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Filósofa e escritora, Françoise

Bonardel c professora na
Universidade de Sorbonne.
Conhecida por seus trabalhos
sobre a alquimia (Philosophie
de ralchimiey 1993, e La
Voie Heruiéti(]uey 2002),
ela dá continuidade a uma
obra original ao explorar
as “margens” da filosofia
(esoterismo, mística, poesia)
sem deixar de buscar as
condições de um possível
diálogo entre tradições
espirituais e pós-modernas.
Nesta obra, ela explica que
os próprios alquimistas se
definiam como “Filósofos
pelo Fogo”, em virtude de
certa sabedoria (entre obra de
sabedoria e elemento ígneo),
que se tornou bem estranha
para espíritos como os
nossos, que agora obtêm suas

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Filosofar
pelo Fogo
Antologia de textos alquímkos

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Françoise Bonardel

Filosofar
pelo Fogo
Antologia de textos alquímicos

Tradução:
1 daiina Lopes
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Publicado originalmente em francês sob o título Philosopher par le Feu: Anthologie de
Textes Alchimiques, por Éditions Almora.
© 2009, Éditions Almora.
Direitos de edição e tradução para os países de língua portugesa.
Tradução autorizada do francês.
©2012, Madras Editora Ltda.
Editor:
Wagner Veneziani Costa
Produção e Capa:
Equipe Técnica Madras
Tradução:
Idalina Lopes
Revisão da tradução:
Jefferson Rosado
Revisão:
Silvia Massimini Felix
Maria Cristina Scomparini
Jerônimo Feitosa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Bonardel, Françoise
Filosofar pelo fogo: antologia de textos alquímicos/Françoise Bonardel; tradução
Idalina Lopes. - São Paulo: Madras, 2012.
Título original: Philosopher par le feu: anthologie de textes alchimiques.
Bibliografia
ISBN 978-85-370-0757-0
1. Alquimia - Obras anteriores a 1800
I. Bonardel, Françoise.
12-02855 CDD-540.112
índices para catálogo sistemático:
1. Alquimia: História 540.112

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Índice

Introdução.......................................................... 9
Origens de uma palavra e de uma prática 14
O espírito da alquimia............................... 24
Uma metafísica no imperativo................. 36
Pseudo-história de uma “louca sabedoria” 44
Nota............................................................ .52
Prefácio à Segunda Edição................................ 55
A Alquimia Descrita por Ela Mesma............... 63
1. Prólogo entre o Céu e a Terra: a Revelação
de Hermes Trismegisto...................................... 65
Tábua de Esmeralda.................................. 66
Pirofilia...................................................... 78
Eudoxe....................................................... 78
2. A Argamassa Mística Egípcia...................... 82
Os mistérios do Egito: arte sagrada
e transmissão iniciática........................................................ 83
Alguns patronos míticos....................................................... 89
3. A Arte de Hermes................................................................... 101
4. O Espírito do Mundo: Alquimia, Cosmologia e Astrologia.. 125
5. Grande Obra, Génese e Embriologia...................................... 147
A embriologia metálica e mineral..................................... 148
Do caos ao cosmos: génese de um mundo........................ 159
6. Diálogo da Artista e da Natureza............................................ 171
7. A Deontologia Operativa (Ora et Labora)..............................192
Ver segundo a natureza: uma oração visionária................ 193

-5-
6 Filosofar pelo Fogo

Paciência c duração do tempo...................... 202


8. Enigmas, Fábulas e Parábolas.......................... 216
Enigmas............................................................ 219
Parábolas......................................................... 226
Fábulas c alegorias........................................ 239
9. Sonhos c Visões................................................. 245
Visões.............................................................. 246
Sonhos............................................................. 255
10. Elementos e Princípios................................... 266
Rotação e circulação dos elementos........... 267
Dois ou três princípios?................................ 279
Sal da terra, sal da pedra.............................. 286
11. A Obra do Leão Verde.................................... 294
Metamorfose da prata-viva........................... 295
Um fogo vivo e simples (Avicena)............. 308
12. Fechamento do Vaso e Cores do Tempo....... 319
Vaso de natureza e vaso da arte................... 320
Um espetáculo de muitas cores................... 333
O tempo da obra............................................ 338
13. A Matéria com Mil Nomes........................... 347
14. Chaves do Magistério..................................... 368
15. Os Dois Pilares da Arte (Solve et Coagula). 389
A pesagem filosófica: a balança alquímica 407
16. Nigrum Nigrius Nigro (Obra ao Negro)....... 415
Saturno, crivo dos sábios.............................. 416
A obra ao negro (Nigredo)........................... 424
17. Quando os Opostos Se Unem....................... 440
Merúrio/enxofre ............................................ 441
Oriente/Ocidente ........................................... 446
Águia/Leão..................................................... 447
Lobo/cão......................................................... 448
Vcneno/teríaca............................................... 449
Sol/Lua........................................................... 455
Saturno/Sol..................................................... 458
18. O Fogo Secreto dos Sábios............................ 462
Índice 7

19. O Céu Alquímico ....................... 486


Céu/quintcssência............................................
499
20. Uma Realeza Metálica: o Ouro Filosofal......... 516
21. Uma Soberania Benéfica: a Pedra dos Sábios... 534
Nomes da pedra filosofal coletados
por Gugliclmo Gratarolo................................ 535
22. Uma Caridade Prolífica: a Medicina Universal 556
Glossário...................................................................... 583
índice Onomástico...................................................... 600
Filosofar pelo Fogo

"Assim o fogo ao fogo e o Mercúrio ao Mercúrio se unem Michel Maier,


Atalante fugitivo, 1618, emblema X.
Introdução
Filósofos pelo Fogo: assim os próprios alquimistas se definiam
em virtude de certa aliança - entre obra de sabedoria e elemento ígneo
- que se tornou bem estranha para espíritos como os nossos que ago­
ra obtêm suas próprias luzes, e sua eventual serenidade, de outras fontes
de claridade. Da chama, espontaneamente associada à inflamabilidade de
um espírito cujas paixões tomam incapaz de raciocinar, nào aprendemos a
desconfiar? E a filosofia reterá principalmente que, ao promover o Fogo, o
“princípio” de que o Cosmos, ainda mal ordenado pelo pensamento, man­
tém no entanto sua unidade, Heráclito tenha feito
menos obra de filósofo do que de poeta, cativa­
do pela ardente mobilidade do devir. “O fogo
extrai alegria de sua forma”, dirá mais tarde

K
Willian Blake.1 Relatada por Aristóteles e de­ *
pois comentada por Martin Heidegger,2 uma
anedota nos mostra de fato o mais obscuro dos
pensadores e “teólogos” (theologoi) anteriores
a Sócrates se aquecendo um dia junto ao pé de
um modesto forno de padeiro, e justificando sua JÍERACLITV5
presença insólita naquele lugar por meio de uma Philofonkús .
palavra tão límpida que quase se torna enigmá­ Heráclito. filósofo: O Fogo é
tica: “Aqui também os deuses estão presentes”. o principio de todas
Sem dúvida eles não estavam menos, nem de for­ as coisas.
ma tão diferente, próximos desses fornos em que
as “pessoas do crisol [cadinho]”, dizendo-se Filhos de Hermes, também
começaram desde a Antiguidade, mas por meio de práticas estrangeiras ao

1. (Euvres complètes, Paris, Aubier-Flammarion, 1980, t. III. La Révolution française, p.


137 : “Fire delights in itsfonn ”.
2. “Lettre sur rhumanisme’’, Questions ///, trad. fr. Paris, Gallimard, 1966, p. 139 55.
-9-
10 Filosofar pelo Fogo

espírito especulativo da filosofia grega, a se inquirir sobre uma, no en­


tanto, comparável Unidade, que além do mais coincide com uma forma
muito particular de piedade: “Tu, portanto, não te deixes seduzir, ó mu­
lher, assim como te expliquei no livro que trata da Ação. Não comeces
a divagar procurando Deus; mas permanece sentada perto de teu forno,
e Deus virá até ti, ele que está em toda parte; ele não está confinado no
lugar mais baixo, como os demónios”, recomendava o alquimista gre­
go Zózimo de Panópolis,3 deixando assim entrever a existência de um
vínculo entre a presença dessa mulher “com a veste púrpura” junto ao
forno, e a inspiração, o estado de espírito que torna possível a realiza­
ção da Grande Obra alquímica.
Que os riscos de uma existência aventurosa tenham, em 1619,
conduzido René Descartes a se hospedar no famoso “quarto aquecido”,
onde começou a fundar a filosofia moderna, constitui talvez a esse res­
peito um sinal irónico da história das ideias: foi em um quarto aconche­
gante e calafetado, ao abrigo das chamas errantes e das fumaças, que
os filósofos iriam doravante ficar para cogitar a uma boa distância sobre
tudo o que, de perto ou de longe, ainda poderia se assemelhar a um for­
no. Será necessário esperar Gaston Bachelard (1884-1962) para que as
“fantasias” suscitadas pelo fogo e forno encontrem certa credibilidade
na ordem do pensamento,4 e para que uma meditação de ordem “filo­
sófica” comece a restaurar o vínculo, perdido ao longo das eras, entre
alquimia e filosofia. Pois os alquimistas, não nos esqueçamos disso,
se diziam unanimemente Filósofos — segundo Hermes, é verdade — e,
aliás, falava-se comumente até o século XVIII de química para desig­
nar sem outras exatidões a alquimia. A existência de uma afinidade, por
assim dizer natural, entre poesia e alquimia tornou-se, ao contrário, para
nós relativamente familiar desde que Arthur Rimbaud fez de sua “Al­
quimia do Verbo”5 o manifesto poético da modernidade, que mais tarde
André Breton e seus amigos invocarão, seduzidos pela “suprarrealida­
de”, a qual supostamente já teria sido a mesma da antiga alquimia. No
entanto, há ainda muito a dizer sobre a religiosidade bastante particu­
lar de uma arte cuja própria familiaridade com o fogo muitas vezes
fez suspeitar ser diabrura: é no submundo do último dos sete círculos
do Inferno que Dante encontrou o astrólogo e alquimista Michael Scot

3. Marccllin Berthelot, Collection des anciens alchimistes grees (1888), t. III, p. 235; pro­
pósitos muito próximos em OHmpiodoro, ibid., p. 90.
4. La Psychanalyse du Feu, Paris, Gallimard (Idées), 1949; Fragments d'une poétique du
feu, Paris, PUF, 1988.
5. Cf. Eugène Canseliet, Alchimie, Paris, J. J. Pauvert, 1964, p. 20-55, em que Arthur Rim­
baud é consagrado “Filho de Hermes” segundo a tradição própria à Arte alquímica.
INTRODUÇAO 11

“que das fraudes mágicas/Na realidade muito bem conheceu o jogo” (A


Divina Comédia, canto XX), ao passo que a “gente filosófica” (Anaxá-
goras, Sócrates, Platão) ali também está reclusa, mas em uma masmorra
menos miserável (primeiro círculo). Da Arte da alquimia muitas vezes
qualificada como “grande” (Ars magna) a legitimidade só se mantinha
para outros teólogos — Martinho Lutero em primeiro lugar - porque
o fogo, capaz de separar o puro e o impuro quando está nas mãos de
alquimistas experimentados, prefigura aos seus olhos a arbitragem su­
prema do Juízo final:
A verdadeira arte da alquimia é em verdade a filosofia tão propalada dos
antigos sábios. A alquimia me agrada muito, não apenas pela utilidade que
dela retiramos, pois ela ensina a fundir, separar, afinar e tratar os metais; a
destilar e sublimar as plantas, as raízes e tantos outros corpos; mas também
por essas alegorias e símbolos ocultos, que são demasiado belos, cm parti­
cular essa figuração do Juízo final e da ressurreição dos mortos.6
Entre fantasias domésticas, seduções diabólicas c fulgurações apo­
calípticas, não existiria então mais nenhum lugar na cultura moderna para
essa estranha maneira de filosofar? Pois filosofando “pelo fogo” os al­
quimistas não se contentaram em dar à visão do mundo oriunda do her-
metismo antigo uma dimensão experimental e sapiencial. Trabalhando e
meditando “no forno”, eles acreditavam que poderiam demonstrar que
necessariamente devia “tomar corpo” uma religiosidade que não seria
separada da Natureza, e isso sem que fosse necessário imediatamente
suspeitar de paganismo ou de panteísmo: “Que o amante de coisas divi­
nas saiba bem que nossa via não é nem histórica nem pagã, mas que nós
nos dirigimos para a luz da natureza exterior; por nós brilham os dois
Sóis”,7 proclamava o teósofo Jacob Boehme (1575-1624) nisso fiel ao
espírito alquímico e a essa dupla fonte de luminosidade, natural e divina,
que também era invocada por Paracelso (1493-1541) se maravilhando
com o fato de que o fogo “tem potência de revelar o que está oculto e
torná-lo manifesto” e concluindo: “É dessa visão que nasce a ciência dos
remédios que são seu testemunho”.8 Aos olhos dos alquimistas, com efei­
to, na realidade só pode ser julgado o que antes já foi cuidado, ou seja,
purificado e aperfeiçoado, como ensina a filosofia da Natureza que eles
invocam e que para eles é como uma inspiradora e guia.

6. Martinho Lutero, Propos de table, trad. fr. Paris, Ed. Montaigne, 1932, p. 411 (41).
7. De la Signature des Choses, reedição Sebastiani, 1975, p. 87.
8. Opus Paramirum (IX, 41-42), citado in Lucien Braun, Paracelse, Presses Universitaires
de Strasbourg, 1981, p. 136.
12 Filosofar pelo Fogo

Os textos aqui apresentados mostrarão bem qual importância os


alquimistas conferiam à apreciação da qualidade dos fogos em função
do estado da matéria em via de transformação e, mais ainda, à desco­
berta do famoso Fogo Secreto dos Sábios, sobre o qual tudo leva a pen­
sar que não era outra coisa além da não menos misteriosa Matéria, tão
integralmente livre de suas impurezas e tão perfeitamente em harmonia
com o Fogo, presente em toda parte na Natureza (Espírito do mundo),
que Fogo e Matéria, parando de se opor e de lutar, se uniam em um
ponto de equilíbrio e de mútua reversibilidade, em que espiritualidade
e materialidade tornavam-se as duas faces de uma única realidade. Por
isso, a salamandra não se tornou um símbolo alquímico simplesmente
por causa de sua resistência ao fogo, como comumente se pensa. Este
é. dizia Pierre-Jean Fabre (v. 1600-1660), “um enigma e uma ficção”,
designando a Pedra dos Filósofos, pois na verdade: “a Salamandra dos
Químicos representa seu admirável segredo e eles podem dizer que
ela vive no fogo, ali cresce e ali se fortifica, uma vez que é apenas no
fogo que ela é conduzida à sua realização”.9 Mas, se também é verdade,
de acordo com Fulcanelli, que a Salamandra alquímica simboliza da
mesma forma certa turbulência (saleuo) agitando a matéria nas caver­
nas das rochas, estábulos e grotas, cujo Vaso filosofal é o equivalente
operatório,10 então a Natividade crística bem poderia ser a expressão
sublimada de uma “transmutação” muito arcaica ancorada na materia­
lidade: o Fogo do Espírito Santo sendo o indispensável auxiliar de tudo
o que um “corpo” dotado da natureza de um Sal ígneo busca, liberado
do destino pútrido que lhe reservava a água de que no início ele era
composto. A água ordinária, compreenda-se, e não aquela de que os al­
quimistas dizem que “não molhe as mãos”, já que ela mesma se tornou
Fogo, uma vez livre de seu excesso de umidade.
Que os tratados alquímicos façam um uso repetido da palavra
“sutil” (subtilis) é, portanto, a expressão dessa dupla exigência, ope­
ratória e espiritual, que Ben Johnson se deleitou em caricaturar na pe­
sada sátira que escreveu sobre a alquimia (1610),” ridicularizando um
desses “extravagantes em quintessência”12 apaixonado por raridades,

9. Pierre-Jean Fabre, Manuscrít envoyé à Frédéric, in Bernard Joly, La rationalité de


/ alchimie au XVHe siècle, Paris, J. Vrin, 1992, p. 187.
10. Fulcanelli, Les Denteares philosophales, Paris, J. J. Pauvert, 1964, t. I, p. 173. Uma
comparável efervescência é manifesta na famosa visão de Zózimo: cf. Marcellin Berthelot,
op. cit.,T. III, p. 127.
11. DAlchimiste (1610): o herói dessa tragicomédia repleta de zombaria se nomeia de fato
Sutil.
12. A expressão é de Philothaume: Explication physique de la Fable (\724), p. 48.
INTRODUÇ/XO 13

mas negligenciando sua família faminta. Ora, se o amor pela sutil idade
serviu incontestavelmente de escapatória a alguns dos mais ilustres “de­
cadentes” (Baudelaire, Huysmans, Villiers de l'lsle Adam) desejosos
de fugir da trivialidade de um século já materialista e emburguesado,
a busca por tais equilíbrios, de fato tão frágeis quanto teias de aranhas
(sub-tela), visava principalmentc a arrancar a “matéria” filosofal dessa
dupla decadência que é, para o espírito alquímico, uma espiritualidade
desprovida de corporeidadc ou uma corporeidade que não teria sido
espiritualizada, como ensina muito claramente Hermes nos escritos que
lhe são atribuídos,13 e como gosta de repetir um conhecido de Eugcnc
Canseliet (1899-1982), o poeta Robert Marteau: “Porque não há nada
de material que não seja ao mesmo tempo espiritual, o filósofo do fogo
opera ao mesmo tempo que especula, não aceitando a ilusão do espelho
a não ser confrontada à lógica da matéria”.14 Nem que fosse essa a espe­
rança de que se quis portadora a buscafilosofal, cuja singularidade - em
relação à abstração filosófica e à revelação religiosa - não exclui a uni­
versalidade. De onde quer que venham e seja qual for a identidade que
nesse mundo tenham adotado (filósofos, alquimistas, poetas, sábios),
todos os “operativos” são convocados, mais dia, menos dia, a fazer a
mesma constatação: “Nossa prática é de fato um caminho nas areias,
onde devemos nos conduzir pela Estrela do Norte, mais do que pelos
vestígios que ali vemos impressos”.15
Longe de constituir um fenômeno cultural isolado próprio ao Oci­
dente pagão e depois cristão, o pensamento e a prática alquímicos de
fato declinaram a mesma aspiração nas línguas e sob formas culturais
diversas. A erudição letrada confirma atualmente a existência desses
alquimistas — mesopotâmica, árabe, chinesa, indiana -,16 e a presença
dessas práticas em espaços culturais tão disseminados, inexplicável por
razões estritamente históricas, tende por isso mesmo a reabilitar o que
por sua vez afirmavam de sua Arte os Adeptos que solitariamente tra­
balhavam em suas regiões: que a universalidade verídica da alquimia
depende menos de sua difusão planetária que da retidão e do fervor
que levam cada um dos Filhos de Hermes à busca de uma Unidade,
intemporal mas encarnada, tendo por si só valor de panaceia (remédio

13. Walter Scott, Hermetica, Oxford, Clarendon Press, 4 vol. 1924-1936.


14. Robert Marteau, Voyage au verso, Paris, Champ Vallon, 1989, p. 72.
15. Limojon de Saint Didier, Lettre aux vrais disciples d'Hermes (Le Triomphe hermétique)
in William Salmon, Biblioteca dos filósofos químicos, t. 3, p. 294.
16. Sobre essas diversas alquimias, cf. Em particular Mircea Eliade, Forgerons et Alchi-
mistes, Paris, Flammarion, 1977; “L’alchimie asiatique”, Le myíhe de Falchimie, Paris,
UHeme, 1978, 1990.
14 Filosofar pelo Fogo

universal) dedicada à cura da humanidade. Assim, acabando de definir


a alquimia como “a invenção e o domínio da destilação graças ao que
são atualizadas as composições, dissoluções, preparações, alterações e
exaltações de todos os corpos”, Johann Daniel Mylius acrescentava:
“Ela também é chamada Arte de Hermes, ou ainda Arte do magistério
perfeito [...], Arte egípcia, Filosofia química, mística etc.; tendo esse
nome sido utilizado na Babilónia, na Caldeia, na Pérsia, na Arábia, no
Egito”.17 Portanto, uma coisa é, em si, perfeitamente legítima se per­
guntar sobre o status epistemológico ambíguo de uma teoria e de uma
prática em que se mesclam estreitamente ciência e arte, técnica e místi­
ca; e outra é constatar que a marginalidade imposta pela modernidade à
alquimia faz, quanto a ela, figura de fenômeno anedótico, se levarmos
em conta a amplidão de sua influência na história das culturas e das
ideias. Quando o bom senso às vezes se une à ciência, então a pertinen­
te observação de Titus Burckhardt adquire todo o seu peso:
Que uma arte essencialmente absurda foi capaz, a despeito de inúmeros
fracassos e decepções, de se manter com semelhante continuidade e fide­
lidade no seio das civilizações mais diversas, é um fato cujo caráter no
mínimo improvável parece não ter atingido senão alguns poucos espíritos
no entanto esclarecidos. Portanto, é preciso admitir ou que os alquimistas,
em seu desejo de enganar a si mesmos, cultivaram obstinadamente um mito
mil vezes desmentido pela natureza, ou que a efetiva experiência deles se
situava em outro plano de realidade diferente daquele de que se ocupa a
ciência empírica moderna.18

Origens de uma palavra e de uma prática


Surgida relativamente tarde no Ocidente com a primeira tradução
do árabe para o latim (1144) do Livro da Composição de Alquimia, de
Morienus, por Robertus Castrensis, essa Arte até então só manifestara
sua existência no interior de obras técnicas relativas a alguns procedi­
mentos artesanais em uso entre o século VIII e XII, e em muitos pontos
comparáveis aos utilizados pelos Antigos.19 O testemunho de Michel
Pselíus (1018-1078) permanece, por outro lado, memorável, na medida
em que nos mostra esse brilhante erudito que oscila entre a prática no
forno e a mais nobre filosofia, sem deixar de procurar pela primeira

17. Basílica Philosophica, in Opus Medico-Chymicum (1619), t. IV, p. 185.


18. Alchimie, sa signification et son image du monde, Milão, Arché, 1974, p. 8.
19. Conipositiones ad tingenda musiva (séc. IX), Schedula diversarum artium (séc. X)
composto pelo monge Tcófilo; Mappae Clavícula ejjiciendo auro. De coloribus et artibus
romanorum, do monge Eraclius.
Introdução

vez compreender o status singular de uma arte com


identidade polimorfa ainda mal definida. Aborda­
gem heurística posteriormente perseguida por mui­
tos outros, por Petrus Bonus, cm particular em sua
Preciosa Pérola Nova (1330), com características ao
mesmo tempo escolásticas e místicas: “a Alquimia
é a ciência pela qual os princípios de todos os me­
tais, suas causas, propriedades e afecçõcs são radi­
calmente [radicitus, até a raiz] conhecidas, para que
todas as coisas até então imperfeitas, incompletas,
mistas e corrompidas sejam transmutadas em ouro Rasis, Filósofo: A Goma
verdadeiro”.20 Assim, Petrus Bonus vinculava essa coagula o leite e nosso
Arte, como fez aliás a maioria de seus contempo­ leite dissolve a Goma,
râneos, à filosofia natural e à medicina, estimando-a daí vêm a Vermelhidão e
ao mesmo tempo natural e divina, ou, ainda mais, o Sangue oriental.
sobrenatural.
Diversamente ortografada ao longo dos séculos seguintes:
Alquemie, Alkimie, Alchymie, a Arte da alquimia (Al-Chemia) devia
se desenvolver no Ocidente segundo dois eixos principais que, oriundos
de uma mesma fonte, tinham um duplo objetivo: a purificação dos me­
tais vis e a transmutação em Ouro filosofal (crisopeia), e a fabricação
de uma Medicina universal (Ouro potável, Elixir, Bálsamo), que mais
tarde encontrará seu prolongamento na iatroquímica paracelsista (ou
espagíria) e depois na homeopatia;21 sua transmissão entre os séculos
IX e XII sendo principalmente feita pela Espanha, essa “porta real da
alquimia árabe”22 que havia enriquecido com suas próprias descober­
tas o velho fundo grego e legou ao Ocidente medieval alguns tratados
venerados, constantemente citados ao longo dos séculos seguintes: o
Livro dos Alumes e dos Sais (De Aluminibus et Salibus) de Rhazès ou
Razi; a famosa Assembleia dos Filósofos (Turba Philosophorum), cujas
três versões foram encontradas, sendo uma escrita em francês; a Tabula
Chemica, de Sénior Zadith,23 diversos apócrifos atribuídos a Avicena e
a não menos célebre Tabula Smaragdina (Tábua de Esmeralda), consi­
derada a revelação primordial de Hermes Trismegisto,24 cujas primeiras
versões conhecidas foram redigidas em língua árabe. Então, procurar
20. La Précieuse Perle nouvelle, in Jean-Jacques Manget. Bibliotheca Chemica Curiosa, t.
II, p. 3. Cf. textos de Petrus Bonus e de Michel Psellus, traduzidos p. 99-100 c p. 248-250.
21. Alexander von Bernus. Alchimie et Médecine, trad. fr. Paris, Dangles, 1960.
22. Juan Garcia Font, Histoire de 1'Alchimie en Espagne, trad. fr. Paris. Dervy, 1980.
23. Texto traduzido p. 223-226.
24. Texto traduzido p. 64.
16 Filosofar pelo Fogo

Extração dos metais sob a autoridade de Hermes


Trismegisto: Johann Ambrosius Siebmacher, Aquarium
Sapientum, 1625 (detalhe do frontispício).
descobrir as origens da alquimia se revela de
HERME5J imediato complexo uma vez que a originalida­
de dessa Arte vem do fato de que ela busca sua
fonte nos dados míticos dominados pela alta
estatura de Hermes Trismegisto, mas também em práticas artesanais
e especulações de ordem mística. Sendo isso em geral admitido, uma
grande incerteza reina quanto às razões históricas e filosóficas de se­
melhante aliança entre discípulos tào diversos e quanto à identidade
da atmosfera cultural que pela primeira vez tornou possível essa con­
fluência inusitada.
A origem greco-egípcia da alquimia ocidental continua, todavia,
a ser privilegiada,25 uma vez que a “Terra negra” do Egito teria sido o
húmus onde se desenvolvera a Arte sagrada ulteriormente conhecida no
Ocidente sob o nome de alquimia: “Como o Egito é uma terra negra, tão
escura quanto a pupila do olho, os egípcios dão a essa região o nome de
Chéntia e a comparam a um coração”. Essa passagem bem conhecida
de ísis e Osíris (§33) mereceria ser completada por esta outra em que
Plutarco observa que os egípcios têm o costume de representar o Céu
“que não poderia envelhecer, uma vez que ele é eterno, como um co­
ração colocado sobre um braseiro cuja chama mantém o ardor” (§10).
E ali, embora não haja nenhuma referência direta à prática alquímica e
ao que será mais tarde nomeado Grande Obra, um vínculo está muito
bem estabelecido entre o ardor intemporal do Céu e a receptividade
de uma Terra, que por sua vez representa o papel do forno e de crisol
[cadinho]. Explicitamente mencionada em o Corpus Hermeticum (séc.
II e III d.C.) como sendo a “cópia do Céu” e, dessa maneira, o “templo

25. cf a obra clássica de Jack Lindsay, Les origines de l’alchimie dans 1’Égipte gréco-
romaine, trad. fr. Monaco, Le Rocher, 1986.
Introdução 17

do mundo inteiro” (Asclépius, 24), o Egito parece então ter sido rcalmente
a “argamassa mística” (Zózimo) onde se uniram os destinos da alquimia
ocidental e do hermetismo greco-alcxandrino, gnose neoplatònica no en­
tanto bastante compósita.26 E sob os traços do deus egípcio Thoth que o
Hermes-Mercúrio greco-latino teria, portanto, pela primeira vez ma­
nifestado aos homens seus poderes ocultos. Autenticando essa origem
egípcia em sua famosa obra Symbola aurece mensce duodecim nationum
(1617), Michael Maier (1566-1622) acabou realizando obra de herme-
tista ao evidenciar que analogias unem símbolos cristãos e pagãos. Mas
outras hipóteses não devem ser negligenciadas: as teurgias do fogo pra­
ticadas pelos cabires na ilha de Samotrácia, por exemplo, como sugere
René Alleau em Aspectos da alquimia tradicional (1953), cm que a
hipótese de um estreito parentesco entre as alquimias ocidental e chi­
nesa (taoista) é igualmente desenvolvida; sendo ambas tão preocupadas
com o aperfeiçoamento dos metais quanto pela prolongação da vida em
“corpo” de imortalidade.
Mesmo que a maioria dos tratados canónicos ocidentais invoque
uma inspiração emanada dirctamente de Hermes Trismegisto,27 as eti­
mologias mais correntemente propostas da palavra alquimia se referem
principalmente à própria prática dessa arte cujos diversos aspectos fo­
ram sucessivamente considerados como muitas de suas origens possí­
veis: a arte de fundir e de escorrer os metais, %1XHÇ a de derramar e
de misturar os líquidos, %ECD ou ainda de extrair determinado Sal que
também corresponde, segundo outra terminologia demasiado marcada
pela dinâmica dos quatros Elementos, à noção de Quinta-Essência: “A
Alquimia é uma arte derivada de OtÁÇ e de X^fLOÇ, Sal e suco, por­
que ela ensina a extrair o Sal, os humores, sucos e licores de qualquer
misto”, observa Nicolas de Locques.28 Essencialmente voltadas para a
tecnologia própria a essa prática, essas considerações etimológicas dei­
xam, em contrapartida, de lado a denominação de Arte Sagrada (Hiera
technè) ou de Ciência Divina frequentemente empregada pelos alqui­
mistas gregos preocupados com a fabricação da Água divina, também
chamada “Água de enxofre”, “Água aérea” ou “Água do abismo”, e já
26. cf. Françoisc Bonardel, L'Herniétisme, Paris, PUF, Que sais-je? NB 2247, 1985. Reedi­
ção revista e ampliada sob o título La Koie hermêtique. Paris, Dervy, 2002.
27. Três vezes grande: “Ele é chamado Trismegisto. sendo considerado segundo a tríade o
que é feito e o que se faz”, dizia sobre essa denominação Zózimo (Marcelin Bcrthelot, op.
cit. p. 136).
28. Les Rudiments de la Philosophie naturelle (1665), p. 199. Mesmos propósitos em Le
Tonibeau de la Pauvretè (1672) pelo Filósofo desconhecido: “Parece que o verdadeiro nome
de Alquimia demonstra que essa ciência consiste na facção de um Sal fusível, pois em gre­
go, significa Sal e Chymie, fusão”.
18 Filosofar pelo Fogo

bastante próxima de certa “Água ardente” na qual os abstratores de


quintessência verào mais tarde o remédio universal tão procurado
(panaceia).
Nos tratados, permanecem mais raras as menções às vezes feitas a
certo rei Alchimin ou Alchymus que supostamente teria sido o primeiro
a estudar essa Arte e a ter “questionado noite e dia a Natureza e a final­
mente lhe ter arrancado uma resposta bendita”;29 uma Arte cuja origem
também foi relacionada por outros a Adão: “pois este, o primeiro de
todos os homens, é oriundo dos quatro Elementos”, dizia Olimpiodoro
, (século V).30 Os textos ocasionalmente também
Mji| aludem a um mítico Chymès (ou Chimès) e outras
vezes até mesmo a Cham, filho maldito de Noé,
'3
ij por causa de sua “escuridão” moral, mais tarde as-
I similada pelos alquimistas à de Saturno, de quem
1 Julius Firmicus Maternus já afirmava (séc. IV d.
//jí C.) ser o planeta astrológica e simbolicamente
; determinante para o sucesso do Magistério. Mas
como a eventualidade de uma transmissão dire­
.Anaxagoras OiZ ta, a partir de ísis, dessa Arte sagrada às mu­
'Z^Orruxmús PMc>.
lheres por certos anjos rebeldes também não foi
Anaxágoras, Filósofo de excluída,31 percebemos a complexidade de uma
Clazomene: O Sol ardente, questão a priori tão simples quanto a da origem
a alma da Lua, o espírito da alquimia, que dependerá ainda de outra fonte,
em seu meio não são nada dessa vez árabe, sua denominação da “Ciência da
mais que o Mercúrio. Balança” (Jâbir ibn Hayyân), tão importante em
relação à maestria das justas ponderações sobre a
qual está fundada essa arte: “A balança natural é o que nós buscamos na
ciência dessas coisas para fazê-las chegar à existência”.32
As constantes referências às Meteorológicas, de Aristóteles, de
quem os alquimistas também emprestam, para relacioná-la à própria di­
nâmica de sua “matéria”, a distinção da potência e do ato, mostram, por
outro lado, a estima que tinham pelo Estagirita, considerado o suposto
autor de escritos alquímicos (Deperfecto Magistério). Aliás, um tratado
29. Thomas Norton, Crede mihi seu Ordinale (1477), in Jean-Jacques Manget, Bibliotheca
Chemica Curiosa, t. II, p. 290. Também está escrito no Livre des trois paroles (Liber trium
Verborum) atribuído a Calid: “Alchimia est Ars artium, Scientia scientiarum ab Alchimo
inventa (a Alquimia é a Arte das artes, a Ciência das ciências inventada por Alchimus), in
Theatrum Cheniicum, t. V, p. 186.
30. Marcelin Berthelot, Collection des anciens alchimistes grecs, op. cit. p. 95 e 223.
31. cf Marcelin Berthelot, op. cit. p. 31 ss. Texto citado p. 74.
32. Jâbir ibn Hayyân, in Marcelin Berthelot, La Chimie au Moyen Âge, t. III, p. 200.
1NTRODUÇÃO 19

anónimo não hesita em nomear Aristóteles de o Espagírico; associan­


do assim, por meio desse único qualificativo, alquimia e espagíria,33
ao passo que a maioria dos alquimistas consagrou em cada um de seus
escritos pelos menos algumas linhas para distinguir sua arte da dos so-
pradores, lacrimistas e outros “sofistas”,
que praticavam em sua opinião uma espa­
gíria tão “negra” quanto poderia ter sido,
se a compararmos com a branca, alguma
sombria magia. A sofística não foi, portan­
to, a única inimiga da filosofia platónica,
uma vez que, também se considerando
filósofos, os alquimistas a tinham em um
desprezo tão profundo quanto seus ho­
mólogos antigos. No entanto, não deixa­
mos de nos surpreender que os Filhos de
Hermes tenham assim anexado a maioria
dos grandes filósofos gregos (Anaxágoras,
Heráclito, Platão, Aristóteles, Demócrito) A Assembleia dos sábios
como os supostos precursores de sua Arte. Filósofos: Rosarium
A questão se coloca bem especialmente Philosophorum, século XIV
em relação a Aristóteles, cuja lógica for­
temente “identitária” parece em total inadequação com a da alquimia,
paradoxal demais para não zombar abertamente dos três grandes prin­
cípios: de identidade, de não contradição e do terceiro excluído. De
Aristóteles, os alquimistas parecem ter retido, portanto, principalmente
a teoria das “exalações”, que explica a formação e o crescimento dos
metais nas profundezas da terra. Quanto à hipótese de uma possível
transmutação do chumbo em ouro, parece difícil atribuir sua paterni­
dade a Aristóteles, a não ser por ter associado a cada Elemento (Agua,
Ar, Terra, Fogo) um par de qualidades (quente, seco, frio, úmido) cujas
mutações devem permitir a geração e a corrupção, como ele explica na
obra que traz esse título (II, 1-11). Sobre esse ponto, o espírito alquími-
co parece muitas vezes tão próximo das intuições de Heráclito relativas
ao papel dos opostos no devir e do desejo de metamorfose que anima
a filosofia de Empédocles quanto às certezas naturalistas e racionais
do Estagirita. Surpreendemo-nos em contrapartida de não encontrar na

