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Estéticas tecnológicas: novos modos de sentir

Lucia Santaella, Priscila Arantes (orgs.)


São Paulo: Educ, 2008

Introdução
Lucia Santaella

As questões relativas à estética, no Ocidente, tiveram sua origem no mundo grego, mais
especialmente no pensamento de Platão, em cuja obra encontram-se as primeiras reflexões para uma
teoria da arte e do belo. Entretanto, a utilização sistemática da palavra “estética”, derivada do grego
aisthesis, significando sentir, só surgiu com Alexander Gottlieb Baumgarten, em 1735, no texto
denominado Reflexões Filosóficas sobre algumas questões pertencentes à Poesia, no qual ela foi
definida como a ciência da percepção em geral. Antes de Baumgarten, na obra de vários pensadores,
a estética esteve entrelaçada a outras questões filosóficas. Foi Baumgarten quem deu a ela o estatuto
de uma disciplina filosófica dotada de certa autonomia, na sua obra posterior, Aesthetica, em 2
volumes (1750-1758), escrita em latim, na qual a ciência da percepção foi tomada como sinônimo
de conhecimento através dos sentidos, ou seja, ciência do modo sensível de conhecer, dos tipos de
conhecimento que a sensação, a percepção sensível, a rede de percepções físicas nos trazem.

A estética, o belo, a arte

É na beleza que o despertar das sensações perceptivas encontra um de seus estímulos mais
privilegiados. Embora o conceito de belo e o julgamento do que seja belo varie histórica e
culturalmente, a estética ficou atada à beleza encarnada, justamente pela irresistível atração que esta
exerce sobre os sentidos. Já em Baumgarten, a perfeição da cognição sensitiva encontra na beleza o
seu objeto próprio. Esse mesmo princípio norteou a grande obra a dar forma e conteúdo à estética
filosófica, a terceira crítica de Immanuel Kant, a Crítica do Julgamento, de 1790, mais
especificamente na sua primeira parte, “Crítica do Julgamento Estético”.
Com seu conceito de “finalidade sem fim”, Kant deu expressão ao belo como aquilo que
captura os sentidos em razão de ser o que é em si mesmo.

A finalidade pode existir independentemente de um fim. Trata-se da finalidade da forma, na


