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AS VANGUARDAS CINEMATOGRÁFICAS DOS ANOS 20 NA EUROPA

I AS VANGUARDAS FRANCESAS

1 Cubismo, Léger e Ballet Mécanique (1923)

Em 1923, Dudley Murphy, um cameraman americano, amigo do fotógrafo e cineasta


bissexto, também americano, Man Ray, aproximou-se do pintor Fernand Léger e associou
o seu conhecimento de distorções da imagem cinematográfica por lentes especiais e de
iluminação em estúdio às idéias pictóricas de Léger, um dos pioneiros cubistas da primeira
década do século, criando Ballet Mécanique, o exemplo mais bem acabado de exploração do
meio cinematográfico a partir dos princípios da pintura de vanguarda.

Léger surgira na cena artística no ambiente vanguardista parisiense na primeira década


do século. Atraindo uma imensa quantidade de artistas de toda parte, a capital francesa,
sem condições de absorver em seus circuitos oficiais todo esse contingente, viu a rebeldia
estética, que abrigara e fomentara pelo menos desde a ruptura impressionista com a
Academia, consolidar-se como um ambiente marginal. Em 1911, cerca de 30 mil pinturas
foram expostas em Paris (COTTINGTON, 1999, p. 14). O lançamento de manifestos, ao
mesmo tempo que era um sucedâneo do ativismo social – a ruptura dos socialistas e radicais
que formavam o Bloc de Gauches, em 1905-06, dissolveu também a frágil aproximação
antiburguesa entre artistas e operários –, funcionava como uma estratégia de propaganda
das obras, num ambiente altamente competitivo.

O cubismo foi uma expressão plástica afinada com a vertigem metropolitana moderna, não
apenas na sua formalização da multiplicidade de pontos de vista, mas também em seu caráter
antiilusionista, de aprofundamento da ruptura modernista com a busca de impressão de
verossimilhança. Tanto a justaposição descontínua de “ângulos” quanto a evidenciação da
fatura da obra – que alcançou, no período pioneiro, sua potência máxima com as colagens
de Picasso e Braque – incorporam à obra de arte experiências urbanas contemporâneas.
Mas, ao mesmo tempo, e para melhor explicitar o caráter formal desta expressão plástica
que se apresentava como radicalmente nova, os cubistas mantinham referências temáticas
clássicas, compondo nus fragmentados e bidimensionalizados (dissolvendo qualquer
ilusão mimética de espaço realista) ou colando pedaços de jornal em sugeridas naturezas-
mortas. Essa recusa ao tratamento direto de temas contemporâneos por parte dos mais
bem-sucedidos vanguardistas daquele momento reforçava o caráter elitista do trabalho
formal desses artistas, reunidos numa espécie de comunidade, inicialmente marginal ao
mundo burguês, mas logo estabelecendo com setores desta burguesia relações de consumo
e distinção através dos marchants.

A guerra, evidentemente, abalou essa efervescência parisiense, mas ela foi retomada ainda
com mais força no período posterior ao conflito. Na França vitoriosa, Paris tornou-se,
nos anos 1920, a capital mundial das artes. Artistas do mundo inteiro foram para lá, e a
comunidade artística marcou a cidade a tal ponto que, nas palavras do jornalista e historiador
William Shirer,
o produto da imaginação do homem não só era levado a sério, como também parecia
mais importante que tudo mais: mais importante que a maneira pela qual se ganhava
a vida ou do que poderiam estar tramando os banqueiros, homens de negócios,
políticos e estadistas (SHIRER, 1969, p. 162).

A experiência da guerra foi incorporada, como tudo mais, a esse torvelinho das vanguardas.
Léger, em especial, referia-se a sua experiência no campo de batalha como um momento
decisivo de inflexão. A I Grande Guerra inaugurou o maquinário e a escala industrial como

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cenário mortal dos combates, e isso provocou, para Léger, um apelo incontornável pelas formas
geométricas e industriais, que já eram celebradas, desde antes da guerra, pelos futuristas.

O chamado “período mecânico” de Léger, inaugurado pela pintura de uma cena militar,
em O jogo de cartas (1919), explorou essas formas e teve seu coroamento, já em forma
cinematográfica, com Ballet Mécanique.

Ballet Mécanique é um estudo rítmico que explora possibilidades formais do meio


cinematográfico. Não há qualquer enredo nem personagens, nem mesmo espaço. A destruição
de uma impressão de espaço e a evidenciação da realidade material da bidimensionalidade
da tela não são só um desenvolvimento do cubismo, mas uma radicalização, já que a câmera
de cinema incorpora em sua constituição a perspectiva renascentista. Em seu filme, Léger e
Murphy esforçam-se em abolir essa impressão de espaço, retirando objetos cotidianos, como
utensílios de cozinha, de seu contexto, filmados em fundo preto, de modo a apresentá-los
como formas puras. Esses objetos “abstraídos” misturam-se a formas geométricas (círculos e
triângulos) e a lentes que subvertem a perspectiva por uma fragmentação caleidoscópica da
imagem (em direta semelhança com o cubismo analítico).

Tudo isso, entretanto, diz respeito à constituição dos planos. Mas o filme vai além, tomando
essa visualidade cubista e abstrata como um patrimônio já conquistado, a partir do qual a
dimensão temporal – específica do cinema – é explorada.

Isso é feito pela organização, via montagem, de blocos com características formais específicas.
Num primeiro momento estabelece-se, pela moldura realista da imagem de uma mulher
em um balanço, uma coleção de elementos (círculos e triângulos, um chapéu, uma polia
industrial, um sorriso repetitivo) que marcam um padrão rítmico para o filme.

Os blocos que se seguem estão pautados por parâmetros específicos: uma afirmação inicial de
referências geométricas por figuras e deformação prismática, exercícios iniciais de variações
rítmicas, expansão desses exercícios de montagem para a incorporação no fluxo abstrato de
fragmentos de cenas urbanas; o destaque por decupagem e montagem das letras e números
dos tipos gráficos da comunicação de massa. O filme termina apresentando uma espécie de
balé mecânico sintético, com a animação, via montagem, das pernas de um manequim. E,
como epílogo, uma releitura da figura de Chaplin ao estilo cubista do filme – ao mesmo
tempo uma homenagem àquele que parecia aos vanguardistas o maior artista do cinema até
então, e uma proposta de uma nova perspectiva para a arte que nascia.

2 Delluc e Epstein

Mas se Léger era um artista formado na vanguarda plástica do pré-guerra, que passou pelo
cinema em sua trajetória de pintor, houve na França, depois da guerra, uma vanguarda
especificamente cinematográfica. No pós-guerra o cinema foi “descoberto” pelos intelectuais, e
floresceu em Paris o primeiro ambiente critico consistente da história do cinema. Misturavam-
se, e por vezes se sobrepunham, na mesma pessoa as atividades de realização e ensaísmo.
Várias interpretações do cinema surgiram, num ir e vir entre projetos teóricos e filmes.

A marca comum a todo esse campo vanguardista era a defesa da “especificidade” da arte
cinematográfica, a recusa de sua subordinação a parâmetros de outras artes, como o teatro
ou a pintura. Essa defesa – estratégica para a legitimação intelectual do cinema –, ainda
que diversa, considerava a dimensão narrativa secundária ou francamente condenável. Por
exemplo: apesar de o próprio autor de La Roue, Abel Gance, proclamar que o cinema

inaugurava uma era em que toda tradição narrativa seria incorporada nas criações para a

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tela, os críticos-autores vanguardistas descreveram e exaltaram sua obra como um
filme ‘sinfônico’ (...) em nome do jogo metafórico atribuído ao ritmo de sua
montagem, onde a ‘canção das rodas e dos trilhos’ sugere ‘estados de alma’ e a
psicologia da natureza, adquirindo todo seu valor poético por uma relação de
equivalência entre o movimento configurado plasticamente e o movimento interior,
psicossentimental, a que esse movimento exterior remete. (Xavier, 1978, p. 77)

Percebe-se neste exemplo emblemático que se tratava de ler no cinema do presente um


projeto de futuro para o cinema, baseado em parâmetros plástico-rítmicos, que só permitiam
analogia com a música – a menos mimética das artes. Mas, por outro lado, se a narrativa era
subordinada a essas preocupações formais, ela não era de todo abolida do horizonte. Não
apenas em críticas como as que se escreveram sobre filmes como La Roue, ou mesmo, no
caso mais eclético do pioneiro Delluc, sobre o melhor cinema americano e sueco, mas nos
próprios filmes realizados por estes intelectuais.

Jean Epstein foi um dos principais deles. Ele acredita que a câmera e suas potencialidades
expressivas – os destaques do enquadramento, o primeiro plano, a câmera lenta, as reversões
de movimento, as variações focais – nos dão um acesso privilegiado, iluminador, ao mundo.
Essa capacidade revelatória, que ele teorizou sob o conceito da “fotogenia”, seria intrínseca
ao cinema, à sua objetividade de captura das imagens e à sua reorganização pela montagem ,
mas deveria ser potencializada por um cinema a contrapelo da sedução narrativa. Segundo
ele: “por que contar histórias? (...) A vida não se deduz como as mesas de chá chinesas, que
se engendram doze sucessivamente, uma após outra. Estórias não existem. Jamais existiram.
Há apenas situações” (EPSTEIN apud XAVIER, 1978, p. 88).

Apesar dessa posição do crítico, o realizador roteirizou e dirigiu adaptações de obras literárias.
A queda da casa de Usher, adaptação do conto homônimo de Edgar Alan Poe, misturado
à história de O retrato oval, do mesmo autor, é provavelmente a mais famosa. A história
do pintor que vê sua mulher definhando enquanto prossegue a realização de um quadro
dela, que parece lhe roubar a vida, é narrada em atmosfera de pesadelo. Para isso, Epstein
emprega um arsenal de recursos que ele apontava como responsáveis pelo poder revelatório
do cinema. Fusões, leves desfoques e variações do diafragma ajudam a compor, junto com
uma iluminação carregada, que explora o contraluz, o clima onírico e fantasmático que
parece ameaçar a integridade da matéria. A câmera lenta é também utilizada em sentido
afim, dando aos movimentos dos atores uma aura de morte, num procedimento exemplar
da busca de uma imantação de sentidos nas situações por parte desse autor muito mais
preocupado com a construção de climas do que com a progressão narrativa.

Veja-se que o elogio de Epstein aos poderes revelatórios do cinema não se traduz por uma
compreensão documental da imagem, nem tampouco numa visão construtivista, como a
dos russos, que discutiremos mais adiante. Próximo a uma estética romântica, que aposta
numa revelação orgânica de dimensões mais essenciais através da imagem, Epstein afirma
que “O ritmo das imagens, é bom que se diga, é o aspecto mais superficial do ritmo
cinematográfico. Ao seu lado, acima, ainda mais importante, é o ritmo psicológico que se
traduz no ritmo da vida das personagens” . Dito de outro modo, o que se busca, através
dos recursos cinematográficos, é “revelar a verdade de um sentimento, de uma atitude
humana”(XAVIER, 1983, p. 179).


A fertilidade das ideais de Epstein é atestada pelos paralelos que se pode traçar com os conceitos desenvolvidos posteri-
ormente por grandes ensaístas, como o “ inconsciente visual” ao qual o cinema, segundo Walter Benjamin, dá acesso, e a
“ontologia da imagem” que, segundo Bazin, estaria na base da sétima arte.

Conferência de Jean Epstein proferida em dez/23, citado em Leprohon ([19--], p. 117). 
3 Dadaísmo, surrealismo e Man Ray

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O surrealismo – e suas difusas fronteiras com o dadaísmo – completam o quadro das
principais manifestações de vanguarda na França. Há sempre, nos jogos de classificação da
arte, seja no calor da criação de difusão das obras e manifestos, seja nas revisões de história
da arte, algo dessa luta por legitimação e hierarquização entre as obras e artistas reunidos sob
rótulos. No caso do surrealismo, como vanguarda militante, que pretendia definir um rumo
para as artes, essas polêmicas e demarcações eram explícitas, e por vezes violentas. André
Breton, sobretudo, preocupava-se com esse caráter programático e combativo, dirigindo
revistas, escrevendo artigos e manifestos.

