seu rosto na
direção do meu e colando nossos lábios
novamente. Hades fixou as mãos em
minha cintura e me levantou, sentando-
me na borda da mesa e se colocando
entre minhas pernas. Cruzei os
tornozelos atrás das costas dele,
aproximando ainda mais os nossos
corpos.
Seus beijos eram molhados e
urgentes, acendendo cada parte do meu
corpo. Arranhei sua nuca e deslizei
meus dedos para seu cabelo,
emaranhando-os em seus fios pretos.
Senti uma das mãos de Hades apertar
minha cintura enquanto a outra
explorava a lateral da minha coxa sob o
vestido.
Meu coração batia muito
acelerado em meu peito. Quando eu
beijava Hades, sentindo seu toque, seu
cheiro e o gosto de sua boca, o mundo lá
fora saía de foco. Não havia nada além
de nós dois, nada além daquele
momento.
Ele se distanciou e me olhou
com chamas queimando em seus olhos.
Me deitou na mesa, de modo que minha
cabeça repousasse contra o tecido
vermelho que a forrava. Então, Hades
deu um passo para trás, me fitando por
completo. Meu peito subia e descia com
minha respiração urgente. Eu estava com
pressa, quase desesperada, e ele notou
isso, passando a deslizar muito
lentamente a ponta dos dedos na área
interna das minhas coxas.
Observei ele tomar seu tempo
ao levantar a saia do vestido, expondo
cada vez mais a minha pele até encontrar
a fina calcinha preta que eu usava. Ele
sorriu com o canto de seus lábios e
enroscou seu dedo na tira da lateral do
tecido. Começou a retirá-la, deslizando
vagarosamente pelas minhas pernas até
arrancá-la completamente. Em seguida,
Hades se abaixou, curvando-se sobre
mim antes de me puxar mais para a
borda, colocando minhas pernas sobre
seus ombros.
Senti seu hálito no interior da
minha coxa primeiro, logo depois ele
mordiscou a pele ali, fazendo uma
descarga elétrica percorrer meu corpo
inteiro. Meus olhos se reviraram e eu
gemi baixinho quando ele começou a
lamber, de maneira lenta e torturante,
todo o caminho em direção à minha
virilha. Sua língua logo encontrou a
região entre minhas pernas e ele me
abocanhou. Minhas costas se curvaram e
o ar escapou de meus pulmões, fazendo
com que Hades colocasse a mão
espalmada em minha barriga,
pressionando-a contra a mesa para me
manter no lugar.
Um gemido contido escapou
pelos meus lábios quando eu senti sua
boca se fechar ao redor do meu clitóris
inchado e sugar. Me segurei nas bordas
da mesa, ansiosa pela libertação da
pressão que crescia cada vez mais no
meu ventre. De repente, ele se afastou e
deslizou seus dedos médio e anelar para
dentro de mim. Minha boca se abriu com
a surpresa, mas meus olhos
permaneceram fechados quando Hades
beijou meu pescoço, sem parar de
movimentar os dedos em meu interior.
— Quero te ouvir gemer, amor
— sussurrou, e depois se abaixou,
voltando a me chupar.
Eu obedeci.
Me permiti libertar os gemidos
e grunhidos que eu vinha segurando
avidamente até então.
Com a outra mão, Hades
segurava firmemente minha coxa,
abrindo-me para que ele pudesse me
engolir, como se eu fosse sua refeição
favorita.
— Hades — gemi, quando os
espasmos do orgasmo começaram.
Fechei os olhos e mordi o lábio
inferior com força para conter um grito
quando os movimentos de Hades se
intensificaram. Eu o senti passar a língua
por toda a minha extensão enquanto meu
corpo ainda tremia.
Eu estava ofegante e com os
músculos fracos quando Hades se
distanciou. Abri os olhos levemente,
ainda me recuperando da sensação
arrebatadora que havia me acometido.
Assisti ele lamber os resquícios do meu
orgasmo de seus dedos, com os olhos
fechados em deleite e satisfação.
Quando terminou, veio até mim.
— Você é deliciosa, amor —
soprou, levantando-me e colocando-me
novamente sentada na borda da mesa. —
A porra da melhor coisa que já provei.
Não esperei para colar nossos
lábios novamente. Eu estava faminta e
precisava dele. Puxei sua camisa de
maneira bruta, colando nossos corpos, e
abracei sua cintura com minhas pernas,
esfregando minha pélvis contra a dele.
Hades sorriu contra a minha boca. O
cretino gostava de ver o que fazia
comigo, de como era capaz de me levar
a um estado selvagem e irracional.
— Minha garota safada —
sussurrou em meu ouvido, antes de
morder minha orelha e me pegar em seu
colo.
Com uma das mãos em meu
rosto e a outra em minha bunda, ele
caminhou sem dificuldade em direção às
escadas. Na metade do caminho,
entretanto, sobre os degraus, voltei a
beijá-lo. Eu era uma chama
incontrolável e ele era puro
combustível, me inflamando com cada
toque.
Segurei em seus ombros quando
ele me pressionou contra a parede.
Levantei a cabeça, ofegante, e os lábios
de Hades encontraram meu pescoço. Ele
beijou minha garganta e eu percebi que
não era suficiente tocá-lo sobre a
camisa. Eu precisava sentir sua pele. Os
botões voaram quando eu a abri à força,
descendo as mãos sobre o desenho da
caveira em seu peito, subindo em
direção ao ombro.
Hades não esperou mais, me
apertou com firmeza em seu braço e
terminou de subir o lance de escadas.
Logo chegamos ao quarto. A incrível e
luxuosa suíte com a qual antes eu
poderia apenas sonhar.
Ele me colocou no chão aos pés
da enorme cama e me virou de costas
para si, afastando o cabelo do seu
caminho para deslizar o zíper do
vestido. Hades, entretanto, perdeu a
paciência quando chegou na metade, de
modo que apenas rasgou o resto. O
tecido macio caiu sobre meus pés, me
deixando completamente nua.
Segurando em minha cintura,
ele me manteve de costas para si,
pressionando-me contra seu corpo para
que eu sentisse o volume rígido contra
minhas costas. Hades puxou meu cabelo,
deitando minha cabeça contra seu
ombro. Sua outra mão traçou minha
cintura, e logo seus dedos encontraram
novamente meu núcleo quente e úmido.
— Você tem ideia — sussurrou
ele ao pé do meu ouvido. Fechei os
olhos, sentindo minhas pernas fracas
enquanto ele massageava meu clitóris.
— Do quanto eu imaginei esse
momento?
Seus dedos se enterraram entre
minhas dobras, afundando-se em mim.
— Hades… — sussurrei, com
minha voz afetada pelas suas carícias.
Céus, eu realmente estava prestes a
implorar.
— Eu ficava pensando, amor,
no que precisaria fazer para você gemer
meu nome assim.
Apertei minhas pálpebras. Se
não fosse por Hades sustentando todo
meu corpo naquele momento, sem
dúvidas, eu teria desabado. Minha boca
estava seca, necessitando do seu gosto
em minha língua.
Wrath me virou bruscamente
para si e eu fiquei feliz ao perceber que
ele estava perdendo o controle, tanto
quanto eu. Eu não aguentava mais de
ansiedade.
Ele segurou meu maxilar com
uma das mãos antes de descer seu
polegar para meus lábios e, em seguida,
para dentro da minha boca. Abri meus
olhos apenas para encontrar suas íris
mais escuras do que eu jamais havia
visto.
Fiz o que ele queria e chupei
seu dedo, lentamente, provocando-o
tanto quanto ele fazia comigo.
Alguns segundos depois, Hades
recolheu sua mão para tirar o cinto de
sua calça, jogando-o longe no chão. O
observei abaixar suas calças, depois se
livrar da camisa que se encontrava
aberta em seu torso. Ele caminhou até
mim após isso como um predador,
apreciando cada segundo da caçada
antes de abater sua presa por completo.
Andei para trás, me sentando sobre a
beira da cama e esperando. Assim que
me alcançou, ele me deitou sobre o
colchão, puxando-me para cima para
que minha cabeça encontrasse os
travesseiros.
Hades deitou-se por cima de
mim e eu envolvi seu pescoço com meus
braços, puxando-o para meus lábios.
Queria sufocar em sua boca quantas
vezes fosse possível. Seus dedos
tatearam minhas costelas e subiram pela
minha barriga até que encontraram meus
seios. Ele beliscou um mamilo rígido e
dolorido antes de descer sua boca em
beijos molhados pelo meu colo e
colocá-lo entre seus lábios, sugando-os.
Enterrei minhas unhas em suas costas,
soltando um grunhido sôfrego. Eu não
podia mais aguentar.
Puxei-o de volta para minha
boca num beijo lento, na tentativa de
acalmar a tempestade que rugia dentro
de mim.
— Eu quis você desde a
primeira vez que te vi — confessei entre
seus lábios. — Eu te quero tanto que
dói.
Hades se afastou para olhar em
meus olhos. Ele acariciou minha
bochecha com seu polegar. As chamas
ensandecidas haviam desaparecido de
sua íris. Havia calidez, sim, mas também
havia carinho. E talvez algo mais.
Hades estava ajoelhado entre
minhas pernas. Entre mim e meu alívio
havia o tecido de sua boxer preta. Ele
não provocou mais, se esticou até sua
carteira sobre a mesa de cabeceira e
tirou um preservativo de lá. Sorri,
ficando de joelhos também. Sentei-me
sobre os tornozelos e arranquei o
pequeno pacote de suas mãos. O abri
lentamente enquanto Hades me assistia
sob seus longos cílios escuros. Ele
retirou sua cueca e eu passei a língua
sobre os lábios, observando e
admirando a cena que, literalmente,
poderia me colocar de joelhos. Apesar
de querer muito tê-lo em minha boca, eu
precisava ainda mais dele dentro de
mim, e não podia esperar nem mais um
segundo.
Desenrolei o preservativo
sobre seu pau e fiz questão de tornar o
processo muito torturante para ele. Eu
mal tinha terminado quando Hades me
empurrou, jogando-me de volta no
colchão e cobrindo-me com seu corpo,
colocando minhas pernas ao redor de
seu quadril. Uma de suas mãos estava
em meu pescoço e a outra segurava
firme na cabeceira da cama quando eu o
senti raspar contra minha entrada
Ele entrou lentamente em mim,
encontrando alguma resistência que só
parecia deixá-lo ainda mais fora do
controle. Sua testa estava franzida e seus
olhos estavam fechados. Gemidos
escapavam da minha garganta a cada
centímetro que sua enorme extensão
dilatava meu interior, forçando-se para
caber todo.
Hades ficou alguns segundos
imóvel, apenas para que nos
acostumássemos com aquela sensação.
Eu ofegava ainda mais, buscando todo o
ar que podia ter. Wrath abriu os olhos e
me fitou, dando um de seus meio-
sorrisos. Aproximou sua boca da minha,
prendendo meu lábio inferior entre seus
dentes antes de puxar. Arranhei suas
costas, ansiando para que ele se
movesse dentro de mim.
Ele levou o rosto até a minha
orelha
— Você tem o inferno entre
suas pernas, amor.
E então ele saiu e entrou de
dentro de mim, forte e duro o suficiente
para me arrancar um grito. Ele não
parou, porém. Hades me fodeu
intensamente, como se ambos fôssemos
sumir a qualquer instante. Eu me
segurava em seus ombros, incapaz de
fazer outra coisa além de me entregar a
ele. Seu quadril batia contra o meu
violentamente, porque estávamos além
de qualquer limite naquele momento.
Sua mão escorregou para longe
da cabeceira da cama e encontrou a
minha, entrelaçando nossos dedos antes
de prendê-la contra o colchão acima da
minha cabeça. Enquanto isso, a outra
permanecia em volta do meu pescoço,
nossas línguas enroladas num beijo
profundo. As pontas dos meus seios
deslizavam contra o seu peito rígido e
tatuado, numa fricção enlouquecedora.
Nossos corpos quentes e suados estavam
totalmente em sincronia, completando
um ao outro.
Sorri entre seus lábios,
afundando minhas unhas ainda mais na
carne de suas costas e fechando os
olhos. Eu conseguia sentir o cheiro do
suor e do seu perfume, que se tornara
mais do que familiar para mim. Eu
sentia o cheiro da luxúria que nos
abraçava, do desejo e do prazer que
percorria cada veia sob minha pele. Os
sons eram como música, preenchendo o
quarto e ecoando na minha mente. Era
sujo e real. Sagrado e, ao mesmo tempo,
pecaminoso.
Era como se o céu e o inferno
colidissem.
Hades segurou minha perna,
colocando-a sobre seu ombro para que
atingisse tão fundo quanto o possível.
Gemi alto, sentindo-o cavar
profundamente dentro de mim. Ele me
calou com sua língua e eu decidi que não
era o suficiente. Movi meu quadril no
mesmo ritmo que o dele, insaciável.
Hades deixou escapar um grunhido
rouco e gutural de sua garganta. Ele
metia em mim até a base, tão firme que
acendia cada parte do meu corpo.
— Hades — clamei, sentindo
meu coração prestes a explodir em meu
peito.
— Diz meu nome de novo —
ordenou com a voz firme ao pé do meu
ouvido, logo após morder meu pescoço.
Eu obedeci, sentindo o gosto incrível
daquela palavra em minha língua.
— Hades.
A cada vez que eu repetia seu
nome, mais duro ele me fodia. Uma vez
após a outra. Pensei que não havia como
aquele sexo não deixar marcas, tanto no
meu corpo quanto na minha alma.
Eu estava tão perto de me
desfazer e bastou que os dentes de
Hades se fechassem no meu pescoço,
prendendo a pele da minha garganta,
para que eu atingisse o ápice. Senti-me
contraindo ao seu redor e fechei os
olhos bem apertado, deixando meu
corpo ser tomado pelo mais puro êxtase
e gritar livremente seu nome. Logo em
seguida eu senti o corpo dele tremer
com os espasmos de seu próprio
orgasmo. Hades me segurou mais firme
contra si, dando um suspiro de alívio ao
arremeter contra mim uma última vez.
Ambos estávamos suados,
completamente rendidos um ao outro.
Hades estava ofegante. Ele não
saiu de dentro de mim imediatamente.
Deixou-se cair sobre meu peito,
abraçando meu corpo como se fosse um
tesouro. Acariciei seus cabelos,
enrolando os fios úmidos de suor ao
redor dos meus dedos.
O único som restante era do
ritmo alto e rápido de nossas
respirações. Nada poderia nos atingir
naquele momento. Estávamos ambos
presos em nosso próprio mundo, nosso
reino.
Fechei os olhos, um sorriso
crescendo em meu rosto. Meu corpo
estava mole e cansado e eu me deixei
ceder àquele tipo de vulnerabilidade.
Porque não havia lugar mais seguro para
mim do que nos braços de Hades Wrath.
É você, é você, é tudo para
você
Tudo o que faço, eu digo a
você o tempo todo
O paraíso é um lugar na terra
com você
Me diga todas as coisas que
você quer fazer
É melhor do que eu já
imaginei
Eles dizem que o mundo foi
feito para dois
Só vale a pena viver se alguém
Está amando você
Video Games - Lana Del Rey

Eu estava feliz como há muito


tempo não ficava.
E tinha tudo a ver com o homem
sobre o qual eu estava deitada. Com a
cabeça contra seu peito, eu podia ouvir
o ritmo tranquilo de seu coração, o que
era como ouvir o som da própria paz.
Com a ponta dos dedos tracei os
desenhos que se espalhavam sobre a
pele do seu torso. Dedilhei as palavras
“Sem Remorso” em suas costelas antes
de deslizar para os músculos esculpidos
em sua barriga. Minha boca salivou
quando senti seu abdome rígido sob
minha mão e eu inclinei o rosto para
observar o resto do corpo dele.
O lençol com o qual nos
cobrimos para dormir estava enrolado
entre nossas pernas, escondendo
parcialmente a nudez de Hades da
cintura para baixo. Ainda assim, eu
podia admirar a trilha de pelos que se
estendia abaixo do umbigo dele,
sumindo sob o fino tecido de cor pérola,
e as entradas nas laterais de seus
quadris.
Mordi um sorriso ao subir
minha mão pelos músculos trincados de
seu abdome em direção ao seu peito.
Então, ergui a cabeça para poder olhar
no rosto dele. Hades estava meio
reclinado contra a cabeceira da cama,
com um braço dobrado atrás da cabeça.
Seus olhos estavam fechados, mas eu
sabia que ele não estava dormindo.
Apenas se encontrava completamente
relaxado, aproveitando as últimas horas
que tínhamos naquele santuário antes de
voltarmos para o caos de Carmine. Os
traços de seu rosto estavam tão
tranquilos, livres de qualquer
preocupação.
Sorri, pensando em como ele
parecia diferente do Hades gângster com
o qual eu havia me familiarizado. Ali, nu
e envolto em lençóis brancos, ele
adquiriu uma aparência quase angelical.
Desci meu olhar por seu
pescoço e ombros. Foi quando algo
chamou minha atenção. Bem abaixo do
osso da clavícula havia uma cicatriz.
Não era grande, talvez uns três ou quatro
centímetros. Tracei sua extensão com o
polegar e Hades imediatamente
despertou. Seus olhos se abriram e suas
densas íris me encontraram, fitando-me
intensamente por alguns segundos.
— Como conseguiu essa
cicatriz? — perguntei, curiosa, apoiando
minha cabeça na minha mão enquanto
analisava seu rosto.
Havia um vinco em sua testa e
eu percebi que o assunto lhe
incomodava. Ele colocou a mão sobre a
minha, que ainda tocava sua pele.
— Não foi nada —
desconversou, fazendo menção de se
levantar da cama. O impedi, levando
minha mão até seu rosto e virando-o
gentilmente para que me olhasse.
Agora era ele quem estava
querendo fugir.
— Concordou em não manter
segredos de mim — falei, franzindo o
cenho.
— Eu não tive muita escolha,
não é? — rebateu, me fazendo sorrir.
Levantei uma sobrancelha, incentivando-
o a continuar e Hades suspirou,
endireitando sua postura de modo a ficar
sentado. — Foi o meu pai.
Meus ombros caíram e eu
percebi quando ele desviou os olhos
para o outro lado do quarto.
Ele estava envergonhado.
Eu nunca havia visto Hades
Wrath assim tão vulnerável, nem mesmo
quando estava em prantos pelo incêndio
na galeria de sua mãe. Algo me dizia
que ele nunca ficara tão exposto para
outra pessoa.
— O que ele fez com você? —
Perguntei, com a voz trêmula.
— Ele costumava me bater com
seu cinto.
Fechei os olhos, sentindo meu
corpo se arrepiar com a cena que surgiu
em minha mente.
Nada podia tornar um homem
mais monstruoso do que o prazer em
fazer o próprio filho sofrer.
— Hades…
— Já faz muito tempo — ele
me interrompeu antes de se virar,
colocando as pernas para fora da cama e
se levantando. — O dia em que ganhei a
cicatriz marcou a última vez que ele me
surrou.
Observei Hades recolher as
roupas do chão e fazer seu caminho em
direção ao banheiro.
Mas eu não iria deixá-lo se
afastar novamente.
Saltei da cama e o segui.
— Hades, espera. — Segurei
seu braço e ele finalmente me encarou
de volta. — Isso não te torna fraco.
Seu rosto parecia consternado.
O cenho franzido e os olhos me
perscrutando de cima. Muita coisa se
passava na mente e no coração de
Hades. Coisas que talvez estivessem
muito além da minha ciência e
compreensão.
Pousei minha mão sobre sua
bochecha e me coloquei na ponta dos
pés, diminuindo nossa diferença de
altura e embalando-o em meus braços.
Eu gostava de sentir seu calor contra
mim. Pele com pele.
— Sinto muito — soprei,
aninhando meu rosto na curva de seu
pescoço, sentindo seu perfume
masculino.
Fiquei aflita com o pensamento
de Hades e Nick sofrendo nas mãos de
Frederik. Era terrível imaginá-los
jovens e indefesos, sendo alvos de
surras tão violentas.
— Não permito mais que meu
pai tenha poder sobre mim e você é o
motivo disso — Hades falou em meu
ouvido e eu o abracei mais forte,
acariciando seus cabelos.
Ele passou os dedos ao longo
das minhas costas nuas antes de se
afastar para depositar um beijo terno
sobre meus lábios.
— Agora, o que acha de
testarmos a hidromassagem afrodisíaca?
— sussurrou, com malícia, descendo sua
mão para apertar a minha bunda.
Ri, incapaz de negar. Dois
toques na porta lá em baixo soaram, me
impedindo de seguir Hades para dentro
do banheiro.
— Deve ser o serviço de
quarto — comentei, um pouco frustrada,
e me distanciei para apanhar o roupão
pendurado ali. — Vou pegar nosso café
da manhã.
Hades me olhou com manha e
eu passei a língua pelo meu lábio
inferior, analisando seu corpo nu sob a
soleira da porta do banheiro. As lindas
tatuagens desenhadas sobre todos
aqueles músculos perfeitamente
torneados formavam uma obra de arte de
tirar o fôlego.
— Não demore, sim? Estarei te
esperando — falou, lançando-me uma
piscadela antes de se virar, me dando
uma ótima visão de sua bunda incrível.
Mordi meu lábio inferior,
contendo um sorriso, e me virei para
seguir em direção às escadas. Passei
pela mesa de sinuca perto do minibar
enquanto ainda amarrava o laço do
roupão.
Assim que abri a porta do
quarto, contudo, me deparei com três
homens e o cano de uma arma apontado
diretamente para o meu rosto.
Paralisei no lugar por alguns
segundos, olhando para o homem loiro
que segurava a arma. Ele era alto e
elegante, trajava um terno que parecia
ser muito caro. Com certeza, era da
máfia. Me empertiguei. Pensei rápido e
fui impulsiva, me lembrando das lições
de Zora, antes de agarrá-lo pelo pulso
com uma mão e torcer, tomando a pistola
prateada de sua posse e virando-a contra
ele.
Segurei um sorriso de
satisfação quando o movimento deu
certo. Não pude aproveitar muito a
vantagem, porém, pois logo em seguida
os outros dois homens levantaram suas
próprias armas e as apontaram para
mim.
Sem dúvidas eram os
seguranças do loiro, que, embora tivesse
levantado as mãos em rendição, tinha no
rosto uma expressão de prepotência que
me irritou um pouco.
Engoli em seco, temendo o que
aconteceria em seguida.
Eles pareciam criminosos
profissionais, que não hesitariam em
explodir minha cabeça se eu continuasse
mirando uma arma em seu chefe.
Não permiti que eles
percebessem que me intimidavam,
entretanto. Segurei a pistola com mais
firmeza entre minhas duas mãos, o meu
indicador a milímetros do gatilho.
— Quem são vocês? —
perguntei, entredentes.
O loiro inclinou a cabeça e deu
um passo adiante, me analisando como
se eu fosse um animal de zoológico. Era
como se não entendesse o fato de eu não
saber quem ele era.
— Raven — ouvi Hades
chamar, cautelosamente, se
aproximando.
Ele estava vestido apenas com
uma calça jeans preta quando parou ao
meu lado, encarando os homens também.
Em seguida, fez algo que deixou meu
queixo caído: riu e abraçou o loiro,
como velhos amigos. Levantei as
sobrancelhas, chocada, e abaixei a arma
lentamente enquanto fitava eles darem
tapinhas nas costas um do outro.
— Quando me disseram que
tinha alguém trapaceando em meu
cassino, soube logo que era Hades
Wrath — contou o homem, se
distanciando com um sorriso
estonteante, que fazia seu belo rosto
brilhar. — Ninguém mais seria tolo o
bastante para isso.
Hades sorriu de maneira
sincera.
— Amor, este é Chris Castle.
— Hades se virou para mim, colocando
uma mão em minhas costas. — Ele
comanda as coisas por aqui.
Relutantemente, devolvi a arma
para ele, que de pronto a colocou no
coldre sob seu blazer cinza e acenou
para seus guarda-costas, que o imitaram.
Aquele homem emanava poder e
arrogância. Ele era bons anos mais
velho do que Hades, as rugas no canto
de seus olhos enunciavam isso. Talvez
entre trinta e trinta e cinco anos. Era
bastante charmoso e rico. Era
perceptível isso pela sua pose e seus
acessórios. O relógio dourado em seu
pulso com certeza era mais valioso do
que eu poderia estimar.
— E com isso você quer dizer
que ele é o cabeça da máfia de Las
Vegas — retruquei, estreitando os olhos
para Castle.
Ele apenas riu com minha
ironia.
— Garota esperta — aprovou,
entrando no quarto como se fosse o dono
do lugar. Bem… na verdade, ele era o
dono do hotel. — Onde conseguiu ela,
Wrath?
Me virei, seguindo-o com o
olhar. Castle parecia fazer notas mentais
enquanto analisava o quarto ao redor,
com certo interesse. Pigarreei,
acompanhando Hades quando ele
caminhou de volta para o centro da sala
de estar, sentando-se num dos sofás
vermelhos opostos à poltrona que o
loiro tomou.
Estava bem óbvio pela maneira
como ele agia, sua postura e seu tom de
voz, que ele estava acostumado a ser o
homem mais poderoso na sala — fato
que, por si só, já era o suficiente para
me incomodar. Parecia realmente que
ele estava esperando ser servido e
obedecido como um rei.
Fitei Hades de relance,
tentando descobrir o motivo pelo qual
ele nos trouxera justamente para o hotel
daquele homem. Certamente, havia algo
que ele não estava me contando; afinal,
ele não pareceu exatamente surpreso
quando Castle apareceu na porta do
nosso quarto naquela manhã.
— Ele não me conseguiu em
lugar nenhum — rebati, deixando-o
surpreso. Aparentemente, ele também
não estava acostumado a ser enfrentado.
— Não sou uma maldita mercadoria,
Castle.
Por um instante, ele pareceu
ficar furioso, mas então seus olhos se
estreitaram em minha direção e ele
esquadrinhou meu rosto com seus
poderosos olhos azuis. Em seguida,
gargalhou. Sua crise de risos nada
discreta durou mais segundos do que o
normal, me fazendo bufar e olhar
impaciente para Hades.
Eu não queria ter que lidar com
caras malucos assim de novo. Passei
dezenove anos da minha vida aturando
os surtos psicóticos do meu padrasto e
não desejava passar por isso novamente.
— Ora, ora, ora — provocou
Castle, animado. — Raven McKinley
bem diante dos meus olhos.
Meu corpo instantaneamente
ficou rígido. Temi, por um instante, que
aquele se tornasse o gatilho para ele
decretar manter-me em Las Vegas.
Trinquei o maxilar, pensando na Glock
no fundo da minha mala. Provavelmente,
não haveria chances de Hades e eu
escaparmos da máfia de Castle vivos.
Com certeza, havia muito mais homens
armados como aqueles por todo o hotel.
Joel não se referia muito ao
chefe da máfia de Vegas. Ao menos eu
nunca ouvira sobre ele durante meu
tempo em Dallas, me esgueirando para
ouvir as conversas secretas do gângster.
Talvez isso se desse porque ele sabia
que não tinha chances de competir com
aquilo. McKinley não fazia amigos e
odiava precisar de aliados. Ele era um
maldito déspota que queria para si tudo
em que colocava os olhos. Minha teoria
era de que ele não costumava falar sobre
Castle porque invejava o seu império e
sabia que isso nunca aconteceria.
Afinal, mesmo não conhecendo-
o bem, qualquer um poderia presumir o
quão poderoso ele era para liderar uma
cidade como aquela.
— Chris… — advertiu Hades,
colocando sua mão sobre a minha.
Afastei-me de seu toque, porque a
última coisa que eu queria era parecer
uma donzela vulnerável que precisava
de sua proteção.
— Eu a assustei? — perguntou
o loiro com tom de deboche, inclinando
a cabeça ao me encarar. — Não se
preocupe, garotinha, Wrath e eu somos
velhos amigos. Eu não ousaria tocar em
sua mascote.
— Já chega, Castle! — Hades
rosnou, fazendo-me estremecer. Durante
um par de segundos esperei que o caos
se iniciasse, com tiros e socos para
todos os lados. O que houve, entretanto,
foi o mais absoluto silêncio. — Não foi
para isso que viajamos até aqui.
O loiro respirou fundo, se
recostando contra a poltrona, colocando
as mãos atrás da cabeça de maneira
indiferente e relaxada.
— Bem, qual foi o motivo
então?
— Presumo que você saiba
como as coisas estão em Carmine —
Hades continuou, com certo pesar na sua
voz.
Ele escondia bem, mas eu sabia
como perder o bar do Pandemônio o
afetara.
— Ouvi uma coisa ou duas
sobre como você perdeu o controle da
cidade miseravelmente.
Percebi Hades fechar uma das
mãos em punho e respirar fundo,
controlando-se.
Talvez Castle nos ajudasse,
mas, mesmo assim, eu não ficaria mais
tranquila com ele por perto. Ele não era
difícil de decifrar e tudo nele me
incomodava, desde seu poder até sua
prepotência.
— Preciso da sua ajuda para
recuperá-la.
Meus olhos se arregalaram com
o pedido de Hades.
Esperei tensa pelo riso
sarcástico de Castle, no qual ele faria
questão de nos humilhar, mas este nunca
veio. Chris parecia tão incrédulo quanto
eu. Afinal, todos sabiam que Hades não
era de pedir favores ou implorar por
ajuda.
— Não posso — respondeu o
loiro, sério. — Sinto muito, cara, as
coisas com Vance já estão me dando
uma bela dor de cabeça.
Me empertiguei ao ouvir aquele
nome.
— Caesar Vance? — minha voz
soou, atraindo os olhares de ambos os
homens para mim.
— O que sabe sobre ele? —
Chris perguntou, franzindo o cenho.
— O suficiente — falei, me
endireitando sobre o sofá. — Ao
contrário do que você deve imaginar, eu
não era um capacho inútil e inanimado
enquanto estava em Dallas. Eu sabia
escutar, era impossível que eu não
tomasse conhecimento sobre o cartel de
Vance. Afinal, ele era o maior aliado de
McKinley. Depois de Frederik Wrath, é
claro.
— Mas ele não demonstrou
interesse nenhum em ajudar Joel a dar
um golpe em meu pai para tomar
Carmine. — Hades virou-se para me
fitar.
— Ele não é assim tão amigo
de Joel. Pelo que eu sei, Caesar o acha
maluco. Os negócios entre eles se
resumem ao fornecimento de drogas e
armas traficadas da fronteira do México.
— Vocês estão em guerra? —
Hades perguntou para Castle, que deu de
ombros.
— Por enquanto não, mas eu
estou atento, vigiando-o de perto. Tenho
certeza que Vegas é o sonho daquele
desgraçado. Cada vez mais ele entra no
meu território, acha que eu não estou
vendo ele vender suas merdas por aqui.
Eu não sabia muita coisa sobre
Vance, apenas o bastante para que eu
ficasse aliviada por ele estar bem longe.
Se Joel era um maluco descontrolado,
Caesar era um psicopata calculista.
Muitas das garotas que trabalhavam nas
boates de McKinley vinham de El
Sangria, a cidade fronteiriça entre os
Estados Unidos e o México, onde Vance
fazia seu reinado.
— Provavelmente, ele vai
querer minha cabeça quando descobrir
que estou dormindo com sua irmã, mas
Victoria é minha ponte com o cartel. —
Castle cruzou os braços sobre o peito.
— As coisas estão tranquilas por
enquanto, mas se eu declarar apoio a
você na disputa contra McKinley,
Caesar vai se aproveitar da
oportunidade para invadir Vegas.
— Não preciso que me declare
apoio ou que me mande homens. Só
preciso de dinheiro para impedir que
meu pai destrua o resto da cidade com
as próprias mãos.
— Quanto precisa?
— Muito.
Castle não titubeou em de tirar
do bolso interno do blazer sua carteira
de couro de grife, assinar um cheque e
estendê-lo a Hades.
— É o suficiente? — perguntou
ele, em seguida.
Me inclinei um pouco e minhas
sobrancelhas quase bateram no teto ao
ver a grande quantidade de dígitos
escritos no papel.
Então havia sido esse o
tamanho do prejuízo de Frederik com o
roubo às suas empresas-laranja?
Com certeza era bem mais do
que eu imaginava.
— Valeu, cara. — Hades se
levantou ao mesmo tempo que Chris e
eles se cumprimentaram como velhos
amigos.
— Sei que não estaria pedindo
se não fosse importante. Um cretino
orgulhoso reconhece outro. — Wrath riu
antes de dar um passo para trás. — Mas
quero as fichas do meu cassino de volta.
— São todas suas.
O moreno maneou a cabeça na
direção da mesa de vidro sobre a qual
estava uma grande sacola contendo
todas as fichas que Hades havia ganhado
de maneira clandestina nos jogos. Ela
logo foi apanhada por um dos
seguranças armados de Castle.
Me pus de pé quando eles
começaram a andar na direção da porta.
Antes de sair, entretanto, ele se
aproximou de Hades e lhe sussurrou
algo. Não consegui ouvir suas palavras,
mas franzi o cenho com aquele ato, um
pouco preocupada. Então, o loiro me
deu uma boa olhada e sorriu de maneira
galanteadora.
— Se um dia se cansar desse
bastardo aqui, sabe onde me encontrar.
Ele piscou para mim, colocou
os óculos escuros e foi embora.
Arregalei os olhos, estupefata, enquanto
Hades fechava a porta.
— Hades, o que… — Não
consegui terminar a frase, pois o celular
dele tocou uma vez sobre o aparador ao
lado.
Bufei quando ele foi até lá para
checar e cruzei os braços, esperando
impacientemente. Uma ruga de
preocupação surgiu em sua testa quando
ele reproduziu uma mensagem de voz
que parecia ter sido deixada na caixa-
postal.
— Hades Wrath? Aqui é a
agente especial Abigail Strauss, FBI.
Gostaria de conversar com o senhor.
Me retorne assim que possível.
Contive o impulso de exclamar
um palavrão.
Instantaneamente me lembrei de
Hades dizendo como Frederik temia o
FBI. As notícias sobre o escândalo das
empresas Wrath se espalharam e o pior
pesadelo dele poderia se concretizar.
Me empertiguei, preocupada
com o que aquilo significava.
— De quando é essa
mensagem?
— Ontem à noite. Não ouvi o
celular tocar, estava muito ocupado com
outra coisa. — Ele me olhou sob seus
longos cílios pretos e abriu um sorriso
repleto de malícia.
Revirei os olhos.
— Não está preocupado com o
fato de ter o FBI atrás de você? Aposto
que seu suborno não se estende a eles.
— Não, não se estende. Mas,
por enquanto, prefiro não gastar tempo
me afligindo com coisas que não posso
controlar.
Ele encostou o quadril contra o
aparador e cruzou os braços sobre o
peito ainda nu, atraindo meu olhar para
as tatuagens sensuais que se estendiam
em sua pele. Eu nunca deixaria de ficar
impressionada e excitada com o corpo
surreal de Hades.
Pigarreei, me repreendendo e
voltando a me concentrar no que era
importante naquele momento.
— Isso tem a ver com seu pai,
não é?
Hades suspirou antes de
assentir com a cabeça.
— Ele já esteve na mira do FBI
antes, pois sempre usara as empresas
para cometer crimes e ficar ainda mais
rico. Frederik não é um mafioso. O
submundo do crime nunca foi sua
especialidade. Ele quer poder e
dinheiro, mas não deseja sujar as mãos.
É pra isso que ele me usa. — Hades fez
uma pausa. — Meu pai quer ser da alta
sociedade conservadora, um aristocrata.
Seu tipo de crime é espionagem
industrial, fraude e corrupção. Ele só
precisou se aproximar da máfia para ter
poder sobre as instituições públicas de
Carmine, como a Prefeitura e o
Departamento da Polícia.
— Então, basicamente você
está dizendo que há um milhão de
motivos pelos quais o FBI pode ter te
ligado e, provavelmente, nenhum deles é
bom?
— Exatamente. — Hades
sorriu. — Meu pai vai surtar feito um
louco quando descobrir que seus
negócios estão ameaçados, mas isso não
é mais problema meu. Você estava certa,
Raven, quando disse que eu não
precisava deixar meu pai me controlar.
Não vou permitir que ele machuque
nenhum dos amigos. Além do mais,
como eu disse, pretendo me preocupar
com um problema de cada vez. E, no
momento, devemos nos concentrar em
Connor Kamps.
Ficava aliviada em perceber
que Hades desejava se desprender da
coleira na qual Frederik o amarrara. Ele
merecia mais. E o Pandemônio, sem
dúvidas, não deveria permanecer
fazendo o trabalho sujo do Wrath.
— Por que não me contou o
real motivo dessa viagem? — perguntei,
me aproximando dele. Hades me
observou por um segundo e suspirou.
— Não queria que essa viagem
fosse sobre negócios, amor.
— Mas ela é sobre negócios —
o contrariei. Ele negou com a cabeça e
me puxou pela cintura, colando nossos
corpos.
— Não, é sobre nós dois.
Espalmei as mãos sobre seu
peito, olhando fundo em seus olhos.
— Não guarde mais segredos
de mim, Hades.
Parte de mim temia isso. Eu
sentia que havia palavras não ditas
gritando através dos olhos de Hades. E
todo aquele mundo já era ruim o
suficiente sem que eu precisasse
desconfiar dos meus próprios aliados.
Ele concordou em silêncio e,
sem que eu pudesse dizer mais alguma
coisa, num impulso, Hades me tirou do
chão e me colocou sobre seu ombro.
Gritei com a surpresa, batendo em suas
costas quando, sem nenhuma
dificuldade, ele começou a se dirigir às
escadas.
— Agora, amor, nós vamos
experimentar aquela banheira.
Mordi um sorriso, excitada com
aquela ideia. Em um piscar de olhos eu
já estava em chamas, esquecendo
completamente todas as outras
preocupações que pairavam em minha
cabeça.
Porque eu quero te tocar, amor
E quero te sentir também
Eu quero ver o sol nascer
Sobre seus pecados, só eu e
você
Esquente as coisas, estamos
em fuga
Mas você nunca ficará sozinha
Eu estarei com você do
crepúsculo ao amanhecer
Dusk Till Dawn - ZAYN feat.
Sia

Aproximei ainda mais a imagem


do GPS em meu celular, sem conseguir
enxergar nada útil.
— Vamos, Hades, admita logo que está
perdido — impliquei. — Essa estrada
nem aparece no mapa. Onde diabos nós
estamos?
Hades estava mal-humorado ao
meu lado. A carranca que ele carregava
nos traços de seu rosto era um pouco
cômica até.
Estávamos em uma estrada de
chão batido, no meio do deserto, em
algum lugar de Nevada há mais de duas
horas. Era para estarmos na metade do
caminho até o norte do Arizona àquela
altura. Tudo isso porque o grande e
genial Hades Wrath havia garantido que
existia um caminho que nos podia levar
para casa bem mais rápido.
Agora ali estávamos nós, sob o
pesado ar-condicionado do Camaro,
sem saber como voltar para a rota
principal. Eu cogitara pedir para Castle
nos buscar. Afinal, aquele era seu
território e ele deveria, no mínimo,
conhecê-lo como a palma de sua mão.
Entretanto, existia duas pessoas
orgulhosas pra cacete naquele carro e,
se eu não queria pedir ajuda, e Hades,
com certeza, preferiria morrer
carbonizado no meio do deserto antes
disso.
O Sol estava a pino e ao nosso
redor não havia nada. Literalmente, nada
além do solo seco e arenoso. Eu não
havia visto nenhum outro carro há pelo
menos uma hora, desde que Hades
decidira sair da sua estrada alternativa
para um atalho.
O atalho do atalho.
— Tenho certeza que há um
posto de gasolina em 2 km —
respondeu, com tanta firmeza na voz que
eu até poderia dizer que ele realmente
acreditava no que estava falando.
— Você falou isso 2 km atrás.
— Rolei os olhos.
Como se as coisas não
pudessem realmente piorar, um barulho
alto e extremamente preocupante soou.
O carro estremeceu, fazendo menção de
se desviar da estrada. Hades, entretanto,
conseguiu controlá-lo bem. Pelo menos
até o carro parar sozinho, após diminuir
gradativamente de velocidade.
Levantei uma sobrancelha,
observando a luzinha vermelha que se
acendeu imediatamente no painel. Hades
girou a chave algumas vezes, tentando
ligar o veículo novamente, mas foi
inútil.
Ele controlou a respiração, mas
pude perceber que estava irritado
quando soltou o cinto de segurança e
abriu a porta do carro num solavanco.
Após levantar o capô e passar um par de
minutos analisando o que havia por
baixo, ele o fechou novamente e voltou
para dentro do Camaro.
— O que houve com o carro?
— perguntei, um pouco aflita.
Hades pensou por alguns
segundos antes de dar de ombros.
— Não faço a menor ideia. Vou
ligar pro seguro.
Então ele rapidamente apanhou
seu celular e fez a ligação.
Ri nasalado.
Pelo menos o grande e
poderoso Hades Wrath não era perfeito
em todas as coisas. Aparentemente ele
não sabia nada de mecânica, o que tinha
certa graça para mim.
Não demorou muito para que
ele suspirasse, colocando o telefone de
lado após uma breve conversa, e
deitasse a cabeça contra o encosto de
couro do assento.
— Estão nos rastreando.
Provavelmente, virão nos rebocar em
duas ou três horas.
Estalei a língua antes de desatar
o cinto e abrir a janela do meu lado, já
que o ar-condicionado havia morrido
junto com o carro. Minha tentativa de
obter um pouco de vento foi inútil. Lá
fora estava tão quente e abafado quanto
um forno.
Virei a cabeça para encarar o
homem ao meu lado, que tinha um braço
parcialmente do lado de fora, apoiado
contra a porta, e os olhos vagando na
paisagem árida através do para-brisa.
Percebendo meu escrutínio silencioso,
seu rosto também se virou para mim e
seus olhos perscrutaram cada canto do
meu rosto. Hades me fitou sério e
silencioso por alguns minutos antes de
dizer:
— Você é fodidamente bonita,
amor. — Sorri, surpresa e sem graça.
Não pude evitar o rubor que tomou conta
das minhas bochechas, e que despertou
um sorriso satisfeito em Hades. — Não
acredito que consegui te fazer corar.
Escondi o rosto com as mãos,
me afastando até ter as costas
pressionadas contra a porta do Camaro.
Mordi meu lábio inferior por detrás dos
meus dedos e ele riu.
— Não ria de mim —
resmunguei.
— Você é simplesmente
adorável, não posso evitar.
Em seguida, ele esticou um
braço e ligou o rádio, fazendo uma
careta quando a primeira música que
começou a tocar foi um country
tradicional. Hades só descansou quando
um rock dos anos 80 preencheu o
interior do veículo.
Sua mão direita rapidamente
voltou à minha coxa depois disso. Era
ali que ela repousava enquanto ele
dirigia. O gelado dos anéis em seus
dedos contra minha pele se tornou uma
sensação familiar demais, de modo que
eu passei a esperar por isso. Assim
como esperava que ele me chamasse de
amor ou que beijasse meus lábios.
Por um instante, ponderei sobre
nós dois.
O que éramos?
O que havia ali entre a gente?
Era estranho defini-lo como
meu namorado. Eu sequer sabia se era
isso o que Hades queria ser para mim.
Além disso, não parecia existir nenhum
rótulo capaz de definir com precisão o
que nós éramos. Provavelmente não
haviam criado ainda uma palavra para
descrever o que eu sentia por ele. Nem
eu mesma saberia explicar.
Então, me lembrei do que Fiona
me contara, sobre o motivo de Selina
não gostar de mim, e algo passou pela
minha cabeça.
Ela realmente não confiava em
mim ou apenas sentia ciúmes?
Não refleti sobre aquilo em
silêncio por muito mais tempo.
— Você costumava namorar
Selina?
Hades levantou a cabeça, me
encarando com olhos nebulosos e um
vinco entre suas sobrancelhas. Eu
acreditava que ele jamais mentiria para
mim. Afinal, Hades nunca demonstrou
ser do tipo que temia a verdade.
— Eu não diria que o que
houve entre mim e ela foi precisamente
um namoro.
Me calei por um instante,
tentando compreender o que pensava
sobre aquilo. Ela ainda era sua amiga
próxima. Sua parceira no crime, no
sentido literal da frase. Mas não foi isso
o que me incomodou.
— E o que havia entre ela e
Nick era o quê?
Embora fosse inevitável me
sentir um pouco insegura, visto que
Selina era uma musa alta e ruiva, com
um corpo incrível — bem diferente de
mim —, o que me perturbou realmente
foi o fato de Selina ter sido namorada do
irmão de Hades. E, pelo modo como
Fiona falara, Nick parecia ter sido muito
apaixonado por ela.
E, mesmo que Hades e Selina
não tenham namorado realmente, tiveram
algum envolvimento. A possibilidade de
aquela ser a mesma definição para o que
Hades e eu tínhamos me perturbou um
pouco também.
Afinal, o que acontecera na
noite passada entre nós não fora nada
casual. Pelo menos não para mim.
— Eu não era o amante de
Selina enquanto ela estava com meu
irmão, se é o que está pensando —
esclareceu ele. Permaneci com o rosto
virado para o outro lado. — O
relacionamento dos dois era um
desastre. Meu irmão estragou tudo sendo
um viciado fodido. Ela saiu ferida.
— E você esteve lá para
consolá-la?
Ele ficou quieto por um
instante.
— Nós usamos um ao outro.
Não estou dizendo que foi certo, mas
aconteceu. E já acabou há bastante
tempo.
— Hum.
— Olhe para mim, amor —
pediu, ao mesmo tempo em que pousou
um dedo sob meu queixo, virando
delicadamente meu rosto em sua
direção.
O fitei por um instante. Hades
se aproximou, o suficiente para que eu
sentisse sua respiração contra a minha
pele. Percebi que ele estava tentando me
distrair da nossa conversa quando
deslizou o dedo contra meu maxilar.
Assisti enquanto ele aproximava seus
lábios do canto da minha boca.
Engoli em seco e me afastei,
abrindo a porta do carro. Saí e dei a
volta até me recostar contra o capô.
Abrir distância entre nós era necessário,
porque Hades era minha fraqueza e ele
usava aquilo contra mim.
O calor do sol abraçou meu
corpo e eu cruzei os braços contra o
peito, fitando as montanhas que
pareciam muito longes no horizonte. Não
demorou muito para Hades também sair
e vir até mim.
— Diga o que você está
pensando — pediu, me fazendo suspirar.
Eu não sabia ainda o que havia
entre nós, mas, seja lá o que fosse, não
duraria se mantivéssemos segredos um
do outro.
— Parece que o ódio de Nick
por você é justificável, para dizer o
mínimo. Não tenho muita experiência
com relacionamentos, mas imagino que
não seja moralista dormir com a ex do
irmão.
— Meu irmão me odeia por
motivos bem mais complexos que esse,
eu te asseguro.
Que motivos?
Ele não parecia disposto a
contá-los. Mesmo depois de eu ter
decidido entregar o que restara do meu
coração para Hades, ele ainda era um
mistério para mim. Era como se não
estivéssemos em posições equiparadas.
— Por que eu sempre sinto que
você está escondendo coisas de mim?
Não pode me mostrar as partes boas e
guardar as ruins para si, fingindo que
não existem.
Hades balançou a cabeça.
— Não olharia para mim da
mesma maneira se soubesse de todas as
partes ruins. Você mal consegue me
encarar agora.
Forcei-me a virar o rosto para
fitá-lo. Seus olhos se prenderam aos
meus instantaneamente.
— Todo mundo tem um lado
que não quer que ninguém veja, mas eu
te pedi para não guardar nada de mim.
Não precisa me poupar.
Seria muito fácil amar apenas o
lado bom de alguém, a parte maquiada
para ser agradável. Entretanto, ninguém
era completamente bom ou
completamente mau. Todos tínhamos
partes boas e estragadas dentro de nós e
precisávamos encontrar alguém que
aceitasse a ambos.
— Eu vou te contar tudo um
dia, quando estiver pronto — Hades
garantiu, me fazendo pensar sobre meu
próprio passado.
Por outro lado, eu também
escondia coisas que nunca havia contado
a ninguém por puro medo. Só então
percebi a minha hipocrisia ao desejar
que Hades se expusesse completamente
para mim quando eu mesma não fazia
isso. Talvez não fôssemos tão diferentes
assim.
Eu também me perguntava se
ele ainda me olharia da mesma maneira
se soubesse.
— Promete? — perguntei, após
engolir em seco.
Ele acenou com a cabeça.
— Sim, eu prometo. — Sorri e
ele me imitou, aproximando-se até que
nossos quadris se tocassem. — Olha só,
nossa primeira discussão como um casal
e eu diria que lidamos com isso muito
bem.
Levantei as sobrancelhas.
— Um casal? — indaguei, com
a voz cheia de surpresa. — É isso o que
somos?
— É claro que sim. — Hades
se inclinou para depositar um beijo no
meu ombro antes de aproximar os lábios
da minha orelha. — Você é minha, amor.
Pensei que tivesse deixado isso claro
ontem à noite.
Meu sorriso aumentou e eu
fechei os olhos quando ele beijou meu
pescoço, ao mesmo tempo em que sua
mão direita tocou a base das minhas
costas. Seus dedos escorregaram por
debaixo da barra da minha camiseta,
subindo lentamente por toda a extensão
da minha coluna. Mordi o lábio inferior,
observando-o com o canto dos olhos.
Eu estava completamente
apaixonada por Hades Wrath. Não havia
mais como negar aquilo para mim
mesma.
Ele subiu os beijos de volta
para minha orelha e mordiscou o lóbulo
antes de sussurrar:
— Não se preocupe, eu sou seu
também.
Em seguida, ele me puxou para
si, grudando nossos lábios com certa
urgência. Me coloquei na ponta dos pés
enquanto enlaçava seu pescoço,
aprofundando o beijo. Ele segurava com
mãos muito firmes em minha cintura,
pressionando meu corpo contra si, como
se pudesse nos fundir um ao outro.
Talvez fosse possível, no fim
das contas.
Ele subiu sua mão para agarrar
minha mandíbula, me afastando o
suficiente para que pudesse olhar em
meus olhos. O olhar de Hades era pura
lascívia. Aquela adrenalina que corria
em suas veias estava nas minhas
também, dilatando minhas pupilas e
fazendo o ar em meus pulmões se tornar
brasa.
Nem mesmo o Sol queimando
sobre nós era capaz de amenizar o tom
profundo de suas íris. Os olhos de
Hades eram como uma noite sem
estrelas e eu amava isso. Eu estava
apaixonada pela escuridão. Estava
viciada em Hades e em seu submundo.
— O que você está planejando?
— sussurrei.
Ele sorriu como o diabo, os
lábios cobertos de malícia e perversão.
— Ah, você vai adorar isso.
Hades me puxou para a lateral
do carro e me pressionou contra a porta
aberta do assento do motorista. Minha
mente se desligou quando ele voltou a
colocar sua língua em minha boca. Senti,
embora totalmente inebriada pelo gosto
dele, uma de suas mãos agarrar minha
bunda enquanto a outra sumia por baixo
da parte da frente da saia jeans.
O toque de Hades encontrou o
tecido da minha calcinha, já
completamente úmido, e eu arfei em
seus lábios quando ele a afastou e seus
dedos mergulharam entre minhas dobras
quentes.
Ele sorriu satisfeito e sussurrou
"boa garota" entre nosso beijo.
Em seguida, antes que eu
pudesse me dar conta dos seus
movimentos, ele me girou de maneira
brusca e pressionou minhas costas para
baixo, para que eu me apoiasse contra o
assento atrás do volante.
Um pouco atordoada com a
surpresa, espalmei as mãos sobre o
banco de couro, sentindo Hades de pé
atrás de mim, o volume rígido de sua
pélvis contra minha bunda.
Mordi meu lábio inferior com
força, ouvindo-o abaixar seu zíper. A
antecipação estava me matando. Meus
batimentos cardíacos soavam altos e
desesperados em meus ouvidos.
Poucos segundos depois, uma
embalagem de camisinha vazia foi
jogada no painel do carro.
Hades levantou minha saia e
deslizou a calcinha para baixo, até ela
parar enroscada em meus tornozelos. E
eu esqueci completamente que
estávamos no meio do deserto, aos
arredores de Las Vegas, porque, quando
estava perto de Hades, eu não conseguia
pensar de maneira objetiva. Ele
arrancava a sanidade para fora de mim.
Curvei as costas, me
empinando para ele. Sabia que aquela
visão deveria estar deixando-o
descontrolado. Hades rosnou e levou
sua mão até meu pescoço. Ele segurou
minha nuca quando se enterrou dentro de
mim de uma só vez.
Segurei meu lábio entre os
dentes para conter um grito, que quis
rasgar através da minha garganta, ao
mesmo tempo em que meus olhos se
reviraram de prazer.
Hades afundou seus dedos na
pele da minha cintura, apertando a carne
com força enquanto eu me segurava no
banco. O impacto de suas investidas me
levava para a frente, jogando meus
cabelos em meu rosto. Fechei os olhos,
incapaz de não gemer e grunhir ao
mesmo tempo que ele me fodia de
maneira dura e firme. Hades estava
completamente dentro de mim, e ele era
tudo o que eu sentia.
— Porra, amor — ele gemeu,
indo mais rápido.
Hades enrolou meus cabelos
em seu punho como uma corda antes de
puxá-lo, levando minha cabeça para
trás.
Eu estava suada e ofegante,
sentia como se houvesse brasa
queimando sob minha pele enquanto sua
pélvis batia contra minha bunda, cada
vez mais rápido e forte. A pressão em
meu ventre começou a crescer e eu já
não conseguia segurar os sons
animalescos que escapavam de mim.
Antes que eu pudesse alcançar
a libertação, entretanto, Hades saiu de
dentro de mim e me virou novamente.
Observei sem entender quando ele
inverteu nossas posições e sentou-se no
banco. O pau longo e ereto, apontando
na direção de seu umbigo.
Lambi meus lábios diante
daquela cena, incapaz de desgrudar
meus olhos de toda a magnitude do
corpo dele.
Hades não me permitiu pensar
muito, porém. Ele estava totalmente
ensandecido.
— Monte-me, amor —
ordenou, ofegante, tombando a cabeça
contra o encosto do carro. — Quero
olhar nos seus olhos quando te fizer
gozar.
Sorri maliciosa e obedeci. Me
livrei da calcinha que ainda estava em
meus tornozelos, deixando-a queimar no
asfalto quando me sentei sobre Hades,
abaixando devagar sobre seu pau.
Ele me puxou para si, me
abraçando enquanto eu rebolava em seu
colo. Hades afastou meus cabelos e
afundou seu rosto em meu pescoço,
beijando e mordendo a pele da minha
garganta.
Enquanto uma de suas mãos me
seguravam pela cintura, a outra estava
em minha bunda, apertando tão forte que
eu tive certeza que deixaria marcas.
Gemi alto em seu ouvido, me
apoiando nele para facilitar meus
movimentos. Subia e descia em seu pau,
me sentindo tão quente que poderia
entrar em combustão espontânea.
Hades empurrou meu tronco, de
modo que minhas costas ficassem contra
o volante, e seu polegar encontrou o
ponto inchado e pulsante entre minhas
pernas. Ele massageou a área, o que só
me estimulou a rebolar mais rápido e
forte, completamente arrebatada pela
sensação do orgasmo iminente.
Meu peito subia e descia no
ritmo acelerado da minha respiração
ofegante. Hades sorriu satisfeito antes
de segurar meu maxilar, impedindo-me
de tombar a cabeça para trás quando os
espasmos intensos tomaram conta do
meu corpo. Fitei diretamente seu rosto
quando ele levantou o quadril,
arremetendo mais forte e profundo
dentro de mim, atingindo um canto do
meu corpo que me deixou
completamente extasiada.
Hades me pressionava contra
si, mantendo-se enterrado bem fundo
enquanto nós dois nos desfazíamos em
gemidos guturais. O prazer me tomou
completamente, meu interior pulsando
contra o pau dele quando nós gozamos.
— Você é meu — sussurrei,
com meu corpo fraco amolecendo em
seus braços.
Ele sorriu, colando nossas
testas.
— Eu sou.
Beije o anel e os deixe se
curvarem
Caminhe abaixo até que o fogo
se apague
Você os tem enrolados em seu
dedo
Assista-os caírem
Há algo maravilhoso e trágico
na queda
Me deixe dizer isso mais uma
vez
Miss Jackson - Panic! at the
Disco feat. LOLO

A ansiedade não me deixara


dormir muito no domingo. Aquele,
afinal, seria o dia do meu jogo com
Connor. Seria tudo ou nada e, embora eu
estivesse confiante após aprender mais
sobre as técnicas de trapaça no pôquer,
ainda não tinha certeza da minha vitória.
Meu adversário tinha muita experiência,
afinal.
Quando consegui cochilar, já
passavam das seis da manhã, de modo
que não tive muito tempo de sono.
Despertei com um som de chuveiro às
nove e meia, e fiquei um pouco mais
tranquila quando, ao abrir os olhos, me
deparei com o quarto de Hades ao meu
redor.
Eu estava com medo da minha
derrota, mas também estava ciente de
que, caso ela viesse, eu a enfrentaria. E
não estaria sozinha nisso. Pela primeira
vez, eu não estava sozinha. O
Pandemônio estava ao meu lado.
Olhei para a porta do banheiro,
de onde saía uma nuvem de vapor e
sorri, tentada a ir até lá e me esgueirar
para o chuveiro junto de Hades. Não fiz
isso, porém. Me levantei e pesquei
minhas roupas, que estavam jogadas ao
chão — um lembrete de como
terminamos a noite de ontem, após
chegarmos de Vegas.
Quando eu já estava
completamente vestida, o chuveiro foi
desligado e Hades saiu de dentro do
banheiro usando apenas uma toalha
enrolada na cintura. Suspirei,
encarando-o descaradamente.
— Apreciando a vista? —
zombou ele, adentrando o quarto.
Seus cabelos estavam molhados
e algumas gotas de água se desprendiam
dos fios e rolavam em seu corpo atlético
e tatuado.
— Gostaria de poder apreciar
mais, mas está quase na hora do jogo.
Hades sorriu de maneira
galante, aproximando-se de mim.
— Eu posso ser bem rápido
quando quero… — soprou, levando o
rosto até meu pescoço.
Suspirei, reunindo todo meu
autocontrole para me afastar.
— É tentador, mas terei que
negar. Vou te esperar lá em baixo.
Me apressei em abrir a porta e
sair rapidamente do quarto, deixando
Hades rindo para trás.
No primeiro andar do duplex
encontrei Fiona, Khalil e Alec, que
estavam sentados ao redor da mesa de
jantar repleta de comida. Havia de tudo
um pouco para o café da manhã.
Eles não pareceram surpresos
ao notar minha presença.
— Ora, ora, ora — disse Alec
quando me aproximei. — Vejam se não é
um dos motivos da minha noite em claro
que acaba de aparecer.
Levantei uma sobrancelha,
confusa.
Fiona riu baixinho.
— O quarto de Alec fica ao
lado do de Hades — explicou Khalil,
com um sorriso descontraído no rosto.
— E daí? — perguntei, dando
de ombros.
— E daí que vocês não foram
exatamente silenciosos ontem à noite —
Alec revelou.
Cobri a boca com a mão para
segurar o riso. Ele não estava bravo,
apenas provocando.
Me sentei ao lado de Khalil.
— Não ligue para o Alec —
Fiona falou, servindo-se de um copo
com suco. — Ele só está com inveja,
porque vocês fazem sexo e ele não.
Apanhei uma maçã verde na
fruteira e mordi um pedaço, me
divertindo com a feição de ultraje que
Alec fez.
— Quem disse que não estou
fazendo sexo?
Eles rapidamente iniciaram
uma discussão sobre isso. Assisti à cena
enquanto mastigava a fruta. Após
engolir, me virei para Khalil.
— Eles são sempre assim? —
perguntei, sorrindo. K suspirou com
pesar.
— Infelizmente, sim. — Sorri.
Gostava daquele clima descontraído que
sempre existia entre eles. — Fico feliz
por vocês dois.
Havia sinceridade em sua voz e
em seus olhos. O que ele dissera sobre
Hades, após o meu resgate na capela,
surgiu em minha mente. Khalil falara que
não sabia se algum dia Hades realmente
estivera bem. Essa ideia me perturbou
mais do que eu imaginava, mas agora eu
esperava que isso pudesse mudar. Que
nós dois pudéssemos encontrar juntos
um caminho para longe dos traumas do
nosso passado.
— Eu também.
Hades não demorou a aparecer.
Ele desceu o último degrau no exato
momento em que Alec arremessou uma
banana na direção de Fiona.
— Fico longe por alguns
minutos e vocês já começam a se matar
— Hades ralhou, atravessando a sala.
Ao passar por mim, se inclinou
e depositou um beijo no topo da minha
cabeça. Ele deu a volta na mesa e se
sentou de frente pra mim e ao lado de
Fiona.
Eu havia descoberto que o
temido Hades Wrath era um namorado
muito carinhoso.
Namorado.
Era estranho usar aquela
palavra novamente. Eu costumava
pensar que Stephen também era meu
namorado, mas, claramente, ele não
compartilhava dessa ideia. Ele e Hades
eram tão diferentes, completamente
opostos.
— Castle aceitou nos ajudar?
— Khalil perguntou, estabelecendo um
assunto sério na conversa.
Hades apanhou algumas
torradas e encheu sua xícara com café.
— Parcialmente — respondeu
ele. — Me deu um cheque, mas disse
que não vai se envolver. Ao menos
poderei dar esse dinheiro ao Frederik e
quitar qualquer dívida que ele ache que
o Pandemônio tem com ele. Depois
disso, estamos fora.
— Finalmente — Fiona disse,
aliviada. — Hoje à noite poderemos
beber para comemorar duas coisas,
então.
— Ainda não sabemos se eu
vou mesmo ganhar — resmunguei,
desviando o olhar para a mesa. — Tenho
algumas jogadas em mente, mas tudo
dependerá das ações de Connor. Mas,
mesmo que eu perca, ele não vai me
levar. Morrerei antes de voltar a ser sua
prisioneira.
Eu não me importaria em
morrer, se isso significasse dar uma
chance aos meus amigos — ou
prejudicar Kamps e McKinley. O que
era, de certa forma, surpreendente e
aterrorizante ao mesmo tempo. Para
impedir os planos de Connor de se
concretizarem, eu faria qualquer coisa.
— Isso não vai acontecer —
Hades garantiu, sem nenhuma sombra de
dúvida em sua voz.
Aquela promessa não estava em
seu alcance, entretanto. No fim das
contas, Hades só tinha o nome de um
deus e, embora se achasse um, não
possuía todo aquele poder.

Após ir para o dormitório,


tomar um banho e colocar roupas
limpas, entrei novamente no Camaro de
Hades em direção ao Pandemônio.
Fiona e Khalil estavam no banco de trás,
Alec estava junto com Wade na
caminhonete e Selina, como sempre, em
sua motocicleta.
O trajeto fora mais longo que
nunca e, apesar da mão de Hades ter,
durante todo o percurso, permanecido
sobre minha perna num gesto de
conforto, não diminuiu meu nervosismo.
Suspirei quando meus olhos
capturaram a imagem da fileira de
motocicletas estacionadas em frente ao
Pandemônio. Meu estômago se retorcia
toda vez que eu via o punhal naquela
bandeira que anunciava para todos que
aquele bar estava sob domínio dos
Daggers, mas seria por pouco tempo.
Ao menos era isso o que eu
esperava.
Fui a última a sair do carro, e
permaneci encarando as portas de
madeira enquanto os outros se reuniam.
Eles tentaram criar planos B, C, D e
para todas as outras letras do alfabeto.
Mas não havia como prever nada.
Estávamos vulneráveis, caminhando
direto para o território inimigo, sem
muitas chances de retornar vitoriosos.
— Não está pensando em
desistir agora, está? — Selina
perguntou, em um tom ácido, parando à
minha frente. Em poucos minutos ela
percebera minha postura de insegurança.
— Tudo isso foi ideia sua, afinal.
Respirei fundo, erguendo meu
rosto para olhar em seus olhos cor de
oliva.
— Bem, suponho que você não
tenha nenhuma ideia melhor, não é? —
Ela estreitou os olhos para mim, mas
não disse nada. — Foi o que eu pensei.
Então, andei decididamente até
à porta, entrando no Pandemônio.
Era o mesmo bar, mas não o
mesmo ambiente familiar. Não
conseguia reconhecê-lo como antes. Não
haviam muitas pessoas lá, mas todas
elas, certamente, faziam parte dos
Daggers. Homens grandes vestidos em
couro sentados de maneira irreverente.
Um deles tinha os pés cruzados sobre a
superfície de uma mesa de madeira, as
grandes botas de combate enlameadas
perto de um cinzeiro. Ele fumava um
charuto enquanto me olhava de maneira
prepotente.
Desviei os olhos para a loira
usando roupas curtas e chapéu de caubói
atrás do bar. Ao redor havia um forte
odor de tabaco e frituras. E todo o bar
estava coberto por uma neblina
originada pela fumaça dos muitos
cigarros. Diversas garrafas de cerveja e
pratos sujos estavam acumulados sobre
as mesas.
Torci o nariz ao observar no
que o Pandemônio havia se tornado e,
com o canto do olho, pude ver o corpo
de Hades ficar tenso e ele fechar sua
mão em punho.
— Mas que porra é essa? —
Fiona indagou, alto o bastante para
atrair todos os olhares do lugar. Ela
marchou até o balcão, onde a loira
comia batatas fritas que pareciam estar
completamente molhadas de tanto óleo.
— Está caindo gordura no meu balcão,
sua degenerada.
Notei alguns homens se
levantarem e se aproximarem
ameaçadoramente dela.
— Esse bar não é mais seu,
garota emo — desdenhou a loira.
O rosto de Fiona ficou
vermelho e eu soube que ela estava
prestes a explodir com a pobre garota
que, provavelmente, estava apenas
sendo usada por aqueles caras nojentos.
— Isso é o que vamos ver —
interrompi, pisando duro na direção das
escadas que levavam ao porão. —
Agora, onde está o maldito Connor
Kamps?
A porta do escritório se abriu e
um homem alto se postou à minha frente
no meio do corredor. Eu lembrava dele.
Era um dos homens que estavam na
capela quando Nick e Garrett me
sequestraram. Ele tinha traços do leste-
asiático e cabelos castanhos na altura do
queixo. Seus braços enormes estavam
cruzados contra o peito. Ele inclinou a
cabeça para me observar.
— Onde você pensa que vai?
— Tirar os ratos que infestaram
o Pandemônio. — Ergui o queixo para
que ele percebesse que não me
intimidava. Na verdade, eu só queria
começar aquele jogo e acabar logo com
tudo aquilo.
— Não vai nem ter a chance se
você e seus amigos não deixarem todas
as armas aqui. Terei que revistá-la.
Bufei, trocando um olhar com
Hades por sobre o ombro. Nós dois
estávamos pensando a mesma coisa:
estaríamos perdidos se eu fosse
revistada e encontrassem o que eu
estava escondendo em meu bolso.
Depois de um par de segundos, me virei
novamente para o Dagger, sem
demonstrar insegurança em meu rosto e
postura.
— Bela tentativa, agora me
deixe passar antes que eu, de fato,
resolva usar minha arma.
O homem deu um passo
ameaçador na minha direção, mas, antes
que ele fizesse algo, a porta do
escritório voltou a se abrir e Nick
surgiu.
Trinquei o maxilar.
— Slade, está tudo bem — ele
disse para o outro Dagger, ainda
mantendo os olhos em mim. — Tenho
certeza de que eles não tentarão nada.
Isso se quiserem sair vivos daqui.
Selina soltou uma risada alta e
sarcástica, mas todos decidimos ignorar
enquanto seguíamos Nick para o porão,
onde se localizava o cassino.
Lá em baixo tudo permanecia
como eu me lembrava, apesar da
camada de poeira que cobria as mesas
de jogos. Connor estava sentado numa
delas, vestindo um terno, extremamente
formal para a ocasião, como era de seu
costume.
— Garrett não está aqui? Que
grande demonstração de coragem —
Hades observou, de maneira irônica
enquanto olhava ao redor.
Realmente não havia sinal do
líder dos Daggers, mas reconheci alguns
dos mercenários armados de Joel
guardando a sala. Aquilo demonstrava
que Garrett estava perdendo cada vez
mais o domínio de sua própria gangue.
Contive um sorriso que quis se formar
em meu rosto após aquela constatação.
— Isso é entre mim e Raven. O
que você e sua corja estão fazendo aqui,
Wrath? — Connor se recostou
displicentemente contra a poltrona,
cruzando os braços ao encarar Hades.
— Esse é o meu bar. Sempre
será meu — Hades sibilou, entredentes.
— Vamos acabar logo com isso
— intervi, elevando o tom de voz ao me
direcionar para a cadeira do outro lado
da mesa de Connor.
— Então diga a seus amigos
para esperarem lá em cima.
Vi em seus olhos castanhos que
ele estava falando sério. Respirei fundo,
cruzando as mãos sobre a mesa. Aquilo
fazia parte de seu estilo de jogo. Ele
queria me intimidar, me deixar ainda
mais nervosa.
— Para que você possa
trapacear à vontade? Nem pensar,
Kamps.
Ele sorriu antes de ponderar um
pouco.
— Tudo bem. Wrath pode ficar,
mas o resto sai.
Olhei para Hades, percebendo
como ele estava reunindo todo seu
autocontrole para não acabar com
Connor, o que estragaria nosso acordo.
Ele acenou com a cabeça para Khalil,
que levou os outros de volta às escadas,
sendo seguido de perto por Slade.
— Você deve estar desesperado
para nos entregar o Pandemônio de
volta, não é? — Hades zombou,
enquanto cruzava o porão. — Acha que
eu não sei como vocês perderam mais
do que eu com isso? Apesar de terem
conseguido o que queriam, vocês não
sabem como lidar com tudo. Não
conseguem administrar o cassino e o
Círculo. Soube que muitos dos seus
homens desertaram, tirando aqueles que
foram presos na capela, é claro.
— Não é sábio contar vitória
quando se está no covil do inimigo numa
aposta que pode custar a sua namorada.
A não ser que você não se importe com
ela…
Hades fez menção de atacar
Connor, mas seu irmão o segurou pelo
braço. Segurei a respiração
imediatamente, porque previ uma briga
se iniciando e tudo indo por água
abaixo.
Precisava dar início àquele
jogo logo.
Me virei para meu adversário.
— Já chega. Quem será o
dealer?
Kamps me fitou fixamente por
alguns segundos antes de sorrir e acenar
para que Hive se aproximasse. Senti
meus ombros ficarem rígidos e tensos
quando Nick se sentou à mesa também,
olhando de soslaio para Hades.
Não havia como saber qual dos
três naquele jogo estava planejando
trapacear mais.
— Se eu não te conhecesse,
menina, diria que está intimidada —
debochou Nick, começando a
embaralhar as cartas que estavam sobre
a mesa.
Encarei desconfiada o
movimento que suas mãos ágeis faziam e
indaguei:
— Deixa eu adivinhar: as
cartas são marcadas?
— Elas estavam aqui no
cassino, então talvez você deva
perguntar isso ao seu namorado —
Connor rebateu.
Na verdade, Hades presumiu
que ele usaria as cartas que estavam ali,
que estavam limpas. Eu havia
discordado. Afinal, ele poderia muito
bem colocar um baralho marcado e com
cartas duplicadas, então por que
preferiria jogar honestamente dessa
vez?
Não me detive àquela questão
por muito mais tempo, porque enquanto
Connor não tinha cartas marcadas, eu
tinha. E elas eram aparentemente
idênticas àquelas porque Hades também
as usava no cassino.
O problema era que não via um
modo seguro para trocar o baralho. Não
com Nick e Connor me vigiando.
Suspirei, levantando minha mão
para colocar uma mecha de cabelo
escuro atrás da orelha. Poderia parecer
um gesto inofensivo, mas eu estava
sinalizando para Hades, que, poucos
segundos depois, falou:
— Isso é uma palhaçada. Está
óbvio que você e meu irmão traidor já
decidiram todo o jogo.
Kamps enrijeceu o corpo,
parecendo surpreso e irritado ao fitar
Hades. Nesse instante, Nick depositou o
baralho numa pilha no centro da mesa,
erguendo os olhos para mim. Controlei
minha respiração, analisando a
expressão calma no rosto do Wrath
caçula. Apesar de não dizer nada, eu
quase conseguia ouvir sua voz através
daqueles olhos castanhos que me
perscrutavam intensamente.
— Se você não se calar agora,
Wrath, irei tirá-lo daqui com meus
próprios punhos — Connor continuou,
com o rosto virado para o outro lado da
sala.
Nick estreitou seu olhar para
mim. Foi um movimento muito
imperceptível cujo significado eu
apostei ser um sinal. Em seguida, bateu
o indicador contra a mesa, apontando
para as cartas.
— Eu quero vê-lo tentar. —
Ouvi Hades provocar.
Eu sabia que aquilo não
funcionaria com Connor. Ele não era
facilmente descontrolado ou distraído, e
logo voltou seu olhar para mim,
impedindo-me de prosseguir com meu
movimento.
— Controle seu cão, Raven, ou
nosso acordo já era.
Antes que eu pudesse dizer
algo, Nick interrompeu, bradando alto:
— Ela sinalizou para ele. Estão
tramando algo, melhor tirá-lo daqui.
Bati as mãos contra a mesa,
irada por ele ter escolhido o lado oposto
ao meu.
De novo.
— Hive.
Ele continuou me encarando da
mesma forma, o rosto desprovido de
qualquer expressão óbvia, mas o dedo
ainda tamborilando impacientemente
sobre a mesa.
E, com um aceno de Connor,
dois dos mercenários agarraram Hades
pelos braços, começando a arrastá-lo na
direção das escadas. Wrath tentou se
desvencilhar e eu ergui as sobrancelhas
para sua encenação. Ele sabia que
precisava distrair Connor o suficiente
para que eu trocasse as cartas.
— Vamos dar o fora daqui,
amor, está óbvio que estão armando para
você — Hades continuou.
Coloquei a mão no bolso da
jaqueta, tocando as cartas do baralho
com a ponta dos dedos. Connor virou o
rosto na minha direção, provavelmente
para verificar minha reação. Respirei
fundo, batendo o pé no chão de madeira,
impaciente.
Então, surpreendendo a todos
nós, Hades conseguiu puxar a arma de
um dos mercenários. Ele a mirou
diretamente na cabeça de Connor,
prendendo sua atenção por completo.
Assim que olhei Nick novamente, obtive
minha confirmação em seu rosto.
“Trapaceiros têm mãos
rápidas”, Hades dissera certa vez.
E as minhas foram
suficientemente hábeis em trocar o
baralho na mesa com aquele escondido
no bolso invisível da minha jaqueta.
Nick maneou a cabeça para mim após
isso, murmurando um "bom trabalho"
com o movimento silencioso de seus
lábios.
Suspirei, aliviada no mesmo
instante em que Connor me olhou de
soslaio, esperando uma reação.
— Já chega, Hades. — Me
levantei, aumentando a entonação em
minha voz e apoiando minhas mãos na
mesa. — Você não vai me impedir de
jogar. Por favor, vá embora. Por favor.
Eu sabia que ele não gostava
daquela ideia. Não queria me deixar
sozinha naquele porão, mas eu confiava
que poderia lidar com a situação. Nick
havia me ajudado e me dado a vantagem,
agora eu precisaria confiar que ele
continuaria me ajudando, apesar de tudo.
Não era uma escolha fácil; afinal, ele
poderia acabar com tudo a qualquer
momento, se quisesse. E eu odiava estar
na mão de outra pessoa, mas não havia
nada que pudesse fazer a respeito.
Relutantemente, Hades abaixou
a pistola e a devolveu ao homem do seu
lado. Ele me lançou um último olhar
apreensivo antes de fazer seu caminho
para as escadas.
Respirei fundo enquanto
voltava a me sentar.
— Ótimo, podemos começar
agora? — Connor pediu, se endireitando
e ajustando as mangas do seu blazer.
Ele observou as cartas, fazendo
meu coração apertar. Contudo, não se
demorou mais do que um segundo antes
de acenar a cabeça para que o dealer
iniciasse a distribuição das cartas. Nick
era o retrato perfeito da indiferença. Por
isso era tão bom traidor, concluí. Nunca
demonstrava muita emoção.
Hive mal olhou para mim
quando me deu duas cartas após
embaralhá-las. Em seguida, estendeu um
par para Kamps também.
Respirei fundo, fitando as
marcas no dorso das cartas dele. Eu não
havia conseguido decorar todas, mas
soube que ele tinha um oito de paus. A
outra não pude identificar. Levantei as
minhas próprias cartas.
Uma rainha de copas e um três
de espadas.
Nick, então, virou três cartas
sobre a mesa, entre Connor e eu. Quando
uma rainha de espadas apareceu entre
elas, eu soube que ele estava me
ajudando. Ele era irmão de Hades e já
conhecia bem o Pandemônio; assim, era
esperado que ele conhecesse o
significado das marcações. O que
realmente era novidade foi o fato de ele
estar usando isso para me beneficiar —
e, consequentemente, ao seu irmão.
— Quer aumentar a aposta,
Raven? — Connor propôs, com certo
divertimento na voz.
Tentei avaliar que combinações
ele podia fazer com as cartas na mesa.
Ele estava confiante, talvez mirando num
flush [ix]ou numa quadra[x]. Ou estava
blefando.
Tentei descobrir isso através de
sua postura e da expressão em seu rosto,
mas não obtive nenhuma resposta.
Connor era um exímio manipulador.
— O que você sugere? —
perguntei, entrando em seu jogo.
— Algo que você rejeitaria. —
Ele abriu um sorriso de escárnio.
Connor estava me provocando,
me chamando tacitamente de covarde.
Não me importei, entretanto. Meu foco
era vencer, mesmo com todas as suas
intimidações.
— Tem razão, prefiro manter.
Nick deu sequência ao turn[xi],
expondo uma quarta carta sobre a mesa,
ao lado das outras.
Mordi o interior da bochecha
ao ver um três de copas. A vitória
parecia perigosamente próxima para
mim, o que me deixava desconfiada
sobre o que Kamps estava planejando.
— Se você desistir agora,
posso devolver o Pandemônio, mas você
virá comigo.
Aquela proposta me desarmou
e ele percebeu. Parecia tentador,
especialmente se considerando que eu
temia mais a perda do Pandemônio do
que o meu futuro nas mãos de Connor.
Aquilo significava que ele já
havia virado o jogo ou, novamente, ele
estava apenas blefando?
Troquei um olhar momentâneo
com Nick, que captou meu medo e minha
ponderação sobre aquela oferta. Ele
maneou a cabeça quase
imperceptivelmente, negando. O jogo
estava nas mãos de um traidor e ele
estava me dizendo, com seus intensos
olhos escuros, para confiar nele. Talvez
essa fosse a pior das escolhas que eu
poderia tomar, mas eu confiei que Nick
Wrath optaria por sua redenção.
— Vá pro inferno com suas
propostas, Kamps — eu disse,
encarando-o.
Connor apenas riu,
desdenhando da minha confiança
abalada. Eu não era tão boa no blefe
quanto ele e os irmãos Wrath.
Nick marcou o river [xii]virando
a última carta sobre a mesa.
Três de ouros.
Sorri.
— Parece que é hora do
showdown [xiii]— falei, me endireitando.
Connor baixou suas cartas,
expondo o oito de paus que eu já sabia e
um dez de ouros, que fazia par com o
dez de copas na mesa. Era uma das
combinações mais baixas. Meu sorriso
aumentou quando expus as minhas, que,
combinadas com as cinco cartas da
mesa, formavam um par de rainhas e
uma trinca de três.
— Full House [xiv]— decretei.
Connor parecia incrédulo enquanto
olhava as cartas. Me levantei,
arrastando a cadeira para trás num ruído
alto. — Quero todos vocês, Daggers,
bem longe daqui até o fim do dia.
Não permaneci para ouvir o
que ele provavelmente queria dizer.
Andei rápido para as escadas, galgando
os degraus com pressa. Assim que subi
para o térreo, localizei Hades, que
andava de um lado para o outro no salão
do bar. Cruzei o corredor, chamando sua
atenção.
Ele levantou o rosto para mim
assim que notou minha presença, e eu
não pude esconder o sorriso de vitória
que brilhava em meu rosto.
Wrath ainda não parecia
acreditar quando acabou com a distância
entre nós. Segurei seu rosto entre as
mãos.
— Eu venci — declarei,
olhando fundo em seus olhos
preocupados. Ele sorriu e me tomou em
seus braços, me segurando contra si
enquanto me levantava no ar, rindo.
Logo os outros perceberam que
havíamos recuperado o Pandemônio e
começaram a comemorar. Assim que fui
colocada no chão, Alec voou sobre mim
para me abraçar também.
— Você é o nosso amuleto da
sorte — ele disse, animado, me fazendo
rir.
Fiquei satisfeita ao assistir os
Daggers se retirando aos poucos, a
contragosto. Enquanto os observava, vi
Nick parado no corredor. Ele estava de
braços cruzados, com um ombro
encostado na parede.
Parecia pensativo.
— Obrigada — sussurrei.
Ele apenas maneou a cabeça
antes de seguir os outros para fora do
bar.
E isso está me matando por
dentro
Eu tenho morrido por você,
amor
Quase todas as noites
Você sabe que eu só preciso da
sua ajuda
Eu continuo correndo para
você, amor
Eu vou estar morrendo por
você, amor
Até você me trazer de volta à
vida
Pray - JRY, RuthAnne