medida em que não somos capazes de colocar suas causas na vontade. O que distingue o objeto belo
de outros objetos é que nenhum fim extrínseco ou determinado pode ser estipulado para ele. Um
objeto estético tem finalidade apenas na medida de sua forma inerente e de sua adaptabilidade às
demandas do gosto puro. (Santaella, 1994, p.53)
O belo kantiano tinha sua referência na natureza, mais do que nas obras de arte. Foi em
Schiller e Schelling que o entendimento do belo encontrou primazia na arte. O ambiente intelectual
de meados do século XVIII em diante propiciou cada vez mais essa primazia. Em 1746, Charles
Batteux havia introduzido o conceito de “belas artes” no seu influente livro As belas artes reduzidas
a um mesmo princípio, no qual o ideal renascentista da especialização das artes avançou na
classificação das artes nobres em pintura, poesia, música e dança.
Embora a Idade Moderna no Ocidente tenha colocado o belo e a arte em estreita correlação,
Umberto Eco (2004, p. 10), didaticamente, explica-nos que a relação entre ambos não é tão óbvia
quanto pode parecer. Enquanto algumas teorias estéticas modernas só reconheceram a beleza na arte
minimizando a beleza da natureza, em outros períodos da história, o reverso foi verdadeiro. Nesse
caso, a tarefa da arte era a de fazer bem as coisas que fazia, no sentido se servir ao propósito a que
se prestava. Por isso, a arte aplicava-se não só ao trabalho do pintor, do escultor, mas também ao
trabalho de um construtor de barcos, de um carpinteiro e até mesmo de um barbeiro. A noção de
belas artes ou artes nobres (fines, em inglês) surgiu da necessidade de se distinguir entre esses tipos
de trabalhos. Tal distinção também se fez necessária porque, mesmo quando a beleza da natureza
era preferida, não era possível evitar o reconhecimento de que a arte pode retratar a natureza
belamente, inclusive quando a natureza retratada aparece como perigosa ou repugnante.
Entretanto, a aliança entre o belo e a arte no Ocidente, não durou tanto quanto se pensa. A
partir de meados do século XIX, os sistemas artísticos instauraram rupturas indeléveis em relação à
tradição herdada do Renascimento, até o ponto de colocar em questão a própria noção de arte, um
questionamento que já encontrou seu clímax na obra de Marcel Duchamp, no início do século XX.
Daí para a frente, a multiplicação de teorias estéticas de um lado, e a atomatização dos sistemas
artísticos, de outro, levaram a uma pulverização de tendências teóricas e atividades de criação que
não tem cessado de se expandir. As correntes estéticas, tanto do nível teórico quanto do nível da
criação, foram se multiplicando, até atingir o patamar de exacerbação da contemporaneidade, o que
levou Margolis (apud Osborn, 1972, p.5) a afirmar que aquilo que agora chamamos de estética não
é de modo algum um ramo da filosofia, mas muito mais um sistema bastante solto de questões
concernentes ao nosso interesse nas artes.
Margolis teria razão se não tivesse sido desdito pelo ressurgimento da preocupação com o
estético ou anti-estético (ver Foster, 1983) que começou a invadir a paisagem cultural a partir dos
anos 80, nos acirrados e controversos debates sob o nome de pós-moderno, pós-modernismo ou
pós-modernidade. Muito mais do que o belo – colocado decididamente no crepúsculo pela
implacável demolição dos valores estéticos tradicionais empreendida pelas vanguardas artísticas -,
foi a figura do sublime que acompanhou o ressurgimento da estética no pós-moderno (ver Lyotard,
1991), o que veio colocar a terceira crítica de Kant novamente em foco, particularmente a sua
segunda parte, na qual está tratada a questão do sublime como contraparte do belo.
Na medida mesma em que declinava no campo das artes, o valor da beleza, como superfície
ou aparência que fisga e fascina os sentidos, migrava para o mundo da comunicação de massa, na
publicidade e exemplarmente nas fosforescências de Hollywood. Enquanto isso, a palavra estética
passou a ser tão largamente utilizada que pode servir para qualificar tanto as filosofias do belo
quanto a elegância de uma fórmula matemática, os objetos artísticos ou mesmo um alvorecer, as
cercanias do mar, um rosto trabalhado pelo tempo (como diria Borges). Mais do que isso, perdendo
seu cetro filosófico, a palavra vulgarizou-se até o ponto de dar nome a clínicas e institutos para
tratamento de beleza nesta era da hipertrofia do poder da aparência física e do culto ao corpo.
Neste livro, busca-se recuperar o sentido original da palavra “estética”, tal como concebida
por Baumgarten. A estética como a equivalente sensual da lógica, ou seja, em lugar do saber
analítico, que é próprio da lógica, a estética fala de um outro tipo de conhecimento, que nos é
transmitido pela sensorialidade, um modo de percepção em que o todo não é reconhecido para
propósitos práticos, nem pode ser submetido a procedimentos estritamente analíticos, pois depende
de uma capacidade sintética, que se desenvolve, de abrir os poros do espírito e as janelas dos
sentidos para fenômenos nos quais predominam os aspectos qualitativos: cores, luzes, formas,
pulsações, texturas, volumes, acelerações, retardamentos, temperaturas, atmosferas, durações,
proximidade, distância, projeções, espelhamentos, expansões, fluxos, ordenamentos, misturas,
palpitações, sequencialidades, animações e muitos outros mais.