Talvez a virulência das polêmicas estivesse potencializada pelo uso difuso que o termo
permitia. Ele fora usado pela primeira vez por Apolinaire, em 1917, para descrever o caráter
da invenção de um balé de Jean Cocteau, musicado por Erik Satie e com uma cortina
feita por Picasso. No caso do cinema, esta flutuação do termo foi, e continua (no âmbito
da história da arte), grande. E os casos de mais sutil distinção são os das fronteiras entre
surrealismo e dadaísmo. Como diz o historiador Virmaux,
Ocorre que cinematecas e cineclubes apresentam sob a etiqueta ‘surrealismo’um certo
número de curta-metragens realizados por volta de 1925, e o público se acostumou
a tomar como ‘surrealismo’ toda essa ‘vanguarda’ muda. Na realidade, há um abuso
de linguagem: uma boa parte destes filmes é de inspiração dadaísta. Confusão
desculpável: vistos desde as estrelas, tanto Dada como o surrealismo podem ser vistos
como duas etapas de um mesmo movimento revolucionário; não somente têm muitos
pontos comuns, como encontram em suas fileiras os mesmos homens.Tratando-se de
filmes, não será sempre fácil determinar se tal obra é mais dadaísta ou surrealista
(MITRY, 1974, p. 156).

Hans Richter, artista plástico, participante e historiador do dadaísmo (RICHTER, 1993),


e também realizador cinematográfico, chegou a declarar que
Meu primeiro encontro com o surrealismo foi em 1926. Acabara de filmar Filmstudie,
e Armand Tallier, que dirigia o cine das Ursulinas [sala emblemática das vanguardas,
em Paris], me convidou a projetá-lo em sua sala. Na mesma época, meu amigo Man
Ray realizou seu filme Emak Bakia, que foi igualmente apresentado na sala de Tallier
com a etiqueta de ‘surrealista’, como meu filme. Sabia então pouca coisa dessa nova
profissão de fé artística, da qual aprendi elementos no curso de uma breve estada em
Paris, graças à intervenção de Man Ray. Mas não estava seguro do que era o surrealismo.
O único movimento que compreendi com perfeição foi o movimento dada, porque
não ‘significava’ nada, não reivindicava nada e não prometia nada. (MITRY, 1974, p.
154-155)

O próprio Man Ray se formara como artista no seio do dadaísmo novaiorquino, onde estavam,
em meados dos anos 1910, Marcel Duchamp e Francis Picabia, de quem se aproximou.

O movimento dadaísta teve focos em Paris, Nova Iorque, Berlim e, de modo pioneiro, em
Zurique. Apesar das variantes, havia em comum o espírito de anarquia radical, ao qual
se refere Richter, que no limite atacava a própria existência da arte, como fica claro nos
readymades de Duchamp (como a famosa exposição de um mictório, sob o título de A
fonte, ou os desenhos técnico-industriais copiados por Picabia, como a de uma vela de
ignição que recebeu o nome de Retrato de uma moça americana em estado de nudez).

O dadaísmo surgiu em Zurique, em 1917, e o Surrealismo afirmou-se com o Manifesto


Surrealista, de 1924 (que teve uma segunda versão, em 1930), e mesmo que muitos dadaístas
tenham se filiado ao surrealismo isso não garante a interpretação cronológica de sucessão.
Segundo o próprio Breton, autor dos dois manifestos, os dois movimentos foram mais
“como duas ondas, quebrando uma na outra” (BRADLEY, 1999, p.12).

A escola surrealista buscou um recorte mais preciso, definindo seu campo de atuação

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como o da rebelião irracionalista onírica, de busca, através da criação imediata, irrefletida
(“automática”, como diziam eles) de imagens do inconsciente, carregadas pela força da
libido reprimida pelas convenções.

Os filmes de Man Ray são significativos desse ambiente criativo. Chegado dos EUA em 1921,
o fotógrafo imiscuiu-se no meio surrealista e, entre 1923 e 1929, esporadicamente, realizou
curtas-metragens – quatro, no total), sempre em esquemas de trabalho improvisados, às
vezes por diversão (seu maior investimento artístico estava na fotografia), e às vezes até sob
encomenda de um mecenas rico (como em O mistério do castelo de dados). Como disse
Carlos Augusto Calil,
não é possível classificá-los como rigorosamente dadá ou surrealistas (...) os filmes
de Man Ray, como seu autor, não são dogmáticos nem obras de um crédulo. São
antes produto de uma inclinação à criação que, erotizando os objetos, manifesta uma
postura leve com relação à vida (CALIL, 1996, p. 90).

O primeiro filme de Man Ray, O retorno à razão (1923), um experimento de dois minutos,
transpõe para o movimento proporcionado pelo cinema a sua técnica fotográfica da
raiografia, na qual a película, com objetos a ela sobrepostos (pregos, tesouras, tachinhas
etc.) é impressionada pela luz diretamente, sem o uso de uma câmera. No filme, ele ainda
associa essas imagens (jogos de silhuetas móveis contra um fundo neutro, alternando o preto
e o branco entre figura e fundo) com algumas imagens de fato filmadas, que lembram este
mesmo jogo formal (as luzes noturnas de um carrossel, movimentos de móbiles de papel
contra um fundo neutro).

Em Emak Bakia (“deixe-me em paz”, em basco), tudo é movimento, sem descanso: de novo
as raiografias, de novo luzes noturnas, mas agora com a câmera em perpétuo movimento.
Como as luzes refletidas em prismas giratórios ou as ondas na praia, ou ainda os desenhos
de colarinhos retrocedendo de modo ascendente, por trucagem, em seus movimentos
de queda. Ou ainda, como uma espécie de matriz dessas experiências, o ponto de vista
vertiginoso de uma viagem de carro em alta velocidade. Tudo isso filmado com recorrente
recurso a lentes que distorcem a imagem de modo a ondulá-la. O movimento ondulatório é
a forma desta experiência cinematográfica, que traz ainda a marca da metalinguagem, com
a imagem de seu patrocinador (o milionário Arthur Wheeler), e com a fusão da lente da
câmera e do olho (tal como fará, poucos anos depois, Vertov, em O homem da câmera).
Um outro comentário metalingüístico fecha e coroa o filme: um olho pintado sobre uma
pálpebra. Movimento ininterrupto, fantasia e observação, construção e objetividade, tudo
isso sintetizado numa imagem inquietante.

A estrela do mar (1929) é feito a partir de um poema surrealista de Robert Desnos. Circula
pelas imagens – que, sem se articularem narrativamente, expressam o desejo entre um casal –
uma aura de erotismo. Isso tanto na simbologia das imagens, com fálicas chaminés, femininas
estrelas do mar e flores, e até uma fenda que se abre, como no estilo visual, marcado por
certa lassidão e, principalmente, pelo recorrente uso de um vidro não polido em frente à
objetiva, dando a tudo e a todos um aspecto carnal, tornando o mundo orgânico.

O último filme de Man Ray, O mistério do castelo de dados, é quase que uma
bricadeira inconseqüente, filmada no castelo do visconde de Noailles, cujo título, lembrando
Mallarmé, refere-se ainda, no avançado ano de 1929, ao espírito dadaísta.

4 Entr´acte (1924)

Mas a grande obra-prima dadaísta foi, sem dúvida, Entr´acte. Concebida e realizada no
mesmo espírito espontâneo e anárquico dos filmes de Man Ray, Entr´acte marcou a estréia 
de René Clair. Segundo o próprio autor (CLAIR, 1970, p. 24), coube a ele a realização

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porque era o único com pretensões cinematográficas no grupo de amigos, reunidos em
torno de Picabia para a realização do balé Relâche (entre outros, Erik Satie, que fez a música,
Duchamp e Man Ray, que atuam). O “entreato” do título do filme é literal, já que foi feito,
nessa espécie de “ação entre amigos”, para ser exibido no intervalo do balé.

Clair declarou, à época, que em seu filme “a imagem, absolvida de seu dever de significar,
nasce de uma existência concreta” (MITRY, 1974, p. 117), diferente tanto dos “cine-
romances” (as narrativas ilustradas) quanto dos simbolismos das vanguardas (como em
Epstein), alinhando-se, segundo o autor, a filmes como L´arrouseur arrosé (clássico do
primeiro cinema), Viagem à Lua (de Meliés) e “a alguns cômicos americanos”, exemplos
das “poucas obras dignas dele [do cinema]” (MITRY, 1974, p. 117). Dito de outro modo,
Entr´acte é uma celebração da brincadeira, do potencial lúdico e vital do cinema.

A sucessão de imagens pouco tem de narrativa. A abertura já denuncia as intenções pouco


sérias dos realizadores. Saltando numa impossível câmera lenta, contracenam, com um
canhão cinematograficamente animado, Man Ray e Erik Satie (já um senhor, mas nem
por isso menos anárquico). Paris aparece, então, em sobreimpressões variadas, e surgem
bonecos com rostos de bexigas, que, de sorridentes e infladas, murcham tristemente, como
um código para a necessidade de brincar, se divertir. Em oposição a eles surgem, filmadas
desde baixo, as pernas de uma bailarina em pleno movimento. Logo, dois homens jogam
xadrez em um terraço, tendo a avenida Champs Elysées ao fundo. O tabuleiro se torna, por
fusão, a Place Concorde, onde chove. Chuva que se transforma num jorro d´água sobre o
tabuleiro, o que nos leva a uma viagem de um barquinho de papel, sobreimpresso em sua
navegação aos telhados da cidade, filmados por uma câmera balançante. Como se pode ver,
uma sucessão de transformações de imagens da cidade através de jogos e brincadeiras.

Esse jogo de inversões, que sugere a subversão da ordem cotidiana, segue. A bailarina retorna,
e se revela uma mulher barbada (na verdade, um homem travestido). Surge no terraço um
caçador, atira num ovo, dele sai, como nos truques de mágica, uma pomba, que pousa sobre
o chapéu do atirador. Mas outro caçador surge e atinge o primeiro, que morre, com seu
corpo caindo sobre a rua.

Sobrevém o movimento final, de máxima subversão lúdica: um cortejo fúnebre (do homem
atingido ou não, pouco importa) passa da tristeza e do lamento a uma agitação circense.
De início, o cortejo já se mostra estranho, passando por um parque de diversões. Detalhes
indicam a subversão: salsichas em vez de flores na guirlanda. E no lugar do cavalo, um
camelo puxa o esquife, que logo se desprende, o camelo foge, e o cortejo sai em desabalada
carreira, com a velocidade do filme se alternando entre a câmera lenta e a câmera rápida. A
farsa só termina quando o caixão cai, e se abre. De dentro dele sai um mágico, que com sua
varinha faz todos ao redor desaparecerem, sendo ele próprio o último.

Em vez de interpretações, ou mesmo de comoções líricas, Entr´acte convida à diversão e ao


riso anárquico.

5 O cão andaluz (1929)

Polêmicas vanguardistas e da história da arte à parte, fica clara a diferença com O cão andaluz,
desde sempre o mais celebrado filme surrealista. Neste filme de estréia (Buñuel só tinha
atuado antes como assistente de Epstein em A queda da casa de Usher, e Dali, seu co-autor,
não tinha experiência cinematográfica) realiza-se de modo acabado o projeto surrealista de
produzir imagens que perturbam o espectador de um modo diretamente inconsciente. O

cão andaluz é um filme vigoroso, enérgico, por vezes violento. Poucas imagens da história

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do cinema são tão célebres – e ao mesmo tempo conseguem manter o seu poder de choque
e atração mesmo depois de várias assistências – quanto a do olho cortado pela navalha
(secundada pela nuvem “cortando” a lua).

O que se segue a essa abertura fulminante é, mais que misterioso, perturbador. Um estranho
personagem masculino, vestido de um modo que tem algo feminino e tendo uma caixa
pendurada no pescoço, avança de bicicleta, enquanto em paralelo uma moça o espera,
em casa. O ciclista acaba caindo, sendo socorrido por ela. O encontro, frustrado, acaba
ocorrendo de modo apenas parcial, com a mulher beijando intensamente o homem, caído
desacordado. A caixinha é aberta por uma chaveta, numa imagem de conteúdo sexual latente.
É evidente que todo O cão andaluz dá expressão à tensão entre desejo e repressão .