Dei uma longa tragada no


cigarro, aproveitando a nicotina e o
doce sabor da minha vitória.
O hip hop tocava alto nas grandes caixas
de som sobre uma caminhonete enquanto
a festa no Círculo declarava que o
Pandemônio estava de volta ao topo. Eu
estava recostado contra o Camaro,
observando a garota de saia curta e
jaqueta de couro que dançava poucos
metros à minha frente. Meus olhos não
conseguiam desgrudar dela, que sorria
com uma garrafa de cerveja na mão. Ela
tinha os olhos fechados e seu belo corpo
balançava no ritmo da música.
Sempre que eu pensava que não
poderia desejar Raven Clarke ainda
mais, ela provava que eu estava
fodidamente errado.
Eu era louco por aquela
mulher. Completamente.
Sorri, expirando a fumaça, que
se dissipou no ar noturno de imediato.
Estava frio e era quase o fim do outono,
por isso havia insistido para Raven usar
minha jaqueta assim que percebi seu
corpo arrepiado, embora a ideia de vê-
la dançando de cropped e saia justa
fosse realmente tentadora.
Alina estava à sua frente,
ambas completamente inebriadas pela
música. Parecia que o mundo ao redor
não existia para elas, nem mesmo as
outras pessoas que dançavam ao seu
redor.
Era bom saber que elas
estavam se divertindo, apesar de todas
as turbulências das últimas semanas.
Esse era exatamente o motivo pelo qual
eu estava evitando ao máximo
compartilhar com Raven minhas
preocupações sobre os próximos passos
de McKinley, Garrett e o FBI.
— Então, como foi em Vegas?
— Khalil perguntou, se aproximando e
parando ao meu lado. Seu olhar
encontrou o foco da minha atenção e ele
sorriu ao capturar a imagem da loira.
— Acho que prefiro manter os
detalhes para mim mesmo. — Ele riu
com a minha resposta, me empurrando
com seu ombro em provocação.
— Foi tão bom assim? —
Apenas sorri sugestivamente, levando o
cigarro aos lábios de novo. — Como
estão as coisas com seu pai? Castle
conseguiu ser útil nisso?
A voz de Khalil adquiriu certo
tom de asco ao citar o nome de
Christopher. Os dois não se davam nem
um pouco bem. Afinal, Khalil era filho
de um dos homens da máfia de Las
Vegas. A vida dele costumava pertencer
a Castle. Khalil via seu pai fazer coisas
terríveis, que iam contra seus próprios
princípios, apenas porque não tinha
escolha. Era um imigrante ilegal libanês
que estava disposto a fazer qualquer
coisa para que sua família não fosse
deportada.
— Os sócios ainda não estão
nada felizes. Querem tirar Frederik do
jogo e eu não os culpo.
— E presumo que o FBI na sua
cola não esteja ajudando muito. — O
encarei com uma sobrancelha levantada.
Ele viu meu questionamento silencioso.
— Raven disse pra Alina que disse para
mim. Quando pretendia me contar?
Respirei fundo antes de cruzar
os braços.
— Não pretendia. O FBI está
atrás dos Wrath, não de vocês. Quero
que fiquem fora disso.
O Pandemônio podia lidar com
qualquer coisa, com a máfia do Texas, a
gangue de motoqueiros do Garrett ou os
imbecis usuais de Carmine. Mas o FBI
poderia destruir a vida deles e a culpa
seria minha.
— Hades…
— Pensei que você e Alina
tivessem terminado. — Mudei de
assunto. Khalil entornou o resto da
cerveja em sua mão.
— Nós terminamos, ela deixou
bem claro que não poderia ficar com
alguém que poderia ser morto ou preso
pelo FBI a qualquer momento.
— Merda, K.
Eu sabia que Khalil não tinha
muitas coisas boas em sua vida. Assim
como o resto do Pandemônio, ele tinha
um passado fodido e nenhuma
perspectiva de futuro. Era fácil nos
agarrarmos a qualquer vislumbre de
esperança que aparecesse. Raven era a
minha. E eu tinha certeza que Khalil quis
que Alina fosse a dele.
Eu não a culpava, entretanto.
Não era normal encontrar alguém que
aceitasse o que nós éramos: foras da lei.
— Eu já esperava por isso, não
é culpa sua ou da Raven. As coisas entre
nós não estavam às mil maravilhas, de
qualquer maneira.
Apesar do tom conformista, eu
conseguia ver a dor em seus olhos
dourados, porém. Khalil não havia
aprendido ainda a esconder seu coração
como o resto de nós. Foi isso o que eu
pensei quando vi Raven pela primeira
vez. Ela me lembrava do meu melhor
amigo. Ambos eram corajosos, sensíveis
e extremamente leais.
— Sinto muito, irmão.
— Sei que sente. — Ele deu um
tapinha em meu ombro. — Qual o plano
com Garrett e McKinley agora?
Dei uma última tragada no
cigarro antes de amassar a guimba com a
sola do coturno e desviar os olhos para
a loja de conveniências do outro lado do
estacionamento. Fiona estava por ali,
fazendo “negócios” com um cara que eu
conhecia por ser um dos jogadores de
futebol do time da Universidade.
Próximo dela estava Brice, um dos
principais traficantes que trabalhavam
para o Pandemônio.
— Brice me disse que Seven
ainda está por aí, tentando tomar nossa
clientela. Ele está conseguindo trazer
drogas para dentro da minha cidade, o
maldito.
— Brice não pode tentar
rastrear?
— Ele vai tentar, mas ninguém
sabe quem é Seven ou onde ele costuma
traficar. Acho que ele é a verdadeira
carta na manga dos Daggers. Enquanto
estamos preocupados com Garrett,
Connor e Joel, Seven está ganhando
influência em Foxgriss e, em breve, no
resto da cidade também.
Os Daggers nunca conseguiram
ameaçar realmente o tráfico consolidado
por nós em Carmine até agora, mas tudo
podia mudar.
— Vou ficar de olho em
Foxgriss.
Assenti com a cabeça. Embora
aquele bairro fosse perigoso,
precisávamos fazer nosso trabalho e
garantir que o Pandemônio
permanecesse no topo. Do contrário,
coisas muito ruins voltariam a
assombrar Carmine.
— Os Daggers estão tramando
alguma coisa. Algo pior — presumi,
sem conseguir disfarçar o incômodo em
minha voz. Garrett era imprevisível,
afinal.
Khalil assentiu em silêncio, e
eu percebi quando sua atenção se
prendeu novamente em Alina, que
permanecia dançando com a minha
namorada.
— Você deveria contar tudo
para Raven de uma vez, Hades — ele
me advertiu, e de repente senti um gosto
amargo na minha boca. — Ou vai acabar
perdendo-a como eu perdi Alina.
Dei um longo suspiro. Estava
ciente de que meus segredos poderiam
não apenas afastar Raven, mas fazê-la
me odiar irreversivelmente. Entretanto,
eu era egoísta pra caralho e covarde
demais para fazer a coisa certa.
O som de uma garrafa se
quebrando soou atrás de mim,
despertando-me dos meus pensamentos.
Desencostei do carro e dei a volta,
procurando por algum alvoroço que eu
precisasse dissipar. Não encontrei nada,
porém.
Nada além do meu irmão
sentado nas escadas do seu trailer, do
outro lado da estrada onde
costumávamos correr os rachas.
Estreitei meus olhos enquanto o
observava. Seu olhar encontrou o meu e
logo começamos uma disputa de encarar.
Pensei que depois que o
Pandemônio recuperasse seu território
Nick fosse sumir dali. Apesar do meu
irmão ter ajudado Raven, ainda não
podíamos confiar nele. Na verdade, eu
não conseguia compreendê-lo, nem suas
intenções.
Engoli em seco antes de
colocar as mãos nos bolsos da calça e
andar até lá.
Nos últimos anos, havia se
tornado difícil manter algum diálogo
com Nicholas que não resultasse numa
briga horrível. Ainda assim, mesmo
depois de tudo, meus instintos ainda
insistiam em dá-lo uma nova chance.
Éramos irmãos, afinal. O laço de sangue
entre nós estaria atado pela eternidade.
Nick não me olhou quando me
sentei ao seu lado, cruzando as mãos
entre os meus joelhos dobrados.
— Veio me expulsar do
Círculo? — perguntou, com a voz
embargada de ressentimento.
Senti de longe seu bafo de
cerveja e logo em seguida notei a pilha
de garrafas de vidro do lado de fora do
trailer. Ele estava se afundando no
álcool, o que nunca era uma boa saída.
Na verdade, aquela costumava ser a
saída de Frederik.
Suspirei, olhando para frente,
onde a festa ainda continuava.
— Você realmente acha que sou
um monstro feito o nosso pai.
— Seu pai.
Rolei os olhos.
Nick era filho de McKinley, o
que não era nem um pouco melhor.
— Não quero ser como ele,
Nicholas. — Meu irmão riu de maneira
fantasmagórica, virando o rosto para
mim. — E sei que você não quer ser
como Joel McKinley.
Ele parecia esquelético, com os
olhos fundos e uma barba mal feita
cobrindo seu maxilar. Estava pálido e
um pouco bêbado também, eu tinha
certeza.
— Vejo que Raven te contou
tudo.
— É, ela contou.
— Você prometeu a Frederik
que se tornaria ele — rebateu, me
fazendo engolir em seco.
Demorara muitos anos para que
eu descobrisse que Nick estava com a
orelha grudada na porta do escritório
quando meu pai me fez prometer
obedecê-lo. Ele não me contou que
sabia, apenas se afastou e deixou que
isso alimentasse seu ressentimento.
— Você sabe o porquê.
— Eu não precisava de um
protetor, Hades, precisava do meu
irmão.
— Há alguma diferença?
Eu havia deixado de estar lá
para Nick quando ele precisava, eu
sabia disso. Enquanto nossa mãe
definhava até a morte e ele se afundava
em drogas, eu só tinha atenção para os
negócios do meu pai. Pensei que assim
eu estava protegendo-o, mas talvez
estivesse errado.
Quando percebi o que estava
acontecendo, que eu estava perdendo
meu irmão, já era tarde demais. Ele me
odiava. Achava que eu era apenas mais
um soldado de Frederik. Em parte, ele
tinha razão.
O orgulho tinha um sabor ruim,
como um veneno ácido e corrosivo. Eu o
deixei dissolver a relação que eu tinha
com o único laço sanguíneo que me
restara. E agora eu precisava engoli-lo,
se quisesse consertar as coisas.
E eu queria, porque Nick não
teria se tornado um Dagger se não fosse
por minha causa, em primeiro lugar.
Além disso, eu estava cansado de tê-lo
como inimigo.
— Sinto muito por ter falhado
diversas vezes com você, irmão.
Ele soltou uma risada nasalada
antes de voltar a encarar a festa no
estacionamento cheio. Percebi seu rosto
se suavizar antes disso, entretanto. Eu
logo encontrei o foco do seu olhar.
— Ela está mesmo mudando
você, huh? — Nick falou.
Raven havia parado de dançar.
Estava sentada no capô do meu carro e
seus olhos espertos vasculhavam ao
redor. Em seguida, ela apanhou seu
telefone, a luz da tela iluminando seu
rosto enquanto ela digitava. Um segundo
mais tarde senti meu celular vibrar no
bolso e, ao checá-lo, me deparei com
uma mensagem dela.

Raven:
Cadê você? Pensei que
iríamos dançar.
Hades:
Do outro lado da rua, amor.

Logo seu rosto se virou na


minha direção e ela sorriu.
— Você não a merece, sabia?
— meu irmão disse, me fazendo suspirar
e olhar para os meus pés, os coturnos
pretos estavam cobertos com a terra
vermelha do deserto que circundava
Carmine.
— Sabia, sim.
Mergulhamos em um silêncio
confortável por longos minutos. Nós não
costumávamos mentir um para o outro.
Sempre houve um trato de honestidade
cruel entre Nick e eu, talvez tenha sido a
única coisa que restara.
— Eu também fiz muita merda,
nós dois sabemos disso. — Ergui o
rosto para fitá-lo de volta. Um sorriso
de vitória começou a surgir nos meus
lábios. Levantei uma sobrancelha,
desafiando-o a completar a frase. —
Não vai me fazer dizer as palavras, vai?
— Pode apostar sua bunda que
eu vou.
Nick rolou os olhos.
— Você é tão maduro.
— Olha quem fala. Estou
esperando, Nicholas.
— Me… — Ele pigarreou,
como se estivesse sentindo dor física, o
que só me divertiu ainda mais. — Me
desculpe também. Pronto, está
satisfeito?
— Pra caralho.
Eu ri quando o assisti lutar
contra a vontade de sorrir e, de repente,
eu havia sido tomado pela nostalgia. Foi
só naquele instante que percebi o quanto
sentia falta do meu irmão caçula.
— Babaca — Nick xingou
antes de se levantar e abrir a porta do
trailer.
Virei o rosto para observar
quando ele entrou e apanhou duas
cervejas da geladeira. Torci o nariz para
o cachorro dormindo pacificamente no
chão, lembrando-me de quando ele
arruinou as coisas na capela.
Rapidamente, Nicholas voltou,
me entregando a bebida enquanto se
sentava ao meu lado.
— Por que nos ajudou no
jogo?
— Eu disse, quero foder com
Garrett Voich.
— Você devia isso à Raven, de
qualquer maneira. Você a sequestrou,
afinal.
— Eu não teria feito isso se não
achasse que era a única maneira de me
infiltrar nos Daggers.
— Ela poderia ter se
machucado.
— Eu não teria permitido —
garantiu, sem titubear. — Mas admito
que queria ter encontrado outra saída.
Mais um item pra minha lista
interminável de arrependimentos.
Abri a cerveja e bebi um gole.
— Presumo que Garrett tenha
ficado muito puto por ter perdido
novamente. — Mudei de assunto.
Nick soltou um palavrão antes
de rir e virar-se para mim.
— Tenho certeza que ele queria
ter enfiado uma bala na cabeça de
Connor por aceitar aquela aposta. Tudo
está indo pro inferno agora. Acho que
isso é culpa minha também.
Franzi o cenho.
— Do que está falando?
— Quando Raven estava o
domínio dos Daggers na igreja, ela
questionou a lealdade de Connor em
relação ao Garret. E isso fez com que
ele perdesse a cabeça, indo pra cima da
dela. Foi então que eu percebi que
Garrett não confiava completamente em
Connor. Desde então eu tenho explorado
essa fraqueza, jogado um contra o outro.
Agora os Daggers estão fragmentados
entre os que seguem Voich e os que
querem Kamps como novo líder.
Ergui as sobrancelhas,
surpreso. Ele estava mesmo em uma
missão para destruir os Daggers no fim
das contas. Eu havia subestimado meu
irmão — ou, pelo menos, seu ódio por
Garrett.
— E foi por isso que eles não
fizeram praticamente nada enquanto
estavam no domínio do Pandemônio —
constatei. Meu irmão assentiu.
— Eles estão fracos, divididos
numa guerra civil. Se tivermos sorte,
vão começar a se matar em breve.
— Connor não dá a mínima
para os Daggers, está apenas os usando
para que não tenha que arriscar o
pescoço da máfia de Dallas.
— Provavelmente, mas não
importa. Melhor lidar com uma gangue
só do que duas, certo?
Balancei a cabeça,
concordando.
— É, acho que sim. — Bebi
mais um gole. — Você ouviu falar de um
cara chamado Seven?
— Claro. Ele conquistou alguns
clientes do Círculo.
Bufei.
— É um dos caras do Garrett?
— Talvez, mas nunca o vi nas
reuniões. Connor o mencionou uma vez,
então talvez seja um dos caras dele.
Praguejei.
— Onde eles estão se
escondendo?
Nick deu de ombros.
— Ninguém sabe. A cada três
dias nos reunimos num lugar diferente.
Eles estão se certificando da segurança.
A maioria das ordens nós recebemos por
telefone.
Respirei fundo antes de me
levantar, afastando esses pensamentos.
Eu precisava focar num problema de
cada vez e, no momento, o maior deles
era o FBI. Principalmente, porque
coloca o Pandemônio sob risco de
investigação. Não havia como
investigarem Frederik sem descobrirem
sua ligação com uma das gangues locais.
— Tenho que ir. Estou devendo
uma dança à Raven.
Nicholas estalou a língua.
— Não a deixe esperando.
Balancei a cabeça, fazendo
menção de me virar. Antes que eu
pudesse me afastar, entretanto, meu
irmão me chamou eu tornei a olhá-lo.
— Estou feliz por vocês,
Hades.
Assenti, ainda um pouco atônito
com sua confissão. Eu não deveria estar
tão surpreso. Éramos irmãos, afinal.
Talvez a gente nunca tenha realmente se
odiado.
Esperei até o apartamento estar
vazio para ligar para a agente Strauss do
FBI. Em parte, porque eu não queria que
o resto do Pandemônio soubesse e se
preocupasse. Havíamos acabado de
recuperar nosso bar, eles precisavam
desfrutar daquela vitória.
Quanto à Raven, ela tinha
problemas demais e eu não queria
adicionar mais um a lista.
Eu sabia que era só uma
questão de tempo, mas, ainda assim, me
esforçaria ao máximo para manter
aquele assunto longe dos ouvidos do
meu pai também. O FBI sempre fora o
seu maior — e talvez único — temor.
Isso porque não precisaria de muitas
investigações para colocar abaixo todo
o império que Frederik Wrath
construíra. E se ele caísse, eu também
cairia. E a prisão era pior que a morte.
Não que eu não merecesse, mas
aquele, definitivamente, era um destino
que eu tentaria evitar a qualquer custo.
Quando a campainha tocou e a
agente Strauss entrou na minha
cobertura, trajando um tailleur cinza
chumbo e com os curtos cabelos
castanhos, eu imediatamente soube que
ela seria um problema. Seus olhos
escuros eram astutos e observadores,
analisando toda a minha casa em poucos
segundos. Era quase como se ela
esperasse encontrar um bando de
homens armados e montanhas de drogas
e dinheiro bem na sala de estar.
— Que bom que pôde me
receber hoje, senhor Wrath.
Não pude deixar de notar o
desprezo em seu tom de voz, bem como
o volume de um coldre em sua cintura.
Ela não precisou ser convidada a sentir-
se à vontade, pois logo caminhou em
direção a um dos sofás, com os saltos
dos seus scarpins batendo contra o piso.
Strauss colocou sua bolsa ao
seu lado no estofado e cruzou as pernas,
virando o rosto para me encarar.
Respirei fundo antes de segui-
la sala adentro.
— É Hades. Senhor Wrath é o
meu pai.
Ela pareceu achar graça
daquilo, dando um sorriso discreto
quando me sentei na poltrona à sua
frente.
Os raios solares do início da
manhã atravessavam as grandes janelas
dispostas atrás da investigadora,
iluminando sua pele negra quando ela
entrelaçou as mãos sobre o colo, me
observando atentamente. Me joguei de
maneira displicente sobre o sofá,
cruzando os pés descalços sobre a mesa
de centro.
Ela queria ver um estudante de
direito ardiloso, líder de gangue. Eu lhe
daria um jovem mimado e irresponsável,
exatamente como qualquer outro
estudante da Universidade de Carmine.
Tirei o isqueiro do bolso e um
maço de cigarros, apanhando uma
unidade.
— Se importa? — perguntei,
levantando uma sobrancelha para ela,
que apenas sorriu como se não estivesse
surpresa.
— Nem um pouco.
Eu esperava não estar lendo
mal a sua personalidade. Não queria que
ela tomasse minhas atitudes como
provocações, apenas parecer tão idiota
e desprezível, alguém sem aptidão
alguma para lidar com o submundo do
crime ao qual, provavelmente, ela
queria me atrelar.
Dei uma tragada longa no
cigarro, exagerando na expressão de
prazer que surgiu em meu rosto quando
consumi a nicotina.
— Então, detetive, a que devo a
honra desse interrogatório?
— É agente, na verdade. E não
é um interrogatório. Acredite, se fosse,
você não estaria aqui se sentindo à
vontade no sofá de sua cobertura.
Ri nasalado, ela não se deixava
intimidar. Tinha o meu respeito por isso.
Na verdade, ela parecia uma boa agente,
muito competente. E isso me
preocupava bastante.
— Qual assunto você pretende
tratar comigo, então?
— É sobre o seu pai, Hades.
Fiz questão de gargalhar,
mesmo não havendo a menor graça na
situação.
— Sinto muito, agente, não sei
se poderei ajudá-la nisso. Eu não tenho
uma relação muito paternal com
Frederik Wrath.
Strauss inclinou a cabeça um
pouco. Havia uma ruga de curiosidade
em sua testa. Ela parecia não estar
conseguindo decifrar o homem à sua
frente, o que me deixou muito satisfeito.
— Já percebi isso. Todos viram
nos jornais você arruinando a festa dele.
— O que posso dizer? Não
consigo resistir a uma bela garota. —
Abri os braços enquanto soprava a
fumaça, com um sorriso de escárnio
pairando sobre meus lábios.
Ela respirou fundo, como se
estivesse reunindo toda sua paciência
naquele instante. Então, se inclinou para
frente, os olhos escuros me
perscrutando.
— Não sabe nada sobre os
recentes ataques a empresas menores
vinculadas às Consolidações Wrath?
Então era sobre aquilo. O medo
do meu pai estava se concretizando.
Segurei um palavrão que quis escapar
em alto e bom som e mantive o
semblante irreverente.
Strauss falava devagar, de
maneira clara e direta, e nunca tirava o
olhar atento do meu rosto. A agente
queria me pegar mentindo. Mal sabia ela
que blefar era a minha especialidade.
— Li algo sobre isso na
internet, mas, sinceramente, não me
importei. Provavelmente, aquilo só
causou uma coceirinha no patrimônio de
Frederik.
— Na verdade, muito pelo
contrário. Aqueles pequenos negócios
tão sem importância causaram um
prejuízo de milhões de dólares na conta
da empresa. — Levantei as
sobrancelhas, fingindo estar confuso
enquanto tragava o cigarro mais uma
vez. — Seu pai não te disse isso?
— Não — menti. — Nós não
costumamos conversar muito desde que
percebi o ser humano desprezível que
Frederik Wrath é.
— Acontece, Hades, que essas
empresas faziam parte de um grande
esquema de lavagem de dinheiro. Mas
você não parece surpreso.
Strauss estreitou os olhos em
minha direção e eu dei de ombros.
— Não me surpreende saber
que meu pai está envolvido com coisas
ilegais, se quer saber. Houve um
escândalo sobre fraude e corrupção
envolvendo as Consolidações Wrath no
passado.
— Eu soube disso também.
Mas não conseguiram obter provas o
suficiente. Mas, dessa vez, parece que
as evidências estão por toda parte. Tem
alguma ideia do motivo de seu pai ter
ficado tão descuidado?
— Tenho sim: a ganância dele.
Não há poder ou dinheiro o suficiente
para Frederik. Ele sempre quer mais,
por isso está envolvido até os dentes em
negócios ilegais. Mas acredito que
ninguém fica impune para sempre, não
é?
Strauss balançou a cabeça antes
de tirar uma pasta de dentro de sua
bolsa. Ela mexeu em alguns papéis
dentro do arquivo antes de separar um
específico.
— Pelo o que eu sei, a
tabacaria e a loja de jogos não são as
únicas vinculadas ao capital Wrath. Sua
família é dona de grande parte do
comércio nesta cidade, inclusive de um
bar chamado Pandemônio, que está sob
sua administração, correto?
Trinquei o maxilar, praguejando
mentalmente.
— Correto. Suponho que a
senhora não esteja achando que todos os
comércios de Carmine lavam dinheiro
para meu pai.
Ela sorriu.
— Não, claro que não. Mas
fontes me disseram que o seu bar é uma
fachada para um cassino ilegal e de uma
rede de tráfico de drogas. Isso sem
mencionar as corridas clandestinas, é
claro.
— Pensei que isso não fosse
um interrogatório. Devo ligar para o
meu advogado?
Strauss suspirou antes de voltar
a se recostar contra o sofá. Apaguei o
cigarro no cinzeiro antes de voltar a fitá-
la.
— Veja bem, Hades, não estou
interessada no que quer que esteja
fazendo. Vende erva para universitários?
Não é da conta do FBI. Seu pai é o
peixe grande que queremos pegar.
— Então, se você tem um monte
de evidências, por que não o prende de
uma vez?
— Não quero levar Frederik ao
tribunal apenas para que ele saia impune
novamente.
Estreitei meus olhos, vendo a
confiança dela se desmanchar aos
poucos.
— Deixa eu adivinhar: sua
fonte não é uma boa testemunha? —
Provavelmente, era algum homem que
meu pai prejudicou em seus negócios,
talvez um dos sócios sujos das
Consolidações Wrath. — Quem é ele,
agente?
— Juiz Leopold Scott.
Então aquela era, finalmente, a
vingança do pai do agressor de Alina. O
corrupto juiz Scott que eu pensei ter
deixado de ser um problema assim que
fora afastado do cargo numa
aposentadoria antecipada.
Percebi, também, que havia
uma rachadura na armadura da agente
Strauss. Ela queria muito pegar o meu
pai, eu podia ver isso em seus olhos.
Talvez era essa a razão de seu acordo
com um homem como Scott e isso
poderia levar ela a fazer qualquer
coisa.
— Não está aqui porque acha
que serei seu informante, está?
Obtive minha resposta em seu
rosto no instante seguinte. Ri,
balançando a cabeça. Eu precisava fazer
uma nota mental sobre pesquisar mais
sobre aquela agente mais tarde.
— Eu posso não estar
interessada em ferrá-lo agora, Hades,
mas posso mudar de ideia e te levar
junto com seu pai.
Estalei a língua.
— Não gosto de ser
chantageado, agente.
— E eu não gosto de babacas
mimados e insolentes. Te dou 72 horas
para pensar no acordo.
E, rapidamente, ela se levantou
e saiu, cruzando o apartamento de
maneira tensa e apressada, o que me
explicou muita coisa.
Eu não quero te machucar
Mas você vive pela dor
Eu não estou tentando dizer
Mas é o que você se tornou
Você quer que eu te conserte
Mas nunca é o suficiente
É por isso que você sempre me
liga
Porque você tem medo de ser
amada
Shameless - The Weeknd
A exposição das obras da turma
da srta. McPhil estava marcada para
hoje à noite, quinta-feira, e, felizmente,
eu tinha tudo pronto. Desde de que eu
havia vencido Connor no jogo, estava
seguindo o conselho de Hades sobre se
concentrar em uma coisa de cada vez.
Mergulhei na arte, assim. E foi bom.
Terminei o último quadro na terça e
passei os próximos dias ajudando a srta.
McPhil a organizar tudo.
Durante esse tempo, o
Pandemônio estava tentando colocar
tudo de volta aos eixos. Reabriram o
bar, o cassino e voltaram com as
corridas no Círculo. O esforço de Hades
para não perder sua influência em
Carmine estava sendo hercúleo.
Embora Connor houvesse
recuado, ainda permanecíamos em
alerta. Sabíamos que ele estava
planejando sua próxima jogada.
O galpão onde a exposição foi
montada não ficava muito longe do
campus, perto do centro da cidade. Ele
era utilizado para eventos em geral, mas
adquiriu uma aparência extremamente
refinada para receber as nossas obras.
Minhas pinturas ficavam no
corredor número 5 e, apesar de não
estar completamente satisfeita com todas
elas, eu reconhecia que fizera um bom
trabalho.
— É perfeito. Você é incrível
pra caralho, sabia? — Hades sussurrou
no meu ouvido, me fazendo morder um
sorriso enquanto observava uma das
minhas obras penduradas na parede
cinza-chumbo.
Aquela era a obra principal da
minha coleção e, dentre todas, minha
preferida. Inspirada pela obra de
Bernini, eu havia pintado uma releitura
de sua escultura. No quando diante de
mim estavam Plutão e Proserpina —
Hades e Perséfone. Ele parecia um
moribundo qualquer ajoelhado, cercado
por ossos e trevas, se curvando em
frente ao trono da rainha do submundo.
Perséfone não apenas tinha se libertado,
mas também tomado para si a coroa de
seu sequestrador. E nem mesmo o céu
vermelho, tomado pela tormenta, sobre
suas cabeças parecia mais assustador do
que o olhar de vingança que ela
carregava no rosto
Um sorriso de orgulho surgiu
no canto da minha boca.
O toque suave de Hades em
minha cintura fez minha atenção se
voltar a ele.
Ele estava atrás de mim, com
uma das mãos ao redor do meu quadril e
a outra segurando uma taça de
champanhe. A melodia de uma música
clássica suave tocava baixinho no
ambiente repleto de alunos e outros
visitantes.
Eu estava preenchida por uma
sensação acolhedora de missão
cumprida. Muitas vezes duvidara que
seria possível entregar todas aquelas
pinturas em tão pouco tempo, mas eu
havia realmente conseguido.
Me virei para Hades, sem
poder evitar um arrepio que tomou meu
corpo ao fitá-lo. Ele estava muito bonito
em sua camisa preta com mangas
arregaçadas, expondo as tatuagens que
eu tanto amava em seus braços. Acho
que nunca me acostumaria com a bela
visão do meu namorado.
— Estou feliz — revelei,
surpreendendo a mim mesma.
A minha vida ainda era uma
bagunça deturpada, mas eu havia me
adaptado e encontrado conforto nisso.
Fiz do submundo o meu lar e um dos
grandes culpados disso era o homem em
minha frente. Ele deu um sorriso terno,
se inclinando para depositar um beijo
carinhoso no topo na minha testa.
— Você me faz feliz — Hades
disse, apertando minha cintura por cima
da blusa de seda preta que abraçava meu
corpo levemente.
Coloquei uma mão sobre o seu
ombro e respirei fundo, me preparando
para dizer as palavras que queimavam
meu peito e abarcavam, ao menos em
parte, o que eu sentia por ele.
— Hades, eu am…
— Puta merda, isso é a coisa
mais insana que eu já vi — Alec surgiu
importunamente, enganchando seu braço
em meu pescoço enquanto entornava o
que era provavelmente sua sexta taça de
champanhe naquela noite. — Raven,
você é brilhante. Quer casar comigo?
Meus olhos ainda estavam
presos aos de Hades. Seu semblante
estava completamente sério enquanto ele
me encarava tão fixamente que eu pensei
que me desfaria em cinzas a qualquer
instante.
Talvez ele soubesse exatamente
o que quase dissera e estava
assombrado com essa ideia. Talvez
fosse cedo demais e eu estava prestes a
assustá-lo com aquelas três palavras.
Alec ainda estava tagarelando e
eu me forcei a quebrar o contato visual
com Hades, desviando o olhar de volta
para o quadro.
Na pintura, uma mulher estava
submergindo pacificamente, cercada
pela imensidão azul do oceano. Era um
pouco perturbador, na verdade, mas era
exatamente essa sensação que eu queria
passar. O que eu mais gostava na obra
era a composição de cores. Todas as
variações de azul, verde e roxo
dançavam em conjunto.
— Você consegue ficar bêbado
até em um evento da universidade —
observei, após pigarrear e fitar Alec.
Ele estava sorridente e com a
camisa social muito amassada. Pelo
visto, não a usava há muito tempo, já
que preferia se vestir como um moleque
de colegial.
— Eu sei, não é demais? —
respondeu ele com empolgação. Sorri,
me esforçando para ignorar a maneira
como o olhar fixo de Hades em meu
rosto fazia minha pele queimar.
Talvez ele estivesse muito mais
do que assombrado. Provavelmente,
mortificado.
— Eu estou apaixonado.
Alec voltou a falar, então
percebi que ele estava fitando
melancolicamente alguma coisa do outro
lado do galpão. Estiquei meu pescoço,
procurando o foco de sua atenção, e
encontrei George conversando com
Libby e Alina próximo a um grande
painel pintado por outro aluno.
— Por George? — Levantei as
sobrancelhas. — Deveria dizer a ele,
então.
Não era surpresa que os dois
estavam ficando há algumas semanas,
mas imaginei que isso não passava de
um lance casual.
— Não estou tão bêbado
assim.
— E se for recíproco? Você
estará perdendo tempo por medo de
expor seus sentimentos. — Olhei para
Hades de relance. Ele tinha a testa
franzida e o olhar vago, perdido em
algum lugar.
— É, acho que sim… — Alec
suspirou, contemplativo.
— Eu vou lá fora fumar —
avisei, depois de algum tempo em
silêncio. Forcei um sorriso na direção
deles e me virei, andando até a saída do
galpão.
O lugar tinha o chão de um tom
escuro de cinza chumbo, o mesmo das
paredes, com lustres de metal em estilo
industrial dependurados no teto. Era
bastante sofisticado para uma galeria
improvisada.
Assim que passei pela grande
porta dupla e me vi lá fora, puxei um
cigarro da bolsa clutch e o acendi.
O ar estava gelado, mas meu
casaco e minhas calças faziam um bom
trabalho me aquecendo. Quando aspirei
a nicotina para dentro do meu
organismo, senti a tensão diminuir e
meus músculos relaxarem. Era quase
como um alívio instantâneo.
Cruzei os braços enquanto
expirava a fumaça e olhava ao redor.
Apesar de estar de noite, as luzes dos
postes faziam um bom trabalhando
iluminando os arredores. Algumas
pessoas transitavam pelas ruas, outras
estavam paradas fumando ou
conversando. Me distraí os observando
por alguns segundos, de modo que não
percebi quando alguém se aproximou.
— Tem um cigarro? — ela
perguntou, atraindo meu olhar para seu
rosto.
— Claro.
A mulher era alta e tinha os
cabelos castanhos encaracolados na
altura dos ombros. Usava um par de
óculos e trajava um terninho vermelho.
Bastante elegante.
Tirei outro cigarro da bolsa e
me ofereci para acendê-lo.
— Você é Raven Clarke, não é?
— Ela soprou a fumaça. Franzi o cenho,
desconfiada, antes de anuir com a
cabeça. Logo depois, a mulher se
apressou em estender uma mão para me
cumprimentar. — Sou Emily Turn.
O reconhecimento fez minhas
sobrancelhas quase baterem no alto da
minha testa, assim como o sorriso de
surpresa e admiração que surgiu em meu
rosto quando apertei sua mão.
— Emily Turn de Nova York?
O que está fazendo aqui?
Ela sorriu, ajeitando os óculos
sobre seu nariz largo e reto.
Turn era uma crítica de artes
bem conhecida na Costa Leste. Eu
costumava ler seus artigos para o NY Art
Journal o tempo todo quando morava
em Dallas. Foi inevitável não me sentir
eufórica com sua presença; afinal, ela
estava vendo as obras que eu pintei — e
que não eram, nem de longe, tão boas
quanto as pinturas que Emily criticava
duramente.
— A professora McPhil e eu
somos velhas amigas. Ela garantiu que
eu encontraria novos e promissores
artistas por aqui. Sydney estava certa no
fim das contas, suas pinturas realmente
me tocaram, srta. Clarke.
Sorri, ainda incrédula e me
segurei para não chorar diante de seu
elogio.
— Eu nem sei o que dizer…
Isso significa muito para mim, obrigada.
Ela apenas deu de ombros antes
de olhar para trás, analisando a fachada
do galpão.
— É realmente uma pena o que
aconteceu com a galeria de Evelyn
Florence, não é? Teria sido muito bonito
ver todas essas obras incríveis lá.
Suspirei, assentindo com a
cabeça. Eu ainda sentia raiva quando
pensava em como aquele lugar havia
queimado até as cinzas por culpa de
Connor e Joel. Um dia eu realmente
faria ambos pagarem por isso.
— Foi horrível. O lugar era
administrado por outra pessoa, mas
pertencia à Frederik Wrath. Ele não vai
reconstruí-la.
Ao menos era o que Hades me
dissera. Seu pai nunca se importara com
o último legado de sua falecida esposa,
talvez até tivesse ficado aliviado por
não precisar mais lidar com a galeria.
— Como tem tanta certeza
disso?
Dei uma longa tragada e,
depois, um sorriso fraco. A única
resposta que lhe dei foi:
— Ele é meu sogro.
E meu padrasto.
Emily não disfarçou a surpresa
em seu rosto. Comprimi os lábios em
uma linha fina enquanto desviava o olhar
para o outro lado da rua. Fumamos em
silêncio por alguns minutos. Quando ela
terminou, jogou a guimba do cigarro no
chão e o amassou com o solado de seu
scarpin.
— Foi um prazer conhecer
você, srta. Clarke — ela falou, dando-
me um sorriso amigável que eu logo
retribuí.
— Igualmente.
A mulher fez menção de se
virar e voltar para dentro do galpão.
Antes, porém, se deteve e olhou-me
novamente.
— Acha que seu sogro estaria
interessado em me vender a galeria? Ou
o que sobrou dela, pelo menos?
As palavras escaparam de mim.
Aquela ideia era realmente incrível e a
possibilidade de acontecer era melhor
ainda. Hades ficaria extasiado. Se havia
alguém capaz de colocar a galeria de
Evelyn de pé novamente, essa pessoa
seria Emily Turn.
— Acredito que sim.
Pelo o que Hades me dissera,
as coisas não estavam, financeiramente,
muito boas para Frederik Wrath e Turn
era uma mulher rica e influente no ramo
em que atuava. Seria uma boa
oportunidade de negócio para ele.
— Ótimo — respondeu Emily
antes de me lançar uma piscadela de
cumplicidade e entrar no galpão.
Eu estava pronta para imitá-la,
quando uma movimentação do outro
lado da rua chamou minha atenção. Três
motocicletas apareceram em alta
velocidade e estacionaram em fileira
diante de um bar. Os homens que
saltaram delas vestiam roupas de couro.
Quando retiraram os capacetes,
reconheci um deles imediatamente. Era
um Dagger. O mesmo que estava no
Pandemônio na tarde do jogo de pôquer
que me fez recuperá-lo. Nick o chamara
de Slade.
Ele capturou meu olhar e sorriu
com isso. Ergui o queixo, demonstrando
em minha postura que ele não me
intimidava. Na verdade, eu até gostaria
de vê-lo tentar alguma coisa ali na frente
de todo mundo. Continuei sustentando
aquela guerra de encarar quando uma
mão grande e forte foi colocada em meu
ombro. Ergui o rosto para encontrar
Wade ao meu lado, olhando para os
Daggers também.
— Está tudo bem, Clarke? —
perguntou, com sua voz grave e rouca.
Assenti.
— Só esses babacas achando
que podem me amedrontar — comentei,
dando de ombros. Eu sabia que Wade
estava armado, pronto para qualquer
situação. — Acha que eles estão
seguindo qual dos dois líderes: Connor
ou Garrett?
Na noite anterior, Hades fizera
uma reunião durante meu turno no
Pandemônio para conversar sobre a
situação dos Daggers. Ou, pelo menos,
sobre o que Nick lhe contara. Aquilo,
definitivamente poderia nos dar uma
vantagem.
— Slade é um dos antigos
homens de Voich. É um Dagger há anos.
Ele e Chuck convenceram Hive a entrar
pra gangue.
Os três motoqueiros não
continuaram ali na mira de Wade. Nos
deram as costas, com olhares
desconfiados, antes de entrarem no bar.
— Você o odeia, não é? —
perguntei, lembrando de sua reação
perto de Nick.
— Admito que sim —
respondeu, sério. — Não vou perdoá-lo
pelo o que fez à Selina.
Assenti em silêncio.
Ele parecia muito protetor com
a filha do xerife e algo em seu olhar me
dizia que não era apenas porque ela era
sua amiga. Ele gostava dela.
Não continuei com aquele
assunto, porém. Estava claro que aquele
era um assunto complicado e Wade não
iria querer compartilhar seus
sentimentos comigo. Afinal, poucas
semanas atrás eu ainda sentia que ele
desconfiava de mim.
— Se essa disputa entre Voich e
Kamps acontecer, sabemos qual lado vai
ganhar. Acha que o tal Seven está
ganhando influência para a nova matilha
de Connor?
Wade ponderou por alguns
segundos, passando a mão sobre sua
cabeça raspada antes de coçar a barba
rala.
— É uma possibilidade, sim.
Hades não demonstrou tanta
preocupação quanto ao novo fantasma
de Carmine. Seven, porém, estava
trabalhando nas sombras e eu tinha um
mau pressentimento quanto a ele.
Antes que eu pudesse falar
alguma coisa, percebi Wade ficar rígido,
olhando para algo atrás de mim. No
mesmo instante, me virei. Fiquei tão
tensa quanto ele, além de completamente
chocada.
Eu não estava preparada para
ver Astrid na minha frente tão cedo.
Ainda assim, ali estava ela.
Os mesmos cabelos longos e
escuros, íris quase transparentes em seus
olhos fundos. Notei como sua pele
estava macilenta, com ossos saltando em
suas clavículas. Minha mãe estava
apenas parada ali, me olhando como se
eu fosse uma assombração.
Depois de procurá-la por tanto
tempo, de sofrer pelo seu abandono,
agora não sentia mais nada. Não estava
feliz por reencontrá-la, ou com vontade
de lhe abraçar. Na verdade, após nosso
último telefonema, eu não teria me
importado em não a ver nunca mais.
— Meu passarinho… — ela
sussurrou de maneira fraca e
fantasmagórica, dando um passo na
minha direção. Rapidamente recuei. —
Raven…
— Por que está aqui? — Minha
voz era dura e isso lhe atingiu, pude ver
a mágoa cruzar seus olhos.
— Você esteve me procurando
— Astrid falou de maneira vaga,
tentando novamente dar um passo para
se aproximar de mim. Dessa vez, não me
movi para me distanciar.
— Sim, eu estive. Eu também
economizei cada mísero centavo que
consegui para pagar sua dívida com
Joel. Pensei que era por isso que você
não tinha entrado em contato comigo.
Porque estava fugindo, com medo. Mas
não. — Ri, um pouco irritada. —
Enquanto eu era a serva pessoal de
McKinley, você estava dormindo no
palácio de Frederik Wrath.
Astrid se encolheu, como se eu
tivesse lhe dado um tiro. Minha visão
ficou embaçada com lágrimas de
ressentimento que eu rapidamente
afastei.
— Passarinho, por favor,
vamos conversar em particular…
Ela indicou Wade com a
cabeça. Suspirei, olhando-o. Ele parecia
preocupado, relutante em se afastar. Lhe
disse que estava tudo bem e que logo
entraria. Assim, Wade se distanciou,
atravessando as portas do galpão. Ele
ainda permaneceu por perto, nos
vigiando por detrás do vidro. Cruzei os
braços, voltando a olhar para minha
mãe.
— Muito bem. Agora diga o
que quer.
Astrid respirou fundo, passando
os dedos esqueléticos pelos cabelos.
Ela estava bem vestida, com roupas
caras, compradas às custas de seu noivo.
Ainda assim, sua aparência era terrível
e, por um instante, me senti culpada.
— Frederik está fora esta noite
e eu sabia que encontraria você aqui.
Queria te ver. — Ela olhava para os
próprios pés enquanto falava. Astrid
podia estar rica agora, mas ainda
parecia frágil. Como um filhote fraco e
ferido. — Eu estive sim fugindo de Joel.
O único lugar seguro para mim era aqui
em Carmine. Você sabia disso também,
por isso veio pra cá. Ainda assim, Joel
iria me encontrar, eu sabia disso. Mas
Frederik me achou primeiro. Me
ofereceu proteção em troca do
casamento. Tem sido bom pra mim,
filha…
— Acha que Frederik fez isso
por causa da bondade de seu coração?
Ele é maligno, mãe. Você foi a vingança
dele contra Joel. Sabia que McKinley
engravidou a esposa de Wrath muitos
anos atrás? Agora Dallas está numa
guerra contra Carmine e seu casamento e
o orgulho ferido de Joel desencadearam
isso.
— Não — Astrid falou,
balançando a cabeça para enfaticamente.
— Não havia como Joel ficar sabendo
sobre isso. Temos sido discretos, eu mal
apareço em público e…
— Ainda assim, ele ficou
sabendo. Não importa como.
Os motivos que fizeram Joel
dar fim ao seu acordo de paz com Wrath
e finalmente tomar coragem para tomar o
território que tanto queria ainda eram
nebulosos. Eu sabia que tinha a ver com
a vingança estúpida de Frederik ao se
casar com minha mãe, mas talvez
houvesse algo mais. Afinal, os
confrontos entre eles só haviam
começado, na verdade, quando eu me
mudara para Carmine.
Poderia ter algo a ver comigo
também?
Varri aquela possibilidade para
longe da minha mente e me concentrei
em Astrid.
— O que eu disse sobre
podermos ser uma família, ainda pode
acontecer.
Queria lhe dizer sobre como
FBI estava na cola de Frederik e como
sua empresa estava em ruínas. Não
duvidava nada que, em breve, ele
fugisse para o outro lado do mundo e a
abandonasse ali. Eu não poderia contar-
lhe aquelas coisas, no entanto. Não
podia confiar em minha mãe. Ela havia
sofrido uma grande lavagem cerebral de
Wrath.
— Vá embora, mãe — pedi,
com cansaço explícito em minha voz. —
Por favor.
Ela parecia muito triste quando
me obedeceu, dando-me um último olhar
magoado antes de se virar e entrar num
carro que parecia estar esperando por
ela. Passei as mãos no rosto, sentindo
um grande peso se instalar em meus
ombros quando voltei para dentro do
galpão.
A sensação de felicidade que
eu havia sentido mais cedo fora efêmera,
como o esperado. Agora eu mal
conseguia me empolgar com a ideia da
exposição ou da venda da galeria.
Percebi que tudo estava prestes
a piorar quando ergui o rosto,
encontrando uma certa aglomeração. A
atenção deles estava em Hades, que
segurava em seus braços uma mulher
com roupas esfarrapadas. Andei em
passos firmes naquela direção, atraindo
rapidamente o olhar dela.
Ofeguei, incrédula, quando seu
nome escapou dos meus lábios.
— Maria?
E você anda por aí como se
fosse tão inocente
Sangue frio, sangue frio
É porque você está
acostumada com gente sempre te
fazendo sentir mal?
Você realmente me ama?
Ou é apenas uma vingança?
Cold Blooded - Khalid
Eu estava com os braços
cruzados sobre o peito enquanto meu pé
batia repetidamente contra o chão do
almoxarifado do galpão. Meus olhos não
desgrudavam da figura de Maria,
sentada sobre um pequeno banco de
madeira enquanto bebia um copo d'água.
Ao meu lado estava Hades e, do outro
lado da sala, perto da porta, Wade. O
silêncio sepulcral estava me deixando
apenas mais nervosa.
A garota tinha os cabelos
grossos e muito longos, em um tom bem
escuro de castanho. Suas roupas estavam
sujas e esfarrapadas. Provavelmente,
estava usando elas há dias.
Sua presença me transportava
ao passado, iluminando memórias que
eu enterrara profundamente. Eu estava
apavorada com a ideia de ter que
encarar aquilo de novo, de ter que
lembrar do pior dia da minha vida. Não
que Maria tivesse culpa, mas, assim que
surgiu em minha frente, ela destrancou
uma parte da minha mente que ainda era
assombrada. Uma parte que me
assustava.
E, além de tudo, havia a
vergonha. Porque Maria fora deixada
para trás no inferno e a culpa era toda
minha.
— Como você chegou aqui,
Maria? — perguntei, quando ela
terminou sua água e me encarou com
seus enormes olhos redondos e
castanhos.
Ela era uma garota bonita,
poucos anos mais velha que eu. Tinha
lábios carnudos em forma de coração e
sobrancelhas grossas.
Sua pele tinha um fundo
avermelhado e seus braços eram tão
finos quanto os meus estavam quando
fugira de Dallas.
— Da mesma forma que você,
eu acho. De ônibus. — Seu sotaque
mexicano era bem presente, apesar de
ela estar há muitos anos nos Estados
Unidos.
Mordi o interior da bochecha.
— Quando você fugiu? —
perguntei, me sentindo cada vez mais
nervosa. Olhei de relance para Hades,
que parecia confuso.
Maria deu de ombros, secando
o suor de sua testa com as costas da
mão.
— Quando eu tive certeza que
era aqui que você estava. Vi sua foto
com Hades Wrath na internet —
esclareceu, me fazendo engolir em seco.
Wade se aproximou com os
braços cruzados e uma feição hostil e
desconfiada característica, usada
sempre que estava perto de estranhos.
— Afinal, quem é você? —
perguntou ele, estreitando os olhos para
Maria.
A garota olhou para mim por
um instante antes de fitá-lo.
— Eu era uma das garotas que
trabalham para Joel McKinley. Os
homens de Vance me sequestraram
quando eu ainda era adolescente. Me
venderam para McKinley junto com
várias outras — ela explicou, fazendo
meu estômago revirar.
A história dela não era das
mais leves. Maria, assim como todas as
outras garotas que trabalhavam para
Joel, tinha uma vida dura. Sofria todos
os dias coisas que eu jamais seria capaz
de suportar.
— Vance? — Wade franziu o
cenho.
Balancei a cabeça.
— Ele é o chefe do cartel de El
Sangria, uma cidade na fronteira da
Baixa Califórnia, entre Tijuana e São
Diego. Vance é um dos poucos aliados
de Joel — disse, alternando meu olhar
entre Wade e Hades.
— Ele era — corrigiu Maria.
— Mas nem mesmo ele aprova a guerra
que McKinley iniciou contra Carmine.
Minha breve explicação não
fazia jus a ele. Caesar Vance era um
monstro. Pior do que Frederik e Joel
juntos.
Ele começara sua fama e
fortuna como um traficante de armas de
guerra no Oriente Médio. Quando
passou a ser procurado pela CIA e a
Interpol, se refugiou em sua cidade
natal. As forças políticas e policiais de
lá estão na folha de pagamento de Vance,
de modo que não vão entregá-lo para ser
preso em outro país, e nenhum deles está
disposto a começar uma guerra
diplomática por isso.
Vance utilizou o fato de não
poder sair de El Sangria ao seu favor.
Ele controla a fronteira do México com
os EUA e, praticamente, triplicou seu
patrimônio nos últimos anos.
— As coisas estão ruins em
Dallas, Raven — Maria continuou, se
levantando para nivelar nossas alturas.
— Joel ficou completamente maluco.
Está se livrando de qualquer um que
olhe torto para ele.
Suspirei.
Fazer aquele tipo de coisa
realmente era o estilo de Joel. Ele nunca
fora uma pessoa controlada e os últimos
acontecimentos provavelmente haviam
acabado com o resto de sua sanidade.
Pensei, instantaneamente, em
todas as mulheres que trabalhavam, sob
rédeas curtas, em suas boates e
recebiam nada além de sua ira.
Senti um nó crescer em minha
garganta ao lembrar de suas figuras
pálidas e franzinas.
— Isso é tudo culpa minha —
murmurei, passando as mãos nos
cabelos enquanto me virava.
— Raven… — Hades
murmurou, colocando uma mão em meu
ombro.
— Não. — Balancei a cabeça,
me distanciando. — Você não sabe como
é.
Enquanto eu havia passado os
últimos dias tão feliz quanto era
possível, me concentrando nos meus
estudos e no meu namorado, aquelas
garotas, que eu abandonara, estavam lá
sofrendo nas mãos de Joel McKinley.
E, embora elas permanecessem
no fundo da minha mente como um
lembrete constante, aquilo não era o
suficiente. Eu me deixara levar pela
ideia de que tudo se resolveria com o
tempo, porque estava sendo egoísta.
Para as garotas deixadas para
trás, não havia mais tempo.
— Ainda me deve uma, Raven.
E agora eu sei que pode fazer algo a
respeito. Você não é mais uma de nós, é
um deles.
Eu queria dizer que o
Pandemônio não era nada como a máfia
de Dallas, e que Hades não tinha nada a
ver com Joel. Mas, pensando bem,
talvez ela estivesse certa. Era o mesmo
dinheiro sujo que enchia os bolsos de
ambos. Quando fugi do Texas, jurei que
nunca mais chegaria perto desse
submundo de novo.
Eu era uma hipócrita.
Engoli em seco, me virando.
Hades captou meu olhar nesse instante e
eu sabia que ele estava se perguntando
por que eu devia à Maria, mas eu não
estava pronta para lhe dar aquela
resposta ainda.
— Não sei o que podemos
fazer, Maria. — Fui honesta, apesar da
verdade me machucar. — O Pandemônio
não tem poderio o suficiente para um
embate direto contra os homens de Joel,
principalmente agora que está em guerra
com uma gangue local, os Daggers.
Além disso, Frederik Wrath não tem
mais o dinheiro nem a influência que
costumava ter.
Maria se levantou, cruzando os
braços sobre o peito enquanto me olhava
fixamente.
— Não é por isso que você está
aqui com ele, afinal? Pelo dinheiro? —
Ela indicou Hades com a cabeça,
fazendo meus olhos se arregalarem.
— Eu… — As palavras
sumiram do meu vocabulário enquanto
eu tentava não parecer tão ofendida
quanto realmente havia ficado. — Não.
É claro que não. Eu não sou a minha
mãe.
— Não me importa quem você
seja. Você me deve — ela sibilou
entredentes, me fazendo suspirar. Não a
culpava por sua raiva ou ressentimento.
Eu merecia aquilo.
Permanecemos nos encarando
por longos segundos. Eu sabia que
talvez ela e Stephen não conseguissem
entender meu relacionamento com
Hades. Ambos sabiam muito bem sobre
o dinheiro e a reputação dos Wrath,
então poderia parecer que era por isso
que eu estava com ele; pelo mesmo
motivo que Astrid estava com Frederik.
— Do que você precisa? —
Hades perguntou, quebrando o silêncio
com seu tom de voz duro e firme,
reivindicando o controle da situação.
Maria ergueu o queixo,
procurando se impor. Depois de tudo o
que ela havia visto e enfrentado, eu não
tinha dúvidas de que Hades realmente
não a abalava.
— Quero que acabem com Joel
McKinley — respondeu de maneira
objetiva.
— Tudo bem, considere feito.
Meu queixo caiu e meus olhos
se fixaram na figura de Hades. Ele
parecia convicto, com as mãos nos
bolsos e o semblante frio e impassível
que costumava usar quando lidava com
os negócios da gangue.
Como diabos ele pretendia
fazer aquilo?
Não o interrompi, entretanto.
Podíamos discutir os pormenores
depois.
— Ótimo — Maria falou,
satisfeita. Vi seus olhos escuros se
encherem de alívio. Ela fazia menção de
se virar para sair, quando eu a
interrompi:
— Maria, é muito perigoso
para você ficar nessa cidade. Existem
homens do Joel por toda parte agora.
Hades assentiu com a cabeça.
— Você está certa. Wade, leve-
a para um lugar seguro e peça ao xerife
que mande dois de seus homens para
protegê-la até que tudo esteja resolvido
com McKinley.
Wade anuiu antes de andar até a
porta, mas parou ao perceber que não
estava sendo seguido de imediato por
Maria. A garota estava fitando Hades
com os olhos estreitos em desconfiança.
— Não vou lhe agradecer,
Wrath, se é isso o que quer.
— Você não deve agradecer,
Maria.
Então, sem dizer mais nada, ela
saiu com Wade.
Respirei fundo, me acalmando,
antes de me virar para Hades.
— Como diabos pretende matar
Joel?
Hades me fitou, seu belo rosto
estava completamente tranquilo.
— Não pretendo matá-lo. Vou
entregá-lo ao FBI. — Ele deu de
ombros, como se fosse tão simples
quanto beber um copo d'água.
— Hades, não podemos! Eu te
disse o que Joel fará quando descobrir
que está na mira do FBI.
— Eu sei, Raven, mas é a única
maneira.
— Não! — Dei um passo para
trás, escapando de seu toque quando ele
levantou uma mão e a levou em direção
ao meu ombro. — Elas vão morrer e eu
não vou permitir isso. Hades, elas não
podem…
— Amor — falou, olhando
firme e diretamente em meus olhos. —
Não vou permitir que nenhuma delas se
machuque.
— Não pode garantir isso.
— Posso, sim.
— Como?
— Conversei com a agente
Strauss, que me ligou quando estávamos
em Vegas. Ela está atrás do meu pai.
Quer prendê-lo a qualquer custo, vi isso
em seus olhos. E ela quer minha ajuda
para isso. Me deu 72 horas para aceitar
seu acordo, ou então ela vai me ferrar
junto com ele.
Balancei a cabeça.
— E quando você pretendia me
contar isso?
— Depois da exposição. Não
queria estragar sua noite.
Mordi o interior da bochecha,
relutante em aceitar aquilo.
— Você vai ajudá-la?
— Talvez eu possa fazer outro
acordo. Ela me dá o Joel e eu lhe dou o
Frederik.
Massageei as têmporas,
bufando.
— Como sabe que ela vai
aceitar quando pode simplesmente
acabar com você?
— Todo mundo tem segredos e
eu vou descobrir qual é o dela. Notei
que sua caçada à Frederik é pessoal.
Vou descobrir o porquê e usar isso para
negociar.
Um movimento errado de
Hades e tudo poderia dar errado. Ele
poderia terminar preso, o Pandemônio
se ferraria junto, as garotas de Dallas
morreriam. Connor e Joel poderiam sair
impunes.
Eu não conseguia suportar
aquela possibilidade. Apenas a ideia me
fazia sentir náuseas.
— Você não pode cometer
nenhum erro agora.
— Eu não irei, amor.
Hades deu um passo na minha
direção e colocou sua mão sobre meu
rosto. O toque familiar contra minha
pele fazia eu querer fechar os olhos e
apenas desfrutar daquela sensação.
Queria acreditar que ele tinha o poder
de fazer tudo dar certo.
Sem dúvidas Hades acreditava
que não havia limites para o que podia
fazer. Afinal, ele estava no topo. Mas
isso não me convencia. Estando tão no
alto como os Wrath estavam, a queda se
tornava ainda maior e mais dolorosa.
— Espero que sim. Eu não
suportaria se…
Não consegui terminar a frase,
mas Hades havia compreendido. Ele me
puxou para um abraço.
— Não é sua culpa, amor —
falou, afagando meus cabelos para me
reconfortar.
Me senti grata por ele não ter
me pressionado para lhe contar sobre
minha relação com Maria, sobre minha
dívida com ela. Ele sabia que eu ainda
não estava pronta para expor aquela
parte de mim. Temia que dizer aquilo em
voz alta fosse me mudar para sempre.
— Hades, eu não tenho o
direito de ser feliz enquanto essas
garotas estão sofrendo.
— Em breve elas não estarão
mais sofrendo. E então eu vou passar
todos os dias, pelo resto da minha vida,
garantindo que você seja feliz.
Nunca quis tanto acreditar em
algo como naquele momento.
Todos os cavalos do rei e todos
os homens reis
Nunca coloquem meu coração
junto novamente
Eu estou me afogando
Afogando
Lost it All - Jill Andrews