A estética recortada pelo tecnológico

O adjetivo “tecnológica”, acompanhando “estético”, indicia um recorte que delimita o


potencial que os dispositivos tecnológicos apresentam para a criação de efeitos estéticos, quer dizer,
efeitos capazes de acionar a rede de percepções sensíveis do receptor, regenerando e tornando mais
sutil seu poder de apreensão das qualidades daquilo que se apresenta aos sentidos.
O que se visa apresentar e colocar em discussão neste livro são as condições propiciadas
pelos aparelhos, dispositivos e suportes tecnológicos que, desde a invenção da fotografia até os
hibridismos permitidos pelo ciberespaço e pelas invenções tecnocientíficas contemporâneas, de
modo cada vez mais vertiginoso, vêm ampliando e transformando as bases materiais e os potenciais
dos modos de produção estéticos. Por isso mesmo, estéticas tecnológicas não se localizam,
necessariamente, em objetos ou processos considerados artísticos, nem precisam aparecer em
lugares de exposição ou circulação de arte. São processos de criação que não mais se restringem,
necessariamente, ao âmbito da arte e que resultam, entre outros, em folders, convites, fliers,
catálogos, sites, vídeos, games, etc.
Embora a obra de arte seja “uma representação bem-sucedida e privilegiada, ela não esgota
o objeto da estética, que é na verdade 'arte de perceber', uma poética da percepção, portanto, um
modo de conhecimento do sensível em sentido amplo – a faculdade de sentir do sujeito humano”
(Sodré, 2006, p. 86). Assim, estéticas tecnológicas podem se fazer presentes em publicidades,
designs de hipermídia, vinheta de televisão, filmes documentários, efeitos especiais no cinema, nas
novas formas híbridas das imagens em movimento, na moda, nas sonoridades circundantes e,
especialmente, nas infinidades de portais, sites, blogs de que o ciberespaço está povoado ou ainda
nas telinhas de um celular que nos seduz com seus ícones animados e sons, com o acabemnto de sua
forma e superfície, com a sutileza dos seus minúsculos botões.
Tendo se iniciado com a fotografia – seguida por cinema, rádio, TV, áudio, vídeo, e agora a
internet, a hipermídia, a realidade virtual, aumentada, misturada e as mídias locativa -, embora
recente, a história das estéticas tecnológicas transforma-se de modo assoberbante e apresenta como
característica dominante a tendência à absorção transformadora das estéticas precedentes pelas
estéticas subsquentes, gerando associações, interações, convergências, intertraduções e hibridismos
cada vez mais intensos de linguagens, técnicas, formas, padrões, em que o texto impresso, o
discurso falado, a voz, a música, som ambiente, gestos, linguagem matemática, linguagens de
programação de software, fotografia, cinema, vídeo, animação bi e tridimensionais, teatro, artes
plásticas, dança, etc. tornam-se, agora, graças ao computador, elementos descategorizados do seu
sentido original enquanto meio ou linguagem (Garcia, 2007).
Enfim, as mudanças e inovações no universo digital são exponenciais. Estamos no olho do
furacão e a convergência de ciência, tecnologia, mídias e arte está apenas começando. Os modelos
tradicionais de pensamento sobre a arte não dão mais conta dos novos modos de sentir provocados
pela sincronia da aceleração tecnológica com as reconfigurações da dimensão estética nos trabalhos
daqueles que avançam na exploração de novas poiesis. Tanto sob efeito do enxame de dispositivos
móveis que se colam à movimentação do corpo quanto da interação do agente participante com a
informação em ambientes multidimensionais em que próteses sensoriais são mediadas por sensores
eletrônicos, o sentir torna-se agora inseparável do sentir-se, constituindo uma dimensão inédita das
estéticas tecnológicas.
Os temas em que os artigos desta coletânea estão agrupados são representativos da crista em
que borbulham as questões mais candentes relativas às estéticas tecnológicas. Assim, as estéticas
computacionais emergentes vêm investigando a tecnologia da vida artificial, a simulação e a
modelização de comportamentos biológicos complexos, a exploração de algoritmos genéticos e
sistemas emergentes, bem como o desenvolvimento de interfaces humano-computador mais
sensórias, reorganizando a percepção e o complexo cognitivo corporal.
No campo da artemídia, recursos de audiodigital, de vídeos interativos, multifluxus
(multistreaming vídeo), de escrita não linear, consoles de mídia, softwares poderosos para a
produção de poéticas multissensoriais e interativas tiraram o gesso que atomizava as mídias
tradicionais em prol da confluência, da multidimensionalidade e da temporalidade tratada como
fluxos de signos, sinais, rastros, fulgurações.
O mais recente rebento das estéticas tecnológicas encontra-se na intersecção do espaço físico
e virtual possibilitada pelos dispositivos móveis. Nas palavras de Leme (neste volume):