As dificuldades do encontro se prolongam, em imagens de variação e desdobramento dessa


tensão: a mulher surge velando a roupa do homem, sugestão de ausência e de fantasia
substitutiva. Surgem expressões inquietantes do desejo, em metamorfoses cinematográficas:
a representação da masturbação e da culpa, no buraco na mão de onde saem formigas, que
se transformam nos pêlos de uma axila de mulher e em um ouriço, remetendo à genitália
feminina e à sua interdição e perigo. Uma mão extirpada – suscitando no espectador uma
aflição que remonta ao medo da castração – surge na rua, cercada pela polícia. A mulher
recebe a mão e a guarda na caixinha, numa espécie recomposição da inteireza roubada
pela interdição do desejo, mas acaba atropelada, em mais um lance de punição, repetindo
o acidente do ciclista. Como numa explosão da tensão, surge uma cena onde o homem
tenta agarrar a mulher à força, que se esquiva e se defende, prendendo a mão do agressor
numa porta. Nesta mão presa e pressionada ressurge o formigueiro, numa reiteração da
simbologia fálica, das fantasias masturbatórias e do medo da castração repressora e da culpa
associada. Todo esse primeiro ato, que encena de modo não-contínuo o drama da repressão
e do desejo, é coroado pela cena de um homem puxando penosamente um piano, com dois
burros mortos no instrumento, e, por fim, dois padres – para não deixar dúvidas sobre o
tema da repressão.

Na segunda parte, um duplo do homem invade o quarto, reprimindo-o agressivamente.


O conflito se desenvolve a ponto de o homem matar esse duplo, ao mesmo tempo ele
próprio e uma figura paterna, numa versão da clássica fantasia de matar o pai. Um último
movimento de imagens de tensão sexual confronta de forma direta o homem e a mulher:
frente à presença feminina e à iminência do encontro sexual, surge uma nova imagem de
castraçã – a boca do homem desaparece, e em seu lugar crescem pêlos como o da axila
feminina, enquanto a mulher grita e vê que sua axila está depilada.

A perda da boca, sugerida como repressão do desejo sexual, culmina a série de imagens
aflitivas, expressões de um intenso combate interno, de uma pisque estruturada por uma
violenta repressão. O filme surrealista de Buñuel busca, antes de comentários ou ilustrações,
dar expressão direta a essa tensão psíquica. Suas imagens pretendem ter o mesmo poder de
condensação de experiências e poder de perturbação que as imagens oníricas.

O filme termina com a fuga da mulher daquela prisão na cena repressora do quarto. Ela
surge na liberdade de uma praia, onde encontra um outro homem, com quem, ao que
tudo indica, o encontro amoroso é possível. Mas, num último volteio simbólico, aparecem
na praia objetos trazidos pelo mar, os pedaços da bicicleta. A imagem final do filme é dos
cadáveres do casal, enterrados pela metade na areia, sendo devorados por insetos. O que


A interpretação marcadamente psicanalítica de O cão andaluz, que sigo aqui, tem como principal referência o livro de
Cesarman (1976, p. 69-86). 
parecia uma cena de superação e de encontro vital é pontuada primeiro pelo retorno do

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reprimido, figurado pelos restos da bicicleta trazidos pelo mar, e por fim pela sombra da
morte. Fica em aberto a interpretação desse desfecho: estariam a vida e a liberdade condenadas
ao malogro, ou o impulso vital é apresentado de modo heróico, em sua afirmação frente às
ameaças de nossas repressões e da morte inevitável? Sem teleologia, o artista surrealista nos
aviva a intensidade dos conflitos internos e os deixa pulsando, como que em carne viva.

II CINEMA EXPRESSIONISTA ALEMÃO

Para pensar o cinema expressionista alemão há que se entender um pouco a situação da capital
alemã – onde esses filmes foram realizados – no contexto europeu de fins do século XIX e
início do XX. Se os filmes expressionistas tratam de relações entre indivíduos e sociedade,
tematizam a individualidade e a massificação, a “vida moderna” na sua definição mais geral,
de vida na cidade, é preciso compreender então que cidade e que sociedade eram essas.

Enquanto outras capitais européias, notadamente Paris e Londres, haviam se tornado


metrópoles em meados do século XIX, Berlim vai se transformar numa grande cidade muito
tardiamente para os padrões europeus, somente ao final desse século, quando passa a ser a
capital da Alemanha recém-unificada pelo chanceler Bismark, sob a liderança da dinastia
Hohenzollern da Prússia, ao final da guerra franco-prussiana (1871). É sob a liderança do
Kaiser Willhem I, o fundador do Segundo Império Germânico, e posteriormente de seu
neto Willhem II, que a Alemanha como um todo, e sua capital particularmente, vivem um
período de intensa urbanização e modernização. Berlim teve os muros medievais finalmente
postos abaixo em 1868, possibilitando a expansão física e simbólica que lhe garantiria a
proeminência na jovem nação. Incorporou territórios vizinhos, subúrbios e arredores, e
passou a atrair uma massa de imigrantes sobretudo das áreas rurais, que vinham engrossar as
fileiras do trabalho operário nas novas indústrias que ali se estabeleciam. Em pouco tempo
tornou-se uma metrópole industrial menor apenas que Londres, a capital da Revolução
Industrial – sua população, que em 1867 não passava dos 700 mil habitantes, chega a
impressionantes 4 milhões em 1913. Aos olhos de um observador contemporâneo, Berlim
“torna-se uma cidade grande da noite para o dia, como um especulador feliz”. Entre 1875
e 1914 a Alemanha vive um “período de ouro”, beneficiado pelos reparos de guerra por
parte da França derrotada, que aportam muito dinheiro para a capital alemã e possibilitam
crescimento da renda nacional e um intenso desenvolvimento (WAIZBORT, 2000).

Esse desenvolvimento burguês se dá também do ponto de vista cultural, e sobretudo sob


o reinado de Willhen II, a partir de 1880, há um incentivo às instituições que auxiliavam
na construção de um “caráter nacional”; afinal, a jovem nação, sob a liderança prussiana,
necessitava construir uma unidade também cultural. Assim, Academias de Arte, Galerias
Nacionais, Universidades, Institutos Históricos passam a contribuir para a constituição
desse caráter através de suas ações e obras (BEHR, 1999). No entanto, o desenvolvimento
de uma sociedade mais complexa e o estabelecimento de classes média e alta consumidoras
de arte, que engendram um mercado de artes, impele artistas e marchands a fundarem
grupos e instituições fora do circuito oficial, para expressarem mais livremente a sua versão
de tal caráter. Nesse contexto surgem as Secessões – dissidências dos Salões Oficiais –, onde
artistas se contrapunham aos padrões acadêmicos patrocinados pelo Kaiser, não apenas em
Berlim, mas também em Munique, Frankfurt, Dresden e outras cidades. Núcleos de artistas
começavam a questionar a sociedade burguesa e trocavam experiências com as diversas
vanguardas européias. As Secessões possibilitam o contato dos artistas alemães com o que de
novo se produzia além-Alemanha, valendo-se da intensa mobilidade que se tinha agora em
virtude do desenvolvimento dos transportes, estabelecendo um forte contato com o Leste,
de onde muitos artistas vinham, expondo a arte contemporânea francesa, possibilitando
inclusive o surgimento das mulheres artistas, vedado no circuito oficial. Em Berlim, chega

a ser formada uma Neue Secession (Nova Secessão), onde jovens artistas, que mais tarde

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seriam agrupados sob o epíteto expressionista, passam a expor suas obras contrapostas ao
espírito deliberadamente hostil do Kaiser à arte nova e a uma certa capitulação da própria
Secessão a ele.

É nesse contexto de aburguesamento do Império, mas também de insatisfação e questionamento


de seus reais benefícios, que o expressionismo nasceu. Os artistas que passam à história com
esse nome, entretanto, não chegam a formar um grupo coeso, mas seriam jovens que, de
alguma forma, tentavam expressar sua insatisfação com os rumos da sociedade estabelecida
e, a partir disso, as tensões entre o urbano e o rural, a cidade e o campo, Zivilisation e
natureza. Esses artistas formaram associações, publicações e grupos de ação (Die Brücke,
Der Blaue Reiter, Der Sturm, Neue Künstlevereiningung München - NKM, Die Pathetiker,
entre outros), lançaram manifestos, e, como qualquer vanguarda, logo se transformavam
em outra coisa. Nota-se também uma espécie de disputa, entre o sentido da vanguarda –
universalista por excelência – e a necessidade de se pensar uma arte “genuinamente alemã”.
O expressionismo parece ter se desenvolvido na tensão entre estes dois pólos.

A crítica tem comumente localizado na arte expressionista algumas questões comuns, como,
por exemplo, o conflito pai-filho (BEHR, 1999; GAY, 1978), que poderia ser pensado
simbolicamente como a tradução desta relação de oposição entre os mais velhos – ou a
arte estabelecida – e os mais jovens – ou a arte nova; ou ainda, a nova arte para o novo
homem, ou mesmo a forma universal – apaziguadora – contra a subjetividade que pretende
romper os limites. Esse conflito pai-filho, que aparece literalmente no teatro, na música e
na poesia expressionistas , e que nas artes plásticas é visto de modo mais sutil ou matizado,
parece sublimar, no entanto, algumas questões mais complexas que alimentavam essa
vanguarda, sobretudo no que diz respeito à situação do artista alemão. As artes estavam
tentando estabelecer novas possibilidades de se pensar a sociedade, livre da opressão que
a modernização lhes parecia acarretar, mas não só, estes artistas pareciam determinados a
tomar uma posição intuitiva e “destreinada”, retomando valores pré-industriais (à la Willian
Morris), chegando a condenar as distorções da vida urbana, da ciência e do racionalismo.
Entretanto, a possibilidade de existência desses artistas era justamente o alargamento de
um mercado de artes que lhes propiciava algum ganha-pão fora dos círculos oficiais, e
que só foi possível graças à urbanização e à modernização do país. Mas esta insatisfação
com a “opressão” da vida urbana pode ser mais bem entendida se pensarmos que tais
desenvolvimento e modernização intensos não ocorreriam sem custos.

A rápida urbanização da cidade contrastava as áreas nobres e de classe média, entremeadas de


parques e servidas de toda a infra-estrutura e benfeitorias que a modernização possibilitava,
com a vida da imensa maioria da população nos “Mietkaserne”, apartamentos de um quarto
e cozinha, com banheiro comum, sem gás para aquecimento ou luz elétrica, de densa
concentração habitacional. O operariado que vive ali inicia um processo de organização e
politização sob a liderança do Partido Socialista (mas não só, os comunistas também têm
um peso importante) ainda em fins do século XIX, se fazendo ouvir nas suas manifestações
e associações, conquistando garantias como aposentadoria, seguro de invalidez, delimitação
da jornada de trabalho. Os operários, em 1907, chegam a representar 44,3% da população.
Reconhecendo o peso social e político dessa classe (organizações sindicais e partidos), as
elites desde então se empenharam na sua incorporação ao “Estado alemão” por meio do
incentivo aos sentimentos nacionalistas, persuadindo-a que ela era, antes de tudo, parte
do Reich (ALMEIDA, 1982).


Peças como Der Sohn (Hasenclever), Vatermord (Arnoldt Bronnen), Vater und Sohn (der Goltz), por exemplo.

Arquiteto inglês, líder do movimento Arts and Crafts, seria muito admirado pelos alemães. 
O cinema que se convencionou chamar de expressionista, e que de alguma maneira parece

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captar a importância dessa nova força social, só floresce, no entanto, após a guerra, quando
uma nova e tremendamente tensa situação se estabelecera na Alemanha urbana e industrial
que fora derrotada. Na Berlim do II Império a produção cinematográfica nacional era ainda
irrelevante, comparada às produções estrangeiras que invadem um mercado em formação
(KRAKAUER, 1988; EISNER, [19--]). Será apenas na Grande Guerra que os alemães
percebem o significado de uma indústria cinematográfica como força de propaganda,
auxiliando na construção da alma nacional – quando fundam sob os auspícios do Estado
a poderosa UFA (Universum Film A S), junção das pequenas e dispersas empresas que
existiam antes da guerra (KRAKAUER, 1988).

Ao final da Grande Guerra, a pujante nação indestrutível é uma terra devastada – e o imperador
se vê forçado a abdicar. Em 1918, com a derrota, a República é proclamada por um grupo
de políticos social-democratas reunidos em assembléia em Weimar – a cidade de Goethe –,
e a história alemã entra num novo período. A Revolução, que estava no horizonte da classe
operária, não acontece efetivamente, sendo abortada sob a liderança da social-democracia,
que controla a massa revoltosa e a integra num modelo de estado aceitável para a burguesia:
realizava-se a “democracia de todo o povo”, evitando-se a “ditadura de uma só classe”, pelo
menos no entendimento dos socialistas. No entanto, o que de fato aconteceu foi uma jovem
República formada na esteira das velhas classes aristocráticas, entre interesses burgueses,
numa clara tentativa de impedir a ascensão comunista. É nesse contexto de apaziguamento
das reivindicações proletárias e socialistas que Rosa Luxemburgo e Karl Liebknitch são
assassinados barbaramente pelos frei-corps (forças paramilitares de direita que mais tarde
alimentariam as SS de Hitler), sob o olhar complacente da liderança social-democrata (que
pouco fazem para punir os culpados). Nas palavras de um importante historiador, “a república
nasceu derrotada, viveu em tumulto e morreu em desastre” (GAY, 1978).