33. Cf. o texto de David de Planis Campy citado p. 116-118. em que são indicados a eti­
mologia da palavra Spagyrie e o uso por assim dizer ,lnobre” que dela fizeram Paracelso e
sua escola.
20 Filosofar pelo Fogo

Assembleia dos Filósofos Alquímicos (Turba Philosophorum), recons­


tituída pela dedicação dos alquimistas, menção aos grandes nomes do
estoicismo antigo (Zenão de Citium, Cleanto, Crisipo), cuja visão
do mundo, vitalista e holística, tem no entanto inúmeros pontos em co­
mum com a da alquimia. Reconhecidas como tais ou esquecidas, essas
influencias diversas justificam de todo modo plenamente a conclusão de
Wilhem Ganzcnmúller:
A concepção do mundo ensinada pelos alquimistas reúne, em uma espécie
de imenso tecido colorido, cujos fios se entrccruzam cm um desenho com­
plicado e cujo rastro perdemos e encontramos a cada vez: a ciência religio­
sa do antigo Egito, o culto babilónico dos astros, a cosmologia persa, Platão
e Aristótcles, o estoicismo e o neoplatonismo. E preciso olhar o tecido com
certo recuo para perceber os traços essenciais do desenho.34
Simples constatação de ordem his­
tórica ou esboço de uma metodologia
conforme às exigências da alquimia?
Nem o recuo aqui aconselhado nem a
distância assim tomada visam de fato a
legitimar o exercício de um “senso crí­
tico” ensinado tanto pela história das
ideias quanto pela filosofia em nome de
um ideal de inteligibilidade e de verda­
de. Sem dúvida, compreender sempre
consiste em “tomar junto” (cum prehen-
deref mas sem que isso mostre que
Os Filósofos reunidos em torno do tipo de relação - mecânica ou orgâni-
Fogo alquimico: Aurífera? Artis, quam ca — une cada parte ao todo. Ora, quer
Chcmian vocant, Basileia, 1572. se trate de visualizar em seu conjunto o
desenho subjacente a esse mosaico his­
tórico, ou de aprender a se orientar no dédalo dos textos a fim de descobrir
o traçado que conduz ao “centro da Natureza” até então invisível, a lógica
que é a da alquimia supõe com efeito que se perceba o conjunto ao mesmo
tempo que o detalhe, englobados em um olhar de relance único. “Ao retirar
o véu e ao olhar o quadro de uma distância conveniente, compreenderemos
que aquilo que parecia uma mancha feita ao acaso sobre a tela é o efeito da
arte consumada do pintor. O que chega ao olho na pintura, também chega

34. L Alchimie au Moyen Àge, trad. fr. Paris, Aubier-Montaigne, 1936 e Verviers (Bélgica).
Marabout, 1974, p. 1Ó5.
INTRODUÇÂO 21

ao ouvido na música”, observava o filósofo Leibniz,35 que ambiciona­


va restaurar em sua filosofia uma certa harmonia muito antiga entre o
pequeno e o grande mundo, que justifica a denominação de “arte de
música” muitas vezes atribuída à alquimia. E se ainda estamos longe de
“ver segundo a Natureza” (O Rosário dos Filósofos, séc. XIV), ponto
defendido pelos alquimistas, um passo parece dado nessa direção c em
favor da exata visào contra a abstrata intelecçào. Ora, que vemos em
primeiro lugar, com o recuo dos séculos, por meio da palavra alquimia?
“Um gigantesco andaime erigido entre espírito e matéria”, como afirma
tão bem Heinrich Schippergcs; mas um andaime cuja aparente diver­
sidade deixa, no entanto, entrever a existência de um “ponto de fuga”
único, autorizando a seguinte conclusão: “E a partir dessas correntes
entrecruzadas, e acima do amplo alcance de seu arco, que quisemos
perceber em sua totalidade a estrutura fundamental dessa tradição; foi
ela que organizou essa grandiosa perspectiva tradicional cm torno de
seu ponto de fuga, em um espaço espiritual cuja amplidão não poderia
ser superavaliada, mesmo na ignorância em que ainda nos encontramos
da situação exata de seu horizonte, em relação às lacunas que sua conti­
nuidade nos oferece. O que nos importa fundamentalmente é seu plano
de fundo, não tanto sua instrumentação tecnológica nem seu ímpeto
pragmático, quanto a realidade espiritual que se revela no conceito de
‘Grande Obra’”.36
Dos Physica kai Mistika do Pseudo-Demócrito (séc. II a.C.) aos
grandes maquinários barrocos,37 que a partir de então tomam como
pretexto a alquimia para desenvolver sua própria relojoaria, em que se
mesclam Cabala judaica-cristã, teosofia e numerologia, um gigantesco
edifício de fato se levantou ao preço de uma mistura, aos nossos olhos
desconcertante, entre continuidade iniciática e anarquia lógica. Con­
tinuidade, se aceitarmos a ideia eminentemente “tradicional” de que
todos os tratados redigidos ao longo dos séculos constituem, no entanto,
um livro único transmitido de mestre a discípulos desde Hermes. “Um
livro te fará entender outro”, diz Artépio (séc. XII); mas anarquia pelo
35. G. W. Leibniz. Opuscules philosophiques choisis, trad. fr. Paris, Hatier-Boivin, 1954,
p. 90.
36. Heinrich Schippergcs, “Structures et processas de transmission de la tradition alchi-
mique” in Alchimie, trad. fr. Paris, Bclfond, 1972, p. 65.
37. cf. Por exemplo o famoso Amphitheatrum sapienlia? aelernce, de Heinrich Khunrath
(1602) e o Opus mago-cabbalisticum et theosophicum, de Georg von Welling (1719), que
exerceu em meio de outras leituras esotéricas certa influência sobre Goethe, cujos dois
Faustos (1808, 1832) dramatizam o resultado da busca filosofal, tornada inacessível a esse
“intelectual” moderno que é Fausto.
22 Filosof/àr pelo Fogo

menos desconcertante, se levarmos em conta o caráter labiríntico dos


tratados, cuja ordem de exposição é deliberadamente embaralhada por
seus autores, e a complexidade de um corpus tão diverso e prolixo, que
alguns historiadores chegaram até mesmo a duvidar da existência de um
verdadeiro “projeto alquímico”, cuja inconsistência teria aberto a via ao
único projeto merecedor desse nome, de ordem racional e científica.
Dessa posição erudita encontramos vestígio até em Cari Gustav Jung
(1875-1961), que certamente reabilita a alquimia por intermédio da psi­
cologia das profundezas, mas afirma, no entanto, que sua obscuridade a
condenava a um declínio certeiro. Ora, se realmente existe um “projeto
alquímico”, ele depende no essencial - e é sob esse aspecto que ele não
tem nada de científico, no sentido moderno do termo — da implicação
total e íntima do operador consciente de ter plenamente se engajado,
moral e espiritualmente, para pretender atingir o alcance verdadeiro da­
quilo que almejava efetuar. Que ali exista um começo da hermenêutica
(arte da interpretação) própria à alquimia não há a menor dúvida, uma
vez que a “compreensão” de si coincide com a dos processos naturais
colocados em Obra por aquele que os textos também nomeiam Artista.
Por isso, a deontologia operativa defendida pelos alquimistas38 os dis­
pensa, se ela é efetiva, de ter de refletir a posteriori e com grandes cus­
tos, como o fazem na maior parte do tempo os filósofos, sobre a ética
inerente à sua prática, pois não é no início, mas no final, que a prática
alquímica é em si ética: o que o alquimista grego Zózimo nomeava “o
vínculo da virtude no Universo inteiro”.39 Nenhuma jurisdição racional
poderia por isso prevalecer sobre o puro e simples “estabelecimento da
Obra”, que implica tão estreitamente o Artista e sua matéria, o ho­
mem e a Natureza, que é a suposta neutralidade da ciência moderna
que por sua vez pode ser suspeita de irresponsabilidade, como já
pressentia Simone Weil:
E realmente um erro termos tomado os alquimistas como os precursores
dos químicos, uma vez que eles olhavam a virtude mais pura e a sabedoria
como uma condição indispensável ao sucesso de suas manipulações, e em
contrapartida Lavoisier buscava, para unir o oxigénio e o hidrogénio na
água, uma receita suscetível de funcionar entre as mãos de um idiota ou de
um criminoso tão bem quanto entre as suas próprias. Todas as civilizações
diferentes das da Europa moderna consistem essencialmente na elaboração
de imagens dessa espécie.40

38. cf. Quanto a essa questão os textos propostos a partir da p. 192.


39. Marcelin Berthelot, Coltection des anciens atchimistes grecs, op. cit. p. 120.
40. “La Science et nous” (1941), Sur la Science, Paris, Gailimard, 1966, p. 135.
1 NTRODUÇÂO 23

A dificuldade que hoje também é nossa cm apreciar os limites


e o alcance - filosófico, científico e religioso - de um corpus especi-
ficamente “alquímico” procede, portanto, de um lado, da imprecisão
da fronteira entre a tradição propriamente alquímica c o hermetismo
greco-alexandrino; de outro, do fato de que esse híbrido fez, durante a
Idade Media e o Renascimento, parte tão integrante da cultura ambien­
te que hoje é difícil isolar, no seio de uma nebulosa onde se mesclam
conhecimentos “científicos”, crenças mágico-religiosas, práticas arte-
sanais e médicas, o que depende verdadeiramente da alquimia, e em
reconhecer então aos textos autentificados como tais pelos mestres41 o
caráter necessariamente esotérico e iniciático que eles lhes dão. Essa
pregnância cultural vai pouco a pouco se enfraquecendo até que a
ciência moderna acabe trazendo um desmentido, ao que parece de­
finitivo, à ideia de transmutação, graças à descoberta dos “corpos sim­
ples” por Laurent de Lavoisier (1743-1794), o pretenso núcleo puro c
duro da tradição alquímica iria então desaparecer? Tudo leva a crer que
autênticos Filhos de Hermes - os poucos alquimistas ainda operantes -
perpetuaram a tradição até nossos dias, fechando-se de maneira quase
sectária em torno do segredo de suas práticas que excluem qualquer
inovação interpretativa: testemunham isso os argumentos severos de
Eugène Canseliet sobre as “solicitações enganadoras ou insensatas” pro­
feridas por René Guénon, Cari Gustav Jung e Gaston Bachelard.42 Perdu­
rando no anonimato ou desqualificada pelas ciências, a alquimia tornada
objeto de fantasias, em todo caso, deixou de ser levada por um imaginário
coletivo comparável àquele que garantiu durante séculos sua influência.
Considerada logo no início do século passado pelos ocultistas (Papus,
Eliphas Levi, Stanislas de Gaita) como a mais “sintética” das ciências tra­
dicionais - e portanto a única capaz de reunificar conhecimentos antigos e
ciências modernas -, a alquimia continua ainda hoje a inspirar os projetos
“holísticos” mais ambiciosos, com o risco de ver um neocientismo fazer
causa comum com um sincretismo espiritual dos mais vagos.
Procurar “compreender” hoje a antiga alquimia significa, então,
correr o risco de se encontrar em uma posição perigosa, não sabendo
jamais exatamente se falamos de maneira imprudente de uma prática
cujo essencial só pode escapar a alguém que não seria ele mesmo
“operativo”, no forno pelo menos; ou se sobre o que pensamos poder
41. Eugène Canseliet fala a esse respeito de “algumas dezenas de escritos que formam um
núcleo sólido, em torno do qual parece que se concretizou, desde o século XVII, o ensino
ao mesmo tempo mais corrente e mais cômodo”: LAlchimie expliquée sur ses textes classi-
quesy Paris, J. J. Pauvert, 1972, p. 22.
42. Eugène Canseliet, op. cit., p. 75-91.
24 Filosofar pi-lo Fogo

legitimamente falar de acordo com os milhares de páginas feitas para


ser lidas e relidas,43 exumadas e novamente decifradas, trata exatamente
daquilo com que elas realmente alimentavam o leitor antigo, banhado
em um contexto cultural e espiritual diferente do nosso. Uma vez isso
admitido, de nada serve usar de artifícios dialéticos em vez desse tipo
de aporia: é do interior dos textos que uma nova perspectiva vai se mos­
trar possível, quando a imersão consentida começa a dar seus frutos e
que se tornam perceptíveis os estratos de um ensino cuja tônica e har­
mónica são pouco a pouco audíveis. A verdadeira dificuldade dos textos
alquímicos - impondo, é verdade, o aprendizado de alguns códigos -
reside no estado de espírito que eles exigem do leitor, pouco habituado
a evoluir simultaneamente em um duplo registro, sensível e inteligível,
à imagem de uma arte que busca continuamente entre o Céu e a Terra,
matéria e espírito, o ponto de equilíbrio que preserva a alquimia de ser
unilateralmente materialista ou espiritualista. Ao reencontrar sua voca­
ção mediadora original, a alma então não mais deplora ser, como dizia
Plotino, “anfíbia”, mas ao contrário se regozija com isso, levando em
seu júbilo corpo e espírito, que ela une em uma “exaltação” que, asso­
ciada pelos textos à extração de Quinta-Essência, celebra exatamente o
inverso daquilo que essa palavra ordinariamente diz (exagero, ênfase).
Nesse sentido, e por ter desejado ser tão resolutamente não dualista, a
alquimia foi, sem dúvida nenhuma, “a exata representação da filosofia
de que o Ocidente não quis”,44 mas sobre a qual nada permite afirmar
que ele não mais desejará. Muitos dos sinais hoje perceptíveis são pres­
ságios do contrário, e do aumento da potência de um estado de espírito
em muitos pontos comparável ao da antiga alquimia, sobre a qual um
autor bizantino (Nicéfora Blemmydès) dizia que ela necessita de toda
forma “das balanças, da lenha, de um pequeno forno, e um espírito sutil
e sem limite”.45

0 espírito da alquimia
Sob o nome de alquimia de fato se encontraram ao longo dos sé­
culos uma oração visionária e uma prática (Ora et Labora), sem dúvi­
da nenhuma oriundas dos antigos segredos de ofício, mas que a partir do
século XIII conheceu no Ocidente um desenvolvimento sem precedentes,

43. Um adágio alquímico célebre recomenda de fato: “Ora, lege, relege, et inverties occul-
tuni lapidem” (Nicolas Flamel).
44. Chiara Cristiani/Claude Gagnon, Alchimie et Philosophie au Moyen Âge, Montreal, Ed.
Univers, 1980, p. 80.
45. Marcelin Berthclot, Collections des anciens alchimistes grecs, op. cit. p. 429.
Introdução 25

ao qual a arte das destilações então


florescente devia contribuir com seu
domínio técnico;46 orientando por
isso também uma parte da busca al-
química em direção à famosa abstra­
ção ou extração dc Quinta-Essência
que, sem contradizer o projeto ini­
cial (purificação dos metais), não a
orientava menos para uma finalidade
mais especificamcnte médica (águas
da vida, essências diversas). Ampla­
mente tributária das concepções anti­
gas relativas aos quatro Elementos e
à teoria das exalações, como expostas
por Aristóteles e Proclo (Comentário
sobre Timeu de Platão), a “filosofia”
da alquimia devia se apoiar sobre es­
A arte da destilação: Hieronymus
sas aquisições para desenvolver uma
Brunschwig, Liber de arte distillandi de
visão do crescimento dos metais nas siniplicibus, Estrasburgo, 1500.
entranhas da terra que, associada à da
unidade da matéria já postulada pelos
alquimistas gregos, foi principalmente dinamizada pela embriologia es­
piritual própria a essa arte, que postula que a Natureza só pode aspi­
rar à perfeição, simbolizada pelo Ouro, e isso em três reinos (animal,
vegetal e mineral) de que se compõe a Criação: “Essa crença nos
múltiplos estados do Ser, e na possibilidade de passar de um nível a
outro, constitui o quadro geral de uma tradição cuja origem se perde
na noite do tempo”.47
Convencidos de que sua arte era não somente capaz de “vencer a
miséria” inerente à condição mortal — expressão recorrente nos textos
gregos e árabes -, mas de “descobrir o estado superior das coisas hu­
manas” (O Rosário dos Filósofos, séc. XIV), os alquimistas afirmavam
que para isso era possível a “redução” das coisas compostas e perecí­
veis (mistas), em sua matéria primordial e única (prima matéria), vir­
tualmente incorruptível. Por isso a noção de virtude (virtus, força) se
acompanha da de raiz (radix), determinante em uma arte que pratica

46. Além das obras dc Jean de Rupescissa citadas nessa antologia, cf. por exemplo: Hicrony-
mus Brunschwig, Liber de arte distillandi (1500). Jérome Cardan, De subtilitate (1559).
47. Seyycd Hossein Nasr, “La tradition alchimique”, Sciences et savoir en isIam. trad. fr.
Paris, Sindbad, 1990, p. 267.
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26 Filosofar pf.lo Fogo

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Laboratório alquímico: gravura segundo um desenho de


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Jan Van der Straet, séc. XVI.

a extração das forças latentes, mas vivas da Natureza, até que um sal­
to qualitativo transmute o crescimento natural em “novo nascimento”,
enobrecendo a matéria até então leprosa e vil. A Arte alquímica era,
portanto, obrigada, para atingir esse objetivo, a entrar com a Natureza
em um diálogo feito, durante séculos, de atenção quase religiosa e de
respeito, pelo menos até que o “prometeísmo” agora triunfante faça
prevalecer a única vontade de dominação (exploração sem freio das ri­
quezas naturais) e de revelação sem limites: o “grande esclarecimento”
prometido pela maior parte dos tratados no século XVIII! Por isso o
desaparecimento da alquimia foi programado tanto pela evolução das
ideias para um materialismo mecanicista, inelutável, desde o final do
século XVII, quanto pelo declínio do estado de espírito em que residiu
também o gênio “mercurial” da alquimia. Tal Hermes, conduzindo para
INTRODUÇAO 27

a luz as almas na estadia tenebrosa de Hades, “o espírito da alquimia”


que guiava outrora o operador em sua prática, é convocado a perdurar
em cada leitor de boa vontade, logo derrotado pela sinuosidade labi­
ríntica dos textos. Em cada um deles aqui retidos, como em toda essa
antologia, o leitor descobrirá passo a passo que, à imagem do caduceu
de Mercúrio, o serpentear que lhe é infligido ali se conjuga a uma forma
secreta de retidão.
Colocada sob a égide do “Espírito
Mercúrio”48 e muitas vezes confiada à
graça do Espírito Santo, a arte de Her­
mes de fato só manteve sua operativi-
dade por ter conseguido fazer coexistir,
de maneira aparentemente pouco lógica,
uma forma de resistência esclarecida,
que permite ao Artista proceder a ajustes,
a ponderações tão precisas quanto sutis,
e um abandono à vontade divina, cujas
revelações súbitas fazem então papel de
doação, gratificação sempre desmereci­
das. Também tão complexa se revela a
relação entre prática alquímica e Magia
natural fundada na lei de analogia (mi-
crocosmo/macrocosmo) e na teoria das
“assinaturas”.49 Oferecendo à alquimia Hans Holbein: Marca de impressão
um quadro cosmológico e uma zona de de Johannes Froben, em forma de
intervenção privilegiada - o espaçamen­ caduceu. Basileia. 1523.
to Céu/Terra, corpo/espírito —, a Magia
natural foi realmente, entre os séculos XIV e XVII, a responsável cul­
tural inevitável que permite à alquimia se manter distante das práticas
“sofísticas” e das vulgares magias, sem que essa “visão do mundo”
então dominante seja enquanto tal operativa, e sem que a busca filosofal
pretenda, por outro lado, rivalizar com o Cristianismo. Considerado
pelos verdadeiros Adeptos como um precioso “dom de Deus” (donum
Dei), a realização da Grande Obra não tinha em terra cristã outro obje­
tivo, a não ser o de realizar o equivalente natural e cósmico do “corpo”
de ressurreição do Cristo:

48. cf. Cari Gustav Jung, Der Geist Mercurius, in Essais sur ia symbolique de l 'Esprit, trad.
fr. Paris. Albin Michel. 1991. p. 15-84.
49. Oswald Crollius, Traité des Signatures (1618); Jacob Boehmc, De la Signature des
Choses (De Signatura Rerum, 1621).
28 Filosofar pelo Fogo

Vivificada pelo Cristianismo, a alquimia lhe dava uma aplicação “técni­


ca” no campo “psíquico-cósmico” que ele negligenciava, uma vez que seu
objetivo não era instalar o homem no mundo, mas fazê-lo sair. Assim, a
alquimia não poderia ter sobrevivido no Ocidente sem a prodigiosa efusão
iniciática do Cristianismo [...] Mas, sem a alquimia, o Cristianismo não
teria podido “se encarnar” em uma ordem total.50
Portanto, mais raras do que imaginam alguns Modernos sempre
prontos em socorrer rapidamente a herética perseguida pelo poder reli­
gioso, as disputas entre Cristianismo e alquimia só surgiram quando o
espírito dessa Arte se encontrou desviado tanto sob o efeito do integris-
mo religioso quanto do cientismo. E em termos de colaboração (cuni
laborare, trabalhar com) que será antes necessário considerar a relação
alquimia-Cristianismo; esse “labor comum” não significava evidente­
mente que não tenha permanecido precária, no sentido próprio do termo
— aquilo cuja fragilidade extrema requer preces —, uma aliança delicada
que a todo momento corre o risco de ser unilateralmente desestabiliza-
da, seja em favor de uma filosofia da Natureza que se tornou autossu­
ficiente e conquistadora - quer ela seja então de inspiração vitalista ou
mecanicista; seja em proveito de uma concepção dogmática da salvação
que acabou vendo na autorrealização recíproca do operador e de sua
“matéria”, sob a conduta generosa da Natureza, apenas um perigoso
pelagianismo51 ou um inaceitável narcisismo: aquele mesmo cujo ras­
tro acreditamos encontrar no Corpus Hermeticum que celebra as bodas
do Espírito (Nous) e da Natureza (Poimandrès, 1, 14). Recorrente no
Ocidente como no Oriente, a comparação das virtudes entre a Pedra
filosofal e a santidade contribui, no entanto, para confirmar a existên­
cia de uma afinidade discreta entre ascese mística e prática alquímica,
profunda demais para não ser significativa, como ela o é nos escritos de
Angelus Silesius (1624-1677), que evoca nos seguintes termos a “fabri­
cação de ouro espiritual”: “O chumbo se muda em ouro, o acaso se dis­
sipa quando, com Deus, eu fui mudado por Deus em Deus”.52 O sábio
budista Santideva (séc. VIII) também afirmava sobre a bodhi (espírito

50. Mauricc Aniane. “Notes sur 1’Alchimie ‘yoga’ cosmologique de la chrétienté médié-
vale”, in Yo%a, Science de THomme intégral, Ed. Des Cahiers du Sud, 1953, p. 244.
51. Monge inglês (360? - 422?) propagador de um ascetismo estrito, julgado, no entanto,
herético, por Santo Agostinho em particular, pois valorizava a liberdade humana em detri­
mento, como se teme, da única graça divina.
52. Angclus Silesius, Pèlerin chérubinique, trad. fr. Paris, Aubier-Montaigne, 1943, p. 77
(1, 102). cf. Também 1, 244 : “O amor é a pedra filosofal”: ela separa o ouro da lama, ela
faz do vazio alguma coisa, e me transforma em Deus”. Simone Weil escreve o mesmo em
seus Cahiers: “A santidade é uma transmutação como a eucaristia”, La connaissance
surnalurelle, Paris, Gallimard, 1950, p. 41.
Introdução 29

do despertar e da compaixão) que ela é “um elixir nascido para abolir


a morte do mundo, um tesouro inesgotável para eliminar a miséria do
mundo, um remédio incomparável para curar as doenças do mundo".53
De um grande interesse é a esse respeito a tese de Cari Gustav
Jung, que vê na alquimia o salutar “corretivo" ao Cristianismo, sempre
mais ou menos levado a se desinteressar da salvação da Natureza c mais
ainda da matéria.54 Comprometido pelo desaparecimento da alquimia
da cena cultural ocidental, esse equilíbrio é chamado a renascer graças
à psicologia das profundezas que assimila o processo de individuação
(realização de Si) a uma transmutação? Recolocando assim o homem
no centro de um processo que os alquimistas tinham imediatamente
estendido ao conjunto da Criação, Jung evidentemente se arriscava a
“psicologizar" a alquimia como antes deles tinham tentado alguns au­
daciosos precursores: Mary Anne Atwood (A Suggestive Inquiry into
the Hermetic Mystery, 1850), Ethan Allen Hitchcock (Alchemy and the
Alchemists, 1857) e Herbert Silberer (Probleme der Mystik und ihrer
Symbolik, 1914). Mas é menos em relação ao seu suposto misticismo
que seria necessário criticar Jung, do que o de ter traduzido em termos
de “projeções" (dos conteúdos inconscientes sobre a matéria) a estranha
sincrocinidade que permite ao operador agir simultaneamente sobre a
matéria e sobre seu próprio espírito. Essas dificuldades interpretativas
confirmam, em todo caso indiretamente, que o dogma cristão da En­
carnação encontrou na alquimia seu fiador operativo, e que tanto uma
quanto outra têm à sua maneira tentado superar, transmutar, transfigurar
a “matriz" metafísica essencialmente dualista legada pelos gregos e que
espontaneamente foram ignoradas pelas práticas alquímicas asiáticas
próximas da Advaita Vedanta, do Budismo e do Taoismo. Essas formas
de pensamento não dualistas além do mais permaneceram estranhas ao
esquema mítico Criação-Queda-Reintegração que também não deixou
de moldar, no Ocidente cristão, o cenário redentor da matéria “posta
em Obra" pela alquimia, e que se tomará predominante entre os teó-
sofos (Jacob Boehme, Karl von Eckarthausen), vendo na regeneração
espiritual o equivalente verdadeiro daquilo que os alquimistas nomeiam
transmutação: “Se compreendemos a alquimia por essa liberação da
maldição e pela evolução da bênção na natureza exterior, isso não é
uma brincadeira, mas um dever da parte do homem”,55 afirmava Franz

53. Santideva, La Marche à la Lumière, trad. fr. Paris, Les Deux Océans, 1987, p. 37.
54. Cari Gustav Jung, Psychologie et alchimie, trad. fr. Paris, Buchet-Chastel, 1970, p. 33.
55. Frans von Baader, Fermenta cognitionis, trad. fr. Paris, Albin Michel, 1985, p. 57-58.
30 Filosofar pelo Fogo

von Baader (1765-1841), assumindo assim plenamente o título de Filó­


sofo "per ignem".
Uma analogia bastante comum, pelo menos em certos textos
considerados os mais “místicos”, quer aliás que o ternário alquímico
Mercúrio-Sal-Enxofre seja o equivalente natural e material da Trinda­
de cristã: mas em que ordem exata enunciar esses Princípios, que faça
então do um, à imagem do Filho, o mediador dos dois outros? Será que
uns em relação aos outros não são antes recíprocos intercessores? Por
isso não poderíamos dizer simplesmente, como muitas vezes lemos,
que o Sal age entre Enxofre e Mercúrio como uma espécie de mediador
secreto, tanto é verdade que o Sal aparece também em inúmeros textos
como o “corpo” ígneo da Pedra filosofal. Pois o surgimento tardio desse
ternário, contemporâneo de Paracelso e de sua escola - de Gérard Dom
muito especialmente (c. 1530-1584) -, não poderia levar a esquecer que
cada um dos dois “Princípios” (Enxofre e Mercúrio) deveria encontrar
em si mesmo e em seu parceiro o “terceiro” - a partir de então necessa­
riamente incluído - que a formulação binária parecia no início ignorar
ou excluir. De tal forma que a teoria do “Mercúrio sozinho”, geralmente
atribuída ao Pseudo-Geber e a Petrus Bonus (séc. XIV), não poderia ser
ela mesma apenas uma variação, em seguida abandonada, em uma linha
melódica tão estável que já deixava ouvir o famoso axioma de Maria,
a Profetisa: “Um se torna dois, dois se tornam três, e do terceiro nasce
o um tanto como o quarto”.56 Pois se a “força da alquimia” de qualquer
maneira reside de fato apenas no Mercúrio dos Filósofos, como pro­
clamou bem cedo Alberto, o Grande (1193-1280) em O Composto dos
Compostos, é porque a substância mercurial, por excelência proteifor-
me, é então considerada ou como prima matéria em que estão latentes
todas as virtualidades, entre as quais a do Enxofre vivo; ou, após prepa­
ração, como Mercúrio duplo (ou hermafrodita) em que foi consumada e
fixada a união dos dois Princípios (Rei/Rainha, Sol/Lua).
De toda maneira permanece determinante na conduta da Obra a
extração recíproca que, livrando primeiramente o mercúrio vulgar de
seu enxofre “fedorento” e ardente, torna capaz o Enxofre puro de ser
por sua vez “vivificante” para seu Mercúrio. Por isso as famosas
“Bodas químicas” se tornam possíveis por meio dessa dupla extra­
ção que toma a forma de um violento, mas amoroso, entrecruza-
niento: do oculto e do manifesto, da potência e do ato, do fixo e do
volátil. Realizada graças à putrefação dos corpos (Nigredo) esten­
dida em um leito nupcial que também é seu túmulo, a “conjunção
56. Citado por Cari Gustav Jung. Psychologie etAlchimie, op. cit. p. 32.
INTRODUÇAO 31

dos opostos” (coincidentia oppositorum) não tem nada dc erótica, no


sentido moderno do termo,57 uma vez que a morte dos dois esposos
prefigura sua ressurreição, coincidindo então com a estabilidade reen­
contrada da matéria que, sublimada c fixada, é então denominada Rcbis
(Coisa dupla), Ouro, Pedra. Procedimento complexo, como se vê, em
que se encontram os planos simbólico e técnico em virtude de uma
radicalidade própria ao espírito alquímico, infinitamente desejoso de
descobrir qual raiz (radix) única e incorruptível religa, no próprio seio
da matéria, a Natureza putrescívcl à incriada, portanto, nesse caso, a
esse Deus que a cristandade venera: “Se, como dizem alguns, a natureza
de todos os Minerais é Prata-viva e Enxofre, tome, portanto, a raiz para
chegar aos ramos”, aconselhava Nicolas Grosparmy.58
Mas o espírito alquímico se mostrou tão cxccpcionalmentc en­
genhoso em empregar, a partir dessa certeza, uma retórica cm que se
interpenetram tecnologia e poesia; essas técnicas dc extração dando à
alquimia sua tonalidade operatória própria em
que dominam alguns gestos tão precisos quan­
to generosos: cozinhar, dissolver, sublimar, tin­
gir... Tornada operativa, essa gestualidade vai
paradoxalmente ao encontro das exigências de
uma “poiética” (poein, criar) em que cada um
desses atos, continuamente relacionado à tal
raiz, parece jamais acabar de cavar, de escavar
até o fundamento, para melhor fazer renascer
o que não teria sem isso deixado de vegetar na
imaturidade de uma parturição inacabada. A
prática alquímica foi a esse respeito algo além de
uma constante piedade? Mas uma piedade cuja
“catolicidade” - o Bálsamo ou o Elixir são mui­
tas vezes chamados “católicos” - depende nesse A Arte secreta de Hermes’.
caso menos de uma obediência incontestável à Aurora consurgcns. séc. XV,
Igreja de Roma do que a esse sentido reencon­ Berlim. Codex germanicus.
trado da universalidade (catholiciis), solidamente
enraizado dessa vez em uma materialidade transfigurada: “A alquimia,
comparada à nossa ciência positiva, única admitida e ensinada hoje, é
57. É com efeito sobre esse estranho acoplamento que parece estar focalizado o imaginário
contemporâneo ávido de sensações inéditas. Esse casamento iniciático deu, por outro lado,
seu título à famosa narrativa de Johann Valentia Andreae, As Bodas Químicas de Christian
Rose-Croix (1616), de quem nenhum texto foi retido aqui; as longas e minuciosas narrações
se prestam mal ao recorte temático requisitado por uma antologia.
58. Le Trésordes trésors (1449), reedição Paris, Rctz, 1975, p. 121.
32 Filosofar pelo Fogo

uma química espiritualista, porque nos permite entrever Deus por meio
das trevas da substância”, dizia Fulcanelli.59 Por isso, quando os alqui­
mistas falam de sua Matéria como de seu Fogo ou de sua Água, existe
aí muito mais do que um fechamento sobre um segredo difícil de desco­
brir e que tudo convida a guardar de forma zelosa. É bem de um gesto
s de apropriação que se trata, porém mais próximo de
’z uma imitação - a do gesto criador divino na maior
parte do tempo - do que de uma mimesis dominada
pela irreflexão ou pelo pragmatismo; a lógica parado-
à I xal da “posta em Obra” desejando de fato que se torne
“nossa” qualquer matéria cujo trabalho de natureza
alquímica conseguiu suspender e atenuar a materiali­
FpLato Chymi, dade por demais pesada, sem deixar de paralelamente
|cis. reduzir nosso sentido por demais afiado da proprieda­
Platão, Químico: de. Indício de um repatriamento, essa palavra (nosso)
Antes, o ovo apodre­ também se torna de uma alienação de si que dá à Opus
ce, depois, o pintinho Chemicum sua coloração mística e soteriológica. Por
é engendrado, outra isso inúmeros alquimistas mostraram, nos próprios
vez do ovo corrompi­ títulos dados a seus tratados, essa vontade de ir ao
do nasce o animal. coração das coisas para delas extrair uma “essência”
benéfica: A Flor das flores (Fios florum), O Caminho dos caminhos
(Semita semitce), O Segredo dos segredos (Secretum secretorum).
Que os alquimistas se tenham reconhecido como autênticos filóso­
fos não depende portanto de um mal-entendido, mas de outra concepção
do “filosófico” mais precisamente dado pelo epíteto filosofal, de empre­
go tardio: “Amante de sabedoria, que é instruído das operações secretas
da Natureza, e que imita seus procedimentos para conseguir produzir
coisas mais perfeitas do que as da própria Natureza”, resumia Dom
Pernéty em seu célebre Dicionário mito-hermético (1758). Um desses
“filósofos” até mesmo se aventurou a apostrofar Platão nos seguintes
termos: “Eu vos lamento, senhor Platão. Realmente gostaria que vós
tivésseis possuído o que eu possuo, pois vós teríeis uma bela disposição
para vos tornar um segundo Hermes”.60 Concebemos o que semelhante
programa pode ter de chocante para os espíritos modernos, bastante dis­
tanciados, desde Descartes, de tal visão da Natureza e que não veem
mais qual senso “crítico” pode bem, por meio de tais operações,
ainda se exercer; o mimetismo evocado lhes parecendo antes remeter