Mais do que o abandono das cidades pelas tecnologias do ciberespaço, o que estamos vendo
são novas práticas de uso do espaço urbano pelo deslocamento com artefatos digitais e processos de
localização por redes sem fio. A mobilidade informacional permite vivências e formas de
apropriação do urbano similares à prática do “andar como arte” da segunda metade do século XX.
Andar com dispositivos móveis permite leituras e escritas do espaço com informação digital muito
próximas da arte do andar dos situacionistas, dadaístas e surrealistas. As mídias locativas e os
territórios informacionais atualizam formas de deriva pelo espaço urbano.

Desde o início do século XX, de modo cada vez mais intenso, o corpo humano foi sendo
colocado sob interrogação. São muitas as razões para isso: os avanços da biologia, da engenharia
genética, da medicina, as máquinas exploratórias para diagnóstico médico, as simbioses cada vez
mais íntimas do corpo com as tecnologias. Agindo conjuntamente, todos esses fatores constituem
uma força pertubadora que problematiza os significados do corpo e o transformam em um nó de
múltiplos investimentos e inquietações. Por isso mesmo, o corpo está em todos os lugares,
comentado, pesquisado, dissecado, transfigurado. Ciborgue, hibridização homem-máquina,
manipulação genética, digitalização do corpo, ampliação-extensão do corpo, telepresença têm sido
alguns dos desafios colocados nas extremidades das complexidades tecnológicas.
As alianças entre a moda e a tecnologia também se estreitam cada vez mais. Pesquisas de
ponta estão se endereçando para o desenvolvimento de peles protéticas. Da função de proteção para
a de uma prótese e, agora, entendida como interface, a vestimenta passa a compor um cenário
híbrido entre o humano e o maquínico, de corpo biológico e tecnologias digitais. Assim, a
vestimenta reposiciona o corpo, desterritorializando-o e rompendo suas fronteiras.
Nesse cenário, os games aparecem como catalizadores das transmutação vivenciadas pelo
corpóreo nas sociedades contemporâneas. O compartilhamento de corpos mediados por avatares nos
jogos massivos do ciberespaço esfacela a noção de identidade, multiplicando e expandindo a
experiência para além do corpo biológico.
Não são poucos e não podem passar despercebidos os desafios éticos e políticos no vórtice
das mudanças tecnológicas, especialmente para os que se situam nas periferias do turbocapitalismo,
onde as contradições se fazem mais agudas. Com a palavra os artistas, que não separam sua
produção da crítica, da mordacidade e das feridas abertas pela angústia.
Referências bibliográficas

ECO, U. (2004). History of beauty. Nova York, Rizzoli.


FOSTER, H. (ed.) (1983). The anti-aesthetic. Essays on post-modern culture.
Port Towsend, Washington, Bay Press.
GARCIA, Á. A. (2007). Arte digital. Revista Idiossincracia. Disponível em:
http://portalliteral.terra.com.br/Literal/calandra.nsf/0/4E49550428E77ED60325723D0068C
A47?OpenDocument&pub=T&proj=Literal&sec=Entrevista. Acesso em 20/07.
LYOTARD, J. -F. (1991). Leçon sur l'annalytique du sublime. Paris, Galilée.
OSBORN, H. (ed.) (1972). Aesthetics. Oxford, Oxford University Press.
SANTAELLA, L. (1994). Estética. De Platão a Peirce. São Paulo, Experimento.
SODRÉ, M. (2006). As estratégias sensíveis. Afeto, mídia e política. Petrópolis, RJ, Vozes.

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