Se o Império levara a nação a uma quase-destruição, a culpa pela derrota e pela situação
caótica que a Alemanha se via mergulhada não cai nem em suas costas nem nas de generais,
que conduziram milhares de jovens à morte. Os verdadeiros responsáveis, ao longo de toda
a República de Weimar, serão os políticos da liderança social-democrata que arcaram com
o ônus de assinar o tratado de Versalhes. Se o tratado punha fim à Guerra, as condições de
paz impostas seriam vistas por muitos como condições de vingança dos franceses pela guerra
franco-prussiana. Ainda que o tratado pudesse ser a única solução possível naquele momento,
a pecha de perdedores, fracos, traidores acompanhará sempre os homens do governo, pois os
ressarcimentos de guerra estabelecidos amarraram o Estado, impedindo a jovem República
de se estabelecer, trazendo mais devastação e miséria à já derrotada Alemanha. A República de
Weimar (1918-1933) nasce, assim, sob uma crise econômica sem precedentes, empurrando
as camadas médias para o terreno da direita e contribuindo para a desmobilização gradativa
da imensa classe operária, pelo fato mesmo de ela deixar de ser operária e se transformar num
exército de desempregados – cada vez mais disponíveis, ambas, camadas médias e baixas,
para serem cooptadas pelos nacional-socialistas (GAY, 1978).

No entanto, as crises em geral tendem a ser períodos férteis para as artes, e na Alemanha
de Weimar isso pode ser observado muito claramente: arquitetura, música, teatro, artes
plásticas, em todas as áreas o desenvolvimento é intenso. E o cinema entra numa nova fase,
saindo da esfera local para ganhar as telas do resto do mundo.

Deixando para trás a produção medíocre de antes da guerra, a indústria cinematográfica se


aproveita do fechamento das fronteiras dos anos do conflito – uma espécie de reserva de
mercado forçada –, e também dos incentivos oficiais que formam a UFA, e amadurece no
pós-guerra numa indústria tão poderosa como a norte-americana. O clima de radicalização
política fermentado na penúria do pós-guerra politizou também as artes – e o expressionismo,
10
com suas muitas vertentes de rebelião subjetiva contra a ordem burguesa, sem um eixo

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unificador, politizou-se de forma difusa, emprestando seu estilo exasperado aos protestos e
tornando-se presente em vários aspectos da vida cultural, entre eles o cinema.

Para entender essa produção, vejamos quatro filmes que, grosso modo, podem ser entendidos
como paradigmáticos da cinematografia alemã naquele período. São eles “O gabinete do Dr.
Caligari” (1920), “Nosferatu” (1922), “A última gargalhada” (1924) e “Metropolis” (1927).

1 O Gabinete do dr. Caligari (1920)

Este talvez tenha sido o principal filme alemão do pós-guerra, que revelaria o cinema
germânico para o mundo e criaria uma nova estética cinematográfica – um verdadeiro marco
na história do cinema. Para Peter Gay, o filme exibido em Berlim em 1920 é provavelmente o
“artefato mais celebrado da república de Weimar”, só comparável à Bauhaus – personificando
o espírito de Weimar ao lado da arquitetura de Gropius, a pintura de Kandinsky, os cartazes
de Groz e as pernas de Dietrich (GAY, 1978, p. 119). Vejamos por quê.

O filme parece ter inaugurado novas ambições estéticas, propondo uma relação entre filme
e artes gráficas, entre ator e representação e entre imagem e narrativa, conseguindo atrair a
atenção de um público intelectualizado que até então guardava distância da nova indústria
do espetáculo – ainda incerta de seus caminhos e distante talvez do que até então se entendia
por Arte. O filme também pôde iniciar um processo de reabertura de mercados para a
Alemanha, ajudando a recompor sua imagem de nação causadora da Guerra no exterior.

Além disso – o mais importante, talvez –, o fato de ter servido a um proeminente crítico
da cultura como uma “explicação” da psicologia alemã que levaria ao nazismo, este filme
teve a história de sua produção cercada de lendas e mitos que só recentemente começaram
a ser esclarecidos . O livro De Caligari a Hitler: uma história psicológica do filme alemão,
de Siegfried Krakauer (1947), ajudou a perpetuar o mito de uma história revolucionária e
visionária que nas mãos de um produtor e de um diretor comprometidos com o sistema
torna-se um filme convencional. No entanto, mesmo assim, para este crítico, ele valeria
como essa espécie de condensação ou explicitação do espírito alemão pré-nazista.

Com roteiro de dois jovens escritores que se encontram em Berlim e se tornam amigos,
o tcheco Hans Janowitz e o austríaco Carl Mayer, escrito durante as últimas semanas da
revolução alemã, entre 1918 e 1919, a história unia as experiências de vida de ambos:
a atmosfera de mistério de Praga, cidade da infância de Janowitz e a sua participação
num incidente em Hamburgo, como testemunha involuntária do assassinato de uma
jovem num parque de diversões em Holstenwall – nome que a cidade imaginária do filme
irá tomar –, e a desconfiança de ambos do “poder de um estado autoritário” – nas suas
experiências em relação à convocação para a Guerra. Os dois, ao chegarem a Berlim,
assistem a um espetáculo de hipnose num Parque de Diversões e, depois disso, em seis
semanas terminam um roteiro em que um velho misterioso chega a um parque de uma
cidade – em um tempo indefinido – anunciando o espetáculo de um sonâmbulo capaz
de prever o futuro. Ao mesmo tempo, assassinatos misteriosos ocorrem na cidade. Dois
amigos – alter-egos dos autores – assistem ao espetáculo e um deles recebe a profecia que
só irá viver até o anoitecer. De fato, ele é assassinado, e o outro passa então a investigar,
com a ajuda do pai de sua amada, até finalmente descobrir que é o sonâmbulo Cesare, a
mando do velho homem, o verdadeiro assassino. No entanto, o que ele não pode imaginar
é que este homem é na verdade o diretor de um hospício que, estudando casos médicos
da Idade Média, descobre a história de um tal Caligari que comandava a mente de um
sonâmbulo através de hipnotismo. O médico torna-se obsessivo em descobrir se isso é

O histórico da produção do filme, esboçado a seguir, está calcado no livro de Robinson (2000). 11
possível e, com a chegada de um sonâmbulo ao hospício, toma a identidade falsa de

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Caligari e sai pelas feiras das cidades a cometer assassinatos.

Para Krakauer, esta história condensaria a predisposição alemã ao nazismo, um povo


hipnotizado cometendo loucuras nas mãos de um louco, Hitler-Caligari. Entretanto, o
que os roteiristas passaram anos alardeando é que o filme havia sido distorcido nas mãos
dos produtores, que o enquadraram como uma “história de louco”, encerrando o roteiro
dentro de uma outra história-moldura – uma cena inicial e uma final –, fazendo de Francis
(o jovem que busca solucionar os crimes) o verdadeiro louco, que conta esta história na
qual ele imagina o diretor do hospício como o louco. A cena final é o médico-Caligari
dizendo ao público que agora que descobriu a “loucura” de Francis finalmente poderá
curá-lo – ou seja, trazendo o público de volta à “normalidade”. Essa moldura, segundo
Kracauer, representaria uma inversão ideológica da história: de uma representação de um
mundo enlouquecido e dominado por forças irracionais passa-se a uma versão domesticada
e conservadora, onde essa percepção da situação histórica é enquadrada como um caso de
desvio, a ser “sanado” por autoridades benévolas.

Apesar desta interpretação de Kracauer ter tido uma enorme e penetrante influência, Peter
Gay levanta uma objeção importante: mesmo sem essa moldura conservadora, a história
original é pouco conclusiva no diagnóstico dessas forças obscuras e das forças libertárias que
a elas se contrapõem. Afinal, a “liberdade” que no filme se opõe à metáfora do obscurantismo
encarnada no médico-hipnotizador é tão-somente a imagem de um parque de diversões.
Espaço lúdico, com certeza, talvez de tons anárquicos, mas pouco calçado politicamente.

Ou seja, é possível que a variação de sentido lida na inserção de uma moldura domesticadora
seja possível graças a uma certa ambigüidade essencial da história, próxima, aliás, das
ambivalentes posições políticas da “revolta” expressionista, que ia, em sua contraposição
à rotinização burguesa de trabalhos militantes, engajados nas tendências comunistas, a
expressões de ambição puramente espiritual

De qualquer forma, o fato de Caligari ser uma história de loucura permitiu os cenários
distorcidos que a partir dali criaram uma nova estética cinematográfica de luzes e sombras e
de representações antinaturais – que ficariam conhecidas como expressionistas. As versões se
somaram e se contradisseram ao longo dos anos, mas o que de fato parece ter ocorrido é que
os dois jovens roteiristas, sem dinheiro, tentando vender rapidamente a história, chegam
ao já na época importante produtor Erich Pommer, que prontamente compra os direitos
de filmagem. Segundo o próprio Pommer, ele percebe a atmosfera macabra e misteriosa da
história – em voga na Europa daqueles anos – e a possibilidade de fazer um filme barato,
baseado em cenários mais ou menos simples, sem nenhuma locação externa. A direção,
que inicialmente seria de Fritz Lang, coube a Robert Wiener – que parece ter sido um dos
responsáveis pela ambientação em cenários expressionistas, chamando para isso três jovens
artistas/cenografistas: Hermann Warm, Walter Röhrig e Walter Reimann. Os três teriam
criado os cenários “amalucados” a fim de chamar a atenção do público, independentemente
da reação positiva ou negativa que se pudesse ter: o importante era algo diferente para
chamar atenção da imprensa e do público. De fato, o que se percebe é que o “estilo
expressionista” do filme, mais que a integração dos pressupostos estéticos expressionistas na
nova arte cinematográfica, era muito mais “um traje para vestir o drama”, condizente com a
atmosfera alemã dos anos 1920 (ROBINSON, 2000). Entretanto, se não há um conteúdo
propriamente expressionista na história, isso não quer dizer que o cenário, o figurino e
mesmo a interpretação dos atores não sejam inegavelmente expressionistas, extraindo lições
da prática teatral extremamente influente na época. A cenografia como um pano de fundo
pintado, misturando elementos lúdicos com linhas disformes, propositadamente chapado,
sem profundidade de campo, com uma fotografia de caráter bidimensional , por vezes
12
utilizando-se de diagramações da tela por jogos de luz e sombra (como na célebres cenas de

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Cesare, o sonâmbulo emergindo das sombras para atacar Jane, a “mocinha”). A interpretação
extremamente estilizada, sobretudo de Cesare (Conrad Veidt) e Caligari (Werner Krauss),
reforçam o caráter bastante teatral do filme.

O ambiente obtido parece ter cativado a mentalidade alemã da época – e posteriormente


do resto do mundo –, provocando uma onda de filmes de seres estranhos, autômatos e
misteriosos. O filme estreou em Berlim em 26 de fevereiro de 1926 – e imediatamente
se transformou num sucesso que durou meses. Em Nova York angariou um público
considerável, chegando a incomodar os produtores locais com medo da invasão de filmes
europeus no seu mercado (ROBINSON, 2000). Iniciou-se uma moda de filmes “embebidos
numa luz tênue, na qual os atores se movimentavam, parecidos com Cesare, o sonâmbulo,
em estado de transe, em cenários estranhamente pintados” (GAY, 1978, p. 122). Assim, não
é de se estranhar que alguns anos depois a estréia de “Nosferatu”, a história de um vampiro,
alcançasse tamanho sucesso.

2 Nosferatu, Sinfonia do Horror(1922)

Se a estética expressionista de Caligari exerceu um verdadeiro fascínio na Alemanha dos


anos 1920, sendo retomada em diversos filmes (“Dr. Mabuse, o Jogador”, de Fritz Lang,
1922; “O gabinete de estátuas de cera”, de Paul Leni, 1924, entre outros), “Nosferatu”,
ainda que também parta dali, parece estabelecer um novo patamar cinematográfico – além
de iniciar, ele mesmo, uma moda de filmes de vampiros.