Hades não mentira quando disse


que era bom em descobrir segredos.
Bastou um dia de pesquisa para
que ele dissecasse a vida inteira da
agente Abigail Strauss. Com a ajuda de
um detetive particular, que costumava
trabalhar para os Wrath, ele encontrara o
elo entre Strauss e Frederik. A
informação não nos surpreendeu e,
embora não fosse tão grave quanto
esperávamos, seria o suficiente para
chantageá-la.
O Pandemônio estava todo
reunido na cobertura de Hades quando
ele recebera o dossiê da família
Campbell — sobrenome paterno de
Abigail — e, imediatamente, ligara para
a agente. Ela aceitou a proposta de
Hades rápido demais, temendo a ameaça
ao seu cargo no FBI.
Ao menos uma parte daquele
plano nós conseguimos resolver.
Entretanto, aquela não era, nem de
longe, a parte mais difícil. Eu ainda
temia que as coisas dessem errado e que
as garotas de Dallas pagassem o preço.
— Ela garantiu que nenhuma
delas sairá ferida — Hades afirmou
quando lhe questionei sobre isso, após
encerrar a chamada com Strauss. — Mas
vai precisar que você lhe dê toda
informação que puder sobre a máfia de
McKinley.
— Posso fazer isso —
respondi, nervosa com a situação.
— Ela vai vir até aqui em
algumas horas.
Assenti e voltei a me sentar no
sofá, de certa forma aliviada.
— Agora tudo faz sentido —
Khalil falou, ao meu lado.
— Ninguém está livre do
desejo de vingança — observei,
pensativa.
Peter Campbell, pai de Abigail
Strauss, trabalhara nas Consolidações
Wrath. Quando, seis anos atrás, o FBI
estava investigando possíveis fraudes
corporativas e financeiras nas
Consolidações Wrath, Frederik entregou
uma porção de funcionários como os
verdadeiros culpados para livrar o
próprio pescoço. Mesmo o caso tendo
sido arquivado por falta de provas, foi
um grande escândalo na época.
Uma dúzia de pessoas
perderam seus empregos e tiveram a
reputação jogada na lama por causa
disso. Incluindo Peter Campbell, que se
suicidou por causa disso pouco tempo
depois.
— Não tiro a razão de Strauss
— Alec murmurou do outro lado do
cômodo, sentado sobre um dos balcões
da ilha da cozinha. — Seu pai é um
grandíssimo filho da puta, Hades.
— Alec! — Fiona o
repreendeu, dando um tapa em seu
ombro, enquanto fumava ao lado dele.
Hades, que estava de braços
cruzados e com o ombro escorado num
dos pilares da sala de estar, riu
nasalado.
— Pode acreditar, ninguém
acha isso mais do que eu.
— Bem, então é isso? — Selina
se pronunciou, levantando-se sobre suas
botas de salto alto. Ela esteve com uma
carranca muito perceptível durante toda
a noite, mas manteve-se quieta na
maioria do tempo. Até agora. —
Passamos a negociar com os federais
por causa da garçonete. Aparentemente,
o Pandemônio só gira em torno dos
problemas dela agora.
Massageei minha nuca,
cansada. A ruiva me chamando de
garçonete para me diminuir não me
afetava. O que realmente me deixava
incomodada era a maneira como ela se
esforçava para parecer que eu, de fato,
não era e nunca seria um deles. Como se
eu só tivesse algumas regalias por
namorar o chefe.
— Puta que pariu, Selina —
xingou Fiona, se levantando. — Qual o
seu problema?
— Está tudo bem, Fiona —
interrompi, me levantando. — A opinião
dela é válida.
Selina riu alto com deboche e
prepotência.
— Eu não preciso que você me
defenda — disse ela, me olhando com
seus olhos estreitos de felino.
— Não vou brigar com você,
por mais que você deseje isso.
Eu estava sendo sincera.
Aquilo não era uma maldita competição.
Desde que o Pandemônio descobrira
sobre minha verdadeira identidade, a
percepção de Selina sobre mim parecia
ter apenas piorado.
A ruiva me encarou por alguns
segundos, como se pudesse me reduzir a
pó com seus olhos verdes e brilhantes.
— Está tudo sob controle com
o FBI, Selina — Hades interviu,
quebrando o silêncio e atraindo a
atenção dela. — Eu garanto.
— Me desculpe por não
conseguir mais acreditar na sua palavra,
Wrath — ela rebateu, estalando a língua.
Não pude deixar de me sentir
um pouco culpada por ser o motivo de
um conflito entre Selina e o resto do
Pandemônio. Não podíamos nos deixar
fragmentar, ou poderíamos cair primeiro
que os Daggers.
— Não precisa acreditar. É o
que vai acontecer.
Eu estava confiando que aquilo
seria o suficiente para manter o
Pandemônio longe da mira do FBI.
Antes que alguém pudesse dizer
mais alguma coisa, o celular de Hades
começou a tocar. Ele pareceu um tanto
aliviado com a interrupção daquela
conversa.
— Wade? — ele indagou,
franzindo o cenho.
Todos ficaram em silêncio,
enquanto Hades ouvia o que o amigo
tinha a dizer. Logo Wrath se empertigou
e eu, rapidamente, reconheci o olhar de
preocupação em seu rosto. Depois de
poucos segundos, ele desligou, dizendo
que estava indo ao encontro de Wade.
Naquela noite, Wade havia
ficado encarregado de cuidar de uma
das corridas clandestinas que
aconteciam no Círculo. Normalmente,
ele conseguia dar conta daquilo, mas se
havia ligado para Hades pedindo
suporte, algo estava errado.
— O que houve? — Khalil se
levantou, cruzando os braços.
— Um grupo de apostadores
apareceram. Eles estão, nas palavras de
Wade, “drogados pra caralho”. Estão
totalmente descontrolados. Começaram
uma briga e agora alguns Daggers
apareceram.
Os traficantes do Pandemônio
respeitavam os limites impostos por
Hades quanto àqueles negócios. Havia
um limite máximo para a quantidade de
droga que eles podiam vender para cada
cliente. E não era o suficiente para que
alguém ficasse descontrolado assim.
— Acha que é coisa do Seven?
— Khalil perguntou, preocupado. Hades
deu de ombros.
— Talvez. Temos que ir para
lá. Agora.
Fiquei tão preocupada quanto
ele, mas não pude segui-los para a porta.
Strauss chegaria em breve e eu
precisaria estar ali para lhe das as
informações que ela precisava para
acabar com McKinley.
— Há algo que eu possa fazer?
— perguntei, apreensiva, quando me
aproximei de Hades.
Ele apanhou sua jaqueta do
Pandemônio, que estava jogada sobre o
aparador, e a vestiu.
— Não, amor. Conseguimos dar
conta dos malditos Daggers. Garantir
que Strauss pegue McKinley é mais
importante.
Bufei, cruzando os braços.
Eu não ficaria tranquila,
contudo. A ideia de não estar junto com
ele e nossos amigos, numa situação
perigosa como aquela, me perturbava
demais.
— Não quero ficar aqui sem
saber o que pode acontecer com vocês.
Ele afastou uma mecha de
cabelo do meu rosto com seu toque
suave.
— Vou ligar para o xerife
Callow e pedir que ele ajude a controlar
a situação. — Ainda assim, aquilo não
me tranquilizava e Hades percebeu o
incômodo em meu olhar, de modo que se
inclinou para depositar um selinho em
meus lábios. — Prometo que vou voltar
cedo e fazer o resto da noite valer a
pena.
Ele sorriu malicioso. Suspirei
e, a contragosto, balancei a cabeça,
anuindo. Assim que ele fez menção de
sair, entretanto, não me contive.
— Hades… — Ele se virou
para me olhar.
— Sim?
— Eu… — Mordi o lábio
inferior, me calando. As palavras
simplesmente não saíram. Hades
estreitou os olhos, esperando. Por fim,
apenas pigarreei e completei com: —
Toma cuidado lá.
Ele sorriu e assentiu, girando
sobre os calcanhares. Antes de sair,
porém, ele interrompeu Selina, que
também fazia seu caminho em direção ao
elevador.
— Você fica também.
— O quê?! — a ruiva gritou em
indignação.
— Pensem nisso como um
tempo para se conhecerem melhor —
explicou ele, claramente se divertindo
com a situação. O reprimi com meu
olhar, o que só fez ele rir ainda mais ao
entrar no elevador.
— Boa sorte — desejou Fiona
para mim, também fazendo seu caminho
até a saída.
Bufei alto ao me ver na enorme
cobertura de Hades sozinha com Selina
Callow. Ela parecia tão insatisfeita
quanto eu ao me encarar como se
estivesse contemplando sobre o que
deveria fazer comigo. Antes que ela
dissesse qualquer coisa, entretanto,
marchei decididamente em direção às
escadas.
— Estou indo pro quarto —
avisei, subindo os degraus, mas não
recebi nenhuma resposta.
Era quase meia-noite quando
Strauss finalmente apareceu.
Eu havia lhe passado todas as
informações que me recordava sobre a
máfia de Dallas, e também os nomes de
todos os homens que trabalhavam para
McKinley. Embora fosse do FBI e
tivesse inicialmente ameaçado Hades,
Abigail me passou confiança. Ela era
determinada e parecia ser uma boa
pessoa. Entreguei nas mãos dela a vida
de uma dezena de garotas, esperando
que fosse a coisa certa a ser feita.
Strauss dissera que começaria a
busca por Joel imediatamente e que
poderia convencer seu chefe, o agente
supervisor do departamento, a mobilizar
forças para destruir McKinley.
O Pandemônio, no fim das
contas, não tinha recursos o suficiente
para ir à Dallas acabar com os negócios
de McKinley. Principalmente agora, que
as empresas Wrath estavam em crise e o
dinheiro de Hades estava minguando. O
FBI era a única maneira de ajudar Maria
e todas as outras vítimas do meu
padrasto.
Agora não podíamos fazer mais
nada além de esperar.
Após Abigail ir embora, tentei
aguardar o retorno de Hades. O cansaço
me venceu, porém, e acabei
adormecendo em sua cama.
Não dormi por muito tempo,
contudo. Um som abafado me acordou
de maneira repentina, de modo que me
sentei sobre a cama, assustada,
encarando o quarto envolto na luz
azulada da noite. O relógio na mesinha
de cabeceira indicava que passava de
duas horas da madrugada.
Suspirei, passando a mão sobre
o colchão, no espaço vazio ao meu lado.
Hades ainda não havia voltado.
Apanhei meu celular para
checar se havia alguma mensagem sua
ou chamada perdida. Não tinha nada.
Abracei meu próprio corpo,
sem poder evitar o sentimento ruim que
me preencheu. Assim que decidi que
ligaria para ele, outro barulho vindo de
fora do quarto soou.
Me levantei e fiz meu caminho
até a porta, abrindo-a cautelosamente e
colocando a cabeça para fora, me
deparando com mais escuridão.
— Selina? — chamei, saindo
para o corredor. Não houve resposta
além do silêncio perturbador, que se
estendeu por alguns segundos depois.
Meu corpo inteiro se arrepiou e
eu me arrependi imediatamente por ter
deixado no alojamento a arma que
Hades me dera. Era provável que
houvesse alguma escondida naquele
quarto, mas eu não fazia ideia de onde
procurar.
Engoli em seco, me
convencendo de que, certamente, o
barulho era apenas Selina indo pegar
algo na cozinha.
Andei até a balaustrada,
olhando para o andar debaixo. Não
havia ninguém. Me virei e tentei acender
a luz do corredor, mas foi em vão.
Estava sem energia.
Sem dúvidas isso não era
comum num prédio luxuoso como
aquele. Esse pensamento me deixou
ainda mais nervosa. Chamei por Selina
novamente, dessa vez mais alto, mas não
obtive resposta tampouco.
— Merda, merda, merda —
praguejei baixinho enquanto descia os
degraus da escada. Liguei a lanterna do
celular e apontei para todos os cantos da
sala, encontrando tudo vazio.
Assim que terminei de descer,
iluminei a área sob a escada, me
deparando com a figura de Selina caída
no chão. Corri até lá e me ajoelhei ao
seu lado, deixando o celular para
apanhar o rosto dela entre as mãos.
Ela estava desacordada. A pele
branca estava ainda mais pálida do que
de costume, qualquer sinal de vida
sumira de seu rosto.
Logo senti em meus dedos um
líquido viscoso que escorria de sua
testa, se originando de um talho na raiz
de seu cabelo.
Ela havia sido atingida por algo
na cabeça.
Não tive tempo para checar se
Selina ainda respirava, porque logo
percebi que ela havia sido atacada e,
portanto, alguém invadira o apartamento.
Rapidamente me virei,
segurando um grito ao ver uma silhueta
camuflada nas sombras, parada atrás de
mim, no hall de entrada do apartamento.
Em sua mão uma lâmina brilhava.
Me levantei devagar.
Ele estava bloqueando o
caminho até o elevador. Minha melhor
chance era conseguir algo na cozinha
para me defender.
Não pensei muito, desatei a
correr naquela direção. Meus batimentos
cardíacos estavam disparados e eu
tentava conter o medo que me assolava.
Não consegui chegar nem até a
metade do caminho quando meus
cabelos foram agarrados e puxados para
trás. Gritei com a dor aguda que me
atingiu na cabeça. Fui arremessada no
chão, minhas costas chocando-se
duramente contra o assoalho.
Gemi com o impacto, mas não
me permiti continuar inerte. Quando o
invasor se aproximou para me atacar por
cima, rapidamente levantei uma perna, o
empurrando para trás. Ele se
desequilibrou e eu não perdi tempo. Me
levantei e parti para cima dele.
O homem cortou o ar com a
lâmina que portava, tentando me atingir.
Desviei e o acertei no rosto com meu
punho fechado, lançando sua cabeça
para trás.
O impacto fez cair o capuz da
jaqueta que ele usava, e então eu pude
ver seu rosto.
— Stephen? — Minha voz
falhou enquanto eu era acometida por um
misto de medo e confusão.
A mesma pele bronzeada e
olhos claros que eu costumava amar
estavam em meu agressor.
Ele não se explicou
instantaneamente. Aproveitou do meu
choque para me atacar. Seu punho se
fechou ao redor do meu pescoço ao
mesmo tempo em que ele me empurrou
para trás, até minhas costas se chocarem
contra a janela da sala.
Engasguei com um gemido de
dor.
— Me chamam de Seven agora
— ele disse. Fechei os olhos quando as
lágrimas surgiram, sentindo dificuldade
de respirar conforme ele pressionava
minha garganta. — Não queria que isso
acontecesse, Raven, mas a culpa é sua.
Pedi para ficar longe dele, mas você não
me ouviu.
Tentei chutá-lo e bater em suas
mãos, mas nada o abalou. Stephen
permaneceu lá, me olhando fixamente
enquanto eu não conseguia respirar.
Ele sentia raiva, pude notar
isso. Seu olhar estava possuído pela
cólera. Ele empunhava toda sua força
para esmagar minha garganta,
determinado a me matar. Senti minha
traqueia se fechar e uma pressão se
instalar nas laterais da minha cabeça.
Seu rosto se tornou gradativamente
desfocado à medida em que minha visão
se distanciava e eu perdia a consciência.
Antes que eu apagasse de vez,
porém, um barulho alto soou e eu caí
sentada no chão ao ser solta
abruptamente, minhas costas estavam
contra a janela. Respirei ofegante,
tossindo e passando a mão sobre meu
pescoço, que ainda doía. Era como se
minha cabeça pegasse fogo. Minha
garganta queimava.
Arregalei os olhos quando vi
Stephen desabar à minha frente,
desmaiado. Levantei o rosto, vendo
Selina com a metade de uma garrafa
quebrada na mão.
— Você está bem? — ela
perguntou, estendendo uma mão para me
ajudar a levantar.
Não respondi.
Eu estava viva, mas não estava
bem. Não conseguia desprender meu
olhar da figura de Stephen, estilhaços de
vidro da garrafa estavam espalhados ao
redor dele, bem como o líquido que
antes estivera em seu interior.
— Que porra foi essa? —
indagou ela, passando os dedos
furiosamente por entre os fios vermelhos
de seu cabelo. Ela estava ofegante, com
um hematoma em sua testa e um pouco
de sangue em suas têmporas. — Vou
ligar para Hades.
Esperamos pacientemente o
resto do Pandemônio chegar. Ficamos
sentadas no sofá, lado a lado, olhando
para Stephen, ou Seven, desacordado no
meio da sala. Eu estava atônita, talvez
em choque, como se o tempo tivesse
parado. Repassei todas as minhas
memórias com Stephen, procurando
algum sinal que eu não tivesse
percebido antes.
Quando o garoto doce e gentil
que eu costumava amar se tornara
aquilo?
— Você sabe quem ele é? —
perguntou ela, parecendo incapaz de
ficar em silêncio por mais do que alguns
segundos.
— É o Seven — me limitei a
dizer.
— Que merda ele queria?
Não respondi.
Fechei os olhos, tombando a
cabeça contra o encosto macio do sofá,
e me forcei a desviar minha mente
daquele desgraçado.
— Por que você me odeia
tanto? — perguntei, depois de um tempo.
Me virando para ela.
Embora Fiona dissera que era
apenas uma questão de confiança, eu
ainda não estava convencida. Temia que
a ruiva nutrisse algum sentimento por
Hades. Mas, se esse fosse o caso de sua
hostilidade comigo, ficaria
decepcionada com o quão superficial
ela poderia ser. Esperava mais de
Selina. Eu a respeitava, apesar de tudo.
Selina me encarou com as
sobrancelhas levantadas.
— Quer mesmo falar sobre isso
agora? — Dei de ombros.
— Tem algo melhor pra fazer?
A ruiva bufou alto, cruzando os
braços sobre o peito. Ela usava uma
camisola preta de seda, expondo as
curvas do seu corpo perfeito.
— Soube exatamente o tipo de
garota que você era assim que a vi pela
primeira vez — ela começou, olhando
para o outro lado do apartamento.
— E que tipo de garota eu sou?
— Havia certa graça presente no meu
tom de voz.
— O tipo que quer uma vida
normal. Igual àquela sua amiga, Alina.
Nenhuma de vocês gostam desse
submundo. Vocês querem se formar na
universidade, ter um emprego comum e
uma vida ordinária igual a qualquer
outro.
— Eu cresci nesse submundo,
Selina.
Ela virou seu rosto na minha
direção.
— E, quando fugiu dele,
desejava retornar?
Abri a boca para responder,
mas desisti. Engoli em seco, nervosa ao
perceber que ela estava certa. Eu havia
prometido a mim mesma que nunca mais
teria uma vida como aquela.
— O que isso importa? —
rebati.
— O fato, Raven, é que depois
que toda a situação com Joel e os
Daggers tiver se resolvido, você vai
querer continuar no Pandemônio? Está
disposta a fazer disso o seu futuro? —
Fiquei em silêncio, o que a deixou
aparentemente satisfeita. Selina riu
nasalado. — Você está usando Hades e,
depois, quando descobrir que não é ele
o que você quer pra sua vida, vai deixá-
lo e isso vai acabar com ele.
Aquela ideia me deixou
nauseada.
— Você não sabe disso.
— Você é bem previsível,
garota. Pode estar com Hades agora,
pode até pensar que gosta de ser uma de
nós. Mas o que aconteceu aqui neste
apartamento esta noite não é nem um
terço das coisas que podem acontecer
contigo quando se decide levar essa
vida. Um dia você vai acordar, se olhar
no espelho e não reconhecer mais o
próprio reflexo.
Senti um gosto de bile surgir
em minha boca e desviei o olhar do
rosto frio de Selina. Eu nunca havia
realmente parado para avaliar meu
futuro com Hades. Eu poderia estar com
ele mesmo temendo a vida que ele
levava? Passar meus dias temendo pela
morte de um de nós dois, ou esperando o
momento em que o FBI iria entrar
naquele apartamento e levá-lo para
sempre?
— É isso o que você sente? —
perguntei baixinho. Selina riu como se
eu estivesse contando uma piada.
— Não, Raven. Mas nós não
somos iguais. Eu amo minha vida. Estou
feliz em ser parte desse mundo, você
não.
Com certeza eu não estava nem
um pouquinho feliz naquele instante.
Apesar de desconfiar que aquela vida
não havia sido escolhida por Hades,
mas imposta a ele por seu pai, ele
parecia bem com seus negócios. Ele
gostava do seu bar, do cassino e das
corridas no Círculo. Eu não podia pedir
que ele largasse tudo aquilo para viver
uma vida comum comigo.
E eu nem sabia se conseguiria
imaginar a mim mesma tendo uma vida
comum. Não depois de tudo.
Nosso futuro era totalmente
incerto.
— Podem achar que Hades é
um desgraçado, que faz coisas ruins para
benefício próprio e que não se importa
com nada nem ninguém — ela continuou,
pensativa. — Mas aquele cara tem a
alma mais gentil que eu já conheci. E
agora eu tenho que ficar em silêncio e
observar você enquanto o destrói.
Eu sabia que meus sentimentos
por ele eram reais. A ideia de causar
dor a ele acabava comigo. Mas, quando
chegasse a hora de escolher entre Hades
e a vida que eu sempre quis para mim, o
que eu decidiria?
Antes que a resposta para
aquela pergunta pudesse me assustar, o
elevador tilintou e Hades entrou no
apartamento como um tornado, sendo
seguido pelo resto do Pandemônio.
— O que aconteceu? — ele
perguntou com a voz agitada, se
aproximando enquanto me inspecionava
com seus olhos preocupados.
Me levantei, ainda de braços
cruzados.
— Meu ex-namorado tentou me
matar.
Eu não quero acordar
O diabo em mim
Tenho que acordar, tenho que
acordar
Voltar à vida
Devil in Me - Halsey

Eu não queria olhar para o rosto


de Stephen novamente. Foi por esse
motivo que, na tarde do dia seguinte ao
seu ataque, permaneci no corredor do
lado de fora à sala de seu interrogatório,
enquanto Khalil, Hades e Alec estavam
lá dentro, assistindo a tudo.
Estava de braços cruzados,
encostada contra a parede, ignorando os
policiais que me olhavam torto ao
passarem por mim, quando meu celular
tocou. Atendi rapidamente, esperando
que fosse a agente Strauss com mais
informações.
Ela dissera a Hades, naquela
manhã, que seu chefe enviara agentes
para Dallas. As garotas aliciadas seriam
levadas de volta a seus países e as
boates, fechadas; mas ainda não havia
sinal de Joel McKinley por lá. Temiam
que ele tivesse fugido para El Sangria,
visto que eu havia lhe contado, na noite
anterior, que o chefe do cartel de lá era
amigo do meu padrasto.
Assim que atendi o telefonema,
porém, me deparei com a voz da última
pessoa que eu gostaria de ouvir.
— Connor — falei, trincando o
maxilar.
— O FBI, Raven? Sério?
Balancei a cabeça, incrédula.
— Você mandou Stephen para
me matar!
— Não fui eu. Foi uma decisão
de Joel. Você nos causou muitos
problemas.
— Não me importo quem foi,
mas garanto que vou me vingar.
McKinley cairia em breve, eu
sabia disso. Strauss, afinal, estava
cumprindo com sua parte do acordo, e,
honestamente, não me importava como
ela havia convencido seu chefe a
embarcar nessa. Só queria que eles
acabassem logo com isso.
— Você não vai conseguir.
— Não deveria me subestimar.
O FBI está atrás de vocês, não de mim.
— Não, ele está atrás do Joel.
— Você vai cair junto com ele.
— Eu não teria tanta certeza
disso.
Franzi o cenho. Ele parecia tão
convicto. Mas por quê?
Eu já deveria suspeitar que
Connor não se importaria com o que
acontecesse com Joel, contanto que
pudesse livrar o próprio pescoço, mas
sua certeza de que o FBI não tocaria
nele me levantou desconfiança. Afinal,
eu deixara bem claro a Strauss que
Kamps era o braço direito de McKinley
e que estava envolvido até os ossos na
máfia de Dallas.
— Te dei a chance de escapar
disso, Raven — continuou Connor. —
Você poderia ter escolhido o lado
certo. Te dei a oportunidade da sua
vida e o que você fez? Cuspiu na minha
cara!
— Não precisa mais me
proteger por causa de uma promessa
estúpida que você fez ao meu pai. Me dê
o seu pior, Connor.
— Eu lhe darei — garantiu
antes de desligar.
Não temi sua promessa.
Eu também estava disposta a
lhe oferecer o pior de mim.

Depois da ligação, cedi e entrei


na antessala intimidadora em meio a
penumbra, para assistir ao interrogatório
de Stephen. Como eu esperava, ele não
estava levando a lugar nenhum.
— Queria entrar lá e encher a
cara desse otário de porrada — Alec
comentou, quebrando o silêncio.
Suspirei, abraçando meu
próprio corpo enquanto mantinha os
olhos fixos em Stephen, sentado numa
simples cadeira de madeira atrás da
única mesa que existia naquela sala de
interrogatórios. O xerife Callow havia
dito que meu ex-namorado não podia
nos ver através do vidro, mas eu tinha
certeza que ele sabia que estávamos lá.
O loiro, no entanto, não parava de olhar
nessa direção por sobre o ombro do pai
de Selina.
Através do fraco reflexo eu
podia ver a mim mesma. Pálida, cabelos
desgrenhados e enormes círculos roxos
ao redor dos olhos. Me sentia tão mal
quanto aparentava estar. Meus olhos se
cruzaram com os de Hades, parado atrás
de mim, me fitando de volta pelo vidro.
Ele estava muito sério, consumindo-se
em preocupação.
Não havíamos conversado
muito desde o episódio com Stephen em
seu apartamento. Na verdade, eu não
estava sentindo vontade alguma de falar.
Engoli em seco, desviando o
olhar de volta para a figura do loiro na
outra sala.
Já faziam doze horas que ele
estava lá dentro, e não havia dito uma só
palavra sobre seu envolvimento com
Joel, nem mesmo quando Callow usou
seu método incisivo de interrogatório.
Ele parecia muito disposto a passar o
resto dos seus dias atrás das grades para
proteger o homem que havia feito da
minha vida um pesadelo por longos
dezoito anos.
Como eu não havia enxergado
aquilo antes? Stephen conseguira me
enganar tão bem. Eu jamais desconfiara
que ele pudesse estar do lado de Joel,
no fim das contas.
— Me pergunto quando vai
parar de desperdiçar o nosso tempo,
xerife — Stephen desdenhou, com a voz
demonstrando tédio. Ele estava largado
sobre a cadeira, os pulsos algemados
sobre a mesa na qual se debruçava.
Callow parecia muito perto de
perder completamente a paciência.
Notei isso quando ele se levantou num
solavanco, batendo as mãos espalmadas
contra a superfície da mesa.
— Você vai acabar falando,
garoto. Mais cedo ou mais tarde, todos
falam.
Stephen deu de ombros. Então,
inclinou sua cabeça e encarou o vidro.
Rapidamente, seu olhar se tornou
sugestivo.
— Eu poderia falar —
emendou, suavizando a voz. — Com
Raven.
Prendi a respiração por um par
de segundos quando o xerife também
olhou para trás, para mim.
Ao me deparar com a
possibilidade de enfrentá-lo, entrei em
pânico. Eu quis, instantaneamente,
fugir. Queria me virar e sair dali, para
nunca mais ver o rosto de Stephen ou
ouvir sua voz. Eu estaria muito satisfeita
em passar o resto da minha vida
fingindo que ele estava morto.
Honestamente, eu desejava um pouco
que ele estivesse.
Era tarde demais para voltar a
ser aquela garota fujona que chegou em
Carmine, entretanto. Eu precisava
terminar aquilo de uma vez por todas e
se, para conseguir a localização de Joel,
precisasse encarar Stephen mais uma
vez, eu o faria.
Quando o xerife saiu para a
antessala, seus olhos verdes idênticos
aos de sua filha me encararam com
apreensão. Ele não iria pedir para eu
entrar, mas, assim como eu, sabia que
era nossa única chance.
Balancei a cabeça, assentindo
para mim mesma.
Eu poderia fazer aquilo.
Sem dizer mais nada, cruzei o
vestíbulo. Mas, com a mão pairando
sobre a maçaneta prateada, hesitei por
um instante.
— Amor — Hades me chamou,
cauteloso. Respirei fundo, virando a
cabeça para olhá-lo.
Ele me fitou por alguns
segundos em silêncio, como se
conseguisse transmitir para mim seus
pensamentos apenas pelo olhar. Tentei
tranquilizá-lo com um meio sorriso antes
de abrir a porta e, finalmente, entrar.
Mantive meus olhos fixos na
figura de Stephen. Ele levantou a cabeça
assim que percebeu minha presença.
Andei devagar até a cadeira vazia à sua
frente, tentando prever qualquer
movimento de ataque que ele pudesse
estar planejando. Eu odiava a ideia de
Stephen ter conseguido me subjugar com
tanta facilidade. Assim que percebi que
era seu rosto familiar sobre o capuz do
invasor, esqueci de tudo o que Zora me
ensinara. Não consegui me defender e
nunca me perdoaria por aquilo.
Sentei diante dele, mantendo-
me tão distante quanto era possível, mas
sem demonstrar vulnerabilidade. Meu
rosto era uma rocha fria e inexpressiva.
Ele nunca mais conseguiria me afetar.
— Vamos. Fale de uma vez —
limitei-me a dizer, mantendo meu olhar
fixo nele.
— Não vai ser tão fácil assim
— rebateu, tão calmamente que nem
parecia ter uma algema reluzente
unindo-lhe os pulsos. — Vai ter que me
perguntar o que quiser saber, Raven.
Suspirei, reunindo toda minha
paciência e autocontrole.
— Onde Joel está? —
pronunciei claramente cada uma das
palavras, como se estivesse
conversando com uma criança.
Stephen estalou a língua e
levantou uma sobrancelha dourada.
— Tem certeza de que quer
começar pelo final? Vamos, Raven, sei
que você é capaz de fazer melhor que
isso.
Balancei a cabeça, incrédula e
tentada a simplesmente levantar e ir
embora.
Ele sabia muito bem o que
estava fazendo, usando seu tom doce e
gentil comigo, querendo me
desestabilizar.
— O que quer que eu diga,
Stephen? Quer que eu grite cheia de
ódio e tente arrancar seus olhos com
minhas unhas? Ou você quer que eu
chore e lhe pergunte por que fez isso
comigo? — Aproximei-me, cruzando os
braços sobre a mesa enquanto o olhava
nos olhos. — Não vai conseguir mais
nenhuma indignação de mim. Você está
morto para mim e eu só estou aqui para
conseguir as malditas respostas. Depois
disso, não me importo que seja jogado
numa cela para sempre ou que um dos
policiais enfie uma bala na sua cabeça.
Ele não sorriu dessa vez. Um
lampejo de raiva cruzou seu rosto, me
lembrando da noite passada, quando ele
estava furiosamente determinado a me
matar.
Trinquei o maxilar, me
forçando a permanecer forte e
impassível.
— Quero a garantia que terei a
proteção policial caso tentem me
retaliar.
Ri, incrédula novamente.
— Você é um covarde de
merda, não é? Acho que sempre foi. —
Tamborilei os dedos sobre a superfície
gelada da mesa. — Olha só, ninguém vai
garantir nada a você. Fique feliz que não
está morto e jogado no meio do deserto
agora. Mas isso ainda pode mudar e,
isso eu te garanto, vai acontecer caso
não comece a falar agora mesmo.
— Eu sempre te achei tão sexy
quando age como uma garota má. — O
fuzilei forte com o olhar que Stephen
levantou as mãos, demonstrando
rendição. — Certo, certo. Por onde eu
começo?
— Pelo começo, porra.
O loiro suspirou, distanciando
o olhar como se estivesse submergindo
em memórias.
— Nunca fugi de Dallas,
Raven. Joel me mandou para cá para que
eu me infiltrasse nos negócios locais. Eu
não era um mercenário, poderia passar
despercebido pela atenção dos Wrath.
No começo, ele estava só tentando
montar uma estratégia para tomar a
cidade que sempre quis para si, mas
quando descobriu que Astrid estava com
Frederik, as coisas se tornaram pessoais
e ele passou a desejar vingança. Me
aproximei dos lutadores barra pesada na
Electric, tentando descobrir mais sobre
o submundo de Carmine e ganhar alguma
influência sobre o esquema de drogas.
Claro que meu trabalho ficou muito mais
fácil quando a guerra entre o
Pandemônio e os Daggers começou. Os
dois estavam tão focados em se matarem
que nem perceberam minha presença até
pouco tempo atrás.
Stephen fez uma pausa,
retornando seus olhos para mim.
Mantive meu rosto completamente
apático enquanto ele revelava os planos
de Joel na minha frente.
— Continue.
— Eu não esperava que você
fosse aparecer tão rápido. Claro que
sempre falamos em fugir para cá, o
único lugar que Joel não se atreveria a
pisar, mas você ter vindo mudou tudo.
Tentei te manter longe disso, Raven.
Mas você não me ouviu, lembra? Estava
lá, trabalhando para eles, traindo seus
próprios princípios.
“Quando contei para McKinley,
pensei que ele fosse ficar irado e
imediatamente me pedir para levá-la de
volta. Eu queria levá-la de volta. Mas
sabe a parte engraçada? Ele ficou feliz.
Ele pareceu muito satisfeito, porque isso
finalmente lhe dava um motivo para
convencer seus homens a atacarem
Carmine. Eles sempre tiveram receio do
poder dos Wrath, temiam que seriam
destruídos facilmente. Mas você estava
arriscando toda a máfia do Texas ao se
aproximar do nosso maior inimigo,
poderia contá-los tudo sobre nós.
Connor, então, ofereceu aos Daggers
tudo o que eles sempre quiseram, nos
infiltramos neles e iniciamos a guerra
para fragilizar o Pandemônio. Foi muito
fácil, principalmente após as empresas
de Frederik entrar em colapso. Além do
mais, Hades Wrath estava fraco. Você o
tornou fraco, deveríamos te agradecer
por isso.”
— Não fale como se vocês
tivessem ganhado, Stephen. Não somos
nós que estamos prestes a usar macacões
laranja. O FBI vai encontrar Joel.
Ele riu nasalado.
— Vai mesmo? Onde eles estão
agora? Posso dizer se está quente ou
frio, considerando a real localização de
McKinley.
Bufei.
— Diga de uma vez para onde
ele foi.
— La Cuesta — respondeu,
simplesmente.
Levantei as sobrancelhas,
confusa.
— Onde fica isso?
— Novo México, Raven.
— E o que ele poderia estar
fazendo lá?
— Joel não gostou nada de
Connor tê-la dado a chance de recuperar
o bar do Pandemônio, uma vantagem
importante para se conseguir poder e
influência em Carmine. E todos viram na
TV que o FBI estava investigando os
Wrath. Não foi difícil juntar dois mais
dois e deduzir que vocês poderiam
tentar virá-los contra nós. McKinley
fugiu para sua cidade natal, talvez para
tentar encontrar uma maneira de escapar
disso.
Aquela dedução de Stephen
dissera, provavelmente não surgira da
cabeça estúpida de Joel. Calcular tão
bem assim era coisa de Connor. Mas, se
ele encontrara uma maneira de se safar
do FBI, por que não estendera o mesmo
privilégio ao seu chefe? Provavelmente,
porque era uma ótima chance para ele se
livrar de Joel e ficar com Carmine só
para si, como planejava.
— Quem garante que Joel ainda
está em La Cuesta?
— Ninguém. Não tem como
saber.
Assenti e me levantei, grata por
aquele momento ter, finalmente, chegado
ao fim. Antes que eu pudesse sair da
sala, contudo, ele me chamou. Suspirei
antes de olhá-lo uma última vez.
— Não quer saber por que eu
fiz o que fiz?
Dei de ombros.
— Vermes covardes e
manipuláveis não precisam de motivo
para agir como agem.
Ele assentiu. Pensei ter visto
um brilho de mágoa cruzar seus olhos,
exatamente como da última vez em que
nos falamos e eu lhe disse que nunca
havia o amado.
— Joel me mandou matá-la. Eu
sabia que era a única maneira de deixar
Hades ainda mais vulnerável. Essa
ainda é uma jogada viável para eles,
Raven.
Ele estava tentando me alertar?
— O jogo acabou, Stephen.
O loiro estava muito sério
quando negou com um gesto de cabeça.
— O jogo só acaba quando o
rei cai — rebateu, utilizando uma
analogia de xadrez. — Sabe de uma
coisa, Raven? Nunca achei que Joel
fosse realmente o rei nesse tabuleiro.
Não respondi absolutamente
nada a ele. Apenas me retirei daquela
sala, o mais rápido possível.

Eu pensei sobre suas últimas


palavras enquanto caminhava com
Hades, Alec e o xerife Callow para fora
da delegacia. No estacionamento, avistei
Wade e Khalil encostados contra a
caminhonete, esperando por nós.
Paramos a alguns metros deles.
— Você consegue mandar seus
homens para La Cuesta? — Hades
perguntou, cruzando os braços e
virando-se para Callow.
O mais velho tirou o chapéu
marrom de cowboy da cabeça, passando
as mãos nos cabelos.
— Não tenho jurisdição no
Novo México, Hades. Não posso ir
atrás de McKinley lá. A polícia de
Dallas precisaria fazer um pedido
formal para capturá-lo, ou então o FBI.
Balancei a cabeça.
— Os agentes de Strauss estão
na fronteira, até chegarem em La Cuesta,
Joel já terá sumido — argumentei.
Hades xingou baixinho.
— Eu posso tentar entrar em
contato com o departamento de polícia
de La Cuesta e explicar o caso, mas não
é garantido que eles farão alguma coisa
— continuou o xerife, acabando com os
resquícios do nosso otimismo.
— O que faremos então? —
perguntou Alec, preocupado.
Eu só conseguia enxergar uma
saída.
Respirei fundo antes de dizer:
— Eu vou atrás dele.
Três pares de olhos arregalados
voltaram-se para mim.
— O quê?! — Hades parecia
prestes a ter uma síncope.
— Você ouviu bem. Não tem
outra saída. Não posso permitir que Joel
fuja.
— Tudo bem, eu vou com você
então.
— Na verdade, Hades, não
acho que seja uma boa ideia você sair
da cidade agora — Alec interviu, com a
voz cautelosa. Seus estreitos olhos
encaravam o amigo. — Os Daggers
ainda estão instáveis, principalmente
depois do que aconteceu na última
noite.
— Alec está certo — emendei.
— Com a analogia de xadrez Stephen
quis dizer que o verdadeiro rei do jogo
é outro. Tenho quase certeza de que ele
se referia a Connor. Ele ainda está por
aí e está tramando algo. Você tem que
ficar e garantir que ele não nos atinja
novamente.
Hades não estava nem um
pouco convencido, eu podia ver isso em
seu rosto. Ele achava que precisava me
proteger a qualquer custo, mas eu não o
deixaria me impedir novamente.
— Amor…
Permaneci impassível,
retribuindo seu olhar obstinado.
O xerife pigarreou alto.
— Bem, se me permitem,
preciso voltar ao trabalho.
Assim que Hades assentiu para
o homem que nos deu as costas e voltou
para a delegacia.
— Eu também vou… — Alec
gaguejou, parecendo desconfortável em
presenciar uma iminente discussão entre
Hades e eu. — Tchau.
Ele praticamente disparou pelo
estacionamento, se juntando a Khalil e
Wade.
Suspirei e cruzei os braços,
voltando a olhar para Hades.
— Essa é uma péssima ideia.
Você sabe disso, não é? — Ele estava
sério, com o cenho franzido e os olhos
gelados sobre mim.
— Eu realmente preciso
lembrá-lo do que aconteceu na última
vez em que me impediu de ir para algum
lugar? — soltei, perdendo a paciência
com sua teimosia. Então, abaixei a gola
alta da blusa preta que eu usava.
Seu olhar recaiu sobre o meu
pescoço, onde hematomas roxos em
formato de dedos carimbavam minha
pele. Se eu fechasse os olhos ainda
poderia sentir a mão quente e forte de
Stephen me estrangulando.
— Eu… — Hades parecia
perturbado, como se tivesse acabado de
levar um tiro. Deixei minha mão cair de
volta para a lateral do meu corpo. —
Você me culpa por isso?
Havia um misto de asco e
decepção em sua voz, e eu não sabia se
eram direcionados a mim ou a si mesmo.
Meus ombros caíram e eu praguejei
internamente.
— Não — fui rápida em negar,
mas, pela expressão de choque e
desgosto de Hades, não fui muito
convincente.
Ele não me impedira de ir ao
Círculo, eu precisava ter ficado no
apartamento para falar com Strauss.
Ainda assim, eu havia usado isso contra
ele.
— Eu estou tentando te manter
segura. É isso o que eu sempre tenho
tentado fazer.
— Não preciso de um guarda-
costas, Hades! — rebati, levantando o
tom de voz.
Ele travou o maxilar e eu fechei
os olhos, massageando as têmporas.
Eu não deveria ter insinuado
que a culpa de Stephen ter tentado me
matar era dele. Ninguém sabia o que ele
estava tramando para aquela noite.
E eu não tinha dúvidas de que
Hades tinha sempre as melhores
intenções quando se tratava de mim.
Contudo, as palavras de Selina ainda
ecoavam na minha cabeça e eu ficava
me perguntando quando a minha relação
com Hades iria começar a ruir. Talvez,
já tivesse começado.
— Vou partir para La Cuesta
amanhã. Se não encontrar Joel durante o
fim de semana, provavelmente ele já
terá ido embora. Estarei de volta no
domingo.
E, sem dizer mais nada, dei as
costas a ele e caminhei em direção à
caminhonete 8x8. Ignorando os olhares
inquisitivos dos meninos, apenas abri a
porta e me sentei no banco de trás.
Demorou mais alguns segundos até
Hades também vir.
Tomei um gole do meu café,
puro e sem açúcar, antes de virar o rosto
para olhar para as outras mesas. O hotel
em que Hades havia hospedado Maria
era o melhor em Carmine. Tinha muitas
mesas forradas com toalhas de linho e
lustres de cristal dependurados sobre
nossas cabeça. Era um lugar muito
sofisticado, onde grandes empresários
costumavam se hospedar. Eu não estava
acostumada a estar sob tanto luxo, Maria
muito menos. Ela parecia deslumbrada.
— Nossa, o café daqui é
fantástico — observei.
— Nem me fale. — Maria
rolou os olhos, jogando seus longos
cabelos por sobre o ombro. — A
comida é melhor ainda. Sempre peço os
pratos mais caros do cardápio. Seu
namorado disse que pagaria o que eu
quisesse. Pensei que os Wrath não
estavam bem o suficiente para esbanjar
assim.
Dei um sorriso sem ânimo.
Hades gostava de ajudar as pessoas.
— Ele ainda faz bastante
dinheiro com os negócios do
Pandemônio.
— Deve fazer mesmo, já que
me deu o suficiente para comprar uma
mala inteira de roupas no shopping.
Conseguiu passaporte e outras
documentações para mim, além de uma
boa reserva para que eu consiga ir para
qualquer lugar.
Dentre todas as outras garotas
que trabalhavam para o Joel, era ela
quem passava mais tempo na casa ao
invés das boates. Não conversávamos
muito. Ao menos, não até que o pior dia
da minha vida a unisse a mim.
— E para onde você vai?
— De volta à El Sangria,
infelizmente, mas agora eu posso usar
esse dinheiro para tirar meus pais e
meus irmãos de lá. Acho que posso
convencê-los a se mudar para San
Diego, para bem longe de Caesar Vance.
— Espero que dê tudo certo.
Vocês merecem uma vida melhor.
Ela mordeu seu lábio inferior,
parecendo travar uma luta em sua
cabeça.
— Foi mal por eu ter usado
aquilo, foi horrível da minha parte. Você
nunca teve dívida nenhuma comigo,
Raven.
Balancei a cabeça.
— Eu tinha, sim — a contrariei.
— Ainda tenho. Provavelmente, terei
pra sempre.
O que Maria havia feito por
mim, poucas pessoas teriam coragem de
fazer. Eu era muito grata a ela por isso.
Ela comeu o resto do seu
croissant, parecendo ávida por cada
mordida.
— Acha que vai conseguir
pegá-lo? — perguntou, ainda
mastigando.
— Eu realmente espero que
sim.
Joel estava enfraquecido. E,
apesar de não ter um plano nem a menor
ideia de onde ele poderia estar em La
Cuesta, eu não havia cogitado a
possibilidade de não conseguir.
Precisava impedi-lo e talvez essa fosse
minha última chance de fazer isso.
Maria parou, endireitando-se
sobre a cadeira e me olhando
seriamente.
— Faça ele pagar pelo o que
fez com a gente, Raven.
Balancei a cabeça, me
convencendo.
— Eu irei.
Um tempo depois, Maria voltou
para seu quarto no hotel. Ela tinha um
voo de volta para a Califórnia no dia
seguinte. Acredito que eu nunca mais a
veria.
Assim que saí do hotel a
primeira coisa que vi foi Nick Wrath,
com óculos escuros estilo aviador e
braços cruzados, encostado
displicentemente contra sua motocicleta.
Levantei uma sobrancelha, confusa,
enquanto me aproximava.
— Hades disse que você
estaria aqui — falou, se endireitando.
Ele tinha feito a barba e parecia
bem melhor do que das últimas vezes em
que o vi. Sua reconciliação com o irmão
estava lhe fazendo muito bem no fim das
contas.
— É mesmo? O que mais ele te
contou?
— Que você está planejando
uma missão suicida. Ficou maluca de
vez, menina?
Rolei os olhos, sem paciência
para mais sermões.
— Isso não é da sua conta, de
qualquer maneira, é?
Ele sorriu, não se deixando
afetar pela minha hostilidade, e virou o
rosto na direção dos raios de sol.
— Agora é, porque eu estava
mesmo pensando em tirar umas férias no
Novo México.
— O quê?! Claro que não!
— Tsc, tsc, tsc, deixa de ser
teimosa. Você não quer uma carona? Ou
está pensando em chegar em La Cuesta
de ônibus?
Bufei. Ele tinha um ponto.
Eu estava planejando pedir
para que Hades me emprestadar um
carro, mas desde que as coisas haviam
ficado estranhas entre nós eu queria
manter distância por enquanto. Eu tinha
muito o que pensar e sua proximidade
nublava minha mente.
— Tudo bem — cedi,
suspirando. — Mas não fique no meu
caminho.
Nick abriu um sorriso que
tomou seu rosto todo.
— Vamos pegar a estrada,
então.
Um pouco perversa, é do que
ele me chama
Porque isso é o que eu sou,
isso é o que eu sou
Ninguém te chama de querida
Quando você está sentada em
um trono
Porque eu sou, eu sou um
pouco perversa
A Little Wicked - Valerie
Broussard

A moto de Nick praticamente


voava ao longo da interestadual. Era um
dia seco e o céu estava nublado, ideal
para uma longa viagem como aquela.
La Cuesta era uma cidade pequena ao
leste no Novo México, de modo que eu
esperava que não fosse muito difícil
encontrar Joel McKinley por lá. Com
certeza seria mais fácil com a ajuda de
Nick, embora eu nunca fosse admitir
isso em voz alta. Ele já havia ido a
muitos lugares sobre duas rodas.
Definitivamente, sua companhia seria
útil.
O sol estava se pondo quando
Nick parou em frente a um bar de beira
de estrada. Meu estômago estava
rugindo, mas não podíamos nos dar ao
luxo de atrasar ainda mais.
— Podemos comer quando
chegarmos em La Cuesta — protestei,
tirando o capacete quando Nick saltou
da moto.
Ele me olhou com sua usual
expressão de mau humor.
— Não vamos chegar em La
Cuesta se morrermos de fome antes —
resmungou.
Ele colocou as mãos nos bolsos
de sua jaqueta de couro marrom e
marchou em direção ao bar. Revirei os
olhos.
Nick conseguia ser bem
dramático às vezes.
A contragosto, o segui, me
certificando que minha própria jaqueta
de couro cobria a Glock presa na parte
de trás da cintura da minha calça jeans
preta. Eu não pretendia ir à caçada sem,
ao menos, me proteger.
O estabelecimento "Bar do
Jellicoe" estava caindo aos pedaços. As
janelas pareciam empoeiradas e as
paredes de ripas de madeira poderiam
desabar a qualquer instante. No interior
a situação não era muito melhor. Estava
quase totalmente vazio, o que já era um
milagre considerando sua localização.
Atrás do balcão um homem
velho com chapéu de caubói fumava
displicentemente enquanto lia o jornal.
Havia muitas mesas desocupadas, Nick
e eu nos sentamos na que estava mais
próxima da porta.
Olhei ao redor.
Estava inquieta, mexendo
constantemente minha perna. Queria
voltar o mais depressa possível para a
estrada e garantir que chegaríamos a La
Cuesta antes do amanhecer. Cada
segundo era crucial.
Alguns minutos mais tarde, o
caubói se aproximou para anotar nossos
pedidos, parecendo entediado.
— Mais dez minutos na estrada
e eu desmaiaria de fome — reclamou
Nick, após pedir quase metade do
cardápio enquanto eu havia me limitado
a um hambúrguer e refrigerante.
— Pelo amor de Deus, deixe de
ser um fracote — rebati, tirando uma
com a sua cara.
Nick levantou uma
sobrancelha.
— Não precisa disfarçar,
Raven, eu fiquei uma hora inteira
ouvindo seu estômago roncar alto atrás
de mim.
Não pude evitar rir.
— O.k., você venceu.
Fiquei grata quando a comida
chegou, talvez eu estivesse mais faminta
do que imaginava. Nick com certeza
poderia comer um boi inteiro pela
maneira como atacou suas batatas fritas.
— Então — ele começou, antes
de beber um gole de sua soda. —
Problemas no paraíso?
— O que quer dizer?
— Aposto que não deveria
estar aqui com esse irmão. — Ele
apontou para si mesmo com o polegar.
— Hades precisava cuidar dos
Daggers e de Kamps — expliquei,
forçando um tom casual. — Não podia
vir comigo. Mas ele pediu pra você vir,
então voltou a confiar em você.
Nick apenas deu de ombros.
— Estamos bem, diferente de
vocês dois.
Eu estava tentando evitar
aquele assunto, mas Nick claramente
estava determinado a conseguir
respostas. Dei uma mordida no
hambúrguer, ganhando tempo enquanto
tentava encontrar uma escapatória. No
fim, não encontrei nenhuma.
Suspirei.
— Eu fui injusta com ele.
— Hades vai perdoá-la. Ele é
um tolo quando se trata de você.
Desviei o olhar. Garrett tinha
me dito a mesma coisa quando me
sequestrara.
— Eu sei que vai, só… — Nick
me encarava de maneira incisiva. Cedi
facilmente. — Selina me disse umas
coisas e, desde então, minha cabeça está
cheia de dúvidas.
Ele bufou alto.
— Sempre Selina… —
murmurou irritado.
— O que quer dizer?
— Ela é uma boa pessoa, mas
tem o maldito hábito de achar que sabe
mais que todo mundo. O que ela te
disse?
Balancei a cabeça.
— Que um dia eu vou descobrir
que odeio essa vida que o Pandemônio
leva, então eu irei abandonar Hades e
magoá-lo para sempre.
Nick revirou os olhos antes de
limpar a boca com um guardanapo e se
recostar contra a cadeira.
— Você não é responsável pelo
meu irmão. Ele é bem grandinho pra
cuidar de si mesmo.
— Eu sei, eu sei. — Fiz uma
pausa. Cada vez mais eu odiava essa
ideia. — Mas ela está certa quanto a eu
não gostar desse mundo. Não sei se
quero isso pro resto da minha vida.
— Hades desistiria de tudo
isso por você — Nick disse, como se
fosse muito simples. Suas palavras me
surpreenderam.
— Não posso pedir isso a ele.
Hades ama o Pandemônio.
— Ele ama você mais.
Hades não havia dito aquelas
palavras e pareceu meio assustado
quando tentei tomar a iniciativa. Após
ficar um par de segundos em choque,
sorri.
— Você está mesmo
defendendo seu irmão? Quando foi que
evoluiu tanto, Nicholas?
Ele permaneceu sério,
parecendo contemplativo.
— Você mudou tudo — ele
disse. — Pra nós dois.
Era bom saber que havia
influenciado pelo menos um pouco na
reconciliação dos irmãos Wrath. Eles
precisavam um do outro.
— Vocês me dão crédito
demais. — Sorri antes de desviar os
olhos para o guardanapo de papel com o
qual meus dedos brincavam.
— Ele era o filho perfeito,
nunca fez nada de errado que pudesse
desagradar a Frederik, diferente de mim.
Eu, por outro lado, estava sempre
fazendo alguma merda — Nick falou,
olhando para a estrada através da janela.
A noite engolia lentamente o céu. —
Mas toda vez que Frederik queria me
punir, Hades se oferecia para receber o
castigo no meu lugar. Eu sempre o
admirei. — Nick riu com desgosto. —
Queria que Hades nunca tivesse feito
aquilo. O odiei por ter trilhado o
caminho de seu pai, mesmo que tivesse
feito isso por mim.
Fiquei atordoada com a
repentina confissão. Havia muita
história envolvendo os irmãos Wrath e
cada vez que eu descobria mais, meu
ódio por Frederik aumentava.
Hades falara que os motivos de
seu conflito com Nick eram muito mais
profundos do que Selina. Talvez
estivesse se referindo àquilo.
Suspirei, lembrando da cicatriz
na clavícula de Hades, uma marca da
fivela do cinto de seu pai, e meu
coração apertou.
— Ele é seu irmão mais velho
— argumentei —, claro que iria te
proteger.
Nick negou, balançando a
cabeça, e voltou a me fitar.
— O Pandemônio só existe
para fazer o trabalho sujo de Frederik
Wrath.
— Não — falei, veemente. —
Talvez tenha começado assim, mas tudo
mudou. O Pandemônio faz coisas ruins
por bons motivos.
Eu duvidara quando Hades
dissera aquilo para mim uma vez, mas
havia começado a compreender o
significado daquelas palavras.
— E mesmo assim você o
odeia tanto? — perguntou ele, intrigado.
Meus ombros caíram e eu me
surpreendi com minha própria resposta.
— Não. Não odeio.

O Sol já havia nascido quando


chegamos na pequena e desértica
cidade.
Inselbergs de terra vermelha
nos cercavam além do deserto, que
parecia não ter fim. Aquele lugar
realmente ficava no meio do nada,
parecia completamente esquecido pelo
mundo, assim como Carmine.
Não existia muitas informações
sobre La Cuesta na internet, apenas que
possuía em torno de mil habitantes. Não
conseguia imaginar alguém como Joel
crescendo ali, em meio àquelas
construções típicas de filmes de
faroeste. Com certeza, não havia sido
nada fácil para alguém como ele,
obcecado por dinheiro e poder, crescer
naquele lugarzinho.
O primeiro local para onde
Nick e eu fomos foi o velho motel
localizado acima de um restaurante nada
confiável. Ao que parecia, era a única
opção de hospedagem na cidade, apesar
de parecer pouco provável que Joel
estivesse ali. Afinal, ele havia passado
boa parte da vida desfrutando dos luxos
advindos de seu cargo como chefão da
máfia. Mas, como costumavam dizer por
aí, “baratas podiam se adaptar
facilmente a condições adversas”.
No saguão pequeno e precário
que levava até o restaurante e às escadas
que, provavelmente, davam acesso aos
quartos do motel, havia um balcão.
Atrás dele estava uma idosa de rosto
enrugado e entediado, usando um avental
bordô desbotado enquanto fazia tricô.
Uma música country tocava baixinho no
ambiente, que era todo revestido em
madeira escura.
— Oi, bom dia. — Tentei sorrir
de maneira gentil para a mulher, mas ela
levantou o rosto e me lançou um olhar
claro de aborrecimento. Olhei de
soslaio para Nick, que parecia distraído
encarando um quadro de cortiça cheio
de papéis pregados perto da porta. —
Você conhece um homem chamado Joel
McKinley? Ele é baixinho, rechonchudo,
cabelos e olhos escuros. Talvez esteja
hospedado aqui.
A mulher piscou lentamente,
permanecendo calada por alguns
segundos. Respirei fundo, apoiando as
mãos sobre o balcão empoeirado
enquanto a olhava de maneira incisiva.
— É proibido dar informações
sobre os hóspedes — respondeu, por
fim.
— Por favor, é realmente
importante. Preciso encontrá-lo.
Ela inclinou a cabeça, mas
permaneceu com a mesma expressão
apática no rosto.
— Se não vai alugar um quarto,
pare de desperdiçar meu tempo.
Arregalei os olhos, surpresa
com o tom ríspido dela. Em seguida, a
mulher voltou ao seu tricô, deixando
bem óbvio que havia encerrado a
conversa.
Bufei e massageei as têmporas,
pensando. Se todos em La Cuesta fossem
gentis como aquela mulher, as chances
de eu encontrar McKinley beiravam a
zero.
Cruzei o saguão e parei ao lado
de Nick, observando os diversos papéis
no quadro. Não havia nada muito
importante, apenas alguns eventos da
vizinhança, votações na Câmara
Municipal. Havia também a propaganda
eleitoral do prefeito, que pretendia se
reeleger.
— Isso é o que eu chamo de
uma recepção calorosa — Nick
resmungou irônico, virando-se para
mim. — Afinal, o que você pretende
fazer quando ficar cara a cara com
McKinley? Pedir gentilmente para que
ele aceite ser preso pelo FBI?
Estreitei meus olhos, ficando
irritada ao perceber que eu realmente
não tinha plano algum. Eu não pensara
direito sobre isso, no fim das contas.
— Talvez a polícia possa nos
ajudar — sugeri, otimista. — Podem
prendê-lo na delegacia local enquanto
aguardam o FBI buscá-lo.
Nick não estava convencido.
Honestamente, eu também não.
McKinley fora criado ali, de modo que
todos poderiam conhecê-lo. A polícia
poderia estar trabalhando para ele.
Mesmo assim, andamos pelas
ruas desérticas de La Cuesta até
encontrarmos a pequena delegacia. Lá
dentro havia um grupo de cinco policiais
comendo rosquinhas e conversando
sobre beisebol.
Eles pareceram surpresos ao
nos ver ali, o que fez eu me perguntar
quanto tempo fazia desde a última vez
em que aqueles tiras prenderam alguém,
de fato. Aquela cidade, afinal, não
parecia sofrer constantemente com o
crime. Parecia parada no tempo, sem
nenhum acontecimento relevante.
— Vocês têm alguma queixa
formal a prestar contra esse homem? —
Um deles, um careca de bigode,
perguntou quando mencionei o nome de
McKinley.
Inclinei a cabeça. A maneira
como sua postura ficou rígida ao ouvir
sobre Joel não me passou despercebida.
Ele sabia exatamente de quem eu estava
falando. — Você ficaria surpreso de
quantas queixas poderíamos fazer contra
ele. — Nick sorriu, cruzando os braços.
Trocamos olhares breves antes de voltar
nossa atenção ao policial.
— O FBI está atrás dele. Vai
encontrá-lo em breve. Só estamos aqui
para garantir que ele não fuja —
expliquei para aquele que parecia ser o
xerife, sentado displicentemente numa
cadeira de rodinhas enquanto fumava um
charuto.
— E o que vocês e o FBI
querem que eu faça? — perguntou ele,
com a voz tão cheia de desdém que fez
os outros rirem. Controlei minha
respiração, reunindo minha limitada
paciência.
— Interditar as estradas que
dão acesso para fora da cidade, já seria
de grande ajuda.
Agora eles estavam
gargalhando.
— O que mais você quer? —
um deles debochou, enquanto ria como
se tivesse ouvido a piada mais
engraçada do mundo.
Odiei a maneira como eles
pareciam zombar de mim. Não estavam
me levando a sério. Sequer me
respeitavam.
Olhei para Nick Wrath por um
segundo. Ele parecia tão irritado quanto
eu.
Sem pensar muito, tirei a arma
da cintura e a bati com força contra o
balcão entre nós. As risadas cessaram e
eles paralisaram. Segurei um sorriso
presunçoso.
— Agora que eu tenho a
atenção dos senhores, devo dizer que
McKinley está envolvido até os dentes
em tráfico de drogas, armas e pessoas.
Se você procurar na internet, verá que
ele está na lista dos mais procurados do
país. Vocês podem nos ajudar a pegá-lo
e fazer, pela primeira vez em suas vidas,
algo útil, ou eu posso contar ao FBI e à
imprensa sobre a negligência do
Departamento de Polícia de La Cuesta.
Será que é esse o tipo de publicidade
que o prefeito quer para sua reeleição?
Acha que vocês manteriam seus
empregos depois disso?
Todos me encararam chocados,
até mesmo Nick. Os policiais não
ousaram me contradizer.
Era bom que eles percebessem
que eu não estava para brincadeiras.
— Talvez agora vocês queiram
fechar as estradas — Nick falou, com os
braços cruzados e a voz cheia de humor.
— Podemos fazer isso — o
xerife se limitou a dizer.
— Ótimo. — Apanhei minha
arma de volta, colocando-a na cintura.
Então, puxei pra perto de mim um bloco
de notas e uma caneta que estavam
jogados sobre o balcão. Anotei meu
número de telefone. — E talvez vocês
também queiram me ligar para avisar se
tiverem qualquer notícia do McKinley.
— Claro.
Meneei a cabeça num
cumprimento antes de fazer meu caminho
para fora da delegacia, com Nick em
meu encalço. Assim que saí, respirei
aliviada. Por um momento pensei que
seria presa.
— Caralho, menina, até eu
fiquei com medo de você — Nick falou,
me fazendo rir alto enquanto andávamos
na calçada. — Hades deveria ter medo.
Você é uma mafiosa fodona melhor do
que ele.
Me distraí com o celular
vibrando em meu bolso. O apanhei,
visualizando uma mensagem de Hades
na tela.
“Avisei a Strauss sobre La
Cuesta. Ela está a caminho. Toma
cuidado, amor.”
Sorri, pensando nele. Não
consegui evitar a pontada de saudade
que perfurou meu peito. Me arrependia
muito de ter partido para La Cuesta,
numa missão super perigosa, sem nem
saber se eu voltaria viva, e tendo
deixado as coisas um tanto quanto mal
resolvidas entre nós.
— Acha que esses policiais
vão mesmo ajudar? — perguntei,
preocupada. Nick deu de ombros.
— Não sei. Espero que sim. O
emprego deles está em jogo, afinal.
Nick estava certo.
Se Joel havia fugido para um
lugar tão pequeno e miserável como La
Cuesta, então, provavelmente, seus
outros recursos estavam esgotados. Ele
estava fraco, fugindo como um rato
covarde.
— Está tudo bem pra você? —
perguntei, apreensiva, após algum tempo
de caminhada. — Estarmos caçando
McKinley, quero dizer. Ele é seu pai,
afinal.
— Não, não é — Nick nem
hesitou antes de responder. — Ele não é
nada. Posso ter seu DNA, mas isso não
significa muita coisa. Ele é um homem
ruim que deve ser punido.
Eu entendia aquele sentimento.
Afinal, eu também sentia como se não
tivesse pai. Ele existira, tivera um nome,
uma vida, um cargo como traficante de
McKinley. Ainda assim, não significava
nada para mim.
— Certo, agora precisamos
alugar um quarto naquele motel —
observou Nick, mudando de assunto. —
Estou com fome e preciso ir ao
banheiro.
Fiz uma careta.
Realmente não queria ter que
voltar para aquele lugar, mas não
tínhamos um grande leque de opções.
A balconista ficou menos
aborrecida quando demonstramos ser
clientes em potencial. Nos cobraria
quarenta pratas por noite pela suíte.
Assim que entramos no quarto,
nos deparamos com móveis que,
provavelmente, tinham o dobro da nossa
idade e já tinham sido cenário de algum
filme do Clint Eastwood.
— Aconchegante — Nick
resmungou com sarcasmo, torcendo o
nariz.
Ele foi direto ao banheiro
depois disso, dizendo que precisava de
uma ducha. Eu admirava sua coragem
em querer ficar pelado num lugar
bizarro como aquele.
A poeira da suíte me fez
espirrar uma porção de vezes. Ao que
parecia, havia algum tempo que ela não
era limpa e arejada. As cortinas verdes,
desbotadas e rasgadas, cobrindo as
janelas encardidas eram o toque final de
elegância.
— Estou indo comprar comida
— gritei, ávida para sair daquele quarto.
— Valeu — berrou Nick de
volta.
A escada de madeira rangeu
alto quando eu galguei os degraus
apressadamente até o saguão. Percebi,
ao descer, que ele estava vazio. A
mulher atrás do balcão não estava mais
lá.
Franzi o cenho e continuei
caminhando até à porta que levava ao
restaurante. Ele também estava vazio.
As cadeiras de madeira empilhadas
sobre as poucas mesas. Nenhum sinal de
algum funcionário ou algo que indicasse
que o comércio estava funcionando. Dei
alguns passos adentro, chamando por
alguém.
Não obtive resposta.
Esperei ali por alguns minutos,
mas ninguém apareceu. Rolei os olhos
antes de girar sobre os tornozelos e
fazer meu caminho de volta ao quarto.
Assim que abri a porta, tudo
parou. Fiquei estática sob a soleira,
fitando a imagem que estava diante de
mim.
Nick estava perto da janela e
tinha um revólver apontado para sua
cabeça.
Quando a outra voz soou, senti
meu estômago se embrulhar e pensei que
iria vomitar.
— Esteve procurando por mim,
passarinho?
Porque eu poderia tocar cem
mil almas
Mas nenhuma delas me faria
sentir em casa
E não importa o quão longe e
vasto eu vagar
Você é a única que eu
conhecerei
Eu não pertenço a mais
ninguém
Anyone Else - PVRIS
Trinquei o maxilar enquanto
olhava para Joel McKinley. O mesmo
rosto repulsivo que me aterrorizara por
anos. Parecia mais magro e
desesperado, observei. Estava sozinho e
fraco, afinal.
Dei um passo para dentro do
quarto, desviando meu olhar para Nick.
Ele parecia tranquilo. As mãos
levantadas na altura dos ombros, em
rendição. Inclinei a cabeça.
— Deixe Nick ir, Joel. É a mim
que você quer.
McKinley estalou a língua,
balançando a cabeça em negativa.
— Vou dizer o que você vai
fazer se não quiser que eu exploda os
miolos do seu garotão aqui. — Ele
pressionou o cano metálico da arma
contra a têmpora de Nick e um nó se
formou em minha garganta. Eu sabia que
ele não estava blefando, Joel era
realmente capaz disso e eu não podia
vacilar. Anuí com a cabeça,
concordando. — Vá lá embaixo. O
Nissan prateado em frente ao hotel é
meu. Você vai entrar no carro e dirigir
até eu mandar parar e se você tentar
alguma gracinha, esse Wrath aqui vai
perder a cabeça.
Engoli em seco.
Se Connor sabia do parentesco
entre Nick e Joel, então seria natural
presumir que McKinley também saberia.
Não que fizesse muita
diferença. Joel era um ser humano
desprezível que, com certeza, não se
importava com nada nem ninguém. Ele
não era realmente um pai, nunca fora.
Não para mim e muito menos para
Nicholas.
— Está bem — assegurei antes
de me virar e voltar para o corredor.
Joel me seguiu lentamente, ainda com o
revólver contra a cabeça de Nick.
Tentei pensar em um plano para
sair daquela situação, mas não consegui
encontrar nada.
Não havia nada que eu pudesse
fazer enquanto Joel ameaçasse Nick.
Assim que saí do motel, avistei
o carro. Fiz o que ele pediu e entrei, me
postando atrás do volante sem ter a
menor ideia de como nos tirar daquela
situação. Hades havia dito mais cedo
que o FBI estava a caminho, mas
poderia levar horas até eles chegarem.
Eu não tinha aquele tempo.
Joel obrigou Nick a entrar no
carona e, depois, se sentou no banco do
passageiro, batendo a porta com força.
Ficou sentado no meio, entre Nick e eu,
e permaneceu apontando o revólver para
ele. Senti sua respiração quente na
lateral do meu rosto quando ele se
inclinou para me olhar de perto.
Travei a mandíbula, sentindo
mais asco e repulsa do que jamais
sentira.
— Agora, docinho, siga minhas
instruções, vamos sair dessa droga de
cidade — Joel continuou. — Vamos,
garota, ligue o maldito carro.
Controlando minha respiração,
fiz o que ele mandou, girando a chave na
ignição e dando a partida. Eu segurava o
volante com força, apertando-o entre
meus dedos.
— Quem foi que te avisou? Os
policiais? — perguntei, quebrando o
silêncio enquanto olhava de soslaio para
Nick por um instante.
Esperava que ele não tentasse
nada. Sabia que, comparado a Hades,
Nick era muito mais impulsivo, mas ele
não podia sequer se mover. Não
enquanto o cano daquele revólver estava
tão próximo de sua têmpora. Eu
conhecia Joel bem o suficiente para
saber que ele não hesitaria antes de
explodir a cabeça de Nick.
E ele não podia morrer.
— A dona da pousada é minha
tia — respondeu Joel, com certo
divertimento na voz. — É uma cidade
bem pequena, Raven. Cometeu um erro
imenso vindo até aqui, mas isso não é
nenhuma surpresa. Você nunca foi muito
esperta mesmo.
Mordi o interior da bochecha,
tentando pensar em todas as
possibilidades de Nick e eu sairmos dali
vivos.
Joel me guiou até uma estrada
de terra que levava para fora da cidade.
Adentramos ao deserto.
Não fazia a menor ideia para
que lugar ele planejava nos levar.
Levei um susto, fazendo o carro
morrer, quando meu celular tocou alto
em meu bolso. Ficamos todos, por um
instante, paralisados, como se houvesse
uma bomba no carro. Logo o som
cessou, quando a chamada caiu na caixa
postal, mas nem um segundo depois o
barulho voltou a soar.
Eu sabia muito bem quem
estava tentando tanto me ligar.
— Vamos, Wrath, atenda o
celular. Coloque no viva-voz — Joel
falou alto, impaciente, perto de meu
ouvido.
Prendi a respiração quando
Nick obedeceu, se inclinando para
apanhar o aparelho em meu bolso.
— Amor? — Fechei os olhos
ao ouvir aquela voz tão familiar que me
fazia querer chorar. — Está tudo bem?
Prendi o lábio inferior entre os
dentes, sabendo o que viria a seguir.
— Ora, ora, ora. — Joel soltou
uma gargalhada tenebrosa, arrancando o
telefone das mãos de Nick. — Com qual
dos dois irmãos a Raven está dormindo
afinal? Acho que ela está iludindo
ambos.
— Que porra — Hades xingou,
e eu sabia que bastaria um segundo para
que ele se desesperasse. — O que você
fez com ela, seu bastardo miserável?!
— Por enquanto, nada. Ela está
bem aqui. Diga oi pro seu namorado,
docinho. — E ele voltou a afundar o
cano da arma na pele suada da têmpora
de Nick.
Tomei uma respiração
profunda, sentindo meu lábio inferior
tremer.
— Hades. — Minha voz tremeu
de maneira patética. — Hades, eu estou
bem. Nick está aqui. Nós dois vamos
ficar bem.
Eu sabia que nenhuma palavra
naquele momento seria capaz de
tranquilizá-lo.
Ele ficou em silêncio por um
par de segundos. Podia imaginar o
desespero que o preencheu. Hades
estava sempre tentando proteger todo
mundo. Seu altruísmo era a
característica que eu mais admirava
nele.
— O FBI está no Novo
México. Logo a cidade vai estar
infestada com os helicópteros. É o fim,
Joel. Deixe-os ir e você ainda pode
tentar fugir.
Joel riu novamente, balançando
com a cabeça como se fosse mais
esperto que todos nós.
— Avise aos seus amigos
federais que eu só vou liberá-los vivos
com cem mil dólares e uma passagem
para a Europa. Assim que eu ver o
primeiro helicóptero, vou atirar nos dois
nesse carro. Se eu não tiver o que pedi
em meia-hora, um deles vai morrer. O
tempo está passando, Wrath. Tique-
taque.
Então, ele desligou, mandando
a gente sair do carro.
Com um suspiro, obedeci.
Estávamos no meio do deserto,
com o Sol a pino ardendo sobre nossas
cabeças. Nick e eu ficamos de pé,
parados lado a lado, com McKinley em
nossa frente, mirando a arma na cabeça
de Nick.
— Eu sabia que Connor era um
problema — McKinley começou a dizer,
retesando os lábios. Sua barba estava
mal feita e sua pele, suada. Algumas
partículas de terra e poeira estavam
grudadas em seu rosto branco. — Ele
ainda estava te protegendo o tempo todo.
Passava por cima da minha autoridade,
se fosse preciso. Mas aquele maldito
jogo de pôquer foi a gota d'água. Nunca
pensei que ficaria tão decepcionado com
meu braço direito.
— Se eu fosse você, ficaria
mais irritada com o fato de ter sido
abandonada por ele. Afinal, Kamps não
parece disposto a livrar você dessa
situação, não é? — provoquei, tentando
desestabilizá-lo.
Não havia nenhuma estratégia
que eu pudesse aplicar naquela situação.
McKinley era instável como uma
dinamite, não dava pra saber o que iria
acontecer ao seu redor. Minhas ações
poderiam se voltar contra mim, mas não
era como se eu tivesse alguma escolha.
— A culpa é toda sua, Raven.
— Ele balançou a cabeça, com raiva. —
Como sua mãe, você é uma desgraçada
manipuladora. Transformou Stephen,
Connor e até mesmo os irmãos Wrath em
seus cachorrinhos. Devo te parabenizar.
Acho que não é tão burra como pensei.
— Seus insultos não me
atingem, Joel. Você não tem poder algum
sobre mim. Mesmo que nos mate hoje,
não vai escapar. Seu reinado já era.
Uma veia em seu pescoço
saltou e eu tive certeza de que ele
atingira seu limite de cólera.
— Eu deveria ter te matado
muito antes! — berrou. — Você e a
inútil da sua mãe. Fui bondoso lhes
dando teto e comida, e vocês foram
ingratas! Todas vocês. Incluindo a
vagabunda da Evelyn. — Ele se virou
para Nick. — Tudo o que ela fez foi
gerar um filho que arruinou meu acordo
com Frederik.
A menção à Eve foi o suficiente
para arrancar o controle para fora de
Nick.
— Dobre sua língua antes de
falar da minha mãe! — ele gritou,
apontando o dedo em riste para
McKinley e fazendo menção de avançar
até ele. Nick parou, contudo, quando o
dedo de Joel afundou no gatilho.
Fechei os olhos por um
instante, esperando o disparo. Isso não
aconteceu, porém. Um click abafado
soou um segundo antes da risada de
escárnio de McKinley.
Abri os olhos, encontrando-o a
gargalhar.
— Esqueci de avisar que
estamos brincando de roleta-russa —
zombou. Ele alternou seu olhar para
Nick em seguida. — Sua mãe não era
nada, garoto. Assim como você.
— Já chega! — interrompi,
antes que Nick se descontrolasse de vez
e Joel apertasse o gatilho novamente.
Eu tomara conhecimento após a
confissão de Stephen, de que Joel já
planejava colocar um fim ao seu acordo
de paz. Enquanto o pai de Hades
certamente desejava vingança após
descobrir que sua esposa engravidara de
seu aliado, meu padrasto sempre deixara
claro seu desejo de anexar o território
de Carmine à sua máfia.
Alguns minutos se passaram e
nós permanecemos ali. Meu corpo doía
com a tensão dos meus músculos
contraídos. Queria apenas que tudo
acabasse logo.
— Acha mesmo que o FBI vai
te dar o que pediu? — zombou Nick,
quebrando o silêncio depois de um
tempo.
— Não, mas seu irmão
desesperado vai.
Me empertiguei com a menção
de Hades.
— O quê?!
Senti meu sangue começar a
ferver sob minhas veias. O medo em
mim cresceu ainda mais.
Ele não explicou de imediato,
pois meu celular voltou a tocar. Joel riu
alto em pura satisfação, atendendo-o.
— Hades Wrath, seu
desgraçado previsível.
Assim que ele atendeu, a voz
do meu namorado voltou a soar:
— Eu te dou o que você quer,
McKinley. Me diga onde te encontrar e
eu levarei o dinheiro pessoalmente. Vai
levar algumas horas até eu chegar aí.
— Rastreie o telefone. É
melhor vir rápido.
E desligou novamente.
Trinquei o maxilar, nervosa.
Aquilo não iria terminar bem, eu tinha
certeza. Joel não iria simplesmente fazer
uma troca com Hades e fugir depois.
Não iria deixar eu sair ilesa, eu sentia
isso.
— O que você está planejando?
— perguntei com a voz falha, temendo a
resposta. Joel deu um passo na minha
direção, fazendo meu corpo gelar em um
calafrio.
— Quando Hades chegar, vai
descobrir que só poderá salvar um dos
dois: a namorada ou o irmão. — Ele deu
um sorriso sádico. — Quem vocês
acham que ele vai escolher?
Senti meus olhos marejarem.
Ele não estava brincando. Joel
nunca brincava quando o assunto era
homicídio. Eu sabia muito bem disso;
afinal, já havia limpado o sangue de
suas vítimas do carpete muitas vezes.
Senti calafrios e tudo começou
a girar. Náuseas me acometeram e
novamente pensei que iria vomitar.
— Hades não vai cair nessa —
Nick murmurou, mas não parecia tão
convencido.
— Por que você está fazendo
isso? — Ouvi minha voz soar débil e
patética.
Fraca e impotente. Exatamente
como eu era antes de ser parte do
Pandemônio.
— Você tirou tudo de mim! —
Joel gritou, alternando a mira da arma
para a minha cabeça. — Eu não tenho
mais nada a perder. Mas você tem.
Vocês três vão perder algo esta noite.
Limpei rapidamente a lágrima
que escapou pelo canto do meu olho e
escorreu em meu rosto.
Eu não deixaria Joel fazer
aquilo com Hades ou Nick. Eles já
haviam passado por merda demais. Não
podia sequer imaginar ver Hades
sofrendo de maneira similar ou pior de
quando o encontrei chorando em seu
quarto após o incêndio na galeria.
Aquela ideia me machucava mais do que
a possibilidade de não sair viva daquele
deserto.
No fim das contas, nunca temi
realmente a morte. Para mim, existiam
coisas muito piores do que, de fato,
morrer.
— Não vou entrar no seu jogo
— declarei, surpreendendo-o. Em
seguida, tirei a arma da cintura da calça,
minha carta na manga, a destravei e
apontei direto para minha cabeça. Joel
não conseguiu esconder sua hesitação.
— Se eu morrer agora, tenho certeza de
que não vai conseguir o que quer de
Hades.
Eu podia ver de soslaio que
Nick me encarava assustado, um pouco
como o homem à minha frente. Ele não
sabia se eu estava falando sério. Na
verdade, Joel não sabia mais com quem
estava lidando. Eu não era mais a garota
com quem ele estava acostumado, que
nunca reagia, era apenas manipulada.
— Você não faria isso só para
me punir — Joel rebateu.
— Sim, eu faria — contrariei,
falando a verdade. — Isso é o quanto eu
te odeio. E, só para constar, há mais de
uma bala no pente dessa belezinha aqui.
Meu dedo afundou um pouco no
gatilho, ao passo que minha expressão
facial só demonstrava determinação.
Permaneci fria e impassível, deixando
Joel de olhos arregalados. Eu não o
deixaria sair impune de suas
perversidades. Não mais.
Vi em câmera lenta quando ele
abaixou seu revólver alguns centímetros,
mirando na minha perna. O desgraçado
iria me imobilizar para que eu não
pudesse destruir seu plano. Pensei
rápido e virei minha arma, apontando
para seu peito e, sem pensar, atirei.
Uma, duas, três, quatro vezes.
O corpo de Joel chacoalhou
com o impacto de cada uma das balas
antes de cair imóvel no chão, sua camisa
azul sendo encharcada com sangue.
Pisquei, meu braço ainda
estava reto, a Glock empunhada firme na
minha mão. Não tremi ou vacilei.
Permaneci ereta, os olhos grudados no
corpo inerte à minha frente.
Ele morrera rápido e isso, com
certeza, era muito mais do que ele
merecia.
Nick disse algo, mas não
assimilei. Ouvi ao longe os sons dos
helicópteros se aproximando. Já era
tarde demais para o FBI agir.
Eu precisara tomar uma decisão
rápido e, honestamente, não me
arrependia. Ao menos agora eu teria a
garantia de que Joel nunca mais
machucaria outra pessoa.
Mas, então, a figura de Joel foi
substituída por outra, trazendo à tona
uma cadeia de memórias que foi o
suficiente para que eu, finalmente,
regurgitasse.
A Glock caiu da minha mão e
eu me abaixei, virando para o outro lado
e esvaziando todo o pouco conteúdo do
meu estômago. Quando terminei,
comecei a hiperventilar.
Eu havia matado Joel
McKinley, o homem que, em boa parte
da minha infância, eu passara chamando
de bicho-papão. O facínora que me
atormentara por anos a fio.
Encerrei um ciclo de dor e
maldade naquele deserto.
Destruí meu demônio e libertei
uma parte de mim que nunca havia
conseguido fugir de Dallas.
Voltei à realidade quando Nick
tocou meu ombro, me ajudando a me
erguer.
— Vem, vou te levar pra casa
— ele falou, segurando meu rosto para
olhar diretamente em meus olhos, me
inspecionando.
E no mesmo instante meu corpo
relaxou, meus olhos se enchendo de
lágrimas de alívio. Porque eu sabia que
ele não estava falando sobre o meu
pequeno quarto no alojamento da
faculdade.
Nick estava se referindo ao
apartamento de Hades, onde eu passava
a maioria das noites. Porque minha casa
era onde estava Hades. Ele e o
Pandemônio eram a única família que eu
já conhecera. Eram o meu conforto,
minha garantia de que tudo ficaria bem.
Eu me encaixava no submundo,
concluí. Era um deles e isso não me
deixava amedrontada mais. Não queria
ser outra pessoa nem estar em nenhum
outro lugar.
Talvez Selina estivesse errada,
no fim das contas.
Está escuro aqui na noite
morta
Por um momento eu fui
embora
Está escuro aqui em meus
próprios pensamentos
Puxe-me de volta para fora do
meu corpo
Estou amarrado aos meus
membros
Eles estão me deixando fora de
controle
Me amarre
Tether me - Galleaux