59. Fulcanelli, Les Demeuresphilosophales. Paris, J. J. Pauvert, 1964,1.1, p. 80.


60. Le Parnasse assiégé ou ia guerre déclarée entre les Philosophes anciens et modernes
(1697), atribuído ao senhor F. A.D. M., p. 76.
I ntroduçao 33

a alguma obscura “participação” mágico-religiosa ou bem, mais pro­


saicamente ainda, a uma tecnologia cuja verdadeira ciência, positiva,
permite demonstrar a ineficácia.61 E, portanto, em um sentido diferente
deste dado pelos filósofos modernos à palavra “especulação” que seria
preciso compreender a definição paracelsista da filosofia inspirada no
Speculum alquímico: “A ciência c o conhecimento total daquilo que dá
ao espelho seu brilho”.62 Por isso não podemos falar verdadeiramente
de “filosofia” da alquimia a não ser que a visão do mundo subjacente
a essa Arte caminhe junto com a atualização de uma autorregulaçào
retificadora representando, no plano operativo, um papel tão compará­
vel àquele da racionalidade no discurso filosófico. Não sc trata cm ne­
nhum caso de recuperar o livre uso de suas “representações” graças ao
distanciamento crítico; o discurso alquímico mantém paradoxalmente
sua “racionalidade” própria, já que ele consegue articular em um duplo
alcance (material e espiritual) as diferentes fases de uma “exposição”
cujo poder de transformação ultrapassa também o da pura e simples
narrativa mítica, a que os primeiros historiadores dessa Arte pretende­
ram reduzir o percurso, necessariamente iniciático, empreendido pelos
alquimistas.
Essa é sem dúvida a condição - a que
satisfaz, aliás, o trabalho de decantação rea­
lizado pela operação alquímica - para que as
noções de aumento e de multiplicação, asso­
ciadas às virtudes do pó dito “de projeção”,
não sejam consideradas como o fruto somen­
te da exaltação: desse entusiasmo prolixo e
contagioso, repugnante ao espírito filosófico
pronto a colocar os alquimistas, bem como
os teósofos aliás, entre os “Schwânner” [en­ “/I rosa dá mel às abelhas
tusiastas] e outros sonhadores visionários Robert Fhidd, Summun Bonum,
com espírito fanático ou nebuloso.63 Não Frankfurt. 1629.
podemos deixar de lembrar a esse respeito
que o enxamear (do verbo Schwãrmen), tão criticado pelos filósofos
61. Nào foram retidos na presente antologia, pois muitas vezes estranhos ao próprio corpits,
os debates e às vezes vivas polémicas relativas à realidade da transmutação; a questào de
sua possibilidade sendo, ao contrário, inseparável da própria “filosofia” alquímica. cf. sobre
essas questões Bernard Husson, Transmutations alchiniiques, Paris. Ed. J 'ai lu. 1974.
62. Liber Paragranum, in CEuvres médicales schoisies, trad. Bernard Gorceix, Paris, PUF,
1968, p. 44.
63. cf. cm particular as páginas consagradas por Hcgel a Jacob Boehme em suas Leçons sitr
1’histoire de la philosophie (t. 6, p. 1297-1378); ou o ensaio que Kant consagrou a Emma-
nuel Swedenborg (Rèves d'un visionnaire. 1766).
34 Filosofar pelo Fogo

com Schwârmerei [êxtase] romântico, foi, ao contrário, reivindicado


pelos alquimistas como uma técnica própria para expressar a rigorosa
fecundidade de sua Arte, a qual só pode de resto pretender aumentar
e multiplicar apenas o que antes ela purificou ao separar e transmutar
reciprocamentc “naturezas” que sem ela só teriam se contrariado, se
aniquilado. Assim, constatando que não conhecemos as virtudes ocul­
tas dos medicamentos “antes que se tenham separado as coisas impuras
c más das boas por meio do fogo”, Basile Valentin (séc. XV?) concluía:
“As abelhas nos dão fé dessa verdade quando por meio de sua indústria
elas separam o doce mel das flores e das plantas (que algumas vezes são
venenosas e amargas), do qual às vezes nos servimos para vários usos,
tanto em medicina quanto para a alimentação. Podemos, no entanto,
tirar do mel, que é doce e agradável, o mais terrível e o mais corrosivo
dos venenos”.64 Assumindo assim a perigosa contiguidade do veneno e
da teríaca, fonte de qualquer operatividade de ordem filosofal, os Filó­
sofos “por meio do Fogo” foram tudo, menos incorrigíveis sonhadores
travestidos de incendiários irresponsáveis.
Que a abelha possa ser a encarnação de outras virtudes além das
humildes e gregárias, Rainer Maria Rilke (1875-1926) se recordará em
uma célebre carta em que ela se torna, sob sua pena inspirada, a operá­
ria oculta da transmutação poética: “Somos as abelhas do invisível. Nós
pilhamos completamente o mel do visível, para acumulá-lo na grande
colmeia de ouro do invisível”.65
Inerentes à “filosofia” da alquimia, essas múltiplas questões só
poderiam ser aprofundadas aqui em detrimento do corpus tradicional
cuja restituição, sob forma antológica, necessariamente prevalece sobre
os debates modernos e contemporâneos relativos ao estatuto e à finali­
dade dessa arte.66 A clivagem é em todo caso muito nítida entre os comen­
tadores contemporâneos que, adotando os preconceituosos cientistas do
século XIX, continuam a ver na alquimia apenas uma química rudimentar

64. Le Char trioniphal de 1'Anfinioine (1604). Reedição Paris, Retz, 1977, p. 124-125. No
livro II de Les douze Clefs de la Philosophie (1* Ed. 1599). Basile Valentin escreve igual­
mente : “As abelhas também produzem mel das melhores partículas, c com ervas e flores;
e assim de todas as coisas, das quais a chave e as principais causas estão na putrefação de
onde provêm todas essas espécies de separações e transmutações”, (p. 144).
65. Carta a Witold von Hulewicz. (Euvres, t. III, Correspondance, trad. fr. Paris, Éd. du
Seuil. 1976, p. 590.
66. cf. a esse respeito: Françoise Bonardel. Philosophie de 1’alchiniie - Grand (Euvre et
ntodernité (Paris, PUF. 1993). no qual se demonstra que “o espírito de alquimia” continua
inspirando muitos pensadores e artistas modernos e contemporâneos; a lógica paradoxal e
a simbólica da Arte de Hermes também representando um papel mediador entre religião
e filosofia.
Introdução 35

e arcaica; e aqueles para quem a Arte de Hermes permanece um enig­


ma cujo deciframento requer certamente novas técnicas interpretativas,
mas exige ainda mais uma hermenêutica específica implicando em pri­
meiro lugar atenção e respeito. A questão que se coloca neste caso é de­
terminar em que configuração cultural e espiritual mais ampla integrar
a alquimia: a uma Tradição supostamente primordial, como propõe com
algumas nuanças René Guénon, Titus Burchardt ou Julius Evola (La
tradizione ermetica, 1931), com o risco de se opor a respeito do exato
papel da alquimia em relação à iniciação? Raciocinando em contrapar­
tida como historiador e antropólogo das religiões c não como “tradicio­
nalista”, Mircea Eliade também se mostrou preocupado em restituir a
esse tecido fragmentado uma unidade, mas oriunda dessa vez da rela­
ção, por demais universal para não ser intcmporal, do homo religiosas
com o sagrado. Insistindo na continuidade entre certos roteiros iniciá-
ticos arcaicos e o ritual sacrifical próprio à alquimia, Eliade certamentc
mostrou de maneira muito convincente cm que essa mudança radical
de estatuto existencial se aparentava a uma “transmutação”, sem deixar
de concluir de maneira mais contestável que “os alquimistas, em seu
desejo de se substituir ao Tempo, anteciparam o essencial da ideologia
do mundo moderno”.67
Em relação a Cari Gustav Jung, que muitas vezes oscila entre o ri­
gor da experimentação psicológica e uma visão “gnóstica” da salvação
ancorada em uma verdadeira filosofia da Natureza, ele diz ter desco­
berto na alquimia uma prefiguração da psicologia das profundezas: “As
visões alquímicas provêm em grande parte de pressuposições arque-
típicas inconscientes que também servem de base para as representa­
ções de outros campos do espírito”.68 Integrando portanto a alquimia a
uma arquetipologia ainda mais universal, Jung não pôde, no entanto, se
esquivar de sublinhar sua imaturidade, pelo menos em relação às des­
cobertas mais recentes e mais exigentes em matéria de cientificidade:
“A filosofia alquímica, deformada pelos mal-entendidos concrctistas de
um espírito ainda grosseiro e não diferenciado, não chegou a uma for­
mulação psicológica de suas constatações e de seus problemas, ainda
que uma intuição, que não se poderia desejar mais vivaz, das verda­
des fundamentais, tenha submetido a paixão dos pensadores da Idade
Média aos problemas da alquimia”.69 Mas os textos canónicos também

67. Mircca Eliade. Forgerons et alchimistes, Paris, Flammarion. 1977, p. 154.


68. Cari Gustav Jung, Les Racines de la conscience, trad. fr. Paris. Buchet Chastel, 1971,
p. 371.
69. Dialectique du Moi et de Finconscient, trad. fr. Paris, Galliinard (Idées), 1964. p. 208.
36 Filosofar pelo Fogo

convidam a ver na alquimia o arquétipo de toda criação — uma espécie


de poiética superior, em suma o processo alquímico é ainda hoje sus­
cetível de instigar o filósofo “a interpretar”, como afirmou um dia Paul
Ricoeur sobre os símbolos (1952). Muitas vezes explorado, repertoria-
do, interpretado em razão de sua riqueza iconográfica e de sua com­
plexidade semântica, o simbolismo alquímico, ainda assim, só pode
ser interpretado se permanecer integrado à própria dinâmica da Obra
que, orientada pelo desejo de transmutação, induz uma lógica diferente
daquela de uma simples evolução. Para além de todo simbolismo, é a
própria essência do ato poiético que deve ser então assimilada a uma
transmutação alquímica, como sugere Yves Bonnefoy: “A poesia é um
lugar em que podemos entrar, um lugar em que uma voz, como Fénix,
morre por ser uma língua, mas renasce para ser fala”.70

Uma metafísica no imperativo


Propondo-se em 1885 a “descobrir o mistério das origens da al­
quimia”, o químico Mareeiin Berthelot (1827-1907) empreendeu pela
primeira vez mostrar “de que maneira ela se vincula ao mesmo tempo
aos procedimentos industriais dos antigos egípcios, às teorias especula­
tivas dos filósofos gregos e às fantasias místicas dos alexandrinos e dos
gnósticos”.71 Era grande, portanto, o risco de concluir apressadamente
que uma associação tão compósita, até mesmo heteróclita em relação
à ciência moderna, demonstrava indiretamente a ilegitimidade de uma
pseudociência desprovida de qualquer legitimidade filosófica e religio­
sa, e respondendo apenas às aspirações ansiosas de uma época de deca­
dência em busca de “Gnose” (conhecimento revelado e salvador). Ora,
sem deixar de lado suas exigências intelectuais de erudito, Berthelot
não pôde dissimular sua nostalgia de semelhante “saber” unitário cuja
ausência lhe parecia privar de significação vital muitas das descobertas de
seu tempo. Desprovido de semelhante intuição simpatizante, Berthelot te­
ria conseguido conduzir bem a imensa tarefa de coletânea e tradução
do corpus alquímico grego e árabe? Não vendo, em contrapartida, no
misticismo helenístico senão uma forma de desordem espiritual em
consequência do declínio do racionalismo grego, o padre Festugière,
por sua vez, acabou concluindo que a alquimia foi apenas “pretexto
para especulações pseudofilosóficas ou a fantasias místicas”72. Assim

70. Yves Bonnefoy, Le Nuage rouge, Paris, Mercure de France, 1977, p. 265.
71. Les origines de / alchimie (1885), reimpresso Osnabruck, Otto Zeller, 1966, p. 2.
72. André-Jean Festugière, La Révélation d'Hermes Trismégiste, Paris, Gabalda, 1944-
1954,1.I, p. 239.
INTRODUÇAO 37

descobrimos que a alquimia pode ter sido entre eruditos a ocasião de


um debate, não entre ciência e teologia, como bem poderíamos esperar,
mas entre duas concepções opostas da “gnose”, verdadeiro entrave do
discurso filosófico e erudito. Incontestavelmente “gnóstica” por seu de­
sejo de conhecimento integral e salvador revelado por um Deus carido­
so ao Adepto piedoso e laborioso, a alquimia □si
postulando a possível redenção da matéria não
adotou em nenhum momento a visão dramáti­
ca das gnoses dualistas hclcnísticas (Valcntin,
Basilide) em relação às quais não havia outra
salvação a não ser reganhar o Pleroma, aban­
donando o mundo ao seu estado miserável e
decaído.
1
Nada mais significativo a esse respeito
do que a maneira pela qual pôde ser aborda­ A faculdade de criar vem
da e tratada pelos comentadores a questão da da adoração de Deus,
natureza e função da receita no seio dos textos não de tua força.
alquímicos: a receita artesanal constituiria o
fundamento arcaico e prosaico de uma prática de ofício (ourivesaria,
vidraçaria, tanoaria, metalurgia), que só se tornou “alquimia” quando a
ela se enxertam - mas em virtude de que acidentes históricos ou tendên­
cias significativas? - especulações “místicas” sobre a salvação comum
da matéria e do operador? A receita é. portanto, segundo a expressão
de Robert Halleux, o “menor elemento em que um texto alquímico se
deixa em última análise se decompor”?73 Ora. admitir a existência, em
si inegável, de semelhante núcleo operatório, pode de fato acabar de­
monstrando que a alquimia foi apenas excrescências e extravagâncias
variadas, tornadas indefensáveis no plano científico e inadmissíveis no
plano religioso, em torno do que foi “na origem” apenas - mas cm que a
História assim compreendida teria necessariamente nessa arte valor de
origem? - uma modesta qualificação própria das pessoas de ofício que
aliás não poderiam se impedir de sonhar, de especular. Daí a tentação, à
qual cederam inúmeros historiadores e comentadores no século XIX,74
de livrar de trás para a frente a alquimia de suas impurezas acrescenta­
das e de lhe fazer reencontrar, por amputações sucessivas, a saudável
73. Les Textes Alchimiques, Brcpols, 1979, p. 74.
74. Com algumas notáveis exceções: Karl Christoph Schmieder. Geschichte der Atchemie
(Halle, 1832), em que é considerada a eventual revisão do processo feito à alquimia pela
ciência; Arthur Edward Waite, Lifes ofAlchemystical Philosophers (1888), em que é procu­
rado o termo adequado que pode designar a dimensão ao mesmo tempo material e espiritual
própria à alquimia.
38 Filosofar pelo Fogo

aparência de uma técnica hoje ultrapassada: uma prática da “limpeza”


radicalmente oposta à praticada pelos alquimistas que convida a atra­
vessar a opacidade aparente das coisas - a filosofia teve desde sua pró­
pria origem outra deontologia? - ou ainda insistindo, como Michael
Scndivogius (dito O Cosmopolita), sobre a necessidade de não julgar
seus escritos “segundo a casca e o sentido exterior das palavras, mas
antes pela força da Natureza”.75
Observemos primeiramente que ainda nos é desconhecido o modo
de propagação que, a partir desse “menor elemento”, artificialmente
isolado pela análise, permite essa “síntese” nomeada alquimia e de que
é preciso realmente admitir que ela teve a vida dura em relação ao mo­
numental corpus acumulado ao longo dos séculos: John Ferguson re­
censeou perto de 22 mil títulos conhecidos! Um corpus sobre o qual é
difícil acreditar que tenha sido produzido apenas por contágio, inflação,
amplificação a partir de uma confusão inicial entre aurifiction (dourado
superficial) e aurifaction (crisopeia, transmutação). Quem, por exem­
plo, ousaria seriamente afirmar que a supremacia do Cristianismo
sobre as outras “gnoses” mais ou menos sectárias da época e depois
sua extraordinária difusão pelo mundo só são devidas a uma simples
notícia - a morte espetacular de Cristo na cruz - e então à habilidade
retórica de seus discípulos? Será então fácil concordar com Robert Hal-
leux que “a ideia de transmutação estava em germe em um pensamento
que admitia a unidade fundamental da matéria e que considerava qual­
quer técnica como uma mimesis da natureza, suscetível de encontrar
e até mesmo superar seu modelo”.76 Concordaremos com isso, porém
para observar em seguida que nada está dito sobre a passagem entre
essas diversas técnicas e essa filosofia precisamente, postulando a uni­
dade da matéria e a onipresença de uma Natureza habitada, polarizada
por um desejo de transformação que a destina à perfeição. Também não
há nada sobre o fato de que os alquimistas tenham, tanto quanto Platão
mas para tirar outras conclusões, meditado sobre a noção de mimesis a
ponto de fundar toda a deontologia das relações entre o Artista e a Natu­
reza sobre a descoberta de uma justa distância entre dominação brutal
e imitação ímpia. A questão do papel inaugural - mas em que sentido?
- da receita artesanal oferece primeiramente a ocasião de lançar alguma
luz sobre um tipo de amálgama que se tornou ao que parece constituti­
vo da própria noção de “alquimia”, como se a suposta irracionalidade

75. Nouvelle Lumière chyniique (1639), reedição Paris, Retz, 1971, p. 34.
76. Les Textes alchimiques. op. cil. p. 63.
INTRODUÇAO 39

dessa arte tivesse contribuído para tornar impossível qualquer distinção


entre contágio e propagação, difusão e expansão.
Antes de ser cientificamente explicável e portanto em parte ao
menos dominável, o contágio foi muitas vezes representado como um
fenômeno “oculto” tratando mais espccificamente todos os conteúdos
“irracionais”, cuja extrema inflamabilidade atestaria a potência da ima­
ginação que neles dominaria a razão.77 De modo geral, são mais todas
as teorias e práticas esotéricas que foram a esse respeito suspeitas, não
sem razão às vezes, de propagar o incêndio sem produzir um dedo de
verdadeira ciência ou de autêntica filosofia. Ora, fundada na lei de ana­
logia e de simpatia (ou antipatia) própria a todas as “magias” (negras ou
naturais), a alquimia ofereceria por isso mesmo um campo privilegiado
a esse modo de propagação, caracterizando desde então tanto suas prá­
ticas internas quanto sua difusão oculta durante séculos. Infundada em
relação à “filosofia” alquímica, essa inquietude, que cm geral emana de
um racionalismo um pouco sectário, tem, no entanto, contribuído para
esvaziar a noção de alquimia de qualquer significação precisa em pro­
veito de um amálgama inofensivo em que podem conviver sem se tocar
todos os lugares comuns do esoterismo. Que mistura das qualidades,
que casamento dos gêneros não é a esse respeito uma “alquimia”?
É bem contra esse tipo de contágio que Cari Gustav Jung alerta,
falando então de inflação psíquica e de contaminação pela irrupção in­
tempestiva dos conteúdos inconscientes. Poderíamos então esperar que,
ao desenvolver a analogia entre as etapas sucessivas de sua Psicologia
da Transferência e a iconografia do Rosário dos Filósofos (séc. XIV),
Jung tivesse reconhecido que os alquimistas também dominaram esse
risco. Ora, nem por isso ele deixa de concluir pela “imaturidade do
espírito alquímico”, na medida em que “a alquimia projetava a psique
inconsciente na substância química”.78 A meditação alquímica teria,
portanto, principalmente aos seus olhos, consistido em projeções de
conteúdos inconscientes sobre uma matéria ela mesma em fermenta­
ção. Cabia, portanto, à psicologia das profundezas proceder à prévia
retirada dessas projeções para permitir ao processo de individuação
realizar o equivalente psicológico de uma transmutação alquímica. Sig­
nifica dizer que o pó dito “de projeção” operando a multiplicação das
virtudes da Pedra não tenha sido senão o agente de semelhante inflação?
77. Paracelso foi o grande teórico de semelhante inflamação imaginária: <•/. “La force de
1’imagination”, Sàmtliche Iterke (reimpresso em Leipzig, 1984), t. IV, p. 265-273 e 308-
310. Ver também o texto de Oswald Crollius citado p. 178-179 e Françoise Bonardel,
Lirrationnel, Paris, PUF. 1996. reed. 2005.
78. Psychologie du transferi, trad. fr. Paris. Albin Michel. 1980. p. 52
40 Filosofar pelo Fogo

Como nesse caso reconhecer nas operações nomeadas pelos alquimis­


tas multiplicação e aumento outra virtude além da de semear a confu­
são quanto aos poderes reais de sua Pedra e à possibilidade mesma da
transmutação?
Mas a tradição à qual dizem pertencer os alquimistas não teria,
no entanto, podido se perpetuar quase intacta quanto ao fundo se sua
transmissão não tivesse sido assegurada ao longo dos séculos por seus
Adeptos e apoiada por uma corrente de pensamento que, deixando de
ser dominante no século XVIII, permaneceu no entanto subjacente. A
dificuldade intcrpretativa própria à alquimia reside a esse respeito nas
lacunas de sua história, deixando por isso a palavra à via de transmissão
dita “iniciática” - aliás única legítima aos olhos dos Adeptos mas no
essencial incontrolável de um ponto de vista estritamente histórico, se
for verdade que mestre e discípulos estão desde o início unidos pelo selo
do segredo. A própria oralidade desse procedimento convida de fato a
nào mais considerar a massa, no entanto considerável, de textos, a não
ser como a superestrutura visível de uma arquitetura oculta, que desde
o início privilegia inúmeras fabulações: riquezas súbitas de origem des­
conhecida, atestando indiretamente a realidade da transmutação (lenda
de Nicolas Flamel), perturbadora ubiquidade de alguns Adeptos que
reivindicam um “cosmopolitismo” suficientemente misterioso (Sendi-
vogius, Fulcanelli) para que se possa supor que eles eram na verdade
imortais (Saint-Germain). E evidente que, se a realização de uma anto­
logia exclui que a esse respeito se tome partido, ela também impõe que
se responda a esta dupla exigência: respeitar a visão “tradicional”, única
capaz de restituir seu sentido aos textos, sem deixar de ignorar que eles
também são frutos de uma história, a qual temos, no entanto dificuldade
em pensar que tenha podido se constituir tendo como base unicamente
“projeções” tão imaginárias quanto incontroladas.
No entanto, resta uma questão ainda mais complexa: a da difusão
de um ensino de natureza esotérica ao qual correspondem analógica­
mente, no caso da alquimia, as noções dificilmente conceitualizáveis
de aumento e de multiplicação, que já foram mencionadas aqui. Mas
quem poderia jamais dizer verdadeiramente de que “leis” se propaga­
ram as grandes religiões: por contágio ou por difusão? Quem jamais
compreenderá racionalmente de que é feita a difusão de um autêntico
mestre espiritual ou de um santo, realizando em torno de si algumas
revoluções dos corações e almas em muitos aspectos comparáveis
aos “milagres” (transmutações) esperados da Pedra dos Sábios e da
Medicina universal? Filosofando “por meio do Fogo”, os alquimistas
INTRODUÇÃO 41

certamente nào se esquivaram do risco de incêndio (contágio) ao qual,


pelo contrário, se expuseram intencionalmente. Em contrapartida, eles
subjugaram sua força destrutiva por um encerramento (fechamento do
vaso) e depois por uma operação de fato misteriosa (inversão do veneno
em remédio), permitindo à difusão de sua matéria ser não apenas ino­
fensiva, mas benéfica. Ora, esses diferentes procedimentos não estão
de certa maneira em germe nesse gênero bárbaro - em relação aos usos
civilizados do pensamento - que foi, na alquimia, a receita de ofício?
Longe de ser apenas um resíduo indivisível — uma espécie de “corpo
simples” do pensamento! esse “menor elemento” não seria em si
portador de uma força multiplicadora, cuja lição bastante modesta os
alquimistas teriam sabido frutificar e “aumentar” até quase ao infinito?
De fato desejamos que as receitas tenham sido no início apenas
“simples fórmulas técnicas, no imperativo singular, sem qualquer traço
nem de filosofia nem de mística” (André-Jean Fcstugière); e que de sua
reunião sejam oriundas essas Practica que constituem, com as Theorica^
os dois pilares da maioria dos tratados, entre os séculos XIII e XV
muito especialmente. Mas também devemos constatar que são justa­
mente as receitas, ou qualquer formulação que se assemelhe por um
tom às vezes profissional e persuasivo, que, isoladas de seu contex­
to, muitas vezes fascinarão os espíritos modernos, como as muitas
sequências encantatórias às quais alguns foram até mesmo tentados
a reduzir a alquimia. Assim André Breton dizia se comprazer muito
particularmente com esta, em que reconheceremos a formulação con­
densada das operações que permitem a realização da Grande Obra: “A
cabeça do corvo desaparece com a noite; de dia, o pássaro voa sem
asas, ele vomita o arco-íris, seu corpo se torna vermelho, e em seu
dorso sobrevive a água pura”.79 Aliás, inúmeros estudos consagrados
à linguagem alquímica reterão principalmente seu caráter desconcer­
tante e labiríntico,80 impondo assim que o vínculo espontaneamente
estabelecido entre hermetismo e ocultação é desprovido de qualquer
sentido aparente. Mas será que nos questionamos o bastante sobre
outros aspectos dessa “magia” verbal, em suas relações com uma tec-
nicidade operatória da qual a receita é realmente o elemento original?