Adaptação da famosa novela Drácula, de Bram Stockler, o roteiro de Hemrik Galeen é


cheio de idéias próprias. A história se passa em Bremen, onde um jovem corretor de imóveis
recém-casado é enviado ao Castelo de Nosferatu, nos Cárpatos, para lhe vender uma casa. A
viagem de ida se dá por lugares macabros, lúgubres, povoada de animais e envolta em névoas.
O corretor encontra seu estranho cliente num castelo – e depois de um primeiro contato um
tanto quanto estranho, o encontra dormindo no porão, num caixão de madeira. Durante a
noite, Nosferatu tenta atacar o jovem para chupar seu sangue, mas no exato instante a sua
esposa acorda em Bremen, numa espécie de transe, e grita seu nome, impedindo o ataque
do vampiro. O vendedor foge, mas Nosferatu já está a caminho: vem num veleiro cuja
tripulação é dizimada pela peste, que a sua presença espalha. E assim por onde passa. Em
Bremen, Nosferatu tenta atacar Nina, a jovem esposa, mas esta não tem medo da criatura e
o vence ao recebê-lo em seu quarto: o sol nasce no horizonte e dissolve o vampiro.

O filme é feito por meio de uma série de truques, como, por exemplo, filmar partes da
viagem em negativo, causando um estranhamento à época, com as árvores brancas e
fantasmagóricas contra um céu negro do bosque. Também a cena em que a carruagem
que carrega os caixões de Nosferatu – sem condutor – desce aos solavancos como um
veículo-fantasma ou o veleiro desliza sobre águas fosforescentes causa grande frisson nos
anos 1920. Considerado por uma crítica de cinema alemã o “maior realizador alemão de
seu tempo”, Murnau consegue sair da estilização decorativa anterior para criar de fato
imagens perturbadoras – filmadas ao ar livre, as cenas acabam por dar maior realismo à
história, que deixa de ser um conto estranho para se tornar um filme de terror. Assim, a
natureza – mares, bosques, animais – participa do drama, trazendo para o espectador, a
despeito da sua naturalidade intrínseca, a “noção do sobrenatural” (EISNER, [19--], p.
61). Os planos são concebidos a partir de sua integração na ação dramática, e as locações
não são falseadas por meio de iluminações contrastantes para se obter o aspecto misterioso
e bizarro em que a história se fundamenta. São, na verdade, os ângulos imprevistos que a
câmera do cinegrafista Fritz Arno Wagner capta que provocam os efeitos, bastando para
tornar o castelo de Nosferatu ou a cidadezinha medieval de ruelas estreitas e arquitetura
13
nórdica exemplos desse estranhamento. A atmosfera de pavor é criada às vezes pela lentidão

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exasperante com que uma cena é filmada, como quando Nosferatu avança no quarto de seu
hóspede, saindo detrás da porta em ogiva (o que ajuda a alongar a sua silhueta) no fundo da
cena, até chegar quase na câmera, tornando-se então um gigante aos olhos do espectador.

Mas, ainda que todos esses avanços técnicos possam ser notados, a realidade ainda não aparece
como uma dimensão real . Ela ainda é um símbolo objetivado de reflexos anímicos. O terror
causado pela necessidade e pela opressão sociais ainda aparece interiorizado, sob a forma de
um sofrimento proveniente de um princípio irracional – o “mal” – dentro da própria alma.
Ainda teria que se esperar alguns anos para que esse terror real chegasse às telas dos cinemas.

3 A última gargalhada (1924)

Com este filme, Murnau passa definitivamente à história do cinema. A história de


um velho porteiro do elegante Hotel Atlantis de Berlim, que se vê substituído por um
funcionário mais jovem e é transferido para a função subalterna de “criado de toillette”
– numa sociedade ainda cheia de regras aristocráticas, a despeito de seu aburguesamento
recente –, é “uma tragédia alemã”. É a história de um trabalhador, orgulhoso da dignidade
que seu ofício, e seu uniforme, lhe dão e que, ao perder o emprego, e a farda, perde
também o sentido de sua existência .

O velho (Emmil Jannings) vive num subúrbio berlinense – num Mietkaserne, talvez – e
lá é respeitado por todos, pela idade avançada e pela posição que ocupa. Seu uniforme de
botões e galões brilhantes lhe confere autoridade ante seus pobres vizinhos cinzentos, e
também entre seus colegas de serviço, grooms e valetes do grande hotel. Ao perder o posto,
e ser privado do uso de seu uniforme, seu mundo desmorona. Para participar do casamento
da filha o velho ainda consegue roubar o uniforme – mas assim que é descoberto por uma
vizinha mexeriqueira todo o bairro se transforma num pesadelo de velhas desdentadas que o
acusam de embusteiro, e ele perde definitivamente seu amor-próprio. O filme quase não tem
texto entremeando as cenas (tem apenas umas poucas frases que introduzem um segundo
final), entretanto sua história se faz entender de maneira cristalina: trata-se de uma história
que “a gente sabe qual é”, ou talvez porque, como explica Krakauer, o filme seja uma “vitrine
de eventos essencialmente mudos” (KRAKAUER, 1988, p. 123).

Todo o filme parece se identificar com a perspectiva de seu herói. Toda a realidade não é
mais que um reflexo do jogo de suas emoções.

A câmara faz panorâmicas, travellings e balança para cima e para baixo com uma perseverança
que não apenas resulta numa narrativa pictórica de completa fluidez, mas também torna
possível ao espectador seguir o curso dos acontecimentos de vários pontos de vista. A câmara
errante o faz experimentar a glória dada pelo uniforme, assim como a miséria da casa de
cômodos (...) o ator é sujeito passivo da câmara (KRAKAUER, 1988, p. 127).

Enquanto se sente poderoso, o porteiro é filmado de baixo e os objetos com que interage são
a expressão de sua autoridade e prestígio: o guarda-chuva com que leva e busca hóspedes, a
porta giratória do hotel que maneja com destreza. A porta, aliás, é uma espécie de obsessão. A
porta giratória sempre em movimento – algo “entre um carrossel e uma roleta” (KRAKAUER,
1988, p. 124) – mostra hóspedes que entram e saem, os transeuntes pela rua, a chuva lá fora
nos carros. O gerente o observa através da porta de vidro de seu escritório. E quando perde
o emprego, sua imagem passa a ser vista por entre portas, entre o vestíbulo e o banheiro no


A crítica alemã Lotte Eisner insiste no caráter particular do drama: “é uma tragédia tipicamente alemã, só compreen-
sível neste país em que o uniforme é um rei, um deus. Um espírito latino tem bastante dificuldade de apreender todo o
seu alcance trágico” (EISNER, [19--], p. 123). 14
subsolo do hotel. Assim, o impávido homenzarrão se transforma num velho cambaleante, seu

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antes penteado cabelo e o escovado bigode agora não são mais que uma basta cabeleira branca
desgrenhada. De novo é Krakauer quem nos chama a atenção para a importância dos objetos
em cena, que ele reputa à natureza intrínseca dos personagens de Mayer, o roteirista.

Há também neste filme um final que busca inverter o sentido da narrativa, realista em
termos sociais – ao que tudo indica, devido a um pedido de Jennigs – que não deixa de ser
uma ironia aos finais felizes hollywoodianos. O velho, que poderia morrer ali, abandonado
por tudo e por todos naquele banheiro no subsolo, maltratado por ricos burgueses, tira a
sorte grande ao se tornar herdeiro de uma fortuna e vai terminar comendo caviar e bebendo
champanhe no hotel, sendo atendido pelo próprio gerente que o despedira e distribuindo
gordas gorjetas a todos que lhe passam em frente.

Os efeitos plásticos, sejam eles sombras e distorções ópticas (como no sonho compensatório
do porteiro, que se vê como todo-poderoso, num onírico e transfigurado hotel), sejam
as modulações de cenário, como as transparências dos vidros, revelando camadas não só
de espaço, mas sociais (o dentro e o fora do hotel, o gabinete do gerente e o corredor, a
escada para o banheiro no subsolo), ou as assimetrias do cortiço onde vive o protagonista,
em contraste com a limpidez e simetria do espaço do hotel – tudo isso está social e
realistamente enraizado, sob a mediação da psicologia do protagonista. É como se o cinema
realista herdasse a capacidade de modulação expressiva dos elementos plásticos, típica do
expressionismo (numa antecipação do que acontecerá em larga escala com a migração
de cineastas alemães – Murnau e Fritz Lang entre eles – para os Estados Unidos, sendo
fundamentais no desenvolvimento dos filmes noir).

O filme está ligado ainda a mudanças estéticas vividas na Alemanha na década de 1920.
Se o expressionismo buscava romper com a sociedade burguesa em que se formara, parece
ter surgido naquela década um novo movimento que pregava a necessidade de se rever a
ruptura absoluta e que propunha a busca de formas mais seguras de representação, menos
subjetivas. Buscava-se submeter o sujeito ao objeto, para se chegar à representação ideal: era a
Nova Objetividade (Neue Sachlichkeit) do pós-guerra, que queria “apresentar uma imagem
atrozmente verdadeira da sociedade alemã” (ARGAN, 1993, p. 242). Talvez, de fato, “A
Última Gargalhada” esteja mais próxima da Sachlichkeit da década de 1920, necessária para
o enfrentamento dos reais problemas da sociedade alemã, que os arroubos experimentais do
expressionismo plástico dos anos anteriores à guerra – quando se queria romper com uma
sociedade burguesa em formação. Mas talvez o filme que sintetize essas questões, propondo
uma leitura da sociedade moderna, sem desprezar toda a mentalidade germânica ligada ao
mundo do espírito, seja o “Metropolis”, de Fritz Lang.

4 Metropolis (1926)

Fritz Lang conta que concebeu Metropolis a bordo de um navio, quando vislumbrou a
cidade de Nova York brilhando sob as luzes – a cidade de Metropolis era uma Nova York
supercrescida, uma previsão do futuro, com seus inúmeros arranha-céus, viadutos e auto-
pistas. No filme, a cidade é divida em alta – domicílio dos ricos empresários e seus filhos
– e baixa – onde sem nunca ver a luz do dia vivem e trabalham os operários, verdadeiros
escravos dos que habitam em cima. A história é basicamente a luta dos oprimidos contra
os opressores, que termina com a reconciliação das classes através do reconhecimento da
função de cada um para o bom funcionamento da sociedade.

Talvez a formação como arquiteto de Lang tenha contribuído para a concepção tão
ornamental do filme. Além disso, o diretor também havia trabalhado com Max Reinhardt,
importante diretor de teatro, famoso pelo seu manejo de multidões. Assim, o que mais
15
impressiona em Metropolis são os cenários de ficção científica (o filme é considerado o

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primeiro filme deste gênero, com uma história que se passa em 2026) e as coreografias
dos operários – esses “seres privados de personalidade, de ombros curvados, habituados
a baixar a cabeça, já dominados antes de começarem a lutar, escravos vestidos com trajes
que não pertencem a nenhuma época” (EISNER, [19--], p. 135) – verdadeiramente
expressionistas no seu desempenho.

A história propõe uma mediação entre as classes através do “amor”, que superaria as
diferenças e os conflitos, baseando-se na compreensão e no entendimento mútuo. Na
verdade, talvez se esperasse um entendimento maior do lado dos trabalhadores, que
precisariam compreender seu papel no funcionamento da sociedade. O enredo é uma
miscelânea de temas e ambientações, desde uma Grécia rediviva, onde os jovens “filhos-
dos-donos” se exercitam em esportes olímpicos, e um harém “jardim-das-delícias”, onde
os mesmos jovens se exercitam em jogos eróticos, até catacumbas da época dos cristãos
primitivos – onde os trabalhadores se reúnem para ouvir as mensagens de fé de uma Maria
pregadora de paz e de paciência pela vinda do “mediador”, a qual se torna a heroína,
a “mocinha” do filme. Ou, ainda, desde os arranha-céus (construídos em maquete, vale
dizer, e multiplicados por muito através de jogos de espelhos) e das autopistas cobertas de
veículos ou da boate exótica ao submundo operário de opressão fabril. Mas não bastasse
tudo isso, há ainda o cientista maluco que cria um robô para destruir o mundo (ou a
cidade) à imagem e semelhança da heroína, mas que na verdade no passado disputou uma
mulher com o rico dono da fábrica, ou seja, é também seu rival.