Eu andava incessantemente de
um lado para o outro em meu quarto.
Não consegui parar desde que Strauss
me ligara, dizendo que sua equipe tinha
Raven e Nick sãos e salvos. O alívio
que eu senti foi logo substituído por
preocupação. Raven matara Joel
McKinley e eu sabia que não deveria ter
sido fácil para ela. Tudo o que eu queria
naquele momento, tudo o que eu
precisava, era ter minha garota em meus
braços.
O resto do Pandemônio também
estava preocupado e queria vê-la.
Surpreendentemente, eles haviam se
apegado muito à Raven. Eu, porém, tinha
pedido a eles que nos deixassem
sozinhos naquela noite. Sabia que, muito
provavelmente, ela precisaria de um
tempo. Queria poder protegê-la disso.
Da culpa que Raven sentia o tempo todo.
Me endireitei quando a porta
do quarto se abriu e Raven entrou. Ela
estava descalça, com profundas olheiras
ao redor dos olhos claros. Parecia
exausta. Parei de andar e a observei, me
recordando da última vez em que nos
falamos. Ela estivera chateada comigo.
Talvez ainda estivesse.
Seus olhos cinzentos me
encararam por longos segundos enquanto
permanecíamos em silêncio, como se
estivéssemos esperando o outro tomar a
iniciativa. A perscrutei com cautela,
procurando qualquer indício de que
estivesse fisicamente ferida. Para meu
alívio, não encontrei nenhum.
Raven suspirou e puxou a barra
de sua blusa preta para cima, tirando-a e
deixando-a cair no chão. Em seguida,
abaixou as calças, permanecendo apenas
suas roupas íntimas. Girou sobre os
tornozelos, cruzando o quarto na direção
do banheiro enquanto tirava o sutiã. Ela
se livrou da calcinha também antes de
entrar, e, para minha surpresa, manteve a
porta completamente aberta. Um
segundo mais tarde, ouvi o chuveiro ser
ligado e logo o vapor quente do seu
banho invadiu o quarto.
Massageei a nuca, me sentindo
numa encruzilhada. Aquilo não era
comum, mas Raven tinha o costume de
ser imprevisível.
Sem pensar demais sobre a
situação, tirei minhas roupas também e a
segui para dentro do banheiro. Raven
estava de costas para mim, o rosto
erguido na direção ao jato d'água. A
água caía em sua cabeça, transformando
seus longos cabelos negros numa cascata
que descia pela extensão de suas costas.
Prendi a respiração ao entrar
no box de ladrilhos escuros, me
postando atrás dela.
— Pensei que não viria — ela
falou, dando um passo para longe do
jato de água quente.
Incapaz de manter minha mão
longe dela por muito tempo, afastei seus
cabelos das costas. Encontrando a pele
lisa e macia de suas costas.
— Achei que ainda estivesse
brava comigo — revelei, deslizando a
lateral do meu polegar contra a parte de
trás de seu ombro.
Raven se virou e se jogou sobre
mim, segurando-se firmemente em meus
ombros enquanto me abraçava,
enterrando a cabeça na curva do meu
pescoço. Minhas sobrancelhas se
ergueram com o movimento inesperado,
mas não demorei a reagir. Coloquei uma
mão na base de suas costas, enquanto a
outra afagava seus cabelos molhados.
— Queria que estivesse lá
comigo. Sinto muito — lamentou, com a
voz embargada, e, com isso, me
desmontou completamente.
Fechei os olhos, apertando-a
forte contra mim, como se ela pudesse
desaparecer a qualquer momento. Senti
meu peito apertar com agonia e
apreensão.
— O que houve, amor?
Converse comigo.
Senti ela balançar a cabeça.
— Não vamos falar sobre isso
agora, por favor.
Assenti, compreendendo.
Em silêncio, deslizei meus
dedos sobre a pele de sua coluna. Era
tão suave, quase etérea. Virei meu rosto,
o suficiente para aspirar o cheiro do seu
cabelo. Raven era tão pequena,
encaixando-se em mim como se
fôssemos peças de um mesmo quebra-
cabeças.
Suas mãos apertaram meus
ombros, subindo e descendo ao longo
dos meus braços. Ficamos assim por
alguns minutos, sentindo um ao outro,
trocando calor entre nossos corpos. Até
que eu me distanciei, apenas o suficiente
para me inclinar na direção da prateleira
de vidro e encher minha mão de
sabonete líquido perfumado. Raven
seguiu meus movimentos com os olhos e
eu a encarei firmemente enquanto
deslizava as mãos ensaboadas sobre sua
clavícula.
Ela ficou extremamente quieta e
eu tive que quebrar nosso contato visual
para me concentrar em limpá-la. Toquei
sutilmente seu pescoço, onde ainda
haviam marcas roxas carimbadas na
pele alva.
Eu passei aquele dia inteiro
pensando sobre o que acontecera na
noite passada. Não consegui me livrar
da imagem de Stephen a enforcando,
desejando tão intensamente sua morte, e
senti raiva de mim mesmo por não ter
estado lá para protegê-la. Mais cedo,
quando eu fora até a delegacia, estava
determinado a matar Stephen com as
minhas próprias mãos. Talvez eu tivesse
feito isso mesmo, se o xerife não me
impedisse. Que bom que me impedira;
afinal, não sabia se Raven teria me
perdoado caso contrário.
Respirei fundo, descendo os
dedos sobre a curva de seus seios até
sua barriga.
Havia algo especialmente
íntimo em tomar banho com outra
pessoa. Talvez por isso eu sempre
evitara esse momento com qualquer
outra garota.
Me impedindo de continuar
massageando sua barriga, Raven me
empurrou para que minhas costas se
chocassem contra a parede. Ela se
colocou na ponta dos pés e aproximou
sua boca da minha, senti sua respiração
em meu rosto. Acariciei sua bochecha,
tentando ler seus olhos.
Quais partes de si mesma
Raven havia sacrificado para matar Joel
McKinley?
Eu podia ver que algo a
assombrava.
Ela passou a ponta da língua
sobre meu lábio inferior, como se
estivesse experimentando meu gosto
antes de, finalmente, me beijar. Não
durou muito, entretanto. Logo ela
separou nossas bocas, me afastando com
uma mão espalmada em meu peito.
Raven beijou meu pescoço
enquanto sua mão arranhava meu
abdome. Ela dedilhava os músculos de
maneira decidida, levando sua mão cada
vez mais ao sul. Minha respiração ficou
mais pesada e, antes que ela descesse
mais, eu agarrei seu pulso, buscando
seus olhos.
— Raven — eu a chamei,
firme.
Queria que ela me dissesse o
que estava se passando em sua cabeça e
em seu coração. Raven parecia
perturbada e isso me corroía. Eu estava
preocupado.
Ela se endireitou. Estava tão
frágil, tão tragicamente quebrada.
— Eu só quero me perder em
você essa noite, Hades — explicou,
quase suplicante. — Preciso sentir
alguma coisa. Por favor.
Franzi o cenho, meus ombros
caindo em derrota. Seria mais fácil se eu
pudesse ouvir seus pensamentos, saber
por que ela temia tanto a ideia de me
revelar suas partes sombrias.
Apenas anuí uma vez com a
cabeça. Ela queria uma distração e eu
estava mais do que disposto em ser uma
naquela noite.
Meu gesto foi a confirmação
que ela precisava para descer seus
lábios pelo meu corpo, traçando uma
trilha de beijos em direção à minha
pélvis. Fechei os olhos quando ela se
ajoelhou diante de mim, sentindo seu
toque ao redor do meu pau antes que sua
língua quente percorresse meu
comprimento.
Um rosnado escapou de mim
quando ela me colocou em sua boca
quente. Minha mão foi instintivamente
para a sua cabeça, mas não a empurrei.
Aquilo era mais sobre ela do que sobre
mim. Me forcei a abrir os olhos.
Precisava assistir.
Raven segurava a base do meu
pau com uma mão, enquanto a outra
estava sobre minha coxa, as unhas curtas
fincadas na pele. Ela sugava e lambia
com vontade, movimentando a cabeça
para frente e para trás, empurrando-me
mais fundo em direção à sua garganta.
Me apoiei no vidro embaçado
do box, sendo envolvido pelo vapor
quente da água, grunhidos escapando por
entre meus lábios.
Prendi meu lábio entre os
dentes, sentindo-me delirar enquanto
Raven ia mais rápido. Ela ergueu seus
olhos para mim, me empurrando
completamente além do meu limite. Eu
estava dopado de tesão.
— Porra — gemi alto, sentindo
o sangue em minhas veias virar lava. —
Eu vou gozar.
Ela sorriu, se afastou e se pôs
de pé. Lambeu os lábios inchados e
vermelhos, que brilhavam molhados.
Aquela visão deveria estar num maldito
museu. Tomei meu tempo para admirar
seu torso nu, o corpo perfeitamente
esculpido que pedia pelo meu toque.
— Quero você dentro de mim
— ordenou, decidida. — Agora.
— Você que manda, amor.
Ensandecido, agarrei sua
cintura e inverti nossas posições,
pressionando-a contra a parede de
ladrilhos e atacando seus lábios, minha
língua clamava pela sua. Talvez eu
também estivesse precisando daquilo.
Sem sombra de dúvidas, eu iria precisar
do corpo de Raven sempre. Ela estava
em meu organismo, em minha corrente
sanguínea. Era irreversível.
Apertei a carne de seus quadris
entre os dedos antes de levantá-la,
impulsionando seu corpo leve para
cima. Instintivamente, Raven enlaçou
minha cintura com suas pernas,
segurando-se em meus ombros. Seus
olhos faiscavam de lascívia e eu
adorava aquilo, sabia muito bem sobre
os pensamentos sujos que rondavam sua
mente naquele instante. Queria ouvir
todos eles em voz alta.
— O que está esperando? —
Raven perguntou, parecendo
desesperada. — Me fode logo, Hades.
Sorri, me inclinando para
abocanhar um de seus seios, que
estavam empinados bem diante do meu
rosto. Mordi seu mamilo intumescido e
ela gritou, fechando os olhos e
começando a se esfregar sobre meu
abdome, em busca de fricção.
Ofegante, larguei seu peito para
olhar novamente para seu rosto. Alguns
fios de cabelo molhados estavam
grudados em sua testa e pescoço.
Acariciei seu rosto com uma mão,
enquanto a outra guiava meu membro
rijo para sua entrada.
Seu rosto se contorceu cada vez
mais de prazer, até nossas pélvis
estarem unidas e eu preencher seu
interior completamente. Seu sexo era
quente e apertado, contraindo-se contra
mim, tirando-me toda a sanidade.
Descansei minha testa contra a
de Raven, entorpecido com a maneira
como ela fazia eu me sentir. Então,
impulsionei meu quadril para trás
lentamente antes de arremeter em
seguida, indo mais fundo. A boca de
Raven se abriu quando um som rouco
cortou sua garganta e ela segurou mais
firmemente em mim. Estabeleci um ritmo
lento e torturante, penetrando-a
profundamente.
A garota logo perdeu a
paciência com tanta lentidão,
começando a rebolar e se esfregar
contra mim num frenesi absoluto. Fiz o
que ela queria e aumentei a velocidade.
O barulho da água do chuveiro não era o
suficiente para abafar os gemidos de
Raven ou o som dos nossos corpos se
colidindo ferozmente.
— Meu Deus — ela limitou-se
a dizer, revirando os olhos antes de me
abraçar.
Raven fechou a boca sobre meu
ombro, mordendo-me ao mesmo tempo
em que afundava as unhas sobre meus
braços, segurando-se firme enquanto
suas costas se chocavam contra a parede
no ritmo das minhas investidas. Aquilo
só fez inflamar ainda mais o incêndio
que havíamos iniciado naquele banheiro.
Empurrei-a contra os ladrilhos
enquanto metia cada vez mais forte. Eu a
fodi de maneira bruta. Era duro e
selvagem, beirava o animalesco. Talvez
aquela fosse nossa marca registrada. Era
impossível manter algum controle perto
um do outro.
Poderíamos causar uma
explosão a qualquer momento.
Bati meu quadril contra o de
Raven novamente, ainda mais forte, e
tive certeza de ter atingido algum lugar
dentro dela que a fez ruir
completamente. Seu corpo começou a
tremer. E eu mal pude admirá-la
enquanto gozava, porque logo atravessei
meu próprio orgasmo. Segurei-a mais
forte em seus espasmos, um gemido
rouco escapando de mim.
Respirei forte contra seu
pescoço, meu peito subindo e descendo
rápido com minha respiração ofegante.
Até que eu ouvi um soluço baixinho.
Franzi o cenho e me afastei para olhar
no rosto de Raven. Lágrimas estavam
presas entre seus cílios. Levantei seu
queixo com a curva do meu indicador,
obrigando-a a me fitar.
— Ei, o que houve? Eu te
machuquei? — O medo me invadiu
rapidamente. A ideia remota de tê-la
ferido poderia ser o suficiente pra me
destruir.
Raven balançou a cabeça,
pegando meu rosto entre as mãos.
— Você me faz sentir como se
eu não fosse completamente vazia por
dentro — lamuriou. Cada palavra me
atingiu como um punhal.
Engoli em seco, colocando
minha mão sobre sua bochecha como
uma concha.
— Você não é vazia —
contrariei, sério. — Como pode pensar
isso? Você é tudo, Raven.
Ela sorriu, seus olhos se
iluminando com um brilho que nunca
deveria deixá-los
— Nunca vi alguém passar de
obscenidades para romantismo tão
rápido como você, Hades Wrath.
— Esse é só um dos meus
vários dons, amor.
Raven riu, voltando a me
abraçar. Saí lentamente de dentro dela,
tomando-a em meus braços. Fechei o
chuveiro e a carreguei para a cama.
Passamos alguns minutos
deitados nus em silêncio. Um lençol
envolvia nossos corpos entrelaçados.
Ela tinha um dos braços sobre meu
tórax, segurando-me como se estivesse
se certificando de que eu não fosse sair
dali.
Não havia a menor chance de
eu ir a qualquer lugar sem ela. Nunca
mais.
Sua cabeça repousava
serenamente contra meu peito. Eu
acariciava seu ombro exposto, traçando
desenhos abstratos em sua pele com a
ponta dos dedos.
O medo de perdê-la era tão
grande que às vezes me sufocava.
Frequentemente vinha na forma de um
pesadelo horrível, mas eu me
tranquilizava quando abria os olhos e a
encontrava ali, dormindo de forma
tranquila tão perto de mim. Não sabia o
que faria se algo acontecesse com ela.
Fechei os olhos por um
instante, me rendendo ao sono que me
consumia lentamente. Até que sua voz
soou.
— Há um ano eu estava sozinha
na casa de Joel, ao menos era o que eu
pensava. Um de seus guardas tentou se
aproveitar dessa situação, entrou no meu
quarto e me ameaçou com uma faca.
Nunca gritei tanto em toda a minha vida.
Eu tive sorte, porque Maria me ouviu,
ela estava lá também. Arriscou a vida
naquele dia quando atacou o guarda para
me defender. Não sei o que teria
acontecido comigo se ela não tivesse
aparecido. Acho que teria feito tudo
para que ele me matasse em vez de…
Sua voz voltou a embargar. Ela
não conseguia dizer aquela palavra em
voz alta. Aquele era o favor que Maria
havia cobrado dela, então. Praguejei
internamente antes de me afastar para
poder olhar seu rosto.
— Vocês são muito fortes. Mais
do que qualquer um que já conheci.
Raven fungou, voltando a se
deitar sobre mim.
— Connor chegou e encontrou
nós duas lutando debilmente contra o
homem. Ele ficou furioso quando
descobriu o que o guarda tentou fazer.
Então me deu um revólver e pediu para
que eu matasse o homem que me atacou.
— Ela fez uma pausa breve. — Eu o
matei. O executei. E não senti nada
quando fiz isso. Hoje eu matei Joel
McKinley e também não senti nada. Que
tipo de pessoa eu sou?
— Uma sobrevivente —
respondi, atraindo seu olhar para mim.
— Eu soube disso na primeira vez em
que coloquei meus olhos sobre você.
Raven deu um sorriso fraco
antes de se inclinar e depositar um beijo
terno sobre a tatuagem que ficava do
lado esquerdo do meu peito. Bem acima
do coração. A caveira com a coroa,
símbolo do Pandemônio. Depois, ela se
aconchegou em meus braços e fechou os
olhos, seus traços ficando calmos e sua
respiração, tranquila.
Ela era uma lutadora nata.
Havia passado por tanta dor e
sofrimento e mesmo assim continuava de
pé, sobrevivendo. Não havia nada que
Raven Clarke não pudesse fazer.
Passei os dedos por seus
cabelos, sentindo sua respiração
tranquila em meu peito.
Decidi, assim, que não
esconderia mais nada dela. Eu a queria
em minha vida e não podia mais ser
egoísta. Iria lhe contar tudo.
— Eu amo você — confessei,
num sussurro. — Te amo mais do que
pensei que fosse possível amar outra
pessoa.
Não foi difícil dizer aquelas
palavras. Embora fosse a primeira vez
que as falava para alguém que não fosse
minha mãe ou meu irmão, não foi
estranho como eu imaginara. Foi natural.
Saiu quase que automaticamente.
Esperei ansioso para que ela
dissesse algo, mas só havia o silêncio.
Me inclinei, capturando um vislumbre
de seu rosto sereno. Raven estava
dormindo profundamente.
Sorri e depositei um beijo em
sua testa. Em seguida, permiti que minha
mente descansasse também.
Nunca mais me deixe sozinho
Minha guerra acabou
Seja meu abrigo desde o início
Minha guerra acabou
The War - SYML

Acordei com meu celular


vibrando incessantemente sobre a
pequena cômoda ao lado da cama. Antes
de apanhar o aparelho, olhei por um
instante para Raven, que continuava
dormindo pacificamente. Coloquei as
pernas para fora da cama bem devagar e
me levantei. Fui até o outro lado do
cômodo para pegar minha calça, que
estava junto de outras peças de roupas
no chão. A vesti e saí do quarto pisando
na ponta dos pés. Só atendi à chamada
quando já estava lá em baixo.
— Hades, finalmente. — A voz
da agente Strauss tinha um tom de
urgência preocupante. — Ouça, o
agente Doakes está a caminho do seu
apartamento nesse exato momento.
Franzi o cenho, olhando para o
relógio pendurado no pilar perto da ilha
da cozinha. Ainda eram sete da manhã.
Eu mal havia dormido quatro horas.
Massageei uma têmpora,
bufando.
— Quem diabos é agente
Doakes?
— Meu chefe, o agente
supervisor — respondeu. — Ele não
sabe sobre meu envolvimento com o
caso Wrath. Precisei dele para montar
uma operação para prender Joel
McKinley. Disse que tinha uma pista
anônima sobre um traficante
internacional de drogas e mulheres.
Um prato cheio para a mídia e para a
reputação de Doakes. Ele me deu os
recursos necessários, mas insistiu em
liderar a operação. Acontece, Hades,
que ele não ficou nem um pouco feliz
depois que sua namorada matou a
galinha dos ovos de ouro. Doakes
queria um grande espetáculo, mas saiu
como um idiota.
Revirei os olhos, me xingando
mentalmente por ter me enfiado numa
situação como aquela, agora eu tinha que
lidar com os dramas do orgulho ferido
de um agente do FBI.
— Primeiro, minha namorada
tem nome, é Raven. Segundo, não dou a
mínima para os sentimentos desse tal
Doakes. Não temos nada a ver com isso.
— Agora têm! — retrucou,
elevando o tom de voz. — Vocês
chamaram a atenção dele e, acredite,
isso não é nada bom. Tenho um acordo
com você sobre não ir atrás dos seus
negócios, mas Doakes não vai hesitar
se farejar algo de errado, inclusive se
ele desconfiar que estou numa jornada
pessoal contra seu pai.
— Doakes não vai saber dos
seus motivos através de mim. O que eu
posso fazer para ele nos deixar em paz?
— Rezar seria um bom começo
— falou, me deixando frustrado. — E,
Hades, melhor começar logo a
trabalhar na queda do seu pai. Para o
bem de nós dois.
E então, ela desligou.
Grunhi, irritado.
Eu, definitivamente, não
precisava de um agente do FBI na minha
cola naquele momento.
Vários homens de McKinley
estavam sendo presos. Os Daggers não
podiam mais contar com aquela ajuda.
Este deveria ser o nosso momento de
tentar atacá-los e derrubá-los de uma
vez por todas.
Ainda pensando no que eu
deveria fazer a seguir, uma
movimentação no andar de cima chamou
minha atenção. Levantei a cabeça,
olhando para o mezanino. Raven estava
debruçada sobre a balaustrada de vidro.
Os cabelos estavam uma bagunça ao
redor de sua cabeça. O sorriso surgiu
instantaneamente no meu rosto.
— O que foi? — perguntou,
com a voz embolada de sono.
— O FBI tirando meu sossego,
pra variar. Volte a dormir, amor. Ainda é
muito cedo.
Me ignorando totalmente —
como de costume —, Raven caminhou
até às escadas e começou a descer os
degraus. Ela não usava nada além da
blusa que eu havia tirado ontem à noite.
As pernas torneadas estavam expostas e
ela estava descalça.
— Pensei que estava tudo certo
com o FBI. — Ela franziu o cenho,
confusa.
— Aparentemente, há um novo
problema: agente Doakes, o chefe da
Strauss. E está vindo para cá agora.
Acho que quer nos fazer algumas
perguntas.
— Ele estava em La Cuesta
ontem — Raven disse, parecendo
preocupada. — O homem me deu
arrepios.
E coincidentemente, no mesmo
instante, o familiar som do elevador nos
interrompeu e um homem alto e velho
entrou na minha cobertura. Ele trajava
um terno cinza. Os cabelos grisalhos
penteados para trás. Seu rosto estava
retorcido numa carranca.
— Você deve ser Hades Wrath
— falou, com a voz apática, me olhando
friamente. — Sou o agente supervisor
Doakes, do FBI.
Franzi o cenho, ultrajado.
— Como entrou aqui?
Eu nem sequer havia liberado
sua entrada.
— Mostrei meu distintivo ao
porteiro. — Deu de ombros.
— O que você quer?
— Apenas fazer algumas
perguntas. — Ele colocou as mãos nos
bolsos da calça social.
Respirei fundo, cruzando os
braços.
— Espero que seja rápido. Não
costumo acordar antes das dez.
Nem um vislumbre de humor
cruzou o rosto de Doakes. Ele
permaneceu me encarando entediado sob
suas pálpebras enrugadas.
— Arrogante e desprezível,
como me avisaram. — Ele estalou a
língua antes de alternar sua atenção para
Raven. Seus olhos de peixe desceram e
subiram vagarosamente ao longo do
corpo dela. — Bom te ver novamente,
senhorita, mas deveria colocar uma
roupa. Não quer que o FBI ache que
você tem um caráter duvidoso, quer?
Eu quase engasguei.
Abri a boca para mandá-lo para
o inferno quando Raven levantou sua
mão para mim, prevendo o que eu faria e
me impedindo. Então, ela deu um passo
na direção do agente, os olhos estreitos
para ele.
— Você não está na sua casa,
agente Doakes. Não está, sequer, na sua
cidade. Aqui você vai me respeitar,
entendeu?
Sua voz era firme, poderia
muito bem ser uma lâmina afiada direto
na garganta de Doakes. Sorri,
observando-a com orgulho. Ela não
esperou por uma resposta, não precisava
de nenhuma. Apenas se virou e foi em
direção às escadas, subindo até o
segundo andar.
— Um tanto temperamental pro
meu gosto — observou ele, enquanto
olhava ao redor, conferindo a decoração
do apartamento. Me coloquei em seu
caminho.
— Sugiro que não fale dela
perto de mim. — Ele riu nasalado.
— Admiro isso, sabia? Essa
sua devoção. Infelizmente, não vai te
levar à nada.
Bufei.
— Deixe que eu decido isso,
sim?
Doakes não respondeu. Pouco
tempo depois, Raven estava de volta,
completamente vestida. Ela me trouxe
uma camiseta limpa, que eu rapidamente
vesti.
— Então, vai começar logo a
falar? — perguntou ela, cruzando os
braços.
— Não vão sequer me oferecer
um café? — O agente estava tentando
nos tirar do sério, percebi.
Ele fez menção de dar alguns
passos adiante para adentrar à sala de
estar, mas me postei em sua frente de
novo.
— Acho que não vai ser
necessário. Esta é uma visita rápida,
presumo.
Doakes tomou um longo
suspiro.
— Certo, certo. Vamos direto
ao ponto então. — Ele se virou para
Raven. — Joel McKinley era seu
padrasto, correto?
— Sim — respondeu.
— E você sempre soube dos
negócios ilegais com o qual ele estava
envolvido?
Havia um tom sugestivo em sua
voz, e eu pude prever suas pretensões.
Instantaneamente, soube que Strauss
estava certa. Aquele cara seria um
problema.
— Onde você quer chegar? —
interrompi, atraindo seu olhar para o
meu rosto.
— Sua namorada matou um
homem ontem, sr. Wrath.
— Um criminoso perigoso —
rebati, estreitando meus olhos para ele.
Doakes parecia desesperado para
inverter os papéis naquela história.
— Alguns poderiam dizer a
mesma coisa sobre você. — Ele cruzou
os braços. Praguejei internamente. O
desgraçado sabia sobre o Pandemônio.
— Fiz minha lição de casa sobre os
Wrath. Não foi difícil descobrir tudo.
Você é uma pessoa bem conhecida,
sabia? E não é muito bom em esconder
os rastros dos seus crimes.
— Joel iria me matar — Raven
interviu, aumentando o tom de voz e
dando um passo ameaçador na direção
do agente. — Iria matar Nick também.
Foi legítima defesa.
— Só estou atrás da verdade
aqui — argumentou Doakes. —
Conversei com o xerife sobre vocês. Só
queria ter uma noção de com quem, e o
quê, eu estaria lidando. O xerife Callow
parecia pronto para colocar a mão no
fogo por você. Policiais não deveriam
ser leais a ninguém além dos cidadãos.
— Isso é assunto da
corregedoria. Se acha que o xerife não é
honesto, então faça uma queixa formal.
— Dei de ombros, mantendo a
expressão tranquila no meu rosto.
Doakes balançou a cabeça.
— Quantas autoridades você
comprou para que tivesse a segurança de
acreditar que pode fazer o que quiser
nessa cidade?
Trinquei o maxilar. Com o
canto do olho percebi a postura de
Raven enrijecer. Ela estava tensa.
— Se você vai me acusar de
algo, agente, é melhor fazer isso logo.
Tenho o contato do meu advogado na
discagem rápida.
Ele respirou fundo, mas não se
abalou. Parecia ter tudo sob controle.
— Alguém precisa corrigir isso
— ele disse, antes de dar um breve
sorriso e se virar, caminhando em
direção ao elevador. — Alguém precisa
acabar com seu reinado.
— Sinta-se livre para tentar —
o desafiei. Antes de entrar no elevador,
Doakes me olhou por um instante. Vi em
seus olhos que ele não estava pra
brincadeira.
— Acho que essa não é a
última vez em que vamos nos ver, Wrath.
Ele piscou antes de sair.
— Merda — xinguei alto,
passando as mãos no rosto.
— Estamos muito fodidos —
Raven murmurou, jogando-se no sofá.
Eu precisava dar um jeito
naquela bagunça. Com Connor e os
Daggers ainda no jogo, eu não poderia
lidar com o FBI também. Talvez a
maneira mais rápida de dispersar a
atenção de Doakes fosse dar exatamente
o que Strauss queria: a cabeça do meu
pai. O que significava que eu precisava
entregar provas sobre os crimes de
Frederik.
— Vou dar um jeito nisso —
garanti. — Mas Connor ainda está por aí
e, se o bastardo do Seven estiver certo,
pode tentar ir atrás de você. Tome
cuidado na Universidade.
— Eu vou precisar de outra
arma. Doakes não devolveu a minha. —
Ela rolou os olhos, me fazendo rir.
— Vou providenciar isso.

Após deixar Raven no campus,


resolvi passar no bar do Pandemônio no
tempo que ainda tinha antes das minhas
aulas começarem. Pretendia olhar os
arquivos do cassino para procurar algo
que pudesse servir como prova dos
crimes de Frederik.
Diferentemente de Strauss,
Doakes não me transmitiu, em nenhum
momento, qualquer sensação de
imparcialidade. Era como se ele já
estivesse convencido da minha culpa
antes mesmo de entrar no meu
apartamento. Embora Abigail tivesse
deixado claro que seu supervisor
poderia se tornar meu pesadelo, eu
estava determinado a pedir para
Charles, o detetive particular próximo
da minha família, a dissecar sua vida em
busca de qualquer coisa que eu pudesse
usar contra ele.
Duvidava muito que ele
estivesse limpo.
Ainda era cedo quando
estacionei em frente ao bar. Ele sequer
estava aberto. Girando a chave entre os
dedos, dei a volta pelo beco lateral e fui
até a porta dos fundos. O interior estava
escuro e silencioso, o que rapidamente
me despertou para algo estranho.
Durante as manhãs era feita a
preparação do bar para a hora do
almoço.
Passei reto pelo corredor e fui
até o salão principal. A primeira coisa
que notei foi que as cadeiras de madeira
ainda estavam todas sobre as mesas,
como costumavam ficar quando estavam
fazendo a limpeza. A segunda, foi que
havia alguém deitado sobre o balcão de
madeira do bar.
Meu estômago embrulhou no
mesmo instante e tudo começou a girar.
Lá em cima estava o corpo
inerte de Fiona, com um enorme corte
em sua garganta.
Eu não quero sair daqui sem
você
Eu não quero perder parte de
mim
Estamos enterrados em sonhos
quebrados
Estamos atolados sem um
fundamento
Não quero conhecer
O outro lado do mundo sem
você
The Other Side - Ruelle

Eu nunca tinha ido a um funeral


antes.
Costumava achar que estava
familiarizada com a morte. Eu já a
encarara de frente antes, afinal. Já havia
visto pessoas serem assassinadas, havia
até mesmo matado. Pensei que estaria
imune ao efeito dela, mas percebi que
era completamente diferente quando
acontecia com alguém que você gostava.
A morte de Fiona me atingiu
como um míssil. Não só a mim, mas a
todas aquelas poucas pessoas no funeral.
Seus amigos eram sua família. A maioria
de nós não tinha nada além de uns aos
outros. Mas, encarando o caixão fechado
sendo colocado numa cova funda e vazia
no cemitério de Carmine, não pude
evitar pensar que eu havia falhado com
Fiona.
Não era para aquilo ter
acontecido, não com ela. Aquilo tinha a
ver comigo. Connor a matara. O enorme
corte na garganta, de uma orelha a outra,
era sua marca registrada. Era como ele
costumava matar. Porque Connor era um
psicopata que gostava de ver suas
vítimas engasgando com o próprio
sangue antes de morrer. Sabia que ele
havia feito aquilo para me atingir, me
machucar, após eu ter matado seu
mentor.
Era tudo sobre retribuição.
Sentada numa das cadeiras em
frente ao palanque no qual o padre
falava por vários minutos, meu olhar
estava perdido na terra ao redor da
cova. Fiona não era religiosa, mas
Hades queria garantir que ela tivesse um
funeral completo, como todas as outras
pessoas têm. Queria garantir que, se
existisse um céu, Fiona estaria nele.
Eu estava tentando transformar
minha dor e meu luto em raiva, para
poder fazer justiça por Fiona. Mas não
consegui evitar as lágrimas por muito
tempo. Quando Khalil, sentado ao meu
lado, segurou minha mão, entrelaçando
seus dedos nos meus em sinal de
conforto, eu desabei. O abracei,
chorando com o rosto enterrado em sua
jaqueta preta.
O Pandemônio estava todo lá,
com as jaquetas estampadas com o
símbolo de sua gangue. Aquela que
pertencia à Fiona fora enterrada com
ela, como deveria ser.
Quando o padre terminou de
rezar, desceu do palanque e convidou
Hades para subir até o pequeno palco ao
lado de um cavalete de madeira com
uma foto de Fiona. Ele se levantou e foi
até lá. Seus olhos e nariz estavam
vermelhos. Eu nunca havia visto
ninguém chorar tanto quanto Hades
naquele dia. Meu coração quebrava
sabendo que aquela perda era mais uma
cicatriz permanente na alma dele.
Quanta dor alguém poderia ser
capaz de suportar sem quebrar
completamente?
Ergui meu rosto para observá-
lo parado lá, encarando o pequeno grupo
de pessoas à sua frente. Ficou em
silêncio por alguns minutos. Abriu a
boca algumas vezes, mas nunca
conseguia dizer nada em voz alta. Não
haviam palavras que pudessem mensurar
tamanha tristeza.
Pouco tempo depois, seu olhar
se alternou para algo do outro lado do
cemitério. Me virei para aquela direção
e vi Nick se aproximando. Usava uma
camisa preta simples e tinha as mãos nos
bolsos da calça. Hades desceu da
elevação de madeira e foi até ele,
caminhando rapidamente.
Os dois irmãos se chocaram um
contra o outro num abraço intenso.
Senti meu coração apertar
vendo os ombros de Hades tremendo, o
que indicava que ele voltara a chorar.
Nick parecia tão desolado quanto ele.
Ambos eram muito próximos de Fiona.
Ela era família.
Foi então que a silhueta de
outra pessoa chamou minha atenção.
Estava mais perto da rua, ao lado de
uma árvore. Apesar da distância, eu
reconheci a figura de Connor Kamps.
Trinquei o maxilar, sentindo-me
enfurecer rapidamente.
Me levantei e marchei até ele
como se estivesse andando para a
guerra.
— Como ousa vir até aqui… —
o desafiei, ao me aproximar. Puxei a
arma na cintura da minha calça,
apontando-a diretamente para o rosto
dele.
Connor, porém, apenas cruzou
as mãos em frente ao seu corpo. Nem
mesmo piscou com a possibilidade de
eu matá-lo. Ele deveria saber, àquela
altura, que eu não hesitaria. Ele deveria
me temer.
— Eu não faria isso na frente
do FBI, se fosse você.
O homem meneou a cabeça na
direção de um utilitário preto
estacionado na rua a poucos metros de
distância. A janela estava
completamente abaixada, revelando a
figura do agente Doakes lá dentro.
Provavelmente, ele não sairia da cola de
Hades por algum tempo.
Voltei meu olhar para o homem
em minha frente, bufando com a
necessidade de abaixar minha Glock,
recém adquirida. Não a guardei,
contudo. Era um aviso silencioso de
que, na menor chance, eu atiraria em sua
cabeça sem pensar duas vezes. Sequer
me importaria com as consequências.
— Por que fez isso com ela? —
perguntei com a voz falha, lágrimas
voltando aos meus olhos. Ele apenas deu
de ombros.
— Olho por olho, dente por
dente.
Retribuição.
— Fui eu quem matou Joel e
entregou sua máfia ao FBI. Deveria ter
ido atrás de mim! — rugi entredentes.
Eu desejava que ele tivesse feito isso
em vez de matar Fiona a sangue frio. —
Mandei esquecer a porra da promessa e
me dar o seu pior.
— Você não aguentaria o meu
pior — falou, simplesmente.
— Não diga o que eu sou ou
não capaz de aguentar.
— Você poderia facilitar as
coisas, Raven. Tem algumas pessoas
nesse velório, quantas delas vou
precisar matar para você desistir?
Senti meu sangue ferver. Eu não
precisava de mais uma confirmação.
Connor mataria todos os meus amigos
para conseguir o que queria.
— Ainda é sobre eu mudar de
lado?
— É sobre você tomar sua
decisão, Raven. Se me entregar o
Pandemônio, vou poupar seus amigos.
Só vou precisar da cabeça do Wrath.
Meu rosto se retorceu num
misto de asco e indignação.
— Acha mesmo que vou trair
Hades, depois de tudo?!
— Enquanto ele estiver vivo,
terá a influência sobre esta cidade,
sobre os traficantes, os policiais, o
prefeito... Não podem haver dois reis
num mesmo território. Agora o FBI está
na cola de vocês. Mais cedo ou mais
tarde, Wrath irá cair.
Umedeci os lábios com a
língua, sentindo minha cabeça latejar.
— Você nunca irá conseguir
essa cidade. Você é apenas um e os
Daggers estão divididos...
— Por enquanto — rebateu,
com veemência. — Hades já te traiu
antes e, mesmo assim, você permanece
leal a ele como um cachorrinho?
Patético, Raven. Tão, tão patético.
Pisquei algumas vezes.
— Ele nunca me traiu.
— Não?
Antes que eu pudesse dizer
alguma coisa, uma sombra colidiu contra
Connor, jogando-o contra a árvore.
Hades tinha sua mão pressionada no
pescoço dele, os dedos firmes
esmagando a garganta.
— Hades, solte-o. — O puxei
pelo ombro, mas isso mal o afetou. Ele
era alto e forte demais. — Doakes está
do outro lado da rua!
Tornei a chamá-lo, aumentando
o tom de voz. Estava com medo que o
FBI aparecesse e o levasse preso.
Hades não parou mesmo assim,
precisando ser retirado de cima de
Connor por Wade e Khalil.
— Eu vou matar você! —
gritou Hades, parecendo completamente
fora do controle. Connor apenas deu um
risinho e ajeitou suas vestes.
— Acho que ele não te contou
sobre a ligação de Joel há uns meses,
Raven, quando eles conversaram sobre
você. Deveria perguntar a ele sobre
isso. E pensa no que eu te disse.
Connor retirou um par de
óculos escuros do bolso e o colocou no
rosto, fazendo menção de se virar. O
impedi, me postando em seu caminho.
— Um dia eu disse à Fiona que
mataria Joel McKinley. Eu cumpri minha
promessa — eu contei, sentindo mais
raiva do que pensei ser possível. —
Você é o próximo.
Ele não disse nada, apenas
desviou de mim e foi embora.
O percurso do cemitério até o
apartamento de Hades foi feito em um
silêncio sepulcral. Só havia nós dois em
seu carro. Minha mente estava presa nas
palavras ditas por Connor. Elas ficavam
se repetindo vez após vez, como um
maldito loop. Eu estava tentando
desconsiderar aquilo. Afinal, não fora a
primeira vez que Connor tentara plantar
ideias em minha cabeça. Ele
provavelmente só estava tentando fazer
com que eu me voltasse contra Hades e
o Pandemônio.
Eu não podia me deixar ser
facilmente manipulada pelo meu
inimigo.
Parte de mim tinha vergonha
por estar desconfiando de Hades, mas a
outra não conseguia se livrar daquela
ideia. Quando chegara em Carmine, eu
estava certa de que não podia confiar em
ninguém. Com o tempo, tudo começara a
mudar. Eu abrira meu coração e minha
vida, não só para Hades, mas para todos
os nossos amigos. Agora, a parte de mim
desconfiada e cautelosa estava voltando.
E eu odiava isso.
Após Hades estacionar no
subsolo, descemos e fizemos nosso
caminho até o elevador. O silêncio
permaneceu. Nenhum de nós queria falar
primeiro, mas eu não podia evitar
aquele aperto no peito, a sensação de
que tudo estava prestes a desmoronar.
Eu não podia aguentar a dúvida.
Precisava eliminar logo aquilo da minha
cabeça.
Foi por isso que, assim que
adentramos à cobertura, eu perguntei:
— É verdade?
Hades deu um longo e audível
suspiro, caminhando até a sala de estar.
Fiquei parada no hall de entrada,
abraçando meu próprio corpo. Eu nunca
tive tanto medo da verdade antes.
— Sim.
Tentei manter o controle, mas
estava sentindo como se a barragem de
uma enorme represa tivesse se rompido
dentro de mim. E, de repente, eu estava
sendo inundada por todos um turbilhão
de meus sentimentos ao mesmo tempo.
Prendi a respiração e pisquei
algumas vezes, ouvindo aquele “sim”
ecoar em minha mente repetidamente.
Meus ombros caíram e eu me apoiei num
pilar próximo a mim, temendo desabar
sobre meus joelhos.
— Joel entrou em contato
comigo pouco antes de você aparecer no
Pandemônio pela primeira vez. Agora
sei que ele soube que você estava aqui
através do Stephen — continuou Hades.
— Ele me ofereceu dinheiro para te
levar de volta, já que não podia entrar
em Carmine. McKinley pensou que eu
trairia meu pai. Eu não aceitei. Nunca
pensei em aceitar.
A compreensão me invadiu ao
mesmo tempo que as lágrimas surgiram,
deslizando quente para fora dos meus
olhos e ao longo das minhas bochechas.
Hades me encarava do outro lado da
sala, esperando meu próximo
movimento, me observando atentamente,
com a testa franzida e os olhos opacos.
Eu queria gritar, mas não tinha
forças. Eu poderia apenas ficar horas
chorando em silêncio, me sentindo tola e
insignificante por ter permitido que os
únicos homens que eu amara na vida me
enganassem.
Era assim tão fácil mentir para
mim, me manipular?
Me deixei iludir por uma
realidade bonita, na qual Hades e eu
ficaríamos juntos e seríamos felizes. Um
mundo onde eu poderia amar e ser
amada e isso não me destruiria.
— Você mentiu para mim —
concluí, baixinho. — Sabia quem eu era
quando me viu pela primeira vez.
Espera… — E as peças do quebra-
cabeças foram se juntando lentamente.
Tudo foi ganhando foco, fazendo
sentido. — Foi por isso que você quis
tanto que eu trabalhasse para o
Pandemônio. Me queria por perto para
me usar.
— Não foi assim — rebateu
Hades, com a voz firme.
Limpei as lágrimas
rapidamente. A tristeza e autopiedade
foram substituídas por raiva e
decepção.
— E como foi, Hades?! —
Elevei o tom de voz.
Naquele momento, eu mal
conseguia olhar para ele sem sentir
náuseas. O rosto que costumava ser o
meu conforto agora só me deixava
irada.
Eu não sabia se havia algo que
ele dissesse que pudesse consertar
aquilo. Tudo estava errado desde o
início.
— Após Joel me ligar, contei
ao meu pai. Naquela época as coisas
eram diferentes, eu pensava que
precisava obedecê-lo. Frederik pensou
que poderia usar você para destruir seu
arqui-inimigo, provavelmente porque
sabia que Joel era o pai de Nick. Eu me
recusei a ajudá-lo, e ele disse que usaria
de outros métodos para conseguir
informações de você. Os métodos dele
envolvem sequestro e tortura. Eu não
gostaria que ninguém passasse por isso.
— Aí você achou que estava
tudo bem em mentir para mim e me usar
por meses? — rebati, indignada. Eu
nunca havia levado um tiro, mas eu tinha
certeza de que não poderia doer tanto
quanto aquilo. — Meses, Hades.
Enquanto eu entregava minha alma e meu
coração pra você. Você não pretendia
me contar, não é?
— É claro que pretendia. —
Hades parecia perturbado, como se não
conseguisse organizar seus pensamentos.
— Eu só tinha medo de te perder. Eu
ainda tenho medo disso.
Suas sobrancelhas estavam
curvadas e seus olhos brilhavam com
lágrimas que pareciam querer descer.
Embora minha raiva e decepção
dominasse todo meu interior, eu sentia
seu arrependimento. Só não saberia
dizer se ele era sincero ou se era mais
uma de suas mentiras.
— Você escolheu ser egoísta!
Logo comigo…
Não continuei olhando para ele,
eu não conseguia. Comecei a percorrer o
apartamento, juntando minhas coisas que
estavam espalhadas por todos os
lugares.
Engasguei com o choro
reprimido na minha garganta e subi as
escadas correndo. Entrei no quarto e
depois no closet, arrancando as peças de
roupas que eu havia deixado lá.
Eu estava com mais raiva de
mim do que dele, no fim das contas.
Como eu pude ser tão tola?
— Amor… — Hades chamou,
parado na porta do quarto. Aquela
palavra me soou como a pior coisa que
existia.
— Nunca mais me chame
assim! — gritei, olhando para ele.
Então, percebi que não podia mais fazer
aquilo. Não podia mais ficar naquele
apartamento.
A ideia de que Hades havia
destruído uma das melhores coisas que
já tinham me acontecido tinha gosto de
veneno.
Passei por ele sob a soleira da
porta, rápida como um tornado, e
galguei os degraus tão
desesperadamente que me surpreendi
por não ter caído. Segurei minha bolsa
atulhada, cheia das coisas que eu havia
conseguido pegar, e afundei o dedo no
botão do elevador, pressionando-o
repetidamente.
— Raven, por favor, me escute!
— ele implorou atrás de mim.
Fechei os olhos, me recusando
a olhá-lo novamente. Respirei aliviada
quando soou o barulho anunciando a
chegada do elevador.
— Não venha atrás de mim —
pedi antes de entrar.
Então, uma última vez, me
permiti olhá-lo. Hades parecia
desolado. As lágrimas voltaram aos seus
olhos. Ele ofegava como se estivesse
sentindo dor física. Parecíamos o
reflexo da tristeza um do outro.
Engoli em seco quando as
portas de metal se fecharam, encerrando
tudo.
Eu vi você se reerguer de um
dia pro outro
E eu te flagrei me olhando
também, mas você não olhou duas
vezes
Agora eu gostaria que nunca
tivéssemos nos conhecido
Porque você é muito difícil de
esquecer
E eu sei que não, mas se eu te
perguntar se você me ama
Eu espero que você minta pra
mim
Lie to Me - 5 Seconds of
Summer

Forcei a ponta do lápis sobre a


tela, rabiscando os traços com
intensidade, beirando a fúria. Eu
costumava desenhar para extravasar e
isso realmente funcionava, mas não
agora, não naquele momento em
específico. Porque nada esvaziava
minha mente ou atenuava minha dor.
Queria que existisse um botão capaz de
desligar meus sentimentos ou para me
fazer esquecer Hades Wrath.
Depois de algum tempo
desenhando, percebi que havia
arruinado o rascunho da minha pintura.
Vi de soslaio quando outro aluno de
Artes, que estava pintando ao meu lado
no ateliê, esticou o pescoço para dar
uma olhadela curiosa no objeto no qual
eu descontava minha frustração.
Ele notou quando eu semicerrei
meus cílios em sua direção e,
rapidamente, virou o rosto, fingindo
olhar para o outro lado.
Suspirei, abaixando o lápis e o
deixando sobre o suporte de madeira do
cavalete.
Nada parecia ser o suficiente
para atenuar a bagunça que havia se
instalado na minha cabeça. Até mesmo a
música ambiente, que tocava baixinho na
sala, estava me irritando.
Me virei, olhando através das
janelas localizadas atrás de mim. Era um
dia bonito para o outono. O céu estava
azul e brilhante, sem nenhum sinal de
nuvens, e o leve ensolarado fizera com
que todos os jovens do campus
resolvessem sair para aproveitar o
tempo ao ar livre. Muitos deles
caminhavam pela praça central, mas,
como um imã, meus olhos se prenderam
instantaneamente em um deles, em
especial.
Lá em baixo, Hades usava uma
camiseta preta de mangas curtas. Estava
recostado contra seu Camaro, usando
óculos escuros e fumando
displicentemente. Estava bonito, como
sempre. Os cabelos pretos alinhados
para trás, a barba perfeitamente aparada,
as tatuagens incríveis que tornavam seu
corpo um livro de ilustrações.
Próximo dele estavam Alec e
Selina. Os três conversavam entre si e,
como era costume, atraíam a atenção e
curiosidade de todos que passavam por
perto.
Quando Hades levantou a
cabeça para expirar a fumaça, se deteve
por um instante e, mesmo sem ver seus
olhos por detrás dos óculos, eu sabia
que ele havia me encontrado através da
janela do segundo andar do prédio.
Não mantivemos contato visual
por muito tempo. Me virei, afastando
meu olhar do seu, praguejando
internamente por ter sido pega no flagra.
Embora eu estivesse, a
qualquer custo, tentando fingir que não
conhecia Hades e que nosso
relacionamento nunca existira, não
conseguia arrancá-lo do meu sistema.
Ele estava lá, presente em todos os
lugares, me provando que era
simplesmente impossível esquecê-lo.

Em algum momento, e eu não


saberia dizer quando, a raiva e a tristeza
do término foram substituídas por um
vazio. Eu estava oca por dentro. Sabia
que não seria sempre assim e que, em
algum momento, tudo voltaria ao normal.
Eu iria superar e seguir em frente. Mas,
na tentativa de fazer isso acontecer mais
rápido, me distanciei bruscamente do
Pandemônio, o que pareceu gerar o
efeito contrário e aumentar ainda mais o
buraco que surgira dentro de mim.
Tirei os olhos do livro em
minhas mãos quando meu celular
começou a vibrar no sofá ao meu lado.
Eu sabia quem estava ligando antes
mesmo de olhar para a tela.
Era Khalil, de novo.
Enquanto Hades me dera o
espaço que pedi, seu amigo estava
fazendo exatamente o oposto. Sabia que
ele estava preocupado e que queria se
certificar de que eu estava bem, mas não
conseguia conversar com ele.
Tanta coisa acontecera ao
mesmo tempo, rápido demais, e o
Pandemônio passara a me lembrar de
tudo o que eu perdi.
Suspirei, rejeitando a chamada,
e fechei o livro sobre cores e
composição.
— Era ele de novo? — Alina,
sentada na outra ponta do sofá de seu
apartamento, perguntou.
Nossa sessão de estudos estava
fracassando miseravelmente. Ninguém
conseguia se concentrar. Era como se o
tempo tivesse parado quando Fiona
morrera. Desde então, estávamos
vivendo numa realidade paralela onde
todas as cores desbotaram e viraram
cinza.
Nada mais fazia sentido.
— Sim — concordei, me
recostando contra o estofado macio da
mobília de cor creme, que era a cor
predominante de todos os móveis do
pequeno apartamento.
— Sei que está tentando se
afastar deles, mas, sendo sincera, já te
adianto que não vai funcionar. — Ela
prendeu os longos cabelos dourados e
cacheados num coque e encolheu suas
pernas, cruzando-as sobre o assento do
sofá. — Se aproximar de qualquer um
deles é uma sentença definitiva. Não tem
mais como cortar isso. E, mesmo se
ficarmos longe, ainda vamos nos
importar com eles. Se algo acontecer
com K, ainda vou sentir.
Mordi meu lábio inferior,
retribuindo o olhar triste dela. Sem
dúvidas ela sentia muita falta de Khalil.
Ela estava certa. Fiona estava
morta e, embora o resto do Pandemônio,
nossos amigos, me recordassem
constantemente do dia em que ela foi
encontrada sem vida, o corpo
abandonado sobre o balcão, me
distanciar deles não diminuiria minha
dor — ou o medo de que acontecesse de
novo. Connor, afinal, garantira que, se
eu não o ajudasse a derrubar o
Pandemônio, ele os mataria um a um. E,
se essa promessa se concretizasse de
fato, eu sofreria mesmo estando longe.
Talvez até mais.
Libby, que estava sentada na
poltrona, também deixou de lado seu
livro e entrou na conversa.
— Quer conversar, Raven?
Você não falou ainda sobre… Você sabe.
— Libby dizia as palavras
cautelosamente. — Você apenas se fecha
em sua dor, não deixa ninguém te
ajudar.
Respirei fundo, me
endireitando. Ela estava certa, eu não
costumava me abrir para as pessoas, não
conseguia. Talvez porque eu passara
grande parte da minha vida sem ter
realmente alguém para me ouvir.
— Não sei se há muito o que
dizer. Hades mentiu pra mim por tanto
tempo. Como eu posso confiar nele?
Como eu posso distinguir as mentiras
que ele contava do que era verdade?
Eu não conseguia passar muito
tempo refletindo sobre Hades ou nosso
relacionamento, porque eu poderia cair
no abismo das nossas memórias boas e
isso destruiria o que sobrara do meu
coração. Desde que saíra de seu
apartamento, há uma semana, estava
tentando manter minha mente ocupada
com o curso e sempre que ele invadia
meus pensamentos, eu o expulsava.
Me recusava a passar
novamente pela fase de lamentar meu
coração partido e chorar de madrugada,
da mesma maneira que fizera por
Stephen.
— Olha, eu não sei se
perdoaria isso também. Mas você não
deveria se afastar dos seus amigos por
algo que Hades fez — Libby prosseguiu.
Alli balançou a cabeça, concordando.
— Alec disse a George que está com
saudades suas.
Eu sentia saudades também. De
todos eles.
— Por que não vamos até lá
hoje à noite? — sugeriu Alina, e eu
sabia que ela também estava ansiando
ver Khalil novamente. — Precisamos
arejar a cabeça, de qualquer forma.
Mesmo incerta daquela
decisão, consenti. Eu não estava no
pique para festejar nem nada, mas elas
garantiram que seria apenas uma visita
amigável. Não era justo que eu me
afastasse dos meus amigos e não
estivesse lá para apoiá-los enquanto
enfrentavam o luto. Sabia que estava
sendo muito difícil para todo mundo,
não apenas para mim.