79. Le Surréalisme et la Peinture, Paris, J-M. Place. 1975, p. 194.


80. A de Michel Butor, em especial, no mais bastante inovadora quando surgiu: «fcL*alchi-
mie et son langage”, Répertoire, Paris, Ed. Minuit, 1960, p. 12-199.
42 Filosofar pelo Fogo

Tomai o açafrão, o cártamo, a flor de oechomene, a quelidônia, uma medi­


da de açafrão e a aristolóquia; diluí no vinagre bem forte e fazei um licor,
de acordo com o uso; depois deixai o chumbo se embeber no ruibarbo, e
vós encontrareis o ouro. Que a composição também contenha um pouco de
enxofre. A natureza domina a natureza.81
Pois a ordem dada: tomai, cozinhai, reduzi, aplicai o mordente...
certamente tende a subjugar os espíritos que, dos componentes evoca­
dos e das operações a ser efetuadas, só percebem a aura “poética” mas
com certeza insensata. Assim podemos efetivamente ler os papiros de
Leyde ou de Estocolmo, ou qualquer outra coletânea técnica,82 como
uma rapsódia irregular (as receitas ali são curtas e incisivas) formada
por uma suntuosa liga - uma espécie de bronze verbal - entre raridades
naturais (azurita, quelidônia, malaquita, orcaneta, sandáraca...) e opera­
ções enigmáticas. Mas podemos igualmente nos perguntar se a receita
não se torna “alquímica” por ter sabido explorar os recursos de uma
metafísica “do ser no imperativo”, segundo a feliz fórmula de Henry
Corbin83 que assim qualifica o teor espiritual e o estilo de algumas gno-
ses islâmicas. Com certeza uma metafísica ainda muito rudimentar na
formulação da ordem dada, mas a que a alquimia teria sabido pouco
a pouco encontrar um correspondente mais nobremente “titulado”, e
por isso somos levados a reconhecer o equivalente filosofal do gênero
“protréptico” (exortação) cultivado pelos Antigos (Aristóteles, Jâm-
blico) e um autor cristão tão fervoroso de “gnose” quanto Clemente da
Alexandria.
Aparentemente tão limitada quanto coercitiva, essa retórica não
respondia no fundo à filosofia da Natureza que foi a dos alquimistas,
permanecendo estrangeira aos usos dialéticos do discurso filosófico? É
de um modo de persuasão bem particular que se trata aqui, à imagem do
que deveria acontecer nas profundezas da matéria, cuja unidade é certa­
mente postulada, mas pede para ser dinamizada, reatualizada por meio
de um constante chamado à transformação, oriundo das profundezas
mais ocultas daquilo que aspira a se tomar Ouro, Pedra: “Tomai-me,
matai-me; e então, depois de me ter matado, queimai-me”.84 De fato,
como dizer, a não ser no imperativo: “Transformai pedras mortas em
Pedras filosofais vivas” (Gérard Dom)? “Velai a transformação”, dirá

81. Collection cies anciens alchimisíesgrecs, op. cit., t. III, p. 52 {“Questions naturelles et
mysteneuses " do Pseudo-Deniócrito).
82. cf Les Alchimisíes grecs, t. 1, texto estabelecido e traduzido por Robert Halleux. Paris.
Lcs Befles Lettres. 1981.
83. Corps spirituel et Terre céleste, Paris. Buchet-Chastel, 1961. p. 26.
84. Collection cies anciens alchimisíesgrecs. op. cit., t. III, p. 116.
1

Introdução 43 i
I

por sua vez Rilke: “Sê entusiasta, ah! Da chama pela qual uma coisa
te deixa, cm glória de metamorfose”.85 Assim o corpus alquímico não
teria sido senão uma imensa e redundante “receita”, cuja palavra de
ordem tanto quanto o resultado esperado teria sido transmutação ou
um dos seus equivalentes mais próximos: amadurecimento, maturação,
aperfeiçoamento, quando c prioritariamente designado o processo na­
tural de que a Grande Obra é apenas a imitação realizada; ou ainda per­
muta, quando é principalmente evidenciada a rotação dos Elementos,
cuja incessante circulação produz pouco a pouco a transmutação à qual
o espírito da escolástica cristã muitas vezes preferiu a noção de tran-
substanciação, frequentemente utilizada toda vez que é considerada a
similitude entre corpo da Pedra e corpo
do Cristo (Lapis-Christus).
Mas é preciso ressaltar que essa
mesma injunção assim proferida tam­
bém responde ao chamado de sofri­
mento oculto e disseminado em toda
parte na Natureza, e do qual o opera­ » <41
dor vigilante e misericordioso recolhe
o eco em seu matraz [balão de desti­
lação] hermeticamente fechado. Por
isso, a ordem lançada não é imperiosa,
coercitiva apenas para alguém que não
percebe quanto ainda mais imperativo é
o chamado à transformação latente em
fere
toda matéria, e sobre o qual “filosofia”
alquímica desejou que Deus tivesse ■ ''í1

feito uma etapa e não um obstáculo à


salvação conjunta do homem e de sua A navegação eni torno da terra,
Criação. É por isso que a receita arte- símbolo da busca alquimica:
sanal poderia bem se revelar o núcleo Michael Maier. Viatorium,
ardente, o fogareiro verbal de um en- Frankjurt, 1618.
cantamento, cuja difusão é de fato chamada a se amplificar até os con­
fins do Universo, sem que para isso seja preciso alertar contra o risco de
inflação por projeção. Assim mais amplamente entendida do que uma
prosaica técnica de ofício, ela aparece como o modo de expressão de
uma filosofia não do Ser, à imagem da metafísica grega, mas da inte­
ração entre seus estados múltiplos, que acaba induzindo a itinerância

85. Sonnets à Orphée, 2a parte, soneto 12, in (Etivres, trad. fr., Paris. Éd. Du Seuil. 1972,
p. 160.
44 Filosofar pulo Fogo

obrigatória do Artista, empreendendo em companhia de sua “matéria”


e da Natureza uma navegação arriscada, uma atribulação muitas vezes
comparada ao gesto de Tcseu e à conquista do Velo de Ouro pelos Argo­
nautas, conduzidos por Jasão.86

Pseudo-história de uma "louca sabedoria"


Da alquimia ainda não foi dito tudo, que conduz essa arte com
pretensões totalizantes (Ars Magna) às fileiras, mais modesta, de uma
ambiciosa, mas inacessível sabedoria, ou de uma irritante loucura?
Alternativa que então definitivamente asfixia sob a abundância con­
traditória das aproximações - glosas enfáticas ou críticas ferozes - à
fecundidade específica de uma “ciência” com propensões de fato ple­
tóricas: do TODO, dizer em qualquer ocasião todo, segundo a fórmula
antiga venerada dos hermetistas (En to Pan, Um o Todo), igualmente
simbolizada pelo famoso Ouroboros alquímico (serpente que morde a
cauda), cujo corpo era segundo Olimpiodoro “constelado de astros”; e
esse Todo não deixa de reafirmá-lo, em cada tratado como ao longo da
História, para que a redundância se torne, para os ignorantes e ímpios,
um sinónimo de errância e, para os iniciados, de iluminação, merecida
ao termo de um duro trabalho ou súbita; a distinção bem conhecida, mas
no entanto contestável, entre via seca, considerada rápida mas perigosa,
e via úmida, mais lenta e imagética, deixando igualmente supor que
os alquimistas conheceram, por sua prática, alternativa comparável à
que pontuou no Ocidente a experiência mística e atravessou o Budismo
também dividido, mais que dividido, entre gradualismo e subitismo.87
Em resumo, existe ainda hoje alguma lição a ouvir do entrecru-
zamento singular das relações entre sabedoria e loucura que durante
séculos teve no Ocidente alquimia como nome? Uma arte, dizia em
1655 Nicolas de Locques, “tão gloriosa por suas vantagens, e tão fa­
mosa por seus naufrágios”. Seria necessário ao contrário concluir com
isso que, por não ter justamente sabido escolher entre as duas - ou
traçar uma via mais comumente praticável -, a alquimia tenha prepara­
do para si, ao longo de sua próxima lenda, que talvez nem se deva con­
siderar como uma verdadeira história, o destino dos vencidos? O destino

86. cf Antoinc Faivre, Toison d’Or et Alchimie. Milão. Archè, 1990, em que algumas páginas
(48-55) sào consagradas ao tratado de Salomon Trismonin La Toison d'Or. Inúmeras outras
“fábulas” ou mitos foram evocados cm apoio a essa analogia: o de Cadmus (cf texto citado p.
239), mas também a Odisseia homérica e, em um contexto cristão, a Busca do Graal.
87. Sobre essa questão, cf por exemplo: Houang-Po, Entretiens. Paris, Éd. du Seuil, 1993;
Entretiens de Lin-TsL Paris, Fayard. 1972; Tch'an, Paris, Les Deux Océans, 1985.
I NTRODUÇAO 45

dessas artes luxuriantes, mas no fundo \ ManfpiÍCTtwofjn9«*fí8emy §8


l>nb)nn?« Wfnríarrçeny
inconsistentes, que só teriam por tan­ faJfcÇ,rn'* Pf<3'fT *rb<n ff

to tempo ocupado o primeiro plano da


cena em razão de uma ignorância feliz­
mente bastante curável, geradora de um
mal-entendido persistente, do qual só
se poderia se alimentar um imaginário
desprovido de fantasias e de fantasma­
a 8
goria contra o qual religiões e filoso­
fias, que pelo menos fizeram disso S
í
causa comum, não deixaram de alertar.
Às vezes qualificada de “arte do im­ _______ Ml
possível”, em razão de seus fracassos Dõfalfcb xmb bcfctyffí^g
|>5etrúíJCT
rJ.;cr f»nt'»nb pi|c?«T vit
|int/*no fllfcÇcr
incontestáveis, a alquimia ocidental se tônrn t»8c
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“* pJm njrrcn fpítf
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lATO n<S.-falf<$ rot falfcífriinlí*h
revela, no entanto, próxima de certa ^VoUTntru«i(lfet}.q-»nq9ic w<Ct
“loucura sábia” vinda da Ásia na me­
grande abominação da
dida em que o imaginário da transmu­ alquimia Sêbastien Brant.
tação, em si portador de loucura por NarrenschiíT, Basileia. 1494.
causa de sua inflamabilidade extrema, Madeira gravada atribuída
trabalha muito bem ao longo de suas a A Ibrecht Diirer.
operações para uma transmutação das
produções imaginárias em sabedoria e, portanto, para a superação das
relações conflituosas entre sabedoria e loucura. “O tantra, bem como
a alquimia, gosta de buscar a harmonia nos contrários, ver ouro na
lama. Não existe aí dispersão, ecletismo ou frivolidade. Existe alegria
profunda, aberta e livre de viajar através do tempo e dos homens, de
circular, em vez de se fixar em uma especialização desconfiada e ciu-
menta”, escreve Pierre Feuga.88
Muito significativa foi a esse respeito a atitude do abade Lcnglet-Du-
fresnoy, consciente de empreender a primeira verdadeira História da
Filosofia Hermética jamais publicada (1742), apresentando-a como a
“da maior loucura, e da maior sabedoria, de que os homens são capa­
zes”. Mas o caso era realmente tão novo que ele ainda emociona mesmo
depois de um século, à imagem da modernidade futura, entre um gosto
pela experimentação científica que porá um fim às pseudoexperiências
alquímicas, uma fascinação bem mundana pelas “curiosidades” no rol
das quais será então colocada uma arte que não tem outro valor a não ser
anedótico ou no máximo qualificada de surreal e de “fantástica” (Mareei
Brion). Por isso, aproximando, de maneira bastante convencional em sua
88. Le chemin desJlammes, Paris, Aimora, 2008, p. 74.
46 Filosoi-ar pelo Fogo

época, sabedoria e loucura supostamente inerentes ao espírito de al­


quimia, Lenglet-Dufresnoy não busca mostrar sua complexidade espe­
cífica, mas, por assim dizer, tendo as colocado lado a lado, deixa ao
leitor a tarefa de deduzir a futilidade intrínseca dessa arte: loucura de
uma teoria que ambiciona mudar as “naturezas”, ali onde tudo indica a
estabilidade dos gêneros, espécies e reinos, à escala humana e histórica
pelo menos;89 mas sabedoria de uma empreitada que visa, ao preço de
um trabalho pessoal desgastante, ao aumento das riquezas - a ideologia
burguesa não está distante - e isso para o maior bem de uma humani­
dade curvada sob o peso da injustiça e do pecado: assim, o padre pode
desde então estender a mão ao futuro republicano! Se, portanto, os al­
quimistas fizeram em suas teorias um falso caminho, pelo menos tive­
ram a inestimável sabedoria de procurar conquistar por suas próprias
forças um bem cuja qualidade maior era de poder ser comum. Alguns
filantropos pouco iluminados, de certa maneira, como já deixava perce­
ber Leonardo Fioravanti em seu Espelho universal das artes e ciências
(1546): “A arte da Alquimia foi uma muito engenhosa busca dos filóso­
fos naturais, e de grande importância, que muito ornou o mundo, e deu
aos artesãos muitos ganhos”. Então foi apenas isso? Uma empreitada
teoricamente insensata mas humanamente estimável, e no fundo tão la­
mentável, que a Grande Arte declinante se tornará muito naturalmente
no século XIX a fonte de inspiração de alguns tristes melodramas.90
Ora, é o Cristianismo, não nos esqueçamos disso, que em primei­
ro lugar deu a escolher, pela boca do apóstolo Paulo, entre a loucura
da cruz e a razoável sabedoria dos homens (Atos, 17, 16-32). De tal
distinção se inspirou, aliás, um dos primeiros críticos da alquimia: “Os
alquimistas fazem parte daqueles sobre quem o apóstolo Paulo disse
que estào sempre estudando sem alcançar a sabedoria”.91 Outros co­
mentadores se apoiaram, é verdade, nessa mesma predicação paulina
para acentuar a similitude entre realização da Grande Obra e redenção
cristã: “Pois a criação em espera aspira à revelação dos filhos de Deus”
(Rom, 8,19). Não importando o que significa uma exegese neotesta-
mentária diversamente utilizável, a filosofia, desde os gregos, impôs

89. Questão determinante com efeito, uma vez que dela depende a possibilidade mesma da
“transmutação”. Ora. se os alquimistas foram bastante conscientes dessa dificuldade, eles
em geral decidiram em favor não de uma passagem entre as diversas espécies, mas de um
aperfeiçoamento (quantitativo e qualitativo) próprio a cada uma delas, e conforme ao desejo
secreto da Natureza.
90. LAlchiniiste, de Gérard de Nerval e Alexandre Dumas pai (1839), La Recherche de
1'Absolu, de Honoré de Balzac (1834).
91. Gregor Reisch, Margarita Philosophica (1496).
1NTRODUÇAO 47

por sua vez sua própria visão de uma vida sábia c agradável, pois razoá­
vel, tão capaz de resistir às seduções da intemperança e a seu cortejo
de insanidades quanto às solicitações ilusórias ou mentirosas de um
“espírito” desprovido de qualquer racionalidade. No que poderia então
contribuir, sobre essa grave questão, a alquimia? Tomando como divi­
sa o famoso solve et coagula (dissolve e coagula) a fim de extrair do
veneno o remédio adequado, essa
arte c entre todos reconhecível, na
medida cm que ela coloca a serviço
de uma serena e solar “Sabedoria
do Meio-dia” - “que domina to­
das as coisas, que penetra à direi­
ta até o Oriente, e à esquerda até o
Ocidente, e abraça a terra inteira”92
-alguma sombria melancolia, justi­
ficando que Saturno, com lentidões
extenuantes e impurezas inquietan-
tes, tenha sido o inevitável “crivo
dos Sábios”, em que se reconheceu
como modelo a Obra de alquimia.
Louca esperança com efeito aquela O Rei doente: 'Aqui o Pai está coberto
de todos esses “Reis doentes” que por um forte suor de onde escorre a
perseguem com sua languidez e sua verdadeira Tintura ”, Lambsprinck, De
palidez os textos canónicos,93 e se Lapide philosophico, séc. XVI.
oferecem como vítimas expiatórias
de um “erro” que o otimista escatológico próprio à alquimia situa me­
nos em uma anterioridade suja, que deveria ser resgatada, do que na
impotência, para quebrar o círculo encantado de um presente indefini­
damente reiterado, e no seio do qual o melancólico se contenta em dese­
jar, sem ele próprio conseguir. Obrar, uma Realeza todos os dias adiada.
E também por isso que os alquimistas se mostravam particularmente
atentos ao fato de que a putrefação de sua matéria e a mortificação que
se segue não anulam para sempre suas chances de sobrevida.
A explicação proposta por Lenglet-Dufresnoy quanto à ausência
de verdadeira História da alquimia parece, portanto, a contrario escla­
recedora: preocupados demais com o sucesso de suas operações, os al­
quimistas teriam se desinteressado de sua própria história e da História

92. Michael Maier, Atalante fugitive (1618), reedição Paris, Librairie de Médicis, 1969,
p. 213.
93. cf. textos citados p. 216 55.
48 Filosofar pelo Fogo

em geral, ao passo que os historiadores dignos desse nome só teriam


desprezo justificado “por tudo o que se relaciona a essa Ciência”. Des­
prezo justificado pelo quê, se não for pelo absurdo mesmo das teorias
alquímicas, reforçado pela indiferença dos Adeptos em relação à His­
tória? Ora, se esse diagnóstico é em si pertinente, na medida em que
detecta a existência de uma clivagem, aliás destinada a se acentuar,
entre ciências históricas e disciplinas ditas “tradicionais”, tudo deve,
no entanto, ser repensado assim que o relacionamos mais precisamente
com a alquimia, com sua carência de “sentido da História” e com sua
formidável ausência (na falta de ser sempre observada!) no seio das
histórias constituídas: as da filosofia em particular, que, no entanto, não
são feitas por não dar um lugar às teorias pseudocientíficas hoje tam­
bém superadas: todas aquelas, ou quase, constituindo a armadura física
e cosmológica da metafísica grega. Em que a concepção aristotélica da
natureza (phusis) seria mais rica em ensinamento do que aquela de seus
contemporâneos alquimistas? Além do mais, seria exato que os Filhos
de Hermes se desinteressaram de sua própria história somente pelas
razões anteriormente invocadas? Será que, ao contrário, eles delibera-
damente escolheram substituir a cronologia e a busca das fontes ditas
“históricas” por outros modos de recenseamento e de classificação, aos
nossos olhos extravagantes ou monótonos, porém mais de acordo sem
dúvida com a finalidade não histórica ou meta-histórica de sua busca,
cuja narração, vinda coincidentemente com o desenrolamento da opera­
ção que a autentifica, revelaria sempre mais ou menos da hiero-históricr.
de uma história “santa”, quando o amadurecimento e a iluminação da
matéria no Ovo filosofal reproduzem, no plano microcósmico, a narra­
tiva bíblica da Génese;94 ou de uma história mais amplamente “sagrada”
quando, penetrando os arcanos naturais graças à sua “magia”, o alqui­
mista se engaja a não divulgar imprudentemente o que ele julga preju­
dicial ao gênero humano em seu estado pecaminoso sempre atual. Por
isso esse bem (Pedra, Medicina) não poderia sem desvio nem perigo se
tornar simplesmente “comum”.
Por isso a primeira antologia um pouco sistemática, realizada por
Davis Lagneau sob o título de Harmonia Mística (1636), não fez de
fato nada de histórico, na medida em que ela pretende mostrar qual era
o “consenso” dos Filósofos Alquímicos existente desde sempre. E tam­
bém não foram muito mais as tentativas posteriores de recenseamento
das obras alquímicas, como a Biblioteca Química constituída por Pierre

94. cf. a esse respeito textos traduzidos a partir da p. 145.


INTRODUÇÃO 49

Borel (1646) e que é, como aliás seu título indica,95 apenas um catálogo
dos tratados publicados antes de 1643; ou ainda o Conspectus Scriptorum
Chemicorum Illustriorum, realizado por Olaus Borrichius (1697) e que
traz uma espécie de resumo da doutrina dos principais escritores em
uma ciência menos marcada, no entanto, pela diversidade do que pela
unidade e a continuidade.96 Quanto aos diversos compêndios consti­
tuídos desde o final do século XVI,97 os mais conhecidos foram em
seguida o Musceum Hermeticum Reformatum et Amplificatum (1625,
depois 1678) e as notáveis coleções reunidas por Lazarus Zctzner
(Theatrum Chemicum, 1613, 1622, 1661), depois por Jcan-Jacqucs
Manget (Bibliotheca Chemica Curiosa, 1702) e William Salmon
(Biblioteca dos Filósofos Químicos, 1740-1754), aos quais inúmeros
empréstimos necessariamente foram feitos para a realização desta
antologia; a escolha dos textos sendo então guiada tanto por sua fi­
delidade à continuidade tradicional quanto pelo estilo próprio com o
qual cada autor se apropriou, inovando na ocasião em uma arte que
nem por isso tem deixado de pertencer à história das ideias.
Sem dúvida tratou-se, para os autores dessas coleções de tratados,
de também salvar do esquecimento obras até então consideradas pelos
Filhos de Hermes como canónicas, mas cada vez mais ameaçadas pela
evolução das ideias em favor do materialismo mecanicista.98 Mas não
é sobretudo que esse modo de coletânea - theatrum não tem na ori­
gem outra significação - responde estritamente à lógica que foi a dos
alquimistas, usando da invocação e da enumeração quando se trata de
relembrar que prestigiosos precursores emprestaram antes dele a via
real traçada pela proclamação de Hermes em sua Tábua de Esmerai-
da? Usando também da evocação dos dizeres destes ou daqueles que
pertencem a essa fabulosa linhagem, quando eles julgam necessário
pontuar sua exposição com uma “prova” então qualificada de argu­
mentação, ali onde muitas vezes seríamos levados a ver apenas o banal
recurso ao argumento de autoridade: "Hinc dicit Philosophus” (daí o
Filósofo diz), ou ainda “Ideo Philosophi dicunC (é porque os Filósofos
dizem). Mas ao filósofo que constata de maneira muito legítima que os
alquimistas não se preocuparam verdadeiramente em argumentar, seria
preciso relembrar que a própria existência da Natureza não tinha aos
seus olhos nenhuma necessidade de ser demonstrada, mas exigia antes
95. Bibliotheca Chemica seu Catalogas librorum philosophicorum hermeticorum.
96. cf Texto de Dom Peméty citado p. 98-99.
97. Aurijèríe Artis quam Chemian vocant (1572). Alchemice, quam vocant artisque metallicce
doctrina (Guglielmo Gratarolo, 1572).
98. cf. Texto de Bruno de Lansac citado p. 94-95.
50 Filosofar pelo Fogo

alguma exibição de suas operações secretas e de suas belezas cujo Opus


Chemicum tentou justamente orquestrar a estranha teatralidade. “Pois
a verdade vista e reconhecida não precisa de provas”, dizia David de
Planis Campy (1589-1644). Nesse sentido, o historiador pode de fato
deplorar que o alquimista confunda intencionalmente “história” - a ri­
gor santa ou sagrada - e um conjunto de técnicas narrativas em que se
mesclam observações da Natureza, raciocínios estranhamente sofisti­
cados ou repentinamente truncados, irrupção do sonho, da visão ou do
enigma, enumerações intermináveis dos “ditos” mais notáveis relativos
à questão tratada. Muitas técnicas parecem mais justificar a analogia
várias vezes evocada entre alquimia e teatralidade" do que creditar o
reconhecimento de uma verdadeira discursividade (ou cronologia) sa­
tisfazendo ao mesmo tempo filosofia e historicidade. Entretanto, se há
discursividade, seu trajeto irregular, esfacelado, deve de um lado ser
relacionado à vontade deliberada de dissimulação, que foi a dos alqui­
mistas, e. de outro, a uma concepção da transformação (material e es­
piritual), dando um lugar pelo menos tão grande às descontinuidades™
quanto às progressões articuladas e harmoniosamente ritmadas.
Mas o fato de que a maioria dos tratados já tenha sido composta
como espécies de “antologias” facilitaria, no entanto, a constituição de
uma verdadeira antologia, obedecendo necessariamente a outros crité­
rios de legibilidade, de inteligibilidade? Ora, a despeito de sua vontade
às vezes ingénua de “queimar as pistas”, a maioria dos tratados espo­
sa, no entanto, nem que seja de maneira essencialmente contornada, a
“lógica” do processo natural e artificial que eles entendem restituir por
meio de palavras veladas. Por isso podemos até mesmo perceber, nas
obras mais clássicas, uma espécie de “plano tipo” ou, pelo menos, certo
número de desenvolvimentos obrigatórios, pelos quais se deve apenas
se deixar guiar para que se torne perceptível o traçado da operação al-
química completa. Por outro lado, o caráter profundamente não his­
tórico do espírito alquímico, declinando e modulando segundo outras
prioridades a ordem de exposição dos tratados, pareceu-nos invalidar
a escolha de uma apresentação sistematicamente cronológica realizada
em função de uma historicidade, cuja legitimidade os alquimistas por
sua vez não deixaram de recusar; cronologia que se baseava além do

99. Essa analogia estrutura e anima todo O Théâtre et son Double, de Antonin Artaud (pu­
blicado em 1938), e não apenas o texto que tem por título “Le Théâtre et 1’alchimie” : cf.
Françoise Bonardel, Philosophie de Talchimie - Grand (Euvre et modernité. Paris, PUF,
1993. p. 559-576.
100. Questão sobre a qual René Alleau insiste de forma bem particular em seu notável
artigo “Alchimie”, publicado na Enciclopcedia Universalis.
InTROPUÇ/\O 51

mais cssencialmente em uma seleção de “autores”, ali onde a maioria


dos Adeptos disse buscar um anonimato que corresponderia exatamen­
te ao da Grande Obra c da Pedra que, por ter mil nomes, não detém fi­
nalmente nenhum que seja mais apropriado. Se em teoria nada obriga a
deduzir o método utilizado da abordagem que entendemos reconstituir
- o ideal científico moderno defende até mesmo o contrário! acon­
tece que uma preocupação de objetividade bem compreendida sugere
tomar a via hermenêutica que já foi a dos alquimistas em suas relações
com a Natureza e com a História, com a matéria e com a espiritualidade.
A exigência de legibilidade, apesar de tudo, conduziu-nos ao dever de
descartar aqueles textos cuja tccnicidade estritamente operatória só po­
deria ser ininteligível e, portanto, rapidamente cansativa para um leitor
moderno, ou creditar a ideia já muito difundida dc que a literatura al-
química não merece ser salva do esquecimento, senão por sua força cn-
cantatória ainda capaz de nos subjugar na medida de sua obscuridade.
Organizados em função de tais critérios, os textos escolhidos encontram
eco nessa palavra de Schopenhauer, cuja profunda simpatia pelo herme-
tismo foi, aliás, manifesta:
A história, mesmo pretendendo nos contar sempre algo novo, é como o
caleidoscópio: cada volta nos apresenta uma configuração nova, c. no en­
tanto, são, bem dizendo, os mesmos elementos que passam sempre diante
de nossos olhos. O espírito não é assim irresistivelmente solicitado a pensar
que esse nascimento e essa morte não atinjam em nada a essência verdadei­
ra das coisas, mas que este não sofre seus ataques, que ela c indestrutível
e que por essa razão todo ser que quer existir existe real mente de fato e
persevera sem fim no ser.101

Ninguém é profeta em sua


própria terra.

101. Le Monde comme volonté et comme représentation, trad. fr. Paris, 1966, p. 1222.
52 Filosofar pelo Fogo

Os mesmos elementos, com certeza, como ressalta René Alleau a


propósito do surgimento recorrente dos personagens no palco do teatro al-
químico.102 No entanto, só haveria ali estéril repetição se cada um deles não
se apresentasse segundo uma angularidade sutilmente diferenciada à me­
dida que gira a roda da Obra que, com intervalos acumulados, reconstitui
uma continuidade e um volume prismático que devolve assim um verda­
deiro “corpo” à volatilidade sempre latente da matéria como à da História
ou do pensamento. Tomado como método de organização e de progressão
dos textos aqui apresentados, o “jogo” desse caleidoscópio incita também
o leitor a aceitar algumas repetições inerentes ao modo de exposição dos
alquimistas para que o Todo possa estar presente em cada uma de suas
partes; e a descobrir ele mesmo sob que ângulo olhar o espetáculo que lhe
é oferecido, caso não queira permanecer estranho ao esplendor benéfico
dessa incomparável “lição de trevas”, desenvolvendo suas linhas melódicas
sobre um fundo dourado, tão imutável quanto aquele cujos ícones mantêm
sua intemporalidade sagrada.

Nota
As principais coletâneas de textos alquímicos em língua latina utili­
zadas para a constituição desta antologia são: Alchemice. Quam vocant ar­
risque metallicce doctrina (A doutrina de Alquimia e da Arte metálica), ed.
de 1572, 2 vol., reunidos por Guglielmo Gratarolo; Auriferce Artis quam
Chemiam vocant (Da arte defazer ouro, chamada Alquimia), ed. de 1572,2
vol.; Theatrum Chemicum (Teatro Químico), de Lazarus Zetzner, na ed. em
6 vol., de 1661; Museum Hermeticum Reformatum etAmplificatum (Museu
Hermético Corrigido e Amplificado), 1678; Bibliotheca Chemica Curiosa
(Biblioteca Química Completa) de Jean-Jacques Manget (2 vol., 1702), da
qual existe uma reedição em dois volumes (Arnaldo Forni Editore, 1976).
Todos os textos extraídos dessas coleções - ou de obras isoladas citadas em
sua edição original latina - estão aqui presentes em uma tradução inédita.
Um determinado número de traduções antigas foi, no entanto, con­
servado, ou em razão de sua qualidade poética, ou porque elas são autori­
dade ao longo dos séculos. Assim a Biblioteca dos Filósofos Alquímicos, de
Willíam Salmon (1672-1673), aumentada por Jean Maugin de Richebourg
(1740-1754), foi continuamente usada pelos hermetistas modernos
(Julius Evola, Eugène Canseliet, René Alleau, Claude d’Ygé), a despei­
to das críticas formuladas pelos eruditos que, com razão, deploravam
a imprecisão de suas transcrições e traduções. Essa obra foi objeto de
102. cf René Alleau. “Le synibolisme alchimique de la mort”, Cahiers internationaux du
Symbolisme (n° 37-39), p. 79.
Introdução 53

uma recente reimpressão em 2 volumes (Grez-Doiceau, Bélgica, Bcya,


2003). Por isso, consideramos adequado citar alguns trechos extraídos da
celebre Assembleia dos Filósofos (Turba Philosophorum. séc. XII) na ver­
são Salmon, e outros de acordo com a sua versão latina; c bom lembrar que
ela mesma já foi traduzida do árabe. Também, na espera de uma retradução
integral, a Coleção dos antigos alquimistas gregos. reunida por Marcclin
Berthelot (3 vol., 1888-1889) permanece um instrumento de trabalho in-
contomável.
É também a ocasião de assinalar ao leitor contemporâneo que os cri­
térios de transmissão respeitados pelos hermetistas diferem daqueles reti­
dos pela erudição científica, que exigem a exatidão histórica e filológica
ali onde os Adeptos buscaram antes perpetuar um estado de espírito c a
continuidade iniciática de uma prática. Ao contrário, inúmeros leitores mo­
dernos não retiveram dos textos alquímicos senão seu lirismo poético ou
sua ênfase retórica, ainda acentuada por um emprego de certa forma um
pouco anárquico das maiúsculas, que devem marcar a diferença entre o uso
vulgar dos termos e seu sentido “filosofal”. Uma uniformização gráfica se
mostrou então desejável, mas difícil, levando-se cm conta a heterogeneida­
de dos usos segundo as épocas e às vezes os autores. A maiuscula de alguns

O©'
ti1 .T

Três alquimistas (Basile Valentin, John Cremer, Thomas Norton) no laboratório


onde Vulcano ativa o fogo: Michael Maier, Tripus Aureus, Frankfurt, 1618.
54 Filosofar pelo Fogo

termos de fato “capitais” (Sol, Lua, Mercúrio, Enxofre, Elementos...) foi,


portanto, conservada, na medida em que esse uso também contribui para
dar aos textos alquímicos um relevo bem especial, à imagem da operação
que se desenrola no vaso da Natureza, bem como no vaso da Arte.
Também a palavra Grande Obra, em geral grafada com maiúscula,
pertenceu - na língua francesa - ao gênero feminino antes de se tornar mas­
culino, quando designa a realização da Opus Chemicum\ e a palavra chimie
[química, em francês] é na maioria das vezes ortografada nos textos antigos
chymie, ao passo que ela designa de fato a alquimia. As traduções antigas
demasiado difíceis de ser lidas foram colocadas em francês moderno, e
a pontuação de algumas delas foi às vezes ligeiramente modificada
com a preocupação de uma maior inteligibilidade. Os títulos latinos dos
tratados foram traduzidos, mas os das grandes coletâneas são citados
em latim, como é de praxe.

* - ■■

Os três Filósofos: Giorgine, por volta de 1509 (Kunsthistorisches Museum, Viena).