Assim, se há neste filme a tentativa de expressar cinematograficamente um diagnóstico social


geral, onde o conflito de classes da sociedade moderna deve ser superado pela mediação da
fé e do amor, não há como não perceber que abaixo dessa realidade “moderna” continuava
pulsando o imaginário “gótico” alemão, sintetizado no cientista/mago do mal, de certa forma
a versão atualizada do Caligari e, por que não, no seu robô, a versão ampliada de Cesare.
Essa ambivalência entre tradição e modernidade, espécie de conciliação conservadora entre a
necessidade burguesa do desenvolvimento técnico e uma cosmovisão mística, espiritualizada
(o que deu margem às interpretações do filme como uma antecipação do irracionalismo,
tecnicamente avançado, nazista), aparece de várias formas no filme. Marcadamente, não
apenas as formas arquitetônicas do cenário são futuristas, mas também influenciado pela
arquitetura gótica, como chega a haver uma literal mutação do maquinário que movimenta
a cidade num deus babilônico, sedento pelo sacrifício dos operários.

O conflito expressionista pai-filho também está presente: Freder, o filho, se rebela contra o
pai industrial e tenta se juntar aos operários na cidade baixa. Lá, ele conhece Maria, a santa
(heroína) que exorta os ouvintes a serem pacientes e ensina que a liberdade vem não da
revolta, mas do coração livre para mediar a ligação entre as mãos e o cérebro.

O filme impressionou a platéia alemã – e os nazistas, anos depois, o reivindicaram. Para


Krakauer, o discurso de Maria poderia ser escrito por Goebells (o ministro da propaganda
de Hitler) – que também apelou ao coração alemão no interesse da propaganda totalitária
em seus discursos. Com isso, o cinema alemão caminhava para novos rumos, que com a
ascensão de Hitler ao poder em 1933 iriam se manifestar em seus filmes oficiais, como
“O triunfo da vontade” (1934) e “Olympia” (1936), de Leni Riefenstahl – mas aí já
entramos em outra história.

16
III O CINEMA CONSTRUTIVISTA SOVIÉTICO

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Depois de outubro, não veio a bonança. Entre 1917 e 1920 as ainda não consolidadas
repúblicas socialistas soviéticas mergulharam numa dura Guerra Civil. No olho do furacão,
os futuros protagonistas do cinema que na segunda metade dos anos 1920 assombraria o
mundo começavam suas carreiras nas fileiras do Exército Vermelho.

Eisenstein rompeu com os estudos de engenharia para se engajar na organização de


espetáculos teatrais para os soldados. Kulechov, Vertov e Tissé trabalharam juntos nos
noticiários cinematográficos do front e nos primeiros trens de propaganda, equipados para
filmagem e exibições. A decoração desses trens foi o primeiro trabalho de artistas como
Kozintsev, que com apenas 14 anos fundou a FEKs (Fábrica do Ator Excêntrico).

Todos eram inacreditavelmente jovens e inexperientes.


O sistema de estúdios anterior à Revolução foi destruído, com seus donos e
grande parte dos técnicos fugindo do país. O Estado teve que reinventar a atividade
cinematográfica, comprar equipamentos e reorganizar a produção, a distribuição e a
exibição. Essa total estatização do cinema10 teve duas faces. Por um lado, possibilitou
uma radical reinvenção da atividade cinematográfica, por outro os caminhos dessa nova
era ficaram à mercê das disputas políticas.

Com um pé no front da guerra civil e outro no ambiente cultural onde vanguardistas como
Maiakovski, Malevich e Meyerhold lutavam por uma revolução estética, fez-se uma geração
de cineastas que revolucionaria o cinema para sempre.

1 Os antecedentes nas artes de vanguarda russas

No início da década de 1910, a Rússia sentia a influência das idéias de Marinetti. O


futurismo do italiano fazia o elogio da vida moderna, e sua retórica panfletária servia como
lance de vanguarda estética. Na Rússia, a promessa futurista de superação total do passado
era funcional ao desejo de desenvolvimento de um país provinciano. Mas os artistas russos
iriam dar cores próprias ao movimento.

Malevich é especialmente significativo nessa história. Tendo dominado as técnicas cubistas da


colagem e da sobreposição dinâmica de pontos de vista, o pintor foi mais além na busca da
autonomia da arte, criando o suprematismo, que negava mesmo a representação fragmentada
do cubo-futurismo. O futurismo, segundo ele, tinha sido o último resquício mimético, com
seu esforço de formalizar a dinâmica mecanizada da vida moderna. Já a pintura suprematista
era feita de formas puras, sem referências: acabava-se a ilusão da arte como reprodução da
vida e surgia uma arte que criava uma realidade própria e nova. Tatlin viria a criar, em
1920, a mais célebre obra construtivista, o Monumento à Terceira Internacional (ou Torre de
Tatlin), projeto que era um misto de arquitetura, engenharia, instalação e escultura.

A poesia de Maiakovski recusava a dicção sentimental, lançando mão de invenções de rigor


que anunciavam planos de reconstrução universal. Para explodir o lirismo habitual, o
poeta empregava variados recursos, como as metáforas concretas e urbanas no lugar das

Este tópico, referente ao cinema soviético, é uma versão condensada de Montagem Soviética de Leandro Saraiva (2006,
p. 109-141).

Sobre a situação do cinema durante a Guerra Civil e a experiência dos jovens cineastas russos neste contexto, ver
Kino: a history of the russian and soviet film, de Jay Leyda (1960), em especial caps. 7 e 8. E os depoimentos dos cineas-
tas reunidos em Miguel Bilbatua ([19--]) e Jean Schinitzer; Luda Schnitzer; Marcel Martin (1975).
10
“Depois do XI Congresso do PC, ocorrido na primavera [em 1922], cria-se, no fim do ano, um órgão destinado a
absorver todas as firmas existentes e que passa a ter o monopólio da distribuição sobre o território da URSS: o Goskino
(...) Em 12 de dezembro [de 1924] é criado o Sovkino, que substitui o Goskino.” (ALBERA, 2002). 17
figurações sentimentais do estado da alma, a diagramação dos versos, que apresenta o

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poema como um objeto construído, e as quebras de palavras a multiplicar sentidos pela
fragmentação compositiva.

A colaboração entre poesia, teatro e artes plásticas vanguardistas seria consagrada na célebre
Mistério Bufo, escrita por Maiakovski em 1918. Nessa peça, a direção de Meyerhold, que
dava prosseguimento à sua dissidência em relação ao realismo psicológico do Teatro de Arte
de Moscou, de Stanislavski, orquestrava a dramaturgia alegórica de Maiakovski e o design
suprematista de Malevich. No início dos anos 1920, Meyerhold lançaria sua proposta de
revolução teatral encenando espetáculos para um público bem popular, onde o grotesco
seria o princípio do método batizado por ele de “biomecânica”. Nesse método, tomavam-se
procedimentos de atuação de diversas tradições – Ópera de Pequim, marionetes, teatro de
feiras – para reutilizá-los na criação de uma ação teatral estranha. Apontava-se, assim, um
novo caminho para a “teatralidade”, reconhecida e exposta como linguagem, e não como
mímese que oculta sua construção.

2 O Construtivismo

A base dessa revolução estética está na recusa da mímese realista, iniciada pelo suprematismo.
Daí desenvolveu-se uma apurada auto-reflexão sobre a arte como trabalho, oposta à
concepção simbolista, segundo a qual o artista era quase que um médium que, através
de símbolos herméticos com poder de comoção inconsciente, expressava sua mais secreta
subjetividade e, através dela, uma outra realidade, invisível e essencial11 . Contra esse artista
espiritual, os construtivistas propunham o artista-engenheiro, que desprezava a expressão
lírica e concentrava-se na tarefa da construção da obra – mais um objeto entre os objetos do
mundo. A revista LEF (Frente Esquerdista das Artes), proeminente publicação construtivista
que, em sua fase mais radical, era dirigida por Maiakovski e Brik, chegou a defender como
programa universal a “factografia”, a arte feita apenas de registros e reconstrução dos fatos
presentes e dos elementos materiais do mundo.

Os artistas – e mesmo essa classificacão de categoria profissional foi renegada por muitos –
dedicaram-se a construir “experiências” (a expressão é da época, evitando a idéia de “obra”)
que expusessem sua “fatura” (expressão utilizada pelo crítico Chklovski para sublinhar a
atenção dada aos procedimentos empregados na realização do trabalho, “a evidência de
sua feitura” (FER, 1998)). A criação era freqüentemente acompanhada de uma atividade
teórico-analítica, de pesquisa sobre os elementos formais das composições (linha, ponto
etc.), o que também seria feito pelos cineastas.

O emprego disseminado de elementos mecânicos na execução das experiências não


se reduzia ao uso dos recursos de desenho técnico. Na escultura, além da organização
geometrizante, os próprios materiais industriais serviam de matéria-prima. O ponto
máximo dessa aproximação entre arte e indústria foi o trabalho de artistas como Stepanova
em fábricas de tecido, desenhando as estampas.

A recorrência do termo “construção”, da política à estética, é percebida e assumida


pelos construtivistas. Eles queriam ver a inspiração e o lirismo superados pelo artista-
engenheiro, que conhece e domina a fatura das “experiências” a ponto de poder calcular
as reações dos espectadores.

11
Um exemplo recente de simbolismo é o cinema e a teorização de Tarkovski, apresentada em Esculpir o tempo
(1988) – livro no qual o cineasta russo renega explicitamente a herança do cinema de montagem construtivista, em
especial o de Eisenstein. 18
Expondo o modo de construir os artefatos que nos sensibiliza, o construtivismo foi uma

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pedagogia para os sentidos. O melodrama, que se desenvolveu na fase heróica da burguesia,
contra o teatro aristocrático12 , era também uma pedagogia para o olhar. Mas a dramatização
moral do mundo buscada pelo melodrama é tão mais eficiente quanto mais consiga ocultar
suas operações, transmitindo a idéia de uma ordem natural das coisas. O construtivismo,
expressão de uma revolução que quer refazer o mundo e encerrar toda a alienação humana,
trabalha expondo o modo como as coisas são feitas. Os objetos construtivistas não são
orgânicos: eles são feitos de fragmentos justapostos, pedaços do mundo que compõem um
novo objeto. No limite, o construtivismo nega mesmo a função de representação do mundo
– ou seja, nega a mais tradicional das funções definidoras da arte. O objeto construtivista
sugere, em sua “fatura”, que já que tudo é construção, tudo poderia ser diferente.

Vamos nos concentrar aqui, após uma breve introdução à escola de montagem soviética, através
de seu pioneiro, Lev Kulechov, nos dois maiores cineastas da URSS, que desenvolveram,
estabelecendo inclusive uma discussão polêmica, as duas principais vertentes do cinema
construtivista: Sergei Eisenstein e Dziga Vertov.

3 Kulechov

Pouco antes da Revolução, Kulechov, então um jovem pintor, foi convidado para trabalhar
nos estúdios de cinema Khanzhonkov como cenógrafo. Em seus primeiros artigos, Kulechov
defende uma ampliação do âmbito de trabalho do cenógrafo para bem além da tradicional
pintura de painéis de fundo. Para ele, era preciso superar a rígida especialização de funções
em prol de um cinema entendido como uma modulação plástica de todos os elementos
envolvidos na composição do plano. Depois de sua participação no esforço de guerra
revolucionário, Kulechov vai estabelecer um estúdio-laboratório onde estudarão, entre
outros, Pudovkin e Eisenstein. Esse estúdio logo será encampado pela Escola Nacional de
Cinema, onde Kulechov sistematizará seus famosos experimentos, como o “efeito Kulechov”,
a “geografia criativa” e a criação de um “corpo cinematográfico”. Nesse último, uma poderosa
demonstração dos poderes da montagem, uma “mulher cinematográfica” foi “construída” a
partir de imagens tomadas de diversas mulheres reais.

Devido a seu interesse pela montagem americana, Kulechov não costuma ser associado
à vanguarda construtivista, o que é no mínimo redutor. De fato, não apenas Kulechov,
mas vários outros artistas soviéticos – para não falarmos da própria estratégia de Lênin
de importação das técnicas tayloristas de organização do trabalho industrial – estavam
fascinados pela modernidade urbana americana. Nova York começava a substituir
Paris como vanguarda social mundial, e os modernistas russos (como, aliás, também
os modernistas brasileiros) sonhavam com arranha-céus, automóveis, enfim, com a
velocidade vertiginosa da vida metropolitana.

Kulechov trabalhou neste sentido, buscando dominar as técnicas cinematográficas


americanas, pondo-as a serviço da causa soviética. O principal objetivo de Kulechov era
envolver o espectador por uma narração vertiginosa, que o tomasse completamente e
conduzisse sua emoção e entendimento aos fins planejados – como no emblemático Mr.
West no país dos bolcheviques, uma propaganda soviética na forma de uma aventura de
um ocidental na URSS.