Entrar naquele bar novamente


foi estranho. Eu havia hesitado sobre o
meio-fio. Fiquei encarando por alguns
segundos o letreiro do bar, as letras
garrafais formando a palavra
PANDEMÔNIO acima do símbolo da
gangue, a caveira com coroa.
Tudo me fez lembrar do quanto
eu sentia falta — mesmo sendo só uma
semana.
O bar estava cheio, como era
de costume àquela hora da noite. Assim
que passei pela porta, a primeira coisa
que olhei foi o balcão. Dei um sorriso
fraco ao ver que era Alec quem estava
lá. Saber que eu nunca mais veria Fiona
ali, com seu olhar entediado, preparando
bebidas enquanto conversava comigo,
fez meus olhos arderem com a vontade
de voltar a chorar.
Alec abriu um enorme sorriso
assim que nos avistou. George, sentado
à sua frente num dos banquinhos, olhou
por sobre o ombro e sorriu também,
acenando para nós. Os dois estavam
inseparáveis desde o funeral. Era bom
que eles tivessem um ao outro.
Alina e Libby foram até lá
rapidamente, mas eu me detive perto da
porta, olhando ao redor, inspecionando.
Procurando.
— Ele não está aqui. — Uma
voz familiar soou próxima e eu me virei,
vendo Khalil se aproximar. — Está lá
em baixo, no cassino.
Engoli em seco e fiz cara de
desentendida, fingindo que não sabia do
que ele estava falando. Fingindo que eu
não procurava por Hades em todo lugar
que ia.
Khalil vestia a jaqueta da
gangue, que cobria a maior parte de suas
tatuagens. Todos eles pareciam
intimidadores para quem olhasse de
fora, mas era só o escudo que os
envolvia. Eu havia aprendido a enxergar
a parte suave de cada um deles.
— Me desculpe não ter
atendido suas ligações, é só que… está
sendo difícil.
Ele assentiu com a cabeça.
Sabia que ele compreenderia.
— Está tudo bem. Você
precisava de um tempo.
— Como você está? —
perguntei, me sentindo péssima por não
ter conversado com ele antes. O puxei
para um abraço forte, ao qual ele
rapidamente retribuiu.
Ele conhecia Fiona há mais
tempo do que eu, no fim das contas. Com
certeza não estava sendo nem um pouco
fácil aprender a viver sem ela.
— Dizem que fica melhor com
o tempo — Khalil deu de ombros, se
afastando para olhar em meus olhos. Ele
parecia abatido, pálido. Sua barba não
era feita há algum tempo. — E você?
Sorri fraco, sem saber o que
dizer.
— Passei a última semana
tentando organizar meus pensamentos.
— Conseguiu?
— Não muito. É como se eu
estivesse de luto duas vezes —
confessei, sentindo um nó na garganta.
— Eu não sabia no começo,
ninguém sabia. Mas depois ele me
contou. Acho que foi só pra mim. Sinto
muito não ter falado, mas é que…
— Lealdade, eu sei. Vocês
todos já tinham um juramento uns com os
outros antes de eu chegar.
Balancei a cabeça. Eu já
desconfiava que ele soubesse. Khalil era
um dos melhores amigos de Hades,
afinal. Me chateava saber que ele
escondeu aquilo de mim, mas era óbvio
que seria sempre leal a Hades. Talvez
até concordasse com ele.
— Mas você se tornou parte de
nós. Parte disso.
— Não vou fazer você escolher
um lado — eu disse, dando de ombros.
Até porque eu já sabia qual ele
escolheria.
— Eu já vi o que Frederik faz
quando quer alguma coisa. E ele
conseguiria as informações de você, de
um jeito ou de outro. Hades tentou te
proteger do jeito mais difícil. Ele
precisou fazer uma escolha.
Suspirei, cansada demais para
discutir sobre aquilo.
— Eu entendo o que Hades quis
fazer, mas ele mentiu mesmo assim.
Mentiu no começo porque eu não o
ajudaria se soubesse suas intenções, e
depois continuou mentindo porque quis
se proteger. Ele foi egoísta e
manipulador. Entendo que Hades é seu
amigo e eu admiro sua lealdade a ele,
mas o que ele fez…
Khalil balançou a cabeça,
parecendo desapontado por não ter
conseguido me convencer. Não havia
nada que pudesse mudar o que Hades
fez. Nada que atenuasse minha
decepção.
— Eu só odeio ver vocês dois
sofrendo.
Me perguntei se era tão óbvio
que os últimos dias me deixaram
esgotada, mas logo meus pensamentos
foram substituídos pela ideia de Hades
sofrendo. Queria poder me regozijar por
causá-lo dor. Queria odiá-lo, mas era
impossível. Hades Wrath tinha uma
parte do meu coração que eu jamais
conseguiria recuperar.
E me machucava saber que ele
estava mal.
Pigarreei.
— Vocês ainda precisam de
uma garçonete? — perguntei, mudando
de assunto. Khalil abriu um enorme
sorriso que me acalentou.
— Sempre vamos precisar de
você.
Minha querida voltou pra cá
Me disse que está deixando
essa cidade
Disse que precisa de um tempo
pra explorar
Disse que eu não posso mais
amá-la
Pensando nela
Ela vai embora o tempo todo
Baby Came Home - The
Neighbourhood
Eu odiava a mansão Wrath.
A enorme casa, que meu pai
fizera de palácio, era palco de todas as
minhas piores memórias — ou quase
todas. Mas eu precisava finalizar o que
havia iniciado. Colocar um ponto final.
Não queria precisar resolver
logo aquela situação, visto que minha
cabeça estava um turbilhão. Não houve
tempo para que eu sofresse o luto de
Fiona ou o término com Raven, porque,
se eu esperasse muito, Doakes poderia
acabar com o Pandemônio bem diante
dos meus olhos.
Além disso, eu não poderia
acabar com Connor enquanto o FBI
estivesse me vigiando de perto. E ele
estava. Doakes era um idiota se achava
que eu não perceberia seu utilitário
preto me seguindo o tempo todo. Estava
só esperando eu cometer um erro, dar
alguma brecha. Então estaria tudo
acabado.
Meus contatos ainda não
haviam descoberto nada que eu pudesse
usar contra ele. A única coisa que eu
poderia fazer, por enquanto, era seguir o
plano inicial e fazer Frederik ser pego.
Contudo, eu ainda não tinha a menor
ideia de como fazer isso.
No dia anterior, os membros do
Conselho das Consolidações Wrath
haviam decidido afastar meu pai do
comando da empresa. A notícia estava
em todos os jornais e tabloides. Todos
sabiam que aquilo iria acontecer mais
cedo ou mais tarde de qualquer modo.
Frederik estava andando na corda
bamba há tempos e isso fora a única
coisa que o impedira de se meter nos
meus negócios. Ele estava há semanas
muito ocupado tentando salvar seu
império.
A morte de McKinley,
entretanto, não lhe passara
despercebida. Ele me contatara e
ordenara que eu comparecesse em seu
escritório. E lá estava eu, andando por
entre os corredores sombrios daquela
casa, indo até Frederik.
Ao entrar em sua sala, me
deparei com um homem muito velho e
definhando. Sua pele macilenta parecia
ainda mais enrugada e seus olhos
estavam caídos. Eu não me compadecia
de seu sofrimento, entretanto.
Principalmente, porque nada nunca o
afetara tanto quanto a possibilidade de
perder seu dinheiro e poder. Nem
mesmo quando minha mãe morrera. E, se
dependesse de mim, Frederik poderia
queimar no inferno por toda a
eternidade.
— Você está péssimo —
observei, me jogando na poltrona
robusta perto de uma estante. Meu pai
levantou a cabeça de onde estava
sentado, atrás da grande mesa de mogno,
e estreitou seus olhos escuros para mim.
— Parece que você não é um
total fracasso afinal, filho — falou, de
repente. E aquela foi a primeira vez que
ele me direcionou um tom de orgulho.
Franzi o cenho, mas ele logo explicou:
— Joel McKinley está morto.
Balancei a cabeça, assentindo
lentamente.
A morte de Joel não parecia
como uma vitória para mim. Naquele
momento não havia um perdedor maior
do que eu.
— Não graças a você. Raven
fez isso, por motivos bem mais nobres.
— Nobreza… — Frederik
pronunciou aquela palavra bem devagar
antes de estalar a língua, como se fosse
um conceito ridículo. — Eu deixei você
usar a garota como quis. Isso não foi
nobre? Eu acho que foi. Além disso, eu
estava cuidado das nossas empresas, o
seu futuro. É para lidar com coisas
como Joel McKinley e Garrett Voich que
você serve. Mas não é para isso que eu
o chamei aqui. O dinheiro do
Pandemônio não está no cofre.
Respirei fundo.
— Não, pai, não está.
Não estava há um bom tempo.
Eu o retirara de lá há semanas, porque
sabia que seria o primeiro recurso ao
qual Frederik recorreria após perder seu
patrimônio. Era apenas questão de
tempo para que ele descobrisse que
havia sumido. Eu já estava me
preparando para sua fúria.
Ele se levantou, apoiando as
mãos sobre o tampo de madeira
enquanto me perfurava com seu olhar
severo.
— Cadê a porra do dinheiro,
Hades?!
— Você nunca luta suas
próprias batalhas. Sempre me usou pra
isso. Mas acabou agora, pai. O
Pandemônio não responde mais a você.
Eu gostava de como eu havia
transformado aquele grupo. Cada um de
nós tinha sua própria vida fodida, mas
eles não eram pessoas ruins. Nenhum
membro do Pandemônio era menos do
que honrado pra caralho. Não deveriam
ser apenas soldados, fantoches, do meu
pai.
— Hades — ele disse, de
maneira ameaçadora. — Você acha que
eu não tenho mais controle sobre você,
ficarei feliz em te provar o contrário.
— Você não pode — rebati,
confiante. — O FBI está de olho em
você, não está?
Strauss estava monitorando as
transações pessoais de Frederik tanto
quanto às das suas empresas. Só estava
esperando uma oportunidade para pegá-
lo.
Vi o pomo de Adão do meu pai
se mover conforme ele engolia em seco,
controlando sua raiva.
— Eles não vão conseguir
nada. — Apesar dos seus esforços, notei
como sua confiança era frágil. —
Aquele Conselho inútil acha que eu
estou destruindo a empresa que eu
mesmo construí. Bando de covardes.
Vou me livrar do FBI e depois de cada
um dos acionistas. Irei recuperar as
empresas e você deveria me ajudar com
isso!
— Não vou te ajudar com mais
nada. — Me pus de pé antes de colocar
as mãos nos bolsos da minha jaqueta de
couro. — A partir de agora está
sozinho.
Fiz menção de me virar e
deixar a sala, mas sua voz soou abalada
atrás de mim antes que eu pudesse sair.
Frederik estava fraco e prestes a perder
seu império. O desespero que ele
emanava era palpável.
— Você é mesmo uma
decepção no fim das contas — gritou,
tentando me atingir. Apenas rolei os
olhos antes de fitá-lo novamente. —
Igual a sua mãe e ao seu irmão, aquele
bastardo.
— Tudo o que você fez foi por
vingança — rebati, pensando em como
seus atos, sua busca por poder, haviam
nos levado até ali. — Começou essa
guerra, que tirou muito de todos nós, só
por causa do seu orgulho ferido.
Frederik balançou a cabeça.
— Minha esposa estava
dormindo com meu aliado. Um aliado
que todos sabiam que iria me trair mais
cedo ou mais tarde. Eu deveria ter feito
muito mais do que ir atrás de Astrid.
Deveria ter pegado o prêmio maior:
Raven.
Trinquei o maxilar. Aquele
mero pensamento me enchia de ódio,
deixando minha visão nublada em
vermelho, alimentando ainda mais meu
desejo em vê-lo sendo destruído pelo
FBI.
— Adeus, pai.
Enquanto caminhava para
longe, consegui ouvir um estrondo alto,
provavelmente ele estava arremessando
coisas pelo escritório. Era o que
costumava fazer quando estava com
raiva.
Sorri com os sons ao sair pela
enorme porta principal da mansão,
ignorando os guardas armados que me
monitoravam com atenção. Quando a
brisa fria me atingiu, senti como se
tivesse acabado de me libertar.
Antes que eu pudesse cruzar o
jardim até onde meu carro estava
estacionado, porém, ouvi um soluço
baixinho. Franzi o cenho, olhando ao
redor. A silhueta pequena e encolhida de
Astrid — ou Amanda — chamou minha
atenção.
Ela estava sentada em um
banco próximo a uma árvore no jardim.
Escondia o rosto com as mãos, seus
ombros tremiam com soluços. Saltou de
susto quando percebeu minha
aproximação, se apressando para secar
as lágrimas.
— Você está bem? —
perguntei, com o cenho franzido ao olhar
para aqueles olhos prateados, quase
translúcidos, exatamente iguais aos de
sua filha.
Lágrimas pretas de maquiagem
escorriam em suas bochechas, mas ela
não parecia se importar. Não fazia muito
tempo desde que ela se mudara para
aquela mansão, mas eu nunca trocara
mais do que pouquíssimas palavras com
ela. A ideia de alguém substituindo
minha mãe me atormentava.
— Está sim, querido, é só
que…
Ela não conseguiu terminar a
sentença, começou a chorar novamente.
Me sentei ao seu lado, sem saber ao
certo se queria confortá-la. Astrid não
era uma das minhas pessoas favoritas no
mundo. O que ela havia feito com sua
filha era imperdoável.
— O que Frederik fez? —
perguntei, com a voz fria. Astrid fungou
e ergueu o rosto para mim.
— Ele só está meio violento
nos últimos dias. Acho que é por causa
do estresse com as empresas.
Aquilo era típico do meu pai.
Ele havia apenas usado Astrid para se
vingar de Joel. Agora que McKinley
estava morto, era lógico que ele a
descartaria como se não fosse nada.
Esse era o tipo de homem que Frederik
Wrath era.
Eu tinha vergonha de ser seu
filho.
— Ele te bateu?
— Não, apenas gritou coisas
horríveis e atirou copos na parede.
Suspirei. Infelizmente, aquilo
não me surpreendia.
— Ele é um animal, você sabe
disso, não é? Não há nada bom ou gentil
naquele homem. E eu tenho quase
certeza de que não haverá casamento
nenhum. Você deveria ir embora, Astrid.
Ninguém merece essa vida.
— Eu não tenho para onde ir
— argumentou, com a voz embargada
pelo choro. — Raven me odeia.
Respirei fundo.
Parte de mim queria lhe
perguntar que tipo de mãe abandonava a
própria filha como ela fizera, mas me
contive. Não era do tipo que batia em
quem já estava no chão.
— Não, não odeia. Ela te
procurou por meses, mesmo após você
ir embora. Raven está magoada, mas
você pode se redimir.
— Como?
Hesitei por um instante, sem
saber o que dizer. Raven tinha um
coração imenso, mas eu mesmo não
sabia como conquistar seu perdão.
Astrid e eu estávamos no mesmo barco.
— Comece largando Frederik.
— Não acho que ele vai me
deixar ir. Ele anda sempre bêbado de
uísque.
Paralisei no lugar, observando
enquanto ela chorava mais. Suas mãos
tremiam. Dava para ver o quão
assustada ela estava.
— Tem que sair dessa casa,
Astrid. Te ajudarei a fugir e vou garantir
que ele não te machuque.
Ela balançou a cabeça
desesperadamente, como se apenas a
ideia fosse aterrorizante.
— Não. Não posso fazer isso
eu… eu tenho tanto medo dele — ela
sussurrou a última parte, confessando
baixinho.
Aquilo acabava comigo.
Frederik estava destruindo Astrid da
mesma maneira como destruíra minha
mãe, aos poucos. Até elas definharem e
não sobrar mais nada.
— O FBI vai prendê-lo, Astrid.
Estou trabalhando para isso em breve.
Talvez aquela fosse a única
maneira de impedir que algo mais grave
acontecesse com a mãe da Raven. Ela
tinha medo demais para tomar qualquer
atitude. Mesmo que fugisse, eu não
poderia ter a absoluta certeza de que
Frederik não mandaria seus guardas
atrás dela — ou que ele mesmo não
fosse.
— Ele está encobrindo os
rastros, é tudo sobre o que ele fala nas
últimas semanas. Me manda fazer um
monte de coisas, como se eu fosse sua
assistente — desabafou, ressentida.
Meu pai morreria lutando. Ele
não era como Joel, que abandonara tudo
para fugir ao menor sinal de
aproximação dos federais. Frederik iria
tentar dar a volta por cima, recuperar
seu poder e dinheiro. E eu temia que ele
conseguisse. Ele sempre teve tudo o que
quis, afinal. Por isso, Strauss estava
certa. Precisávamos agir logo. Ele
deveria ser pego o mais rápido
possível.
— Após beber ele ainda dorme
feito um defunto? — perguntei,
estreitando os olhos.
Aquela era uma lembrança forte
que eu tinha dele. Naquela época ele
bebia apenas em raras ocasiões, quando
algo dava muito errado. Então, dormia
por doze horas seguidas.
— Sim. Por quê?
— Você consegue entrar em seu
escritório quando ele estiver dormindo?
Poderia mexer em seu computador?
Astrid pensou por alguns
instantes, parecia um pouco confusa.
— Eu poderia, tenho suas
senhas, já que sou basicamente a
secretária. Mas por que eu faria isso?
— Para criar provas que
mandariam meu pai para uma prisão
federal pelo resto de sua vida.
Seus olhos brilharam com
esperança e ela se endireitou, o fantasma
de um sorriso pairando em seus lábios.
— Eu precisaria de instruções,
mas poderia fazer. Acha que isso faria
Raven me perdoar?
Provavelmente, as coisas
seriam muito mais complicadas que
aquilo. De qualquer forma, eu não era o
cara certo para ajudá-la na questão
Raven. Eu havia partido seu coração da
pior forma possível.
— Acho que pode ser um
começo.
Astrid balançou a cabeça,
limpando os resquícios de lágrimas de
seu rosto.
— O que eu tenho que fazer?
— Quando conseguir entrar no
escritório dele, me avise. Vou te
explicar tudo. — Ela confirmou,
empolgada. Eu esperava que envolvê-la
não fosse uma ideia terrível. — Astrid,
se você achar que há a menor
possibilidade de ser pega, não faça
nada. Não arrisque sua vida.
Ela maneou a cabeça e eu me
levantei. Precisava ligar para a agente
Strauss e lhe avisar dos novos planos.
— Hades? — ela chamou antes
que eu pudesse me afastar. Olhei em seu
rosto.
— Sim?
— Você não é como Joel ou
Frederik. Você é bom. Bom para a
Raven.
Não respondi, porque ela não
precisava saber naquele momento que eu
não havia sido nem um pouco bom para
sua filha.
Você me diz que eu perdi
E me diz que estou fora
Eu não vou brigar com você,
garota
Saiba que você está certa
E saiba que eu estou errado
Você diz que vai
Eu sei que você se foi
Eu sei que acabou
Porque eu perdi o jogo
Lost The Game - Two Feet
Suspirei, encarando a última
mensagem de Astrid em meu celular.
“Tudo Feito.”
Aquilo me tranquilizou mais do
que imaginei que iria. Após agradecê-la
e pedir que apagasse nossa conversa do
seu celular, me recostei contra a cadeira
do meu escritório no Pandemônio. Já era
meia-noite e havia passado a última
hora tenso enquanto guiava a mãe de
Raven através dos sistemas das
empresas do meu pai.
Forjar provas era ilegal e
poderia mandar Strauss e eu para a
cadeia bem antes de Frederik. Mas, para
isso, precisávamos ser descobertos — o
que eu, com toda certeza, não pretendia.
Doakes estava na minha cola, mas não
desconfiaria do que estava fazendo.
Afinal, as provas que estávamos
implantando teriam origem no próprio
computador de Frederik.
Só precisávamos de algo
pequeno para iluminar o caminho e levar
o FBI a todos os crimes que Frederik
tinha cometido.
Suspirei e me preparei para
voltar a trabalhar no Pandemônio. Eu
precisava revisar alguns contratos com
fornecedores e pensar em algo que
pudesse alavancar os negócios
novamente.
Tudo permanecera calmo —
quase parado — nos últimos dias.
Menos pessoas estavam frequentando o
cassino e eu sabia que isso tinha a ver
com a reputação dos Wrath, que fora
jogada na lama com a repercussão dos
últimos escândalos envolvendo nosso
sobrenome. Mas, com meu pai fora da
jogada, eu poderia fazer meu próprio
nome. Ansiava por isso. Não queria
mais viver à sombra de Frederik.
Ao desviar o olhar para a tela
do meu computador, onde estavam as
imagens em preto e branco das câmeras
de segurança do cassino, algo chamou
minha atenção. As câmeras mostravam
Raven.
Suspirei, fitando-a. Mesmo
trabalhando no mesmo bar, mal víamos
um ao outro. Eu sabia que ela estava me
evitando, e não a culpava por isso.
Quando passava por mim, nas raras
vezes em que nos trombávamos, ela
desviava o olhar, me ignorava
completamente.
Queria conversar com ela
quando tudo estivesse mais calmo, para
me desculpar de verdade. Embora não
fosse reverter nossa situação, poderia,
com sorte, fazê-la me odiar menos.
E mesmo a distância entre nós
não era o suficiente para aplacar a dor e
a saudade.
Muitas vezes, durante os
últimos dias, me peguei telefonando
para Fiona procurando seus conselhos.
A caixa postal se tornara o único lugar
onde eu ainda podia ouvir sua voz.
Desviei meus pensamentos de
Fiona ao sentir meu peito apertar e o
desejo por uísque crescer. Não podia
fugir para o álcool toda vez que alguma
coisa desmoronasse em minha vida, ou
eu terminaria igualzinho ao meu pai.
Foquei na imagem granulada da
câmera, pela da qual vi Raven
segurando uma bandeja de prata sob seu
braço. Ela estava de pé no centro do
salão, conversando com William Hawk,
um dos meus clientes mais antigos e
fiéis. Não parecia uma conversa
amigável, entretanto. Eu reconhecia a
postura em que ela estava naquele
momento. Ombros rijos, coluna reta,
queixo levantado. Se eu conhecia bem a
minha garota, sabia que aquele desfecho
estava prestes a ficar bem ruim.
Praguejei antes de me colocar
de pé e sair do escritório, andando
rápido pelo corredor em direção às
escadas. Assim que desci até o cassino,
percebi que a atenção de todos estava
em Raven e Hawk.
— Se você for homem, repita
isso — Raven desafiou, entredentes.
Eu sabia bem que ela não era
do tipo que engolia desaforos, mas, nos
últimos dias, seus ânimos estavam
bastante alterados. Raven parecia
duplamente explosiva.
— Você só está aqui porque
aquece a cama do patrão de noite —
Hawk rebateu. E um segundo mais tarde
ela estava lhe dando um soco no rosto.
Arregalei os olhos quando o
nariz dele, agora possivelmente
quebrado, espirrou sangue no vestido
branco de uma loira alta na mesa de
Blackjack. Ela gritou, levantando-se
num solavanco.
— Que porra — Hawk xingou,
tentando conter o estrago com sua mão.
— Era melhor não ter repetido
— Raven comentou, dando de ombros
enquanto se concentrava em recolher
copos vazios da mesa, como se nada
estivesse acontecendo.
— Você vai ficar apenas
parado aí, Wrath?! — Hawk perguntou,
exigindo uma atitude minha assim que
notou minha presença.
Dei um longo suspiro,
colocando as mãos nos bolsos.
— Não deveria ter repetido —
foi a única coisa que eu disse, o que
pareceu apenas deixá-lo ainda mais
furioso.
— Este lugar não é mais o
mesmo. O fodido Kamps estava certo.
Está decadente. — Ele estava indignado
quando cruzou o cassino, sendo seguido
por seus amigos. — Esqueça a cor do
meu dinheiro, Wrath. Você e seu pai não
são mais nada.
E eu tive que apenas observar
enquanto o cassino se esvaziava, com
todos os clientes saindo e levando
consigo seus investimentos no
Pandemônio. Trinquei o maxilar quando
o último se foi, então apenas chutei a
cadeira mais próxima, que voou até o
outro lado do salão.
Xinguei alto, passando as mãos
pelos cabelos.
— Não seja dramático, Wrath.
— Ouvi Raven dizer atrás de mim,
enquanto continuava seu trabalho
normalmente. — Não precisamos desses
imbecis.
A fitei, incrédulo.
— Sim, nós precisamos! —
contrariei. — Se o Pandemônio tem o
poder que tem é por causa do dinheiro
que esses imbecis gastam aqui e no
Círculo. Ela girou lentamente até
encontrar meu olhar.
— Você sempre se gaba de ser
o poderoso Hades Wrath, deus do
submundo. Por que não estala os dedos e
dá um jeito nisso? Mentiras e trapaças
não são as suas especialidades?
Bufei, sentindo meu sangue
esquentar. Eu não tinha ideia se ela
estava fazendo aquilo para me tirar do
sério ou se apenas não se importava com
seus atos.
— Você não tem ideia do que
faz. É uma criança inconsequente! —
explodi, dando um passo em sua
direção. — Sabe para onde esses
homens vão levar seu dinheiro? Direto
para Connor Kamps. Toda a influência
que eu ainda tenho sobre essa cidade vai
se dissolver nas mãos dele. E, então,
estaremos acabados. Eles vão nos caçar
e não vamos poder impedi-los. A única
coisa que mantém a polícia e o prefeito
do nosso lado é o interesse que a alta
sociedade tem sobre o Pandemônio.
Com o nome dos Wrath na lama, não há
muita coisa que esteja livrando nosso
pescoço. Não é só sobre seu orgulho,
Raven, aqui estamos lidando com vidas
de pessoas. As vidas dos seus amigos!
Ela piscou, ficando um
momento em silêncio para absorver as
minhas palavras. Respirei fundo,
passando os dedos sobre os fios negros
do meu cabelo antes de apoiar as mãos
sobre a mesa ao meu lado. Tirei um
momento para me acalmar e pensar.
Eu nunca iria contrariar um
membro do Pandemônio em público,
porque isso transmitia a ideia de que
éramos fracos, mas estávamos na corda
bamba. Com o FBI me rondando feito
um abutre e o império do meu pai no
chão, tudo o que eu ainda tinha para nos
manter no topo era minha reserva de
dinheiro e a influência de nossa gangue.
Agora, todos esses clientes frustrados
iriam avisar seus amigos ricos e
poderosos que era mais vantajoso
apoiar Connor.
— Ele me pediu uma dose da
"branquinha" e surtou quando eu disse
que não era permitido usar drogas aqui
dentro — explicou, com a voz
inesperadamente calma. Levantei a
cabeça para olhá-la. — Me diga que
você teria feito diferente se ele tivesse
te insultado. E tente não mentir dessa
vez.
Permaneci em silêncio, porque
eu sabia que teria.
— É diferente… — comecei,
mas ela me interrompeu, parecendo
realmente brava.
— Você é um maldito hipócrita,
Hades Wrath — acusou, apontando para
mim com o dedo indicador em riste. —
Diz que eu sou parte do Pandemônio,
mas, se fosse, deveria ensinar os
clientes a me respeitarem como fazem
com você. Você diz que somos iguais,
mas não acredita realmente nisso.
Ela estava certa.
Porra, Raven sempre estava
certa.
Suspirei, massageando minhas
têmporas. Se eu socasse Hawk, ganharia
o medo e o respeito dos outros clientes,
mas quando Raven fazia isso, eles
achavam que era sinal de descontrole.
Meu silêncio durou demais,
porque ela apenas balançou a cabeça,
como se estivesse decepcionada, e saiu,
indo em direção às escadas. Antes que
ela subisse o primeiro degrau,
entretanto, eu a impedi com o que eu
sabia que ela queria ouvir.
— Você tem razão. — Ela
parou e me encarou, surpresa pela minha
confissão.
— Eu sei que sim — falou,
simplesmente. — Mas, da próxima vez,
não se esqueça que fui eu quem correu
naquela disputa pelo seu território ou
que fui eu quem conseguiu levar você e
a polícia para o esconderijo dos
Daggers na capela, onde você recuperou
seu carregamento de drogas. Também
não se esqueça que eu tomei de volta seu
maldito bar das mãos de Connor e que
matei o seu maior inimigo. Se você
ainda tem um império a ser salvo, Hades
Wrath, deve isso a mim.
Ela segurou o corrimão de
madeira da escada enquanto me
encarava de volta. Seu olhar estava frio,
como da primeira vez em que nos vimos.
Todos seus sentimentos por mim haviam
sido substituídos por asco e desprezo e
a culpa era toda minha. E eu merecia seu
ódio tanto quanto merecia ouvir tudo de
pior que ela tinha a me dizer.
Porque Raven tinha razão eu
devia a ela.
Tentei dizer alguma coisa
quando ela fez menção de continuar a
subir as escadas, mas ela não me deixou
terminar.
— Raven, eu…
— Mais uma coisa — ela me
interrompeu. Seus olhos me cortavam
como lâminas afiadas. — Você também
me deve pela sua coroa, amor, porque
se eu quisesse tomá-la de você, acredite,
eu conseguiria.
Pisquei, atordoado pela sua
intensidade e fascinado pela sua força.
Ela era um tornado impiedoso.
Raven não ficou para ouvir o
que eu tinha a dizer. Se virou e subiu os
últimos degraus da escada.
O som do meu celular tocando
em meu bolso quebrou o momento de
transe. Dei um suspiro antes de atender à
chamada.
— Wrath? Aqui é o Slade.
Franzi o cenho.
Demorou um par de segundos
para me recordar quem diabos Slade
era.
— O fodido Dagger?
Por que caralhos ele estava me
ligando?
O cara fazia parte do clube de
motoqueiros de Garrett desde que era
um moleque. Então, quando se tornara
amigo do meu irmão, ajudara Voich a
transformá-lo em alguém que ele não
era: um delinquente drogado e violento.
— Sim, olha…
— Eu não tenho tempo para os
jogos de vocês, e não estou de bom
humor.
— É o Hive, ele… — Ele
hesitou, parecendo perturbado. — Seu
irmão…
Slade não conseguia dizer as
palavras, o que me deixou ainda mais
preocupado. Soube naquele instante que
era grave. Os Daggers me odiavam e, se
Slade estava me ligando para falar sobre
Nick, algo muito ruim tinha acontecido.
— Onde ele está? — perguntei,
fechando a mão em punho.
— No Círculo.
Em seguida, eu desliguei.
Não prestei atenção ao meu
redor quando corri escada acima,
cruzando todo o bar em direção à saída.
Tudo estava embaçado, como se eu não
pudesse enxergar nitidamente. Tudo no
que eu pensava era que eu o encontraria
morto, exatamente igual a Fiona. E eu
não conseguiria suportar.
Quando me sentei atrás do
volante do meu Camaro, estava
hiperventilando. Tudo girava ao meu
redor.
— Hades, o que... — Ouvi a
voz de Khalil se aproximando. Ele abriu
a porta do lado do motorista. — Cara,
você está tremendo. Sai daí, deixa que
eu dirijo.
Fui para o lado do passageiro
mecanicamente. Logo K ocupou meu
lugar e começou a se dirigir, ainda sem
saber para onde ir.
— É o Nick. Algo aconteceu,
ele está no Círculo — falei, olhando
para minhas mãos sobre meu colo.
Ele era meu irmão mais novo,
minha responsabilidade. Eu deveria
cuidar dele, essa fora a única coisa que
nossa mãe pedira antes de morrer.
Era minha culpa. De novo.
— Acalme-se, Hades. Você não
vai conseguir nada assim tão alterado.
Khalil estava certo, e fez o
melhor que pôde dirigindo com o dobro
da velocidade permitida nas ruas de
Carmine, furando cada sinal vermelho
que encontrou no caminho. Ainda assim,
pareceu levar horas até nos
aproximarmos do Círculo. No meio da
estrada de terra principal havia um carro
velho parado, sem portas ou para-brisa,
impedindo que nos aproximássemos
mais do trailer do meu irmão.
Amarrado nas ferragens havia
um corpo. Eu rapidamente saltei do
carro assim que o avistei.
Um nó cresceu em minha
garganta quando vi que era Garrett,
vestido apenas com uma calça surrada.
No pescoço, um corte ainda sangrento.
— Que porra aconteceu aqui?
— K perguntou, se aproximando.
Engoli em seco, desviando o
olhar para o trailer. Perto dele estava
Slade, agachado ao lado de Nick. Corri
até lá, sentindo meu estômago embrulhar
com a possibilidade de vê-lo morto,
abatido como gado por Connor Kamps.
Meu irmão também estava sem
camisa, caído contra a parede de metal
externa do trailer. Seu cachorro, Dodger,
estava deitado ao seu lado chorando
alto. Paralisei ao colocar meus olhos
sobre o rosto de Nick. Estava
desfigurado, irreconhecível, inchado e
cheio de hematomas. Havia muito
sangue em seu nariz e boca. Ele mal
parecia como um ser humano.
Em seu peito havia mais sangue
escorrendo de cortes finos e retos que
formavam a palavra traidor.
— Meu Deus — Khalil falou,
em choque, parado ao meu lado.
— O que vocês fizeram com
meu irmão? — perguntei, virando-me
para Slade e tentando controlar a fúria
que me tomou. Ele levantou o rosto para
mim, não parecia saber o que dizer.
Vendo tudo vermelho, o puxei pela gola
da jaqueta, jogando-o contra a lataria do
trailer num estrondo alto. Ele arregalou
os olhos e eu ordenei, entredentes: —
Comece a falar.
O rapaz parecia assustado e eu
sabia que não tinha a ver comigo. Slade
estava aterrorizado com o que
presenciara naquela noite.
— Vou chamar a emergência —
Khalil avisou atrás de mim. Permaneci
fuzilando Slade com meu olhar até ele
resolver contar.
— Foi o Connor. Ele reuniu
todos aqui e disse que os Daggers não
poderiam ter dois líderes. Então cortou
a garganta de Garrett bem na nossa
frente! Depois… depois ele falou que
havia um traidor entre nós que precisava
aprender uma lição. Ele bateu no Hive
até ele desmaiar, e quando acordou
voltou a socar e chutar a cara dele.
Quando decidiu que era o suficiente,
mandou todo mundo voltar pra nossa
base. Voltei aqui agora para vê-lo,
pensei que ele estava morto.
Trinquei o maxilar. Eu podia
imaginar Connor fazendo isso. Ele era
um maldito psicopata, no fim das contas.
Uma hora ou outra ele iria perceber que
os únicos homens que lhe restavam eram
os Daggers, e que ter a lealdade deles
dividida apenas o enfraquecia.
Soltei Slade com desgosto.
Ninguém — nem mesmo ele — movera
um dedo para ajudar Nick. Apenas
assistiram enquanto ele era espancado.
Me voltei para meu irmão,
abaixando-me ao seu lado. Hesitante,
coloquei dois dedos em seu pescoço,
pressionando levemente. Respirei
aliviado quando encontrei sua fraca
pulsação.
Ele ainda estava vivo.
Fechei os olhos por um
segundo, absorvendo. Em seguida, me
forcei a olhá-lo. Seu rosto era uma
massa sem forma. Hematomas verdes e
roxos cobriam seus olhos.
— Eu não pude fazer nada… Se
Connor descobrir que eu te avisei ele
vai me matar… — Slade tentava
argumentar, mas o som da sua voz só me
deixava mais irritado.
— Dê o fora daqui, covarde!
— ordenei, sem encará-lo. Ele
prontamente obedeceu.
Khalil se aproximou do outro
lado do corpo desacordado de Nick,
olhando-o com pura lamentação em seus
olhos.
— O que vamos fazer? —
questionou, perdido e aterrorizado.
O medo que eu sentira havia
desaparecido. Só restou o desejo
incandescente de vingança.
— Vamos retaliar.
Sua boca é um veneno, sua
boca é vinho
Suas mãos podem curar, suas
mãos podem ferir
Eu não tenho escolha, mas eu
continuarei escolhendo você
Eu não te amo, mas eu sempre
amarei
Poison & Wine - The Civil
Wars
Eu estava nervosa quando entrei
pela primeira vez na UTI onde Nick
Wrath repousava desde que fora
espancado. Já faziam quatro dias que ele
estava lá, mas só agora havia acordado.
Antes disso eu passei o maior tempo que
pude na sala de espera, com o resto do
pessoal, aguardando qualquer notícia.
Quando ele, finalmente, despertara,
pudemos visitá-lo. Hades fora primeiro
a ir e voltara de lá completamente
atordoado. Nem disse nada, apenas saiu
rápido do hospital. Eu fui a segunda a
entrar.
Todos estavam muito
preocupados. A coisa toda fora muito
feia. Na verdade, Nick quase não
sobrevivera. Havia uma lista bem
grande de lesões que ele sofrera,
incluindo várias costelas quebradas,
mandíbula deslocada, e um traumatismo
craniano que lhe rendera uma cirurgia de
nove horas.
Ele estava separado dos outros
pacientes, num quarto próprio, muito
bem equipado e confortável, graças às
exigências — e ao dinheiro — de
Hades. Havia um curativo ao redor da
sua cabeça, cortes suturados em seu
rosto, que estava inchado e cheio de
hematomas. Khalil disse que eles o
encontraram numa situação digna de
pesadelos, mas mesmo essa informação
não me preparou para o que encontrei.
A imagem de Nicholas Wrath, o
motoqueiro charmoso e mal-humorado,
parecia muito distante daquele homem
deitado ali. Apenas um de seus olhos
abria, e ele me fitou por entre suas
pálpebras. Seu rosto não tinha nenhuma
expressão, o que me lembrou das
palavras do médico após a cirurgia.
“Nick pode não ser ele mesmo
quando acordar.”
Em seguida, ele dissera todas
as sequelas possíveis para alguém que
sofria um traumatismo craniano grave
como o de Hive, o que assustara a todos
nós, principalmente Hades.
— Ei — falei assim que me
aproximei de seu leito, vendo sua íris
escuras acompanharem meus
movimentos. — Como você está?
Andei com cautela pra perto
dele, tentando não me deixar intimidar
por todas aquelas máquinas ao redor. O
médico também dissera, na verdade, que
era um milagre Nick não ter
permanecido em coma por mais tempo.
Estavam monitorando-o de perto e todos
temiam uma piora repentina da qual ele
não se recuperaria.
Eu sequer conseguia imaginar
aquela hipótese. Era terrível demais.
— Me sinto como merda —
Nick sussurrou, com a voz arrastada e
rouca, como se estivesse fazendo muito
esforço para falar.
Não pude evitar sorrir com sua
resposta. Ainda soava como o velho
Nick.
— Você parece com merda —
retruquei, e a sombra fraca de um
sorriso surgiu no canto de seus lábios.
Chegamos tão perto de perdê-lo
e isso me destruía. Aquela possibilidade
fez meus olhos se encherem de lágrimas.
Apesar de tudo, eu me importava com
Nick. Eu acreditava que ele merecia
uma nova chance, uma nova vida.
Nicholas me ajudara e estivera comigo
na minha caçada a Joel, afinal.
— Vamos lá, você não vai
realmente começar a chorar, vai,
Clarke?
Mordi o lábio inferior com
força, me contendo. Ele não precisava
daquilo.
Respirei fundo, engolindo em
seco.
— Você enganou a morte,
Nicholas Wrath. Tem noção disso?
— Acho que o diabo não quer
lidar comigo ainda, eu seria uma dor em
sua bunda.
Sorri, colocando a mão
levemente sobre seu ombro. Abaixando
o olhar pude ver parte dos curativos sob
a gola da camisola hospitalar. K também
tinha contado o que fora inscrito no
peito de Nick. Uma palavra que ele
carregaria eternamente aquela marca no
corpo, lembrando-lhe do pior momento
de sua vida. E provavelmente ele nem
sabia disso ainda.
— Escute, Raven — ele
começou a dizer, mas foi interrompido
pela tosse chiada que surgiu através de
sua garganta. Franzi a testa em
preocupação, mas logo ele se recuperou.
— Meu irmão vai morrer em busca de
vingança se você não o impedir.
Suspirei.
Hades mal ficara no hospital
durante os últimos dias. Ele estava
louco, beirando o descontrole. Estava
atrás de Connor Kamps, vasculhando
cada canto da cidade em busca dele. Em
busca de retaliação. Nada poderia pará-
lo agora, nem mesmo eu.
Principalmente eu.
— Não se preocupe com isso.
Você tem que descansar para melhorar.
Foi o que o médico dissera
enfaticamente. Nick não deveria sofrer
nenhum tipo de estresse, pelo menos
nesses primeiros dias após a cirurgia,
mas vê-lo nessa situação afetara muito
Hades. E Nick percebeu isso, é claro.
Estava estampado no rosto de seu
irmão.
— Hades é um idiota. Precisa
de alguém para mantê-lo na linha. Fique
de olho nele, Raven, por favor.
Balancei a cabeça, assentindo
com seu pedido. Eu não poderia negar
nada a ele naquele momento.
— Eu prometo que irei.
Não pude ficar muito mais
tempo com ele na UTI, pois o horário de
visitas era bem curto e ainda havia muita
gente que queria vê-lo. Todo o
Pandemônio estava lá para provar que
se importavam com ele, mesmo depois
de tudo.
Saí do hospital pronta para ir
atrás de Hades. Se eu o conhecia bem,
ele não pediria ajuda para o que quer
que estivesse tramando —
principalmente, se apresentasse risco de
vida. Ele não sabia, mas sua cabeça era
tudo o que Connor queria, o que o
colocava em perigo.
Quando cheguei no
estacionamento do hospital, me
surpreendi ao ver Hades ainda lá. Ele
estava parado ao lado de seu carro, as
mãos apoiadas sobre o teto do Camaro e
a cabeça baixa. Me aproximei devagar,
sem saber ao certo como deveria agir
perto dele. Wrath usava um moletom
preto e calças da mesma cor, seus
cabelos estavam cobertos por um gorro.
O clima estava mudando, com a
temperatura caindo e o ar mais seco
cada vez que nos aproximávamos mais
do fim de novembro. O ar gélido do
exterior me atingiu em cheio e eu
coloquei as mãos nos bolsos da minha
calça.
— O que está fazendo parado
aí? — perguntei, quebrando o silêncio
de uma vez. Hades esperou um segundo
para levantar a cabeça e me olhar.
Ele estava ainda mais pálido e
olheiras arroxeadas emolduravam seus
olhos. Ele também não se barbeava há
alguns dias, porque uma sombra escura
havia surgido em seu maxilar. Hades
estava péssimo. Parecia cansado e
triste.
— Só pensando — respondeu,
antes de se virar, apoiando as costas
contra o carro, e acender um cigarro.
Ele me ofereceu um, mas eu neguei.
— Acho que Nick vai ficar bem
— prossegui, alguns minutos depois.
Hades tragou a droga em seus lábios
lentamente. — Quanto a você, não tenho
tanta certeza
O canto da sua boca se repuxou
em um sorriso. Ele tombou a cabeça
levemente para trás antes de soprar a
fumaça no ar.
— Você se importa? —
perguntou, voltando a olhar para mim.
Troquei o peso de perna e me
endireitei.
Me sentia desconfortável sob
seu escrutínio. Havia algo familiar, mas,
ainda assim, desconhecido nele naquele
momento. Isso me machucava. A ideia
de que eu havia perdido a amizade entre
nós também.
— É claro que eu me importo,
Hades. Não seja um babaca.
— Acho que é inevitável para
mim. — Deu de ombros, dando um
sorriso que não chegou aos seus olhos.
Bufei.
— Não faça isso, por favor.
Hades balançou a cabeça,
desviando o olhar e colocando o cigarro
na boca novamente.
— O que você quer que eu
diga, afinal?
— Que não vai fazer nenhuma
estupidez. Que não vai ir atrás de
Connor sozinho, sabendo que isso pode
matá-lo. Talvez desejando que isso o
mate.
Engoli em seco, fitando-o
apreensiva. Hades estava sendo
corroído pela culpa do que acontecera
com Fiona e Nick. Eu sabia na pele
como isso era, sabia que aquilo poderia
destruí-lo. Wrath costumava ser racional
e controlado antes. O homem na minha
frente parecia apenas uma memória
distante, um fragmento, do Hades que eu
conhecia.
— Sinto decepcioná-la de
novo, amor, mas isso é exatamente o que
eu planejo fazer.
Trinquei o maxilar, ficando
irritada. Dei um passo na sua direção.
— Ótimo, você é idiota o
suficiente para fazer exatamente o que
Connor quer. Ele vai te matar, Hades.
Ele me disse que iria. No funeral,
Kamps pediu para eu te entregar a ele.
Falou que iria machucar nossos amigos
se eu não o fizesse. Foi por isso que me
contou sobre sua ligação com Joel,
estava tentando me virar contra você.
Hades virou o rosto para mim.
Sua testa estava franzida enquanto me
fitava por bastante tempo. Ele tirou o
cigarro dos lábios antes de perguntar:
— Por que você não fez?
— Não fiz o quê?
Ele desencostou do carro e
veio até mim. Parou a poucos
centímetros de distância, perto o
bastante para que seu perfume me
inebriasse. O pescoço estava curvado
enquanto ele olhava para baixo, para
mim. Seus olhos eram dois buracos
negros me encarando intensamente.
— Por que não me entregou a
ele?
Franzi o cenho.
Ele estava mesmo me
perguntando aquilo?
Ri nasalado, incrédula.
Hades me olhava sério,
entretanto, e isso me fez respirar fundo.
— Você pode ser um idiota
manipulador que estragou tudo entre nós,
mas isso não muda o fato de que você
não é o vilão aqui. Connor fez coisas
horríveis. Matou e torturou pessoas.
Destruiu centenas de vidas. Não há
comparação.
Eu não podia acreditar,
realmente, que ele achava que eu seria
capaz de traí-lo. Embora as coisas não
tivessem dado certo entre nós, eu
acreditava no bom coração de Hades.
Ele fizera muito por Fiona, por Maria,
por mim. Merecia a lealdade que todos
do Pandemônio depositavam sobre ele.
— Eu quero te dar algo —
falou, mudando de assunto. Ele abriu a
porta de trás de seu carro, tirando de lá
uma jaqueta de couro. Ela tinha o
símbolo do Pandemônio nas costas. A
grande caveira coroada. Hades a
estendeu para mim. — Já era hora de
você ter uma dessas. Eu ia te dar antes,
quando voltou de La Cuesta, mas aí a
Fiona… — Ele não terminou a frase,
apenas suspirou. — E depois tudo foi
pro inferno.
Mordi o lábio inferior,
hesitante ao apanhar a jaqueta. Ao fazê-
lo, meus dedos tocaram os de Hades e
eu senti uma pequena descarga elétrica
ser transmitida através de sua pele
gelada. Engoli em seco e me apressei a
me afastar. Pigarreei e vesti a peça
sobre a blusa preta de mangas
compridas que usava. Sorri, voltando a
fitar Hades.
— Obrigada por isso, significa
muito para mim.
Ele assentiu uma vez e depois
voltou a franzir o cenho. Passou o
polegar sobre o lábio inferior,
pensativo, e se aproximou mais.
— Raven, escute, eu nunca te
pedi desculpas pelo o que eu fiz. —
Levantei as sobrancelhas surpresa.
Então, ele deu outro passo e eu prendi a
respiração. — Sei que não muda nada,
mas deveria saber que eu me odeio por
ter feito isso com você.
Umedeci os lábios com a língua
e me endireitei.
— Tem razão, isso não muda
nada.
Não mudava os sentimentos que
eu tinha por ele, mas também não
amenizava sua mentira. Todas as
pessoas que eu já amara mentiram para
mim. Minha mãe, Stephen, Hades. Eu
não podia continuar com esse ciclo,
aceitando esse tipo de coisa de todo
mundo. Se ele era capaz de mentir uma
vez, poderia fazer de novo. E eu nunca
saberia. Sempre ficaria com essa dúvida
me perseguindo.
— Você fodeu com tudo —
sussurrei.
— Eu sei, amor.
Hades assentiu e, logo em
seguida, acabou quase que
completamente o espaço entre nós. Ele
estendeu as mãos e tocou meus braços,
quase fechei os olhos com isso. Seus
dedos subiram, passaram por meus
ombros até alcançarem meu pescoço.
Deveria ter me afastado naquele
momento, mas eu estava com saudades
da proximidade. Sentia falta do seu
olhar intenso, do perfume masculino
sexy impregnado na sua pele, do som da
sua voz ao pé do meu ouvido...
Odiava como meu corpo
respondia a ele. Hades poderia estalar
os dedos e eu me acenderia feito uma
árvore de natal.
— Você é um filho da puta,
Hades Wrath — soprei, sentindo minhas
pernas perderem a força.
— Eu sei disso também.
Ele abaixou a cabeça,
aproximando-se até colar nossas testas.
Eu sentia sua respiração quente e
sôfrega em meu rosto. Fechei os olhos e
mordi meu lábio inferior com força,
colocando minha mão sobre seu peito.
— Eu te odeio — falei,
fazendo-o rir baixinho. Será que minha
mentira era tão óbvia assim?
Hades subiu uma mão até o meu
rosto e deslizou seu polegar sobre minha
bochecha, me fazendo quase ronronar.
Deus, eu era tão patética.
Estava sob seu controle, de novo.
— Porra, você é tão bonita —
disse ele ao aproximar sua boca
lentamente da minha.
O empurrei. Forte o bastante
para ele cambalear para trás. Seu rosto
estava atordoado, um pouco assustado, e
eu não estava diferente. Respirava
ofegante, piscando em choque. Bati os
dedos contra minha boca, mal
acreditando no que quase aconteceu.
— Estou interrompendo algo?
— O aparecimento repentino do agente
Doakes me fez xingar alto de susto,
girando para fitá-lo.
Havia um sorriso de escárnio
em seu rosto. Provavelmente, ele estava
nos observando há algum tempo, e não
notamos porque estávamos
completamente absortos um no outro.
— O que está fazendo aqui? —
Hades perguntou, com a voz dura.
Parecia já ter se recuperado do nosso
momento. Seu rosto voltou a ser puro
gelo.
Doakes colocou as mãos nos
bolsos do blazer de maneira casual e se
aproximou. Trinquei o maxilar. Ele não
estava olhando para mim, mas para
Hades. Seu problema era com ele, isso
já havia ficado claro.
— Nicholas Wrath foi
brutalmente espancado e Garrett Voich,
assassinado. Ambos encontrados no
lugar conhecido como Círculo, onde me
disseram que você costuma dar suas
festinhas. Ouvi dizer que sua gangue e a
de Voich estão em guerra. E também que
você odeia seu irmão.
Hades deu um passo à frente,
passando por mim.
— O que você está insinuando
exatamente, Doakes?
O agente deu de ombros.
— Nada, apenas fazendo meu
trabalho. Você sabe que seu pai está
encrencado com o FBI, não é?
— O que eu tenho a ver com
isso?
Doakes riu.
— Bem, dizem que filho de
peixe…
— Já chega — interrompi,
levantando a mão. — Pare de joguinhos,
Doakes.
Ele respirou fundo e endireitou
a coluna, cruzando as mãos em frente do
corpo. Estreitou os olhos para mim por
um instante antes de voltar a fitar
Hades.
— Soube que Nicholas
finalmente acordou e estou aqui para
falar com ele — explicou, com um
pouco mais de seriedade. — E você,
Wrath, é o próximo.
Eu não sabia o que Doakes
pretendia, mas tinha certeza de que ele
não estava em busca da verdade. Seus
objetivos pareciam muito claros e não
se aproximavam nem um pouco do
trabalho de um agente do FBI decente.
— Eu já disse tudo o que sei ao
xerife — rebateu Hades, de maneira
ríspida.
Doakes gargalhou.
— Ah, claro. Ao seu amigo
xerife. — Ele balançou a cabeça antes
de fechar o semblante. — Eu mesmo
quero te interrogar. E se você se recusar,
irei te prender por interferir na
investigação.
— Isso é um erro, agente. —
Hades apontou um dedo na direção dele.
— Você deveria estar atrás de Connor
Kamps agora.
— Da mesma maneira que você
esteve? Estou te observando, Wrath.
Você passou os últimos dois dias
varrendo a cidade em busca de Kamps.
Pretende fazer com ele a mesma coisa
que fez com Voich?
Estreitei meu olhar, juntando as
peças do quebra-cabeças. Connor era
um criminoso conhecido. Um traficante
de alto nível e era diretamente ligado à
Joel McKinley, a quem o FBI caçara.
Mesmo assim, eles estavam ignorando a
existência — e todos os crimes
horríveis — de Kamps. Me lembrei da
confiança de Connor de que não seria
pego pelo FBI como seu chefe. Só havia
um motivo pra isso.
— Você trabalha para ele? —
perguntei, atraindo sua atenção para
mim. Doakes arregalou os olhos, mas
não negou. Tudo fazia sentido agora. —
Trabalha, não é?
Ele trincou o maxilar, curvando
as sobrancelhas com raiva. Parecia
prestes a rosnar e atacar. Apenas ficou
imóvel por alguns segundos, porém.
Então limpou a garganta, se virou para
Hades, e falou:
— Espere aqui enquanto falo
com seu irmão.
Sem esperar por uma
confirmação, Doakes se virou e andou
para longe o mais rápido que pôde.
— Desgraçado — xingou
Hades.
— Como vamos acabar com
Kamps se ele tem o FBI do seu lado? —
perguntei, cruzando os braços em
preocupação.
— Doakes não pode fazer o que
quiser para proteger Connor. Há limites
que ele não vai ultrapassar. Se a polícia
de Carmine pegar Kamps com todas as
provas materiais de seus crimes, não
haverá nada que Doakes poderá fazer. O
FBI não é todo corrupto.
— Se vamos fazer isso, deve
ser planejado. Nada de sair sozinho à
caça, entendeu, Hades? Precisamos agir
juntos nessa.
Ele suspirou pesado, franzindo
o cenho. Não parecia muito convencido,
mas no fundo ele sabia que era a única
maneira disso dar certo. Todas as
chances estavam contra nós. Não
poderíamos ser tolos e impulsivos.
— Combinado.

Mordi o lábio inferior, olhando


para a tela do computador do escritório
no Pandemônio. No fórum secreto da
Universidade de Carmine, todos só
falavam da grande festa da fraternidade
Gama Zeta Phi que ocorreria na próxima
sexta-feira. Seria a comemoração da
grande vitória do time de futebol local,
os Red Hawks, e ocorreria no penhasco
de Creek Hollow, fora da cidade. E eu
tinha uma boa ideia sobre o motivo que
os levou a escolher um lugar tão
distante.
Eles passaram o último mês
apenas organizando aquela festa, para
que tudo saísse conforme o planejado.
Eu poderia apostar meu pescoço que
eles pretendiam ter muita droga em
circulação naquela noite. E, levando em
consideração que não haviam contatado
o Pandemônio para isso, então eles
planejavam conseguir em outro lugar.
Com os Daggers.
— Acha que isso é a vingança
pelo o que aconteceu com o ex-
namorado da Alina? — George
perguntou, sentado no sofá do outro lado
do escritório. Alec estava ao seu lado,
com um braço ao redor do pescoço dele.
— Ele era o capitão do time e agora está
atrás das grades.
Dei de ombros, me reclinando
contra a poltrona de couro.
— Pode ser. Além disso, o foco
do Pandemônio nunca foi abastecer
festas de fraternidade, não é? — Olhei
para Alec, buscando confirmação, e ele
assentiu com a cabeça.
— Hades diz que esses
universitários só dão problema. Não
precisamos disso, organizamos nossos
próprios eventos no Círculo.
Era uma maneira de ver as
coisas.
— Duvido que essa festa no
penhasco vai ter apenas universitários
— George contradisse, voltando-se para
mim. — Se Connor está envolvido
nisso, ele quer lucrar e criar uma
reputação para poder se estabelecer
nesse negócio aqui na região.
Balancei a cabeça, pensando.
Com certeza, Kamps precisava daquilo.
Sua influência na cidade estava
crescendo ainda, e ele precisava que
Hades caísse para poder se consolidar
completamente. Com o dinheiro e apoio
que ganharia com essa festa, ele poderia
conquistar isso facilmente e sem a minha
ajuda — que estava tentando atrair há
semanas.
— Tem razão — concordei,
após um suspiro. — Essa festa vai virar
o jogo para os Daggers.
— Não se a gente puder
impedir esses fodidos — Alec disse,
com um entusiasmo que me fez sorrir.
Então, a porta do escritório se
abriu e Hades entrou, acompanhado de
Wade, que tinha uma enorme carranca no
rosto. Wrath não parecia tranquilo,
tampouco. Seu rosto estava
transparecendo ainda mais cansaço. Ele
não vestia mais o moletom, contudo.
Agora as tatuagens de seus braços
estavam à mostra em sua camiseta
preta.
— Como foi a conversa com o
agente Doakes? — perguntei, cruzando
as mãos sobre a mesa de escritório na
qual eu estava.
Hades bufou antes de se jogar
na primeira poltrona que encontrou,
esticando as pernas. Wade ficou parado
perto da porta.
— Uma merda — respondeu,
sem otimismo. — Ele está dando a
corda esperando que eu me enforque
sozinho. Falou sobre meu pai, sobre
Garrett Voich, sobre você…
Fiz uma careta.
Parte de mim queria lhe
perguntar como fora a conversa que eles
tiveram a meu respeito, mas talvez fosse
melhor não saber.
— Ele está tentando tirar o
xerife Callow do jogo — Wade
continuou. — O prefeito se recusou.
Doakes não tem jurisdição para isso.
— Bastardo miserável —
xingou Alec, fazendo George revirar os
olhos.
Hades deu uma risada nasalada,
colocando as mãos atrás da cabeça e
voltando a me fitar.
— Conversei com a agente
Strauss. Ela disse que o FBI bloqueou
todos os bens das empresas Wrath,
apesar do meu pai não ser mais o CEO.
Estão fazendo uma investigação do
caralho. Não vai ser só Frederik que vai
cair. Ele não era o único que cometia
crimes através das empresas.
— Isso é ótimo — eu disse,
erguendo as sobrancelhas. Ainda assim
Hades não parecia animado.
— Strauss está saindo do caso
e Doakes vai tomar a liderança. A
agente Abigail prometeu que deixaria o
Pandemônio em paz, mas o desgraçado
do chefe dela não vai fazer isso. Assim
que ele descobrir provas sobre o que
fazemos aqui, estaremos fodidos.
Xinguei baixinho, passando as
mãos sobre o rosto.
— Mas ele é um corrupto, não
é? — George entrou na conversa. — É
óbvio que Doakes está do lado do
Connor.
— Eu mencionei isso para a
Strauss. Ela disse que é possível.
Existem boatos no FBI a respeito disso.
Dizem que, em todos os casos que
Doakes pega, ele tem algum interesse
pessoal por trás. A especialidade dele
são crimes do colarinho branco.
Estalei a língua, é claro.
— Casos envolvendo pessoas
ricas que podem molhar a mão dele —
completei e Hades anuiu com a cabeça.
— Talvez ele estivesse trabalhando para
Connor há anos. Talvez Doakes tenha
sido a única coisa que manteve a máfia
do Texas longe do interesse do FBI por
tanto tempo.
— E se isso for uma distração?
— George quebrou o silêncio, atraindo
nossa atenção para ele. Levantei uma
sobrancelha, confusa. Ele estava
olhando para seu primo. — Doakes não
sai do seu pé desde que chegou na
cidade e, enquanto estamos focados
nisso, os Daggers estão agindo para
tomar a cidade.
— Tem razão — falei. —
Doakes não pode te prender, Hades,
porque Connor não quer isso. Ele quer
sua cabeça, e está trabalhando para isso
enquanto estamos prestando atenção no
FBI.
Hades passou a mão sobre a o
maxilar coberto pela barba rala,
pensando sobre isso.
— E o que faremos agora? —
Alec perguntou, preocupado.
Passei a língua sobre o lábio
inferior antes de sorrir.
— Agora temos uma festa para
estragar.
Eu os arrebanho como gado
Porque estou rodeada de
covardes
E eu não dou a mínima quando
entro na batalha
E é por isso que eu tenho todo
o poder
Posso sentir seu medo, a única
razão para eu estar aqui
É para causar estrago
Wreak Havoc - Skylar Grey
Desviei de seu soco, passando
por ela até o outro lado do ringue.
Selina parecia furiosa diante de mim,
tentando me atingir a qualquer custo. Eu
era rápida, porém. Aquela era a minha
vantagem, enquanto a ruiva era mais alta
e forte. Minhas mãos estavam cobertas
por uma bandagem preta e eu usava top
e shorts esportivos, que facilitavam
meus movimentos.
Eu treinava na Electric com
Zora sempre que tinha um tempo livre,
normalmente aos fins de semana. Era
bom perceber todo o meu progresso.
Músculos firmes se desenvolveram em
meus braços e coxas, que antes eram tão
finos quanto palitos. Ainda estava longe
de ser tão boa quando minha treinadora,
mas, comparando com meu desempenho
nas primeiras aulas, eu havia avançado
bastante.
Naquela tarde de sexta, Zora
insistira para que eu tentasse lutar com
alguém que não fosse ela. Então, chamou
Selina, o que, com certeza, não teria
sido minha primeira opção. Eu nem
sabia que a filha do xerife era tão boa
lutando. Sem dúvidas ela tinha muita
prática. Demonstrava uma postura mais
ofensiva, sempre partindo para o ataque.
Talvez ela estivesse apenas sedenta para
me atingir e derrubar. A instrutora
certamente notou isso.
Selina tentou me encurralar
contra as cordas que contornavam o
ringue, acertando um soco forte em meu
abdome. Gemi baixinho. Eu não poderia
ficar naquela posição. Zora sempre dizia
que os cantos do ringue deveriam ser
evitados. Aquela regra também se
aplicava numa situação fática. Se você
se deixasse cercar, então estaria
ferrado.
Dei uma rasteira nela antes que
Selina pudesse tentar me atingir. Passei
meu pé por trás de seu tornozelo, a
desequilibrando, o que a irritou ainda
mais. Ela correu ofensivamente até mim,
mas desviei a tempo e afundei meu
punho na lateral de seu corpo. Ela
esticou o braço para tentar revidar, mas
me abaixei e chutei suas costelas.
— Não façam disso algo
pessoal — ralhou Zora, do lado de fora
do ringue. — Pensem racionalmente.
Aquilo se tornara pessoal assim
que Selina entrara naquele galpão. Ela
não gostava de mim e não se
incomodava em disfarçar isso. Para ela,
eu apresentava uma ameaça a seu melhor
amigo e ao resto do Pandemônio.
Selina ignorou completamente
os conselhos de Zora. Voou sobre mim
com um rosnado gutural, empurrando-me
para o chão. Ela me prendeu sob seu
corpo, acertando um soco em meu rosto.
Não deixei isso se repetir. Voltei a
atingi-la sobre as costelas, até seus
braços se afrouxarem e eu poder tirá-la
de cima de mim. Consegui inverter
nossas posições, virando-a de bruços e
prendendo seu braço atrás das costas,
enquanto a pressionava contra o chão do
ringue.
— Sei que está brava, mas eu
não quebrei o coração do seu amigo. Ele
quebrou o meu — falei baixinho,
aproximando meu rosto do seu ouvido.
Selina se debateu sob mim, tentando se
desvencilhar. Puxei seu braço,
apertando-o mais contra suas costas e
ela gemeu de dor. Eu poderia facilmente
quebrá-lo daquela maneira. — Hades
não é uma criança inocente, mas eu sei
que é uma boa pessoa. Todos vocês são.
E eu gosto do que fazemos, sou boa
nisso. Então é melhor você se acostumar
com a minha presença, porque eu não
vou embora.
A soltei bruscamente, me
levantando.
Estava suada e ofegante, com
alguns fios de cabelo escapando do rabo
de cavalo alto em minha cabeça. Minha
mandíbula doía, mas era suportável.
Observei minha oponente se virar,
segurando o próprio braço contra o
peito enquanto se recuperava. Dei um
passo em sua direção e estendi uma mão
para ajudá-la a levantar. Ela me olhou
com seus olhos verdes e desconfiados,
hesitando por um instante, mas aceitou.
Após estar de pé, me olhou e deu um
pequeno — quase imperceptível —
sorriso.
Talvez eu tivesse ganhado seu
respeito naquela luta.
Saltei do ringue e fui direto até
a minha garrafa de água. Selina fez a
mesma coisa, sentando-se no banco
próximo à parede.
— Vocês duas são impossíveis.
Essa foi uma péssima ideia — Zora
reclamou, de braços cruzados.
— Eu acho que deveríamos
lutar com mais frequência — Selina
falou, com um brilho divertido nos
olhos. Provavelmente, um de seus
motivos para isso seria irritar Zora.
— Ótima ideia — concordei. A
treinadora rolou os olhos.
— Vocês vão acabar me
deixando careca — ela bufou, nos
fazendo rir alto. Não havia um só fio de
cabelo na cabeça de Zora, era
completamente raspada.
Coloquei o resto das minhas
coisas na mochila e me despedi de Zora,
fazendo meu caminho para a saída ao
lado de Selina. Já eram cinco e meia da
tarde, em breve eu precisaria começar a
me arrumar para a festa. Nosso plano
para aquela noite era bom, mas eu
estava nervosa mesmo assim. O
elemento surpresa seria essencial para
que tudo desse certo.
— Já tem carona para a festa?
— Selina perguntou, do lado de fora do
galpão da Electric, num tom casual que
eu jamais a ouvira usar. Franzi o cenho,
virando a cabeça para fitá-la.
— Acho que não — respondi,
incerta.
Enquanto os rapazes agiriam
nas ruas, Selina e eu precisaríamos estar
no penhasco naquela noite.
— Ótimo, te busco às oito.
A ruiva piscou e girou sobre os
tornozelos e foi até sua grande
motocicleta preta em acabamento fosco.
Ela soltou os longos cabelos vermelhos
antes de colocar o capacete escuro e dar
a partida.
Ri nasalado, começando a
caminhar até o alojamento.
Ao que parecia, tudo estava
começando a mudar.
O penhasco de Creek Hollow
poderia ser assustador se não fosse pela
música alta, luzes pirotécnicas e todas
aquelas pessoas dançando. A noite
estava densa e fria quando Selina e eu
chegamos lá, após subirmos a serra em
sua moto super veloz. Muitos carros
estavam parados sobre um espaço de
terra vermelha vasto diante do que
restara de uma velha construção que
margeava o penhasco.
Assim que Selina estacionou,
tirei o capacete, arrumando os meus
cabelos que estavam soltos e
bagunçados. Saltei da moto e olhei ao
redor, percebendo que alguns olhares
estavam sobre nós. Rapidamente,
consegui identificar alguns Daggers
entre eles, fazendo a segurança do local.
Slade estava ali, me fitando diretamente,
embora estivesse distante.
Ele fora de grande ajuda
quando elaboramos o plano daquela
noite. Talvez fosse sua grande
consciência pesada sobre o que
acontecera ao Nick, mas Slade nos
dissera exatamente a que horas — e por
qual rota — o caminhão cheio de drogas
dos Daggers chegaria. Não seria apenas
um pouco de erva para abastecer
aqueles universitários festeiros. Era
coisa grande e pesada, que renderia
muito lucro para Connor — e que
poderia arruinar tudo para o
Pandemônio por vários motivos.
— Bem, vamos lá ensinar uma
lição para eles — Selina falou, jogando
os longos fios vermelhos em seu rabo de
cavalo por sobre o ombro.
Ela ainda era bons centímetros
mais alta que eu, mesmo com os saltos
absurdos em meus pés, mas estávamos
parecidas, ambas usando roupas pretas e
justas. Tudo em nossa aparência fora
intencionalmente calculado. Naquela
noite, nós seríamos uma amostra grátis
do inferno.
Todos que nos encaravam
pareciam saber bem daquilo. Seus
olhares nos acompanharam enquanto
andávamos em direção à pista de dança.
Antes que pudéssemos passar pelo
grande arco de pedra da entrada,
entretanto, um Dagger se postou em
nosso caminho. Ele usava o colete de
couro usual de sua gangue. Sua estrutura
corporal era bem grande e tinha
tatuagens por toda parte, até mesmo em
seu rosto e em sua cabeça careca.
— O que fazem aqui? —
perguntou, ríspido.
Selina tombou a cabeça para o
lado, um sorriso malvado pairando em
seus lábios brilhantes de gloss.
— Da última vez que chequei,
isso aqui era uma festa.
Ele estreitou os olhos sob
pesados piercings nas sobrancelhas, a
analisando. Então, voltou-se para mim.
— Sei quem você é — rosnou
para mim. — O que quer?
Suspirei dramaticamente antes
de colocar uma mão na cintura.
— Uma garota não pode ter um
pouco de diversão? — rebati, com falsa
inocência, batendo meus cílios.
A provocação funcionou,
porque, no instante seguinte, seus olhos
escuros estavam se arrastando ao longo
do meu corpo, de cima a baixo.
Demoraram um segundo a mais no meu
busto coberto pelo top preto amarrado
com tiras nas laterais, expondo parte da
minha pele. Então, desceram lentamente
pela calça justa até as botas de
camurça.
— Aposto que ninguém se
oporia a isso, huh? — continuou Selina,
despertando o Dagger de seu devaneio.
Ele pigarreou antes de se endireitar.
— Não causem problemas — o
homem disse, se remexendo
desconfortável. Segurei o riso.
— Ah, querido, isso é
exatamente o que viemos fazer aqui. —
Selina piscou para ele é me puxou pela
mão em direção à festa a céu aberto.
Estalei a língua quando
passamos pela pequena trilha de pedras.
Senti olhos nos seguindo durante todo o
tempo.
— Bem, Hades nunca teria
conseguido entrar nessa festa. Ele não é
tão persuasivo assim — brinquei, e
Selina balançou a cabeça.
— Nem tem peitos.
Ri enquanto nos dirigíamos ao
bar, que consistia apenas em uma mesa
retangular atrás da qual uma mulher
seminua fazia alguns coquetéis. Ao lado
havia um enorme cooler lotado de gelo e
garrafas de cerveja. Apenas peguei uma
delas. Selina, por sua vez, pediu um Sex
On The Beach.
Quando um vento gelado correu
através de mim, arrepiando cada
centímetro do meu corpo, me arrependi
profundamente por não ter levado uma
jaqueta.
Suspirei antes de bebericar a
cerveja e olhar ao redor. Era possível
ver a cidade de Carmine, um pouco
distante no horizonte. Ao redor havia
apenas o deserto. Pouca vegetação e
muitas rochas.
— Então — comecei a dizer,
aumentando o tom de voz e
aproximando-me de Selina para que ela
pudesse me ouvir mesmo com a música
alta. — Qual é a desse lugar?
A ruiva deu de ombros.
— Ninguém sabe o que tinha
aqui antes de um tornado varrer tudo nos
anos 90. Depois, esse lugar foi usado
pelos Daggers para coisas bem ruins, já
que a polícia de Carmine não tem
jurisdição aqui. A cidade inteira era um
antro de podridão, praticamente o lixo
pessoal de Garrett Voich. Até o
Pandemônio surgir, é claro.
Eu conhecia bem aquela
história, e ficava aliviada por não ter
estado ali para presenciar os horrores
cometidos pelos Daggers quando
ninguém os impedia de fazer o que
quisessem.
Mordi o interior da bochecha,
tomando mais um gole do álcool. Muita
coisa mudara em Carmine por causa do
Pandemônio
— Sabe, Raven — Selina
chamou a minha atenção, com as
sobrancelhas franzidas. — Era uma
droga de cidade para uma adolescente,
principalmente sendo filha do xerife. Eu
sempre esperava o dia em que ele não
voltaria para casa. Carmine era pura
violência. Hades colocou ordem em
tudo isso. Haveria crime na cidade de
qualquer jeito, mas agora o Pandemônio
quem dita as regras, impõe limites.
Ela estava certa, em parte. Eu
tinha crescido no meio da máfia do
Texas e nunca pensara que encontraria
nada de bom no submundo. Não até
encontrar Hades e o Pandemônio.
— Acho que isso é o suficiente
— falei, tombando a cabeça para trás
para poder ver o céu. Estava
completamente nublado, sem lua ou
estrelas. — Por enquanto.
Depois de terminar a cerveja,
olhei ao redor. Muitas pessoas estavam
dançando. Libby e Alina não estavam
ali, o que era bom. Sabe-se lá o tipo de
coisa que poderia acontecer numa festa
como aquela. Além disso, se o plano da
interceptação do caminhão falhasse e os
Daggers descobrissem tudo, o caos seria
instaurado bem rápido. Era melhor que
minhas amigas estivessem seguras.
Um pouco mais distante da
multidão, vi Harvey. Era estranho vê-lo
de novo, parecia fazer séculos desde a
última vez. Muita coisa mudara nesse
meio tempo.
Harvey estava cercado por um
grupo de caras vestindo jaquetas nas
cores azul e amarelo, com as letras
gregas estampadas no peito. Eles
estavam alguns degraus acima, sobre o
que havia restado da construção.
Bebiam tranquilamente enquanto
olhavam para as garotas. Não pareciam
querer se misturar.
— Sabe qual deles é o
presidente da fraternidade agora? —
perguntei a Selina, que estava olhando
na mesma direção.
— É o Kevin O’Donnel. Mas
não estou vendo-o aqui.
— Conhece algum daqueles
outros? — Ela deu de ombros.
— Alguns. Já fui a muitas
festas da GZP — respondeu, observando
o grupo de garotos.
— Acho que vamos ter que
chamar a atenção deles — constatei, me
virando para a ruiva.
— Tenho uma ou duas ideias de
como podemos fazer isso. — Selina
abriu um sorriso malicioso antes de
empurrar sua bebida para o outro canto
do bar e me puxar pela mão até a pista
de dança em frente à cabine do DJ. Após
se postar à minha frente e começar a
balançar o corpo no ritmo da música,
aproximou seu rosto do meu ouvido e
sussurrou: — Aja como se estivesse
bêbada.
Logo entendi o que ela estava
tramando. Duas garotas bêbadas
dançando pareciam alvos fáceis,
principalmente para rapazes de
fraternidade que agiam como
predadores. E eu apostava que, naquela
noite, todos os caras da Gama Zeta Phi
estavam hipnotizados pelo poder que
viria junto com os esquemas ilegais dos
Daggers. Eles achavam que tinham tudo
sob controle. Selina e eu só
precisaríamos alimentar um pouco a
arrogância deles, então nos diriam o que
queríamos saber.
Eu não poderia negar que
estava tensa, desconfiada. Afinal, o
lugar estava cheio de Daggers. Mas, no
fim das contas, eu sabia que Selina e eu
podíamos dar conta de qualquer coisa
que desse errado. Estávamos preparadas
para isso.
Aos poucos fui deixando as
batidas ritmadas me embalarem,
dançando com Selina. Ela fingiu rir
antes de fechar os olhos e continuar
mexendo o corpo. Alguns caras se
aproximaram para dançar conosco, mas
nenhum deles era quem queríamos, então
apenas os afastamos. Mesmo sem olhar
ao redor, eu sabia que estávamos
chamando atenção.
Quando senti alguém tocar
minha cintura por trás, me preparei para
empurrá-lo, mas então ouvi sua voz
familiar no pé do meu ouvido.
— Não acredito que está
mesmo aqui. — A voz de Harvey me fez
revirar os olhos.
Queria muito me afastar, mas
ele poderia ter informações sobre onde
o dinheiro estava sendo guardado.
Slade nos contara que a Gama
Zetha Phi estava intermediando os
negócios entre os Daggers e os grandes
compradores de metanfetamina de
Carmine — e de todo o Arizona, mas
primeiro eles receberiam as drogas e
depois dariam o dinheiro em espécie
para Connor. Após o carregamento ser
interceptado, era provável que a GZP
sumisse com o dinheiro — o que, por si
só, seria o suficiente para atingir
Connor. O Pandemônio, porém, queria
causar ainda mais estrago. Para isso,
Selina e eu precisávamos descobrir o
lugar em que a grana estava antes da
meia-noite.
Engoli em seco, respirei fundo
e me virei, olhando para Harvey. Ele
parecia tão desconfiado quanto eu, com
os olhos estreitos me analisando.
Coloquei meus braços ao redor do seu
pescoço, me apoiando em seu corpo.
— Por quê? — perguntei,
levantando o rosto na sua direção.
— Você não pertence a Hades
Wrath? — rebateu, com um sorriso.
Quase ri diante daquela hipótese.
Harvey cheirava a álcool e baseado,
provavelmente já estava alto demais
para o próprio bem.
— Eu não pertenço a ninguém,
muito menos ao Hades.
Ele pareceu ficar feliz em ouvir
aquilo. Passou a envolver minha cintura
com mais firmeza, puxando-me contra si.
Simulei um sorriso sedutor.
— Então está aqui apenas para
se divertir? — Harvey inclinou o rosto,
aproximando-se mais de mim. — Eu
esperava por isso.
— Definitivamente.
— Gosto mais de você assim.
Sem aquele babaca por perto.
Ele apertou meu quadril ao
mesmo tempo em que se inclinou sobre
mim e levou sua boca até meu pescoço,
beijando suavemente a pele exposta.
Enquanto Harvey estava distraído, olhei
para Selina por sobre seu ombro. Ela
estava dançando com outro membro da
fraternidade, parecendo tão entediada
quanto eu. Segurei uma risada, voltando
a focar em Harvey. Passei meus dedos
sobre sua nuca antes de enterrá-los em
seus cachos castanhos.
— Ouvi dizer que você vai
abastecer a festa — comentei, forçando
um tom casual.
Ele não parecia querer entrar
no assunto, entretanto. Apenas murmurou
um “uhum” sem importância e continuou
dançando com o corpo colado ao meu.
Depois de mais duas músicas,
ele começou a me puxar pelo pulso para
fora da pista de dança, em direção à
estrutura rochosa perto do penhasco.
Franzi o cenho vendo Harvey
cambalear à minha frente. Ele estava
muito, muito chapado e, provavelmente,
não me diria nada útil. Estava
interessado em outra coisa.
Deixei que ele me empurrasse
em direção a uma parede de pedras.
Assim que me pressionou contra ela,
voltou a atacar meu pescoço avidamente
com seus lábios. Não permaneceu lá por
muito tempo, porém. Após alguns
segundos, se afastou de maneira abrupta
se virando em direção a uma moita de
ervas daninhas, onde ele se curvou para
vomitar.
Tomei um longo suspiro e
afastei mechas de cabelo rebelde do
meu rosto, esperando que Selina
estivesse fazendo mais progresso do que
eu quanto ao nosso objetivo naquela
festa.
Observei o rapaz de joelhos,
suas costas estavam viradas para mim
enquanto ele se recuperava da náusea,
dizendo alguns palavrões. Notei que
havia algo no bolso traseiro do seu jeans
de lavagem clara. Parecia ser um
celular.
Me aproximei dele a passos
rápidos e, quando Harvey foi acometido
por outra rodada de vômitos, puxei
facilmente o aparelho. Sorri vitoriosa
enquanto olhava para a tela de bloqueio,
onde uma nova mensagem era exibida.
Vou ter que furar hoje, tem
uma gata no meu carro. Desculpa,
irmão. Você pode levar aqueles caras
até o frigorífico por mim?
— Frigorífico? — indaguei em
voz alta e reli a mensagem. Era de
alguém chamado Joey.
Ergui meus olhos de volta pra
Harvey.
Ele estava pálido e suado, os
cachos castanhos de seu cabelo
grudavam na testa. Limpou a boca com a
manga do casaco antes de tentar
levantar. Quando não conseguiu,
começou a rir.
Nossa, ele estava mesmo muito
chapado.
Coloquei o celular no chão ao
seu lado e me virei para sair, mas a voz
de Harvey soou atrás de mim.
— Aonde você vai? Não
terminamos ainda. Raven…
Voltei a fitá-lo por um instante.
Ele parecia irritado. Dei um pequeno
sorriso.
Eu tinha certeza de que ele não
lembraria muita coisa daquela noite no
dia seguinte.
— Eu já terminei.
Agora traga os meus garotos
para dentro
Dançando em torno das
mentiras que contamos
Vivemos em cidades que você
nunca verá nas telas
Não são muito bonitas, mas
claramente sabemos como comandar as
coisas
E você sabe, estamos no time
um do outro
Team - Lorde

Não foi difícil encontrar o


frigorífico mencionado na mensagem.
Carmine não era uma grande cidade
onde poderiam existir muitas dessas
coisas. Havia um em funcionamento e
outro abandonado há muitos anos.
Ambos pertenciam ao mesmo homem: o
pai de Joe Sandler, o vice-presidente da
fraternidade Gama Zeta Phi. Bastou uma
pesquisa rápida no Google para
descobrir isso. Fiquei aliviada em sair
daquele penhasco e voltar para a
cidade.
Selina e eu fomos direto até o
galpão abandonado.
Já era meia-noite quando a
moto foi estacionada sobre chão de
cascalhos nos fundos do frigorífico. Nos
deparamos com o portão de metal já
aberto, com o cadeado e as correntes
caídos no chão. Hades e Wade estavam
parados perto da entrada, nos
esperando.
Assim que saltei da máquina de
duas rodas, andei na direção dos
rapazes. Enquanto Wade estava parado
de braços cruzados feito um guarda
diante da porta do galpão de metal,
Hades fumava tranquilamente encostado
contra a lataria de seu Camaro. Seus
olhos não demoraram a me encontrar,
prendendo-se rapidamente na minha
silhueta e ele tombou a cabeça para o
lado, tomando algum tempo para me
escrutinar.
Ele ainda conseguia fazer meu
corpo inteiro se arrepiar sem nem
precisar tocar em mim.
Tomei uma respiração
profunda, desviando o olhar para Wade.
Eu não podia continuar prestando
atenção nos efeitos colaterais causados
por Hades Wrath, ou nunca iria superar
nosso relacionamento. E eu precisava
muito seguir em frente. Tudo o que
tivemos deveria ficar preso ao passado,
dali em diante seríamos apenas amigos.
— Tem notícias de Alec e
Khalil? — perguntei a Wade, que negou
com a cabeça.
— Eles serão rápidos. Talvez
já tenham terminado e estejam a caminho
do depósito.
Assenti, cruzando os braços.
Não podia evitar ficar nervosa, temendo
que tudo desabasse e que algo ruim
acontecesse a eles. Há poucos dias,
Hades retirara de um cofre todo o
dinheiro que pertencia ao Pandemônio e
o transportara discretamente até um
depósito vigiado em período integral
por homens armados que trabalhavam
para a gangue. As drogas que
roubaríamos dos Daggers naquela noite
seriam guardadas lá também.
— Vai ser ótimo retribuir o
favor após eles terem roubado nosso
carregamento há dois meses — Selina
disse, andando sem dificuldade sobre os
cascalhos para a porta de trás do
galpão.
— Eu conheço Connor. Ele vai
tentar conseguir o dinheiro que negociou
com a fraternidade mesmo assim —
falei, olhando para a grande estrutura à
nossa frente. — Vai vir até aqui.
— Então estaremos esperando.
— A voz de Hades soou através da noite
fria, fazendo-me virar de volta em sua
direção. Ele se livrou da guimba do
cigarro e desencostou do carro,
caminhando até mim. — Como foi na
festa?
Ele parou a menos de três
passos de onde eu estava e olhou
diretamente para mim, me perfurando
com seus orbes sombrios.
Troquei o peso de perna,
apertando mais forte meus braços
cruzados contra o peito, e pigarreei
antes de responder.
— Tudo correu como o
planejado.
Selina riu alto e com desdém.
— Está brincando? Você foi
incrível. Harvey estava completamente
hipnotizado por você. Poderia ter tirado
qualquer coisa dele e ele iria agradecer.
Rolei os olhos diante de seu
exagero.
— Harvey Dumbrey, huh? —
Hades falou, a voz rouca e profunda
carregada de ironia. — Ele ainda está a
fim de você?
Dei de ombros e levantei o
queixo, percebendo uma oportunidade
para provocá-lo. Não pude resistir.
— É, talvez eu dê uma chance a
ele agora.
Talvez minha mentira fosse
óbvia, já que a mera ideia de me
aproximar de Harvey novamente fazia eu
sentir náuseas.
Hades riu como se eu tivesse
contado uma piada ruim.
— Péssima mentirosa.
Abri a boca, ultrajada.
— Acha que eu não ficaria com
outro cara?
— Não com um babaca como
Harvey.
Hades parecia muito
convencido de sua própria conclusão.
Colocou as mãos no bolso da jaqueta de
couro que usava e permaneceu me
olhando como se fosse o dono da
verdade.
Levantei uma sobrancelha,
incrédula. A presunção de Wrath não
deveria me surpreender, mas ainda
assim o fazia.
— Com quem seria então?
Você? — sugeri, sarcasticamente, ao
mesmo tempo em que empurrava aquela
hipótese sedutora para bem longe.
Hades apenas deu de ombros.
— Eu não me oporia a isso. —
Meu queixo caiu, fazendo-o gargalhar.
— Meu Deus, você é tão
insuportavelmente arrogante. — Joguei
as mãos para o ar, incapaz de lidar com
seu comportamento impossível.
— E você é incrivelmente sexy
de batom vermelho, amor.
Rolei os olhos, dando minhas
costas a ele. Não podia continuar
olhando para ele ou tendo conversas
sugestivas como aquela.
Após seu pedido de desculpas
e o nosso quase beijo no estacionamento
do hospital, percebi o quão frágil era
minha determinação em permanecer
distante dele. E, cada vez que Hades
sorria ou me chamava de amor, eu sentia
como se estivesse colocando sal na
minha ferida
Ao me virar, encontrei Wade e
Selina nos assistindo como se fôssemos
algum episódio de uma série de TV.
— Vamos entrar logo nesse
frigorífico — reclamei, mal-humorada,
marchando até o galpão.
Wade riu baixinho, mas não fez
nenhum comentário, apenas me ajudou a
abrir a porta pesada que dava acesso
aos fundos. Lá dentro estava escuro, mas
foi se iluminando aos poucos com a luz
externa. O lugar, provavelmente, estava
abandonado há pelo menos uma década.
Ruídos distantes soaram lá dentro,
talvez vindo dos ratos que fugiam de
volta para o breu.
Adentrei cautelosamente ao
local com Selina ao meu lado. Não foi
difícil localizar o dinheiro, a GZP
sequer se incomodou em escondê-lo.
Uma enorme pilha de notas de dólares
estava sobre uma mesa de metal no
centro do galpão. Ao redor, muitos
maquinários estavam cobertos por
grandes panos brancos. Uma densa
camada de pó e detritos se alastravam
sobre o chão.
— Meus Deus, vocês estão tão
fodidamente apaixonados um pelo outro
— Selina sussurrou, inclinando-se na
minha direção. — É meio irritante.
Olhei para a porta, onde Wade
e Hades conversavam, longe demais
para ouvirem o que Selina disse. Virei-
me na direção dela, incomodada com
aquele assunto.
— Nós recém terminamos.
— Vocês deveriam transar para
descontar logo toda essa tensão sexual.
— Ela pegou um pequeno bloco de
dinheiro de cima da mesa, checando as
notas.
Aquela ideia estava
completamente fora de cogitação, apesar
de parecer muito tentadora e fazer meu
coração apertar de saudade.
— Essa é a pior sugestão do
mundo. Tenho que me livrar dos meus
sentimentos por Hades, não os alimentar
ainda mais.
Selina rolou os olhos,
colocando o dinheiro de volta na pilha
antes de se voltar para mim, cruzando os
braços.
— Isso não vai desaparecer
facilmente e você sabe.
Ela estava certa. Eu duvidava
que todos aqueles sentimentos fossem
sequer sumir algum dia. Talvez meu
coração estivesse atado ao dele para
sempre — uma possibilidade que eu
odiava profundamente.
Selina não parecia ter dúvidas
do que disse, o que me fez contemplar
sobre seus relacionamentos. A filha do
xerife era durona e decidida, não
parecia se abalar com facilidade. Ainda
assim, eu ouvira histórias sobre o quão
doloroso fora seu relacionamento com
Nick. Certamente, ela sofrera muito ao
ter que assistir, impotente, seu namorado
se autodestruir.
— Você ainda sente algo pelo
Nick? — perguntei, cautelosamente. Vi
seu rosto mudar no mesmo instante.
Aquele assunto ainda a perturbava,
percebi. — Já superou ele?
Ela tomou alguns segundo para
pensar na resposta, se esforçando para
manter a feição neutra no rosto.
— Quando Nick e eu
terminamos, mal podíamos ficar na
mesma sala que o outro. Nos
machucamos pra caralho. Não era certo
ou bom... não era nada. — Ela respirou
fundo para se recompor. Em seguida,
voltou a olhar para mim com sua
expressão. — Eu daria um braço para
ter o que você e Hades têm. Tome
cuidado, Raven. Não é o tipo de coisa
que acontece duas vezes na vida.
A ruiva se distanciou, me
deixando contemplativa sobre aquilo.
Ao pensar na mentira de Hades, eu
entendia o motivo por trás — ao menos
uma parte dele. Mas aí eu pensava em
todas as oportunidades que ele teve para
me contar e pedir minha ajuda ao invés
de me usar e manipular.
Após refletir muito sobre isso,
eu chegara à dura conclusão de que
Hades não sentia por mim nada próximo
do que eu sentia por ele. Embora fosse
doloroso acreditar na hipótese de que
ele estivera me usando o tempo todo, me
manipulando, era só isso que permeava
minha mente quando eu pensava em nós
dois.
Eu desejava poder esquecer o
tempo em que passamos juntos, quando
estive mais feliz do que jamais pensei
ser possível. Queria esmagar todos
esses sentimentos e fazê-los desaparecer
de uma vez por todas.
Me atendo a este último
pensamento, tive uma ideia que fez
minha mente finalmente se distanciar de
Hades. Dei um largo sorriso.
— Pessoal, sei o que podemos
fazer com o dinheiro.