Prefácio
à Segunda Edição

Negligcnciável em relação a uma tradição várias vezes milenar, o


pouco número de anos que separam a primeira edição desta obra (1995)
da segunda não foi o teatro de nenhuma estupenda revelação suscetível
de modificar de maneira significativa as representações mais correntes
que até então eram feitas sobre a Arte de Hermes, ou seja, da alquimia.
Nem preconceitos nem convicções foram abalados em seu fundo, c não
é o sucesso mundial e O Alquimista (Paulo Coelho, 1988) que constitui
a esse respeito um acontecimento marcante. Habilmente moldado a par­
tir dos lugares-comuns esotéricos cuja justaposição o autor considera
estilo, essa narrativa com pretensões iniciáticas mantém com a alquimia
tradicional uma relação tão vaga quanto enfática. O que essa avalan­
che mediática confirma, ao contrário, são os méritos das teses de Cari
Gustav Jung quanto ao impacto, no inconsciente coletivo, de alguns
arquétipos tão fortemente mobilizadores quanto os do velho Sábio, do
Mestre, do Guia supremo e do Amigo que, aliados nessa narrativa, não
deram, no entanto, origem a um herói que encarna sozinho as virtudes
dos antigos alquimistas: ausência de ambição pessoal, disponibilida­
de interior, paciência, resistência e inquebrantável confiança em Deus.
O mal-entendido já era, é verdade, perceptível em A Obra ao Negro
(1968), mas permanecia mascarado pelo imenso talento de Margueritc
Yourcenar. Que essa constelação arquetípica tenha a esse ponto subju­
gado os espíritos de nossos contemporâneos confirma cm todo caso que
seu desejo mais ou menos consciente de um despertar transformador
- hoje rebatizado “desenvolvimento pessoal” - ainda encontra eco nas
representações e fantasias suscitadas pela antiga alquimia. Por que des­
de então não tentar responder a isso se dirigindo à fonte de semelhante

-55-
56 Filosof/Xb Pelo Fogo

aspiração, lendo e relendo textos canónicos às vezes pouco conhecidos,


e até mesmo jamais traduzidos, cuja beleza e força persuasiva restabele­
cem uma hierarquia dos valores de certa forma mal conduzida por essa
inflação psíquica sem precedentes?
Será que isso significa dizer que nada mudou nestes últimos anos
no olhar lançado sobre a alquimia? Os eruditos continuam a pesqui­
sar sobre essa arte segundo métodos (históricos, filológicos) que deram
suas provas ao longo dos anos, ao passo que o imaginário coletivo se
encanta mais do que nunca, e com custos mínimos, com o “fantástico”
que supostamente teria sido o da alquimia. Ora, é, no entanto, entre esta
(a erudição sábia) e aquela (a imagética popular), nesse espaço inter­
mediário que também é o de toda autêntica “cultura”, que poderia hoje
como ontem acontecer uma metamorfose individual e coletiva da mes­
ma ordem que aquelas que os alquimistas nomeavam “transmutação”.
“Os corpos se tornam incorpóreos e os incorpóreos se tornam corpos”,
dizia a esse respeito o “Divino Zózimo”, invocando Hermes.103 Ain­
da seria necessário em vez de sonhar com uma imortalidade artificial,
por clonagem de uma identidade necessariamente limitada; em vez de
procurar conquistar um espaço que sempre se subtrai ao pensamento,
preocuparmo-nos em encontrar aqui embaixo o cadinho em que Céu e
Terra, corpo e espírito, poderiam reaprender a colaborar. Essa também
é uma questão de “saúde”, sobre a qual os alquimistas não deixaram de
meditar; e no momento em que as sociedades modernas produzem pelo
menos tanto ou até mais venenos do que fabricam remédios capazes de
cuidar dos males que elas mesmas engendraram, a concepção de uma
arte médica faz justas “ponderações” e de fato trabalhando para a au-
tocura do doente, mereceria não ser reduzida a alguns avanços irónicos
sobre esse remédio supostamente universal (panaceia), mas tão impos­
sível de encontrar quanto a Pedra filosofal. Portanto, não é um acaso se
hoje a palavra aflora como uma necessidade tornada importante nos es­
critos do filósofo Peter Sloterdijk, “transmutar o veneno do ser [...] em
forças imunitárias precisas”, e para isso se apropriando do Nihil contra
venenum nisi venenum ipse dos antigos alquimistas.104
Por meio da alquimia, que passou sem real transição de uma espé­
cie de clandestinidade codificada e discreta para a luz de uma suposta
revelação desmistificadora, é também o destino e o próprio sentido do
esoterismo que realmente poderia acontecer no Ocidente. Assim, inú­
meras vezes reproduzidas e exibidas nas obras de grande difusão, as

103. Marcellin Bcrthclot, Collection des anciens alchimistes grecs. op. cit., p. 192.
104. “Não existe remédio contra o veneno, se não for o próprio veneno”: L’heure du crime
et le temps de Toeuvre d’art, trad. fr. Paris, Hachette, 2004, p. 343.
Prefacio z\ Segunda EdiçAo 57

preciosas imagens extraídas dos velhos tratados parecem ter libertado


todos os seus segredos e ter perdido o brilho, o esplendor que fazia
delas “ilustrações”, no sentido original e forte do termo. A alquimia na
verdade nào é a única arte tradicional que uma exibição mais ou me­
nos bem-intencionada terá contribuído para esvaziar de sua substância
e privar de sua aura. Mas, uma vez que “o espírito de alquimia" tem de
Hermes-Mercúrio a agilidade e a engenhosidade, não está dito que uma
demonstração tão impudica não trabalha na sombra para uma oculta­
ção salutar daquilo que, para preservar o que tem de essencial, deve
permanecer oculto. Tendo se tornado evidente, o “fim do esoterismo”
anunciado por Raymond Abcllio105 estaria a ponto de revelar tudo o que
ele traz de ambíguo? Esse também seria o obstáculo, felizmente intrans­
ponível, com o qual se chocam as leis do mercado. Da Pedra filosofal
— ou melhor, de sua preciosa “matéria” - os alquimistas diziam outrora
que primeiramente ela era desprezada e que os ignorantes sem pudor a
esmagavam com os pés. Dessa sempre preciosa e misteriosa substância,
diríamos hoje que, de tanto ser exibida e consumida em toda parte, ela
se tornou invisível e entra dessa maneira em uma salutar penumbra em
que seu núcleo mais puro tem alguma chance de ser conservado. O que
é, com efeito, a prima matéria filosofal, a não ser esse “ponto virgem”
- celebrado tanto por Maitre Eckart quanto por Simone Weil - em que
cada coisa, cada ser está no direito de atingir uma “transmutação” in­
finitamente mais necessária e mais enigmática do que todos os saberes
acumulados pela humanidade?
A verdadeira questão a esse respeito permanece: saber se a alqui­
mia é suscetível de encontrar na cultura contemporânea o lugar e papel
mediadores que foram seus no passado. Muitos sinais, maiores e meno­
res, permitem, em minha opinião, supor isso; e o diálogo com o Oriente,
que nestes últimos anos se ampliou, confirma indiretamente que a Arte
de Hermes constitui no Ocidente um insubstituível Caminho do Meio,
cuja exploração bem poderia se revelar indispensável, se quisermos que
a contribuição cultural espiritual do Oriente seja um dia realmente inte­
grada à cultura ocidental.106 Sem dúvida esse desvio era necessário para
que se consinta enfim perceber que o “espírito de alquimia” continua,
a despeito do descrédito de que essa Arte é desde o Século das Luzes o
objeto, irradiando e alimentando os estratos mais profundos da cultura
e da psique ocidental. Quando digo “exploração”, não penso prioritária-

105. Raymond Abcllio, Lafin de rêsotérisnie, Paris. Flammarion. 1973.


106. cf. Françoise Bonardel, “Non-dualité et transmutation - la Voie du Milieu en Oricnt
et en Occident”. Bouddhisme et philosophie - En quête d une sagesse conunune, Paris,
L’Harmaltan, 2008, p. 232-260.
Filosofar Pelo Fogo

mente na multiplicação dos estudos eruditos, que


evidentemente têm sua razão de ser, mas em uma
tomada de consciência real daquilo que realmente
poderia significar, para cada homem considerado
individualmente assim como para a humanidade,
a velha palavra “transmutação”. Pierre Thuillier,
que faz parte daqueles que acolheram favoravel­
mente essa mensagem, merece ser atualmente
homenageado por sua lucidez: “O problema es­
sencial levantado pela alquimia não é de ordem
epistemológica; pois é claro que a ciência atual
é muito mais superior, em eficácia, do que a de
Zózimo e seus descendentes. A escolha é aliás:
entre dois tipos de sociedade, entre dois modos de
vida, entre duas concepções do poder. A alquimia
muitas vezes tem ares reacionários; ela poderia ser
sediciosa”.107
Sim, o saber e a sabedoria alquímicos sao
O Eremita: Carta IX do ' mais do que nunca suscetíveis de lançar uma pro­
Tarô de Charles VI. funda confusão nos espíritos: é de ecologia que já
falam os velhos tratados que convidam a não violentar a Natureza, cuja
exploração forçada ameaça hoje a sobrevivência da humanidade. É de
uma erótica sagrada que indiretamente fazem apologia, cujas harmóni­
cas psíquicas e espirituais mereceriam ser compreendidas pelos curio­
sos modernos que acabam considerando as famosas “Bodas químicas”
como o Kama Sutra de que o Ocidente pagão secretamente se teria
atribuído. A esse respeito, eles convidam a uma radical “transmutação
dos valores”, bem antes de Nietzsche tê-las transformado na palavra
mestre de sua filosofia; e é a se tornar “Pedras filosóficas vivas” (Gérard
Dom) que os mais místicos de seus escritos exortam. Em parte reto­
mados e reinterpretados por Cari Gustav Jung no âmbito da psicologia
das profundezas, esses diferentes componentes convocam novos her-
meneutas que sejam tão “operativos”, “trabalhadores” de que Bernard
Gorceix escrevia: “O trabalhador é saltimbanco: sempre sobre a corda
bamba, entre ortodoxia e dissidência, entre conformismo e blasfêmia,
ele é alvo, bode expiatório. Ao manejar o fogo, acabamos por atrair a
tempestade”.108 Ora, se a alquimia continua bem evidentemente, pela
própria força da “poiética” que é sua, a inspirar os artistas, podemos nos

107. Pierrc Thuillier, “L’alchimic hier et aujourd’hui”, Les savoirs ventriloques, Paris, Le
Seuil, 1983, p. 30.
108. Apresentação de Alchimie (Tratados alemães do século XVI), Paris, Fayard, 1980, p. 17.
Prefácio à Segund/\ Ediçáo 59

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Apoio e um alquimista: desenho deAlbrecht Diirer, 1494-1496 (Albertina, Viena).

regozijar de que ela não se beneficia mais do esplendor um pouco es­


trondoso e equívoco de que a tinham revestido ocultistas e surrealistas.
Sinal promissor também o fato de que a crise que abala em seus
fundamentos os monoteísmos, e que as questões abertamente coloca­
das às grandes religiões quanto à sua capacidade de real e sustenta-
velmente transformar crentes e praticantes, permite a esse processo
bastante particular nomeado “transmutação” reencontrar uma credi­
bilidade, psicológica e filosófica tanto quanto religiosa. “O monge
moderno busca reencontrar a alquimia dos tempos antigos”, escreve,
por exemplo, Raimon Panikkar, acrescentando: “Os monastérios se­
riam então os altos lugares dessa alquimia transformadora do homem
em sua ascensão para uma realidade cosmoteândrica que o cerca - e
que ele próprio é ainda que ela o transcenda”.109 Seria, portanto,
em si, “monástico”, tanto quanto alquímico o desejo de “retorno ao

109. Raimon Panikkar, Èloge du simple, trad. fr. Paris, Albin Michel, 1995. p. 92 e 109.
60 Filosofar Pelo Fogo

essencial”110 que leva a cada ano milhares de seres humanos a desertar


as “paisagens de canteiros de obras” (Ernest Jiinger) moldadas pelos
Titàs modernos para se isolarem em algum “laboratório” onde reencon­
trar o gosto de trabalhar, de orar ou de meditar. Assim, inúmeros desses
novos “monges” refratários às grandes reuniões gregárias já praticariam
sem sabê-lo essa Arte de que o abade Jean Albert Belin dizia: “E uma
obra de eremita, é a ocupação de um solitário, é o exercício de um
homem que conhece o mundo, e lhe disse um último adeus”.111 Assim
compreendida - como o que ela foi em todos os tempos e em todos os
lugares - a alquimia poderia ter belos dias em perspectivas.
Por isso era necessário que esta reedição respondesse às promes­
sas de futuro sempre conservando as aquisições do passado. Uma ver­
dadeira revisão se impunha, conduzindo à reclassificação dos capítulos
no seio da obra, e dos textos em cada capítulo. Uma ordem de apresen­
tação globalmente mais cronológica e, portanto, mais pedagógica foi fi­
nalmente mantida, não anulando a ideia cara aos alquimistas de que sua
Arte, transmitida imutável ao longo dos séculos, não se importa com
a História. Por menor que ela seja, a evolução das formulações e das
ideias ao longo dos séculos será então melhor perceptível do que uma
organização cujo princípio “tradicional” corria o risco de permanecer
obscuro ao leitor iniciante. Isso dito e feito, o próprio espírito dessa
Arte impunha inevitáveis recortes entre os autores, assemelhando-se à
redundância e às vezes próximas da repetição. Evitá-lo teria sido trair
duplamente a única verdadeira metodologia de que se prevaleciam
os alquimistas, convidando, por um lado, a ler e reler incansavelmen­
te os mesmos textos; por outro, a considerá-los a cada leitura sob um
ângulo de abordagem diferente, iniciador de novas perspectivas herme­
nêuticas e iniciáticas. Aparentemente redundante, a repetição permite
de fato um pensamento do tipo “ourobórico”, como o da alquimia das
separações interiores surpreendentes, das quedas no abismo às vezes
vertiginosas, das quedas das quais nada permite prever em que altitude
eles levarão o leitor mais ou menos experimentado.
Guiado por esse estado de espírito, a escolha das ilustrações não
era menos delicada, levando-se em conta a banalização de que essa ico­
nografia, muitas vezes reproduzida, foi objeto. Por isso era necessário
encontrar os meios - por enquadramentos originais, ampliações com
efeitos às vezes surpreendentes - de devolver aos grandes e inevitáveis
clássicos um novo frescor, já que não era inédito. Assim acontece com

110. Título de uma obra de Jean Biès, autor, entre outros, de Les alchimistes, Paris, Éd. du
Félin, 2000.
111. Dom Albert Belin, Apologie du Grand (Euvre ou Elixir des Philosophes (1659), p. 235.
Prefácio A Segunda Ediçáo 61

algumas vinhetas dedicadas por Johann Daniel Mylius (v. 1583-1642)


aos mais ilustres “Filósofos químicos” (Basílica Philosophica.
1518) e aos autores anónimos de tratados canónicos. Reeditadas por Lu­
cas Jennis (1625) e depois por Daniel Stolcius em seu Hortulus herme-
ticus (1627), cias encontram aqui, uma vez separadas umas das outras,
sua função de “selo” colocado no texto do autor citado, cuja divisa então
o leitor descobre, ilustrada por uma cena miniaturizada cuja ampliação
valoriza o interesse estético e o alcance simbólico. Verdadeiros textos iné­
ditos, sem dúvida, ainda existem nas numerosas bibliotecas francesas e
europeias, onde descobertas são ainda possíveis, ainda que não se possa
mais esperar descobrir manuscritos comparáveis aos do Aurora consur-
gens (séc. XV) e do Splendor Solis (cerca de 1535). Pelo menos esta ree­
dição pode pretender beneficiar algumas dessas modestas descobertas.
Enfim, a própria intemporalidade do “espírito de alquimia” militava
em favor da inserção de algumas obras de arte que, não pertencendo
propriamente a essa tradição, no entanto atestam a permanência de
tal estado de espírito, amplamente presente na cultura de uma época
- a de Albrecht Diirer, por exemplo - ou particularmente imponentes
neste ou naquele artista.

A Pedra filosofal, Victor Brauner, 1940.


62 Filosofar pelo Fogo

Unia jovem atiçando o fogo com uma asa de pássaro: desenho de Martin
Schongauer (1469) que pode simbolizar a arte e o espírito da alquimia.
A Alquimia Descrita
por Ela Mesma

Eu sou a fulguração celeste da sabedoria dos anjos, a coragem do sol­


dado, o apogeu da máquina do mundo, o excelente trabalho da glória
real superando todas as ciências deste mundo, o sopro secreto de Deus,
a irmã da Filosofia, o apoio dos Reis, a força dos poderosos, o suor dos
Profetas, a inveja dos Filósofos, o tesouro incomparável, o espelho de
alegria, a derrota da tristeza, a marca da natureza humana. Por isso,
quem me repele será repelido, e os justos, os mais bem justificados, pois
minha voz, mensageira da alegria da salvação, só é ouvida nos Taberná­
culos da equidade [...].
Reinando eu reinarei, e meu reino não terá fim para aqueles que vêm a
mim e me examinam com piedade, engenhosidade e constância.
Autor anónimo
in Theatrum Chemicunu t. II, p. 311-312.
*
* *

O estudo engendra o conhecimento. O conhecimento suscita o amor. O


amor revela a semelhança. A semelhança produz a abundância também
chamada comunidade ou familiaridade. A comunhão gera a confiança.
A confiança, a virtude. A virtude, a dignidade. A dignidade, a potência,
e a potência realiza o Milagre.
Gérard Dorn, De l 'Opération Surnaturelle
(De artificio supernaturali, 1661),
in Theatrum Chemicum^ t. I, p. 419:

-63-
64 Filosof/\r pelo Fogo

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Apoteose do Mercúrio dos Sábios: Alexander von Suchten, Eines wahren


Philosophi und Artzneyen Doctoris Chymische Schriften, Hamburgo, 1680.
1

Prólogo entre o Céu e


a Terra: Revelação de
Hermes Trismegisto
Sc tu não despojas os corpos de sua natureza
corpórca c se nào dás uma natureza
corpórea aos incorpóreos, nada do que esperas acontecerá.
Axioma atribuído a Hermes,
in Marcelin Berthelot. Colffão dos antigos
aLjntniistasgregos, t. III. p. 124

Abundantemente citada e comentada pelos alquimistas ao longo dos


séculos f 2 a Tábua de Esmeralda (Tabula smaragdina) é a quintes-
sência da revelação hermética em sua dupla dimensão especulativa e
operativa. Tornado Trismegisto (três vezes muito grande), Hermes não
mais se contenta em ir e vir entre o céu e a terra, homens e deuses,
como Mercúrio, seu homólogo grego e depois romano. O mensageiro
dá lugar então ao profeta que preside aos destinos do triplo mundo (mi­
neral, vegetal, animal), e isso tanto na ordem macrocósmica quanto na
microcósmica (corpo, alma, espírito). Não se trata mais desde então de
simples circulação, mas de transmutação, quando "a operação do Sol ”
reveste os corpos até então vis e espiritualmente mortos com a “glória
que vem do fogo
Por isso os alquimistas, gregos e depois cristãos, associaram essa
operação tanto à Génese bíblica quanto à ressurreição dos corpos no
dia do Juízo final; e se o hermetismo não é propriamente falando uma
112. Hermes Trismegisto, La Table d'Émeraude et sa tradition alchimique. Paris, as Bellcs
Lcttres, 1994.
-65-
66 Filosofar pelo Fogo

religião, a “revelação ” de que ele é portador contribuiu para que o


Cosmos, pequeno e grande, não fosse excluído da história da salvação.
Essa visão de um mundo unificado e transfigurado perdurará até os
tempos modernos e alimentará ainda a nostalgia do Fausto de Goethe;
“Como as potências celestes sobem e descem passando de mãos em
mãos os selos de ouro! Do céu à terra, elas espalham o orvalho que
refresca o solo árido, e a agitação de suas asas preenche os espaços
sonoros com uma inefável harmonia”

Tábua de Esmeralda
1. É verdade, sem qualquer mentira e muito verídica.
2. Que o que está embaixo é como o que está em cima, e o que está em
cima é como o que está embaixo, para que se realize o milagre de uma
única coisa.
3. E assim como todas as coisas procederam do Um
c" JI
somente pela mediação do Único: da mesma forma
elas nasceram por adaptação dessa coisa única.
4. Seu Pai é o Sol, e a Lua, sua mãe; o vento a carregou
em seu ventre e sua ama de leite é a terra.
5. E o pai de todos os milagres do mundo.
____ 6. íntegra é sua potência, se for convertida em terra.
HERMES TRLSMfj
| fftos, /tffrtdts. j 7. Tu separarás a terra do fogo, o sutil do espesso, sua­
vemente e com grande habilidade.
Hermes Trismegisto, 8. Ela se ergue da terra em direção ao céu e então re­
o Egípcio: O que torna à terra e recebe a energia das realidades superio­
está no alto é como
res e inferiores; assim, tu ganharás a glória do mundo
o que está embaixo.
todo, e toda escuridão se afastará de ti.
9. Esta é em toda a sua força a potência suprema, que dominará qual­
quer realidade sutil e penetrará todo corpo sólido.
10. Assim o mundo foi criado.
11. Suas aplicações serão desde então maravilhosas, segundo as seguin­
tes modalidades.
12. É por isso que eu, Hermes, detendo as três partes da filosofia do
mundo todo, sou com razão chamado Tris-megisto.*
13. E assim está realizado o que eu disse quanto à operação do Sol.
Tábua de Esmeralda (Tabula Smaragdina, scc. IX),
iti Jcan-Jacques Mangcr,
Bibliotbeca Chetnica Curiosa, t. I, p. 381.

113. Goethe, Second Faust, trad. fr. Paris, Garnier, 1969, p. 37.
Prólogo entre o Céu e a Terra: a Revelação de Hera\es Trismegisto 67

*
* *

A presença desse trecho do Corpus Hermeticum (séc. // e III d.C.), em unia


coletânea de textos alquímicos, constitui um dos raios testemunhos dire-
tos - além da proteção de Hermes evidentemente — da interpenetração da
gnose hermética e da tradição alquimica posterior

m dia, como eu meditasse sobre a natureza dos seres, e já que o


espírito tinha se tornado mais sutil e os sentidos corporais inteiramente
adormecidos, senti se abater sobre mim um sono comparável ao de­
sânimo daqueles que um excesso de alimento sobrecarregou ou então
a fadiga devida ao trabalho físico; pareceu-me então ver uma imensa
estátua, de dimensão infinita, e ouvi-la me chamar por meu nome c me
dizer: O que você quer ouvir e ver? E, por meio da concepção intelec­
tual, aprender e conhecer? E então lhe perguntei: E você, quem é você
na verdade? Sou Poimandres, certamente, ele me respondeu, o Espírito
daquele que de todas as coisas é o senhor. Sei o que quer, e estou cm
toda parte com você. Eu lhe disse: Quero aprender a conhecer os seres,
adquirir a inteligência de suas naturezas e acima de tudo compreender
Deus. Mas como? Ele me perguntou. Desejo entender, disse-lhe. Então
se lembre de mim, respondeu ele, e o que você desejar aprender cu lhe
ensinarei. Tendo dito essas palavras, mudou a forma e imediatamente
todas as coisas no espaço de um instante me foram reveladas.
Palavras de Hermes no Poimandrrs (1, 14),
Aurtlium Oaullatn Phitosophtrum,
tn Jean-Jacques Manget,
Bibltotheca Chetnica Curiosa r. II, p. 213.
*
* *

stanes e seus companheiros disseram a Cleópatra: “Em ti está


oculto todo o mistério estranho e terrível. Ilumina-nos, espalhando tua
luz sobre todos os elementos. Diz-nos como o altíssimo desce em di­
reção ao mais baixo, e como o mais baixo se ergue em direção ao mais
alto; como o elemento médio se aproxima do mais elevado, para con­
seguir se unificar nele, e qual é o elemento que age sobre eles; como as
águas benditas descem do alto para visitar os mortos estendidos, acor­
rentados, abatidos nas trevas e na sombra, no interior do Hades;* como
o remédio de vida chega até eles e os desperta, tirando-os de seu sono,
em sua estadia particular; como penetram as águas novas, produzidas
68 Filosofar pelo Fogo

no início do aleitamento e ao longo de sua duração, e vindas pela ação


do fogo. A nuvem os sustenta: ela se eleva do mar, sustentando as águas.
Ora, os filósofos que consideram as coisas assim manifestadas
estão repletos de alegria. E Cleópatra lhes diz: “As águas, ao chegar,
despertam os corpos e os espíritos aprisionados e impotentes”. De fato,
diz ela, eles estão novamente abatidos; e mais uma vez serão trancados
no Hades. Mas pouco a pouco eles se desenvolvem, remontam, vestem
cores variadas e gloriosas, como as flores na primavera; a própria pri­
mavera está alegre e se regozija da beleza delas.
Ora, eu lhes digo, a vocês que são pessoas sensatas: as plantas, os
elementos, as pedras, quando vocês os tiram de seus lugares [naturais],
parecem estar maduros. Eles não o estão, no entanto. Quando eles terão
revestido a glória que vem do fogo, e a cor radiante [que dele resul­
ta], então se manifestará sua glória oculta, a beleza tão procurada e a
transformação divina produzida pela fusão. Pois eles estão alimentados
no fogo, como o embrião, alimentado no ventre da mãe, cresce pouco
a pouco. Quando o mês regulamentar se aproxima, [o embrião] não é
impedido de nascer. É dessa maneira que procede essa arte admirável.
As vagas e as ondas sucessivas desagregam os produtos no Hades, no
túmulo em que foram depositados. Mas, quando o túmulo tiver sido
aberto, eles remontarão do Hades, como o embrião sai do ventre [de
sua mãe].
Os filósofos contemplam a beleza de sua obra como a terna mãe
[contempla] o fruto de suas entranhas; eles buscam então [como a ali­
mentarão], assim como a mãe, seu filho. E isso o que essa arte realiza
quando emprega em vez do leite as águas [que ela prepara]. Ela imita o
desenvolvimento da criança, a maneira pela qual ela é formada e con­
duzida à perfeição. Esse é o mistério oculto sob o selo.
O Livro de Comarius, in Marcellin Berthelot,
Coleção dos antigos alquimistas gregos,
t. III, p. 281-282.
*
* *

/\ ssim, converter e transmutar, para esses autores, significa dar um


corpo aos incorpóreos, isto é, aos materiais fugazes. Por sua transfor­
mação obtém-se o molibdocalque,* o chumbo negro, aquele que deve
ser tratado com o mercúrio, e se tornar o corpo da magnésia.* Eles
não querem dizer, como alguns, que a mutação se aplica ao fato de
converter e transmutar o mercúrio. Mas, quando as matérias fugazes
adquiriram um corpo, a conversão acontece para todos os corpos, por
Prólogo entrf. o Céu e a Terra: a Revelação de Hermes Trismegisto 69

sua tintura em branco ou em amarelo. Dc fato, essa conversão é cha­


mada transmutação, depois que os incorpóreos adquiriram um corpo,
pelo efeito da arte. Na conversão retrógrada realizada pelo fogo, isto
é, no branqueamento ou no amarelamento, as matérias muito diluídas e
associadas pelo fogo se tornaram muitas vezes fugazes c novamente se
tornam incorpóreas. Nesse momento elas estão reduzidas ao último grau
da divisão. O vapor sublimado, a primeira das matérias incorpóreas, con­
duz assim à arte suprema.
Zózimo, “Sobre o corpo da magnésia”,
in Marccllin Berthelor,
Colrfào dos antigos alquimistas gregos, t. III. p. 191.

*
* *

ortanto, eu, Hortulano, chamado Jardineiro por causa da consagra­


ção dos Jardins marítimos e coberto com o velo de Jacó, indigno de
ser chamado discípulo da Filosofia, mas encorajado por minha afeição
por ser querido, empreendo redizer a proclamação certamente contida
no discurso de Hermes, Pai dos Filósofos; discurso que, sendo obscuro
e secreto, expôs, no entanto, em sua total ver- . .. .
dade a prática da obra verdadeira, assim como L
testemunha o cansaço de meus dedos. A dissi-
mulação demonstrada pelos Filósofos em seus f
serve para nada ali onde se ope­
propósitos não------------------------ ”o
ra a doutrina do Espírito Santo.
O Filósofo diz, com efeito: VERUM, ou
seja, que a arte da Alquimia nos foi dada SEM rg»
MENTIRA. Ele diz isso para a execração da­ HortvlanvsPh
queles que pretendem ser essa arte mentirosa, ItfòAw CJúnnúuj.
ou seja, falsa. EVIDENTE, isto é, experimen­ Hortulano, Filósofo e
tada. Pois toda coisa que foi experimentada se Alquimista: Somente
torna muito evidente e MUITO VERDADEIRA, aquele que sabefabricar
porque o Sol muito verdadeiro é procriado pela a Pedra dos Filósofos
arte. E Hermes fala realmente a verdade no compreende o que eles
grau superlativo, pois o Sol engendrado por dizem sobre essa Pedra.
essa arte supera qualquer sol natural em todas as propriedades, mé­
dicas e outras [...].
Por isso, essa Pedra é qualificada como perfeita, pois possui em si
a natureza mineral, vegetal e animal. A Pedra é de fato trina e una, tendo
I

70 Filosofar pelo Fogo

quatro naturezas, ou seja, quatro Elementos, e três cores, isto é, o negro, o


branco e o vermelho. Ela também é nomeada grão de fermento, porque
somente perdura o que terá conhecido a morte. E se morto ele estiver, como
se acabou de dizer, sua união na conjunção trará muitos frutos, como reve­
lam as operações completas descritas anteriormente. O caro leitor, se você
conhece a operação da Pedra, eu lhe disse a verdade; e, se você a ignora,
eu não lhe disse nada. O QUE EU DISSE SOBRE A OPERA ÇÃO DO SOL
ESTÁ COMPLETO, o que significa: completo é o que eu lhe disse sobre a
operação da Pedra, três cores, e quatro Elementos se manifestam como foi
dito em uma só coisa, ou seja, no único Mercúrio filosófico.
O Hortulano, Comentário da Tábua de Esmeralda (séc. XIV),
in Arte Química (Ars Chenuca, 1566),
p. 34-35 c 46-47.
*
* *

1 Xssim, meu filho, você separará a terra do fogo, o espesso do sutil,


suavemente e com engenho, isto é, você separará as partes unidas por
meio da dissolução e da separação, como a terra do fogo, o sutil do espes­
so, etc.; ou seja, a mais pura substância da Pedra, até que ela se torne lim­
pa, sem nenhuma mancha nem sujeira. E quando Hermes diz: “Ela sobe
da terra ao Céu e depois, mais uma vez, retorna à terra”, é preciso com­
preender a sublimação dos corpos. Além do mais, para explicar melhor
a destilação, ele diz que o vento a levou em seu ventre, ou seja, quando
água destila pelo alambique, onde ela sobe primeiramente pelo vento fu­
marento e vaporoso, e depois retoma ao fundo do vaso ainda como água.
Querendo assim demonstrar a congelação da matéria, ele diz: “Sua força
está intacta se ela retoma como terra”, isto é, se ela é convertida em terra
por meio do cozimento. E geralmente para demonstrar todas essas coisas,
ele diz: “E ela receberá a força inferior e superior”, isto é, dos Elementos,
porque, se a Medicina recebe a força das partes leves, a saber, do ar e do
fogo, ela também recebe as partes pesadas, as graves se mudam em água
e em terra, e isso para que as matérias assim perpetuamente reunidas te­
nham permanência, morada, firmeza e estabilidade.
O Livro de Sinésio, in Três tratados da Física natural,
(1659), p. 98, tf. também William Salmon,
Biblioteca dos Filósofos ALpiímicos,
t. 2, p. 193-194.
*
* *
Prólogo entre o Céu e a Terra: a RevelaçAo de Hermes Trismegisto 71

ertamente não será difícil reduzir todas as coisas a um branco simples,


uma vez que elas são feitas por meio de sua natureza:
o Sol é seu pai, a Lua é sua mãe, o vento o trouxe
em seu ventre e engendrou a terra. Foi ele que você
recolheu ao extrair pela destilação a água do ar, o ar
do fogo, e o fogo da terra. E, graças às idas e vin­ O1
das repetidas da sublimação, a alma, efetuando um
movimento ascensional, é de fato limpa pela água e,
voltando à terra até o ponto mais baixo, ela está livre s. fíTu.
de suas partes grosseiras. Faça, portanto, a terra por
meio do fogo, a água por meio do ar, que você enfim | JqhannesDasti
! -nuí .
reduz em terra. Sua potência será de fato completa
quando ele tiver convertido em terra. Converta então John Dastin, o Inglês:
a terra em água, a água em fogo, o fogo mais uma vez A natureza aceita com
em ar, e esconda o fogo na intimidade da água, depois reconhecimento tudo o
a terra no ventre do ar. Misture também o quente com que agrada a Deus.
o úmido, o seco com o frio, para que você realize
assim uma mistura, pois só existe transição de um extremo ao outro graças
a um meio-termo. Assim, a águia voando pelo ar e o sapo andando sobre
a terra são todo o Magistério. Você separará consequentemente a terra do
fogo, o sutil do espesso, suavemente e com grande habilidade. Ele sobe da
terra para o céu, e novamente desce para a terra. Recebe a força superior
do espírito e a inferior, do corpo, porque ele vence qualquer coisa sutil
pelo congelamento e penetrará alterando-a qualquer coisa sólida. Assim ele
reina de fato sobre as coisas superiores e inferiores porque opera tanto nos
espíritos quanto nos corpos.
(Rosarium, Arcantttn Phtlosophorutn secrrtissimufn
comprchendcns, séc. XIV), in Jean-Jacqties Mangct,
Bibliotheca Chanica Curiosa, r. 2, p. 316.
*
* *

Filho perguntou a Hermes: os Enxofres que convêm à nossa obra


são celestes ou terrestres? E Hermes respondeu: Existem os celestes, e
também os que são terrestres.
Então o Filho lhe disse: Meu pai, eu creio que o céu é o coração
nas coisas superiores, e a terra o é nas inferiores. Ao que Hermes res­
pondeu: Você não está certo. Pois o macho é o céu da fêmea, e a fêmea
é a terra do macho.
Em seguida o Filho lhe perguntou: Qual dos dois é o mais digno
de ser o Céu, ou de ser a Terra? Hermes respondeu: Eles necessitam um
72 Filosofar pelo Fogo

l: í

O vento o carregou em seu ventre Michael Maier,


Atalanta fiigiens, 1618, emblema I.

do outro, porque em todos os preceitos só comandamos a mediocridade.