O grande legado de Kulechov, que viria a ser uma marca da escola soviética, foi o
estabelecimento da montagem como princípio de construção do cinema. Sua desmontagem
teórica da montagem americana estabeleceu um campo de reflexão que permitiria outras
formas de exploração da linguagem cinematográfica.
12
Para uma história do melodrama, ver Peter Brooks (1985). 19
A codificação enunciada por seus experimentos foi o ponto de partida para as muitas

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veredas do cinema soviético dos anos 1920, que abrigava caminhos tão distintos como os
de Pudovkin e os de Eisenstein – adversários estéticos que concordavam, entretanto, quanto
aos fins políticos que perseguiam e quanto ao débito que ambos reconheciam para com o
pioneiro Kulechov.

4 Eisenstein

Depois da Guerra Civil, Eisesntein foi trabalhar no Primeiro Teatro Operário (ProletKult).
Movia-o, como a vários construtivistas, o desejo de superar a antiga arte, vista como uma
substituição covarde da vida real. Eisenstein queria encontrar formas de expressão à altura
da revolução em curso capazes de mobilizar as pessoas, e sua primeira realização nesse sentido
foi, ainda no teatro, a “montagem de atrações”:

A ciência conhece ‘íons’, ‘elétrons’, ‘nêutrons’. Que em arte sejam as ‘atrações’. Dos
processos de produção passou à linguagem corrente um termo técnico que significa
armar as máquinas, os tubos de condução da água, etc. A bela palavra ‘montagem’
significa a ação de armar algo. O conjunto das unidades, que, associadas num todo,
recebem essa dupla significação semi-industrial, semi-music-hall, reunindo em si essas
duas palavras. Ambas saíram das entranhas do urbanismo, e todos nós naqueles anos
éramos terrivelmente urbanistas. Assim aparece o termo ‘montagem de atrações’.
(EISENSTEIN, 1983, p. 39)

Em 1922, Eisenstein e Yutkevich escreveram um artigo no qual defendiam a atuação nas


comédias americanas – com destaque para o trabalho de Chaplin – como “oportunidades de
autêntico excentrismo13” . Eisenstein já dirigia para o Proletkult, organização teatral criada
em 1917 sob a bandeira do combate ao teatro burguês, e havia nessa época uma disputa
de caminhos estéticos para realizar esse propósito. Em 1923 e 1924 Eisenstein dirigiu, em
parceria com Tretyakov (dramaturgo e crítico ligado à LEF), três espetáculos: O Sábio;
Escutas, Moscou?; e Máscaras de Gás. Os relatos sobre os espetáculos14 descrevem um
movimento que vai de uma proximidade com o excentrismo (em O sábio) a uma mescla
progressiva com elementos de melodrama. Em O sábio, o frenesi audiovisual rompia tão
violentamente a linha narrativa que as apresentações eram iniciadas com Tretyakov lendo
um resumo do enredo, para que o público tivesse alguma indicação de conexão entre as
“atrações”. As duas montagens seguintes, com maior linearidade e apelo de comunicação de
conteúdos políticos, iriam conduzir Eisenstein ao seu primeiro projeto cinematográfico, e à
ruptura com o Proletkult.

Um manifesto escrito por Eisenstein e publicado na LEF sobre a montagem de


atrações inseria-se num polêmico quadro do teatro soviético. A oposição Stanislavski ×
Meyerhold estendia-se ao interior do Proletkult. No manifesto, Eisenstein distingue duas
alas do movimento: o “teatro figurativo-narrativo (estático, de costumes – ala direita)”
e o “teatro de agit-atrações (dinâmico e excêntrico – ala esquerda)”, do qual ele próprio
era o representante. Ele opõe ao teatro de identificação psicológica e de continuidade de
enredo um teatro baseado em estímulos sensoriais e emocionais. Eisenstein lembra que esses
recursos de impacto do espectador sempre foram utilizados pelos encenadores, mas o que
propõe é “transferir o centro da atenção para o que era previamente considerado acessório e
ornamental(...) montar um bom espetáculo (do ponto de vista da forma) significa construir
um bom programa de music-hall e circo partindo das situações de um texto de base”
(EISENSTEIN, 1983, p. 192).

13
A referência aparece em El cine de Eisenstein, de Bordwell (1999, p. 26).
14
Novamente, a referência é a compilação de várias fontes feitas por Bordwell (1999, p. 26-28, 143-144). 20
O termo “montagem” indica o caráter inorgânico, construtivista, dessa concepção de

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espetáculo. A unidade da montagem – a atração – pode ser
tanto a falação de Ostiév [ator popular russo] quanto a cor da malha da prima-dona;
tanto um toque de tímpano quanto o solilóquio de Romeu (...) é todo aspecto agressivo
do teatro, ou seja, todo elemento que submete o espectador a uma ação sensorial ou
psicológica, experimentalmente verificada e matematicamente calculada, com o propósito
de nele produzir certos choques emocionais que, por sua vez, determinem em seu conjunto
precisamente a possibilidade de o espectador perceber o aspecto ideológico daquilo que foi
exposto, na conclusão ideológica final (EISENSTEIN, 1983).

5 Outubro (1927)

Outubro foi uma encomenda governamental, para as comemorações dos dez anos da
revolução. Na base do filme está uma crônica dos acontecimentos de 1917. Vejamos o
resumo da crônica histórica, segundo a competente análise de Bordwell:
“O levante de fevereiro, iniciado espontaneamente pela classe trabalhadora, é rapidamente
apropriado pelas forças burguesas. O governo provisório insiste em seguir participando da
Primeira Guerra Mundial, ao custo de fazer morrer de fome os trabalhadores e de adiar
a reforma agrária. O regresso de Lênin do exílio galvaniza as massas, que se lançam às
ruas de São Petersburgo em julho. Mas o governo provisório reprime a rebelião e prende
os líderes bolcheviques. Alexander Kerenski, ávido de poder mas inepto, se converte no
primeiro-ministro do governo de coalizão. O general Kornilov, antigo aliado de Kerenski,
encabeça uma marcha contra-revolucionária sobre a capital, que é detida por ferroviários
bolcheviques.

O outono se aproxima e os bolcheviques conseguem obter armas e o apoio popular. Em 10


de outubro, o comitê central bolchevique vota a favor de lançar uma insurreição armada
para o dia 25 de outubro, data do início do segundo congresso pan-russo dos soviets. Os
bolcheviques organizam as tropas. Kerenski vai à Frente em busca de ajuda. Os ministros
do governo provisório se entrincheiram no Palácio de Inverno, defendido por cossacos,
cadetes e tropas femininas. Manhã do dia 25, enquanto o congresso de Smolny não cessa o
debate, as tropas bolcheviques e a multidão se apoderam do Palácio de Inverno e prendem
os ministros. Lênin sobe à tribuna do Congresso e anuncia que se consumou a revolução de
operários e camponeses”. (BORDWELL, 1999, p. 103)

A partir de um argumento geral, Eisenstein dividiu sua narrativa em duas partes: a


primeira condensa o processo que conduz até o dia 25 de outubro, quando “as tropas
bolcheviques e a multidão se apoderam do Palácio de Inverno e prendem os ministros.
Lênin sobe à tribuna do Congresso e anuncia que se consumou a revolução de operários
e camponeses” (BORDWELL, 1999, p. 103). A segunda parte narra o próprio dia da
tomada do Palácio de Inverno.

A diferença entre as duas metades é marcante. É na primeira parte que se concentram as


experiências do que Eisenstein viria a chamar de “montagem intelectual”. Já as ações do
dia decisivo da Revolução estão narradas de modo mais convencional: num estilo mais
próximo à montagem paralela consagrada por Griffith. Mas Outubro conquistou seu lugar
na história do cinema pela riqueza de sua primeira parte.

Já na abertura, Outubro demonstra o seu grau de ambição ensaística. Em lugar dos


confrontos de fevereiro, que levaram à queda do czarismo, o filme começa com a imagem
da estátua do czar Alexandre III atacada por um grupo de insurgentes. Os detalhes visuais
contribuem para a abstração da representação: no lugar de uma locação, a estátua é
filmada num fundo infinito de estúdio; os revoltosos amarram cordas na estátua, mas
21
a continuidade espacial não se articula: ninguém aparece puxando a estátua, que se

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desmantela sozinha, como que sugerindo o apodrecimento do regime. A montagem faz
com que um plano de centenas de fuzis erguidos, e outro de foices, anteceda a queda
da estátua. Era evidente a referência à mortandade dos soldados enviados para o front da
guerra e à fome que assolava os camponeses russos.

Mas não são camponeses ou soldados que comemoram a vitória: os closes de gritos de
saudação são de figuras tipicamente burguesas, e a cena que se segue ao letreiro que anuncia
a instalação do Governo Provisório é a de uma missa.

A cena seguinte nos leva a um campo de batalha, onde russos e “inimigos” confraternizam.
Aqui reina a camaradagem proletária, sublinhada pelas brincadeiras com os capacetes
de campanha, ironizados como símbolos de uma divisão e inimizade alheias a uma
identidade de classe internacional .

A confraternização proletária, entretanto, dura pouco. A senha para a destruição dessa


miragem de paz é a imagem de um lacaio curvando-se na entrega de um documento, cujo
conteúdo o intertítulo explicita como a capitulação do Governo Provisório aos interesses
dos aliados e à manutenção da Rússia na guerra.

A interpretação da permanência na guerra como traição ao proletariado completa-se com


a associação das imagens de um grupo de soldados entrincheirados e a da “ameaça” de um
tanque sendo produzido numa linha de montagem. Novamente, a justaposição de imagens
sugere ao espectador uma articulação intelectual, uma causação mais complexa do que a
simples ação física imediata.

A interpretação do sentido histórico completa-se no último segmento: aos soldados


esmagados por um “tanque conceitual”, situado no espaço completamente diverso de
uma linha de montagem, articulam-se quadros fixos de enormes e imóveis filas noturnas
de famintos. A imagem do pesado tanque descendo, na fábrica, “sobre” os soldados, nas
trincheiras, é alternada com letreiros que indicam o peso progressivamente menor das
rações de pão (“400 g”, “200 g”, etc.). A essas imagens soturnas segue-se uma compacta
multidão. Mas, ao contrário da lassidão das filas de famintos sob a neve da madrugada, há
agora algo de eletrizante que se anuncia nos rostos tensos da multidão. Um close extasiado
e um letreiro rompem a expectativa: “É ele!”. Surge “Ulianov!”, Lênin! O líder discursa,
pedindo terra, pão e paz.

Ao longo do filme este tipo de conceitualização construída pela montagem será abundante:
o artificialismo do poder de Kerenski, por exemplo, será figurado pela repetição do mesmo
plano dele subindo as escadas do Palácio de Inverno, como se não saísse do lugar. No
segmento “Deus e a Pátria”, depois de um apelo à manutenção da ordem em nome dessas
forças atávicas, Eisenstein procede a uma desmontagem metódica dessas entidades: uma
sucessão de imagens de divindades, numa descendente de complexidade que termina por
um ídolo muito primitivo; e uma sucessão de emblemas e medalhas militares explicitam a
arbitrariedade dessas construções ideológicas.

Esse trabalho conceitual lançará mão, fartamente, de interpolações de objetos deslocados


de seus espaços: um pavão mecânico – parte do espólio czarista – serve de caricatura de
Kerenski; ao chamado bolchevique para que o proletariado se arme, um fuzil será montado
por uma sucessão de imagens; no final do filme, marcando a vitória da Revolução, uma
coleção de relógios do mundo inteiro sublinha o sentido universal do evento, que realizaria
a teleologia marxista.

22
Se os exemplos citados e as questões por eles suscitadas sugerem a riqueza ensaística de

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Outubro, eles não são suficientes para explicar a força emocional do filme, que é tão
importante quanto o aspecto conceitual. Razão e emoção formam um par indissociável
para o defensor do “cine-punho”. O desenvolvimento do “cinema intelectual” não poderia,
então, se dar em detrimento do pathos. Essa combinação está presente no desenho geral do
filme: sintomaticamente, a passagem da predominância ensaística da primeira parte para
o fluxo de ação da segunda é marcada por uma vertiginosa montagem da festa da vitória
contra a tentativa de golpe de Kornilov. Os bolcheviques e os soldados desarmados fundem-
se, pela montagem, em um só corpo, rodopiando numa dança frenética.
Nesta e em várias outras cenas, como a do célebre massacre na ponte de São Petesburgo,
Eisesntein investe na energia bruta da encenação e da montagem, como forma de mobilização
do espectador. No massacre da ponte, Eisenstein prossegue aperfeiçoando sua montagem
de atrações, reunindo reflexão conceitual e explosão da energia das massas, equação de
engenharia e impulso surrealista .15

6 Vertov

No ambiente altamente polêmico do cinema russo dos anos 1920, o confronto entre
Eisenstein e Vertov foi o mais importante. Como vimos, Eisenstein desenvolveu uma vertente
de construtivismo de vocação sintética, interessada em incorporar, de forma revolucionária,
o passado burguês da cultura. A estratégia de Vertov era outra: era preciso fazer tabula rasa
do passado e aderir ao presente através de uma linguagem também contemporânea.
No plano da produção, a utopia de Vertov era substituir a instituição do cinema e seu sistema
de produção, distribuição e exibição pelos “kinoks”, os membros do movimento criado por
ele para a realização de um cinema baseado numa rede coletiva de colaboradores.