Recebemos notícias de Khalil e


Alec à meia-noite e vinte. Eles
conseguiram roubar o caminhão e já
estavam sãos e salvos no depósito.
Pouco tempo depois, Connor foi até o
frigorífico. Ele estava visivelmente
transtornado quando passou pelas portas
do galpão, mas não pareceu nem um
pouco surpreso ao encontrar o
Pandemônio lá.
Fui a primeira pessoa que
Connor viu. Talvez porque eu estava
sentada sobre a mesa no centro do lugar,
fumando displicentemente. Ele estava
acompanhado de outros dois Daggers
que eu não conhecia. Os três
rapidamente apontaram suas armas na
minha direção, mas eu sabia que eles
não iriam atirar.
— Onde está a porra do meu
dinheiro?! — Connor exigiu saber, com
o tom de voz alto e rouco, cheio de
cólera.
Estalei a língua, soprando a
fumaça do cigarro que estava tragando.
— Acho que aquele dinheiro
sujo não era seu, Connor. Talvez dos
seus clientes ricos e estúpidos o
suficiente para confiarem em você.
Kamps deu vários passos na
minha direção. Uma veia saltada
pulsava em seu pescoço, evidenciando o
quão perto do descontrole ele se
encontrava. Seus cachos castanhos
estavam bagunçados em sua cabeça, e
sua camisa preta, amarrotada.
— Não estou para brincadeiras
hoje, Raven. Entregue o dinheiro ou vai
se arrepender de ter escolhido o lado
errado para ficar.
Bufei, saltando da mesa.
— Já que você insiste tanto,
vou te dar seu dinheiro — cedi, com um
sorriso no rosto. Então dei o comando:
— Selina!
A ruiva, que estava no
mezanino acima de nós, apertou o botão,
e logo o som alto de máquina preencheu
o ambiente. Poucos segundos depois,
pequenos pedaços verdes começaram a
voar, caindo lentamente no chão. Connor
observou em completo choque enquanto
todo o seu dinheiro virava pó no
triturador de ossos do frigorífico.
Não podíamos simplesmente
tirar o dinheiro dali por duas razões. A
primeira: Connor tentaria recuperá-lo a
qualquer custo. A segunda:
precisávamos causar um prejuízo
considerável nos clientes dos Daggers.
Eles deveriam saber que, literalmente,
perderam todo o dinheiro que investiram
em Connor para que pudessem voltar
para o Pandemônio feito cães
arrependidos.
Assim, destruir toda aquela
grana era a melhor opção.
— Isso é o que eu chamo de
chover dinheiro — zombei, achando
graça. O chão estava ficando totalmente
coberto pelos fragmentos dos dólares.
Connor ficou vermelho de
raiva, parecia prestes a explodir. Com
mais dois passos apressados, fechou a
distância entre nós. Agarrou meu
pescoço com uma mão e, com a outra,
pressionou o cano da arma na minha
cabeça. Não deixei que isso me
abalasse, contudo.
Meu rosto estava impassível.
— Desista agora, Connor.
Mande seu amiguinho do FBI se retirar e
se entregue. Você ficará vivo, pagará na
prisão, e todos serão felizes para
sempre. Não tem como você ganhar de
qualquer forma.
Ele balançou a cabeça. Seu
maxilar estava trincado e os olhos
faiscavam em cólera, dissolvendo toda a
certeza que eu tinha de que ele não me
mataria.
Talvez ele finalmente me
mostrasse seu pior lado.
Vi de soslaio Wade sair das
sombras do galpão, segurando uma
pistola em cada mão, mirando nos
Daggers que flanqueavam Connor.
— Me quer fora da jogada para
que possa ficar com o império dos
Wrath todo pra você, huh? — Kamps
concluiu, entredentes. Ri nasalado diante
daquela hipótese.
— Eu não preciso disso,
Connor.
Ele não viu Hades se
aproximando por trás até pressionar a
lâmina de um canivete em sua garganta.
— Me dê um bom motivo para
não te matar agora mesmo.
A voz de Hades soou como um
trovão. Eu não duvidava nem por um
segundo que ele pudesse fazer aquilo;
afinal, ele desejava vingança por Nick e
Fiona e eu não podia culpá-lo. Connor
merecia morrer e parte de mim desejava
que aquilo se concretizasse.
A outra parte, porém, temia que
aquele ciclo de violência que estávamos
fomentando se voltasse contra nós em
algum momento.
Kamps respirou fundo,
afrouxando a mão ao redor do meu
pescoço.
— Sabe, Wrath, eu hesitei antes
de matar sua amiga. Ela não gritou, nem
chorou ou implorou pela própria vida,
foi tão forte e corajosa. Ganhou o meu
respeito — Connor provocou, fazendo o
rosto de Hades se retorcer de ódio e o
canivete em sua mão afundar um pouco
mais em sua pele, um filete de sangue
surgiu.
Senti um gosto amargo na boca
diante daquelas palavras e um nó
cresceu na minha garganta. Ficava
nauseada ao pensar em Fiona passando
por aquilo, sendo executada de maneira
fria e brutal e deixada sangrando sobre o
balcão de um bar para que seu melhor
amigo a encontrasse. Meus olhos
marejaram com aquela cena rodando em
minha cabeça.
Connor deveria pagar, deveria
sofrer como Nick e Fiona sofreram.
Hades acreditava nisso
também, porque ele parecia muito
determinado a acabar com aquilo de
uma vez por todas. Ele pressionou a
ponta da lâmina um pouco mais na pele
do pescoço de Connor e eu engoli em
seco, os olhos presos naquela cena.
Estava esperando que Hades executasse
seu plano, matando aquele monstro. E eu
não o impediria se ele escolhesse
vingança em detrimento da misericórdia.
Afinal, como Nick dissera uma
vez: algumas vezes, vingança é justiça.
Hades buscou a confirmação
em meus olhos e, embora tenha sido isso
que ele encontrou, não prosseguiu. Ele
afrouxou o canivete da garganta de
Kamps.
— Solte a Raven — ordenou
ele. Connor, surpreendentemente,
obedeceu, levantando as mãos em
rendição. Dei um passo para trás,
massageando meu pescoço, agora livre.
Um ruído alto de passos na
escada de metal soou e logo Selina se
aproximou, descendo os degraus
empunhando uma arma. Tínhamos o
controle da situação, não havia como
Connor se safar daquela vez. Ele seria
preso e levado à polícia.
Eu respeitava a decisão de
Hades de não o executar ali. Eu sabia na
pele que a escolha de executar alguém
exigia que matássemos uma parte de nós
mesmos. Era um preço alto demais a
pagar.
Além disso, a justiça ainda
podia prevalecer da maneira correta,
com Connor atrás das grades pro resto
da vida. Doakes não poderia ajudá-los
mais.
— Acabou pra você, Connor —
decretei, me sentindo aliviada e
otimista. Eu mal podia esperar para
assisti-lo pagar por todas as coisas
horríveis que fizera.
Ele permaneceu com o rosto
inabalado, entretanto. Sua tranquilidade
me fez franzir o cenho, o sorriso pouco a
pouco morreu em meu rosto. Quase
podia ouvir sua voz se gabando na
minha cabeça, dizendo “fácil demais,
não acha?”. Se eu estivesse prestes a
perder tudo, não estaria tão calma assim.
Nem mesmo Kamps, que era um grande
psicopata controlador, ficaria.
Algo não estava certo.
Antes que eu pudesse dizer
alguma coisa, porém, um estrondo alto
soou lá fora ao mesmo tempo em que um
clarão surgiu, iluminando todo o interior
do frigorífico.
Parecia uma explosão.
Não houve tempo para
raciocinar, porque as armas começaram
a ser disparadas e tudo virou um caos.
Observei atônita e impotente,
completamente desarmada, enquanto
Connor e Hades se emaranhavam numa
luta física e os Daggers invadiam o
galpão, atirando sem parar. Me abaixei
quando um deles mirou em mim, o tiro
passando tão perto que eu pude senti-lo
raspar em meus cabelos.
Soltei um palavrão alto, me
agachando e rastejando para trás de uma
enorme viga de metal. Me sentia
estúpida por ter aberto mão da minha
Glock para usar aquela roupa apertada
para a festa. Odiava estar vulnerável.
Os sons não pararam. Tudo
parecia estar desmoronando atrás
daquela viga, enquanto eu tentava pensar
em um plano.
A ideia de que Connor não iria
se render tão facilmente deveria ter sido
óbvia. Ainda assim, aquela fora a
primeira vez em que chegamos tão perto
de pegá-lo em semanas. Não
poderíamos deixá-lo escapar.
Olhei freneticamente ao redor,
buscando qualquer coisa que pudesse
ser usada como arma. Meus olhos
encontraram um longo cano de metal,
jogado no chão a poucos metros de mim.
Não era o ideal, mas pelo menos
serviria para eu me defender.
Enquanto todos estavam
trocando tiros, me esgueirei abaixada
até o cano, que era mais pesado do que
parecia. Após apanhá-lo, voltei para a
área do conflito, nos fundos do galpão.
Um Dagger estava caído e sangrando,
mas não prestei muita atenção nele.
Meus olhos estavam grudados no
combate entre Hades e Connor.
Hades parecia ter a vantagem,
desferindo uma sequência de socos no
rosto desprotegido de Connor, que
cambaleava, mas ele cometeu o erro de
se distrair. Alternou seu olhar para mim
apenas por um segundo, mas foi o
suficiente para que Kamps invertesse as
posições, afundando seu punho com toda
força nas costelas de Hades e, com isso,
arrancando-lhe um rugido alto de dor.
Meus olhos se arregalaram,
assistido em câmera lenta o corpo de
Wrath se curvar sobre o chão. Trinquei o
maxilar, meu corpo se aquecendo com
fúria, e levantei a barra de metal,
fazendo menção de correr até Kamps.
Ele foi mais rápido, porém. Logo
alcançou no chão a arma que estava
segurando antes. Não a apontou para
Hades, como eu pensei que faria.
Ele a mirou em mim.
Parei no mesmo instante e
estreitei os olhos em sua direção,
desafiando-o tacitamente. Engoli em
seco quando Connor destravou a arma e
seu dedo apertou o gatilho.
Mas então eu não vi mais nada,
porque Hades se jogou em cima de mim,
empurrando-me para o lado ao mesmo
tempo em que o disparo soou. Gemi com
o impacto brusco das minhas costas
contra o chão e o peso do Hades sobre
mim.
Minha cabeça doía e eu estava
atordoada com os sons incessantes de
tiros, parecendo se aproximar cada vez
mais. Fechei os olhos por um segundo,
colocando a mão na testa. Voltei a abri-
los quando senti um toque em minha
bochecha, me deparando com o rosto
assustado de Hades. Sangue escorria da
raiz de seu cabelo.
— Você está bem? —
perguntou, me inspecionando com suas
pupilas profundamente escuras. Acenei
com a cabeça, assentindo. Em seguida,
ele se levantou, me puxando junto para
cima. — Vem, amor, temos que dar o
fora daqui.
Pisquei, voltando meu olhar
para o outro, a tempo de ver mais
Daggers entrando no frigorífico. Outra
bala foi disparada em nossa direção,
acertando o pilar a poucos centímetros
da minha cabeça. Não houve tempo de
protestar. Hades agarrou minha mão e
me puxou, começando a correr. O
acompanhei, minhas pernas se
movimentando em alta velocidade.
Tentei olhar para trás para ver se Selina
e Wade estavam bem, mas não consegui
ver nada.
Tudo aconteceu rápido demais,
num minuto estávamos sendo alvejados
e noutro estávamos saindo do galpão por
uma das janelas quebradas da lateral.
Hades me ajudou a atravessar e
continuamos a correr lá fora. Fomos até
uma minivan preta que estava parado na
estrada adjacente ao frigorífico. As
portas do motorista e do carona estavam
abertas. Provavelmente, o carro
pertencia a algum Dagger.
Hades se aproximou
rapidamente e checou.
— Está com a chave no contato
— anunciou, sentando-se atrás do
volante. Dei a volta e entrei do outro
lado.
— Será que eles estão bem? —
perguntei, encarando a parede externa
do frigorífico.
Os sons de tiros ainda soavam
e o medo de que um de nossos amigos
estivesse ferido me consumia cada vez
mais intensamente. Me debrucei sobre o
painel do carro, o olhar fixo na fileira
de janelas. Meus dentes cavavam
ansiosamente em meu lábio inferior.
— Eu vou voltar lá. — Hades
fez menção de se levantar e meus olhos
se arregalaram em terror.
Foi quando Selina e Wade
apareceram, correndo em nossa direção
com as mãos ainda segurando armas de
fogo. Fechei meus olhos, respirando
aliviada. O aperto em meu peito se
desfez lentamente.
Hades ligou o carro e deu
partida assim que nossos amigos
entraram, saindo em disparada sobre a
pista.

Olhei para o teto de madeira do


escritório do Pandemônio. Minha
cabeça estava tombada para trás sobre o
encosto do sofá e meus músculos doíam.
Me sentia frustrada e cansada diante de
nossa derrota miserável. Chegamos tão
perto de pegar Connor, mas ele escapou
feito areia por entre nossos dedos.
Agora ele seria muito mais cauteloso,
seria difícil chegar tão perto assim
novamente.
Se Garrett estivesse na
liderança, provavelmente os próximos
passos dos Daggers seriam diferentes.
Talvez, se Garrett ainda fosse o chefe,
os Daggers não tivessem nos detonado
como fizeram naquela noite.
Selina estava com um olho
roxo, inclinada sobre a poltrona onde
Wade estava sentado, aplicando uma
bolsa de gelo na mandíbula dele, que
estava muito inchada. Ele a observava
atentamente enquanto ela cuidava de
seus múltiplos ferimentos. Wade
detivera sozinho grande parte dos
Daggers, afinal.
Hades, por sua vez, estava
sentado na cadeira atrás de sua mesa. O
queixo apoiado em suas mãos cruzadas e
o olhar vazio, perdido em algum canto
qualquer da sala. Não saíra ileso,
tampouco. Sua luta com Connor deixara
marcas por todo seu rosto, mas ele não
parecia se importar. Eu duvidava que
ele tivesse sequer sentido aqueles
golpes. Todos nós estávamos
preenchidos de adrenalina naquele
galpão. Tivemos sorte em sair vivos de
lá.
O silêncio retumbante reinou
naquele cômodo até Khalil e Alec
passarem pela porta, rindo e bebendo
refrigerantes como se estivessem de
férias. Eles congelaram assim que nos
viram, olhando para nós com confusão
em seus rostos.
— O que aconteceu com vocês?
— Alec perguntou, com o cenho
franzido. — Parece que acabaram de
voltar de uma guerra.
Estiquei as pernas, me
alongando e me recostando contra o
estofado.
— Foi exatamente o que
aconteceu. — Dei um sorriso sarcástico
quando ele se jogou no sofá ao meu
lado, deitando e colocando as pernas
sobre o meu colo.
Rolei os olhos com sua
displicência.
— O que houve? — Khalil
perguntou, olhando diretamente para
Hades. Ele cruzou os braços, sua feição
cedendo à seriedade que o resto de nós
emitia.
— Destruímos o dinheiro de
Kamps — Wrath se limitou a dizer.
— Isso é bom, o coloca em
maus lençóis com seus clientes —
Khalil comentou, cruzando os braços
também.
— Clientes que eram nossos,
devo acrescentar — Alec frisou antes de
beber mais um gole de refrigerante. —
Tomara que eles matem Connor pra nós.
— Quase o pegamos. — Selina
entrou na conversa, sem desviar a
atenção dos cuidados com Wade. —
Aquele desgraçado...
Provavelmente ela fez pressão
demais na bolsa de gelo contra o rosto
de Wade naquele momento, pois ele
soltou um pequeno silvo de dor,
colocando sua mão sobre a da ruiva. Ela
se desculpou baixinho.
— Tudo certo no armazém? —
Mudei de assunto, Khalil deu de
ombros.
— Não tivemos problemas. É
muita droga, mas nada que possamos
reaproveitar. Não chega aos pés da
qualidade da nossa. Além disso, tem
coisas muito perigosas lá.
Aquilo não era uma surpresa,
na verdade. Tudo o que Hades fornecia
era bom e puro, por isso custava tão
caro.
— GHB? — perguntou Selina,
com a voz cautelosa. Khalil apenas
assentiu.
— Maldição — Hades xingou,
passando as mãos nos cabelos. Eu não
tinha interesse em estar por dentro do
negócio de narcóticos do Pandemônio,
mas, mesmo com meu pouco
conhecimento sobre isso, sabia que
GHB era uma droga usada muito
frequentemente por predadores sexuais.
Por isso Wrath a proibira em Carmine.
— Vamos destruir todo o carregamento.
— Certo — Khalil assentiu,
parecendo aliviado.
— Os Daggers são numerosos
demais para darmos conta — Hades
continuou, se reclinando contra sua
grande poltrona de couro. —
Poderíamos não ter saído vivos dessa.
Não vamos nos arriscar assim da
próxima vez.
Franzi o cenho.
— Está brincando? — o
interrompi, incrédula e me endireitei.
Hades alternou o olhar para mim. —
Precisamos continuar a atacar. Hoje nós
chegamos perto, da próxima vez iremos
acabar com eles.
Hades balançou a cabeça,
muito sério. Ele parecia extremamente
perturbado e eu logo desvendei o
significado por trás do olhar que ele
exibia naquele momento, pois estava
familiarizada com ele. Era culpa.
— Não vou continuar
arriscando a vida de vocês nisso. Fiona
pagou o preço pelos meus erros, assim
como Nick. Quem sabe qual de vocês
será o próximo.
Todos ficaram quietos por um
instante diante da menção de Fiona. A
imagem do corpo cinzento e inerte dela
ainda me despertava arrepios.
Engoli em seco, massageando
uma têmpora enquanto tirava aquele
pensamento da minha cabeça.
— Não fode, Hades — Alec
retrucou, quebrando o silêncio que havia
se instaurado, fechando o rosto numa
carranca. — Todos aqui sabem no que
se meteram.
— Alec está certo, cara —
Wade se pronunciou após um longo
suspiro. Desviou seu olhar de Selina
para Hades. — Tomamos a vantagem.
Eles estão fracos agora. Vamos nos
preparar e atacar.
Hades respirou fundo e voltou a
me fitar, como se estivesse em um
dilema. Por fim, anuiu com a cabeça.
— Tudo bem — cedeu com um
suspiro de cansaço e se endireitou. —
Da próxima vez que cruzarmos com
Connor Kamps, será o fim.
Chamas que se queimam
nunca devem voltar a acender
Mas eu achei que você poderia
Afaste os pesadelos
Eu não posso viver sem você
Home - Daughter

Abri um pequeno sorriso ao


olhar para o teste de história da arte que
fora corrigido e entregue para todos os
alunos. No canto superior direito da
folha havia um grande e vermelho A+.
Era extremamente recompensador, após
tantos anos na escola me questionando
se eu era, de fato, boa em alguma coisa.
Além disso, eu recebera um elogio do
professor Marcel — fui a única. Quando
a aula terminou e George e eu saímos
para o corredor, eu estava quase
flutuando.
E, embora muitos alunos me
olhassem com desgosto enquanto eu
percorria o corredor, não me importei.
Estava ficando cada vez melhor em
ignorar olhares e sussurros indiscretos
quando eu passava. Ninguém tinha
esquecido de como a grande festa que
eles passaram semanas planejando fora
arruinada pela gangue local — aquela
que todos diziam que eu fazia parte.
A reação deles só me transmitiu
ainda mais garantias de que o
Pandemônio fizera a coisa certa ao
impedir que Connor entregasse um
monte de drogas pesadas nas mãos
daqueles estudantes imprudentes.
— Você arrasou naquela prova
— George disse, com um sorriso no
rosto. Ele não parecia ter notado toda a
atenção que eu estava despertando. Ou,
se percebeu, não deu a mínima. — Viu a
cara do Zachary Bowen ao saber que
você tinha sido a única a receber a nota
máxima? Pensei que ele fosse desmaiar.
Ri, segurando os livros e
cadernos em um dos braços enquanto
caminhávamos na direção dos armários.
Zachary era o melhor aluno de
todas as turmas do departamento de
Belas Artes da Universidade. Diziam
que ele iria para a Juilliard no próximo
ano.
— Ele acha que aqui é algum
tipo de competição — comentei, girando
o segredo para abrir meu escaninho,
onde depositei alguns livros e apanhei
minha bolsa.
— É uma competição, Clarke,
e você é uma forte rival. Além de ser
uma boa aluna e artista incrível, é uma
mafiosa perigosa. Acho que todos estão
intimidados. — George cruzou os
braços, me olhando com as finas
sobrancelhas castanhas levantadas.
Rolei os olhos, fechando o
armário e voltando a percorrer o
corredor até as escadas.
— Não estão intimidados,
parecem com raiva.
— Parecem com inveja —
Hale corrigiu.
Assim que alcançamos as
escadas, parei antes de descer o
primeiro degrau. Harvey estava vindo
no sentido oposto, subindo, e também
parou ao me ver. O rapaz parecia
péssimo, com um boné de beisebol
cobrindo seus cabelos, fazendo sombra
em seu rosto. Seu semblante se fechou
no mesmo instante e ele estreitou os
olhos para mim. Pensei que fosse
começar a rosnar a qualquer momento.
— Clarke — ele cuspiu aquele
nome como se fosse amaldiçoado —
Não me esqueci do que você fez.
Seu tom beirava a ameaça.
Respirei fundo.
— Isso não é problema meu. —
Dei um sorriso e tentei passar por ele
para continuar meu caminho até a saída
do prédio. Harvey, porém, se postou na
minha frente, me impedindo. — Saia da
minha frente.
Ele não obedeceu à minha
ordem, continuando a me fuzilar com
seus olhos verdes cheios de cólera.
Olhei de soslaio para George e percebi
que algumas pessoas ao nosso redor
pararam para assistir à cena que se
formava.
— Você me usou para ajudar
aquela gangue maldita — continuou
Harvey, fazendo eu me voltar para ele.
— Eu fui expulso da fraternidade.
Aparentemente os líderes da
Gama Zeta Phi não ficaram nada felizes
ao saber que Harvey ficara chapado
demais para cumprir com suas
obrigações naquela noite.
Estalei a língua.
— Você e seus amigos
encomendaram o equivalente a 15 Kg de
uma droga comumente usada para dopar
garotas em festas. Vocês deveriam ser
expulsos da Universidade.
As sobrancelhas dele se
levantaram e seu rosto esboçou
surpresa, como se aquela informação
fosse totalmente nova para ele.
— Não era eu quem estava no
comando disso. Está punindo a pessoa
errada.
— Não se preocupe, Harvey, eu
vou ficar de olho em todos da GZP.
Em seguida, dei um tapinha em
seu ombro e desviei de sua figura
parada sobre os degraus, descendo e
deixando-o para trás. George me seguiu
de perto, sem conseguir esconder seu
divertimento diante daquela situação.
Talvez aquele houvesse sido
primeira e única vez que a GZP
resolvera fazer algo daquele tipo; afinal,
Hades costumava mantê-los em rédea
curta, controlando todos os seus
negócios ilegais. Ainda assim, eu temia
que eles pudessem fazer coisas ruins ao
Pandemônio.
— Então — George chamou
minha atenção, mudando de assunto —,
você soube que Hades vai fazer um
jantar de Ação de Graças semana que
vem?
Engoli em seco.
— Uhum — murmurei, sem
muita empolgação. — Ele me convidou.
— E...?
— Não sei se é uma boa ideia
voltar àquele apartamento — expliquei,
dando de ombros. Viramos para o
corredor principal que levava até às
portas duplas de vidro da saída.
— Ao invés disso, vai passar o
feriado inteiro no seu dormitório? —
George fez uma careta.
— E onde você vai passar? —
Ele sorriu com orgulho.
— Vou levar Alec para a casa
dos meus pais. — Meus olhos se
arregalaram e eu exclamei um uau,
bastante surpresa. — O quê? Acha que é
cedo demais?
— Não, acho que não. Nada
está no tempo errado quando você gosta
de alguém de verdade.
George sorriu, colocando as
mãos nos bolsos da calça cáqui.
— Como foi com você e
Hades?
A pergunta me pegou de
surpresa, me fazendo parar por um
instante. Me vi sendo puxada pela
correnteza de memórias envolvendo
Wrath novamente, mas não deixei que
ela me levasse.
Pigarreei.
— Hades e eu não éramos um
casal comum. — Foi tudo o que me
limitei a dizer.
Felizmente, fui salva daquela
situação pela professora McPhil, que me
chamou antes que George e eu
pudéssemos alcançar a saída do prédio.
Ela tinha uma pilha de papéis sobre os
braços.
— Raven Clarke, eu estava
mesmo querendo falar com você. — Ela
se aproximou, parecendo eufórica.
A professora Sydney McPhil
tinha um estilo peculiar, como se tivesse
acabado de sair da década de 70. Seus
cabelos eram de um tom de caramelo
com um fundo alaranjado, os fios eram
longos e cacheados. Ela era bem alta e
magra, usava um vestido colorido Tie
Dye até os pés e um monte de acessórios
prateados. Eu a admirava por parecer
sempre tão leve e despreocupada. Pintar
quadros para ela era tão natural como
respirar, ela nem precisava se
esforçar. Era como se respirasse arte.
— Vou te esperar lá fora,
Clarke — George avisou, acenando para
nós duas e se afastando. Me endireitei e
me voltei para a mulher de meia-idade à
minha frente.
Sua pele branca era bronzeada
e mais avermelhada no nariz e
bochechas.
— Sim, srta. McPhil?
Ela ajeitou os óculos
perfeitamente redondos sobre o nariz
com a ponta do dedo antes de continuar.
— Todos os anos a decana da
Academia de Artes de Nova York
distribui cinco bolsas de estudo
especializado para estudantes de Arte ao
redor do país. Eu a recomendei para
uma das vagas, Raven.
Minhas sobrancelhas quase
bateram no teto e todas as palavras
instantaneamente sumiram do meu
vocabulário. Eu estava completamente
estática.
A fitei com os olhos
arregalados, absorvendo as informações
uma a uma.
— A Academia de Artes de
Nova York? — repeti incrédula, não
parecia ser real. A professora McPhil
balançou a cabeça com entusiasmo.
— Mostrei seu trabalho à
decana e ela ficou maravilhada. As
entrevistas dos candidatos serão em
duas semanas. A vaga é sua, se quiser.
Pisquei, sem conseguir entender
como eu realmente me sentia diante
daquela informação. Nunca antes eu
pensara em ir para uma super metrópole
como NYC.
— Eu… nem sei o que dizer.
A professora McPhil colocou
uma mão sobre meu ombro e me olhou
diretamente.
— Esta é uma grande
oportunidade, Raven. Eu estudei na
NYAA e posso te dizer que é incrível. É
isso o que você quer para sua vida, não
é?
Mordi meu lábio inferior,
pensativa. Sem dúvidas era uma chance
incrível, mas ela significava ir embora
para o outro lado do país e abandonar,
de uma vez por todas, tudo o que me
ligava ao submundo. Era o que eu
costumava querer mais do que qualquer
coisa. Eu deveria ficar radiante com
aquela oportunidade. Contudo, só senti
um imenso aperto no peito e um gosto
horrível de bile em minha boca.
— É uma grande decisão… —
falei, distante.
Eu não sabia se estava
preparada para isso; afinal, não era só
de Hades que NYC me distanciaria. Era
de todos os meus amigos, da vida que eu
criara em Carmine.
A professora suspirou antes de
assentir, voltando a abraçar as pastas e
folhas que segurava.
— É, sim. Pense a respeito,
o.k?
— Claro, vou pensar.
Obrigada, Srta. McPhil.
— Você fez por merecer.
E, com um sorriso simpático,
ela se despediu e continuou seu caminho
ao longo do extenso corredor.
Eu não sabia o que me deixava
mais assustada: a ideia de me mudar
para Nova York ou o fato de que eu não
ficava feliz com ela.

— Você parece distraída —


comentou Nick, me acordando dos meus
devaneios.
Pisquei, baixando o leque de
cartas em minha mão. Parei de prestar
atenção no jogo há três rodadas.
Eu estava sentada com as
pernas cruzadas nos pés da cama de
Nick no hospital. Ele fora transferido
para um quarto comum devido à sua
melhora. Sempre havia um policial
guardando a porta de entrada, para
assegurar que Connor não tentasse
terminar o trabalho.
Nicholas estava se recuperando
bem. Seu rosto não estava mais tão
inchado, embora os hematomas
permanecessem tingindo sua pele
bronzeada. Sua cabeça ainda estava
envolvida por uma faixa branca, desde
que fora operado. Ele não se deixara
abater, porém. Sempre que eu o visitava,
me deparava com um rapaz animado e
otimista. Era contagiante.
— Só estou pensando sobre o
futuro. — Tentei desconversar. — Já
sabe o que vai fazer quando sair deste
hospital?
Ele deu de ombros, se
recostando contra os travesseiros
macios sob suas costas. Abaixou as
próprias cartas, deixando-as cair junto
às outras, que estavam espalhadas no
espaço entre nós dois, e coçou o queixo.
Não pensou muito sobre a resposta.
— Não sou muito bom com
planos, e você?
Fiz uma careta.
— Acho que muita coisa
mudou. Não me vejo mais longe de todo
esse caos.
Ele franziu o cenho, os olhos
castanhos e profundos analisando meu
rosto minuciosamente.
— Ter uma vida comum e
pacata era tudo o que você queria, não
era?
— Costumava ser.
Silêncio recaiu naquela sala
fria e cinzenta e nós dois ficamos
contemplativos por um tempo. Estava
tudo uma bagunça e eu não conseguia
enxergar através do véu nublado da
guerra entre o Pandemônio e os Daggers.
Tinha medo de todas as consequências
que viriam quando alguém colocasse um
ponto final naquele conflito.
Tinha medo, principalmente,
das escolhas que eu precisaria tomar.
— Sinto falta da estrada —
Nick confessou, me deixando grata por
ter findado a quietude. Ergui meu rosto
para encará-lo, seu olhar parecia
distante. — Quando eu estava lá fora, só
havia eu, minha moto e a liberdade.
Tudo parecia mais simples.
— Parece solitário.
— Era mesmo, mas acho que
algumas pessoas devem permanecer
sozinhas.
Balancei a cabeça, negando.
— Não você. — Coloquei
minha mão sobre a sua.
Os nós de seus dedos ainda
estavam vermelhos e esfolados, uma
evidência de que ele tentara se defender
quando Connor o espancou.
— Principalmente eu —
contrariou, recolhendo sua mão para
longe da minha. — Não deveria me
querer por perto, Raven. Não depois de
tudo o que eu fiz.
Ele estava sério ao dizer
aquilo. Me fitava diretamente com o
semblante impassível. Não sabia
exatamente o que ele estava querendo
dizer.
— Onde você quer chegar?
As sobrancelhas pesadas de
Nick se uniram e ele bufou antes de
tombar a cabeça para trás e fechar os
olhos.
— Eu… eu fico imaginando
como seria se eu tivesse feito escolhas
diferentes. Se nós dois…
As palavras morreram em seus
lábios e fiquei aliviada por ele não ter
continuado a frase, embora conseguisse
imaginar o que ele queria dizer.
Paralisei completamente.
Permaneci com meu olhar sobre
sua figura, apesar de ele ter se
esquivado do meu olhar, como se não
pudesse me encarar de volta. Ergui as
sobrancelhas em surpresa, sem saber o
que pensar. Logo ele continuou,
entretanto.
— Depois de tantos anos
lidando de perto com a pior face das
pessoas, eu a encontrei no deserto. Era
tão forte quanto teimosa. — Ele deu um
pequeno sorriso, como se estivesse se
lembrando daquele momento. — Eu sei
que é ridículo. Fui um imbecil com você
tantas vezes e...
Ele não completou a frase.
Senti meu coração se apertar.
Não sabia o que dizer ou o que pensar.
Nunca imaginei que aquele beijo
pudesse ter significado mais do que
apenas um momento qualquer. Eu não
estava preparada para uma confissão
daquelas. Não queria precisar dizer em
voz alta que eu o enxergava como nada
além de um amigo. Não queria machucá-
lo ainda mais.
— Nick, eu…
— Não precisa dizer nada —
ele me interrompeu, se endireitando para
me olhar de volta. — Hades é quem
você ama de verdade e eu realmente
espero que vocês possam encontrar um
caminho de volta um para o outro.
Uma tentativa estúpida de
sorriso se formou em meu rosto. Não
falamos mais sobre aquilo, continuamos
jogando e conversando sobre
amenidades.
Eu não queria que as coisas
entre nós ficassem estranhas.
Desconhecia a extensão de seus
sentimentos por mim, mas esperava que
eles sumissem logo. Provavelmente ele
estava apenas perdido e confuso, após
tudo o que havia lhe acontecido.
Nick estava certo, no fim das
contas. Eu amava seu irmão e talvez isso
nunca mudasse. Não sabia se poderia
retribuir os sentimentos de outra pessoa,
mas com certeza não permitiria que a
história de Selina se repetisse.
Além disso, eu era grata por ter
a amizade de Nick, mesmo que parte de
mim odiasse a parte dele que fora capaz
de fazer coisas desprezíveis no
passado.
Estou sentado, com os olhos
bem abertos
Dentro destas quatro paredes,
esperando que você ligue
É um jeito muito cruel de viver
Como se não houvesse sentido
nenhum ter esperança
Eu não quero viver para
sempre
Porque eu sei que estaria
vivendo em vão
Eu só quero continuar
chamando o seu nome
Até você voltar pra casa
I Don't Wanna Live Forever
- ZAYN, Taylor Swift

Quando o feriado chegou, fui


convencida a ir para o jantar de Hades.
Afinal, também seria o primeiro dia de
Nick fora do hospital e todos queriam
comemorar.
Fiquei inquieta dentro do elevador que
subia todas as dezenas de andares
daquele edifício em direção à cobertura
de Hades Wrath. Alternava o peso de
perna com frequência, me incomodando
com o sapato de salto quadrado. Alina
estava ao meu lado, usando saia midi,
meia-calça e um cardigã cor creme. Os
longos cabelos loiro-areia estavam
presos num coque despojado no topo da
cabeça. Ela era toda tons pastéis e
clássicos enquanto eu vestia preto da
cabeça aos pés, como de costume.
— Desse jeito vai abrir um
buraco no chão — ralhou Alina, olhando
para o próprio reflexo no espelho
luminoso atrás de nós.
— Você deveria estar tão
incomodada quanto eu. Estamos indo
jantar na casa dos nossos ex-namorados
— argumentei, colocando
impacientemente uma mecha do meu
cabelo atrás da orelha pela quinta vez.
Ali rolou os olhos antes de se
virar na minha direção. Ela parecia
perfeitamente tranquila.
— É só um jantar entre amigos.
— Ela tentou me convencer, mas apenas
me fez rolar os olhos.
Desejava ter me escondido no
porta-malas de George quando ele e
Alec viajaram naquela manhã para
Phoenix. Na verdade, quase pedi para
acompanhá-los, pois sabia que Alina
jamais me deixaria passar o feriado
sozinha no alojamento — o que talvez eu
preferisse. Libby também estava fora,
embora não parecesse animada para
passar tanto tempo com sua família.
Ao alcançarmos o topo do
prédio, as portas do elevador se abriram
com um tilintar. Alina enganchou seu
braço no meu e me puxou para fora da
caixa de metal, temendo que eu
desistisse e tentasse retornar. Cobriu
minha mão com a sua em sinal de
conforto enquanto cruzávamos o hall de
entrada. Dei um pequeno sorriso ao
passar pelo retrato de Eve Wrath com o
qual eu presenteara Hades em seu
aniversário.
Mesmo de longe eu pude sentir
o cheiro delicioso das especiarias que
flutuava no ar vindo da cozinha.
Definitivamente haveria chilli
no jantar.
A primeira coisa com a qual me
deparei foi a enorme mesa retangular de
vidro sob o lustre de cristal na sala de
jantar aberta. Eu nunca a vira tão farta.
Ao redor dela estavam Khalil, Selina,
Wade e Nick. Eles conversavam e riam
de uma maneira que aqueceu meu
coração instantaneamente.
Deitado perto da moderna
lareira acesa, com a cabeça entre as
patas, estava Dodger. Ele e seu dono não
podiam retornar ao trailer, não com
Connor à solta em busca de vingança. A
cobertura de Hades era o lugar mais
seguro para eles.
Khalil logo notou nossa
presença, virando a cabeça na nossa
direção. Um sorriso largo surgiu em seu
rosto.
— Finalmente chegaram! —
anunciou, animado, e rapidamente se
levantou para nos cumprimentar.
— O cheiro ‘tá ótimo —
comentou Alina, após dar um beijo
polido na bochecha de K. O abracei
rapidamente, me voltando para o resto
da mesa, em seguida.
Selina e Wade acenaram com a
cabeça e Nick me olhou meio sem jeito.
Ele melhorara muito nos últimos dias.
Fiz questão de lhe dar um sorriso
caloroso naquele momento e isso
pareceu tranquilizá-lo um pouco.
— Que bom que vocês vieram
— Selina falou, soando realmente
sincera. Ela serviu sua taça quase vazia
com a garrafa de vinho tinto à sua frente.
— Vamos precisar de mais vinho.
Sorri e me ofereci para ir
buscar na adega.
Eu cogitara a possibilidade de
levar uma garrafa para o jantar. Não
tinha muita experiência com
comemorações — o dia de Ação de
Graças em Dallas costumava se limitar
aos homens de Joel comendo pizza e
bebendo cerveja enquanto assistiam
beisebol na TV —, mas nos filmes
sempre diziam que não era educado
aparecer para jantar na casa de outra
pessoa com as mãos vazias. Hades,
porém, tinha uma bela coleção de vinhos
na adega de seu apartamento e nada que
eu comprasse para presenteá-lo jamais
chegaria perto daquilo.
Ao passar pela cozinha em
direção à adega, notei como haviam
ingredientes sobre a bancada e uma
panela no fogão. Tudo estava muito em
ordem e, se eu não conhecesse a mania
de organização quase sociopática de
Hades Wrath, nunca adivinharia que um
grande e opulento jantar de Ação de
Graças estava sendo preparado ali. Não
o encontrei na cozinha, entretanto.
Após procurar por alguns
minutos, apanhei da adega um cabernet
sauvignon do século passado — que
provavelmente custava mais do que eu
poderia imaginar — e retornei. Parei,
contudo, antes de sair da cozinha, ao
avistar Hades de costas para mim.
Certamente ele acabara de retornar do
segundo andar. Agora estava postado
entre a cozinha e a sala de jantar,
observando em silêncio. Vestia uma
camisa preta de botões e tinha um pano
de prato sobre seu ombro.
— Procurando por mim? —
perguntei, segurando um sorriso.
Ele se virou lentamente até me
encontrar. Sorriu com o canto da boca.
— Sempre — respondeu e
tomou seu tempo para me medir dos pés
à cabeça.
Engoli em seco quando seus
olhos se arrastaram pelas minhas pernas
cobertas por meia-calça, passando pelo
vestido de decote quadrado cuja barra
terminava no meio das minhas coxas. Eu
vestia um sobretudo preto e aberto, que
me aquecia do frio de fim de novembro.
Desviei o olhar para a bancada
mais próxima, ignorando o fato de que
ele começara a se aproximar. Vi um
prato preto e redondo de porcelana
cheio de tortillas. No centro tinha um
recipiente com guacamole.
— Comida mexicana num dos
feriados mais tradicionais dos Estados
Unidos? Que disruptivo — comentei,
numa tentativa falha de desviar a
atenção. Hades deu um risinho baixo e
continuou a diminuir o espaço entre nós
até estar a um mísero passo de
distância.
Voltei meus olhos para ele,
curiosa sobre suas pretensões. Ele tirou
a garrafa de vinho da minha mão,
colocando-a numa das bancadas e deu a
volta até parar atrás de mim. Prendi a
respiração por um segundo, sentindo
meu corpo aquecer em nervosismo e
antecipação. A mera proximidade com
ele já era o suficiente para me
desestruturar.
Hades, então, afastou meus
cabelos e deslizou lentamente o casaco
pelos meus ombros, retirando-o. Alguns
segundos após ele fazê-lo, finalmente
voltei à realidade e pisquei, me
endireitando.
Sem voltar a fitá-lo, peguei a
garrafa de volta e caminhei a passos
largos para sala de jantar, onde me
sentei numa das cabeceiras, sendo
flanqueada por Nick e Wade.
Decidi que iria ignorar a
familiaridade do apartamento — e de
Hades — pelo resto da noite. Iria
embora logo após o jantar e passaria o
resto do feriado desenhando. Era um
bom plano.
Em meio às conversas
animadas de todos ao meu redor, estendi
minha mão e apanhei um taco de frango
que estava disposto numa das duas
fileiras sobre a bandeja de prata no
centro da mesa. Dei uma mordida
generosa e minha boca foi rapidamente
preenchida por todos os temperos e
sabores. Eu costumava comer da pratos
típicos da culinária mexicana
frequentemente em Dallas, já que era o
favorito de Stephen.
Lembrar do meu ex-namorado
não me transmitia nenhuma boa
lembrança. Em minha cabeça só surgiam
imagens de ele atacando Selina e eu — e
de tudo o que veio depois. A viagem pra
La Cuesta, a morte de Fiona, o
espancamento de Nick. Tudo acontecera
tão rápido. Provavelmente, eu ainda não
tinha processado todos aqueles
acontecimentos.
Quando Hades se aproximou da
mesa trazendo as tortillas e uma grande
tigela de chilli, todos comemoraram.
— É possível alimentar este
prédio inteiro com o tanto de comida
que você fez, Hades — observou
Khalil.
Wrath riu, sentando-se na outra
cabeceira, bem de frente pra mim.
— Como se eu não soubesse
que vocês comem feito rinocerontes —
brincou Hades ao se servir do vinho.
Seu olhar encontrou o meu por um breve
momento antes que eu desviasse.
Quando notei a cadeira vazia
do lado direito de Hades, não remeti
esse fato à ausência de Alec, mas à de
Fiona, porque ela sempre era a alma das
festas. Ela teria gostado de estarmos
todos juntos, rindo e conversando como
uma família. Com certeza iria contar
piadas que nos fariam gargalhar até a
barriga doer.
Eu quase podia enxergar o
orgulho brilhando em seu rosto ao ver
Nick e Hades dividindo a mesma mesa.
A reconciliação dos irmãos Wrath era
tudo o que ela mais queria.
Dei uma lufada de ar, sentindo
meus olhos marejarem. Era impossível
não sentir dor e culpa ao lembrar de
Fiona. Eu sabia que seria assim para
sempre. Não havia como me esquecer
dela.
Um toque caloroso em minha
mão esquerda me despertou, olhei para
o lado e encontrei o rosto de Wade. Ele
tinha a testa franzida.
— Está tudo bem? — perguntou
com sua voz rouca e grave. Assenti com
a cabeça.
— Só estou pensando em
Fiona. Queria que ela estivesse aqui no
meu primeiro jantar de Ação de Graças.
Ele engoliu em seco e seus
ombros caíram.
— Se serve de consolo, acho
que essa também é a primeira vez de
muitos aqui.
Levantei as sobrancelhas em
surpresa.
— Pensei que isso fosse uma
tradição do Pandemônio.
— Não, não. Hades costumava
passar o feriado na casa de Frederik.
Essa é a primeira vez em que nos
reunimos nesta data.
Eu tinha esquecido que tudo era
diferente antes. Hades era apenas um
fantoche de seu pai, sendo obrigado a
comparecer a todos os eventos sociais
com a alta sociedade, fingindo ser
alguém que não era.
— Meu Deus, isso é muito
apimentado — Alina sacudiu as mãos no
ar em desespero após morder um
burrito. Rapidamente, ela entornou por
completo sua taça de vinho.
Segurei a risada, mas Khalil
não obteve sucesso nessa tarefa,
tombando a cabeça para trás ao
gargalhar com a careta que a loira
fizera.
— Isso é comida mexicana, o
que você esperava? — provocou Selina,
tão ácida e arisca como de costume.
Me inclinei sobre a mesa para
colocar um pouco de chilli no meu prato
fundo. Estava delicioso, como todos os
pratos ali. Hades era mesmo um
cozinheiro extraordinário. Mais um
traço para sua lista quase interminável
de habilidades.
— Então, você é uma das
pessoas que nunca tiveram um feriado
em família? — perguntei, voltando-me
para Wade. Percebi que ele era o único
ali que estava bebendo água.
— Na verdade, eu costumava
ter, mas nunca foi como isso aqui. —
Ele se mexeu sobre a cadeira, parecendo
inquieto. Talvez falar sobre o passado o
deixasse desconfortável. Quando me
convenci a não insistir no assunto, Wade
continuou: — Minha família era muito
rígida, meu pai era militar. Tentei seguir
seus passos por um tempo. Servi na
Marinha por três anos, mas logo
descobri que não era aquilo o que eu
queria. Meu pai não ficou nada feliz,
obviamente. Então eu fui embora. Saí
andando sem rumo e terminei aqui, no
Pandemônio.
Eu não sabia muito sobre Wade.
Ele sempre fora tão quieto e reservado.
Era bom conversar com ele.
— Acho que também não era o
que você imaginava que faria, certo?
Wade deu de ombros.
— Foi o único lugar onde
realmente me encontrei.
— Não sente vontade de sair e
ter uma vida comum? — Ele balançou a
cabeça, negando com veemência.
— Isso aqui é o que eu gosto e
sei fazer. Tive uma vida comum por
dezoito anos e é uma cilada. Agora sou
livre, e isso é tudo o que importa pra
mim.
— Presumo que Hades não
gostaria que você fosse embora. Você é
importante para gangue.
Ele sorriu.
— Errada de novo. Pelo menos
cinco vezes por ano Hades implora para
que cada um de nós dê o fora. Ele teme
que tudo acabe mal para o resto do
Pandemônio, mas não se importa de se
ferrar sozinho.
Suspirei, virando meu rosto
para olhar para Hades. Ele estava
entretido numa conversa com Khalil e
Selina. Seu rosto estava leve e
descontraído, como poucas vezes vi.
— É… — concordei. Eu estava
mesmo errada em minhas presunções. —
Algo assim é, sem dúvidas, do feitio
dele.

— Acho que nunca mais vou


comer na vida — Alina murmurou,
jogada na poltrona da sala com os pés e
braços esticados.
Sorri, encostada contra um dos
pilares, olhando para a mesa cheia de
recipientes vazios. Hades não mentiu
quando disse que todos ali comiam
muito. Não sobrara quase nada. Eu
mesma me sentia cheia e satisfeita. Não
me lembrava de já ter comido tão bem
algum dia. Arrastei os pés até o sofá e
deixei meu corpo cair sobre as
almofadas, ao lado de Khalil. Deitei
minha cabeça em seu ombro com um
suspiro.
— Bem, já está tarde e minha
mãe com certeza vai ter uma síncope se
eu não aparecer no jantar dela — Selina
falou, se levantando da mesa. Entre
todos naquele apartamento, ela fora a
que comeu menos. Dissera que
precisava pegar leve, já que teria outra
refeição na residência dos Callow. —
No natal teremos comida árabe. Certo,
Hades?
Ela lançou uma piscadela para
ele, que apenas riu, dobrando os braços
e colocando as mãos atrás da cabeça. As
mangas de sua camisa estavam
arregaçadas na altura do cotovelo,
expondo parte das tatuagens
hipnotizantes em sua pele.
— Te dou uma carona — Wade
se prontificou, se colocando de pé
também.
Segurei um sorriso sugestivo
quando eles se despediram e entraram
no elevador, saindo juntos.
Para alguém tão misterioso,
Wade não era muito bom em disfarçar
seus sentimentos quando olhava para a
ruiva.
— Nesse frio causticante, ao
menos um de nós terá uma noite quente
— Nick falou enquanto atravessava a
sala, fazendo o resto de nós rir.
Ele estava mancando um pouco
também, de modo que nossos olhares o
seguiam atentos para uma possível
queda.
— Acham que há algo entre
eles? — Alina perguntou.
— Eu não ficaria surpreso —
Hades respondeu, dando de ombros.
— Fariam um belo casal —
observei.
Assim que percebi que o
assunto se tratava sobre Selina, a ex de
Nick, direcionei meu olhar para ele. O
moreno estava parado pensativo perto
das escadas, o olhar perdido nas
grandes janelas do outro lado da sala.
Era complicada, e ao mesmo tempo
bela, a maneira como a vida de todos ali
se entrelaçava em uma grande teia.
— Vou me jogar na cama —
anunciou Nick, começando a subir os
degraus. — Os analgésicos me deixam
sonolento pra caralho. Boa noite.
Ele assobiou, chamando
Dodger, que o seguiu escada acima.
Logo ambos desapareceram no segundo
andar, fazendo um silêncio recair sobre
Khalil, Hades, Alina e eu.
Suspirei, deixando minha
cabeça cair para trás sobre o encosto do
sofá. Eu não havia olhado o relógio, mas
apostava que já passavam das onze da
noite. Estava tentada a me despedir e ir
embora também. Mesmo que Alina,
minha carona, quisesse ficar, eu poderia
facilmente chamar um táxi e voltar ao
conforto fácil do meu dormitório.
— Bem, eu tenho uma ideia do
que podemos fazer agora — Hades disse
de repente, se levantando. Ergui as
sobrancelhas para encará-lo. Um sorriso
malicioso enfeitava seus lábios.
— Não sei se vou gostar disso
— rebati, cruzando os braços. — Está
sorrindo de maneira assustadora.
— Está mesmo — concordou
Khalil, franzindo o cenho ao meu lado.
O sorriso só aumentou no rosto
de Hades, até ele se endireitar e
proclamar:
— Strip Poker.
E eu estou com essa coisa na
minha cabeça
Me perguntando se eu desviei
de uma bala
Ou se acabei de perder o amor
da minha vida
Eu te dei algo
Mas você não me deu nada
O que está acontecendo
comigo?
Eu te vejo em todos os rostos
vazios na multidão
I Don't Wanna Live Forever
- ZAYN, Taylor Swift

Quase engasguei diante daquelas


duas palavras.
— Diga que você está brincando
— pedi, ainda sem acreditar que ele
estava mesmo propondo que dois casais
de ex-namorados ficassem pelados na
noite de Ação de Graças.
Hades levantou uma
sobrancelha, os olhos profundos
conectados diretamente aos meus.
— Não está com medo, está,
amor? Afinal, não há nada em você que
eu já não tenha visto... — falou em tom
desafiador, tombando a cabeça
levemente para o lado. — Ou lambido.
Alina reprimiu um grunhido de
choque, batendo os dedos contra os
lábios. Seus olhos estavam arregalados
enquanto ela assistia à cena
atentamente.
Eu deveria ter ficado ultrajada
ou, no mínimo, envergonhada. Em vez
disso, porém, me senti provocada. Eu
não o deixaria pensar que algo bobo e
juvenil como Strip Poker me assustava.
Me levantei também, fazendo
questão de levantar o queixo para
provar que não estava nem um pouco
intimidada.
— Tudo bem — concordei, mas
ele não ficou surpreso. — Vamos jogar.
Nos agrupamos ao redor da
mesa de centro na sala e Hades
distribuiu cinco cartas para cada um.
Concordamos que todos iniciariam com
quatro peças de roupa —contando com
os sapatos e as peças íntimas. Alina teve
que tirar o cardigã e os sapatos para
alcançar a quantidade. Wrath pegou uma
garrafa de rum e alguns copos de shots,
não que ele precisasse de álcool para
ficar desinibido.
— Não vamos jogar Texas
Hold’em porque seria muito longo —
explicou Hades, sentando do outro lado
da mesinha redonda, de frente para mim,
com um dos joelhos dobrados. — Poker
Draw é perfeito para a ocasião. Cinco
cartas para cada e uma troca.
Eu estava familiarizada com
pôquer fechado. Era a modalidade mais
simples e recomendada para iniciantes.
Assim, quando as apostas começaram,
eu estava confiante. Enquanto os três
apostaram apenas uma peça de roupa, eu
apostei duas.
— Raven! — repreendeu Alina,
arregalando os olhos para mim.
Eu, porém, carregava um
sorriso convencido ao encarar Hades.
Estava sedenta para derrotá-lo. Ele
apenas riu baixinho e distribuiu as cartas
para cada um.
Contive um grunhido ao
perceber que tinha uma péssima mão de
cartas. Mordi o lábio inferior e levantei
o olhar para checar os outros. Não pude
decifrar as feições em seus rostos,
principalmente o de Hades, que
apresentava um semblante
impenetrável.
Quando chegou o momento de
fazermos a troca, Hades passou a sua
vez, decidindo que não queria descartar
nenhuma carta de sua mão — o que, sem
dúvidas, era um péssimo sinal para mim.
Alina trocou duas de suas cartas e
Khalil, uma. Eu descartei três e peguei
novas no monte. Consegui formar dois
pares, o que, nem de longe, era uma boa
mão.
Na hora de mostrarmos nossas
cartas, bufei frustrada ao perceber que
tinha a pior combinação de cartas,
enquanto Hades tinha a maior: um flush
— cinco cartas do mesmo naipe de
copas.
— Pode começar a ficar nua,
amor.
Hades pareceu muito satisfeito
ao dizer aquelas palavras e sua postura
arrogante só me deixou mais irritada.
Trinquei o maxilar e me
coloquei de pé, tirando os sapatos de
camurça e deslizando a meia-calça preta
lentamente pelas minhas pernas, sem
tirar meus olhos de Hades.
Se eu iria perder, então ao
menos garantiria que ele sofresse com
isso. Alcancei meu objetivo, porque a
atenção de Wrath estava presa nas
minhas pernas. Seu rosto agora estava
muito sério e os ombros, tensos. Quando
terminei, voltei a me sentar no chão
como se nada tivesse acontecido. Hades
permaneceu parado por um segundo.
— Podemos continuar? —
perguntei, despertando-o de seu transe.
Ele pigarreou e se apressou em recolher
as cartas para embaralhá-las.
Khalil riu, evidenciando que a
reação de seu amigo não passara
despercebida.
A próxima rodada foi um pouco
melhor para mim, de modo que a pior
mão ficou com K, que começou tirando
um sapato. Ele trocou um olhar
sugestivo com Alina, que ficou vermelha
na hora.
Servi quatro shots de rum, que
viramos rapidamente. Mal senti o álcool
descer queimando em minha garganta,
estava completamente tomada pela
adrenalina. Além disso, o escrutínio
constante de Hades já estava me
deixando alta por si só.
Ele nunca perdia uma rodada,
permanecendo vestido enquanto o resto
de nós perdia cada uma de suas peças de
roupa. Depois de algum tempo, precisei
tirar meu vestido. K não estava olhando,
provavelmente porque sua atenção nunca
se desviava de Alina. A loira já estava
sem saia, abraçando suas pernas pálidas
cruzadas.
Estava frio lá fora, mas eu não
podia estar mais quente. Meu corpo
inteiro parecia queimar enquanto os
olhos de Hades acompanhavam meus
movimentos ao descer o zíper lateral do
vestido, abaixar suas alças pelos meus
braços e deixar o tecido cair sobre meus
pés.
Ele não teve pudor algum ao
analisar meu corpo vestido apenas com
um conjunto de lingerie preta. Não senti
nenhum instinto de me proteger de seu
olhar, queria puni-lo com isso. Por outro
lado, parecia que nós dois estávamos
sofrendo o efeito daquela provocação.
Era como se houvesse apenas
nós dois ali. A familiaridade de seus
olhos e aquela expressão em seu rosto
estavam me matando. Eu respirava de
maneira sôfrega e quase podia sentir dor
física em permanecer tão longe de
Hades quando só queria me aproximar e
implorar para que ele me tocasse.
Engoli em seco, sentindo meu
coração martelar tão firme dentro de
mim que eu não me surpreenderia se ele
apenas rasgasse meu peito e saísse de
lá, saltando na direção de Wrath.
— Eu preciso ir ao banheiro —
interrompi o jogo repentinamente,
incapaz de continuar naquela sala.
Me retirei bem rápido, indo
direto para as escadas e subindo os
degraus de dois em dois.
Meus passos me levaram até o
banheiro do quarto de Hades e eu mal
olhei ao redor até chegar na bancada da
suíte, abrindo a torneira e deixando a
água corrente cair fria em minhas mãos.
Após algum tempo, girei o registro e
água cessou. Levei meus dedos
molhados até minha nuca, suspirando.
Era difícil ficar tão perto de Hades
naquele apartamento sem me lembrar de
como tudo costumava ser intenso e
incandescente entre nós.
Ao levantar a cabeça para me
olhar no espelho, percebi que a
maquiagem estava basicamente intocada.
O batom vermelho só desbotara um
pouco em meus lábios e delineador fino
em minha pálpebra permanecia intacto,
destacando o tom claríssimo das minhas
íris. Minhas bochechas estavam
naturalmente avermelhadas,
provavelmente devido à excitação que
me corroía naquele momento.
Foi então que, através do
reflexo, vi Hades parado a poucos
metros de distância, perto da porta
entreaberta do quarto. Tomei um susto
ao notar sua presença, me virando de
maneira brusca.
Ele tinha os braços cruzados
sobre o peito e me fitava fixa e
intensamente. Retribuí seu olhar em
silêncio, entreabrindo os lábios para
facilitar minha respiração.
— O que você está fazendo
aqui? — perguntei, levantando uma
sobrancelha. Hades se desencostou da
parede e andou até mim.
— Que eu me lembre, esse
ainda é o meu quarto.
Passei a língua pelos lábios e
me endireitei.
Eu fora, instintivamente, para
seu quarto, sem nem pensar em como
aquilo poderia ser esquisito.
— É, eu… — pigarreei,
desconfortável. — Velhos hábitos. —
Ele continuou me encarando com os
olhos estreitos e o cenho franzido.
Cruzei as mãos na frente do corpo. — É
melhor eu ir embora.
Mas, antes que eu pudesse sair
do quarto, passos soaram no corredor,
acompanhados de uma risada baixinha
que eu sabia que pertencia à Alina.
Khalil, em resposta, fez um sonoro
“shh” e, em seguida, ouvi o som de uma
porta se fechando.
Dei um suspiro alto.
— Acho que sua carona vai
prolongar a noite no quarto do K —
Hades comentou, achando graça. —
Você pode ficar aqui. Te ofereceria o
quarto de hóspedes, mas meu irmão está
ficando lá. E tenho certeza de que você
preferiria morrer a dormir na cama de
Alec. — Fiz uma careta só de pensar na
possibilidade e Hades riu. — Fica com
o meu quarto, eu posso dormir no sofá.
Não é como se o seu cheiro já não
estivesse impregnado na minha cama, de
qualquer jeito.
Inclinei a cabeça, não
conseguindo evitar pensar nas coisas
que costumávamos fazer por cima
daqueles lençóis caros.
— Aposto que isso não está
facilitando as coisas pra você —
respondi com sarcasmo, mas Wrath
permaneceu sério ao parar à minha
frente, a poucos centímetros de
distância.
— Você não faz ideia.
— Anda sonhando comigo,
Hades Wrath? — provoquei, me
divertindo com sua inquietação.
— Toda maldita noite.
Sorri, satisfeita. Era bom que
ele passasse os próximos meses se
arrependendo amargamente de ter me
perdido.
— Deve estar sendo difícil.
— É a porra de uma tortura.
— Bom.
Ele sorriu com o canto da boca,
atraindo meu olhar diretamente para lá.
Respirei fundo, aspirando seu perfume,
e senti o desejo acender no fundo da
minha garganta.
Afastando todo os pensamentos
racionais da minha mente, me coloquei
na ponta dos pés para alcançar a altura
de seu rosto. Levei minha mão até sua
nuca e deslizei a ponta dos meus dedos
sobre sua pele, que estava menos gelada
do que o usual.
Ele ficou extremamente parado
enquanto eu o estudava minuciosamente,
aproximando meu nariz do seu. Sua
respiração era quente e descompassada
contra meu rosto. Estávamos
perigosamente perto um do outro e eu
sabia que nada de bom resultaria
daquilo, mas talvez aquele fosse o
encerramento que ambos precisávamos.
Hades, a princípio, não se
mexeu quando encostei minha boca
levemente sobre a dele, mas, assim que
minha língua tocou seu lábio inferior, ele
perdeu todo o controle que parecia estar
tentando manter até o momento. Me
puxou pela cintura, fazendo meu corpo
colidir contra a grande estrutura de
músculos que o formava. Ele tinha gosto
de rum e nicotina, familiar demais para
o meu próprio bem.
Eu não pude parar, porém.
Me agarrei a Hades como se
fosse a última vez — porque,
provavelmente, era.
Seu braço estava ao redor do
meu quadril, me mantendo pressionada
contra ele. Estávamos emaranhados um
no outro.
Naquele instante, Hades e eu
éramos dois viciados dando adeus aos
tempos de sobriedade. Caímos na mais
bela e trágica tentação.
Sem fazer esforço, ele me
carregou para a bancada do banheiro,
colocando-me sentada em cima dela.
Enganchei minhas pernas ao seu redor,
pressionando nossas pélvis. Sentir o
volume rígido de Hades contra minha
intimidade me fez arfar em seus lábios.
Suas mãos estavam por toda parte, eu
me sentia completamente envolvida por
seu toque, seu cheiro, seu gosto... Ele
dedilhou a lateral do meu corpo até a
barra da minha calcinha de renda.
Tombei a cabeça para trás
quando seus beijos desceram para o meu
pescoço. Meus dentes afundaram em
meu lábio com força quando senti seu
toque se aproximar cada vez mais do
espaço entre minhas pernas. Sua mão se
infiltrou sob o tecido da calcinha e
encontrou o núcleo úmido e quente, que
pulsava e implorava por atenção.
Hades girou um dedo sobre
meu clitóris ao mesmo tempo em que
deu uma leve mordiscada na pele do
meu ombro. Gemi alto, fechando os
olhos e segurando ainda mais forte nele,
puxando-o em minha direção.
Wrath me masturbou sem pressa
e com delicadeza, me atiçando como
fogo. Eu odiava como ele conhecia cada
canto do meu corpo. Sabia exatamente o
que precisava fazer para me desmontar
por completo. Ele conhecia muito bem
os locais que eu amava que ele tocasse,
beijasse ou mordesse.
Ele não dizia nada, apenas me
olhava com fome e luxúria, admirando
enquanto eu revirava os olhos com o
prazer crescente que ele estava me
proporcionando.
Minha mente se esvaziou por
completo. Naquele instante não havia
mais nada que me atormentasse. Eu
estava à deriva.
Foi então que a outra mão de
Hades saiu da minha coxa e foi até meu
seio, deslizando por baixo do fino bojo
preto rendado e beliscando um mamilo.
Abafei um grito, apoiando minhas mãos
na bancada fria sob mim e inclinando
minhas costas para trás. Lhe dei mais
espaço para que pudesse fazer comigo o
que bem quisesse. Eu só queria libertar
aquela pressão crescente em meu
ventre.
Não demorou muito mais.
Hades começou a aumentar o ritmo em
que seus dedos massageavam meu
clitóris. Ele abaixou meu sutiã, expondo
meu seio por um breve momento antes
que ele se debruçasse sobre mim e o
abocanhasse. Me contorci sobre sua
mão, me sentindo cada vez mais quente.
Alcancei o ápice quando ele
mordeu meu mamilo. Vi estrelas atrás
das pálpebras e um gemido rasgou pela
minha garganta quando os espasmos
percorreram meu corpo.
Suspirei, sentindo meus
músculos relaxarem um a um. Suor
rolava pelo meu colo enquanto eu
tentava normalizar o ritmo da minha
respiração.
Quando abri os olhos
novamente, vi Hades parado me fitando.
Os pensamentos racionais e sensatos
voltaram para minha cabeça e eu engoli
em seco a realidade dura que estava
prestes a enfrentar.
Deixei minhas pernas caírem
para longe dele e coloquei meu sutiã de
volta no lugar. Quando Hades deu alguns
passos para trás, saltei da bancada. O
prazer efêmero sumiu bem rápido e tudo
o que restou foi a culpa. Me senti
péssima.
— Não podemos continuar
fazendo isso — falei decididamente, por
mais difícil que foi pronunciar aquelas
palavras.
Hades colocou as mãos nos
bolsos e anuiu com a cabeça.
— Eu sei, amor.
Respirei fundo e reuni toda a
minha força para colocar de vez um
ponto final naquilo. Minha história com
Hades estava acabada, mas nós dois
éramos claramente incapazes de
permanecer afastado um do outro, o que
só acabava nos magoando ainda mais.
Andei descalça sobre o piso
gelado até a porta e saí daquele quarto
sem olhar para trás.
Não existia nenhum lugar no
mundo no qual eu estaria distante o
suficiente dos meus sentimentos por
Hades, mas Nova York já seria um
começo.
Eu vi sua alma crescer como
uma rosa
Fez isto através de todos os
espinhos
De menina à mulher que eu
conheço
E está me matando dizer que
eu estou bem
Quando eu realmente quero
dizer que
Você é tudo para mim e mais
Tudo o que eu sei foi você que
me ensinou
Eu deveria ir embora, pois
você merece melhor
Breathe - LAUV

O movimento do bar do
Pandemônio estava diminuindo
gradativamente, o que era
compreensível, já que o período de
provas finais do semestre começara e
logo os universitários estariam saindo
de Carmine para o recesso de fim de
ano. Os clientes do cassino voltaram
como cãezinhos arrependidos após
perderem muito dinheiro com os
Daggers. Ao menos algo bom após a
última sequência de desgraças.
Enquanto bebia uísque sentado
diante do balcão do meu bar eu me
sentia nostálgico. David Bowie tocava
baixinho nas caixas de som e a música
era reconfortante. Khalil estava à minha
frente, do outro lado do balcão, abrindo
uma cerveja para si mesmo. Fechamos o
Pandemônio mais cedo e, uma vez que o
cassino não abria às segundas-feiras,
tudo estava tranquilo.
Eu, por outro lado, estava
inquieto e contemplativo. Meu amigo
não parecia muito diferente de mim,
embora estivesse mais relaxado nos
últimos dias.
Estava sendo difícil focar
completamente no trabalho e esquecer
todo o resto, mas era o que eu precisava
fazer, porque se eu parasse e realmente
tentasse enfrentar a morte de Fiona e o
término com Raven, iria desmoronar.
Acho que me tornaria um bêbado
patético como meu pai, me afogando em
bourbon e deixando minha própria
consciência me torturar pelo resto da
minha vida.
— Alina me contou uma coisa
ontem — K quebrou nosso silêncio após
beber um gole de sua long neck.
Terminei o resto do conteúdo em meu
copo e ergui o olhar para ele.
Ele não me contara o que
estava acontecendo entre ele e Alina,
mas, desde o feriado na semana passada,
eles pareciam completamente loucos um
pelo outro novamente. Não sabia se era
uma boa ideia, mas também não iria
interferir. Ele gostava muito daquela
garota e ficava feliz ao seu lado. Ele
merecia aquilo, depois de tudo.
— O quê? — perguntei, sem
muito interesse.
— Raven recebeu uma
proposta para ir estudar artes em Nova
York.
Assim que Khalil me disse o
nome dela, capturou completamente
minha atenção. Meus ombros ficaram
tensos quando paralisei.
— Ela aceitou?
— Sim. Vai fazer uma
entrevista semana que vem.
Levantei as sobrancelhas,
surpreso.
— Isso é…
Eu não terminei a frase, apenas
sorri.
Me senti orgulhoso.
Raven era, obviamente, uma
artista muito talentosa, que nunca antes
teve reconhecimento. Finalmente,
haviam a notado. Ela merecia aquilo,
mais do que qualquer um. Seria sua
chance de recomeço, afinal. Um
recomeço bem longe de mim. Com
certeza isso era tudo o que Raven mais
queria — principalmente após o que
acontecera entre nós no feriado.
Eu não pude resistir ao vê-la
seminua parada no meio do meu quarto.
Aquele batom vermelho, as longas ondas
dos cabelos mais escuros que já vi
caindo ao redor de seus ombros… tudo
me atingira da maneira mais brutal
possível.
As memórias voltaram com
tudo. Lembranças daquelas poucas
semanas de paz que tivemos após voltar
de Vegas, com Raven abandonando seu
quartinho no alojamento para passar a
maioria das noites enrolada em meu
corpo nos lençóis da minha cama.
Memórias da época em que
Raven Clarke ainda sorria para mim e,
com isso, fazia eu me sentir como se não
fosse apenas um canalha vil e
miserável.
Meu corpo se arrepiou diante
da imagem de seu sorriso e senti um
aperto crescente em meu peito. Agora
deveria encarar o fato de que nunca mais
teria aquilo.
— Acho que vou precisar de
mais uísque pra digerir isso — anunciei,
com um suspiro. K deu um sorriso fraco,
mas compreensivo, e me serviu outra
dose.
— Sinto muito, cara — falou,
tentando me reconfortar.
Doía a ideia de ficar longe de
Raven, mas aquela era a minha sentença
e eu deveria passar o resto da minha
vida me arrependendo por ter estragado
tudo. Além disso, não podia me sentir
menos do que imensamente feliz por
ela.
O nosso encerramento seria
apenas o início para Raven.
Aquilo era muito melhor do que
a ideia de perdê-la da mesma forma que
perdi Fiona. Era reconfortante saber que
a mulher que eu amava estaria, em
breve, segura do submundo. Segura de
mim. Eu poderia viver com aquilo, mas
nunca poderia superar se algo ruim
acontecesse com ela. Apenas aquela
ideia parecia me ferir como metal em
brasa contra minha pele.
De fato, eu preferia morrer
dolorosamente do que ver Raven ferida.
— Vou sentir falta dela —
confessei, franzindo a testa e encarando
a madeira velha e gasta do balcão sob
minhas mãos.
— Eu sei disso, também vou
sentir. Nosso grupo está diminuindo,
huh?
Balancei a cabeça.
— Não tem chance alguma de
eu recrutar novos membros para o
Pandemônio. Fiona e Raven são
insubstituíveis.
— Nunca passou pela sua
cabeça, Hades? — Khalil ficou ainda
mais sério.
— O quê?
— Parar. Abandonar o
Pandemônio.
Eu pensara sobre isso na noite
em que Raven voltara de La Cuesta,
após matar seu padrasto. Eu não dormira
muito naquela madrugada, porque
poucas coisas me abalavam tanto quanto
as lágrimas de Raven. Eu pensara em
deixar tudo nas mãos dos nossos amigos.
Sabia que eles eram mais do que
capazes de tocar o Pandemônio pra
frente se eu me aposentasse. E eu faria
aquilo por ela sem pensar duas vezes.
Raven jamais me pediria para
abandonar, mas eu faria mesmo assim
pelo bem dela.
O Pandemônio não fora
inicialmente minha escolha, mas se
tornara isso com o passar do tempo.
Porque meus amigos e eu tornamos
aquilo em algo bom. Éramos a ordem no
caos. Naquela cidade, os criminosos
jogavam conforme as minhas regras.
Sem o Pandemônio, uma onda de crimes
hediondos iniciaria e a polícia jamais
seria capaz de conter isso.
Éramos um mal necessário.
— Não posso — respondi,
dando de ombro. — Sem nós, tudo isso
vai colapsar.
Khalil ficou em silêncio,
porque ele sabia que era verdade.
Carmine precisava do Pandemônio.
O tilintar do sino acima da
porta do bar interrompeu meus
pensamentos e eu me virei para olhar
quem estava entrando. Era uma mulher
alta, de meia idade e com cabelos
cacheados. Seu rosto me pareceu
familiar, mas eu não a conhecia.
— O bar está fechado — Khalil
informou.
— Estou procurando por Hades
Wrath — anunciou a mulher.
Franzi o cenho.
— Sou eu. — Desci do banco e
fui até ela.
A analisei brevemente.
Ela se vestia de maneira
elegante, com roupa social, e tinha uma
postura séria e profissional. Pensei, por
um instante, que ela pudesse trabalhar
nas empresas Wrath.
— Meu nome é Emily Turn. —
Ela estendeu a mão e, apesar de
relutante, a cumprimentei.
— Eu a conheço?
— Ainda não. — Emily se
endireitou. — Acabo de comprar a
galeria de artes da sua mãe. Ou o que
restou dela, pelo menos.
Minhas sobrancelhas se
ergueram em surpresa.
— Meu pai vendeu a galeria?
— Sim — assentiu, ainda
mantendo a seriedade. — Por uma
ninharia, inclusive.
Eu não estava por dentro dos
planos do meu pai, não desde que
discutimos em seu escritório e ele
impedira minha entrada na propriedade.
Para todos os efeitos, eu não era mais
seu filho.
No entanto, saber que ele
vendera a galeria da minha mãe para
alguém em vez de simplesmente destruí-
la me tranquilizou um pouco. Haveria
uma chance, mesmo que mínima, de que
ela fosse colocada em pé novamente.
— Eu vou reconstruir tudo —
continuou Emily, me surpreendendo
novamente. — Era uma grande fã do
trabalho de Evelyn e ela não merece que
seu legado seja esquecido.
Não consegui dizer nada por
um instante. Estava grato e emocionado
ao lembrar de Eve. Ver sua segunda casa
se transformar em cinzas me destruíra.
Realmente acreditei que a galeria
estivesse perdida para sempre.
Eu nem sequer sabia quem era
aquela mulher e talvez não devesse
confiar em sua palavra. Me incomodava
que a última esperança para a galeria
estivesse nas mãos de uma estranha.
Contudo, eu não tinha, naquele momento,
dinheiro o suficiente para reconstruir
todo aquele lugar e nem saberia o que
fazer se o tivesse.
— Esta é uma ótima notícia,
mas ainda não sei quem é você.
Cruzei os braços e estreitei
meus olhos para ela, não podendo evitar
a desconfiança.
— Sou uma grande apreciadora
de arte, trabalhei por dez anos no Museu
Metropolitano de Arte. Conheci sua
namorada na exposição das obras dela.
Ela me disse que talvez eu pudesse
comprar a galeria de Evelyn.
Raven nunca mencionara
aquilo. Não sabia, na verdade, se
houvera tempo para isso. Tudo
desmoronara tão rápido desde que
voltamos de Las Vegas — inclusive
nosso relacionamento.
E agora eu descobria que ela
provavelmente salvara uma das coisas
mais importantes para mim.
Olhei por sobre o ombro na
direção de Khalil. Ele estava tão sem
palavras quanto eu, com as mãos
apoiadas sobre o balcão de madeira e o
olhar atento em Emily e eu. Ao me
voltar novamente para ela, pigarreei.
— Essa galeria é a única coisa
que restou da minha mãe.
— Eu sei, é por isso que vim
aqui te dizer que você poderá interferir
e participar do processo de reconstrução
dela. Você conhecia Evelyn melhor do
que ninguém, afinal.
— Por que está fazendo isso?
Eu não podia evitar a
desconfiança. Sendo o rei do submundo
do crime, eu havia aprendido algumas
coisas. A primeira delas: não acreditar
em estranhos muito bem intencionados.
Na maioria das vezes eles estavam
apenas esperando a hora certa para
cravar um punhal em suas costas.
Emily não se ofendeu com meu
receio.
— Aquela galeria era um
famoso ponto turístico na cidade. Além
de desejar manter o legado de Evelyn,
sei que esse é um ótimo negócio. Vai ser
lucrativo para todos nós. — Ela cruzou
as mãos atrás das costas e se endireitou.
— Conheço sua fama, Wrath. E, estando
há tanto tempo no ramo do negócio da
arte, sei bem como ele pode gerar
dinheiro da forma errada. Falsificação,
contrabando, etc. Mas eu não gosto
disso. Quero saber se posso contar com
você para garantir que nada aconteça à
nossa galeria.
Respirei fundo antes de anuir
com a cabeça.
— Temos um acordo, então.