Como se dissesse: O Sábio comanda a todos os homens. Pois o medí­
ocre é o melhor; porque qualquer tipo de Natureza se associa e se une
muito melhor com aquela que lhe é semelhante. E nossa Ciência, que é
chamada Sabedoria, revela-nos que apenas as coisas medíocres e tem­
peradas se unem.
O filho disse então: Meu Pai, qual desses dois é o medíocre? Her­
mes respondeu: Para cada Natureza existem duas ou três. A Água é
primeiramente necessária, depois o Unguento ou Enxofre, e as fezes*
ou impurezas permanecem embaixo.
Ora, o Dragão* se encontra em todas essas coisas. As trevas são
sua casa, e o negrume está nelas. E, por esse negrume, ele sobe no Ar. E
esse Ar é o Céu, onde ele começa a surgir como em seu Oriente. Porém,
Prólogo entre o Céu e a Terra: a Revelação de Hermes Trismegisto 73

enquanto essas coisas se elevam como uma fumaça e se evaporam, elas


não são permanentes nem fixas.
Mas faça repousar a fumaça na Agua, retire o negrume do
Unguento e expulse a morte das fezes e da impureza. E estando feita
a dissolução pela vitória que as duas Matérias obtiveram uma sobre a
outra, e tendo-se unido em seguida, de forma que ambas se preservem,
então elas estão vivas.
Meu filho, você deveria saber que o Unguento medíocre, isto c. o
Fogo, mantém o meio entre as fezes e a Agua, e é ele que busca a Agua;
porque os chamamos Unguento c Enxofre, e que existe uma grande afi­
nidade entre o Fogo, o Óleo e o Enxofre, pois, assim como o fogo lança
uma chama, o mesmo faz o Enxofre.
Saiba, meu Filho, que todas as sabedorias do mundo estão abaixo
da sabedoria que eu possuo; e que tudo o que sua Arte pode fazer con­
siste em tornar esses Elementos ocultos c escondidos, o que é uma coisa
maravilhosa.
Os Sftf Capítulos atribuídos a Hrrutts,
tnWilliam Salmon,
Biblioteca dos Filósofos ALptímiíos.
t. I. p. 28-31.
*
* *

rande é portanto a majestade de nossa filosofia, pois se é. assim como


a Ciência, tão mais recomendável e admirável quanto o sujeito é sublime,
grande e virtuoso, essa Ciência vem em segundo lugar, depois da Teologia.
E o três vezes grande Hermes,* não sabendo como expressaria a virtude
desse glorioso sujeito, diz: ele é a força de todas as coisas vencendo e pe­
netrando todas as coisas sólidas, a glória e a clareza de todo o mundo. E
também esse gênero oniforme114 ao qual se conforma a própria criação do
Universo. É ainda esse sujeito que se conforma à difícil união que acontece
na Terra e nos Céus. É, digo ainda, essa dupla árvore da vida, que com uma
harmonia admirável segue a do alto Céu. Enfim, é o Sol torri ficado,’15 cuja
primeira matéria mantém em poder os sete astros de nossa baixa astrono­
mia, o qual não cede em nada a todos os segredos do mundo.
Hcnri de Linthaut
A Aurora (séc. XVI). ms. n. p.
*
* *

114. Omniforme (?)


115. Transformado em terra.
74 Filosofar pelo Fogo

JL aça com que o que está em cima venha para baixo, o que é visível se
torne invisível e o que é palpável, impalpável; e, novamente, faça com
que o que está embaixo se eleve para o alto, torne o invisível visível
e o impalpável, palpável: essa é a totalidade completamente perfeita,
sem nenhuma falta nem diminuição, em que residem a morte e a vida,
a destruição e a ressurreição. E uma esfera perfeitamente redonda com
a qual a deusa da Fortuna avança sua carruagem, e concede aos homens
de Deus o dom da sabedoria. Nenhum nome mais apropriado poderia
lhe ser dado pela inteligência das realidades temporais do que aquele
de todas as coisas em todas as coisas: acima das próprias realidades
eternas se mantém esse árbitro e juiz supremo.
Se agora alguém desejar o que é todas as coisas em todas as coi­
sas, confeccione asas enormes para um animal
selvagem; que o empurre até o extremo para que
ele alce seu voo e percorra os ares, eleve-se até
a mais alta região do céu, e então lhe queime as
asas com um fogo muito forte a fim de que a terra
seja a primeira a cair de cabeça em um mar ver-
K i melho e ali comece a sufocar; e pelo fogo e pelo
ar corte a água para que uma terra seja então no­
vamente feita: você terá então, eu lhe digo, todas
Basilivs Vaixn,.
’ tmus Mcma,: as coisas em todas as coisas.
Se você não puder alcançar isso, procure em
Basile Valentin, monge:
si mesmo, e em todos os lados você observará um
O Ouro é o pai da
Tintura;, a Prata-viva,
círculo em torno de todas as coisas que é possí­
sua mãe; Mercúrio, seu vel descobrir através do mundo: você obterá então
avô; a Agua mercurial; todas as coisas em todas as coisas que é a virtu­
sua avó. de atrativa de todas as coisas metálicas e vegetais
oriundas do Enxofre e do Mercúrio, e uma segun­
da vez nascidas do Mercúrio: mais do que isso não caberá a mim dizer o
que são todas as coisas em todas as coisas, uma vez que todas as coisas
foram compreendidas em todas as coisas.
Basile Valentin, Da Grande Pedra dos Antigos Sábios
(De Magno Lapide Antuptoruni Sapientmn, séc. XV?),
in Jean-Jacqucs Manget,
Bibliotheea Chenitca Curiosa, c. II, p. 411.
*
* *
Prólogo entre o Céu e a Terra: a RevelaçAo de Hermes Trismegisto 75

lE/ ssas palavras, ao que parece, não proclamam nada além do que o
próprio Moisés ensina quanto ao início da Génese física, e que Hermes
diria da seguinte maneira: a Arte espagírica é ensinada por meio de uma
meditação sobre a criação do mundo, na qual vemos que foram cria­
das tanto as águas inferiores quanto as águas superiores, e que foram
criadas as águas superiores como certamente foram criadas as águas
inferiores; e isso foi feito para que sejam realizadas as obras maravi­
lhosas de uma única coisa. E, assim como todas as coisas procedem por
concepção mental de um Deus criador único, e em primeiro lugar apenas
de um mundo único, assim também todas as coisas foram cm seguida
criadas, graças a um arranjo, essencialmente a partir desse único mundo.
Por essa comparação que mostra alguma similitude com a criação do
mundo, ele ensina até hoje que sua Arte espagírica teve um primeiro iní­
cio. Depois disso, indo da teoria para a prática, ele diz: O Pai dessa coisa
que desejo lhes ensinar, ou seja, a medicina universal, é o Sol terrestre,
ou melhor, ainda ígneo, e a Lua aquosa. O ar carregou essa medicina
ígnea em seu ventre, e a Terra a alimentou. Sua perfeição será conhecida
quando ele acolher no final da obra a forma concentrada da terra.
Veja, agora você tem todo o resumo da preparação, que pode até
certo limite ser adaptada pela imitação à totalidade do mundo, de que
você obterá até mesmo a origem da prática. Você separará as águas
inferiores de suas trevas já liberadas e, se repetir isso com frequência,
das águas superiores e mais sutis, e isso por meio de um fogo suave e de
uma grande dedicação. Que seja assim feito, para que dessa maneira a
gestação espagírica terrestre revista por ascensão sua natureza celeste,
e receba em seguida de maneira manifesta, por sua descida, a natureza
do centro terrestre; a natureza celeste não sendo menos retida no centro
oculto da terra, que ela tinha adquirido pela ascensão. Se de alguma ma­
neira a glória temporária advém a partir do mundo todo, você aprenderá
nessa arte como expulsar de si certa escuridão, tanto corporal quanto
mental, para que se comporte bem.
Nesse remédio residem também vigor e valentia, para além de
qualquer modo de cura, uma vez que ele vence o mal sutil e espiritual
no espírito humano, e que penetra e coloca em movimento toda a vida
do corpo, tanto interna quanto externa, bem como em sua integral idade;
espera-se que esse remédio tenha sido confeccionado da mesma ma­
neira pela qual o mundo foi criado. Que seja então por essa maravilha
efetuado o tratamento das doenças, de que você detém aqui o meio e
76 Filosof/Xr pelo Fogo

‘*5’

Aleitamento do Filho dos Filósofos: Johann Daniel Mylius,


Philosophia reformata, Frankfurt, 1622.

a via graças à transmissão, por mim, Hermes Trismegisto, dessa arte


espagírica em um discurso de poucas palavras. É por essa razão que
sou chamado Hermes Trismegisto, pois ensino triplamente que a filo­
sofia natural do mundo todo encontra sua realização na obra do Sol
espagírico.
Gérard Dom, Comentário da Tabula Smaragdina (séc. XVI),
in Jean-Jacqucs Manget,
Bibliothcca Chemica Curiosa, 1.1, p. 389-390.
*
* *

ão menos sábio quanto ao seu cronograma do que poderoso em


sua criação, o eterno autor das coisas dividiu a massa orgânica do Mun­
do em uma ordem tão notável que se entrecruzam sem se confundir as
coisas mais elevadas com as mais profundas, e as mais profundas com
Prólogo entre o Céu e z\ Terra: a Revelação pe Hermes Trismegisto 77

as mais elevadas, todas mutuamente religadas por determinada seme­


lhança analógica. De forma que as extremidades de toda a obra estão,
por um nó secreto, muito estreita e rigorosamente unidas por meio de
intermediários insensíveis, e que todas espontaneamente concorrem,
tanto em sua obediência ao moderador supremo quanto no interesse
da natureza inferior, uma vez que estão prontas a se dissolver ao único
comando daquele que as uniu: é por isso que, com razão, Hermes pro­
clamou que o que está em cima é como o que está embaixo.
Jcan JEspagnct. A Filosofia natural restituída
(Enchtridion Pbxsicar Restituir, 1623),
in Jcan-Jacqucs Manget. Rtbhotbeca Cbetntca Curiosa,
r. II. p. 627.
*
* *

ertamente um ponto pleno de admiração


Que o alto e o baixo são apenas uma mesma coisa,
Para fazer de uma única em todo o mundo encerra,
Efeitos maravilhosos pela adaptação.
De um único fez toda a meditação,
E por parentes, matriz e ama de leite, nós lhe damos
Febo, Diana, o ar, e a terra, onde repousa
Essa coisa em que vive toda perfeição.
Se a mudamos em terra esta tem sua força inteira, Meu pai, o Sol, tem toda
Separando pela grande arte, mas de fraca maneira, a potência de (pie
O sutil e o espesso, e a terra do fogo. o mundo inteiro
Da terra ela sobe ao céu; e depois como terra está à procura.
Do Céu ela desce, recebendo pouco a pouco
As virtudes de todos os dois que em seu ventre ela encerra.
Clovis Hesteau de Nuiscment,
Comentário ou exposição da Tábua de Esmeralda
de Hermes Trismegisto, in Obra da Física Natural (1640). n. p.
*
* *
78 Filosofar pelo Fogo

Pirofilia

passagem da Tábua de Esmeralda do grande Hermes prova a ex­


celência da Pedra, na medida em que ela revela que a Pedra é dotada de
duas naturezas, a saber, a dos seres superiores e a dos seres inferiores; e que
essas duas naturezas, bem semelhantes, têm uma única e mesma origem.
De forma que devemos concluir que, estando perfeitamente unidas na Pe­
dra, elas compõem um terceiro ser de uma virtude inefável. Mas eu não sei
se vocês compartilham do meu sentimento, em relação à tradução dessa
passagem e comentário de Hortulano. Lemos depois
estas palavras: o que está embaixo é como o que está
em cima; e o que está em cima é como o que está em­
baixo. Lemos (eu digo) parafazer os milagres de uma
única coisa. Para mim, penso que o original em latim
tem outro sentido.116 Pois o quibus, que faz a união
das últimas partes com as precedentes, quer dizer por
meio dessas coisas (isto é, pela união dessas duas na­
turezas) fazemos os milagres de uma única coisa. 0
para, de que o tradutor e o comentador se serviram,
John Dastin. Roseira, com­ destrói o sentido e a razão de uma passagem, que por
preendendo o secretíssimo sua vez é bem justa e bem inteligível. Digam-me, por
Arcano dos Filósofos favor, se minha observação é bem fundamentada.

Eudoxe

ào apenas sua observação é justa, como é também muito importan­


te. Confesso que jamais tinha refletido sobre isso; dessa forma você faz
o provérbio mentir, visto que o discípulo se eleva acima do mestre. Mas,
como eu havia lido a Tábua de Esmeralda muito mais em latim do que
em francês, o defeito da tradução e do comentário não me tinha causado
confusão, como ela pode causar aos que só leem em francês esse Resumo
da sublime Filosofia de Hermes. Com efeito, a natureza superior e a na­
tureza inferior não são semelhantes para operar milagres; mas é porque
elas são semelhantes que podemos por meio delas fazer milagres de uma
única coisa. Você vê, portanto, que concordo absolutamente.
A antiga guerra dos Cavaleiros
ou o Triunfo hermético (1699),
in William Salmon, Biblioteca dos Filósofos Alquimia»,
t. 3, p. 252-253.

116. O texto em latim é o seguinte: Quodest inferius, est sicut quodestsuperius, et quodest
superius, est sicut quod est inferius, ad perpetanda miracula rei unius.
Prólogo entre o Céu e a Terra-, a RevelaçAo oe Hermes Trismegisto 79

eus tirou a Natureza do vazio pela virtude de seu Verbo, o qual ele
havia engendrado há muito tempo. Ele quis, e o Verbo engendrou um
vapor, um nevoeiro ou uma fumaça imensa, e ali imprimiu sua virtude,
isto é, um espírito pleno de força e potência. Esse vapor se condensou
em uma água que os Filósofos nomearam universal e caótica, ou sim­
plesmente o caos, é dessa água que o Universo foi formado: é ela que
foi, como ainda é e será sempre, a matéria-prima de todas as coisas
naturais [...]
Enfim, entre o céu e a terra nós só vemos vapores, fumaça e água,
que, levadas pelo calor central da terra, se sublimaram e subiram de
nossa esfera composta de terra e de água para a região do ar; c se pu­
déssemos perceber as sutis emanações ou os vapores sutis dos céus, ve­
ríamos suas influências, que descem de cima para baixo, se misturarem
e se unirem com os vapores terrestres que se sublimam no alto; mas,
se não podemos vê-los por causa da fraqueza de nossa visão, devemos
concebê-los por meio de nosso espírito, em seguida torná-los palpáveis
pela prática da Alquimia, e sentir que tudo o que acontece no microcos­
mo também acontece no macrocosmo, e que o que está em cima é como
o que está embaixo [...].
Não podemos ir de uma extremidade á outra sem passar pelo meio.
Esse axioma dos Filósofos é e sempre será verdadeiro, e os Artistas de­
vem realmente aprendê-lo; pois existe uma infinidade deles que erram,
por não observar e não considerar esse ponto essencial o suficiente. De
fato o céu só poderia se reduzir em terra por meio da água e do ar, e
a terra não pode jamais se tornar céu, sem a água e o ar, como coisas
médias entre o céu e a terra, assim como o céu muito dificilmente se
reduzirá em água, sem o ar, e a terra só se tornará ar por meio da água.
O céu é sutil, puro, claro e muito volátil, a terra, ao contrário, é gros­
seira, espessa, tenebrosa e muito fixa, e se alguém empreendesse unir
e fixar o céu, que é muito volátil, à terra, que é muito fixa, ele jamais
conseguiria; mas o muito volátil voaria ao mínimo calor, e retornaria ao
seu caos, abandonando o fixo.
Que um Artista tenha, portanto, sempre esse ponto diante dos
olhos, isto é, saber que nunca, em qualquer tipo de coisa, o muito sutil
e o muito fixo se deixam ligar e unir, sem seu meio conveniente; de
outra forma ele perderá sua matéria, seu tempo e seus gastos. Assim,
quem quer que deseje reduzir o céu ou o fogo em terra, deve uni-los
antes com seu meio, e então eles se unirão no mesmo instante; ao passo
que, sem isso, seria necessário, por assim dizer, quase uma eternidade
para uni-los. Faça descer o céu no ar, como seu meio, eles se unirão sem
80 Filosofar pelo Fogo

combate, porque ambos são de uma natureza sutil: assim que estiverem
unidos, dê-lhes água, como um meio entre o ar e a terra, eles se unirão
no mesmo instante; em seguida dê-lhes a terra, dessa maneira a união
se fará por graus intermediários convenientes, descendo de um grau
muito sutil a um sutil, de um sutil a um mais espesso, deste a um muito
espesso, e não imediatamente de um muito sutil para um muito espesso.
Ao contrário, reduza a terra em ar pela água ou por meio da água, a
água em ar pelo ar, e este em céu pelo céu, pois todos são uma mesma
coisa, quanto à sua matéria e à sua origem, por isso um deve ser a ajuda
e o condutor do outro, e devemos preparar um por meio do outro [...].
Observando todas essas coisas é que conheceremos o superior e o
inferior de Hermes, a corrente* de ouro de Homero, o anel de Platão, e
que seremos convencidos de que uma coisa se transmuta em outra e se
torna, pela vicissitude das coisas, a mesma ou semelhante àquela que
ela foi anteriormente.
A Natureza revelada ou a Teoria da Natureza (1772).
Tradução da Aurea Catena Hotneri, dc
Anton Joseph Kirchweger (1723),
1.1, p. 2, 5-6, 15-17 c 35.

“ Visita o interior da terra e tu encontrarás a Pedra oculta ”


(V1TRJOL): Aureum Vellus oder Der Giildin Schatz und
Kunstkammer, Rorschach, 1598.
I

Thoth e Osíris se preparando para julgar um defunto:


papiro da época ptolomaica.
2

A Argamassa
Mística Egípcia
Mercúrio foi chamado Hermes* três vezes o grande
Por causa de sua força de alma e de seus poderes.
Ele tratou por escrito de muitas maravilhas.
Expôs prudentemente a obra da alquimia.
Daniel Stolcius,
Virtdaríum chymicum (1624)

Uma tradição bem estabelecida quer que o Egito tenha sido o berço
do hermetismo, assim como da alquimia, essa “arte divina ” cujo se­
gredo teria sido revelado pelo anjo Amnãel a Isis, por quem ele estava
encantado; a qual por sua vez teria transmitido a seu filho Hórus o
ensinamento de Hermes, cuja alma possuía “o vínculo de simpatia com
os mistérios do céu ” (Corpus Hermeticum). A morte e a ressurreição
solar de Osíris pareciam, por outro lado, anunciar as de Cristo e sim­
bolizar o destino da “matéria “posta em Obra pelos alquimistas. Ainda
que o Egito permaneça realmente o coração, o lar da revelação atribuí­
da a Hermes Trismegisto, muitos alquimistas ocidentais ampliaram sua
expansão para toda a bacia mediterrânea e o Oriente médio (Caldeia,
Mesopotâmia, Pérsia, Palestina).
Uma espécie de tradição primordial e oriental assim surgiu, cuja
anterioridade venerável parece atestar a superioridade sobre o mun­
do grego. Às vezes colocados entre os “fazedores de ouro ”, os filóso­
fos gregos são então reconhecidos por não terem ainda traído, como
o farão seus sucessores, a verdadeira filosofia revelada por Hermes
Trismegisto, três vezes “grande ”, na medida em que ele teria sido ao
mesmo tempo Filósofo, Sacerdote e Rei (Michael Maier). Ainda que
se relacione a origem à tríade egípcia (Osíris, ísis, Hórus) ou a uma

-82-
A Argamassa Mística Egípicia 83

filiação mais ampla, a transmissão ininterrupta dos segredos próprios ao


“sacerdócio “ alquímico convida a se perguntar se uma simples quimera
teria conseguido suscitar tal perenidade, acompanhada de uma tão im­
pressionante “conformidade de ideias e de princípios ” (Dom Pernéty).
*
* *

Os mistérios do Egito: arte sagrada e transmissão iniciática


1. ísis, a Profetisa, ao seu filho Hórus: “Tu deverias te afastar, meu
filho, e ir combater contra o infiel Tífon, pelo trono de teu pai. Eu mesma
fui a Hermontis, cidade [em que se cultiva] a arte sagrada do Egito, e
ali passei certo tempo. Com a ajuda das circunstâncias, c da revolução
necessária do movimento das esferas, aconteceu que um dos anjos que
residem no primeiro firmamento, tendo me contemplado lá de cima, quis
se unir a mim. Ele avançou, dispondo-se a realizar seu objetivo: mas cu
não lhe cedi de forma alguma, já que desejava aprender com ele a prepa­
ração do ouro e da prata. Como eu o interrogasse a respeito, ele me disse
que não lhe era permitido se explicar sobre isso, visto a alta importância
desses mistérios, mas que, no dia seguinte, viria um anjo mais alto, o anjo
Amnãel, e este poderia me dar a solução para a questão.
2. E disse-me que ele traria um sinal sobre a cabeça e me mostraria
um pequeno vaso não untado com piche, cheio de água transparente.
Ele não quis me revelar a verdade.
3. No dia seguinte, quando o sol estava no meio de seu caminho,
surgiu o anjo Amnãel, mais alto do que o primeiro: tomado do mesmo
desejo a meu respeito, ele desceu em minha direção, não permaneceu
imóvel, mas dirigiu-se rapidamente ao lugar em que eu estava, e eu não
parava de me informar sobre a questão.
4. E como ele demorasse [a me responder], não me entreguei, mas
contive seu desejo até que ele me fez ver o sinal que trazia na cabeça e me
transmitiu sem reserva e com sinceridade os mistérios que eu procurava.
5. Enfim, ele me mostrou o sinal e começou a revelação dos mis­
térios; proferindo juramentos, ele se expressou assim: Eu te juro pelo
céu, pela terra, pela luz e pelas trevas; eu te juro pelo fogo, pela água,
pelo ar e pela terra; eu te juro pela altura do céu, pela profundidade da
terra e do Tártaro; eu te juro por Hermes, por Anúbis, pelos gritos do
Kerkoros,117 pela serpente que guarda o templo; eu te juro pelo tanque
e pelo rochedo do Aqueron; eu te juro pelas três Necessidades (Parcas),
pelos Chicotes (Fúrias), pela Espada.
117. Primeiro profeta de Amon (Her-Hor), que aqui é um personagem infernal.
84 Filosofar pelo Fogo

6. Após todos esses juramentos, ele me pediu para nada comunicar


a quem quer que fosse, exceto meu filho querido e legítimo, para que tu
mesmo fosses ele e ele fosse tu. Assim, portanto, observa de passagem,
interroga o agricultor Acharantos e aprende com ele qual é a semente
e qual é a colheita, e tu saberás que aquele que semeia o trigo colhe o
trigo, que aquele que semeia a cevada colhe a cevada.
ísis a Hórus. in Marcellin Berthelot.
Coleção dcs antigos alquimistasgregos ' 1888 .
l III. p. 31-33.

*
* *

7
Z-/
ózimo a Teosébio, salve!
Todo o reino do Egito, ó Mulher, depende dessas duas artes, a das [tin­
turas] convenientes e a dos minerais. A arte chamada divina, seja em
suas partes dogmáticas e filosóficas, seja na maioria das questões de
menor alcance, foi confiada a seus guardiões por sua substância. Isso
acontece não apenas com essa arte, mas ainda com as quatro artes cha­
madas liberais e com as artes manuais. Sua potência criativa pertence
aos reis. Se eles o permitem, aquele a expõe de viva voz, ou a interpre­
ta a partir das estrelas, que recebeu seu conhecimento como herança
de seus antepassados. Mas aquele que possuía o conhecimento dessas
coisas não fabricava [para si mesmo], pois ele teria sido punido; assim
como os artesãos que sabem cunhar a moeda real não têm o direito de
cunhá-la para eles mesmos, sob pena de castigo. Assim como também,
sob os reis egípcios, os artesãos da arte do cozimento e os que possuíam
o conhecimento dos procedimentos não operavam para si mesmos, mas
para os reis do Egito, e trabalhavam em prol de seus tesouros. Eles ti­
nham chefes particulares colocados acima deles, e grande era a tirania
exercida na arte do cozimento, não apenas em si mesma, mas também
em relação às minas de ouro. Pois em relação à escavação, era uma re­
gra entre os egípcios a necessidade de uma autorização escrita.
Zózimo, O Primeiro Livro do Cálculo Final
in Marcellin Berthelot,
Coleção dos antigos alquimistas gregos (1888),
t. III, p. 231.
*
* *
A Argamassa Mística Egípicia 85

d^uero, portanto, anunciar urna nobre, sábia e antiga fonte e ver­

dadeira raiz dessa palavra CHEMIE que me foi ensinada por um dos
ilustres dessa época [...]. Ele me respondeu que CHEMIA ou ALCHE-
MIA significava A CIÊNCIA do Egito, e que tínhamos ignorado até
agora que a maneira de falar CHEMIE vinha de chemi, antiga maneira
de falar dos coptas; tirada de Cham [Cam], filho de Noé, que o Egito
tinha recebido como um dom natural, e que nessa língua copta, que é a
antiga do Egito, também chamada faraónica, Chemi significava o Egito;
de onde se derivou a palavra CHEMIA ou ALCHEMIA para explicar a
Ciência dos egípcios, de onde os Filósofos garantem que se originou o
primeiro conhecimento [...].
Ora, voltando à nossa ciência Alquimia, vários filósofos se an­
gustiaram para encontrar quem foi seu primeiro inventor e operador.
Alguns disseram que foi um Filósofo chamado Alchimus. de quem veio
o nome de Alquimia. Outros dizem, com uma evidente razão, que foi
Adão, o primeiro homem criado por Deus no sexto e último dia de sua
operação, e à sua imagem e semelhança: ao qual Deus o criador deu a
partir de então verdadeiro e perfeito conhecimento de todas as coisas
do mundo que ele criara nos cinco dias precedentes: com pleno po­
der e senhoria sobre elas, para usá-las na conservação de seu ser c de
sua posteridade. Eles dizem também que, depois do dilúvio universal,
Noé encontrou essa ciência entre as outras artes liberais, que os Antigos
mais sábios do primeiro século teriam gravado em dois pilares, um de
madeira, o outro de pedra; eles foram colocados no Vale de Hebron,
para servir aos do século futuro, que é esse em que vivemos ainda pela
graça de Deus.
Quanto à minha opinião, considerando bem mais superior a ori­
gem dessa nobre Ciência: creio que esse mesmo grande Deus criador
do Universo foi o primeiro e o mais excelente Alquimista que existiu
e jamais existirá. Pois assim que lemos os livros da Sagrada Escritura,
não tendo criado desde o início senão uma matéria confusa, a que cha­
mamos caos, dela ele extraiu os quatro Elementos, e estes foram sepa­
rados um do outro e colocados cada um em seu próprio vaso por meio
de sua divina Alquimia.
Breve discurso das admiráveis virtudes do Ouro potável
Composto pelo Senhor da Tourrete
(1575), p. 4-5 e 38-39.

*
* *
86 Filosofar pelo Fogo

•)3§ RTi-ND
s caldeus, os persas e os egípcios obtiveram
à? ,,< dos segredos da natureza um conhecimento idênti­
j£ co e uma mesma religião. Os caldeus e os persas,
contentando-se em modificar os nomes, nomeiam
sua doutrina “Sophia” (sabedoria) e “Magia”.

*4!ué i>
11 Quanto aos egípcios, eles dão à sua sabedoria o
nome de sacerdócio r
------------------------- - causa de seu destino sa-
por
? 515 criticai. A Magia dos persas e a Teologia dos egíp-
cios eram outrora simultaneamente ensinadas nas
escolas, e foram muitas na Arábia, na África e na
Grécia as escolas e os homens sábios como Albu-
mazar, Abenzagel, Geber, Rasis e Avicena, entre os
árabes; Machaon, Podalire, Pitágoras, Anaxágo-
Hermes Trísmegisto sob os ras, Demócrito, Platão, Aristóteles e Rodianus,
traços do rabino Abraão entre os gregos; no entanto, dissensões exis­
Eleazar. Uraltes chymisches tiram entre eles, cujas concepções variaram
Werk, Erfurt. 1735. para tudo o que diz respeito à sabedoria dos
egípcios. Esta é a razão pela qual Pitágoras re­
cusou ser chamado Sábio: porque ele não tinha recebido um ensino
suficientemente completo do sacerdócio e da sabedoria da forma como
eram praticados pelos egípcios. E ainda que ele tenha extraído dessa sa­
bedoria inúmeros e profundos mistérios, Anaxágoras, no entanto, divergiu
dos egípcios em muitos pontos, como aparece manifestadamente nas inú­
meras controvérsias que ele manteve sobre o Sol e sua Pedra, e que deixou
após sua morte. Péla mesma razão os discípulos de Hermes não quiseram
ser chamados nem de Sábios nem de Magos, mas, e nisso imitando Pi­
tágoras, adotaram o título de Filósofo, e isso ainda que tenham retido da
Magia dos persas e dos egípcios apenas algumas centelhas comparáveis
no máximo às sombras. É que na verdade Moisés, Abraão, Salomão, Elias
e os Magos vindos do Oriente para venerar o Cristo foram os verdadeiros
Magos e Sábios divinos, e os autênticos cabalistas.* Ora, dessa arte e des­
sa sabedoria os gregos só tiveram uma experiência mínima, e até mesmo
inexistente. É por isso que nós nos desinteressamos da sabedoria filosófi­
ca grega, como de uma pura especulação distante e separada demais, sob
qualquer ângulo que a consideremos, das outras artes verídicas.
Gérard Dorn, A Aurora ou o Tesouro dos Filóso/os
(Aurora seu Tbesaurus Philosophorum, IS??'),
p. 12-13.
*
* *
A Argamassa Mística Egípicia

T* . ,
_L/ u nao me deterei para explicarem primei­
ro lugar o nome de Chimie nem para procurar
sua etimologia, mas como nós conhecemos
e só falamos das coisas pelos seus nomes,
e que por isso é preciso ter o conhecimento
dos nomes antes de conhecer as coisas, direi
apenas, de passagem, que mais parece que
essa palavra Chimie vem da de Chemia, que •
é o nome que os antigos sacerdotes davam Hermes representado como Mago
ao Egito na língua sagrada e misteriosa de sua oriental com a tríplice coroa:
religião, na narrativa de Plutarco, que da pa­ Salamonis Clavículas. 1657.
lavra %í)ev que quer dizer fundir, nem na de
%úatq, que significa suco ou licor, porque a Arte de Alquimia [Chimie]
ensinou a fundir os metais e a extrair e destilar os licores dos corpos
mistos, e é por isso que algumas vezes a chamamos Arte destilatóriay
e os alquimistas destiladores. Ainda que essa palavra Chénúey ou, para
falar como o vulgar, Chimie ou Alchimie, acrescentando a ela o artigo
árabe Al, signifique propriamente a Arte ou a Ciência do Egito, onde
muito provavelmente ela começou, uma vez que Hermes, reconhecido
pelos Filósofos como sendo seu autor, e que por essa razão eles o cha­
mam de Pai, era seu Rei, no relato de Cícero, Grande Sacerdote e além
do mais Profeta ou Filósofo. Por essa razão ele foi chamado xvjiòç,
Trismegisto,* isto é, três vezes grande, ou porque tinha as três maiores e
mais excelentes qualidades que os homens possam possuir, pois, como
está dito em sua Tábua Esmeralda > ele tinha o conhecimento de todas
as coisas da Natureza, isto é, dos minerais, dos vegetais e dos animais.
E é por isso que os Filósofos muitas vezes chamam a Alquimia a Arte
ou a Ciência hermética, e a maneira com a qual eles selam seu vaso, o
selo* de Hermes.
William Salmon, Biblioteca dos Filósofos ALjuttnicos
(1741). Prefácio, p. VIII-IX.
*
* ★
-/V^Loisés foi formado em todas as ciências dos egípcios, dentre as

quais a mais secreta, e ao mesmo tempo uma das mais essenciais, era a
da transmutação dos metais: portanto, não devemos nos surpreender ao
vê-lo fundir, calcinar e transformar em pó essa massa enorme do Bezer­
ro de Ouro, do qual em sua ausência o povo de Israel se tinha feito uma
88 Filosofar pelo Fogo

divindade, semelhante a Ápis do Egito. Essa calcinação não pôde ser


feita sem a ajuda do fogo. E mais, Moisés faz dissolver e diluir na água
comum esse ouro calcinado,118 o que é contra todas as experiências,
uma vez que, sem a ajuda de uma ciência particular, o ouro na menor
quantidade que seja sempre se precipita no fundo de todos os licores
ordinários, aos quais o adicionamos.
Ora, é a essa Ciência, é a esse conhecimento particular, que muda
a natureza dos metais, que damos há muito tempo o nome de Filosofia,
ou de Alquimica hermética', e que foi nomeada pelos gregos, e provavel­
mente pelos egípcios, a Arte sagrada, a Ciência divina.
Mas, como estou tratando de um fato da História Sagrada, não
ouso dizer, assim como um célebre autor eclesiástico, que o próprio São
João, o Evangelista, também foi Alquimista. Adam de S. Victor mar­
ca, portanto, em uma prosa, outrora cantada na Igreja, que esse Santo
Apóstolo, para aliviar os pobres, fazia não apenas diamantes, seja com
o pó dessas pedras preciosas, seja com simples pedrinhas; mas ele até
mesmo fazia ouro. E sabemos que a Alquimica hermética não trabalha
menos com as pedras do que com os metais.
Abade Nicolas Lcnglct-Dufresnoy,
História da Filosofa Hermética (1742),
c. I, p. 18-20.
*
* *

e todas as ciências cultivadas na Idade Média, nenhuma, certa­


mente, esteve mais em voga e foi mais apreciada do que a ciência al-
química. Este é o nome sob o qual se dissimulava, entre os árabes, a
Arfe sagrada ou sacerdotal, que tinham herdado dos egípcios e que o
Ocidente medieval deveria, em seguida, acolher com tanto entusiasmo.
Muitas controvérsias se formaram a respeito das diversas etimo­
logias atribuídas à palavra alquimia [...]. Se devêssemos trazer a esse
debate nossa opinião, diríamos que a Cabala* fonética reconhece um
estreito parentesco entre as palavras gregas %£ip.EÍa, /upEÍoc e xEUga,
que indicam aquilo que escorre, brilha, flui, e marcam particularmente o
metalfundido, a própria fusão, bem como todo trabalho feito de um me­
talfundido. Essa seria uma breve e sucinta definição da alquimia como
técnica metalúrgica. Mas sabemos, por outro lado, que o nome e a coisa
estão baseados na permuta da forma pela luz, fogo ou espírito; este é,
pelo menos, o sentido verdadeiro indicado pela língua* dos Pássaros.

118. Êxodo, XXXII, 20.


A Argamassa Mística Egípicia 89

Nascida no Oriente, pátria do mistério e do maravilhoso, a ciência


alquímica se espalhou pelo Ocidente por três grandes vias de penetra­
ção: bizantina, mediterrânea, hispânica. Ela foi, sobretudo, o resultado
das conquistas árabes. Esse povo curioso, estudioso, ávido de filosofia
e de cultura, povo civilizador por excelência, forma o traço de união, o
elo que reúne a antiguidade oriental á Idade Média ocidental.
Fulcanelli, ztí Moradas Filosofais (1964),
r. I. p. 70-71.
*
* *

Alguns patronos míticos


1. Conheça, meu amigo, os nomes dos fazedores de ouro:
Platão; Aristótelcs; Hermes; João, o grande sacerdote na divina
Evagie; Demócrito; Zózimo; o grande Olimpiodoro; Stéphanus, o Filó­
sofo; Sofar, o Persa; Sinésio; Dióscoro, o sacerdote do grande Serápis em
Alexandria; Ostanes, o Egípcio; Comarius, o Egípcio; Maria; Cleópatra,
a mulher do rei Ptolomeu; Porfírio; Epibcchius; Pelágio; Agathodemon;
Heráclio, o Imperador, Teofrasto; Arquelato; Pctasius; Cláudio, o Filó­
sofo anónimo; o filósofo Menos; Pauseris; Sergius.
2. Estes são os mestres célebres e ecuménicos em toda a parte, os
novos exegetas de Platão e de Aristóteles.
3. Os países onde essa obra divina se realiza são: o Egito, a Trácia,
Alexandria, Chipre e o Templo de Mênfis.
in Marcclllin Berthelot,
Coleção dos antigos alquimistas gregos,
t. III, p. 26-27.