No plano artístico, o “cine-olho” de Vertov é um método de decifração do mundo que recusa


tanto a reprodução da aparência imediata quanto a sugestão simbolista de pretensas essências
espirituais. Inversões temporais da projeção, aceleração, congelamento e ralentamento da
imagem, sobreposições, animações, justaposições, choque de angulações, intensas variações
rítmicas: Vertov experimentou, ao longo década de 1920, um leque de recursos de montagem
tão extraordinário que ainda hoje, acostumados que estamos às tremendas facilidades abertas
pela edição digital, é capaz de nos surpreender.

Essa intensa experimentação amadurece em O homem da câmera, no qual Vertov passa do


emprego anterior dos procedimentos que visavam a chamar a atenção para algum fenômeno
específico para um modo de operação mais complexo, totalizante e reflexivo. A reflexividade é
uma marca crucial deste seu fílme-síntese, que, o tempo todo, comenta sua própria realização.
A presença constante do “homem da câmera”, assim como as aparições da montadora,
revelam o processo de construção do filme como algo feito por artistas-operários.

O cinema de Vertov baseia-se num princípio de filmagem e num método de montagem. A


filmagem é feita segundo o princípio do “cine-verdade”, ou seja, avesso a qualquer encenação.
E, na montagem, o “cine-olho” reconstrói radicalmente as imagens-fato. Vejamos como está
estruturada a obra-prima de Vertov.

7 O homem da câmera (1929)

Em termos temáticos, O homem da câmera segue a forma de organização dos cinejornais e


de seu longa anterior, Kino Glaz. Dividindo o material em blocos – a cidade dormindo, a
cidade acordando, a circulação social, o trabalho e o lazer – e emoldurando estes blocos

15
Sobre as tensões do estilo eisesnteiniano, que caracterizam seu barroquismo, ver também Xavier, em especial, p.
368-374. 23
há um prólogo e um epílogo francamente metalingüísticos, com a colocação em cena da

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projeção cinematográfica do próprio filme a que assistimos.

Na abertura, prédios, anúncios, ruas e praças da cidade surgem como um palco vazio, à
espera da ação. O filme destaca uma mulher dormindo em seu quarto, alguns mendigos
que dormem na praça e o cameraman, que acorda antes de todos para filmar a vida que
começa. As ruas e os rostos são lavados e o espetáculo começa.

No segundo bloco, como que sacudida pelas tomadas feitas pelo cameraman de um trem
em alta velocidade, a cidade desperta: as ruas se enchem de tráfego e pessoas, os operários
acorrem às fábricas, as lojas são abertas. Ao final desse bloco há um momento notável de
reflexividade: em pleno movimento vertiginoso de uma carruagem a imagem se congela,
e nos são revelados os bastidores da construção fílmica. Passamos à sala de montagem, e a
imagem congelada se mostra como fotograma.

No bloco três, a cidade aparece como um fluxo ordenado de trocas sociais. Depois do
motivo ao mesmo tempo concreto e metafórico da porta giratória, segue-se a central
telefônica, o controle do tráfego e chega-se à montagem e à desmontagem das relações
civis, pela exibição de um registro de casamento seguido por um divórcio. Ou seja, o que
nos é exibido pela análise do cine-olho é o fluxo social construído por relações transitivas
e sempre passíveis de reconstrução.

Desse bloco, passamos à análise da base material da sociedade: o trabalho. Partindo de


trabalhos manuais diversos, vai sendo composto um retrato coletivo do trabalho social. Os
cortes nos conduzem de mão em mão, de máquina em máquina: da cosmética ao trabalho
nas minas, passando pelo trabalho do cameraman e da montadora, tudo se relaciona.

Por fim, a quinta parte traz um painel espetacular dos corpos fora do trabalho, em momentos
de relaxamento, à beira-mar ou empenhados em diversos esportes, coreografados como
balés pelos ângulos, justaposições e variações de velocidade do filme.

Na moldura final do epílogo retornamos à sala de projeção, e o filme a que assistíamos torna-
se filme dentro do filme e, num grandioso “acorde” visual final, vemos o Teatro Bolshoi
– símbolo da arte burguesa – “implodir” por um último efeito de montagem.

Essa descrição das partes de O homem da câmera, entretanto, é enganosa. Dada a substituição
de uma linha narrativa por uma forma de organização baseada num tremendo investimento
nas relações formais entre os planos, esses recortes temáticos são frágeis, dando margens a
diversas propostas de segmentação do filme por parte dos analistas16 . O melhor é tomar o
que foi apresentado como um mapa indicativo, uma orientação que nos auxilie a passar para
o nível fundamental de consideração do filme, ou seja, suas articulações formais.

Um procedimento crucial que, ao mesmo tempo, é próximo das divisões temáticas e revela
como estas são tênues é o que Petric (1987) chama de “montagem disruptiva-associativa”.
Trata-se de interpolações de imagens claramente distintas dentro de uma série, antecipando
e preparando um motivo que será trabalhado numa nova série logo à frente. São como notas
que anunciam uma nova frase melódica que vai se consolidar a seguir. Por exemplo, no final
da seqüência do movimento da charrete surgem planos de tráfego em várias direções. Essas
imagens preparam a seqüência seguinte, centrada no controle do tráfego.
16
Vlada Petric (1987, p. 72-76), certamente o maior especialista no filme, apresenta várias propostas alternativas de seg-
mentação, defendendo, ele próprio, uma segmentação mais sintética do que a aqui apresentada, de apenas duas partes,
além do prólogo e epílogo – o que, coerente com seu foco nos aspectos especificamente formais do filme, diminui a
importância dos temas como critério de divisão. Seguimos aqui, basicamente, a segmentação apresentada por Henri
Gervaiseau (2000). 24
Mas a montagem disruptiva-associativa situa-se ainda no nível mais simples da montagem,

As Vanguardas Cinematográficas dos anos 20 na Europa


aquela do estabelecimento da ordem do material. O primeiro nível de formalização ocorre
na fotografia. De modo semelhante à pesquisa fotográfica de Rodchenko, em O homem
da câmera os planos freqüentemente são compostos de modo a “desrealizar” a imagem,
estimulando no espectador uma fruição atenta à dimensão pictórica e bidimensional da
imagem na tela. A imagem do cameraman escalando a estrutura de uma ponte, ainda
no início do filme, é um bom exemplo do uso de alto contraste para uma composição
geometrizante. Por vezes são detalhes de objetos em movimento, como em muitos casos
de tomadas de máquinas em operação. O efeito associa beleza plástica e potencialização do
dinamismo que Vertov imprime ao conjunto de sua representação da sociedade soviética.

Outro recurso recorrente na composição do plano é já resultado de trucagem. Novamente,


Rodchenko é uma referência fundamental, neste caso envolvendo suas fotomontagens.
Várias vezes Vertov faz fotomontagens dinâmicas, sobrepondo planos. Imagens de tráfego
são várias vezes assim apresentadas, mas há casos mais sofisticados, como aquele da câmera
“gigante”, sobreposta ao topo dos prédios, que gira sobre seu próprio eixo. A imagem,
interposta ao casamento e ao divórcio, indica a reversibilidade não só do estado civil mas,
graças à dimensão pública sugerida pela câmera sobre a cidade, do conjunto das relações
sociais.

Pode-se ver, então, o que há de injusto na acusação de Eisenstein ao suposto “pontilhismo”


de Vertov: apesar de negar-se a encenar para a câmera, de modo algum ele se restringe a
tentar usar a moviola como um meio artificial de resolver problemas de uma filmagem
precária. O que ele faz é investir numa formalização plástica próxima à das artes visuais.

Na tessitura fina da construção rítmica, O homem da câmera trabalha também em altos


níveis de formalização. Eisenstein acusava Vertov de construções métricas tão complexas
que se tornariam inapreensíveis pelo espectador. Usando de ironia, Eisenstein falava de
“intervalos inaudíveis”, criticando a “teoria dos intervalos” de Vertov.

Vertov não era um erudito ensaísta, como Eisenstein. Seus escritos são manifestos,
intervenções pragmáticas nas polêmicas do momento. Seu conceito de “intervalo”,
por exemplo, é uma arma de defesa de uma visão de montagem entendida como uma
atitude epistemológica e política, uma decodificação cinematográfica do mundo frente
ao mundo. Intervalo é “correlação”, entre planos, ângulos, movimentos, luz, velocidades
– entre os elementos cinematográficos com os quais se reconstrói o mundo visual de
modo significativo. Vertov levava esse princípio às raias do delírio, compondo um fluxo de
imagens tão trabalhadas que era impossível ao espectador perceber tudo o que se passava
no plano formal. Aquilo que Eisesntein via como “formalismo”, podemos ver como um
trabalho subliminar sobre o espectador17 .

Incorporando as conquistas do suprematismo de Malevich (nas composições geométricas


produzidas por enquadramentos de detalhes industriais, numa fotografia altamente
contrastada), da fotomontagem de Rodchenko (nas sobreimpresões por trucagem ou pela
justaposição fotograma a fotograma), do poema-fato de Maiakovski (aferrando-se à captação
da vida de improviso e submetendo-a a operações de desmontagem e remontagem), o
cine-olho de Vertov inscreve-se na galeria da arte construtivista: ele constrói um discurso
cinematográfico que, apresentando reflexivamente seu modo de operação, faz “experiências”
com as imagens do mundo, decodificando-o segundo um método que lembra a proposta
marxista de passar do positivismo do dado empírico ao ponto de vista crítico de um
“concreto pensado” (MARX, 1985, p. 122-129).

17
Um ótimo exemplo de análise da montagem vertoviana em seus aspectos mais microscópicos é o da seqüência do
trabalho manual (abertura da parte 4 de O homem da câmera), em Petric (1987, p. 148-155). 25
8 Depois da Revolução

As Vanguardas Cinematográficas dos anos 20 na Europa


Com a consolidação do stalinismo, o realismo socialista como política oficial estancou a
pujança da arte de vanguarda. A nova situação foi desastrosa para os artistas: desiludido
com os rumos da Revolução, Maiakovski suicidou-se em 1930; Malevich foi obrigado a
voltar ao figurativismo; Vertov, depois de expandir seus experimentos para o cinema sonoro,
não mais obteve recursos para seus projetos, acabando a vida como diretor de cinejornais
oficiais. Meyerhold, depois de muitos problemas com o governo, foi executado.

Do panteon construtivista, apenas Eisenstein conseguiu manter-se atuando. Depois da


“viagem de estudos” de três anos pelo Ocidente, ele, Tissé e Alexandrov retornaram à URSS.
Eisenstein passou a dar aulas e viu sua influência e prestígio declinarem vertiginosamente,
acusado pelos próprios colegas de intelectualismo decadentista. Mas, apesar da derrota
daquela que foi uma das gerações de artistas mais brilhantes da história, o fantasma russo
continuou assombrando os que vieram depois.

No novo começo modernista do pós-guerra, anunciado pela leitura baziniana do neo-


realismo, a vanguarda russa era a referência a ser superada. Mas, ao mesmo tempo, Jean
Rouch e, através dele, Godard reconheciam em Vertov uma influência fundamental. E, a
partir dos herdeiros de André Bazin na Cahiers du cinèma, em sucessivas gerações da crítica,
a polêmica em torno da montagem russa esteve em pauta.

Todos os cineastas que nos anos 1960 trabalharam numa chave que associava estética e
política tinham na escola soviética uma referência incontornável. No Brasil, basta assistir
à cena do massacre de Monte Santo, em Deus e o Diabo na terra do sol (Glauber Rocha,
1964) para percebermos a presença de Eisenstein.

Hoje, com os movimentos modernistas derrotados, o cinema russo dos anos 1920, como
não podia deixar de ser, segue o destino da Revolução que lhe deu origem: permanece na
consciência mundial como promessa sufocada de um futuro para a humanidade.

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