Girei a caneca de café


fumegante em minhas mãos, olhando
através da grande janela ao meu lado na
cafeteria. A rua estava vazia,
provavelmente devido ao céu cinza-
chumbo cheio de nuvens carregadas e
prontas para dar início a uma terrível
tempestade. Era apenas questão de
tempo para a chuva e os relâmpagos
começarem. Eu esperava já estar em
casa quando isso acontecesse, mas, por
ora, precisava resolver algo.
Zora não parecia nada feliz ao
entrar na cafeteria. Tinha a cara
amarrada enquanto olhava ao redor, me
procurando. Quando encontrou, marchou
na minha direção e se jogou na cadeira
da frente.
— Quanta graça e delicadeza
— provoquei, com ironia. Zora revirou
os olhos.
— Não enche, garoto. Lembre-
se que eu troquei suas fraldas.
Ri alto, me recostando contra a
poltrona. Zora retirou o gorro que cobria
sua cabeça e colocou as mãos sobre a
mesa de madeira entre nós.
Em todos os raros momentos
em que me lembrava de ver minha mãe
feliz, Zora estava por perto. Ela fazia
bem à Eve e a ajudava a cuidar de mim
e Nick, enquanto meu pai desprezava
proximidade com crianças, preferindo
tomar conhaque e fumar charuto em seu
escritório com os sócios das empresas.
Frederik nunca esteve presente —
exceto quando aparecia para nos punir
por algo que o desagradava. E quando
minha mãe morrera, ele garantiu que
Zora ficasse longe de nós.
Então, Nick e eu ficamos
completamente sozinhos, isolados de
qualquer coisa boa que nos transmitisse
esperança. Foram anos difíceis.
E depois, quando Zora
descobrira sobre os Daggers e o
Pandemônio — e a relação íntima que
Nick e eu tínhamos com cada um,
respectivamente —, quis se manter
distante por conta própria.
— Diga logo porque quis me
encontrar antes de uma tempestade dos
infernos.
Não fiz rodeios.
— Preciso de sua ajuda.
— É claro que precisa. O que
seria de você sem mim, afinal?
Ri, me sentindo acalentado por
estar perto dela. Zora me lembrava dos
únicos bons momentos da minha infância
e fazia eu me sentir mais próximo da
minha mãe.
— Frederik é um manipulador.
Fez minha mãe pensar que ele a amava,
então usou isso para afastá-la de sua
família e amigos. A isolou naquela casa,
mantendo-a como uma prisioneira, e
drenou a vida dela. Sua energia, sua
personalidade, tudo se esvaiu.
Zora se remexeu na cadeira,
demonstrando extremo desconforto. Eu
sabia que ela não gostava de lembrar de
Eve, nem de pensar em como minha mãe
sofrera por anos a fio nas mãos do meu
pai.
— Onde você quer chegar,
Hades?
— Ele está fazendo isso de
novo com outra mulher.
Ela franziu o cenho.
— Aquela nova esposa dele?
Vi algo na internet a respeito.
— Eles ainda não são casados,
mas é ela, sim.
— Amanda, não é?
Engoli em seco.
— Bem, na verdade o nome
dela é Astrid. Ela é mãe da Raven.
Zora arregalou os olhos,
realmente surpresa.
— Frederik está machucando-
a?
— Acho que fisicamente não,
mas sabemos que o modus operandi
dele é outro.
— O que quer que eu faça,
exatamente?
— Não sei, só… ser amiga
dela, talvez? Astrid precisa de alguém
para ajudá-la quando Frederik sair de
cena. — Zora ergueu as finas
sobrancelhas. — Não é sua obrigação
fazer isso e pode negar, se quiser.
— O que vai acontecer ao
Frederik?
— Ele vai ser preso. Astrid me
ajudou a incriminá-lo. O FBI está na
cola dele agora, não tem como meu pai
se safar dessa vez.
— Ele deveria morrer —
discordou ela, entredentes. Talvez ela
estivesse certa. Mas, apesar de tudo, eu
não teria coragem de matá-lo ou
encomendar sua morte.
— Eu sei.
— Posso fazer isso pela Astrid,
fazer por ela o que não pude fazer por
Evelyn.
— Obrigado, Zora, de
verdade.
Ela balançou a cabeça e cruzou
os braços, desviando o olhar para a
janela.
Minha atenção se voltou para a
porta quando a segunda pessoa com
quem eu queria conversar naquela tarde
chegou. Meus ombros ficaram rígidos e
tensos enquanto meus olhos seguiam os
movimentos do agente Doakes. Ele
pisou duro até a minha mesa, com seu
usual ar de superioridade e arrogância.
Zora rapidamente notou a
presença dele e me olhou apreensiva.
Acenei de maneira breve para ela, que
se levantou e juntou suas coisas.
— A gente se vê, Zora — me
despedi. Ela encarou Doakes com
desconfiança por um instante antes de
me cumprimentar e sair. Seu assento foi
ocupado por Doakes no mesmo instante.
Apanhei meu celular por um
segundo, fingindo que estava checando o
horário, e iniciei o gravador.
— Está bem adiantado —
comentei, num tom cheio de falsa
casualidade.
— Gosto de honrar meus
compromissos — respondeu ele,
cruzando as mãos sobre a mesa e
entrelaçando os dedos. Seus cabelos
grisalhos estavam brilhantes de gel e ele
estava de terno, como sempre. —
Prevejo que você irá me propor um
acordo enquanto implora por
misericórdia?
Gargalhei.
Eu preferiria enfiar agulhas em
meus olhos a implorar para o maldito
Doakes.
— Claramente você não me
conhece — rebati, ainda sorrindo. —
Sua parceria com Connor não vai te
levar a lugar nenhum e imagino que, à
essa altura, você já tenha percebido
isso. Ele perdeu dinheiro e
credibilidade e, nesse exato momento,
deve estar juntando suas migalhas para
tentar me dar o troco. Estou aqui para te
oferecer uma chance de não cair junto
com ele. Meu pai está prestes a ser
preso e você vai levar todos os créditos
por destruir o grande Frederik Wrath
quando nós dois sabemos que foi a
agente Strauss quem liderou as
investigações contra ele.
— Isso é…
— Eu não terminei —
interrompi, levantando o tom de voz.
Quando Doakes se calou, continuei. —
Você pode entregar Connor agora,
terminar a operação contra Frederik, e
voltar para Washington com honra, ou
pode continuar com seu plano estúpido.
Mas aí eu juro que não vou parar até
expor todos os seus crimes. Você vai
perder sua vida, sua carreira, e passará
a velhice numa cela minúscula em vez
de curtir uma bela aposentadoria no
Havaí. Então, o que vai ser?
Doakes deu um profundo e
audível suspiro, mantendo o rosto
tranquilo e inabalado. Ele realmente
achava que tinha o controle da situação.
Aquilo me irritava demais.
— Sabe, Wrath, quando você
me ligou eu estava disposto a te ouvir,
disposto até mesmo a considerar seu
acordo. Mas você se equivocou demais
ao achar que eu ficaria aqui sentado
ouvindo e aceitando pacificamente suas
ameaças.
Balancei a cabeça.
Doakes tinha a personalidade
muito instável e hostil. Eu já sabia que
ele não aceitaria qualquer acordo que
viesse de mim. Não era isso o que eu
realmente buscava com aquela
conversa.
— Você tem o teto de vidro,
agente. Um muito fino e frágil, devo
acrescentar. Se você está ajudando um
mafioso conhecido, então acho que já
fez isso antes. Corrupção vicia, não é? É
apenas questão de tempo para que eu
consiga provas dos seus crimes.
— Eu consigo provar os seus
crimes muito antes de você sequer
chegar perto de expor os meus. Não
tente me desafiar, Wrath. Se o meu teto é
de vidro, o seu nem existe mais. Todos
nessa cidade são testemunhas dos atos
ilícitos cometidos por sua gangue. Não
duvide que eu farei de tudo pra acabar
com você, e não me importo de quantas
pessoas serão punidas no caminho para
isso. Cada um dos seus amigos vai
sofrer, um por um, por sua causa. O
Pandemônio está condenado. Se Connor
não fizer isso com as próprias mãos, eu
farei.
Trinquei o maxilar. Eu odiava
ser ameaçado, mas eu odiava muito mais
quando ameaçavam meus amigos. Já
sabia que Doakes desenvolvera um
desprezo pessoal contra mim, porque eu
o irritara. Ele queria me punir e para
isso acabaria com todos os outros
integrantes do Pandemônio. Não podia
deixar isso acontecer. Se, no fim das
contas, eu precisasse me entregar ao FBI
para proteger o Pandemônio, eu o faria.
Faria isso mesmo sabendo que seria
minha ruína.
Minha lista de crimes era
extensa e eu pegaria trinta anos de
prisão, no mínimo.
Assisti em silêncio enquanto
Doakes se levantava, fechando o paletó.
Ele me olhou de cima, como se eu fosse
um inseto prestes a ser esmagado pela
sola vermelha de seu sapato de couro.
— Como sempre, foi um
desprazer conversar com você. — Ele
fez menção de sair, mas logo se deteve,
como se tivesse lembrado de algo, e
voltou a me fitar. — Ah, eu sugiro que
comece a rezar para que Connor destrua
vocês primeiro. A prisão não é nada
fácil, ainda mais para um rostinho jovem
e charmoso como o seu.
Em seguida, o agente saiu
andando tranquilamente. Respirei fundo
antes de parar a gravação em meu
celular. A enviei por e-mail e me
levantei. Deixei o dinheiro do café
sobre a mesa e saí do estabelecimento.
O ar gelado de fim de novembro me
atingiu em cheio enquanto eu fazia o
caminho para onde meu carro estava
estacionado.
Assim que me sentei no banco
de couro do Camaro, meu celular
começou a tocar. Era a agente Strauss,
como eu previa.
— Ouviu a gravação? —
perguntei, assim que atendi.
— Ouvi, sim, Hades.
— E então?
— Não há muito o que fazer
com isso. Doakes não confessou nada e
sem dúvidas conseguiria fazer esse
áudio sumir facilmente. Ele tem
contatos. Sua reputação é imaculada.
Eu desconfiava que ele estava
envolvido com ilícitos, e tenho certeza
que outros no FBI também acham isso,
mas provar vai ser muito difícil. E pelo
conteúdo da conversa que tiveram,
acho que você não tem muito tempo
para isso. Ele vai conseguir te prender
antes. Não só você, aliás.
Cocei a nuca, me sentindo
nervoso e ansioso. Parecia que não
havia saída alguma.
— Não há nada que eu possa
fazer, então?
— Bem, tem algo, mas você
não vai gostar.
Me endireitei, olhando para a
rua através do vidro do para-brisa. Não
havia dúvida nenhuma em mim quando
concordei.
— Faço qualquer coisa.
Mentir e dizer a mim mesmo
que posso
Fazer isso sozinho é solitário
Então, estenda a mão para
mim
Eu estou no subterrâneo
profundo
Eu não posso cavar minha
saída
Eu vou afogar
Sem você
Rescue My Heart - Liz
Longley

Levantei o olhar do estudo de


desenho que estava fazendo no meu
caderno e fitei Libby quando ela
quebrou o silêncio entre nós e, sem tirar
os olhos do livro em suas mãos, falou:
— Vou sentir falta de ficar em
silêncio com você.
Minha colega de quarto tinha
óculos de armação grossa empoleirados
no nariz. As compridas tranças cor-de-
rosa de seus cabelos estavam
amontoadas num coque no topo da
cabeça.
O som baixinho da playlist de
estudos dela tocava em seu celular,
deixando uma atmosfera aconchegante
no quarto.
As sessões silenciosas de
estudo e desenho entre nós se tornaram
mais frequentes desde que me afastara
de Hades e do Pandemônio — na
medida do possível.
— Eu também vou — respondi,
fechando o caderno e o afastando do
meu colo.
Ficar com Libby sempre fora
muito confortável. Ela era tão calma e
gentil, sempre respeitara meu espaço e
minha escolha em não falar sobre o
passado que eu evitava a qualquer custo.
Foi a primeira amiga que eu fizera em
Carmine. Não sabia o que teria sido de
mim sem ela durante aquele ano.
— E também vou sentir falta
das nossas conversas da madrugada —
admitiu antes de fungar. Me sentei mais
ereta na cama, virando meu corpo em
sua direção.
— Eu não vou morrer, Libby,
não temos que nos despedir.
— Mas vai para o outro lado
do país — retrucou, fechando o livro e
olhando para mim.
— Você pode me visitar lá —
argumentei, tentando contornar a
situação. Não pareceu funcionar, porém.
Libby estava chateada.
— Não vai ser a mesma coisa.
— Os ombros dela caíram e eu suspirei.
— Não estou sendo egoísta querendo
que você fique, Raven — ela explicou.
— Eu ficaria feliz se você realmente
quisesse ir, mas posso ver no seu rosto
que não quer.
Suspirei, deixando meu olhar
cair para meus pés, que balançavam
descalços na borda da cama.
Ela estava certa, eu não queria
ir. Carmine mudara tudo. Eu nunca
conhecera nada que fosse bom ou
valesse a pena no mundo até chegar
naquela cidade. Era difícil abandonar
tudo agora. Todos os meus amigos, o
curso de artes que eu aprendera a amar,
minha mãe… tudo seria deixado para
trás.
Eu estava prestes a fugir de
novo.
— Não quero, mas preciso.
— Por causa dele, não é? Está
indo para ficar longe do Hades.
— Sim.
Eu nunca me distanciaria do
Pandemônio enquanto continuasse em
Carmine. E não havia como eu ficar
longe de Hades sem ficar longe do resto
de sua gangue também. Alina não
conseguiu e acabou voltando paro o K.
Mas Wrath e eu não funcionávamos
como um casal, apesar da atração
esmagadora que sentíamos um pelo
outro. E essas recaídas só machucavam
nós dois ainda mais. Aquela ferida
nunca cicatrizaria se permanecêssemos
próximos.
Depois que eu finalmente
partisse para Nova York, tudo ficaria
mais fácil. Eu estava tentando me
convencer de que poderia fazer um lar
para mim lá também. Que tudo daria
certo e que eu poderia ser feliz. Esse
cenário, entretanto, não parecia nem um
pouco palpável.
Antes que Libby pudesse
responder, meu celular começou a tocar
sobre a mesinha ao lado da cama. O
apanhei e não pude deixar de arregalar
os olhos em surpresa ao ver o nome da
minha mãe na tela. Atendi rapidamente.
— Astrid?
— Filha, como é bom ouvir
sua voz.
Engoli em seco, contendo um
suspiro cansado.
Das últimas vezes em que nos
falamos, não terminara muito bem. Eu
não conseguia entender seu amor
obsessivo por Frederik Wrath e isso me
deixava decepcionada. Vê-la, após ter
me abandonado há tantos anos, exibindo
diamantes e morando numa mansão,
acabara comigo. Ainda não conseguia
digerir aquilo muito bem.
— O que foi, mãe? Por que está
me ligando?
Ela demorou um pouco para
responder e, pelo grunhido de choro que
eu ouvi do outro lado da linha, soube
que algo ruim tinha acontecido.
— Nada, passarinho, só
queria conversar com você. Sinto sua
falta. Queria dizer isso pessoalmente,
mas Frederik não acha uma boa ideia
eu sair por enquanto.
Trinquei o maxilar por um
instante, sentindo meu peito se encher de
cólera.
— Ele está te mantendo presa
aí?
— Está se certificando de que
eu não saia — respondeu com pesar. —
Mas logo tudo isso vai acabar, certo?
Frederik será preso. Hades está
trabalhando para isso.
Franzi o cenho.
— Como sabe disso?
— Hades me contou. Enviei
algumas informações do Frederik para
ele, tentei ajudá-lo a prendê-lo. Sabe,
Raven, alguém precisa pará-lo.
Ela ajudara a incriminar
Frederik?
Isso me deixou
verdadeiramente surpresa. Não
imaginava que ela mudaria de lado tão
fácil. Astrid sempre deixara evidente o
quanto gostava do noivo. Ela até
costumava pensar que todos nós
poderíamos ser uma grande e feliz
família. Me perguntei o que a fizera
mudar de ideia, mas as possibilidades
de resposta me assustaram.
— Mãe, ele está te batendo?
— Frederik? Não. Claro que
não. — Ela pareceu ficar horrorizada
com aquela ideia. — Mas agora eu vejo
quem ele é de verdade, Raven. Ele disse
que só estava me usando para se vingar
de Joel e que, agora que McKinley
estava morto, eu não tinha mais
utilidade para ele. Você estava certa,
passarinho. Estava certa o tempo todo.
Queria não ter estado. Queria
que ela pudesse encontrar um amor
gentil e tranquilo, que a fizesse bem e
apagasse as marcas horríveis que os
homens costumavam deixar em seu
coração. Eu realmente queria que ela
fosse feliz. Astrid já sofrera demais, eu
não podia continuar condenando-a.
Suspirei, fechando os olhos.
— Sinto muito, mãe.
— Sei que sente, bebê — falou
ela, com a voz mais suave. — Pensei
que Hades tinha te contado. Ele está
me ajudando. É um ótimo rapaz.
Pigarreei, prendendo uma
mecha de cabelo atrás da orelha.
— Não estamos nos falando
muito nos últimos dias.
— Oh, o que houve?
— Nada, não se preocupe. —
Forcei um sorriso otimista, embora
Astrid não pudesse vê-lo. — Mas acho
que vamos estar juntas de novo em
breve, se tudo der certo. Aí poderemos
ir para Nova York e começar de novo.
— Nova York? O que faríamos
lá?
— Bem, podemos conversar
sobre isso pessoalmente depois. Fico
feliz que esteja bem.
— Me desculpe, Raven. Sei
que não mereço seu perdão. Eu cometi
tantos erros…
— Todos nós cometemos erros,
mãe.
Pelo menos ela percebera o seu
e se arrependera. Eu estava desconfiada
de que Frederik tivesse feito coisas
muito piores com ela do que estava me
contando, mas não insisti. Com certeza
não fora fácil para Astrid ter que
abandonar a ilusão de um futuro feliz ao
lado dele e enfrentar a dura e triste
realidade.
— Eu preciso desligar agora,
passarinho, mas nos falamos em breve,
sim?
— Sim, a gente se fala.
— Te amo, filha.
Abri a boca para devolver
aquelas palavras, mas travei. A dor de
seu abandono não desaparecera, ainda
martelava em meu peito todos os dias.
Eu esperava, ao menos, que diminuísse
com o tempo. Abrir meu coração para
perdoar minha mãe seria o começo.
Afinal, todos nós estávamos em busca
de redenção.
Depois de alguns segundos,
Astrid percebeu que eu não iria
responder, então se despediu e desligou.
Me senti um pouco culpada por isso.
— Está tudo bem? — perguntou
Libby, me olhando com certa
preocupação em seu rosto.
— Não faço ideia.
No início da noite, Hades
convocou uma reunião com todos do
Pandemônio. Comparecemos sem atraso,
nos aglomerando em seu escritório no
bar. O tom de sua mensagem realmente
parecera urgente e me deixara aflita. O
Pandemônio enfrentara coisas demais e
eu só queria que a guerra com os
Daggers acabasse de uma vez, para que
todos pudessem viver em paz.
Mas, enquanto Connor Kamps
vivesse, estaríamos em constante
ameaça.
Quando todos chegamos no
escritório, Hades ainda não estava lá.
Nós cinco nos entreolhamos
apreensivos, sem saber o que pensar ou
fazer. Não houve muito tempo para
deliberação, porém. Poucos minutos
depois, Hades entrou na sala.
Ele vestia a jaqueta do
Pandemônio, como o resto de nós, e
estava demasiadamente sério. Me olhou
intensamente durante os segundos que
levou para cruzar o escritório até a
poltrona atrás de sua mesa. Queria saber
o que aquele olhar significava, mas eu
nunca fui muito boa em lê-lo.
Eu costumava perguntá-lo sobre
seus pensamentos e preocupações, mas
não podia mais fazer isso. Era quase
insuportável, contudo, ver Hades
angustiado — ele estava assim há
semanas — e não poder ajudá-lo ou
compartilhar esse momento difícil com
ele.
— Slade entrou em contato —
anunciou ao se sentar, apoiando as mãos
em cima da mesa de mogno.
— O que ele quer? —
perguntei, cruzando os braços. Estava de
pé no meio do escritório, nervosa
demais para ficar nos sofás com os
outros.
— Connor matou outro Dagger.
A polícia encontrou o corpo dele hoje
de manhã. Kamps está executando
aqueles que ousam discordar dele. Slade
disse que há alguns deles que não
concordam. Aqueles que antes estavam
do lado de Garrett querem fazer uma
rebelião, mas estão apavorados demais
para isso.
— Deixe-me adivinhar —
Selina começou a dizer, olhando para
suas unhas pintadas de um vermelho
vibrante —, eles querem nossa ajuda?
— Eles estão dispostos a nos
entregar Connor se deixarmos os
Daggers livres — explicou Hades.
— Isso é quase um ultraje —
interferiu Wade. — Os Daggers sempre
foram um problema para nós. Sempre
fizeram coisas horríveis nesta cidade,
machucaram dezenas de pessoas, e
agora querem ficar impunes?
— Concordo com o Wade —
emendou Alec. — Vamos mandá-los pro
inferno e caçá-los um a um.
— Slade disse que, se
aceitarmos o acordo, os Daggers vão
deixar Carmine de uma vez por todas —
Hades falou, fazendo com que a sala
toda recaísse em um silêncio
contemplativo novamente.
— E você acreditou? — Alec
rebateu, indignado.
— Temos maneiras de fazê-los
cumprir o acordo — Hades argumentou,
com o tom de voz sério e frio.
— Não está pensando mesmo
em acreditar nessa palhaçada, está,
Hades? — Selina perguntou de maneira
hostil.
Ele não respondeu. Em vez
disso, olhou para onde Khalil e eu
estávamos calados.
Era um movimento arriscado,
extremamente perigoso. Poderia ser uma
cilada. Parecia como uma cilada. Ainda
assim, eu não achava difícil de acreditar
que Connor assustara os Daggers com
seus modos psicopatas. Ele nunca tivera
problema em torturar pessoas — física
ou psicologicamente. Talvez as coisas
terríveis que Connor fazia fossem
desprezíveis demais até mesmo para o
nível dos Daggers.
De qualquer modo, eu achava
válido o risco.
— Deveríamos tentar. —
Quebrei o silêncio, fazendo todos me
encararem. Selina arregalou os olhos na
minha direção, parecia incrédula. —
Vamos tomar cuidado para não cair
numa emboscada. Teremos que planejar
muito bem nossos movimentos, mas acho
que temos que fazer isso. Não podemos
apenas ficar aqui sentados esperando a
hora dos Daggers tentarem atacar
novamente. Não temos ideia de onde
estão se escondendo, nem o que Connor
planeja. Precisamos terminar isso de
uma vez. Alguém precisa pôr um fim na
guerra e se declarar o vencedor.
Khalil concordou, anuindo com
a cabeça.
— Se nos organizarmos e
montarmos uma boa estratégia, podemos
conseguir — falou ele.
— O problema é que não temos
tempo para elaborar um plano, porque
Connor já elaborou o dele — Hades
disse, esmagando nosso otimismo com
seu punho. — Slade disse que eles vão
se dividir em comboios e atacar
diferentes partes da cidade ao mesmo
tempo. Será esta noite. Serão quatro
ataques ao todo, e um grupo não sabe
nada sobre o que o outro vai fazer. É
assim que Connor pretende destruir o
Pandemônio.
Selina se levantou, agora
parecia aterrorizada. Todos nós ficamos
um pouco em choque com a informação.
Era assustador e extremamente
inteligente — dois adjetivos que
descreviam Kamps muito bem.
— Então não é como se
tivéssemos escolha — Wade se
pronunciou, preocupado.
— Slade tem apenas
informações sobre o comboio dele, que
está sendo liderado pelo próprio
Connor. Estão vindo para cá. Ele não
sabe onde serão os outros ataques, mas,
se eu fosse o maldito Kamps, um dos
meus alvos seria o Departamento de
Polícia, para evitar que os policiais
pudessem prestar reforço nos outros
pontos atacados. Slade também ouviu
algo sobre o nosso armazém, mas não é
nada confirmado.
— Como diabos eles sabem
sobre o armazém? — Khalil indagou,
enérgico.
— Doakes tem seguido você,
não é? — perguntei a Hades. Ele não
respondeu, apenas soltou um palavrão e
passou as mãos nos cabelos.
— O que faremos agora? —
questionou Selina com impaciência,
para ninguém em especial. Todos
estávamos com os nervos à flor da pele,
prestes a explodir.
— Connor não sabe que temos
o conhecimento de seus planos, então
estamos com a vantagem — Hades
continuou. — Cada comboio passou a
última semana num esconderijo diferente
dos demais. Slade me contou de onde o
de Connor virá, podemos interceptá-los
antes que se aproximem da cidade.
Quando pegarmos Connor, obrigaremos
a parar os outros grupos. Falei com o
xerife, ele e os outros policiais já estão
preparados para um possível ataque à
delegacia. Unidades extras estão sendo
enviadas para este bar, o armazém, o
Círculo e à irmandade GZP.
— Então nunca houve uma
escolha a ser feita sobre este acordo,
não é? — Alec continuou, sua voz
demonstrava ira e decepção como eu
jamais vira nele. — Você decidiu tudo
por nós, Hades. Sequer perguntou nossa
opinião.
— Não havia tempo para a
deliberação do clubinho, Alec! — Wrath
elevou o tom de voz, se levantando num
rompante. — Eu tive que aceitar.
— Não finja que você não nos
enxerga como seus lacaios, porra.
Pensei que fôssemos um time.
— Já chega! — gritei por cima
da discussão. Os dois imediatamente se
calaram e viraram-se para mim. —
Alec, sei que está chateado agora, mas
vocês terão tempo para matar um ao
outro depois. Agora estamos numa
questão urgente, precisamos agir
rápido.
Embora contrariado, Alec
assentiu e ficou quieto.
— O que faremos? — Khalil
perguntou, me olhando.
Eu não tinha uma resposta, nem
um plano brilhante. Estávamos sem
tempo e talvez aquela noite terminasse
de uma maneira terrível, mas não
haviam mais escolhas a serem feitas.
— Vamos terminar essa guerra.
Falaríamos qualquer coisa só
para ouvir o que queremos
Certo ou errado
Então, nós mentimos para
sermos perdoados
A qualquer custo
Nós matamos o nosso caminho
para o céu
Kill Our Way to Heaven -
Michl
Assim como os Daggers, o
Pandemônio também precisara se
separar.
Selina fora para a delegacia,
porque queria ajudar seu pai. Khalil
ficara no bar do Pandemônio, enquanto
Hades e eu fomos para a rota que Slade
dissera que seu comboio faria. Wade
fora para a GZP e Alec se juntara aos
policiais no armazém. Não tínhamos
certeza se estes seriam alvos também,
mas não havia mais muita coisa que
pudéssemos fazer.
O grupo de Connor e Slade
estava escondido num posto de gasolina
abandonado na estrada que levava para
fora de Carmine. Era de lá que eles
viriam. Os ataques simultâneos
deveriam ocorrer às onze da noite, em
ponto, então nos adiantamos.
O trajeto até a estrada no carro
com Hades fora feito no mais puro e
sepulcral silêncio. Nós dois estávamos
muito tensos e isso era notório. Hades
nunca dirigira com tanta seriedade e
controle como naquela noite.
A estrada adentrava o deserto e
circundava uma colina. Foi necessário
deixar os carros atrás da grande
elevação de pedra e fazer o resto do
caminho a pé. As viaturas também
estacionaram lá, mas apenas um dos
policiais seguira Hades e eu. Seria
arriscado demais que todos fossem.
Afinal, se o comboio avistasse de longe
um aglomerado de pessoas na pista, ou
algum carro parado, eles iriam suspeitar
de algo e fugir.
Caminhamos até o topo da
colina também em silêncio. Eu segurava
fortemente minha Glock nas mãos
quando nos abaixamos sobre as pedras
bege-avermelhadas. O policial, sargento
Rivers, montou um fuzil de precisão no
pico do monte. Não era muito alto,
talvez uns três metros e meio acima da
estrada. Ainda assim, era o suficiente
para que pegássemos o comboio de
surpresa.
Hades estava sentado ao meu
lado. Ambos ficamos quietos enquanto
Rivers cantarolava uma música country
ao limpar sua arma. Não era um silêncio
confortável aquele que pairava entre
nós. Era repleto de coisas não ditas.
Como se fôssemos dois estranhos
novamente.
Estava muito frio no deserto.
Sentia a ponta dos meus dedos doerem
com o vento gélido que me atingia dali
do alto. O céu era um manto ausente de
cor sobre nossas cabeças. Era um manto
profundamente negro, exatamente como
os olhos de Hades. Os olhos dele,
porém, embora parecessem vazios como
uma noite sem Lua ou estrelas, pareciam
uma tempestade de emoções.
— Talvez a gente morra hoje —
Hades falou, fazendo um nó surgir
apertado em minha garganta. — Preciso
saber se vou morrer com você me
odiando.
E, simples assim, senti meu
coração se partindo em um milhão de
pedaços até se tornar pó.
Pisquei, deixando que meu
olhar percorresse cada canto de sua
face, decorando cada traço
inacreditavelmente perfeito. Não queria
pensar em nossas mortes. Acima de
tudo, não queria pensar que Hades
poderia morrer acreditando que eu o
odiava, quando meu coração era incapaz
de nutrir por ele algo além amor.
Eu amava Hades Wrath até
mesmo nos dias em que o odiava.
— Não vamos morrer hoje —
garanti, embora não pudesse ter certeza
sobre isso.
Não houve tempo para que ele
respondesse, pois um som de motor
irrompeu pela calada do deserto ao
nosso redor. No mesmo instante em que
vimos apenas um carro despontar no
horizonte e se aproximar numa
velocidade quase risível, uma voz soou
através do rádio de Rivers.
— Dois utilitários acabam de
passar pela avenida 88 que leva à
parte de trás do campus da
Universidade.
Era exatamente onde ficava o
bar do Pandemônio.
Me empertiguei, olhando
imediatamente para Hades.
— Slade disse que três carros
do comboio de Connor viriam por essa
estrada agora — Hades disse, nervoso.
— Ele mentiu — retruquei,
alternando meu olhar brevemente para o
único carro ali, que, naquele exato
momento, estava passando diante da
nossa localização. — Vamos espe…
Não pude terminar a frase, pois
o disparo da arma de Rivers soou
abafado através do silenciador,
percorrendo todo o caminho até acertar
o pneu do carro, desestabilizando-o.
Arregalei os olhos, assistindo enquanto
o veículo perdia o controle e girava na
pista até atingir em cheio uma árvore
seca e esbranquiçada na beira da estrada
num estrondo alto.
— Disse para esperar, pode ser
uma emboscada! — me exaltei com o
policial. Ele parecia tranquilo, porém.
Apenas ajeitou os óculos especiais em
seu rosto e deu um sorriso insolente.
— Não recebo ordens de você
— retrucou.
Foi logo em seguida que o
tiroteio começou.
Por instinto, me abaixei.
A colina estava sendo alvejada
e eu não sabia nem com quantos dos
Daggers estávamos lidando. Fiquei de
costas para eles, o corpo encolhido
contra a grande rocha atrás de mim.
Hades fez a mesma coisa, após soltar um
palavrão alto. Ele me olhava com olhos
tensos, um pouco assustados. Ouvi
sirenes se aproximando.
À minha direita, vi Rivers se
preparar para dar outro tiro. Mas ele
não conseguiu. Foi atingido antes disso.
Seu corpo caiu ao meu lado. Meus olhos
se arregalaram em choque e espanto. O
rosto do agente estava virado para mim,
os olhos suplicando. Ele tentou conter o
sangramento em seu pescoço, mas eu
sabia que não conseguiria.
Fechei os olhos para não o ver
agonizando. Tentei focar minha audição
nos tiros que soavam de um lado para o
outro, e não nos grunhidos do policial,
que estava sufocando com o próprio
sangue e morrendo lenta e
dolorosamente, bem ali perto de mim.
Senti meu estômago embrulhar,
a imagem permanecendo nítida na minha
mente. Cheiro metálico de sangue
invadiu minhas narinas, me deixando
ainda mais nauseada.
— Raven — ouvi Hades me
chamar e abri os olhos, encontrando seu
rosto. — Os outros policiais estão
distraindo-os. Vou descer. Você me dá
cobertura?
Levei um par de segundos para
absorver suas palavras. Por fim, assenti
de maneira débil e pouco convincente,
mas Hades não precisou de mais
confirmação. Ele se levantou e correu
para baixo, tentando manter o equilíbrio
através da descida íngreme e tortuosa.
Temi que ele pudesse ser acertado, já
que estava vulnerável, mas, mesmo
querendo, não podia continuar com
minha atenção focada nele. A única
maneira de ajudá-lo era dando
cobertura.
Me forcei a não olhar para
Rivers e me postei atrás de seu fuzil
com mira de longa distância. Nunca
antes eu sequer chegara perto de algo
daquele tipo, mas precisaria aprender
rapidamente a manejá-lo.
A arma estava destravada,
carregada e pronta para outro tiro.
Aproximei meu olho esquerdo do
escopo e, equilibrando a arma no
suporte, deslizei a mira lentamente pelo
carro dos nossos inimigos, procurando
um alvo. Nenhum Dagger havia sido
derrubado ainda, todos se escondiam
atrás do carro. Estavam sofrendo
múltiplos disparos do grupo de policiais
que estavam no sopé da colina.
Retornei meu olhar para Hades,
que corria ágil e veloz até o meio da
pista. Assim como eu, ele usava um
colete protetor, mas isso não me
tranquilizava nem um pouco. Afinal, não
impedira Rivers de sofrer uma morte
horrível.
Um Dagger que eu desconhecia
avistou Hades se aproximando. Saiu da
parte de trás do carro, se levantando e
erguendo um revólver na direção de
Wrath, que não percebeu, pois olhava
para o outro lado da estrada. Segurando
o rifle com mais firmeza, não perdi
tempo, mirei diretamente em seu peito e
afundei meu dedo no gatilho sem pensar
duas vezes. Não o acertou, mas o tiro
passou próximo o suficiente para que ele
se assustasse, chamando a atenção de
Hades.
O Dagger foi pra cima dele e os
dois entraram numa briga física,
enroscando-se um no outro de modo que
tornou impossível que eu tentasse atingir
o oponente de Hades.
Praguejei baixinho, alternando
a mira para o outro canto, por um
instante. Mesmo com uma arma de longa
distância, não conseguia fazer muito
estando naquela posição. Não conseguia
enxergar a parte de baixo da colina, nem
acertar os nossos inimigos que se
escondiam por trás da lataria do carro
— que, a essa altura, já estava repleta
de furos de bala.
Eu precisava descer também.
Quando puxei a Glock e fiz
menção de me virar, uma dor lancinante
tomou conta da minha cabeça, descendo
até a nuca. Meu cabelo foi puxado para
trás e eu, arrastada para longe da arma.
Soltei um grito alto, fechando os olhos
com a sensação insuportável.
Quando meu agressor me
largou, foi de maneira brusca, me
lançando na direção da descida da
colina. Meu corpo rolou ladeira abaixo
e, embora tentasse proteger minha
cabeça com os braços, ainda sofri
vários impactos pelas pedras.
Tudo aconteceu rápido demais,
mas ainda assim consegui sentir minha
pele sendo cortada e esfolada pelas
rochas ásperas. Gritos chamando meu
nome ecoavam ao fundo, entre todos os
sons altos ressoando em meus ouvidos.
Não consegui prestar atenção em
nenhum deles, porém.
Grunhi quando finalmente parei
de cair, tombando contra o chão de
cascalho e poeira na beira da estrada.
Meu corpo inteiro doía muito. Não
consegui me mexer nos primeiros
instantes. Só mantive os braços cruzados
sobre o peito, numa tentativa patética de
me defender de qualquer outro golpe.
Por cima dos sons de tiro —
que diminuíram consideravelmente —,
ouvi um assobio familiar e logo soube
quem me atacara antes mesmo de abrir
os olhos e vê-lo agachado ao meu lado.
— Desgraçado — rosnei para
Connor, mas o xingamento soou ridículo
com o tom sôfrego da minha voz.
Ele parecia perfeitamente
controlado, frio como uma pedra de
gelo. Alheio a qualquer tipo de dor ou
sofrimento. Seus olhos me analisaram e
um sorriso se formou no canto da sua
boca. Sem dúvidas ele estava muito
satisfeito em me ver naquela situação.
— É sempre bom ver você. —
Tossi com dificuldade, sentindo o
granulado de terra em meu rosto,
fazendo meus olhos arderem como se
tivessem sido expostos a ácido puro. —
Onde dói, Raven? Pode me dizer. — Seu
tom era completamente sarcástico.
Observei inerte quando ele se levantou e
pisou na minha barriga, afundando sem
piedade sua bota pesada em meu
estômago. — Será que é aqui?
Urrei de dor, sentindo meus
pulmões esvaziarem totalmente.
Lágrimas embaçaram minha visão,
tornando-a turva. Um por favor quase
escapou dos meus lábios, mas eu
contive. Não iria implorar para aquele
covarde. Chorei alto, me sentindo tão
destruída que pensei que perderia a
consciência.
— O que houve com a
promessa que fez ao meu pai? — Foi a
única coisa que consegui dizer.
Meu corpo tinha perdido a
força. Não conseguia prestar atenção em
nada além da dor, raiva e medo que eu
sentia.
Odiava parecer tão fraca, mas
ele me pegara de surpresa. Me atacara
de costas, porque não queria me
enfrentar. Talvez tivesse medo de perder
para mim.
— Eu a esqueci, como você
mandou — respondeu, simplesmente. —
Você pediu meu pior, Raven. Só estou te
dando o que você quer.
— Vai se foder — xinguei
novamente, dessa vez mais alto e forte.
Eu não teria forças pra levantar.
Meu braço doía como o inferno e eu
sentia minha garganta raspar,
provavelmente por causa da poeira.
Parecia haver metal em brasa na minha
traqueia quando eu tentava respirar.
O pé de Connor, então, subiu
até meu pescoço e pressionou minha
garganta.
Engasguei, sentindo o ar sumir
dos meus pulmões. Movi meus braços
tentando bater em sua perna, mas isso só
fez o meu braço esquerdo doer mais
ainda e eu soube que havia algo de
errado com ele. Não consegui gritar,
nem olhar na direção de Hades. Tudo
estava nublado, escurecendo lentamente
à medida em que eu me distanciava da
consciência.
Uma pressão surgiu forte em
minha cabeça e, naquele segundo, eu só
consegui pensar nas palavras de Hades
sobre morrermos ali naquela noite.
Talvez realmente acontecesse e,
surpreendentemente, fiquei apavorada
diante desta possibilidade. Nunca antes
eu sentira tanto medo da morte — e de
tudo o que perderia com ela.
Mas então, em seguida, senti
um objeto gelado contra minha coxa que
capturou todo meu foco. Lembrei do
canivete que colocara no bolso direito
da calça e um vislumbre de esperança
surgiu naquela escuridão total.
Sentindo-me à beira de
desmaiar, agi rápido para puxar a lâmina
com o braço que não parecia
machucado. Armei o canivete e o enfiei
no tornozelo de Connor, afundando-o no
seu tendão de Aquiles.
Respirei ofegante e aliviada
quando a pressão cedeu repentinamente.
Connor tombou ao meu lado, um grito
estridente cortando sua garganta,
seguido de um choro agudo.
Encarando o céu escuro acima
de mim, contive o tremor em minhas
mãos e queixo. Fechei os olhos por um
instante, me acalmando e restabelecendo
minha respiração. Após um segundo,
tentei me levantar, mas o máximo que
consegui foi sentar sobre o chão
arenoso. Tudo ainda girava um pouco ao
meu redor e minha visão estava
embaçada, mas mesmo assim procurei
Hades com o olhar. Reconheci
instantaneamente sua silhueta, embora
estivesse um pouco borrada.
Ele atirou nas pernas do último
Dagger que ainda estava de pé, e que
despencou no chão logo em seguida.
Hades se virou para mim, e eu
observei em câmera lenta quando ele
correu na minha direção. Não prestei
atenção no que restara dos Daggers
sendo algemados pelos policiais, porque
todo o resto perdera o foco.
Eu me encontrava à beira das
lágrimas ao olhar para Wrath. Não
registrei nossos movimentos, muito
menos as palavras de preocupação que
saíam de sua boca, mas ele estava
evidentemente apavorado.
Ele me levantou em seus braços
de uma só vez, como se meu peso fosse
inexistente, e me aninhou em seu peito,
passando as mãos em meus cabelos.
Afundei meu rosto nele, no tecido macio
da camiseta sob sua jaqueta. E me
segurei naquela sensação familiar.
— Meu Deus — ele soprou em
desespero, me apertando contra si como
se tivesse medo de que eu simplesmente
desaparecesse. Meus olhos se fecharam
automaticamente quando me aconcheguei
em seu abraço, sentindo seu calor e
cheiro reconfortantes. — Quando a vi
cair, pensei que estivesse morta.
Não lhe disse que também
pensei que eu morreria.
— Muito tocante. — A voz de
Connor soou novamente, me lembrando
de que ainda existia e estava bem ali ao
lado. — Estou verdadeiramente
emocionado.
Dei um passo para longe de
Hades e me voltei para Kamps, que
tentava se levantar. Seu rosto estava
contorcido numa patética careta de dor.
Segurei meu braço esquerdo
contra o peito, tentando ignorar a dor,
mesmo que ela estivesse irradiando pro
resto do meu corpo.
— Você perdeu, Connor —
decretei, esperando que dessa vez fosse
definitivo.
Pelo olhar em seu rosto, ele
sabia disso. Seus lacaios estavam sendo
presos e, em breve, ele seria também.
Não havia para onde fugir e ninguém
mais poderia ajudá-lo.
Sorri, satisfeita com o fim que
ele teria.
Não durou muito, porém. Sons
de tiros soaram novamente, e senti como
se estivesse vendo tudo em câmera
lenta. Hades entrou, instintivamente, na
minha frente, mas os disparos não foram
mirados em nós. Todos atingiram
Connor, que já estava no chão.
Com os olhos arregalados,
parada inerte na beira da estrada, assisti
Kamps ser alvejado. Seus olhos
esverdeados estavam presos em mim.
Pela primeira vez, vi medo cruzar o
semblante daquele homem e, de alguma
forma, me senti aflita. A vida sumiu
gradativamente de seus olhos. Sua
expressão apavorada também sumiu,
dando lugar a um completo vazio.
Pisquei, chocada, antes de me
virar para ver quem atirara contra um
homem rendido e desarmado. Encontrei,
a poucos metros de distância, a figura do
agente Doakes, trajado com um terno
todo preto, segurando a arma ainda
levantada.
Instantaneamente, eu soube do
que aquilo se tratava.
Queima de arquivos.
Você me faz querer amar
Odiar, chorar, tomar cada
parte de você
Você me faz querer gritar
Queimar, tocar, aprender cada
parte de você
Shadow Preachers - Zella Day

Mesmo contrariada, os
paramédicos me levaram ao hospital
numa das ambulâncias que chegaram no
deserto na noite em que Connor Kamps
morrera. Hades me acompanhara durante
todo o percurso. Embora eu acreditasse
que estava bem, os médicos me
examinaram e descobriram que eu tinha
sofrido múltiplas lesões da queda. Meu
braço esquerdo estava quebrado, bem
como um par de costelas. Eles temiam
que eu também tivesse sofrido um
impacto muito forte na cabeça, de modo
que eu precisara ficar em observação no
hospital por três dias.
Durante esse tempo, meus
amigos não me pouparam de visitas e
presentes para incentivar minha
recuperação — que enfeitavam cada
canto do quarto sem graça em que eu
estava.
Eu não conseguira ficar um
instante sozinha — não que eu quisesse
—, uma vez que Libby, Alina e George
estavam sempre por perto para me
adular. Eu apreciava sua companhia.
A pequena televisão suspensa
em frente ao leito sempre ficava ligada,
transmitindo os noticiários locais que só
falavam sobre o que acontecera naquele
deserto. Mesmo naquele momento, três
dias depois, quando eu me preparava
para ter alta, o telejornal exibia uma
matéria sobre isso.
“Três mortos e cinco feridos
em troca de tiros da polícia com
gangue de motoqueiros.” Era o nome da
matéria, escrito em letras garrafais
brancas na parte inferior da tela.
Suspirei, cansada, e voltei
meus olhos para o porta-retratos em
minha mão direita — a outra estava
levantada pela tipoia. Ele era um
presente de Khalil e fora deixado na
cômoda ao lado da cama. Me reconheci
na foto sob o vidro, embora datasse de
muitas semanas atrás, numa época em
que tudo estava menos complicado e eu,
mais feliz. Na noite da foto, a gangue do
Pandemônio estava reunida no salão do
bar, comendo pizza e bebendo cerveja,
pouco tempo depois que Hades e eu
voltamos de Vegas.
Fora a primeira vez que eu
chorei de tanto rir.
Mordi meu lábio inferior,
sentindo-me emocionada ao fitar Fiona
fazendo uma careta e mostrando o dedo
do meio. Estávamos os sete espremidos
para cabermos todos na fotografia e nós
duas tivemos que ficar na frente, pois
éramos as menores do grupo. Era bom
ter alguma evidência física de uma
memória tão incrível como aquela.
Engoli em seco a vontade de
chorar e coloquei o objeto dentro da
minha bolsa. Ao meu redor, Libby e
Alina se moviam pelo quarto, me
ajudando a arrumar todos os meus
pertences para que eu pudesse,
finalmente, voltar ao alojamento.
Quando dois toques suaves na
porta de madeira aberta do quarto
soaram, levantei a cabeça, encontrando
Hades parado na soleira. Ele nunca fora
me visitar sozinho até então, mas sempre
junto aos nossos amigos.
Agora ele estava ali diante de
mim, alto e imponente, mas nada
intimidador. Segurava balões coloridos
e um buquê de flores, que destoavam
completamente de sua postura de mau.
Um sorriso se formou em meu
rosto.
— Posso entrar? — perguntou,
olhando hesitante ao redor.
Alina e Libby, que estavam
colocando o resto das minhas coisas
numa bolsa, pararam e se entreolharam.
— Claro — Libby pigarreou.
— Nós duas estávamos indo até a
cantina mesmo.
— Estávamos? — Alina
indagou, confusa, mas foi puxada por
Libby na direção da porta. Elas
passaram por Hades, cumprimentando-o
com um aceno de cabeça, e sumiram no
corredor.
Ri baixinho, colocando de lado
a bolsa em meu colo. Hades também
sorriu e finalmente adentrou ao quarto.
— Uau, você tem uma bela
coleção aqui — observou, olhando para
os vasos de flores e o amontoado de
pelúcias sobre a superfície da cômoda.
Eu sequer sabia onde haveria
espaço em meu pequeno dormitório para
guardar tanta coisa. Não que eu fosse
continuar no alojamento por muito mais
tempo, já que ainda pretendia partir para
Nova York o mais rápido possível.
— Pois é, eles exageraram um
pouco.
As flores vinham,
principalmente, de Khalil e Wade. Os
ursos de pelúcia eram de Alec e George.
Eles traziam mais toda vez que
passavam no hospital para me ver.
— Eles se importam com você
— Hades disse, colocando suas flores
junto com as outras. Ele também
amarrou os balões na grade aos pés da
cama antes de voltar a ficar à minha
frente. — Assim como eu.
Seu rosto pálido estava repleto
de hematomas e seu lábio inferior, bem
inchado. O Dagger com quem ele lutara
três noites atrás fora impiedoso. Ainda
assim, Hades era implacavelmente
bonito e nada conseguia diminuir aquilo.
Ele parecia com alguém da realeza ou,
melhor, com uma pintura totalmente
perfeita e proporcional.
— Eu sei — assenti, cruzando
as mãos sobre meu colo. Pigarreei,
querendo mudar de assunto. — Então,
você falou com os Daggers?
Hades se endireitou e colocou
as mãos nos bolsos da jaqueta de couro
que usava.
— Falei, sim. Slade não sabia
que Connor dividiria o comboio. Foi
uma decisão de última hora. Mandou
três carros para o bar pelo centro e, para
se auto proteger, fez o caminho mais
longo pela estrada fora da cidade.
Balancei a cabeça, absorvendo
as informações. Não confiava em Slade
ou em nenhum outro Dagger, mas ele nos
entregara a localização de Connor e
convencera os outros de sua gangue a
entregarem todas as informações que
tinham para a polícia, quando poderiam
apenas ter fugido. Pareciam querer
mesmo honrar o acordo que selaram
com Hades e eu os respeitava por isso.
— Estão dispostos a sair da
cidade? — perguntei.
— Sim, irão sair.
— Bom.
Hades, então, franziu o cenho,
seu rosto se fechando numa expressão
séria e taciturna.
— Soube que você vai embora
de Carmine.
Engoli em seco, deixando meu
olhar cair para a minha mão. Os nós dos
meus dedos ainda estavam esfolados da
queda.
Mesmo tentando postergar, a
despedida inevitável chegara.
— Eu vou — confirmei, com
falsa determinação. — Só estou
esperando as coisas se acertarem com
Frederik e o FBI, para levar minha mãe
comigo. A decana remarcou a entrevista
para a semana que vem.
Hades anuiu com a cabeça e
deu um sorriso fraco.
— Isso é muito bom, amor.
Sempre foi tudo o que você sempre quis,
não é? Um novo começo.
Eu vi sinceridade em seus
olhos, mas não apenas isso. Aquelas íris
absurdamente densas e escuras também
estavam repletas de tristeza e
arrependimento e essa conclusão doeu
mais do que qualquer coisa que eu já
sentira.
— Estava esperando que você
me pedisse pra ficar, na verdade —
admiti, me sentindo tola.
— Se você quer ir, se isso te
fará feliz, não posso pedir que fique. E
você merece isso, Raven. Sei que houve
um tempo em que acreditava que não,
mas você merece ser feliz. Mesmo que
seja longe de mim.
Prendi a respiração por um
segundo, sentindo um nó crescer em
minha garganta. Era tão injusto que
acabasse daquela maneira e, ainda
assim, eu não conseguia imaginar outro
fim para nós dois.
Mordi meu lábio inferior,
tentando conter tudo o que eu queria lhe
falar naquele instante. Não mudaria
nada, de qualquer forma, talvez só
piorasse a dor e a mágoa.
Hades limpou a garganta e eu
percebi seu esforço para se recompor e
varrer qualquer vestígio de emoção de
seu rosto.
— Não vai ter que esperar
muito para ir, de qualquer forma. O
xerife Callow me disse que o mandado
de prisão do meu pai foi expedido hoje.
— O que vai acontecer depois?
Nenhuma autoridade duvidara dos
motivos do agente Doakes para executar
Connor. Ele disse... — E até mesmo
tentara me convencer. — Que Kamps
estava prestes a me matar, embora sua
arma estivesse caída no chão a pelo
menos um metro de distância. Ninguém o
questionara, porém. Na verdade, o
parabenizaram, como se ele tivesse
salvado a minha vida.
— Acho que Doakes vai
cumprir a promessa que fez a mim —
respondeu Hades, dando de ombros. —
Quando tentei fazer um acordo, ele disse
que, se Connor não acabasse comigo,
ele mesmo faria isso. Prometeu que
levaria todo o Pandemônio junto.
Aquela possibilidade me
deixava preocupada. Eu estava partindo,
deixando para trás todos os meus
amigos, a única família que já
conhecera, enquanto eles ainda não
estavam a salvo, quando ainda poderiam
sofrer e eu não estaria presente para
ajudá-los.
— Você não pode permitir isso,
Hades.
— Não irei — garantiu, com
determinação. — Mas você não tem que
se preocupar mais com isso, amor.
— Eu sempre vou me
preocupar com vocês.
Parte de mim ainda desejava
que ele me pedisse para ficar. Queria
pensar que ainda existia alguma chance
de resolver tudo. Porque, obviamente,
eu sentiria sua falta como o inferno. E
não sabia se suportaria tamanha tristeza.
Hades sorriu e abriu a boca
para dizer mais alguma coisa, mas o som
estridente do toque do meu celular o
interrompeu. Estiquei o braço bom para
apanhar o aparelho, que estava jogado
do outro lado da cama.
Era uma ligação da minha mãe.
Atendi a chamada cheia de
otimismo; afinal, ela estava prestes a ser
livre novamente. Minha frágil animação,
porém, foi destruída bem rápido pela
voz apavorada que soou do outro lado
da linha.
— Raven.
Me empertiguei, segurando o
celular com mais força contra minha
orelha.
— O que houve, mãe?
— É o Frederik, ele disse que
estava prestes a ser preso e agora está
fora de controle.
— O quê? Ele te agrediu?
— Ainda não, mas eu estou
muito assustada, ele está jogando
gasolina pela casa. Raven, eu…
A ligação caiu.
— Raven, o que aconteceu? —
Hades perguntou, dando um passo em
minha direção e colocando uma mão em
meu ombro. — Amor, você está pálida.
— Era minha mãe — expliquei,
ainda atônita. — Acho que Frederik vai
matá-la.
— Vamos. — Foi sua única
resposta.
Eu me levantei e o segui
quando corremos para fora do hospital.
Você sabe que o fogo está
correndo baixo
Nós estamos tentando
pertencer
Pegar os pedaços restantes de
nós
Nós estamos queimando
Nós somos as cinzas no chão
Se você pudesse me ver
correndo atrás de você
Se pudéssemos virar as horas
de volta no tempo
Circles - Ludovico Einaudi
feat. Greta Svabo Bech

A mansão Wrath pegava fogo.


A fumaça dançava no céu escuro
e um brilho alaranjado envolvia a
enorme casa como um véu. As chamas
incandescentes lambiam as grandes
janelas, consumindo as cortinas e os
móveis. Toda a bela e sofisticada
estrutura era, aos poucos, abatida.
Era como a cena de uma
tragédia grega.
Eu chamei a emergência assim
que avistei a cena mesmo de longe,
dentro do carro, mas eu duvidava que os
bombeiros pudessem chegar a tempo de
salvar minha mãe. Ela estava lá dentro,
inalando a fumaça tóxica, cercada pelas
labaredas.
O desespero me preencheu.
Saltei do carro antes mesmo de
Hades estacionar, contendo um gemido
de dor ao fazer isso. Meus olhos
assistiram ao incêndio como se fosse
uma terrível peça de teatro. Não
conseguia acreditar que acontecia de
verdade.
Fiquei parada em cima do
gramado, de pé diante da fachada da
mansão, com uma mão na cabeça, me
sentindo mais impotente do que nunca.
Certa vez, Hades me dissera
que seu pai tinha acessos de fúria.
Quando isso acontecia, ele costumava
destruir as coisas ao redor. Quebrava
mobílias e louças. Até mesmo usara o
taco de beisebol de Nick, quando este
ainda era apenas uma criança, para
arruinar o piano de Evelyn após uma
discussão entre o casal. O instrumento
fora reduzido a destroços de madeira.
Agora eu estava presenciando
aquilo de perto. Frederik iniciara um
incêndio. Fizera isso com sua noiva lá
dentro, porque ele não se importava, não
dava a mínima para todas as pessoas
que ferira com sua maldade e ganância.
— Mamãe — sussurrei, vendo
nada além de fogo através das janelas.
Ansiava pelo momento em que
finalmente ouviria as sirenes dos
caminhões de bombeiro, mas ele nunca
se concretizava. Não fazia muito tempo
desde que eu notificara o incêndio para
a emergência, mas a demora me
preocupava. Cada segundo era
importante e decisivo.
Foi então que Hades,
observando tudo ao meu lado, disse:
— Raven, eu tenho que entrar.
Tudo instantaneamente parou.
Me virei para olhá-lo,
buscando em seu rosto algum sinal de
que ele não estava falando sério, de que
eu podia afastar aquela ideia estúpida
facilmente de sua cabeça.
Respirei fundo, fechando minha
mão livre em punho quando percebi que
ela tremia. Não queria demonstrar medo
ou desespero, embora fosse exatamente
aquilo que eu sentia.
— Não, você não tem. Vamos
esperar os bombeiros. Vai ficar tudo
bem.
Tentei parecer confiante e
otimista, mas meu rosto me delatava. Eu
estava aterrorizada com a ideia da
minha mãe morrer, de que nunca
teríamos chance de construir uma
relação de verdade.
Mas não podia sequer imaginar
Hades indo até lá, caminhando
voluntariamente para um mar de fogo e
fumaça. Aquilo o mataria, eu sabia
disso, e tinha um pouco de raiva por ele
cogitar aquela ideia.
— Não há tempo, você sabe —
argumentou, impassível. — Não vou
permitir que perca sua mãe por causa
dos erros do meu pai.
Ele fez menção de ir, mas o
parei, enrolando meus dedos em seu
pulso com toda força que pude
encontrar. Hades me olhou novamente
com aquela maldita lamentação
estampada em seu rosto. Eu estava
assustada com as probabilidades para o
fim daquela noite. Principalmente,
estava assustada com a possibilidade de
não ser forte o suficiente para impedir
uma catástrofe gigantesca de se
concretizar.
Não iria permitir isso. Hades
estava sendo estúpido. Normalmente, eu
admirava seu altruísmo, mas naquele
momento só conseguia odiar esse seu
traço. Não queria que ele bancasse o
herói. Não importava o quanto eu
estivesse apavorada, precisava dele ali
ao meu lado, esperando comigo, me
confortando. Ele não podia
simplesmente ir, pois eu não aguentava
sequer pensar nas chances de ele nunca
mais retornar.
— Eu não posso perder você
— insisti, sentindo meus olhos arderem
com as lágrimas inevitáveis.
Não poderia deixar que Hades
e minha mãe morressem na mesma noite.
Aquela não era uma possibilidade
viável.
Ele estava convicto, porém, e
esta conclusão era o que faltava para
que eu desestruturasse por completo.
Como Hades podia não temer a
morte daquela maneira? Como ele podia
achar tão fácil se sacrificar e me deixar
para sempre?
Ele deu um sorriso fraco, numa
tentativa ineficaz de me consolar.
— Nunca vai me perder, amor.
Eu sou seu, lembra?
Mordi meu lábio inferior com
força, tentando conter o choro, mas meus
olhos já estavam embaçados e logo as
lágrimas começaram a rolar
desenfreadamente pela minha pele,
deixando turva a visão de seu rosto.
Tudo pareceu perder o sentindo
naquele momento. Me vi numa sala
vazia, sem luz ou cor, como se minha
esperança tivesse sumido.
Como se todas as coisas boas
do mundo tivessem acabado.
Balancei a cabeça.
— Hades, por favor —
implorei, segurando mais forte em sua
mão, como se isso pudesse impedi-lo de
ir. — Por favor, não vá.
Hades aceitara aquele destino
muito antes de mim. Ele estava tranquilo
e determinado.
— Eu te amo, Raven Clarke.
Vou amar pra sempre.
Ele se desvencilhou facilmente
do meu toque e se virou, correndo para a
grande porta de entrada da mansão onde
crescera.
— Hades! — gritei atrás dele,
tentando pará-lo. Não funcionou.
Ele arrombou a porta com um
chute forte e sumiu lá dentro,
rapidamente sendo engolido pelas
chamas e fumaça.
Não.
Sem pensar muito, corri atrás
dele com certo esforço. O calor que a
casa irradiava me abraçou à medida em
que chegava mais perto. Tentei passar
pela porta, mas o fogo imediatamente
cobriu a soleira, me impedindo de
continuar.
Levei a mão do braço que não
estava imobilizado à cabeça novamente
e cerrei os cílios, forçando minha visão
para enxergar o interior da casa através
da fumaça. Não consegui ver muita
coisa, porém. Estava escuro além das
chamas furiosas e todo aquele gás fazia
meus olhos e garganta arderem. Comecei
a tossir, sentindo o gosto amargo de
cinzas e fuligem na minha língua.
Quando se tornou impossível respirar
tão perto de lá, precisei me afastar,
cobrindo o nariz e a boca com a mão.
As palavras de Hades se
repetiam em meus ouvidos. Ele nunca
antes dissera que me amava e escolhera
logo aquela terrível circunstância para
fazer isso. Jurei a mim mesma que, se
ele saísse vivo daquela casa, eu mesma
o mataria.
Foi só então, diante da
possibilidade material de realmente
perdê-lo, que eu percebi que não
conseguiria viver num mundo sem Hades
Wrath. Nada nunca mais importaria. Na
verdade, nada além disso deveria ter
importado até aquele momento.
Sem conseguir abandonar a
ideia de entrar na casa, me lembrei do
pátio localizado atrás dela. Com certeza
haveria uma porta lá.
Engolindo o nó em minha
garganta, desatei a correr, embora com
dificuldade, dando a volta pelos jardins
até os fundos da propriedade. Lá estava
escuro, o que era um bom sinal. Deduzi
que o incêndio começara na ala frontal
da mansão e que, devido à sua
magnitude, ainda não chegara aos
fundos.
Tive medo de entrar, me perder,
e acabar sufocando lentamente com a
fumaça escura. A dor e o cansaço
também estavam me matando. Assim,
resolvi esperar. Saber que ainda haviam
partes da casa intocadas pelo fogo me
deu esperança, pois significa que existia
alguma chance de que Hades e Astrid
saíssem ilesos de lá.
Um pouco depois de eu
começar a ouvir o esperado som das
sirenes se aproximando, uma pessoa
irrompeu pela porta dos fundos. Astrid
correu para fora, o corpo curvado
coberto de fuligem. Meus olhos se
arregalaram e eu me apressei em
alcançá-la e ampará-la em meus braços.
Seu corpo colidiu com o meu e eu mal
senti a dor em meu braço que foi gerada
por isso. Minha mãe se segurou em mim
com o que restara de suas forças. Ela
parecia fraca e prestes a desmaiar,
estava respirando com dificuldade,
tossindo e engasgando muito.
Parte do aperto em meu peito se
aliviou e eu tateei o rosto sujo da minha
mãe, certificando-me de que ela estava
bem. Sabia que ela precisava de
cuidados médicos, com certeza havia
inalado muita fumaça.
— Onde ele está? — perguntei,
aflita. — Onde está o Hades?
Minha mãe se curvou, tossindo
ainda mais.
— Ele… ele estava atrás de
mim — disse, com a voz rouca e
falhada. — Voltou para buscar o
Frederik.
Não.
Ele não podia ter feito isso.
Minha respiração ficou
ofegante, adquirindo um ritmo
desesperado. Não consegui mais conter
os tremores em meus dedos. Meus olhos
estavam fixos na porta. Não consegui
ver nada além do breu lá dentro, mas
esperei. Esperei ansiando que Hades
passasse por ela, correndo pra fora.
Voltando pra mim.
Isso não aconteceu, porém.
E antes que eu pudesse pensar
em entrar lá para buscá-lo, Astrid e eu
fomos arremessadas para trás com a
força de uma explosão.
Caí de costas sobre o gramado
do jardim, sentindo passar por mim a
onda de calor proveniente do incêndio.
Os vidros das janelas e portas
estouraram num som estridente. Tentei
me levantar, mas estava atordoada.
Minha audição havia sido abafada pelo
som de um zumbido distante. Tudo
estava desfocado, minha cabeça doía.
Pisquei, tentando tornar minha
visão nítida. A primeira coisa que vi, no
entanto, foi que agora a casa estava
totalmente em chamas. Tudo fora
consumido pelo fogo, inclusive a última
chance de que Hades estivesse vivo.
— Não — sussurrei, incrédula.
— Não, não, não.
Afundei os dedos em meu couro
cabeludo. Foi a pior sensação que já
sentira. Meu peito doía, e era tão
profundo que eu duvidava que fosse
físico. Era além disso.
O nome de Hades estava preso
em minha garganta num grito que nunca
saiu, junto com meu eu te amo e todas as
outras coisas que eu queria ter dito a
ele.
Em algum momento, passei a
não enxergar mais nada além das
lágrimas. Senti Astrid me abraçar e
dizer palavras de conforto, mas não
importava. Nada do que ela dissesse e
fizesse seria capaz de atenuar aquilo.
— Eu nunca disse que o amava
— falei, engasgando com a dor do
arrependimento.
— Ele sabia, querida. Ele
sabia.
— Não — discordei,
balançando a cabeça antes de esconder
o rosto molhado em minha mão. — Ele
pensava que eu odiava.
Astrid não disse mais nada,
apenas apertou meu corpo encolhido em
seu abraço, me balançando em seu colo.
Eu continuei chorando de forma gutural
e ficamos ali até os bombeiros nos
encontrarem, minutos depois.
Porque se você não está aqui
As estrelas nem importam
Agora estou totalmente
preenchida por medo
Porque se você não está aqui
Então eu também não quero
estar
Eu quero estar perto de você
Black & Gold - Malika

Três meses depois


Era difícil aceitar que sempre
haveria um buraco em meu peito, que
esse luto me seguiria pro resto da vida,
como uma presença constante. Hades
Wrath estava destinado a ser o meu
fantasma. Mas, pensando bem, isso era
bom, porque pelo menos assim ele ainda
estaria comigo. Era melhor do que a
ideia de que ele desaparecera do
universo para sempre.
O bar do Pandemônio parecia
estranho sem sua presença. Estava vazio
demais, silencioso demais. Ainda assim,
era o lugar onde Fiona e Hades estavam
mais presentes, e por isso eu passava
tanto tempo lá.
O fim do último ano fora um
borrão gelado e triste. Os poucos
momentos bons que eu tivera foram com
meus amigos. E nesses instantes eu
ficava feliz por não ter partido de
Carmine. Me destruía pensar que um dia
eu considerara isso, apenas para ficar
distante de Hades. Agora eu não o veria
novamente e o arrependimento me
consumia.
Esse era o problema com os
conflitos humanos, concluí, eles se
mostravam ínfimos demais quando
comparados à morte. E precisou que
Hades se fosse para que eu percebesse
como os motivos que me afastaram dele
eram tão insignificantes perto dos meus
sentimentos. Tão ridículos diante da
sensação de não poder tê-lo por perto.
Uma parte de mim, e eu não
sabia quão grande era, morrera junto
com Hades Wrath.
Não conseguia evitar. Ao me
sentar na poltrona de seu escritório, a
primeira coisa que meus olhos notavam
sempre era a foto naquele porta-retratos.
O único registro que tínhamos de nós
dois, na época em que ainda estávamos
juntos. E um mar de memórias, de
imediato, invadiam minha mente. Mal
podia me concentrar no trabalho, apesar
de ter mergulhado nele totalmente.
O Pandemônio e a arte me
salvaram de um luto difícil, cada um à
sua maneira.
Doakes desaparecera,
provavelmente porque conseguira o que
esteve buscando: a queda de Hades. Não
insistira em caçar o resto do
Pandemônio, apenas voltara para
Washington. Ouvi dizer que fora
condecorado por ter derrotado dois
grandes líderes da máfia: Connor e Joel.
Embora aquela história estivesse longe
da verdade, foi comprada por todos.
O resto de nós estava
superando juntos, nos recuperando da
guerra contra os Daggers, reerguendo o
império que um dia foi nosso. Todos
estavam empenhados naquilo. O cassino
voltara a funcionar e, embora eu não
soubesse tudo sobre como comandar
aquele negócio, os outros estavam me
ajudando, principalmente Selina.
Quando a porta do escritório
abriu e Khalil entrou, me endireitei,
obrigando-me a levantar o olhar da
fotografia. Havia pelo menos meia-dúzia
delas sobre a escrivaninha. Eu gostava
de manter as memórias por perto.
K e eu costumávamos ser os
últimos a ir embora após o Pandemônio
fechar. Sempre que as aulas terminavam,
eu ia direto para o bar e imergia
completamente dentro dos negócios da
gangue, tentando aprender sobre tudo.
Khalil ficava comigo, me explicando e
tirando todas as minhas dúvidas. Era
diferente estar do outro lado, conhecer a
fundo tudo o que o Pandemônio fazia.
Me surpreendi positivamente,
compreendendo que Selina não era
apaixonada por aquele mundo, como me
disse uma vez. Ela, e todos os outros,
eram fascinados, na verdade, pela
maneira como o Pandemônio fazia as
coisas, a maneira como Hades
transformara o submundo. E estava
longe de ser bom ou certo, mas era
necessário.
Afinal, fazíamos coisas ruins
por bons motivos.
— Você está bem? — K
perguntou, colocando as mãos dentro
dos bolsos e andando até mim.
Ele passava metade de seu
tempo se preocupando comigo e a outra
metade garantindo que eu não estivesse
preocupada.
Me reclinei contra a cadeira
giratória, dando um sorriso otimista.
Estava tentando fazer isso com mais
frequência.
— Está, sim. Eu só estava
pensando.
— Em coisas boas? — Dei de
ombros.
— Algumas delas.
— Já é um começo — falou,
positivo. — Vamos fazer maratona de
filmes de terror lá em casa amanhã à
noite. Você vai?
— É claro — concordei, sem
pensar duas vezes.
Com tudo o que tinha
acontecido no ano passado, eu
aprendera a passar o máximo de tempo
possível com as pessoas que eu amava.
Não queria adicionar mais
arrependimentos à minha coleção. E a
vida era efêmera demais para
desperdiçar algo tão precioso quanto o
tempo. Ficar perto da minha mãe e dos
meus amigos me transmitia paz e isso
era tudo o que eu precisava.
Além disso, embora fosse
difícil ficar naquele apartamento, ele era
uma parte de Hades. E, estar próxima
das partes dele que restaram, era melhor
do que nada.
— Tem uma mulher lá fora
querendo falar com você — anunciou,
mudando de assunto. Respirei fundo.
Lidar com os clientes do
Pandemônio era a pior parte daquele
trabalho pra mim. E mesmo que não
fossem, nem de longe, compostos pela
pior estirpe de gente, ainda eram
difíceis.
— Ela disse quem era?
— Emily. Emily Turn.
Levantei as sobrancelhas,
surpresa. Não esperava vê-la de novo.
Soube que era a nova proprietária da
galeria da mãe de Hades, mas não
depositava muita fé nisso. Outra coisa
que eu aprendera sendo parte do
Pandemônio: nunca confiar de primeira
em alguém.
— Certo, peça para ela entrar,
por favor.
Khalil assentiu e saiu do
escritório. Respirei fundo e ajeitei a
postura, cruzando as mãos sobre a mesa
para esperá-la. Não demorou muito
antes que a mulher entrasse.
Um par de óculos de armação
fina e delicada estava sobre seu nariz e
ela vestia um traje polido e formal,
como a verdadeira mulher de negócios
que era. Me levantei para cumprimentá-
la.
— É bom te ver de novo, Emily
— falei, com sinceridade.
— Igualmente. Devo desejá-la
meus pêsames, sei que os últimos meses
não devem ter sido fáceis para você e
seus amigos.
Engoli em seco, balançando a
cabeça.
— Realmente não foram —
concordei, sem me aprofundar muito
naquele assunto. — Mas no que posso
ajudá-la?
— Já deve saber que comprei a
galeria.
— Sim, foi uma ótima notícia.
— Realmente. O único
problema é que não poderei administrá-
la. Você sabe que eu tenho um emprego
fixo como crítica de arte em Nova York
e, apesar de estar apaixonada pela ideia
de reconstruir a galeria, não terei tempo
para dar a ela a atenção necessária. —
Franzi o cenho, não entendo sobre o que
aquilo se tratava. — Vou direto ao
ponto. Quero que você, Raven, seja a
minha sócia. Quero que me ajude a
colocar aquele lugar de pé novamente, e
que o transforme em algo muito maior
que um refúgio artístico. Sei que é a
pessoa certa para isso, porque você
respira arte. Aquele lugar precisa de
você e das suas obras.
Pisquei uma, duas, três vezes
até assimilar todas as suas palavras.
— Espera, acho que não
entendi direito — falei, incrédula.
— Sydney me disse que você
não aceitou a bolsa para estudar em
Nova York e, para ser sincera, fiquei um
pouco orgulhosa dessa sua decisão. Lá
você seria apenas mais uma estudante
comum lutando para entrar no mercado
da arte, e você está tão acima disso,
Raven. Merece o seu próprio santuário.
E essa é sua chance de ser grande.
Apertei as mãos uma na outra,
sentindo meu corpo arrepiar diante
daquela chance. Eu estava feliz na
Universidade, sabia que eu queria a arte
na minha vida, tanto quanto queria o
Pandemônio. E agora eu tinha a
oportunidade de ter ambos.
Liderar uma galeria era algo
grande, algo magistral. Eu era jovem e,
sem dúvida, não era a pessoa mais
experiente no ramo. Ainda assim, eu
tinha instinto pra arte e confiava nisso.
Confiava que eu era capaz de lidar com
isso.
— Grande como Evelyn Wrath
— ressoei, emocionada com a
possibilidade que parecia incrível
demais para ser verdade.
— Não — Emily discordou. —
Grande como Raven Clarke.
Mordi meu lábio inferior,
contendo a emoção que me inundou
naquele instante. Era muito mais do que
eu jamais sonhara e, ainda assim, estava
bem ali ao meu alcance.
— Eu aceito.