*
* *

primeiro inventor dessa Arte [...] foi Hermes, o Triplo, pois ele co­
nheceu toda a tripla Filosofia natural, ou seja, mineral, vegetal e animal.
E como ele foi o inventor da Arte, nós o chamamos Pai, assim como em
todos os livros da Turbe sobre Hermes, antes de Pitágoras, está dito que
qualquer um que tiver essa Ciência será chamado de seu Filho. Sobre
esse Hermes está escrito na Bíblia que após o Dilúvio ele entrou no Vale
de Hebron, e ali encontrou sete Tábuas de pedra de mármore, e em cada
uma delas estava gravada uma das sete Artes liberais em Princípios, e
essas Tábuas foram gravadas antes do Dilúvio pelos Sábios que então
90 Filosoi-ar pelo Fogo

existiam. Pois eles sabiam que o Dilúvio viria sobre toda a Terra, e que
tudo pereceria; e para que as Artes nào perecessem, eles as esculpiram
nessas pedras de mármore. Apenas Hermes encontrou essas Tábuas, as
quais sào o fundamento de todas as Artes e Ciências.
E esse mesmo Hermes esteve diante da lei antiga. Mas
houve muita gente naqueles tempos que conheceram
7, essa Ciência; e Aros diz no livro que escreveu ao rei
de Meffohe que no tempo da doação da Lei antiga
no Deserto, perto da montanha de Sinai, essa Ciência
foi dada e revelada a cada um dos filhos de Israel,
para decorar e realizar a obra do Templo, e a Arca do
antigo Testamento, como está escrito em Ezequiel, o
| BfRNHARDyS CoJ Profeta, e em Daniel, e no Livro de Josefo.
| ?nz5 TrtíafániLS . I E assim a obra foi dada de Deus a alguns, como
Bernard. conde dc Trévise: eú disse. Os outros a encontraram de forma natural,
Uma solução permanente sem revelações nem quaisquer livros nem experiên­
com semente macho e cia, como Fitomé, Rebeca, Salomão, Ambadagesir e
fêmea engendra uma Felipe, o Macedônio. Mas Hermes, após o Dilúvio,
nova espécie. foi o primeiro inventor e provador dessa Ciência de
Filosofia e encontrou essas Tábuas no Vale de He-
bron, ali onde Adão foi colocado, depois de ter sido expulso do Paraíso
terrestre. E, após Hermes, ela chegou por meio dele a muitos outros.
Bernard le Trévisan (séc. XV),
O Livro da Filosofia Natural dos Metais (1567),
in Wtlliam Salmon, Biblioteca dos Filósofos Alquíniicos
c. II, p. 330-332.
*
* *

santíssimo homem Hermes primeiramente


Ensinou essa arte divinamente,
Não desejando ocultar às pessoas insignes
Que de tal dom ele sabia ser digno,
Dando a elas excelente ensinamento
Que já possuía firme começo,
Mas os que nào tinham qualquer experiência
Nessa arte, nem qualquer ciência,
Ele aconselhava a nào se dedicar e querer
O objetivo, ao qual nào podiam pretender.
Finalmente Hermes, esse sábio homem,
Para despertar e mover a coragem
A Argamassa Mística Egípicia 91

Dos bons obreiros à busca


Desta arte, onde jaz a perfeição,
Para adquirir uma vez em sua idade,
O que ele tinha adquirido por longo uso.
Ensinou-lhes e mostrou com efeito
Que um bom e perfeito obreiro nessa arte
Deve caminhar contente com poucas coisas
Que no segredo da natureza estão encerradas,
Seguindo a Natureza passo a passo,
Em Terra firme em bom e verdadeiro compasso.
Esse Hermes fez muito mais
Como ensinar por certo presságio
A cura dar ao corpo humano
Administrando com sua mão experiente
Esse verdadeiro e poderoso medicamento
Aos langorosos dando alívio;
Mostrou também como por longa habilidade
Pode-se manter florescente juventude,
E conservar velhice por longos anos
Repleta de prazer, e de tristeza isenta.
Jean Aurellc Augurei,
Os Três Livros da Crisopfia (1515),
trad. fr. E Habert de Berry (1626), p. 44-45.
*
* *

igo que nossa Ciência é tão divina e tão sobrenatural [...] que é,
sempre foi e será no futuro, impossível a todos os homens conhecê-la,
e descobri-la por si mesmos, ainda que eles fossem os
maiores e experientes Filósofos que jamais existiram
neste mundo. Pois a esse respeito todas as razões e ex­ -íò ■
periências naturais nos enfraquecem. De forma que foi
escrito justamente pelos autores antigos, Que é o segre­
do, o qual nosso bom Deus reservou e deu aos que o
__
1
temem e o honram, como diz nosso grande Profeta Her­
mes: Eu não obtenho essa Ciência, diz ele, a não ser da DiONYÓIV^Z^ÇH í
inspiração de Deus [...]. ruis PkiLfòphuj .
Mas quanto ao fato de ela ser natural, isto é, na Dcnys Zachaire, Filó­
medida em que em suas primeiras operações ela se­ sofo: Essa Arte, retida
gue a Natureza, existem diversas opiniões para saber pela potência de Deus,
quem foi seu primeiro inventor. Uns dizem que foi éfunesta ao comum.
92 Filosofar pelo Fogo

Adão, outros Esculápio; outros dizem que Enoque a conheceu primei­


ro, alguns pretendem que foi Hermes Trismegisto,* que os gregos tanto
louvaram, e até mesmo lhe atribuíram a invenção de todas as ciências
ocultas e secretas. De minha parte eu concordarei de boa vontade com
a última opinião, pois é bastante notório que Hermes era um grande Fi­
lósofo, como suas obras testemunham, e que, por ser assim, ele questio­
nou diligentemente as causas das experiências nas coisas naturais, pelo
conhecimento das quais conheceu a verdadeira matéria que a Natureza
usa nas concavidades da Terra, na procriação dos metais. O que me leva
a crer nisso é que todos aqueles que o seguiram chegaram por esse meio
ao verdadeiro conhecimento dessa divina obra, como Pitágoras, Platão,
Sócrates, Zenão, Haly, Sénior, Rasis, Geber, Morien, Bonus, Arnaud de
Villeneuve, Raimond Lulle e muitos outros, que seria longo enumerar.
Dcnis Zachairc, Opúsculo da Filosofia Natural dos Metais (1567),
in William Salmon, Biblioteca dos Filósofos Alquímicos
r. II, p. 481-483.
*
* *

s latinos te chamam com razão de Mercúrio, pois tu és o mensa­


geiro alado dos deuses. Intérprete entre os gregos, tu carregas o nome
do grande Hermes, e somente tu dirás ser aquele que os egípcios no­
meiam Thoth. Teu pai é o Nilo, que fecunda essa terra e te legou uma
riqueza inestimável. Tu convenientemente transmitiste aos povos do
Egito as leis que Vulcano, que contigo partilhou esse segredo, editou.
Todas as nações do mundo te consideram com reconhecimento, ainda
que tu desejes ser conhecido apenas por poucos. De quantos segredos
da Natureza as chaves foram confiadas à tua proteção! Teu rosto é ver­
melho, teu pescoço é amarelo, e teu peito é mais branco do que a neve
mais pura. Teus pés estão calçados de negras sandálias, um bastão orna­
do com duas serpentes jamais fere tua mão. Esta é a roupa sob a qual tua
arte é conhecida de todos, ó Hermes! Tua constituição é feita de quatro
tons. Tu me mostraste o glorioso pássaro Fénix pela própria boca de um
intérprete, e eu te agradeço de todo meu coração por teu amor: ainda
que as palavras sejam leves, são repletas de gratidão.
Michael Maicr, Uma alegoria sutil em relação
aos segredos da Alquimia
(Subtilis Allegoria super Secreta Chyntier, séc. XVI),
in Museum Henneticum, p. 738-739.
*
* *
A ARGAMA5SA MÍSTICA EgÍPICIA 93

ermes, apelidado Trismcgisto, entrou na cena Filosófica como


Pai dessa Arte e, o que quer que ele tenha sido, sào apresentadas diver­
sas opiniões segundo os autores. Falta pouco para afirmar que ele foi
Moisés, e pelo menos a esse respeito concordam que ele foi um egíp­
cio por causa de sua nação de origem, e um Filósofo muito perspicaz.
Ele é nomeado Pai dessa Filosofia, pois foi o primeiro (os livros de
tais autores o mostram) que a relatou. Alguns querem, no entanto, que
essa ciência provenha de Enoque que, prevendo o dilúvio, inscreveu as
ciências liberais (entre as quais a Alquimia) cm sete tabuletas que legou
à posteridade. Tendo entrado no Vale de Hebron, Hermes por sua vez as
descobriu, e hoje elas são chamadas Tábua de Esmeralda, e em seguida
instituiu a ciência que lhe é própria. Outros opõem com veemência que
Noé possuiu essa ciência, e a levou em sua Arca. Aliás, são muitos os
que se esforçaram para fundar essa Arte com base cm algumas passa­
gens da Escritura, e escreveram que Salomão possuía seu conhecimen­
to. Alguns a fazem remontar ao próprio Adão e a Abel, c assim por
diante, até Seth.
Quanto a mim, desejoso que sou de descrever cm verdade a sim­
plicidade da Natureza, não me agradam as sutilezas desse gênero que
não iluminam a Arte mas, ao contrário, a obscurecem, como fazem os
fanáticos, e aqueles que escrevem assim não fazem nada mais do que
recobrir sua origem verdadeira e se dirigem a misoquímicos119 rancoro­
sos. Pois se essa Arte tem um fundamento real na Natureza, por que eu
me perturbaria com o fato de que este ou aquele nada compreendeu, ou
de que os admiradores e homens experimentados tenham eles mesmos
cuidadosamente ocultado aos outros esse ensinamento, e até mesmo em
seus próprios livros? E todos, ou pelo menos a maioria, só se dedicam a
permanecer ocultos entre os vivos para ser conhecidos após sua morte.
Pelo menos é manifesto que uma falta tão grande não tem outra razão
de ser a não ser suscitar uma nova invenção para que os homens sá­
bios, diversos pela língua e pela nacionalidade, mas em grande número
contemporâneos pela idade, possam existir através dos séculos. Então,
em boa inteligência quanto à arte de escrever, não se trata aqui de uma
única operação - o que é compreendido corretamente pelas pessoas in­
teligentes -, eles são conhecidos por corromper e travestir o sentido de
seus escritos.
Concordo pelo menos que, para aquele que ignora a coisa, uma difi­
culdade maior surge com a leitura de seus livros. Aliás, eles escrevem de
119. Adversários ou inimigos declarados da alquimia.
94 Filosofar pi:lo Fogo

maneira obscura, metafórica, alegórica e figurada, e alguns introduzem


até mesmo certo número de erros para enganar as pessoas indignas c
incultas, a fim de conseguir por esse meio distinguir os verdadeiros Fi­
lósofos dos ignorantes. Todos, contudo, atingem no final um único ob­
jetivo e conduzem para o mesmo abrigo, pois, quando transmitem essas
coisas de maneira mais obscura, eles só o fazem com o único objetivo
de excluir os indignos, como muitos testemunham em seus livros.
Eyrcnce Philalcthc, Da Metamorfose dos Metais
(De Metallorum Metamorphosis, séc. XVII),
in Mtiseum Hermetieum, p. 753-754.

*
* *
lEf stou aqui. Senhor, pois assim o quisestes, colocado na categoria
química, e como marca da minha obediência eu vos envio a tradução
que tanto desejastes. Na verdade, não espero dela um grande fruto, co­
nhecendo o gosto do século como eu faço, e estou bem certo que gos­
tariam muito mais de tratados de filosofia segundo Descartes do que
segundo Hermes. O primeiro está na moda e tem todas as benesses da
novidade, ao passo que o último é tão velho e tão usado que seu nome é
pouco conhecido no mundo; um só propõe coisas fáceis de demonstrar,
mantendo-se apenas na superfície dos corpos; o outro, mais abstrato,
só se apega à essência interior das coisas; enfim, um se fecha na mecâ­
nica, não dá às coisas senão uma virtude de máquina, e pretende que o
movimento, por si só indiferente, somente produza coisas diversas em
razão das diversas configurações dos corpos que ele move, ao passo que
o outro, todo intelectual, admite uma alma universal do mundo, agente,
inteligente e informante. Falai, eu vos rogo, a um cartesiano sobre o
centro, o fogo de natureza, a virtude seminal, sobre um espírito diretor
e arquitetônico em cada misto,* sobre as qualidades elementares etc., e
ele não deixará de tratar vosso discurso de galimatias e vós, de visioná­
rio, e por menos que vós o pressionais, por meio de vossa autoridade,
ele logo vos colocará no manicômio. Mas, me direis, não é para eles que
escrevemos, é para aqueles que estão em nossos mesmos princípios,
eu o desejo, mas se vós retirais os químicos vulgares que, consultando
apenas sua avidez, amam muito mais um monte de falsas receitas do
que os melhores livros do mundo, vós vereis que restarão muito poucos
daqueles que sonham mais com se tornar filósofos do que com se tornar
possuidores da Pedra filosofal; mas vós me direis ainda que não é pre­
ciso se deter em tudo isso, que é preciso escrever pela honra da ciência
A Argamassa Mística Egípicia 95

apenas, para impedir que não a oprimamos, e para convencer enfim os


homens de sua excelência. Ah! Senhor, desfazei-vos desse pensamento
e contai que uma experiência de transmutação converterá mais pessoas à
fé hermética do que todos os mais belos raciocínios que poderíeis fazer.
Essa nação pede sinais, e estamos cm um tempo em que queremos ir ao
fato, sem nos preocuparmos muito com o resto. Mas sem examinar todas
as razões que eu teria tido para guardar o silêncio, basta-me ter vos obe­
decido c serei bem pago por meu trabalho, se estiverdes contente.
“Carta a uni amigo’’, por Bruno dc Lansac,
tradutor (cm 1687) dc A Luz saindo por si mesma das trevas,
dc Marcantonto Crassclamc (1666).
*
* *

s gregos, instruídos pelos egípcios, aprenderam a ciência com


a arte de ocultá-la; e seja que a esse respeito quiseram se conformar a
seus mestres, ou talvez, como eles mesmos, que também ignoravam o
nome do primeiro dos homens que levou a Filosofia ao Egito, disseram
que foi Hermes-, ora Hermes significa Mercúrio, assim os Sábios de um
e de outro país personificaram a prata-viva, não o vulgar, mas seu com­
panheiro tirado da Satúrnia.*
Não digo com isso que jamais tenha existido no Egito um rei que
carregasse o nome de Mercúrio, ou de Sábio, que tenha tido o de
Hermes, pois a coluna encontrada no túmulo de ísis, onde ela fez gra­
var que Hermes a instruíra, seria formalmente contrária. Mas garanto
que a própria Isis, os Magos que foram os primeiros a conhecer essa
ciência, em seguida aqueles que viviam no tempo de Moisés, depois os
gregos, e ainda hoje os verdadeiros Filósofos, todos, digo eu, fizeram a
mesma coisa por desejo.
Talvez vocês me perguntem por que chamamos Trismegisto*
a este último Mercúrio, uma vez que, sendo apenas prata-viva e con­
sequentemente há muito tempo semelhante a si mesmo, ele jamais foi
maior do que sempre foi. É que os primeiros que possuíram essa ciência
não procuraram fazer a perfeição mais que perfeita, mas apenas ele­
var os metais imperfeitos até a condição real do ouro: pois é preciso
que vocês saibam que podemos transmutar outros metais nesse me­
tal, mergulhando-os em uma quintessência solar bastante digestível,
e esse é o segredo que os antigos obtiveram primeiro. Então, consi­
derando que o mercúrio assim exaltado pelo ouro bem poderia ser o
campo em que o sol, uma vez semeado, teria sua virtude intensificada
96 Filosofar pelo Fogo

e multiplicada, eles tornaram solúvel esse humilde radical:* mas isso


não é tudo, um trabalho longo e difícil conduziu os Filósofos até o tem­
po em que conheceram Hermes Trismegisto* e para marcar ao mesmo
tempo a diferença entre o primeiro mercúrio e a excelência do segundo,
eles o nomearam três vezes muito grande, pois como ele pode levar da
potência ao ato os três reinos designados pelas três famílias do mundo,
ele é esse Deus que conduz a alma de todos os mortos no império de
Plutão, e é enfim oAlcaeste*
Philothaumc, Explicaçãofísica ciafábula,
(1720), p. 8-10.
*
* *

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A “Corrente de ouro ” de Hermes-Mercúrio: desenho de Albrecht Diirer, 1514?


(Kunsthistorisches Museum, Viena).
A Argamassa Mística Egípicia 97

funções desse deus se espalhavam pelo céu, sobre a terra e nos in­
fernos. No céu onde ele sempre estava atento para receber as ordens dos
deuses e executá-las [...]. Da terra aos infernos, ele deve assistir os ago­
nizantes, para diluir as almas de seus corpos e conduzi-los aos infernos
após sua separação pela morte, fazer reviver as almas que cumpriram seu
tempo nos Campos Elíseos, fazendo-as entrar em novos corpos, após lhes
ter feito beber a água do rio Lete, que tem a propriedade de fazer esquecer
o passado. Enfim, só ele tem o direito de abrir as portas do Céu* químico,
as portas duplas do templo de Jano, e de assistir a todas as produções novas
da natureza.
Ele é o primeiro a ter feito alianças, inventado as belas-letras, os nú­
meros, os pesos e as medidas [...].
Ele é essa quintessência extraída da terra com a ajuda do fogo, de
Júpiter, como primeiro princípio e distribuidor do fogo divino, que espalha
no seio de Maia, na terra que ele toma muito luminosa e brilhante, que é o
que significa o nome de Maia, de acordo com o hebreu, illuminata.
Hermes Trismegisto* diz que ele é um dos três deuses, que tem a sa­
bedoria em todo o seu esplendor, Caelus, Saturno e Mercúrio.
Os gregos o representavam como tendo o rosto de um jovem rapaz
sorridente, e os egípcios como tendo o lado direito branco e brilhante, e o
lado esquerdo de cor negra e plúmbea, a cabeça coberta com um pequeno
chapéu à moda arcadiana, sobre o qual há duas pequenas asas lado a lado
das têmporas, asas em seus pés, e em sua mão um bastão, em tomo do qual
foram presas duas serpentes que ele encontrou em seu caminho, quando
elas se erguiam uma contra a outra, e tendo-o colocado entre as duas, elas
se reconciliaram de tal forma que desde então não mais se separaram. Seu
caduceu* é o símbolo da paz e da concórdia. Seu nascimento sobre o monte
Cilene, na Arcádia, revela que essa criança, que descende de Júpiter e de
Maia, foi de certa forma arrancada do centro da terra [...].
A representação do rosto desse deus, que é branco do lado direito e
negro do lado esquerdo, anuncia dois dos primeiros movimentos da na­
tureza, feitos do frio e do seco, convertidos em úmido. Seu chapéu alado
marca sua nobreza; e as asas em seus calcanhares, a rapidez em executar as
ordens dos deuses. Seu caduceu, a potência do destino. O bastão de ouro
que ele segura em sua mão direita com duas serpentes entrelaçadas marca a
harmonia dos elementos celestes e terrestres, da terra e da água, reduzidas
à simplicidade pelos celestes, o ar e o fogo, após terem sido despojadas de
tudo o que existia de defeituoso na terra e na água: ou seja, da obscuridade,
da espessura e do repouso da terra, e da obscuridade e da espessura da água.
98 Filosofar pelo Fogo

As duas serpentes ligadas a esse caduceu, um macho e a outra fêmea, são


os dois primeiros princípios da ciência hermética. A fêmea é o mercúrio vo­
látil que sempre busca se salvar, e o macho [o fixo] que sempre a persegue
desde que saiu do negrume para passar à brancura, e em seguida impedi-la
de fugir; e quando ele a deteve no citrino, de dois que eram, eles não são
mais do que uma mesma coisa. É no ovo, conhecido dos verdadeiros Adep­
tos, que se realiza tudo o que está descrito acima.
Éttennc Libois, A Enciclopédia dos Deuses
e dos Heróis das qualidades dos quatro Elementos
e de sua quintesséneia segundo a Ciência hermética
(1773), t. II, p. 62-65.

*
* *
Qs Filósofos herméticos diferem absolutamente dos filósofos ou físi­
cos ordinários. Estes últimos não têm nenhum sistema garantido. Eles o
inventam todos os dias, e o último parece não ser imaginado a não ser para
contradizer e destruir aqueles que o precederam. Enfim, se um se eleva e se
estabelece, é apenas sobre as minas de seu predecessor, e ele só subsiste até
que um novo venha derrubá-lo e tomar seu lugar.
Os Filósofos herméticos, ao contrário, estão todos de acordo entre
si: nenhum contradiz os princípios do outro. Aquele que escrevia há 30
anos fala como aquele que vivia há 2 mil anos. O que existe até mesmo
de singular é que eles não se cansam de repetir este axioma adotado pela
Igreja como a marca mais infalível da verdade a que ela nos propõe a crer:
Quodubique, quod ab omnibus, et quod semper creditum est, idfirmissime
credentum puta.no Vejam, dizem eles, leiam, meditem sobre as coisas que
foram ensinadas em todos os tempos, e por todos os Filósofos; a verdade
está encerrada nos lugares em que todos estão de acordo.
Que engano, de fato, que pessoas que viveram em séculos tão dis­
tantes, e em países tão diferentes pela língua, e ouso dizer, pela maneira
de pensar, tenham, no entanto, concordado em um mesmo ponto. Que
egípcios, árabes, chineses, gregos, judeus, italianos, alemães, america­
nos, franceses, ingleses, etc., todos tenham, portanto, decidido sem se
conhecer, sem se ouvir e sem ter comunicado particularmente suas ideias
entre si, falar e escrever conforme uma quimera, um ser de razão? [...]
Essa conformidade de ideias e de princípios ao menos não forma uma
presunção, que aquilo que eles ensinam tem algo de real e de verdade?
120. É preciso considerar que aquilo que foi acreditado em toda parte, por todos e em todos
os tempos, deve ainda ser objeto de fé (Vincent de Lérins).
A Argamassa Mística Egípicia 99

Se todas as fábulas antigas de Homero, de Orfcu e dos egípcios não são


senão alegorias dessa Arte, como eu pretendo provar nesta obra por meio
das próprias fábulas, por sua origem, e pela conformidade que elas têm
com as alegorias de quase todos os Filósofos, poderemos nos convencer
de que o objeto dessa ciência é apenas um fantasma inútil, que jamais
existiu entre as produções reais da Natureza?
Dom Ancoinc-Joscph Pemétv.
Asjabulas egípcias e gregas reveladas
e reduzidas ao mesmo princípio (I 758),
t. I.p. 1 1-14.

Um Filho de Hermes meditando durante o cozimento das duas "naturezas


Daniel StolciuSyN'\tiàan\ivci Chymicum, Frankfurt. 1624.
100 Filosoiv\r pelo Fogo

ste k\\ ,
,

••-âx

----------------------- ----------------------------------------------------.:=—ÍZ2Ú-! J
Hermes Trismegisto. mediador entre macrocostno e microcosmo: Michael Maier,
Symbola aurece mensa:. Frankfurt, 1517.
3

A Arte de Hermes
E isto, a alquimia: conduzir a seu termo o que ainda não
conseguiu; realizar a natureza do chumbo a partir de seu
mineral grosseiro, trabalhá-lo, tornã-Io próprio a alguma
utilidade [...].
Aprende então a reconhecer o que é a alquimia:
essa arte que. por intermédio do Fogo.
transforma o que é impuro até torná-lo puro.

Paracelso. "O Livro da Alquimia".


O Labirmtc ífos médicos errantes I 537 \
m Saintlichf IIítÂt, t. I, p. 513.

Inventor e transmissor de uma prática à qual seu nome perma­


necerá duravelmente ligado, Hermes Trismegisto também o é de todas
as artes, liberais e mecânicas, que, no entanto, a alquimia supera em
nobreza. “A busca e o despertar da Vida secretamente adormecida sob
o espesso envelope do ser e da rude casca das coisas ”. dizia da Ars
Magna Eugène Canseliet.™ Recolhendo a partir do século XI! textos
em língua árabe até então desconhecidos no Ocidente, os primeiros
tradutores não deixaram de se interrogar sobre o status ambíguo de
uma arte polimorfa (metalurgia, física, medicina), além do niais con­
siderada por seus defensores como natural e divina: “Somente Deus é
operador”, relembra Petrus Bonus (séc. XIV). Arte natural, com efeito,
na medida em que a alquimia, nisso próxima de uma agricultura e de
uma obstetrícia, acelera em vaso fechado o ritmo de crescimento dos
metais nas entranhas da terra.
Operação sobrenatural, no entanto, uma vez que o sucesso de tal
prática permanece um “dom de Deus” (Donum Dei) de que nenhum
mérito pessoal poderia sozinho produzir frutos, ãs vezes comparados

121. Prefácio ao Mystère des Cathédrales, de Fulcanelli, Paris, J. J. Pauvert, 1964. p. 30.
- 101 -
102 Filosofar pelo Fogo

aos pomos de ouro do jardim das Hespérides, na medida em que eles


garantem a imortalidade de quem os colheu. A alquimia teria desfru­
tado de tão grande prestígio se a conversão das naturezas nomeada
"transmutação ” tivesse consistido apenas em uma simples aceleração?
Declarando sua vontade de distinguir os autênticos Filhos de Hermes
dos vulgares sopradores e outros “sofistas ”, os autores de tratados ape­
nas raramente dão a chave desse mistério que é em si “a encarnação do
Logos na matéria ” (René Alleau)}22

Icemos nas Histórias dos divinos Antigos que existiram três Filósofos

portando cada um o nome de Hermes. O primeiro deles foi Enoque,


nomeado ora Hermes e ora Mercúrio. O segundo foi Noé que, da mes­
ma maneira, foi alternativamente chamado Hermes Mercúrio. Quanto
ao terceiro, que reinou antes do Dilúvio no Egito e
ocupou por muito tempo o trono desse país, ele é co­
nhecido igualmente sob o nome de Hermes. Além do
mais, nossos predecessores o qualificaram de “triplo”
em razão da tripla potência que foi a sua, e com a qual
o Senhor Deus sem dúvida o gratificou: ele era, com
efeito, Rei, Filósofo e Profeta; e foi esse Hermes o
primeiro inventor e fundador de todas as artes, tan­
O objetivo dos to liberais quanto mecânicas. Por isso se considerava
alquimistas é que todos que o sucederam continuavam a tomar seu
tnansmutar os metais caminho e a seguir seus passos. Mas resumamos, pois
imperfeitos, para nós seria tão longo quanto difícil reviver agora
verdadeiramente, a potência de semelhante homem, tão eminente por
e não de maneira seus atos e seus talentos. De forma que, traduzindo
sofisticada.
esse livro divino, nós não assumimos a carga de tal
ensinamento: a fragilidade de nosso talento, nem o cuidado dedicado a
transcrevê-lo, nào lhes poderia de fato bastar para restituí-lo. Por isso,
e já que ele é seu primeiro autor e propagador, introduzimos seu nome
logo no seu Prólogo. Pois este é um livro divino, e pleno de divindade,
contendo a confirmação verídica e perfeita dos dois Testamentos: o An­
tigo, isso é evidente, e o Novo. E de fato, a alguém que teria estudado
muito esse livro e o tivesse compreendido plenamente, não poderiam
permanecer ocultos a verdade e o valor do Testamento, e também não o
modo de existência de cada um deles. Ora, este é realmente o livro nome­
ado Livro da Composição da Alquimia. E, uma vez que seu mundo latino
122. Rcné Alleau, Aspects de l alchimie traditionneile, Paris, Éditions de Minuit, 1953, p. 130.
A Arte de Hermes 103

ainda não conhece verdadeiramente o que é a Alquimia, c qual é sua


composição, eu revelarei no presente escrito onde apresentei esse termo
- desconhecido, é preciso dizê-lo, e admirável - para que uma definição
esclareça seu sentido. Hermes, o Filósofo muito verídico, e aqueles que
vieram depois dele definiram assim essa palavra, como está dito no Li­
vro da Mutação das Substâncias'. Alquimia é uma substância corpórca
extraída de uma coisa única e por meio de uma única coisa composta.
Que em troca se torna mais preciosa graças ao parentesco e à conjunção
dos efeitos, ela procede à sua mistura e conversão naturais em melhores
disposições. Nas páginas seguintes, onde se tratará plcnamcnte de sua
composição, será verdadeiramente exposto o que dizemos. Quanto a
nós, por mais inexperiente que seja nossa habilidade, e tão pouco ex­
tenso nosso conhecimento da língua latina, empreendemos, no entanto,
a tarefa imensa de transcrever este livro do árabe para o latim. Em con­
sequência, nós agradecemos por termos sido, entre todos os modernos,
muito particularmente distinguidos por Deus, por esse Deus soberano e
vivo cuja unidade ternária reina acima de tudo. Por isso não me pareceu
adequado calar meu nome no início desse Prólogo, com medo de que
alguém se aproprie de nosso trabalho, e até mesmo reivindique como
seu o mérito e o louvor. O que dizer mais? Peço humildemente a todos,
e rogo insistentemente a fim de que nenhum dos nossos, inspirado pelo
ciúme (como acontece muitas vezes), ataque meu nome. Pois Deus sabe
a quem ele confere sua graça; e o espírito procede da graça, que inspira
aqueles que ela deseja. E por isso que devemos com razão nos regozijar
do fato de que o Criador e depositário de todas as coisas mostre assim
sua divindade a todos, e a cada um de maneira quase particular.
Prefácio de Roberrus Castrensis (1144)
ao Livro Aa Composição Ac Alquimia, de Moricnus
(Líber Ac compositione alcbemúr),
in An rifera’ Artis quatn Chetnian wcant,
t. II. p. 3-6.
*
* *

Alquimia pode ser colocada entre as artes mecânicas, e ela não


poderia ser mais útil a algumas das outras do que ela é ao artesanato e
à medicina. Ao trabalho artesanal, com efeito, por causa da observação,
da mistura, da desagregação e transmutação dos metais. À arte médica,
em razão da separação das substâncias ou qualidades saudáveis das no­
civas, que estão com tanta frequência presentes nas medicinas simples
104 Filosofar pelo Fogo

por causa da açào dos mistos.* Da doutrina da Alquimia. A Alquimia


é propriamente falando a arte de transmutar os corpos minerais de suas
espécies próprias em outras como as dos metais e do
mesmo gênero. Essa arte extrai sua origem dessa par­
te da filosofia natural que trata dos minerais, assim
como a agricultura da parte que trata dos vegetais.
Os artifícios efetuados por essa arte a partir das reali­
dades naturais foram admitidos, ainda que essas reali­
zações não sejam tão certas ou apropriadas quanto as
naturais. Do livro dos alumes e dos sais de Razis. Os
corpos minerais são vapores espessados e coagulados
durante um longo espaço de tempo sob a dominação
Vincent de Beauvais, mensurável da natureza; o princípio de origem é sua
Monge: O Elixir é prata-viva e o enxofre, que são com efeito elementos
nomeado pedra, pois ele minerais e não da água e do óleo, mas um é engen­
é moído e nào pedra, drado da água e o outro do óleo, acima dos quais um
já que ele é fundido e cozimento igual, associado ao calor e à umidade, tra­
vai ao fogo se evaporar balha assídua e continuamente até que eles estejam
como o Ouro.
coagulados e que corpos sejam a partir deles engen-
drados, por uma mutação gradual e durante milhares de anos. Com efei­
to, se eles permanecessem em suas minas, a natureza os prepararia até
que chegassem à espécie do ouro e da prata. Mas graças a certa sutileza
artificial, uma transmutação desse tipo pode ser realizada em um dia,
isto é, em um breve lapso de tempo pela obra da Alquimia. Compreenda
então que existe nas entranhas da terra uma virtude mineral de que é
feita a geração dos espíritos e dos corpos. Os espíritos na verdade são
Sal* Harmoníaco, enxofre, prata-viva, cobre, ferro, estanho, chumbo.
A partir dos elementos minerais citados, são engendrados ora corpos
purificados como o ouro e a prata, ora não purificados como o aço,* o
ferro, etc. Pois da prata-viva, pura, branca, coagulada pela virtude do
enxofre não escaldante, é engendrada a matéria nas minas que, após
fusão, é convertida em prata. Do enxofre claro, purificado, vermelho,
desprovido de virtude escaldante, e da boa prata-viva clara e coagulada
pelo enxofre, é congelado o ouro. Além do mais, de uma boa prata-viva
e de um enxofre provido de virtude escaldante é gerado o aço; de um
enxofre defeituoso e de uma prata-viva igualmente deficiente, o ferro;
de uma boa prata-viva e de um enxofre defeituoso insuficientemente

♦ N.T.: O aço dos Sábios nào é o metal com o qual são feitas as ferramentas, ele é um es­
pirito puro, um fogo infernal e secreto, muito volátil e receptáculo das virtudes superiores
e inferiores.
A Arte de Hermes 105

misturado, o estanho; enfim de uma prata-viva defeituosa - isto é pe­


sada e suja - e de um mau enxofre, fétido e débil, o chumbo. Estas sào
as operações que a natureza efetua nos minerais e que os alquimistas se
esforçam em imitar.
Vinccnt dc Beauvais, O Espelho Natural (cerca de 1250),
in Artium et Medicina Doítrina (1571). p. I -3
(De Alchinua et rebus metalhcis ex Speculo I incenfit).