Coloquei uma mecha de cabelo


atrás da orelha, estreitando os olhos
para conseguir enxergar, sob a intensa
luz do Sol, o grupo que continha pelo
menos uma dezena de motoqueiros. Eles
estavam em fila, fechando a estrada com
suas máquinas e esperando pelo cara à
minha frente, que em breve se juntaria
ao grupo.
Torci o nariz em desconfiança e
retornei meu olhar para Nick.
— Vai mesmo ir com eles? —
perguntei, provavelmente pela milésima
vez.
Nick riu, recostando-se em sua
moto.
Era bom vê-lo inteiro
novamente. Ele se recuperara rápido,
era muito forte e resistente. Desde o
incêndio, porém, esteve distante. Ficara
recluso em seu trailer, de modo que eu
apenas o vira poucas vezes. Sentia falta
de sua companhia, mas estava
respeitando seu espaço. Afinal, cada um
tinha sua própria maneira de lidar com o
luto. Também não estava sendo fácil pra
mim. Todos nós precisaríamos de tempo
para superar.
Quando Nick anunciara que
estava indo embora junto com os
Daggers, contudo, eu não ficara nem um
pouco feliz. Era difícil imaginar Nick de
volta ao grupo de homens de caráter
duvidoso que costumavam seguir Garrett
Voich. Eles não eram inocentes. Muito
pelo contrário. As coisas que fizeram
assombrariam Carmine para sempre.
Mesmo após tanto tempo, ainda
estávamos tentando reparar as
consequências dos atos dos Daggers,
garantindo que nunca mais nada
parecido acontecesse de novo naquela
cidade.
— Sim, eu vou. Não pertenço a
essa cidade, Raven, e nem eles. Mas
todos nós estamos dispostos a mudar, a
sermos melhores.
Suspirei, escrutinando seu
rosto. Os cabelos raspados num corte
militar eram de um tom mais claro do
que o de seu irmão. Percebi isso sob o
sol que estava a pino naquela tarde de
início de março. Era o mesmo castanho
de seus olhos, igual aos de seu pai, Joel.
Lidar com aquilo deveria estar sendo
muito difícil. Nick perdera a família
inteira e, se eu o conhecia bem, apostava
que ele acreditava estar sozinho no
mundo.
E, embora não gostasse, eu não
era ninguém para negar aos Daggers sua
chance de redenção. No fim das contas,
eles nos ajudaram a derrotar Connor. E
Nick, por sua vez, tinha seu próprio
débito de pecados a serem pagos e
superados. Se ele era capaz de obter
redenção, qualquer outro Dagger
também poderia. Nem todos eles eram
como Garrett e Connor.
— Poderia ficar com o
Pandemônio — sugeri, esperançosa. —
Sempre houve um lugar para você
conosco.
Ele apenas negou com um
meneio de cabeça, fazendo careta
— Sei que vai sentir minha
falta, menina.
Sorri, me lembrando de quando
ouvi aquele apelido estúpido pela
primeira vez. Estávamos ambos
perdidos e desolados no meio do
deserto. Nunca imaginaríamos estar ali,
naquela situação, tantos meses depois.
— Eu vou — admiti, colocando
uma mão sobre seu ombro num gesto
reconfortante.
— Mas não se preocupe, meu
trailer vai continuar na cidade, é uma
promessa de que vou voltar para visitá-
los.
— Acho bom mesmo —
brinquei. — E o Dodger?
— Ah, ele está no carro com
Slade. — Nick apontou para a única
caminhonete entre tantas motos, poucos
metros à frente.
— Pra onde vocês estão indo,
afinal? — perguntei, cruzando os
braços.
— El Sangria.
Meus olhos se arregalaram.
— O reino de Caesar Vance?
Ficou maluco de vez, Nicholas? Ele irá
te comer vivo.
Ele gargalhou alto.
— Eu não teria tanta certeza
disso — gabou-se com arrogância.
— Está indo caçar encrenca,
não é?
— Você me conhece, gosto de
emoção.
Suspirei, sabendo que não
havia como convencê-lo do contrário.
Os irmãos Wrath eram desgraçados
teimosos.
— Vê se não morre por lá. —
Foi a única coisa que pude dizer.
— Farei o possível. — Um dos
Daggers assobiou, chamando Nick, que
acenou em resposta. — Preciso ir,
Clarke. É uma longa viagem até o sul da
Califórnia.
Balancei a cabeça, percebendo
que não poderia mais prorrogar nossa
despedida. Assim, não disse nada.
Apenas o puxei para um abraço forte e
cheio de significado.
Nick estava indo embora de
Carmine novamente, mas dessa vez eu
esperava que ele encontrasse o que
procurava há anos. E que conseguisse
perdoar a si mesmo.
O que éramos, afinal, senão
pecadores em busca de redenção?
Quando nos afastamos, Nick
montou em sua Harley Davidson. Antes
de colocar o capacete, contudo, me
olhou no fundo dos olhos. — Vai ficar
tudo bem, Raven — garantiu, veemente.
Assenti, querendo acreditar mesmo
naquilo.
Nick me lançou uma piscadela
cúmplice antes de arrancar com a moto.
E eu permaneci na beira da estrada, com
as mãos nos bolsos da jaqueta do
Pandemônio, assistindo eles partirem.
E com palavras não ditas
Uma devoção silenciosa
Eu sei que você sabe o que
quero dizer
E o fim é desconhecido
Mas eu acho que estou
preparada
Enquanto você estiver comigo
Angels - The xx

Ir ao cemitério se tornara um
hábito. Naquela tarde, após Nick ir
embora, dirigi automaticamente até lá. O
lugar ficava acima de uma trilha
empoeirada e solitária, não muito
distante da estrada que levava à saída da
cidade. Muitas lápides frias e cinzentas
estavam espalhadas por ali, expostas
para serem castigadas pelo sol rigoroso
do Arizona. Eu nunca olhava para a
maioria delas, apenas para duas.
Os túmulos de Hades e Fiona
estavam localizados bem abaixo de uma
bela árvore e flores brancas. Era
praticamente a única vegetação ali, tão
perto do deserto, que ainda tinha galhos
cheios de folhas verdes e brilhantes. Era
como um símbolo de vida no meio de
tanta morte.
Frederik fora enterrado no
mausoléu dos Wrath, junto a seus
antepassados, mas Hades não. Eu sabia
que ele iria querer descansar durante a
eternidade junto de sua melhor amiga, e
não com a linhagem de velhos
insensíveis e gananciosos do seu pai.
Mordi o lábio inferior, fitando
os nomes de Hades e Fiona esculpidos
nas lápides de pedra cinza. Nunca me
acostumaria àquilo, à ideia de que eles
não estavam mais naquele mundo.
Ainda assim, quando estava ali,
parecia que estava mais próxima deles,
de alguma forma. E, mesmo não
acreditando muito no mundo espiritual,
esperava que, seja lá onde estivessem,
fosse um lugar feliz. Eles mereciam
aquilo, afinal. Mereciam a paz após
tantas batalhas árduas.
Mas, àquela altura, eu ainda
não me sentia como pensei que iria.
Quando Nick se fora, pensei que
finalmente conseguiria algum tipo de
encerramento, uma conclusão, uma vez
que tudo tivesse mudado. No entanto,
ainda era como se não tivesse acabado.
Como se houvesse uma ponta solta, uma
página faltando.
Eu teria que me acostumar com
aquela sensação de espera? Seria
sempre uma história em aberto para
mim?
Embora encarasse fixamente
aquelas lápides por minutos a fios, não
parecia que eu estava perto de conseguir
qualquer tipo de resposta para aquelas
perguntas.
Talvez eu fosse vagar pelo
mundo sem nenhum destino, apenas
esperando, ansiando, para que um dia eu
o reencontrasse novamente. Eu poderia,
concluí, acreditar em alguma divindade
ou plano espiritual se isso significasse
que no fim, depois da vida, nós
reencontraríamos aqueles que amamos e
perdemos.
— Você não facilitou as coisas
pra mim, Hades Wrath — falei,
tombando a cabeça para trás e voltando
meus olhos pro céu azul sem nuvens.
Estava um tempo ensolarado e otimista,
oposto a como eu me sentia. — Me
deixou maluca e confusa e eu te amei
tanto. Ainda amo. Como você pôde
achar que eu seria capaz de te odiar? —
Meus olhos marejaram novamente. Era
inevitável naqueles momentos. E mesmo
que me deixasse triste, eu não conseguia
abandonar o costume de conversar com
ele. Ainda que não fosse realmente ele,
apenas um pedaço de mármore. — Sinto
sua falta. Pra caralho. Daria tudo para
ouvir você me chamar de amor de novo.
Meu queixo começou a tremer e
eu fechei os olhos para conter o choro.
Eu estava me tornando uma bomba de
emoções à flor da pele, prestes a
explodir a qualquer momento.
Passei as mãos no rosto, me
sentindo exausta e um pouco tola. O que
eu estava esperando indo até aquele
cemitério todos os dias? Não era como
se ele fosse voltar, afinal. Ainda assim,
não existia outra opção para mim.
Mesmo que estivesse condenada a ir até
lá, apenas para sentir mais dor e
lamentar meus arrependimentos, aquela
era a única maneira de me manter sã,
porque nada nunca poderia ser pior do
que os momentos em que eu realmente
sentia que era possível morrer de
saudade.
Foi então que a rouquidão
familiar de uma voz soou atrás de mim,
como um eco que se prolongava numa
sala imensa e vazia.
— Olá, amor.
Paralisei.
Fiquei atônita, em estado de
choque, por alguns segundos antes de me
virar lentamente para encontrar o dono
daquela voz.
E era exatamente quem eu
imaginava.
Tampei minha boca com as
mãos, arregalando os olhos em
incredulidade. Não era possível que
Hades estivesse bem ali diante de mim,
com o sorriso torto que eu tanto
conhecia estampado no rosto. Cogitei a
possibilidade de ter perdido o que
restara da minha sanidade. Talvez fosse
um delírio, uma alucinação. Estes sinais
eram comuns em pessoas enlutadas.
Talvez fosse um fantasma.
Pisquei, e uma lágrima solitária
se desprendeu dos meus cílios e
escorreu pelo meu rosto. Chacoalhei a
cabeça, esperando que ele
desaparecesse, mas Hades permaneceu
ali. Esfreguei os olhos, sentindo meu
coração bater forte e desesperado, como
não fazia há mais de três meses. Como
se houvesse voltado à vida.
— Não é possível — sussurrei,
tentando convencer a mim mesma.
Ele estava tão bonito. Os fios
pretos de seu cabelo estavam maiores e
despenteados, como eu preferia. A barba
estava perfeitamente aparada, expondo
as linhas duras de seu maxilar liso e
esculpido.
Hades caminhou até mim,
diminuindo consideravelmente o espaço
entre nós. Quando parou, estava próximo
o suficiente para que eu o tocasse. E foi
exatamente o que fiz. Estendi minha mão
até a ponta dos meus dedos encostarem
em seu rosto.
Quase ofeguei ao sentir sua
pele macia e naturalmente gelada.
Um soluço me escapou e eu
mordi meu lábio inferior com força,
sentindo as lágrimas quentes rolarem
desenfreadamente pelas minhas
bochechas.
Segurei seu rosto entre as mãos.
Era tão palpável, tão real. Afastei a
parte de seu cabelo que caía levemente
sobre seus olhos e mergulhei naqueles
olhos surreais. Ele estava tão perto, eu
sentia sua respiração quente em minha
pele, acordando cada porção do meu
corpo que estivera adormecida. Deslizei
a curva do meu dedo indicador pelas
maçãs de seu rosto, passando pelas
têmporas até onde estavam localizados
os ossos zigomáticos e, em seguida,
descendo até seus lábios naturalmente
rosados. Eu mal precisava me esforçar
para recordar vividamente do gosto da
sua boca.
Não esperei mais nenhum
segundo para puxá-lo na minha direção,
sentindo de perto seu corpo contra mim.
Afundei meu nariz na curva de seu
pescoço e aspirei seu cheiro. Parecia um
sonho, como todos os outros que eu
tivera com ele durante aqueles três
meses. Mas nos sonhos nunca fora tão
real.
— Porra… — ele soprou, me
abraçando mais forte. — Senti tanto a
sua falta.
Então eu tive minha
confirmação de que tudo aquilo era, de
fato, real.
Minhas lágrimas estavam
molhando sua jaqueta, mas não me
importei. Por um instante, só consegui
pensar em como Hades estava de volta.
Acreditei que nunca mais fosse vê-lo,
mas ele estava agora em meus braços.
O que acontecera? Como ele
poderia estar ali?
Seu túmulo, onde o pó ao qual
seu corpo fora reduzido estava
enterrado, estava bem atrás de mim.
Não restou nada dele, os
policiais e bombeiros disseram: “Nada
além das cinzas”.
Empurrei-o bruscamente.
— Onde diabos você esteve?!
— perguntei, elevando o tom de voz.
Hades franziu o cenho. Ver seu rosto
belo e cínico e as tatuagens em seu
pescoço e braços só serviu para me
deixar mais irritada. Empurrei seu
ombro novamente. — Todos nós
lamentamos a sua morte. Tem noção do
quanto sofremos?
Sequei as lágrimas
furiosamente.
— Raven, eu…
— Sempre soube que era um
canalha manipulador, mas fingir a
própria morte? Isso foi cruel!
— Eu posso explicar — ele me
interrompeu. A contragosto, me calei e
esperei que o fizesse. Ele suspirou,
passando a mão pelos cabelos. — Você
sabe que Doakes queria minha cabeça a
qualquer custo. Ele não iria deixar pra
lá. Mesmo com Connor morto, ele não
desistiria até me destruir. E também
destruiria a vida de cada um no
Pandemônio. Eu não podia permitir, mas
não havia tempo para pará-lo. Eu
precisei arranjar mais tempo.
— E fez isso fingindo a própria
morte? — adivinhei, ainda pouco
convencida.
— Se eu saísse de cena, ele
deixaria o Pandemônio em paz. Foi a
única maneira. Strauss planejou tudo.
No começo, eu não quis aceitar. Sabia
que seria cruel. Então, houve o incêndio.
Depois de encontrar Astrid trancada no
banheiro e ajudá-la a sair, tentei voltar
para buscar meu pai. Ele estava no
escritório, mas o caminho para lá estava
totalmente inacessível. Saí por uma das
janelas laterais pouco antes da explosão.
A ideia só me ocorreu naquele momento
e eu tive que fazer isso. Não foi fácil,
principalmente quando ouvi seus gritos.
Não teria feito isso se houvesse outra
maneira, eu juro.
Ele se sacrificara, novamente.
Fizera isso pelo Pandemônio, sua
família.
Senti minha raiva se dissipar
aos poucos.
Cruzei os braços, trocando o
peso da perna.
— Mais alguém sabia? —
perguntei, o tom mais baixo dessa vez.
— Além da Strauss? Apenas o
Nick. Eu não podia fazê-lo passar por
algo assim. Tinha medo do que isso faria
com ele.
— Você podia ter me contado
— argumentei. Se ele tivesse me dito
seus planos, teria mudado tudo.
— Eu quis, mas era arriscado
demais. Strauss disse que Doakes
provavelmente iria te rondar nos dias
seguintes ao que acontecera a Connor.
— Ele suspirou, e pude ver em seus
olhos que ele estava cansado. Fora
difícil para Hades também. — No
primeiro mês, pedi a Nick que me
dissesse como vocês estavam, mas ele
não conseguiu. Falou que não suportava
vê-los sofrendo sem poder contar a
verdade, então se afastou.
Levantei as sobrancelhas,
compreendendo tudo. Agora fazia
sentido o comportamento evasivo de
Nick nas últimas semanas.
— O que aconteceu com
Doakes? — perguntei, com uma pontada
de preocupação em minha voz.
— Foi difícil provar os crimes
dele, mas conseguimos. Foram três
meses de investigação ininterrupta. Há
duas semanas encontramos uma
testemunha chave que nos ajudou a
expor o grande esquema de corrupção
dele. Doakes era o contato de vários
mafiosos dentro do governo, inclusive
Caesar Vance. Ele ganhava muito
dinheiro. Agora está preso.
Provavelmente vai pegar quarenta anos
na prisão federal.
Suspirei com alívio, mal
acreditando que aquele desgraçado
havia finalmente saído de nosso encalço.
O aperto em meu peito se afrouxou e o
peso em meus ombros, que estava ali há
tanto tempo, finalmente sumiu. Meu
corpo se arrepiou e senti meus olhos
voltarem a marejar novamente. Não
conseguia acreditar que era verdade.
Parecia perfeito demais, utópico
demais.
Mas, se fosse apenas um
delírio, não desejava nunca mais voltar
à sanidade.
Me senti leve e esperançosa
pela primeira vez em muito tempo,
vendo a cor e o brilho de tudo voltarem
lentamente.
— Acabou, amor. — Hades
sorriu, apanhando meu rosto entre as
mãos. Ele secou uma lágrima que
voltara a cair.
Era a primeira vez que eu
chorava de felicidade e era
maravilhoso.
Encerramento.
Era assim que se parecia, era
essa a sensação. Porque a última peça
do meu quebra-cabeças estava de volta,
e suas arestas encaixavam perfeitamente
nas minhas. Era Hades quem estava
faltando para que tudo ficasse completo
e eu pudesse colocar um ponto final
naquela parte da minha vida, para
finalmente iniciar a próxima.
— Ainda estou brava com você
— menti, após fungar. Eu já estava
cedendo ao seu olhar intenso e ao toque
carinhoso de seu polegar em minha
bochecha.
— Que eu me lembre, quando
cheguei aqui você estava dizendo que
me amava — se gabou.
— Porque pensei que estivesse
morto — retruquei. — E você também
disse que me amava. Um pouco antes de
caminhar para dentro de uma casa em
chamas. Poderia ter morrido de verdade,
seu babaca irresponsável. — Ele riu, os
olhos brilhando ao me fitar. — Além
disso, muita coisa mudou nesse tempo.
Agora eu sou sua chefe.
— Uau, gostei disso. Soa sexy
pra mim.
Ele passou a língua sobre os
lábios, atraindo meu olhar para sua
boca, antes de sorrir.
Bom demais para ser verdade.
— Não faça isso comigo de
novo — pedi, séria.
Não poderia sequer cogitar
perdê-lo novamente, eu mal tinha
sobrevivido da primeira vez.
— Não irei, amor — prometeu,
colocando uma mecha do meu cabelo
atrás da orelha. — Vou ficar pelo tempo
que você quiser que eu fique.
— Pra sempre — desejei.
— Combinado.
Hades se inclinou e encostou
seus lábios nos meus, suavemente. Me
senti aquecida por completo.
Soube que naquele momento
estávamos selando uma promessa e tive
certeza de que, de fato, tudo ficaria
bem.
Esta escuridão é a luz
Nós lutamos todas as noites
por algo
Quando o sol se põe nós somos
iguais
Metade nas sombras
Metade queimado em chamas
Não podemos olhar para trás à
toa
Eu te dei tudo
E é um belo crime
Beautiful Crime - Tamer
Um ano depois

Era indescritível a sensação de


ver todo o resultado do meu trabalho
duro na galeria. Na noite em que ela
finalmente estava inaugurando, tudo
parecia perfeito. As luzes recaindo
sobre as obras de arte penduradas em
paredes de vidro, as esculturas nos
centros dos corredores, as dezenas de
pessoas ansiando para ver e aprender
sobre tudo.
Era extremamente gratificante.
Sobre um pequeno palanque de
madeira, na frente do principal quadro
da exposição, estávamos Hades e eu.
Ele lá na frente, estonteantemente belo
em um black tie caro e elegante, fazendo
seu discurso para o grande grupo de
pessoas, dentre os quais estavam
jornalistas, críticos de arte, e os nossos
amigos. Todos vestidos formalmente, de
pé no hall da galeria, ouvindo mais
sobre a origem daquele lugar, que
remontava a uma artista jovem e
visionária, que era dedicada unicamente
à arte até se tornar devotada aos filhos.
Não fora uma tarefa fácil
colocar aquele lugar de pé novamente,
mas, com certeza, valia a pena cada
segundo. Através daquela galeria, eu
pretendia honrar o legado de Evelyn
Wrath, uma artista e pessoa incrível que
nunca pude conhecer, e construir o meu
próprio. Fazer o que ela não pôde:
conquistar o mundo.
E eu sabia que algumas pessoas
duvidavam que eu fosse capaz disso.
Era um projeto grande, afinal. Mas eles
veriam, quando adentrassem à galeria e
se deparassem com todas as obras que
eu pintara — e com as outras que
escolhera — que não deveriam me
subestimar. Aquele era apenas o
começo. Nas próximas exposições eu
pretendia elaborar algo ainda maior.
Algo épico.
Não haveria mais limites para
mim.
— Agora, gostaria de chamar
um brinde para a pessoa que tornou tudo
isso possível — Hades anunciou,
levantando a taça de champanhe ao olhar
para mim. — Raven Clarke.
Abri um sorriso que mal podia
caber em meu rosto. Por baixo do
nervosismo momentâneo de falar para
uma grande plateia, eu transbordava de
felicidade. Em parte, era a maneira
como Hades me olhava e falava meu
nome. Eu sentia a admiração e o amor
quando ele olhava para mim, e eu
duvidava que existisse algo mais bonito
e sagrado que isso.
Às vezes, eu o flagrava me
encarando em silêncio. Também fazia
muito isso com ele. Os momentos
silenciosos entre nós se tornaram os
mais importantes, porque era quando
apenas aproveitávamos a companhia um
do outro, agradecendo internamente por
ainda termos aquilo. Aquela conexão
rara.
Dei alguns passos à frente, indo
até Hades, e levantei minha taça na
direção da sua. Ele sorriu daquele jeito
charmoso que só ele conseguia, me
olhando como se pudesse ver através da
minha mente, como se não houvesse uma
só parte da minha alma que não fosse
conhecida e adorada por ele.
Hades me lançou uma piscadela
cúmplice e, em seguida, proclamou
satisfeito o meu discurso.
Respirei fundo antes de me
postar atrás do microfone. Dei uma
breve olhada no texto curto escrito no
papel sobre o púlpito. Aquelas palavras,
meus rabiscos familiares, eram o que eu
planejara dizer naquela noite. Algo curto
e elegante, que deveria agradar os
grandes jornalistas e críticos de arte.
Afinal, eles escreveriam sobre aquela
galeria na próxima semana e eu queria
muito que ficassem impressionados com
o que eu criara. Mas, por fim, decidi que
não era boa com planejamentos
rigorosos, então ignorei o papel e
levantei a cabeça.
Sabia que estariam gravando
minhas palavras e que meu rosto seria
estampado nos jornais e tabloides e, de
certa forma, ficava feliz pelas fofocas e
boatos que surgiriam disso. Afinal,
muitos tinham ciência de quem eu era e
o que eu fazia quando não estava
pintando. Eu tinha certeza de que esse
era o motivo pelo qual uma parte dos
visitantes estavam ali, curiosos; uma vez
que todos em Carmine, em algum
momento, ouviram falar do Pandemônio.
Mas era bom que
especulassem, que ficassem intimidados.
Eles deveriam saber que estávamos no
topo. Que aquela cidade era nossa e que
estávamos prontos para lutar por ela
com quem quer que ousasse nos
desafiar.
— Durante o último ano, muitos
me perguntaram sobre o tema da grande
exposição que reinauguraria essa
galeria. Acho que esse é o momento
certo para tentar, de alguma forma,
explicar o conceito por trás das obras
que criei — iniciei, apoiando minhas
mãos sobre o púlpito de madeira.
Olhei para todas as pessoas que
eu amava e que estavam ali nas
primeiras fileiras, sempre me apoiando.
Alec e George, Khalil e Alina, Selina e
Wade, Libby, Zora, minha mãe… Todos
me olhavam com um orgulho que me
encheu de força. De tanto eles
acreditarem em mim, passei a acreditar
também. E eu também tinha orgulho
deles. Principalmente da minha mãe.
Astrid parecia uma pessoa
muito distante da mulher que me
abandonara em Dallas há tantos anos. A
terapia e o apoio das pessoas seu redor
estava lhe ajudando a se desintoxicar
das drogas e dos seus relacionamentos
abusivos. Aquela cidade ressignificara o
conceito de recomeço para nós duas. E,
agora, quando eu olhava para o futuro, já
não parecia tão assustador. Porque eu
havia encontrado em Carmine não
apenas o que deu sentido e significado
para minha vida, mas a família que eu
sempre desejara.
Mais do que certa sobre minhas
palavras, continuei:
— Os quadros que vocês irão
ver essa noite traduzem um pouco dos
meus sentimentos confusos. Assim, eles
não são sobre uma coisa específica. São
sobre recomeços. E entender que, para
tê-los, não é preciso abandonar suas
raízes, sua essência, ou tudo o que você
mais ama. São sobre encontrar
esperança naqueles que já se foram. —
Suspirei, me virando para olhar para a
pintura viva e colorida que eu fiz de
Fiona, emoldurado na principal parede
do hall como um lembrete. — E também
naqueles que ainda nem estão neste
mundo.
Em seguida, alternei meu olhar
para Wade, abraçado a uma Selina
grávida de oito meses.
Sorri.
Aquela gravidez havia mudado
tudo para todos nós. Era a esperança que
precisávamos. A certeza de que as
coisas iriam melhorar. A bebê de Selina
e Wade, mesmo antes de nascer, já tinha
uma enorme família que esperava
ansiosamente para conhecê-la e lhe
contar histórias sobre o Pandemônio.
— E são sobre aprender a
perdoar. Principalmente, a nós mesmos.
Quando a rede de aplausos se
iniciou, busquei apenas uma pessoa
entre todas as outras. Meu olhar foi para
Hades, parado a alguns metros de
distância, fitando-me intensamente.
Seus lábios se mexerem, e
neles, de longe, li o "eu te amo" que
sussurram.
Sorri.
Naquele instante, lembrei da
tempestade que enfrentamos nos últimos
anos e como, apesar de tudo, Hades e eu
fomos compelidos um para o outro.
Todas as minhas dúvidas se dissolveram
rapidamente quando o perdi, pois só
então compreendi a força e a beleza do
que havia entre nós.
Ele sempre fora o meu reflexo.
Éramos lados opostos da mesma moeda
e iluminávamos a escuridão um do
outro.
Alguns podiam nos considerar
monstros e talvez não estivessem
errados. Hades e eu éramos ambos
monstros belos e perigosos, quebrados e
perdidos. E talvez um dia fôssemos
cobrados por todas as terríveis coisas
que fizemos sob justificativa de serem
um meio para um fim. Mas, enquanto o
juízo final não chegasse,
permaneceríamos nas sombras.
Juntos.
Algo sobre você
É como um vício
Me acertou com o seu melhor
golpe, querida
Porque certas coisas
machucam
E você é minha única virtude
Você me tem em sua
misericórdia
Porque certas coisas queimam
Mas estou certo de que sou seu
Certain Things - James
Arthur
feat. Chasing Grace
Beberiquei o Martini, olhando
para o homem do outro lado do cassino.
Ele estava usando a camisa preta que eu
tanto gostava. Os primeiros botões
estavam soltos e as mangas arregaçadas
até os cotovelos. Os desenhos das suas
tatuagens subindo por sua pele até
desaparecerem sob o tecido da roupa
era hipnotizante. Eu passara o último
ano tentando decorar cada uma delas e
ainda não fora o suficiente. Talvez eu
precisasse de mais tempo. Talvez
precisasse de todos os anos pelo resto
de nossas vidas.
Essa ideia me fez sorrir.
Hades estava debruçado no
balcão, com os dedos ao redor de um
copo de uísque. Estava descontraído,
sorrindo enquanto conversava com
Khalil.
Eu estava do lado oposto, a
alguns metros, encostada contra um dos
pilares espalhados pelo porão do
Pandemônio. A jaqueta do Pandemônio
recaía sobre meus ombros, cobrindo
parcialmente o vestido preto e justo que
eu usava. Enquanto saboreava o sabor
do meu drink eu observava Wrath
atentamente, tentando decifrá-lo.
Eu era um ímã e ele era um
metal à deriva, porque ele logo
percebeu que eu o encarava e virou o
rosto na minha direção. Os olhos
escuros me encontraram e se fixaram nos
meus, me acertando como uma bala. Um
sorriso cresceu lentamente em seu rosto,
se arrastando no canto de sua boca.
Passei a língua pelo meu lábio
inferior, sobre o batom vermelho que o
provocava tanto, antes de mordê-lo.
Notei seu corpo ficar tenso e o
divertimento sumir de seu rosto. Ele se
endireitou. Não era nem um pouco
difícil excitá-lo. Aquela se tornara
praticamente minha especialidade.
Sorri, satisfeita.
Ele fez menção de vir até mim,
sabia que queria me puxar até o
banheiro e se enterrar em mim. Mas,
antes que ele pudesse fazer isso, notei
algo de soslaio. Poderia passar
despercebido para olhos destreinados,
mas não para mim.
Um homem alto e forte, de
cabelos raspados, trajando roupas
sociais, sinalizara para outro homem na
mesa de Blackjack. Após passar tempo
naquele cassino, eu aprendera todos os
sinais que as pessoas podiam dar para
tentar trapacear em jogos de azar. Quem
não era bom o suficiente para não ser
pego por Hades, Selina ou eu, se
arrependia muito. E, honestamente, não
sabia se já passara alguém pelo cassino
do Pandemônio que fosse capaz de nos
enganar.
Nós pegávamos todos eles.
Alternei meu olhar de volta
para Hades. Ele também tinha notado.
Seu rosto se fechou numa carranca.
Estava bravo por ter acontecido algo
que o interrompera de fazer comigo, o
que ele estava planejando.
“É a sua vez”, seus lábios
disseram, em silêncio.
Rolei os olhos. Nós
costumávamos nos revezar naquela
função. Ele gostava de me assistir
trabalhando na gangue, gostava de me
ver intimidando aqueles que saíam da
linha estabelecida pelo Pandemônio.
E eu amava isso nele. A
maneira como ele acreditava em mim,
como não temia que eu fosse melhor que
ele, como, na verdade, ele desejava que
eu fosse. Hades não me tornara forte e
capaz, mas me ajudara a descobrir como
eu sempre fui assim. E, embora
governássemos o submundo daquela
cidade juntos, eu sabia que se pedisse
sua coroa, ele não hesitaria em me
entregá-la.
Tirei do bolso da jaqueta a
carta e andei sobre os sapatos de salto-
alto até à mesa. Os dois homens que
estavam roubando no jogo se
empertigaram com minha aproximação.
Eles, como todos os outros, sabiam o
que aquilo significava. Os jogadores do
cassino se voltaram para nós assim que
depositei a carta dourada sobre a mesa,
na frente dos dois homens.
— Rainha de Copas? —
indagou um deles, o careca, levantando
o rosto na minha direção. Ele tinha o
cenho franzido em confusão.
Sorri.
— Acredite ou não, é a carta
mais poderosa do baralho.
Em seguida, meneei a cabeça
na direção de Khalil e Hades, que se
aproximaram para levar os homens para
fora. Quando Hades passou por mim, fiz
questão de agarrar seu braço, parando-o
por um momento.
— Seja rápido — ordenei.
Ele ficou mais do que feliz em
obedecer.

— Você é louco — falei, sem


conseguir disfarçar o sorriso enorme
que enfeitava meu rosto enquanto eu
analisava a tatuagem que tomava grande
parte do dorso de sua mão esquerda.
Estávamos sentados sobre uma
toalha no chão, no topo de uma colina —
a mesma na qual ele me levara para
assistir ao nascer do Sol após me
preparar para a corrida no Círculo.
Agora, cercados pelas rochas e a
vegetação escassa do deserto,
repetíamos o que se tornara uma espécie
de ritual para nós. O Sol nascia
preguiçosamente no horizonte, dando ao
céu uma tonalidade laranja-avermelhada
e iluminando os prédios de Carmine.
A cidade se estendia abaixo de
nós como nosso império e, ali do alto,
era como se Hades e eu fôssemos
intocáveis. Como se fôssemos, de
alguma forma, deuses.
— Eu precisava ter um desenho
seu tatuado na minha pele, amor — disse
ele.
Era, de fato, um dos melhores
desenhos que eu já tinha feito. As asas
do corvo — que representava meu nome
— estavam muito bem detalhadas. Os
traços eram finos e precisos. Sem
dúvidas se tornara minha tatuagem
preferida em meio a todas as outras que
enfeitavam seu corpo.
— Ficou linda — observei,
entrelaçando nossos dedos.
Hades sorriu. Ele se inclinou e
apanhou duas taças que estavam dentro
da cesta do nosso piquenique da
madrugada. Me entregou uma delas e,
depois, tirou de lá uma garrafa de
champanhe. Estreitei os olhos enquanto
ele arrancava a rolha com um
movimento simples, sem esforço.
— Estamos comemorando
alguma coisa? — perguntei, levantando
uma sobrancelha.
Hades encheu ambas as taças.
Ele odiava champanhe, sequer mantinha
alguma garrafa na adega do nosso
apartamento, o que tornava mais
estranho ainda o fato de ele ter trazido
essa bebida para o nosso piquenique.
— Acho que talvez estaremos
comemorando a próxima tatuagem que
vou fazer.
Franzi o cenho, ainda confusa.
— Hades, não sobrou nenhum
lugar livre em seu corpo para tatuar —
disse, achando graça.
Tomei um gole do champanhe.
Sabia que era extremamente caro. A
qualidade da bebida estava evidente em
seu gosto. Era muito bom, embora não
fosse meu preferido, tampouco.
Hades, porém, estava sério, os
orbes negros de seus olhos me
perscrutavam com tanta intensidade que
poderia facilmente arrancar a alma do
meu corpo.
— Ainda tem um lugar —
discordou, levantando a mão esquerda.
—, bem aqui neste dedo. — Ele apontou
para o dedo anelar. — Eu quero tatuar
um anel. Porque, você sabe, alianças
saem, mas a tatuagem é um compromisso
para a vida inteira. Ela fica pra sempre,
igual nós dois.
Meu corpo se arrepiou
completamente. Me endireitei, os olhos
alternando da base de seu dedo, onde a
pele estava imaculada, para seus olhos.
Eu sabia que ele não estava brincando.
Na verdade, provavelmente nunca antes
ele estivera falando tão sério.
— Hades, o que…
Balancei a cabeça, um pouco
incrédula.
— Case comigo — pediu, de
repente, me atingindo como um tiro. —
Case comigo, Raven Clarke, pois não há
nada que eu deseje mais do que viver e
morrer ao seu lado. Case comigo,
porque eu quero garantir que nem
mesmo a morte seja capaz de separar
nossas almas.
Levei minha mão até a boca,
batendo os dedos contra meus lábios em
espanto. Pisquei, atônita, sentindo as
lágrimas surgirem muito rápido. Mesmo
tentando me conter, não consegui evitar
que elas deslizassem para fora dos meus
olhos e rolassem pelo meu rosto
desenfreadamente. Hades estendeu a
mão até o meu rosto e as afastou com
seu toque suave, gentil e acalentador.
Eu ainda não acreditava no que
ele estava dizendo. Parecia muito irreal
para mim. Nunca imaginara que um dia
poderia ter aquilo. Um lar, uma família,
alguém com quem compartilhar meus
piores e melhores momentos. Alguém ao
lado do qual eu trilharia a vida.
Meu corpo se arrepiou
novamente, meu coração martelava de
maneira insana e descompassada, como
se pudesse explodir com aquele
sentimento desconhecido.
— Amor… — soprou Hades,
esperando a resposta.
Eu não sabia se conseguia falar,
porque naquele instante eu estava sendo
preenchida com coisas que pensei que
nunca seria capaz de sentir. Coisas
impossíveis de descrever ou mensurar,
mas que estavam transbordando de mim
através de muitas lágrimas. Eu não
conseguia parar de chorar.
— Eu… — engasguei com um
soluço, mas rapidamente o engoli e
respirei fundo. Deixei a taça de lado e
me coloquei de joelhos para alcançar
um pouco sua altura. Coloquei minhas
mãos em seu rosto, imergindo
profundamente na escuridão de seus
olhos. — Viver e morrer com você,
Hades Wrath, é tudo o que eu quero.
Ele sorriu e, com isso, iluminou
tudo ao redor muito mais do que o Sol
seria capaz de fazer. Não sorriu com
alívio ou arrogância, mas com outra
coisa. Esperança, talvez.
E eu senti aquilo vividamente
quando nos abraçamos, nossos corpos
sendo atraídos um para o outro, se
encaixando, se colidindo. Senti aquilo
percorrer todas as minhas veias e
inundar meu interior. Senti que poderia
morrer daquilo.
Esperança.
Atenção: o capítulo a seguir é
um crossover com o livro
Tempestuosos da Tay Ferreira
(segundo volume da duologia
Nebulosos) e contém spoilers

Eles me chamam de ameaça


Estou onde você queria estar
Não há ninguém à minha
frente
Todos os meus inimigos
tomaram a decisão
De que é melhor me seguir
Não peço desculpas a ninguém
Todos os meus pecados, eu os
repetiria, e os repito
Wreak Havoc - Skylar Grey

Alguns meses antes

Antes que eu saísse do hospital


após visitar Nick, recebi uma mensagem
de Hades que pedia para me encontrar
no escritório do Pandemônio. Desde que
roubamos os Daggers e trituramos seu
dinheiro, eu parecia estar sempre à
espera de uma notícia terrível. Connor
não iria deixar aquilo passar tão fácil.
Assim que ele se recuperasse
minimamente dos prejuízos recentes, iria
querer nossa cabeça. E não existia mais
possibilidade de acordo.
Ele buscaria sua vingança e nós
acabaríamos com aquela guerra, não
importava as consequências.
Caminhei, consumida por
preocupação, até o bar perto do campus.
Era meu dia de folga como garçonete e
Alec e Selina estavam trabalhando
quando entrei. Os cumprimentei
enquanto cruzava o salão. Todas as
mesas estavam lotadas, o que era um
bom sinal. Não pude evitar direcionar
um olhar melancólico para o balcão
onde as bebidas estavam sendo servidas
antes de ir até o escritório.
Lá dentro, me deparei com a
figura de Hades digitando em seu
computador. Ele parecia compenetrado.
A postura perfeitamente reta e os
cabelos alinhados para trás.
— Vai fazer algo no fim de
semana? — perguntou, sem levantar os
olhos da tela do laptop.
Franzi o cenho, me
aproximando de sua mesa.
Por um segundo temi que ele
estivesse prestes a me convidar pra
sair.
— Não… — respondi,
cautelosamente. — Por quê?
Finalmente, ele me fitou de
volta. Não consegui ler a expressão fria
em seu rosto. Ele havia ativado o modo
chefe de gangue, como costumava fazer
quando estava resolvendo os negócios
do Pandemônio. Nesses momentos,
parecia implacável e inatingível.
— Quero que vá comigo até o
Colorado.
Franzi o cenho.
— E por quê?
Ele deu de ombros, como se a
resposta não importasse.
— Preciso ajudar um velho
amigo.
Levantei uma sobrancelha em
surpresa.
— Que amigo?
Não pude conter minha
curiosidade. Eu sabia que ele tinha
muitos contatos, mas tinha me tornado
receosa quanto a eles desde que
conhecera Chris Castle em Las Vegas.
Hades sorriu e,
instantaneamente, eu soube que aquilo
significava encrenca.
— Chace Kelland.

Era uma longa viagem até a


cidade de NiKho.
E esta não foi, nem de longe, tão
agradável quanto a viagem que Hades e
eu fizemos para Las Vegas. Dessa vez,
ficamos horas naquele Camaro imersos
num silêncio desconfortável — a maior
evidência de que tudo estava diferente
entre nós dois. Costumávamos conversar
muito e, provavelmente, isso era o que
eu mais sentia falta em nossa relação. Eu
não tinha perdido apenas um namorado,
mas um amigo.
Por outro lado, talvez fosse
melhor assim. Ter bons momentos com
Hades, me lembrar de tudo o que eu
amava nele, não seria bom para mim.
Precisava manter em mente a razão de
nosso rompimento em vez das razões
pelas quais me apaixonei por Hades
Wrath.
Respirei fundo, tombando a
cabeça para trás no encosto do banco de
couro. A quietude sepulcral daquele
carro estava me matando.
Nem mesmo a paisagem que
passava através da janela era capaz de
me distrair. Ora eu pensava em Hades,
ora na proposta da Srta. McPhil, que
poderia me levar para longe dele
permanentemente.
Com o canto do olho, pude ver
a atenção de Hades se alternar da
estrada para mim. Virei o rosto para a
esquerda e retribuí seu olhar por um
instante.
Havia um vinco de
preocupação entre suas sobrancelhas.
Sabia que muitas coisas passavam por
sua cabeça, mas que ele não costumava
falar tudo em voz alta. E eu não
consegui desvendar o que seus orbes
queriam dizer.
Então, pigarreei e voltei a olhar
para frente.
— Quem é Chace Kelland,
afinal? — perguntei, determinada a
finalmente quebrar o silêncio.
Eu não sabia muito sobre o que
estava nos levando até NiKho, apenas
que era urgente.
— Ele é o atual líder da maior
fraternidade do país. Os Nebulosos
lideram um grande esquema de drogas
em NiKho. Forneço para eles há anos.
Ergui as sobrancelhas.
— Pensei que não gostasse de
lidar com traficantes de fraternidades.
— Não gosto — Hades disse,
guiando o volante com uma só mão. —
Mas CK é diferente. Não é tão babaca
quanto a maioria.
Percebi a maneira como sua
voz ficou séria ao dizer aquilo. Hades
fazia negócios com muitas pessoas.
Alguns eram tão poderosos quanto ele,
só que muito menos decentes. A
extensão dos negócios do Pandemônio
era enorme e eu ainda não tinha
conhecimento sobre tudo, mas queria me
aprofundar naquilo. Só não achava,
porém, que teria tempo para isso.
— Parece que você se importa
com ele — observei.
Hades não abandonaria
Carmine — principalmente no meio de
uma guerra — por qualquer um. E ele
não era do tipo que tinha muito amigos
— não além do Pandemônio —, a
maioria se enquadrava como aliados.
— Eu me importo —
concordou Hades — Chace me lembra
de mim mesmo. Ou, pelo menos, de
como eu costumava ser no começo do
Pandemônio. E agora Kelland quer cair
fora. Preciso fazer isso por ele, ajudá-lo
a sair dessa vida.
Eu bem sabia que aquilo não
era fácil. Ou você se apaixona pelo
submundo, ou é destruído por ele. Às
vezes, os dois.
— E o que está acontecendo em
NiKho de tão urgente?
O porta-malas estava cheio de
armas do estoque do Pandemônio. Não
estávamos indo a NiKho pra
brincadeira. Sabia que as coisas iriam
ficar feias, seria perigoso. Seria tão
ruim quanto o que estava acontecendo
em Carmine.
— O bastardo insolente do
Ethan Hollister está acontecendo. Ele
costumava ser o líder dos Nebulosos e
agora quer destruir Chace. Meu pai e eu
costumávamos fazer negócios com ele
antes, fornecíamos para ele. Me
arrependo pra caralho disso. De certa
forma, financiei as coisas horríveis que
ele fez.
Ele se sentia culpado. E, pela
maneira como trincou o maxilar e
segurou o volante firmemente, também
estava furioso.
— Vamos ajudar os Nebulosos
a acabar com ele — garanti.
— Nós vamos.

NiKho era bem diferente de


Carmine, o que foi, de alguma forma,
reconfortante. Estava mesmo precisando
sair um pouco do cenário daquela
cidade — que às vezes poderia ser
bastante perturbador.
Hades dirigiu diretamente para
as ruínas onde aconteceria a rave anual
dos Nebulosos. As tochas flamejantes
espalhadas pelo lugar davam um ar
assustador à festa, como se coisas
terríveis acontecessem ali. Não era, nem
de longe, o pior que meus olhos já
viram; ainda assim, eu deveria me
manter atenta e vigilante. Seja lá o que
estivesse prestes a acontecer em NiKho,
eu sabia que não seria bom.
Assim que chegamos, ficamos
parados dentro do carro estacionado,
esperando. Quando avistamos a
aproximação de uma BMW preta, Hades
se endireitou.
— São eles — anunciou.
Eu não sabia exatamente quem
eram eles, mas confiava em Hades o
suficiente para entrar às cegas naquela
situação. Confiava em mim mesma
também, porque sabia que poderia dar
conta de qualquer coisa.
Estreitei meus olhos para
enxergar através da noite que engolia
todo o entorno. De dentro do carro
saíram três pessoas. A primeira que
notei foi uma garota de curtos cabelos
castanhos. Mesmo de longe pude ver seu
semblante desconfiado. Ela inspecionou
toda a estrutura do Camaro antes de,
finalmente, se distanciar da BMW.
Hades e eu saímos.
Instantaneamente meu corpo se arrepiou
quando fui embalada pelo ar frio
daquele lugar.
Ao andar até eles, tomei mais
tempo para analisá-los melhor. Deduzi
que o rapaz que saíra da porta do
motorista era CK. Ele tinha o torso nu e
o rosto fechado numa carranca de
cólera. Parecia estar passando pelo
inferno na Terra. Foi inevitável me
reconhecer no sentimento que ele
exalava de seus olhos claros.
O rapaz ao lado da garota
parecia protetor em relação a ela e
extremamente desconfiado sobre Hades
e eu. Aquele comportamento me mostrou
que nem mesmo eles, aliados de Hades,
sabiam quem ele era por baixo do rótulo
de “líder de gangue”. Não julgava seu
receio; afinal, Wrath era intimidador
como o inferno. Eu mesma não sabia do
que ele era capaz quando o conheci.
Sem dúvidas ele parecia, no mínimo,
perverso.
— Wrath — aquele que estava
mais à frente cumprimentou.
— Kelland — respondeu
Hades. Por um instante, devido ao tom
duro de suas vozes, duvidei se a relação
entre os dois era realmente amigável.
Mas então notei um sorriso surgir no
canto dos lábios de Wrath. — Bom te
ver de novo, cara.
Eles trocaram um aperto de
mãos.
— Já conhece o Viktor —
Chace falou, indicando o outro homem
ali. Viktor apenas deu um aceno com a
cabeça. — E esta é a Max.
Ele apontou para a garota
bonita ao seu lado antes de alternar o
olhar para ela. Ao fitá-la, os olhos de
Chace brilharam. Reconheci aquela
reação imediatamente e não pude evitar
sorrir.
— Ouvi falar muito sobre a
garota que destruiu o carro do CK com
uma barra de ferro. É bom finalmente
conhecê-la — Hades falou, com certo
divertimento em sua voz, e a
cumprimentou também. — Esta é Raven.
Acenei para eles.
Com a história que Hades
mencionara e a postura de Max, soube
que iria gostar dela. Ela não parecia ser
do tipo que se rendia fácil. Seu
semblante esbanjava determinação, sem
dúvidas era bem durona. Se estava
sentindo medo, não demonstrou. Seus
ombros estavam rígidos e seus olhos,
cerrados. Ela analisava nossos
movimentos com desconfiança.
O canto dos meus lábios se
curvou num sorriso de familiaridade ao
observá-la brevemente.
— Então. — Entrei na
conversa, cruzando os braços. — Hades
contou que vocês estão com um
problema com um babaca chamado
Ethan.
— Infelizmente — respondeu
Max.
Chace explicou um pouco mais
sobre as atrocidades que Hollister fizera
nos últimos tempos, inclusive seu
envolvimento com a morte do melhor
amigo de Max. Logo compreendi o
motivo para eles parecerem tão
perturbados. Era tão ruim quanto eu
pensara. Senti repulsa por Ethan e,
mesmo sem conhecê-lo, transformei-o
em meu inimigo também. Homens como
ele precisavam ser parados a qualquer
custo.
— Trouxe os brinquedos? —
perguntou CK, por fim. Sabia que ele
estava se referindo ao que estava
guardado no porta-malas do Camaro.
— É claro — assentiu Hades,
começando a liderar o caminho até lá.
Ao abrir o porta-malas, expôs todas as
dezenas de armas. Percebi os olhos de
Max se arregalarem ao ver aquilo. —
Revolver calibre 38, .380, pistola... —
Hades falou enquanto CK inspecionava
tudo. — Os Nebulosos virão para nos
encontrar? Tenho armas suficientes para
um bom grupo.
— Não todos. Não acho que os
garotos irão querer arriscar suas vidas
por mim depois de hoje. — Chace
respondeu, trocando um breve olhar com
Max. — Mas os melhores estarão, disso
eu tenho certeza.
Definitivamente, havia algo a
mais naquela história, mas não perguntei
a respeito. Não era da minha conta, de
qualquer forma.
Notei de soslaio como o corpo
de Max estava tenso.
Desde que eu começara a me
envolver com o Pandemônio, ainda não
presenciara um momento em que
realmente precisamos nos armar tanto.
Pelo o que eu sabia, Hades encomendara
todas aquelas armas há bastante tempo,
quando ainda estava na primeira guerra
com os Daggers, quando seu próprio
irmão se tornara um deles.
Me postei ao lado de Hades,
diante do nosso estoque, e vasculhei as
armas com meu olhar. Até que
finalmente encontrei uma cópia exata da
arma que eu carregava na cintura, sob o
cós da calça e a jaqueta do Pandemônio,
minha fiel escudeira.
— A Glock 9 mm é uma boa
arma... — falei, me inclinando para a
apanhar a arma antes de me virar para
Max. — Já teve uma dessas nas mãos?
Ela encarou a pistola em minha
mão como se estivesse nauseada e
engoliu em seco.
— Não, nunca. Não faço a
menor ideia de como manusear uma.
Eu já imaginava que seria essa
sua resposta pela feição em seu rosto. A
Glock seria a escolha certa para ela, já
que a garota não estava acostumada a
lidar com armas de fogo, pois era
bastante leve e tinha um coice suave.
— Não é tão difícil quanto
parece, e com um pouco de ódio e o
sangue fervendo, fica até mais fácil.
Ela sorriu, quebrando por um
segundo a expressão de desconfiança em
seu rosto.
— Bom, isso eu tenho de sobra
— Ótimo. — Sorri também.
Então, acenei com a cabeça para que ela
me seguisse. — Vem, vou te ensinar
como acabar com a raça de alguém.
Após hesitar, ela finalmente me
seguiu. Caminhamos por poucos
minutos, atravessando por entre carros
estacionados até alcançar uma área mais
fechada, cercada por árvores.
Me postei no centro da clareira
para demonstrar a ela como se
manuseava uma arma. Empurrei para o
fundo da minha mente a memória de
Connor me ensinando aqueles passos,
antes de eu finalmente matar pela
primeira vez.
— Bom, primeiro nós
pressionamos este botão para ejetar o
carregador — comecei a explicar,
mostrando para ela. — Depois
inserimos o cartucho até o carregador
estar carregado, desta forma. —
Encaixei um cartucho de cada vez,
depois empurrei para cima e destravei a
trava de segurança, puxando o cano para
trás e carregando as balas. — Agora,
você mira... — Apontei o cano da arma
na direção da mata, mirando numa cerca
de madeira a poucos metros de nós. —
E então puxa o gatilho.
— As pessoas não vão ouvir o
tiro? — perguntou Max, receosa.
Dei de ombros.
— Música alta demais, drogas
demais... — Balancei a cabeça
negativamente. — Acredite, ninguém vai
ouvir, e se ouvir, não vão se importar.
— Sua vez.
Estendi a Glock para ela.
Ela estava hesitante e insegura
quando segurou o objeto com as duas
mãos, imitando meu movimento. Se ela
deixasse o medo possuí-la com uma
arma em mãos, não obteria êxito ao se
defender. Me aproximei e pedi para que
ela repetisse o processo que eu tinha
demonstrado. Ela conseguiu na primeira
tentativa, embora suas mãos estivessem
tremendo demais, tornando impossível
que conseguisse fixar mira em algum
ponto.
— Não consigo… — falou,
abaixando a arma e se virando para
mim.
— Consegue, sim. Está apenas
nervosa. Isso é normal.
— Não quero matar ninguém —
admitiu, os olhos cheios de medo.
Medo, talvez, de se tornar alguém como
eu. — Realmente não consigo.
— Essa arma não é para matar
alguém, Max, é para se defender. As
pessoas atrás de vocês estão armadas
até os dentes, se não estiver à altura, não
vai poder se proteger ou proteger as
pessoas ao seu redor.
Ela desviou o olhar e respirou
fundo.
— Já matou alguém, Raven?
E as lembranças,
instantaneamente, voltaram, me
atingindo de uma só vez. De repente, vi
o homem que tentara me atacar em
Dallas bem ali diante de mim. Seu olhar
de medo, que eu ignorara no passado,
agora me deixou nauseada.
“Mate”, sussurrara Connor no
meu ouvido, enquanto minhas mãos
tremiam tanto quanto as de Max naquele
momento.
“Ou você o mata, ou eu mato
Maria.” Chacoalhei a cabeça, forçando-
me a afastar aquela imagem da minha
cabeça.
— Já — falei, cruzando os
braços e tomando uma respiração
profunda. — Duas pessoas, na verdade.
— E como foi?
Mesmo que Max tentasse
disfarçar, não passou despercebido para
mim a maneira como minha confissão a
amedrontara.
— Na primeira vez, foi o cara
que tentou abusar de mim. Na segunda,
meu padrasto. E quando eu puxei o
gatilho, não pensei em nada além de que
estava livrando o mundo de pessoas
desprezíveis. Por um tempo, acreditei
que isso me tornava um monstro. — Eu
ainda não estava certa de que eu não era
um, mas ficara mais fácil. — Mas houve
um cara que disse que isso só fazia de
mim uma sobrevivente.
— Esse cara foi o Hades?
Sorri, sentindo meu coração
aquecer apenas com a menção de seu
nome.
— É, foi ele, sim.
— Vocês dois…? — Max
deixou a frase sugestiva em aberto.
Me apressei em negar.
— Ah, não. Não mais.
— Parece complicado —
soprou Max.
— Bastante. E você e o CK?
— Se estamos juntos? —
perguntou ela. Anuí com a cabeça. —
Não, não mais.
Sorri nasalado.
Era estranho como aquele
mundo de perigo e adrenalina tornava
frágil as relações, como era capaz de
afastar as pessoas. Principalmente,
considerando que nos fazia desenvolver
um medo constante de perder quem
amamos.
Quando Max desviou seu olhar
de volta para a cerca e levantou a Glock
novamente, percebi como sua postura
estava errada. Seus ombros estavam
muito tensos. Ela permanecia insegura
demais.
— Precisa relaxar, Max. Não
prenda a respiração quando estiver
prestes a atirar. Respire bem fundo e
deixe o ar sair dos seus pulmões, então
dispare. — Toquei levemente seu
cotovelo, levantando seu braço um
pouco mais. — Sinta o peso da arma,
isso vai fazer com que você saiba a
força que precisa manter sobre ela. E o
mais importante... — A olhei no fundo
de seus olhos. — Não sinta medo. Deixe
esse sentimento para o seu alvo, ele sim
deve temê-la. Encare aquele horizonte e
imagine em quais olhos você deseja
enxergar o pavor. — Deslizei minha
mão sobre a sua, levando seu indicador
até o gatilho. — Você não é uma pessoa
ruim por isso, nem uma assassina, mas
se aquele desgraçado ousar aparecer de
novo e entrar no seu caminho, faça-o
temer como jamais temeu ninguém em
toda vida.
Nós duas sentimos o peso
daquelas palavras e, felizmente, aquilo
pareceu convencê-la. Ela olhou para
frente, respirou fundo e atirou.
Sorri, orgulhosa.
Ela treinou mais uma porção de
vezes. Errou alguns e acertou outros. Era
compreensível, já que ela estava
começando a se acostumar a ter uma
arma em mãos.
— Hades disse que CK quer
sair desse mundo — comentei quando
Max abaixou a arma, um pouco ofegante.
Ela virou o rosto na minha direção, tinha
a testa franzida.
— Não foi o que ele
demonstrou nos últimos meses —
respondeu baixinho, com um pouco de
ressentimento em sua voz. Suspirei,
colocando as mãos nos bolsos da
jaqueta. — Você gosta disso? Desse
submundo?
O repúdio com o qual ela disse
a última palavra me fez sorrir.
Definitivamente, ela me lembrava de
como eu era antes.
— Não, não gosto, mas me
identifico com a maneira como o
Pandemônio faz as coisas. Pensei que
isso nunca aconteceria, que sempre teria
nojo deles, mas foi lá que senti, pela
primeira vez, que não havia algo de
errado comigo. Eles me compreendem e
me aceitam, são minha família — falei,
sentindo certa nostalgia me preencher.
Era difícil, quase impossível, imaginar
um cenário em que eu não tivesse mais
aquilo. — Mas isso não acontece com
todos. Na maioria das vezes, tudo o que
essa vida traz é dor, perda, sofrimento, e
um futuro completamente vazio.
— É por isso que eu não
consigo aceitar que Chace continue
nesse caminho. Já perdi pessoas
importantes demais na minha vida, não
consigo lidar com esse sentimento…
essa sensação de que posso perdê-lo a
qualquer momento para os perigos que
esse mundo oferece.
Dei um longo suspiro. Eu sabia
bem como era ruim aquela
instabilidade.
O olhar de Max de distanciou e
um vinco surgiu em sua testa. Soube
instantaneamente que um filme
melancólico estava se passando em sua
mente. Assim como eu, soube que ela
havia perdido muito.
— Sinto muito — falei, com
sinceridade, colocando a mão em seu
ombro em sinal de conforto. — Às vezes
o preço que essa vida cobra é alto
demais.
— E você está disposta a pagar
a qualquer custo? — perguntou Max.
Respirei fundo e tomei um
tempo para pensar em sua pergunta. Foi
inevitável lembrar de Fiona, e em todas
as coisas que eu teria feito para impedir
que ela se tornasse mais um dos preços
que paguei para acabar com Connor
Kamps.
Um nó imenso se formou em
minha garganta quando entendi qual era
minha resposta.
— Não. Não estou.
Após nosso grupo estar
armado, nos preparamos para nos
distanciarmos da festa. Não seria nada
bom colocar aquelas pessoas em perigo
caso um tiroteio começasse por ali.
Antes que pudéssemos ir, porém, mais
amigos de Chace e Max chegaram,
incluindo um grupo de motoqueiros que
me lembrou muito de Nick e os
Daggers.
Eles olharam, assim como o tal
Viktor fizera, com desconfiança para
nós, mas não disseram nada. Uma
conversa estranha, pouco amigável, se
iniciou entre todos eles. Hades e eu
observamos de longe por um tempo
antes que ele interviesse, perdendo um
pouco a paciência.
— Temos que ir — insistiu
Hades, tentando dispersar o grupo. —
Se Ethan realmente estiver vindo, já
deve estar por aqui. Precisamos de um
lugar seguro longe de toda essa gente
ou…
Ele não pôde terminar, porque
os homens do tal Ethan Hollister
chegaram, nos cercando por trás.
Tudo se tornou uma bagunça
muito rápido para que eu pudesse
acompanhar. Não percebi eles se
aproximando, a primeira coisa que vi foi
um vulto empurrando Max de maneira
forte e brusca, que caiu e bateu a cabeça
no chão. Seu rosto se contorceu numa
careta de dor.
Corri até ela e me abaixei,
colocando-me como escudo sobre seu
corpo assim que os sons de tiro
começaram a soar.
— Max? Você está bem?
Ela não respondeu nada além
de um gemido incompreensível.
Praguejei baixinho e olhei por sobre
meu ombro, vendo uma cena caótica
tomando forma. Vi de relance quando
Hades começou a socar impiedosamente
o rosto de um homem que era, sem
dúvidas, muito maior do que ele.
Me voltei para Max e a arrastei
até o carro mais próximo, colocando-a
atrás dele, protegida por sua lataria.
Então, peguei seu rosto entre as mãos
para olhar em seus olhos. Ela estava um
pouco desorientada, mas o impacto não
pareceu ter sido muito forte e também
não havia sangue, o que era um bom
sinal.
— Estou bem… — garantiu,
sem nenhuma firmeza em sua voz.
Ela fez menção de se levantar
ao mesmo tempo em que o som de um
tiro soou.
— Fique abaixada — ordenei
para Max ao me levantar. Virei e
procurei por Hades com meus olhos.
Logo o encontrei. Outro homem
de Hollister se juntara para tentar
derrubá-lo. Quando fiz menção de ir até
lá para ajudá-lo, um cara entrou na
minha frente. Não me atacou num
primeiro momento, apenas inclinou a
cabeça para me inspecionar da cabeça
aos pés. Um sorriso malicioso e nojento
se formou em seus lábios finos.
— Olá, gracinha — disse, com
a voz predatória, se aproximando a
passos lentos. O desgraçado estava
mesmo tentando me intimidar. — Nunca
te vi por aqui antes.
— E nunca mais verá —
retruquei e, logo depois, chutei sua
pélvis o mais forte que consegui.
O homem berrou de dor.
Colocou as mãos sobre a virilha para
proteger a área enquanto curvava o
corpo. Pensei que ele fosse começar a
chorar.
— Vadia — gritou, me fazendo
sorrir. Patético.
— Já me chamaram de coisas
piores. — Dei de ombros.
Em seguida, puxei sua nuca ao
mesmo tempo em que levantei meu
joelho, acertando seu nariz duas vezes.
O sangue de seu rosto espirrou na minha
roupa. Quando ele soltou um urro gutural
e tentou vir para cima de mim, o
empurrei. O bastardo estava fraco e com
tanta dor que caiu sem nenhum esforço.
Não se levantou mais depois disso.
Me endireitei, limpando minhas
mãos na calça, e voltei a olhar ao redor.
Hades tinha se livrado dos dois homens
e agora estava ajudando um dos caras do
grupo de motoqueiros que chegara.
Olhei para o outro lado bem a tempo de
ver o amigo de Max, Viktor, sofrendo um
mata-leão. Ele já estava perdendo o ar,
ficando pálido.
Não pensei muito.
Desembainhei minha arma e a destravei.
Mirei no homem atrás de Viktor e atirei
três vezes. Dois tiros acertaram seu
ombro e ele também caiu. O amigo de
Max colocou a mão na garganta,
massageando a área, e encontrou meu
olhar. Acenei com a cabeça e ele
retribuiu.
Girei sobre os calcanhares para
seguir o vulto de CK que vi de soslaio.
Ele estava sendo arrastado pelo maior
dos homens dali. Um que tinha o cabelo
loiro e o rosto ardendo em cólera. Temi
que aquele fosse o tal Ethan Hollister.
Os dois iam na direção da mata.
Arregalei os olhos e levantei a Glock,
movendo a mira para acompanhar seus
movimentos. Não tive a oportunidade de
atirar, porém, porque alguém entrou na
minha frente e torceu meu pulso para o
lado oposto.
Um gemido de dor escapou dos
meus lábios e a arma caiu da minha mão,
aterrissando no chão de grama. Dedos se
fecharam no meu pescoço e apertaram.
Não precisei ver o rosto do meu
oponente para saber que estava cheio de
raiva. Lembrei, instantaneamente, da
noite em que Stephen fizera aquilo, e
engasguei com um grito de horror.
Bati em sua mão e tentei chutá-
lo, mas parecia em vão. Meus olhos
ficaram nublados e pensei que fosse
desmaiar. Até que, de repente, a pressão
se foi de maneira brusca e me vi livre.
Apoiei minhas mãos nos
joelhos, respirando ofegante por um
instante. Quando me virei, encontrei o
corpo que despencara perto de mim. O
homem tinha os olhos claros abertos,
mas já não havia vida neles. Sangue
escorria do buraco de bala na lateral de
sua cabeça. Pisquei aliviada e me
endireitei, encontrando Hades ainda com
a arma levantada.
Respingos de sangue tingiam
seu belo rosto, que, naquele instante,
estava impiedoso e letal, mas que
suavizou gradativamente ao me olhar.
Ele veio até mim.
— Está tudo bem, amor?
Assenti uma vez, ainda
recuperando o ritmo da minha
respiração.
Em volta de nós havia muitas
pessoas caídas. Todas, entretanto, eram
do time de Ethan. Os que restaram, se
renderam um a um. Não havia chance
alguma de eles ganharem aquela batalha.
Quando Max entrou no meu campo de
visão, vi o terror estampado em seus
olhos.
— No matagal — gritei. — Eu
os vi. Ethan e Chace estão lá!
Max sequer pensou. Sei que ela
estava vendo tudo vermelho naquele
instante quando se virou e disparou a
correr, sumindo entre as árvores e
arbustos. Corremos atrás dela, mas
paralisamos diante da clareira onde,
para meu alívio, Hollister tomava uma
surra de Chace. A cena não era nada
bonita. O rosto de Ethan estava quase
deformado, coberto de sangue. CK não
parou com os socos, porém. Não até
Max pará-lo, abraçando-o por trás.
Senti o aperto no meu peito
aliviar enquanto via o controle e a calma
retornarem pouco a pouco à mente de
Chace. Ele caiu para o lado, seu rosto
completamente perturbado e abatido.
Max, no entanto, o puxou para si e eles
se abraçaram de uma maneira
dolorosamente linda, enterrando-se e
encaixando-se um no outro.
Como peças de um mesmo
quebra-cabeças.
Engoli o nó que se formou em
minha garganta e mordi meu lábio
inferior com força para evitar que meus
olhos marejassem. Era impossível não
ser atingida por toda a emoção que
aqueles dois irradiavam. Pela dor e,
acima de tudo, o amor que
compartilhavam.
Uma mão gelada se aproximou
da minha, senti seus dedos entrelaçando-
se nos meus, me confortando e me
aquecendo mais do que eu poderia
imaginar. Seu polegar acariciou as
costas da minha mão e tristeza e saudade
irromperam por mim. Sabia que era
Hades, bem ali ao meu lado. Sabia que
ele também encarava aquela cena e
lembrava de nós dois. E de como era
trágica a forma como nos perdemos um
do outro.
Hollister estragou o momento,
contudo. Tanto para CK e Max quanto
para Hades e eu. Mesmo incapacitado
— tanto por sua condição física
deplorável quanto por Viktor, que o
segurava—, ele ainda riu com escárnio e
fez comentários provocativos que
atingiram diretamente a Max. Ela não
demorou a se levantar e ir até ele, que
dizia coisas horríveis. Chace fez menção
de voltar a socá-lo, mas ela o impediu.
— Não. Não vale a pena. Isso
vai acabar aqui. Ligue para Michell, ele
vai garantir que esse infeliz apodreça na
cadeia.
Meu corpo voltou a ficar em
alerta. Aquilo não daria certo. Algumas
pessoas devem morrer, porque só isso é
capaz de pará-las. Vendo o olhar de
Ethan naquele momento, eu soube que
ele não era do tipo que desistia. Ele não
iria parar.
Aquele medo me fez pensar em
Connor. Ele também não era do tipo que
se rendia. Eu, porém, não queria abdicar
de um pouco mais da parte humana em
mim para matá-lo.
Até onde eu seria capaz de ir
para parar Connor Kamps? Havia um
jeito de fazer isso sem que eu me
tornasse alguém tão ruim quanto ele? E o
mais importante: quando alguém deixa
de ser o sobrevivente e se torna o algoz?
Como eu imaginara, a promessa
de prisão não assustou Ethan, pois ele
continuou falando sobre um cara
chamado Shawn, o melhor amigo de
Max, que acabara morto. Depois, faltou
sobre o irmão de Max, que parecia estar
muito debilitado, eu não sabia o porquê.
Fechei minha mão esquerda em punho,
sentindo-me apreensiva. Max sofrera
tanto.
E ela ouviu cada uma daquelas
palavras cruéis. E permaneceu de pé,
firme e dura como uma rocha. Até que
levantou a arma e atirou, explodindo a
cabeça do maldito Ethan Hollister.
Precisamos fugir rapidamente
dos arredores da rave e nos dividimos
para isso. Em breve a polícia iria chegar
e encontrar uma cena caótica — que,
provavelmente, não demoraria a ser
atribuída ao grande líder dos Nebulosos.
Aquele seria apenas o começo. Eles
ainda iriam enfrentar uma grande
tempestade. Ao menos, Ethan estava
morto e não poderia ferir a mais
ninguém. O desgraçado poderia arder no
inferno.
Quando o Max o matou, vi a
tormenta em seu rosto e,
instantaneamente, me lembrei de Raven.
Quando ela voltara de La Cuesta, após
matar seu padrasto, estava
evidentemente perturbada e eu me
odiava por não ter estado com ela
naquele momento. Muitos
arrependimentos em relação a ela
estavam me drenando pouco a pouco.
Dirigi o Camaro, com Raven ao
meu lado, até a estrada que levava à
saída da cidade. Seguimos a BMW preta
de Chace, que nos guiou pelas ruas de
NiKho.
Raven estava ainda mais
silenciosa durante o percurso. Eu sabia
que aquela noite despertara algo dentro
dela, só não tinha certeza do quê.
Confrontos como aquele não raros pra
mim. Na verdade, se tornaram quase
banais no início do Pandemônio, quando
os Daggers tentaram acabar conosco.
Apesar dos anos de calmaria que se
sucederam após minha vitória sobre
eles, a tormenta estava de volta. E ainda
estaria esperando por nós quando
voltássemos a Carmine.
Eu me perguntava se a minha
relação com Raven ainda estaria intacta
se não tivéssemos enfrentando uma
guerra como aquela. Os obstáculos que
surgiram só nos afastaram ao invés de
fortalecer o vínculo que criamos durante
meses. Não gostava da possibilidade de
nossa ligação não ser forte o suficiente
para sobreviver ao submundo. Preferia,
em vez disso, acreditar que já estávamos
condenados desde o início e que não
houvesse nada que pudéssemos fazer pra
mudar isso.
Ambas as possibilidades doíam
mais do que um tiro no peito.
A BMW preta parou em frente a
uma placa, no início de uma estrada
desértica e solitária, que me levaria
para casa e, consequentemente, para
longe de Raven.
Descemos do Camaro ao
mesmo tempo que Chace e Max. Ele
veio andando até mim enquanto ela
permaneceu encostada no veículo, com
os braços cruzados e o olhar distante no
horizonte escuro.
Raven olhou apreensiva para
ela. Matar nunca era fácil, afinal, e Max
executara Ethan.
Chace me cumprimentou com
um aceno de cabeça antes de perceber
que Max não o seguira. Ele suspirou,
virando-se para vê-la parada alguns
metros atrás.
— Estou preocupado com ela
— confessou.
Apesar de alguns hematomas
em seu rosto, ele parecia bem — ao
menos fisicamente. Era impossível,
contudo, não notar a preocupação
estampada em seus olhos e no vinco em
sua testa.
— Ela vai ficar bem — Raven
garantiu, sem nenhum resquício de
dúvida na voz.
Em seguida, se afastou e
caminhou na direção da Max. As duas
começaram a conversar, mas não era
possível escutar o que diziam de onde
Chace e eu estávamos.
Ele deu um suspiro cansado e
se voltou na minha direção.
— Obrigado pela ajuda,
Wrath.
— Não tem que agradecer. —
Balancei a cabeça. — Não há nada
pendente entre o Pandemônio e os
Nebulosos. Você está livre, Kelland.
Faça a escolha certa agora.
Ele pareceu aliviado ao escutar
aquilo. Respirou fundo e assentiu. Ele
sabia ao que eu estava me referindo.
— Vou fazer — prometeu,
determinado. — Como estão as coisas
em Carmine?
— Bem ruins — admiti,
cruzando os braços. — Mas vou dar um
jeito, eu sempre dou.
— Ainda pretende continuar
com o Pandemônio? — Chace
perguntou, meio incrédulo.
Dei uma risada nasalada. Não
tinha dúvidas quanto àquilo.
— Até a morte.
— Você é louco.
— Talvez.
— Mas você não me engana,
Wrath. Vi em seus olhos a noite toda. Se
Raven te pedisse para ir daqui ao
Alasca de joelhos, você começaria
imediatamente.
Ri alto. Provavelmente, ele
estava certo.
Não existia nada que eu não
fosse capaz de fazer por Raven Clarke.
— Não foi o Pandemônio o
motivo de Raven e eu não termos dado
certo, eu fui. Menti e traí sua confiança.
— Somos dois idiotas —
concluiu Chace, desviando o olhar na
direção da BMW. Fiz a mesma coisa,
observando Raven de longe.
— É, nós somos.
Tínhamos ambos perdido a
melhor coisa que já nos acontecera. O
sofrimento que enfrentaríamos diante
disso era merecido.
— Ainda não é o fim —
determinou, otimista. — Para nenhum de
nós.
Eu não conseguia enxergar
outro caminho, porém, então apenas
fiquei em silêncio. Ainda acreditava
que, se Chace se empenhasse em
consertar as coisas, ele poderia ter Max
de volta, mas Raven e eu estávamos
presos num beco sem saída.
— Pode contar com o
Pandemônio pra qualquer coisa — eu
disse, após alguns segundos, atraindo
sua atenção de volta para mim. — Não
se engane, a partir de agora vai ser
ainda mais difícil.
— Olha, cara, não me leve a
mal, mas eu não quero precisar te ver
nunca mais — falou, me fazendo
gargalhar.
— É justo.
Quando Raven e Max se
abraçaram, despedindo-se, eu soube que
era a hora de ir. Woods acenou para mim
de longe, seu rosto parecia mais
tranquilo, quase esperançoso. Talvez
Raven tivesse conseguido acalmá-la.
Ela surtia aquele efeito nas pessoas,
afinal.
Ao se aproximar do Camaro,
Raven deu uma olhadela desconfiada na
direção de Chace.
— Max é uma pessoa única e
especial — disse ela, com uma
advertência implícita em sua voz.
— Eu sei — concordou CK.
Ela cerrou os olhos para ele.
— É bom que saiba mesmo.
Contive um sorriso. Eles se
cumprimentaram e Raven deu a volta,
entrando no carro. Olhei uma última vez
para Chace e estendi minha mão, que ele
aceitou de bom grado.
— Adeus, Kelland.
— Adeus, Wrath.
E então, partimos.
Quando o verão chega em El
Sangria, todos sabem que é o início da
temporada do Circuito Mortal. Aqueles
que topam embarcar nesse desafio são
vistos como deuses e são a atração
principal das festas extravagantes e
exclusivas que acompanham o Circuito.
Todo esse perigo e adrenalina nunca fez
parte da vida de Victoria Vance.
A garota sempre manteve
distância do mundo de seu irmão, o
chefe do maior cartel de drogas da
Califórnia. Mas tudo muda quando ela
descobre que a maior estrela do evento
é Nick Wrath, o estranho belo e
misterioso com quem ela teve uma noite
casual um ano antes — e o líder
do motoclub que chegou recentemente à
cidade. Rapidamente eles imergem num
romance intenso e caótico, capaz de
salvá-los ou destruí-los para sempre
É uma emoção indescritível
publicar meu primeiro livro — algo que
eu pensei que nunca fosse se concretizar.
Foi uma jornada sem precedentes para
mim. Escrever BM me manteve sã em
um ano tão difícil e eu estaria aqui se
não fosse por algumas pessoas.
A primeira delas: I.C. Nem sei
explicar como você foi importante para
a finalização deste livro. Sua crença
neste projeto foi uma das minhas
maiores motivações e sou imensamente
grata ao apoio imensurável que você me
forneceu durante todo o ano em que
escrevi BM. Nada se iguala à gratidão
que eu sinto por você por ter lido este
livro inteiro com antecedência e ter me
ajudado quando eu quis desistir dele (e
por ter também me ajudado a revisar
alguns capítulos mesmo faltando
pouquíssimo tempo para a publicação).
Também quero agradecer à Tay
Ferreira, por ser meu norte, minha fonte
especial de inspiração como pessoa e
autora. Obrigada por me ajudar nessa
trajetória incrível de publicar na
Amazon e por sempre oferecer seu
suporte e seus conselhos preciosos.
Muito obrigada por fazer o sonho de
publicar esse livro parecer possível e,
enfim, se tornar real. Dividi com você
uma das experiências mais legais de
escrita que já tive, o nosso crossover,
pelo qual tenho muito carinho e que foi
uma bomba de inspiração para mim na
reta final de BM.
Muito obrigada à Brooke
Mars, com quem dividi meu desespero
muito antes de sequer publicar Beautiful
Monsters no Wattpad. Sou extremamente
sortuda por poder contar com você para
qualquer coisa, em qualquer momento.
Muito obrigada por me fazer rir nos
piores momentos, porque sem você pra
atenuar meu mau humor e entrar comigo
em todas as minhas batalhas, eu não
teria chegado até aqui.
Sou grata demais à minha irmã
caçula (não de sangue, mas de coração),
Lovely Loser, por ser minha fonte
inesgotável de motivação e persistência,
que me instigava a escrever mesmo
quando eu estava desmotivada.
Obrigada por surtar comigo e me ajudar
sempre que eu me questionava ou
questionava este livro.
Obrigada, 6fuc, por
absolutamente tudo. Não existem
palavras suficientes para expressar o
carinho que sinto por vocês.
Meus mais sinceros
agradecimentos à Karol Panato, por ter
embarcado na minha loucura quando a
pedi para revisar BM faltando menos de
um mês para a publicação. Você me fez
enxergar meu livro sob uma nova
perspectiva. Você fez, de verdade, um
milagre aqui. Tu é foda demais, mulher.
Se esse livro está aqui hoje,
devo isso também aos leitores do
Wattpad. Todos os comentários
positivos ao longo de cada capítulo me
moveram por um ano até a conclusão de
BM.
Um imenso agradecimento aos
leitores membros dos meus grupos do
whatsapp. Vocês me fazem rir e me
despertam uma vontade absurda de
escrever. Os surtos de vocês iluminaram
meus dias. Obrigada por me ajudarem na
divulgação do livro e se empenharem
tanto na missão de fazê-lo crescer.
Um agradecimento mais do que
especial à Thay Tonzar, por ter me
ajudado demais em vários momentos
(mais do que eu posso contar), eu teria
surtado completamente nas últimas
semanas antes do lançamento se não
fosse por você. Obrigada, também, pela
ilustração incrível da Raven e do Hades
que você fez. Tu é talentosa demais.
Escrever Beautiful Monsters foi
uma honra inestimável e agradeço, por
fim, a todos vocês que leram esse e-
book e acompanharam a jornada de
Raven Clarke através de todas essas
páginas. Eu ficaria imensamente feliz em
poder ter sua avaliação e saber sua
opinião acerca do livro.
Nos encontramos novamente em
Wicked Liars.

Com amor e muita, muita


gratidão,
Sam
Wattpad
Instagram
Twitter
Spotify
[i]
Pickleback um drink composto por um
shot de uísque irlandês e um shot de
salmoura de picles
[ii]
Referência à obra A Divina Comédia,
de Dante Alighieri, que representa o
Inferno como um lugar divido em vários
círculos, onde cada um corresponde a
um pecado. Quanto mais profundo o
círculo, maior a intensidade das
punições para os pecados
[iii]
Tournedos Rossini prato francês
composto normalmente por filé mignon e
fois gras (fígado de pato)
[iv]
Bacará jogo de cassino de origem
italiana que utiliza cartas de baralho,
cada uma com sua própria pontuação. O
objetivo principal é atingir o total de 9
pontos após a distribuição de duas ou
três cartas
[v]
Texas Hold’em modalidade de pôquer
mais popular, onde o jogador recebe
inicialmente duas cartas e pode utilizar
mais cinco cartas comunitárias ao longo
do jogo e não há limite de apostas
[vi]
Blackjack também conhecido como
vinte-e-um, é um jogo praticado com
cartas de baralho em que o objetivo é
alcançar mais pontos que o adversário,
mas sem ultrapassar os 21
[vii]
Dealer no pôquer é o indivíduo
responsável por dar as cartas aos
jogadores e as cartas da mesa, bem
como controlar as apostas
[viii]
Straight Flush sequência de cinco
cartas em ordem numérica, todas do
mesmo naipe
[ix]
Flush combinação de cinco cartas do
mesmo naipe
[x]
Quadra combinação de quatro cartas
de mesmo valor
[xi]
Turn nome dado à quarta carta que é
aberta na mesa pelo dealer
[xii]
River nome dado à quinta e última
carta que é aberta na mesa pelo dealer
[xiii]
Showdown momento final da partida,
quando os jogadores mostram suas
cartas e comparam para ver quem tem a
melhor mão
[xiv]
Full House mão de cartas composta
por três cartas do mesmo valor (uma
trinca) combinadas com duas do mesmo
valor (um par)

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