*
•k *

epois de ter, em muitas regiões e em um grande número de pro­


víncias, cidades e castelos, peregrinado com dedicação por causa dessa
ciência nomeada Alquimia; e diligentemente conduzido minha pesqui­
sa a propósito dessa arte junto de homens sábios e
eruditos a fim de finalizar sua exploração e, no entan­
to, não tendo descoberto a verdade sobre o que seus
livros afirmam; depois de ter atravessado todos os
seus escritos e muitas vezes transpirado ao longo de
suas operações, eu portanto considerei atentamente os
livros dos contraditores e defensores [dessa arte], e os I
achei desprovidos de qualquer proveito e impróprios
a qualquer bem. > Albertv^jVíagn9
De fato, encontrei inúmeros eruditos muito ri- | Ernfcojrus et Cki^nt.:
cos, abades, governadores, clérigos, médicos e ile­ Alberto, o Grande,
trados, que por essa arte consentiram grandes gastos Bispo e Químico: Nào
e trabalhos, e então finalmente abandonaram porque por meu saber, mas pela
não eram capazes de avançar na exploração. Quanto a WEspirito Santo.
mim, não desesperei de poder economizar trabalhos e gastos infinitos,
permanecendo vigilante e indo continuamente de lugar em lugar, e me­
ditando como diz Avicena: Se essa coisa é bem a coisa, de que matéria
ela é? E se ela não o é, como ela não o é? Até o fim perseverando no
estudo e na meditação, e trabalhando nas operações da arte, até que fosse
encontrado o que eu procurava: não somente por minha ciência, mas
pela graça do Espírito Santo. Por isso, como eu sentia e compreendia
o que ultrapassa a natureza, comecei a velar mais diligentemente as
decocções e sublimações, soluções e destilações, macerações e calci­
nações, e coagulações da Alquimia, nos múltiplos trabalhos também,
até que finalmente seja descoberta a possível transmutação em Sol e em
Lua. O que é de longe melhor que qualquer coisa natural, com toda pres-
106 Filosofar pelo Fogo

são e trituração. Quanto a mim, o mais insignificante entre os Filósofos,


eu me apronto para descrever à intenção de meus companheiros e amigos
a arte verdadeira, fácil e infalível. De tal manei­
ra, todavia, que aqueles que acreditavam ver não
viam, e que aqueles que ouviam não compre­
endiam. Por isso lhes peço insistentemente e
lhes adjuro pelo Criador do Mundo que ocultem
esse livro de todos os insensatos: eu de fato lhes
revelarei o segredo; aos outros eu ocultarei os
Segredos entre os segredos, em razão de sua avi­
dez em relação a essa nobre ciência. Os tolos a
desdenham com efeito, pois não podem alcan­
çá-la, por isso a têm em inimizade e creem que
ela é irrealizável; invejam por essa razão os que
operam nela, e os tratam de falsários. Portanto,
A Alquimia:
tomem cuidado para não revelar a qualquer um
Leonhard Thurncisser^
Quinta-Essência,
seus segredos nessa obra. Eu lhes renovo meus
Leipzig, 1574.
conselhos de prudência: perseverem nas opera­
ções e protejam-se do desencorajamento, saben-
do de que grande utilidade será sua obra [...].
A Alquimia é unia arte inventada por Alchymus e nomeada archymus
em grego, o que em latim significa masse (caos). Com efeito, por meio
dessa arte opera-se a redução dos metais que nas minas são corrompi­
dos e, de imperfeitos que eram, são por ela conduzidos à perfeição. É
preciso igualmente notar que os metais diferem entre si somente pela
forma acidental, e não essencial; é, portanto, possível a eliminação dos
acidentes nos metais. A constituição de um novo corpo se mostra por
essa razão realizável graças a essa arte, pois todos os gêneros de metais
são engendrados na terra a partir do enxofre e da prata-viva misturados,
e também por causa de certa terra fétida. De fato, é assim que no ventre
de sua mãe a criança contrai uma enfermidade de uma matriz corrom­
pida, por causa do lugar e por acidente; e do fato dessa corrupção, e
ainda que o esperma seja puro, a criança se torna, no entanto, leprosa
e impura em razão da deterioração da matriz.
O mesmo acontece nos metais que são corrompidos seja pelo en­
xofre vil, seja pela terra fétida: dali provém a diferença entre todos os
metais, pela qual eles se distinguem uns dos outros. Quando, com efei­
to, o enxofre vermelho e puro encontra na terra a prata-viva, de sua
união é rápida ou lentamente engendrado o ouro, pela assiduidade ou
decocção da obediente natureza. Quando na verdade o enxofre puro e
branco encontra a prata-viva em uma terra pura, segue-se a geração da
prata, que difere do ouro na medida em que o enxofre foi vermelho no ouro
A Arte de Hermes 107

e branco na prata. Quando também o enxofre vermelho, corrompido e es­


caldante, encontra a prata-viva na terra, daí é gerado o cobre que só difere
do ouro: porque nele é realmente corrompido o enxofre que no ouro não
o era. Quando na verdade o enxofre branco, corrompido e escaldante,
encontra a prata-viva em uma terra fétida, é engendrado o ferro. Quan­
do o enxofre, negro e corrompido, encontra a prata-viva, é engendrado
o chumbo, do qual Aristóteles diz que é um ouro leproso. Mas já foi o
suficientcmcnte dito sobre a origem dos metais e a maneira como dife­
rem entre si pela forma acidental e não essencial.
Alberto, o Grande, /).: ALjuiriiú (séc. XIII,
in ALhcinur Dcctrina, t. I.
p. 611 -613 c 616-617.

* *

ao é sem razão que, de uma voz quase nebulosa e por assim


dizer por meio de enigmas, os Filósofos falavam outrora, em muitas
passagens de seus escritos e de muitas maneiras, de certa ciência que
prevalece sobre todas as outras em nobreza, que eles nos legaram intei­
ramente coberta de escuridão e completamente repudiada sob o vcu do
desespero. É por isso que, quanto a mim, aconselho-o a descartar todos
os outros escritos e a concentrar firmemente seu espírito nesses sete
capítulos que contêm em si a transformação dos metais; a repassar com
mais frequência em seu coração o início, o meio e o final, e a encontrar
nessas páginas uma sutileza tal que sua alma com ela se preencha.
Encontramos em inúmeros escritos dos antigos múltiplas defini­
ções dessa arte, cujas intenções precisamos, neste capítulo, considerar.
Hermes diz com efeito sobre essa ciência: A Alquimia é uma ciência
corpórea derivada de uma única coisa e dessa única coisa simplesmente
constituída, que conjuga mutuamente, por intermédio do conhecimen­
to e do efeito, as substâncias que se tornaram mais preciosas, e por
essa mistura natural converte-as em um gênero melhor. Outro diz: A
Alquimia é a ciência que ensina a transformar qualquer gênero de metal
em outro gênero; isso com a ajuda de uma medicina apropriada como
aparece claramente em muitos dos livros dos Filósofos. É por isso que
a Alquimia é a ciência que ensina a preparar e produzir certa medicina
nomeada Elixir, que, quando é projetada sobre os metais ou os corpos
imperfeitos, lhes traz uma perfeição total no momento da projeção.
Em segundo lugar, exporei integralmente os princípios naturais e
os modos de procriação dos metais. Por isso é preciso antes observar
que nas minas os princípios naturais são a Prata-viva e o Enxofre de que
é engendrada a totalidade dos metais e todos os minerais, cujas espécies
108 Filosofar pelo Fogo

são múltiplas c diversas. Digo, portanto, que a natureza desejou e sem­


pre buscou atingira perfeição do ouro. Além do mais, diversos acidentes
que acontecem transformam os metais, assim como
está francamente dito em inúmeros livros já citados:
a saber, Prata-viva e Enxofre engendram os metais
puros ou impuros: Ouro, Prata, Cobre, Chumbo, Es­
tanho, Ferro. Quanto à natureza destes: pureza e im­
pureza, ou superfiuidez imunda e degenerescência,
aceite tudo o que foi dito como verdadeiro.
Roger Bacon, O Espelho da Alquimia
(Speeiilum Aleheniitr, XIII), in Jcan-Jacqtics Mangct,
RocherjvóBa- Bibliotheca Chcmiea Curiosa, t. I, p. 613.
umAn^lus.Pkilof:
*
Roger Bacon, filósofo * *
inglês: Realiza a equiva­
lência dos Elementos e Alquimia é uma parte natural da filosofia oculta e
tu terás o .Magistério. celeste; parte bastante necessária que funda uma arte e
constitui uma ciência que não é conhecida de todos e ensina a limpar e puri­
ficar todas as pedras preciosas, imperfeitas mas decaídas, até que uma justa
medida revele seu verdadeiro temperamento; a regenerar todos os corpos
humanos decrépitos e enfermos e a restaurar seu equilíbrio até a obtenção
de uma saúde perfeita. Ela também ensina a transmutar todos os corpos
metálicos em verdadeira Lua e depois em verdadeiro Sol por meio de uma
medicina corpórea universal, à qual todas as medicinas particulares são e
foram reduzidas.
O meio que permite recuperar e realizar isso manualmente, graças
a um único regime e pelo intermédio de um calor ígneo temperado, foi
revelado aos filhos perfeitos da Filosofia respeitosos dos seis graus de calor
que podem ser reduzidos a três. O primeiro é qualificado como fraco, que
mantém distante e preservado o movimento integral da natureza e por isso
conduz e introduz a putrefação nas coisas mistas, putrefação sem a qual a
animação não pode acontecer nas coisas elementares. O segundo calor é
aquele produzido pelo ardor suportável da vivificação, e esse calor induz e
conduz a geração e a multiplicação. O terceiro é o calor excessivo e mortal
que destrói todas as sensações e recursos, impulsos e apetites naturais por
meio dos quais são efetuadas as corrupções, gerações e multiplicações.
Filho, essa ciência é chamada flor real, pela qual o intelecto huma­
no é retificado graças à força da experiência, o respeito da visão e do
verdadeiro conhecimento, quando não podem ser aceitas certas provas
fantásticas de sua experiência, mas que é ensinado ao intelecto entrar
com ardor em todas as outras ciências, e como ele encontra a força
para penetrar as coisas divinas, que devem ser veladas. Por isso com-
A Arte de Hermes 109

preendamos graças à natureza o que é, e inúmeros


insensatos e infames creem consequentemente que
isso não é. Mas nós sabemos se essa coisa é ou não
é; e por essa razão esse segredo não será conhecido
do ignorante. Graças a tal ciência, o intelecto está
efetivamente livre das superfluidezes que o manti­
nham distante da total verdade, essa ciência sendo
também nomeada estandarte c instrumento filosófi­
co, por meio do qual os bons filósofos e os antigos RaymvndvíLvl
poetas orientaram, sem ser perturbados, sua dispo­ lius PlnlpfópJius .
sição dc espírito em sua direção, a fim dc entrar por
Raymond Lullc. filósofo: O
seu intermédio em toda forma de experiência por
corpo da criança oriunda
meio de uma arte realizada, conforme ao curso da do masculino e do feminino
natureza e graças a um conhecimento real. progride na ação.
Raymond Lullc. Testamento
(Totamentum, scc. XIII-XIV), m tu Je.in-|acqucs Mangct.
fítbhotbeca Chemua Curiosa. r. I. p. 763.
*
* *
IE/ ssa Arte, que além do mais, nos constrange, ora em razão dc sua difi­
culdade própria, ora em razão de nossa falta de hábito quanto ao desenvol­
vimento das discussões, dizemos que é em parte natural e em parte divina
ou sobrenatural. Se, com efeito, a examinarmos a partir da projeção da
pedra sobre os metais imperfeitos, ela é natural, uma vez que os aperfeiçoa
totalmente em ouro, como o faz a natureza: que uma parte seja projetada
sobre cem, ou sobre mil. Se também a considerarmos em relação à diges­
tão, geração, germinação e nascimento da pedra, a questão se apresenta
sob um duplo aspecto: pois ou bem levamos em conta principalmente a
sublimação, ao termo da qual uma alma clarificada se desenvolveu pelo
intermédio do espírito e em companhia do espírito, elevando-sc também ao
céu, é então a pedra aparente e manifestada e, também segundo esse modo,
a Arte é natural, a geração não sendo de fato nada além do que a redução
de uma coisa àquilo que estava predeterminado pelo tempo. Ora, isso não
tem nada de natural, ainda que nos pareça bastante maravilhoso e ainda
que não seja nada aos olhos dos Filósofos. Mas em outra eventualidade, se
considerarmos a questão da fixação e da permanência da alma e do espí­
rito ao final da sublimação,123 isso acontece pela adição da pedra oculta,
que não é compreendida pelos sentidos, mas apenas pelo intelecto, c

123. cf. textos citados p. 394 ss. Quanto à significação desse termo.
110 Filosofar pelo Fogo

pela inspiração ou revelação divina, ou para os eru­


ditos com a ajuda da doutrina.
Daí as proposições de Platão: Conhece ao que

wn
\
tu chegaste, e examina em seguida o que tu buscas­
' ) te. E Alexandre diz: existem nessa arte duas ordens,
/ Z I a saber, o aspecto visível ao olhar, e o outro por meio
do intelecto. E essa pedra está dissimulada, e é com
razão chamada Dom de Deus, sobre o qual Arisleus
diz em sua visão,124o dom de nosso magistério é se­
PETRVS BONVJ*
TerTarú-njis . creto e não aparente. Eis a pedra divina oculta, e sem a
mistura dessa pedra poderosa a Alquimia não é nada,
Petrus Bonus de Ferrare: pois dessa pedra divina é constituída a Alquimia ou o
Da alma vem o inicio e trabalho se perde no mesmo instante; e essa pedra di­
o primeiro movimento vina procurada pelos Filósofos é o coração e a tintura
e até mesmo tudo o (pie do ouro sobre a qual Hermes diz: é preciso que no fim
acontece, do corpo
do Mundo o Céu e a Terra se encontrem e se unam;
vem a execução.
semelhante palavra é filosófica. E sobre isso Rasis diz
em A Luz das Luzes'. A natureza da pedra secreta e sua dissolução devem
ser integraImente conhecidas, e quando ela o tiver sido até poder ser re­
produzida, eu advirto que deveremos cessar de operar. E Pitágoras em A
Assembleia (Turba) dos Filósofos: Foi isso o que o deus Apoio dissimulou
para que o mundo não fosse destruído. Segundo esse modo, a Alquimia
supera a natureza e é divina. E é nessa pedra que reside toda a dificuldade
da Arte à qual não pode ser atribuída uma razão suficientemente natural;
pois, se isso fosse possível, também não poderíamos compreendê-la com o
intelecto, nem com isso nos satisfazer. Portanto, é preciso acreditar, assim
como cremos em milagres divinos, tão verdadeiro quanto o fundamento da
fé cristã, que se sustenta para além da natureza, e não é de forma alguma
julgado verídico pelos não crentes, porque seu fim é milagroso e se realiza
para além da natureza. Por isso, apenas Deus é operador, e o artífice natural
permanece em repouso.
Perrus Bonus, A Preciosa Pérola Nova
(Pretiosa Margarita tiovella, 1330),
in Jean-Jacques Manget, Bibliotheca Chetnica Curiosa,
t. II, p. 29.

*
* *

124. cf. texto da Visão de Arisleus, citado p. 246-249.


A Arte de Hermes 111

quimia é uma parte da Filosofia natural oculta, da qual se consti­


tuiu uma Arte incomparável; pois ela ensina a transmutar todos os corpos
dos metais imperfeitos em Ouro e em Prata, por um corpo medicinal
universal ao qual todas as particularidades de medicina são retiradas, e é
feita por um regime manualmente revelado aos filhos engendrados, por
intermédio das seis latitudes de qualidades, que compreendem os dois
calores, cujo primeiro é o calor rústico que proíbe movimento a toda na­
tureza, o segundo é o calor tolerável de vivificação.
E por essa razão nosso Domínio é compreendido em
dois movimentos principais, os quais têm vários ou­
tros meios, cujos acidentes e cores se demonstram
ao passar de meio em meio, ao mudar de qualida­
de segundo a variedade das digestões, por onde é
necessário que o composto de nossa Pedra passe,
o qual é composto de três naturezas, e de uma,
quanto a seu gênero. Esse composto contém cm
si a natureza mineral, a simples, a composta,125 e a
composição. Pytagoras Graí
cms P/ti/ lojõvhús.
E nosso Domínio é compreendido sob os dois
movimentos enunciados antes, que em linguagem Pitágoras, filósofo grego:
comum são chamados solução e congelamento. Na natureza, tu deves estu­
E se divide a solução em duas partes, a primeira é dar aqudo a partir do que
apenas deligação dos Elementos, e por meio dela Deus criou todas as coisas.
fazemos da união pluralidade, e pela segunda fazemos da pluralidade
unidade. O congelamento é dividido em duas partes: pela primeira, se­
paramos e purgamos os Elementos do dito composto, e, pela segunda par­
te, juntamos e fixamos esses Elementos. E agora nós lhe diremos como,
sem colocar nenhuma restrição. E, para que você seja advertido, nós
já lhe dissemos, no tratado de Teórica, que nosso Magistério é apenas
corrupção da forma presente em geração da forma futura.
Nicolas Grosparmy.
O Tesouro dos tesouros (1449), ms. n. p.

*
* *

125. Convenientemente disposta (compositus).


112 Filosofar pelo Fogo

p
JL/ xiste certa arte nobre, chamada Alquimia,
Que não busca nem o inconstante nem o sonhador.
E clérigo muito industrioso que ela requer,
Raramente leigo na verdade, senão com uma suprema habilidade.
Deixai ali as matérias corruptíveis: sais e tintas
E tantas outras que os pilões corrompem.
No Mercúrio está oculta uma tintura fortificante
Permanecendo no fogo, e brilhando como o Sol ou a Lua:
Não divulgada, no entanto, mas crescendo como a erva.
Por isso é preciso refletir sobre estas palavras dos Sábios:
A alma é extraída por meio do espírito,
E será purificada pela ação do fogo.
Estão lá árvores e folhas lunares.
Dotadas de nomes variados, marcando aflições efémeras.
E quando ela é sublimada, clara e pura,
Dela é destilada, permanente como a onda,
E por isso mesmo que uma parcela de nosso ar é tingida,
E de vil preço aquilo em que o Todo está oculto.
Muitos são ignorantes sobre o que dos Filósofos é conhecido.
Trina e una é a Pedra, espírito, corpo e alma.
Também é um bem feito divino conhecer bem seus nomes.
Verídica é a comparação com a Trindade,
Sem nenhuma violação ao respeito da unidade.
Autor desconhecido,
in Theatrum Chemicum,
t. III, pp. 736-737.

*
* *

alquimia não é outra coisa senão uma arte ca­


m
A o \
paz de tornar visível e de colocar em ação o que ela
expõe; uma arte que compreende a essência dos sete
O Â metais e revela como conduzir naturalmente suas
-II formas de um estado de diminuição a uma plenitude
3 natural. Ou seja: a alquimia é um determinado poder
Eis asjiores que se
escondem entre tantos oculto que se tornou manifesto pela luz dos filhos de
cactos e espinhos. seus genitores, e esse poder é o que rejuvenesce seus
A Arte de Hermes 113

filhos, como o faz um Filósofo PRÓSPERO. Ou ainda mais: a alquimia


é uma substância corpórea conjugando mutuamente, a partir de uma
coisa única e por meio de uma única coisa, os elementos compostos
mais difíceis, graças a um conhecimento e a uma execução perfeita,
e que os converte naturalmente em um gênero melhor por meio dessa
união natural. Nossa Pedra é de fato essa substância corpórea disposta a
partir de um e por um, que está religada a dois fluidos muito sutis e por
assim dizer límpidos, a saber, à alma e ao espírito, que pela luz dos fi­
lhos de seus genitores traz o rejuvenescimento e se torna manifesto. Ela
compreende a essência das coisas, no caso a dos metais, de tal forma
que descobre nessa substância a presença de um espírito vigoroso que
tinge; esse mesmo que nós buscamos, e pelo qual introduzimos a tintura
em qualquer corpo, e conduzimos naturalmente qualquer um deles de
sua condição cativa para uma completude natural.
Autor anónimo, O l.irio entre os espinhos
(Lilium de Spinis etulsum, 1557),
in Theatrum Cheniiatm, t. IV, p. 895.

*
* *
c aiba antes, caro amigo, que nossa arte consiste em imitar a natureza,
e, assim como a natureza produz por si mesma árvores e plantas, que
em seguida o jardineiro multiplica ao semear suas sementes ou ao tirar
delas enxertos, da mesma forma a natureza engendra na terra e nas
profundezas das profundas montanhas metais como o ouro e a prata,
que o artista multiplica ao semeá-las em uma terra apropriada, ou ao
enxertá-las em um ramo adequado.
Você deve então saber antes de mais
nada quais são as sementes do ouro e
da prata, quais são os ramos e qual é
a terra. Nós dizemos, portanto, que o
Sol e a Lua têm em si suas sementes,
e que Saturno, Júpiter, Marte, Vé­
nus são os ramos. A terra de todos
eles é na verdade o Mercúrio, e isso
é considerado como fundamento es­
tável, para o qual você deve dirigir A arte do enxerto: Goossen Vdn
toda a sua atenção, harmonizando a Vreeswijk. De Goude Son,
similitude de um com a natureza e Amsterdã, 1675.
114 Filosofar pelo Fogo

a conveniência do outro; esperando que Deus, autor da natureza, nos


concedeu que seja compreendida e aperfeiçoada, graças a uma contem­
plação dessa ordem, essa parte da Filosofia que comunicamos por meio
deste escrito aos homens dignos e escolhidos, para que eles e eu ofere­
çamos ao próprio Deus gratidão e louvores perpétuos por uma ação de
graças de que nós mesmos somos devedores [...].
Qual é na verdade essa matéria a partir da qual devem ser escolhi­
dos os princípios dessa obra, nós já a mostramos aos homens prudentes
pelas palavras ditas anteriormente. E, para colocar isso de uma maneira
melhor diante dos olhos, dizemos que assim como o homem é engen­
drado e provém do homem, o asno do asno, a galinha do ovo da galinha,
o fermento do fermento, assim também a partir de qualquer semelhante
é feito seu semelhante, do ouro certamente o ouro; e da prata, a prata.
Você compreende então a partir disso que tipo de matéria deve acolher
e extrair nessa obra; por isso convém que você saiba também que jamais
são produzidos homens de qualquer homem, nem um cão de qualquer
cão, nem uma erva de sua espécie de qualquer erva. Da mesma maneira,
não procriam um homem nem uma criança de 12 anos, nem um homem
esmorecendo de tristeza, nem um ser humano de qualquer dos dois se­
xos a partir de um coito mútuo. Assim, nem o filhote do cão engendra
um cão; nem a erva louca ou pútrida, a erva: mas o homem certamente
maduro e bem saudável, com uma mulher aparentemente madura e em
boa saúde, engendrarão o feto de um homem. É por isso que dizemos
que, assim como os agricultores escolhem diligentemente as sementes
dos frutos, das ervas, das árvores e não as aceitam a não ser que estejam
maduras, da mesma maneira avaliam também bastantes dispostos para
um enxerto os jovens ramos das árvores, assim você julgará que traba­
lho deve efetuar nessa obra [...].
Você deverá então examinar, caríssimo, que tipo de terra é apro­
priada para receber as sementes do Sol ou da Lua, pois, se a consi­
derar inapta, você perderá de maneira inoportuna tanto as sementes
quanto os trabalhos e o dinheiro gastos. É por isso que tanto as
sementes quanto a terra devem ser escolhidas com o maior dis­
cernimento: a terra escolhida deve ser trabalhada graças a todas as
coisas, e da mesma forma a terra dos campos e dos jardins deve ser
tornada arável e trabalhada, adubada, preparada, irrigada e trabalhada
de outros modos desse gênero. Geber e os artistas chamam Preparação
dessa obra divina essa seleção e cultura das sementes da terra, sem o
que nem o Sol dos Filósofos, nem a Lua, nem a terra podem ser obtidos,
nem nenhuma entrada é acessível para a penetração de semelhante
A Arte de Hermes 115

arte. Quanto ao ouro vulgar, ele certamente é impu­


ro e, contaminado pela mistura de outros metais, ele sg
é corrompido, mórbido e por isso mesmo estéril; e o
mesmo acontece com a prata, quando, ao contrário,
o Sol e a Lua dos Filósofos sào muito puros e, não
estando poluídos pela intrusão de nenhuma mistura
estranha, eles são saudáveis, valorosos e tornados fe­ ISO
cundos por uma semente abundante. A terra vulgar
também é inculta e abandonada, ao passo que a ter­ IODOCV5 ORE.
ra dos Filósofos foi trabalhada por touros soprando vírus Chtitnicus.
fogo, como está ensinado na fábula de Velo de Ouro. Jodocus Grcverus, alquí-
Acolhe, portanto, caríssimo, o sentido legítimo de mico: O Sol sempre toma
minhas palavras e compreenda por que os Filósofos Mercúrio como compa­
são comparáveis a jardineiros e a agricultores que nheiro, a Lua recebe seu
brilho do Sol.
certamente escolhem antes as sementes, e semeiam
aquelas que eles escolherem, não em uma terra vulgar, mas nos campos
cultivados ou demarcados de um jardim, e confiam enfim suas sementes
ao calor benfazejo do Sol, do céu e da terra, esperando pelo tempo que
for necessário o fruto merecido.
Jodocus Grcverus, Uni Segredo muito nobre e muito verdadeiro
(Seeretum itobtltssimum et verissimum, 1599),
p. 6-8.

*
* *
q emeai vosso ouro na terra branca folhada.
À terra miserável os camponeses confiam seus grãos
Quando, com seus ancinhos, eles araram o terreno.
Assim os Filósofos ensinaram como espalhar o ouro
Nesses campos nevados e, como ele, finamente arados.
Se tu queres fazer isso, observe então: como o ouro
Chega a germinar, em resposta o fermento o dirá.
A Alquimia revela em primeiro lugar as operações da agricultura
por causa de seus fins e de seus modos de operar secretos. Os agricul­
tores possuem uma terra, que semeiam com seus grãos, assim como
os Alquimistas têm um esterco, graças ao qual fertilizam seus cam­
pos. Sem esse campo que eles possuem nada também seria feito, e al­
guns não esperariam nem frutos. Eles têm sementes, das quais desejam
multiplicação. Se os Alquimistas não as possuíssem, eles imitariam um
116 Filosofar pelo Fogo

pintor (como diz Lulle) que se esforça em


reproduzir o rosto de um homem que ja­
mais teria visto, nem em pessoa nem em
imagem. Os agricultores esperam a chuva
e o calor do sol; da mesma maneira os Al­
quimistas administram realmente o calor
e a chuva que convêm à sua obra. O que
acrescentar? A Alquimia é em todos os
pontos semelhante à agricultura, da qual
é a substituta, ela que em todas as coisas
reproduz suas mudanças, segundo a alego­
ria mais perfeita: é por isso que os Antigos
apresentaram Ceres, Triptólemo, Osíris,
Dionísio, todos deuses de ouro, isto é,
que têm relação com a Alquimia, e ensi­
nam por assim dizer aos mortais a jogar
as sementes de seus frutos em sua terra,
Cena dejardinagem química: ensinando a agricultura e a propagação da
Abnaham Eléazar. Uraltes vinha, bem como o uso do vinho,* coisas
chymisches Wcrk. Erfurt, 1735. que os ignorantes desviaram erradamente
para usos rústicos. Estes são, com efeito,
os mistérios muito secretos da natureza que estão ocultos aos olhos do
vulgar sob o véu da agricultura, mas revelados aos Sábios. E por isso
que os Filósofos dizem que é preciso semear seu ouro em uma terra
branca trabalhada, como se desejassem que a semeadura fosse conside­
rada exemplar e imitada.
MichacI Maier, Atalantafugitiva
(Atalanlafugicns, 1618),
tn Tripus aitreus (1618), p. 33-35.

•k
* *

igamos então que se pode definir a Alquimia como uma ciência


que ensina a separar os elementos de cada composto produzido pela
natureza, e a recolher com destreza cada um em seu próprio vaso. Ou,
seja, Alquimia é uma Arte que mostra os meios para separar o sutil do
rústico, o puro do impuro, e para extrair de cada composto natural sua
essência pura e nítida, na qual repousa toda a virtude desse composto.
A Arte de Hermes 117

■ %.?

St®®#»
è.3íSrs
&A\U^úè^aSn^rís^<
"Semeai vosso ouro na terra branca arada": Michael Maier, Atalanta íugicns,
Oppenheim, 1618, emblema VI.
Ou então, a Alquimia é uma ciência pela qual aprendemos a conhecer a
primeira matéria de todos os corpos do mundo, sejam animais, vegetais
ou minerais, e como a Natureza procedeu ao procriá-los e aperfeiçoá-
los até sua última matéria, e também como é preciso que procedamos
para desfazê-los, retrocedendo a ordem dessa Natureza, se desejarmos
ver ocularmente sua primeira matéria. E ao fazer isso achamos verda­
deiramente que se trata de três coisas, nem mais nem menos, ou seja,
Enxofre, Sal e Mercúrio, visíveis e palpáveis, cada um em sua essência
incorporada, depois que são separados do composto pela via e meio
dessa ciência.
Em quarto lugar, podemos definir a Alquimia como uma parte da
verdadeira Medicina que ensina a conhecer, eleger e perfeitamente pre­
parar e separar o puro do impuro, pela Arte espagírica, dos medicamen­
tos tanto internos quanto externos, tanto simples quanto compostos,
para com mais certeza usá-los no corpo humano [...].
i 18 Filosofar pelo Fogo

Espagiria* também é derivado do grego, a saber, da palavra Spao,


que significa separar as partes de algum corpo mineral, vegetal ou ani­
mal, e de Ageiro, juntá-las ou reuni-las após sua perfeita e completa
depuração: e seus operadores são os Espagiricos, nome inventado por
Paracelso, o mais excelente Espagírico que jamais existiu desde Her­
mes Trismegisto* até nossos dias, assim como suas obras o demons­
tram. Porque anteriormente percebemos como a Alquimia pode fazer as
vezes de Ciência na Medicina e a Espagíria, de Arte, e dessa forma ela
será dividida em Ciência e em Arte.
David de Planis Campy,
Bttijuf composto das mais belas Flores aLpamicas (1629),
in (Euvres (1646), p. 416-417.
*
* *

impossível, segundo minha opinião, conseguir encontrar entre


o cálculo das Ciências e das Artes, tanto mecânicas quanto liberais,
algum que seja perfeito em sua origem; eles se aperfeiçoam a cada
dia, como o embrião dentro de sua mãe, que em seu início é informe,
e pouco a pouco e insensivelmente adquire o acabamento e o embele­
zamento destinados pela natureza. De repente, é impossível, é preciso
tempo para aperfeiçoar a menor coisa que seja na natureza.
A Alquimia, que é a senhora das Artes e Ciências naturais, nos
dá o suficiente a conhecer. Pois se vocês a contemplam nos primeiros
séculos em que os homens estavam alojados nos buracos das rochas e
nos ocos das árvores, nós ainda a veremos nascer, e inteira, no abismo
do conhecimento e da inteligência divina, sem ainda se dar a conhecer
ao homem, sendo-lhe assim quase inútil, não sabendo ainda o que
era o puro e o impuro das coisas naturais, por não ter jamais sentido
o dardo picante dessa impureza; mas assim que pouco a pouco e in­
sensivelmente esse espírito de vida, implantado no úmido radical* do
homem, veio a perder sua força e vigor, e que as doenças começaram
a nascer, assim que o homem sentiu enfraquecido e diminuído esse
vigor de vida por causa de seus inimigos, ele começou a pensar e a
meditar como razoável e pleno de inteligência, por que meio e de que
maneira ele poderia resistir a esse inconveniente. Ele conheceu pela
luz das ciências naturais e infusas, que seu Criador lhe tinha dado, que
o mundo em que estava era repleto de vida, semelhante àquela que
estava nele, e que não podia permanecer um instante sem a perpétua
A Arte de Hermes 119

atração desse espírito vital, que ele conseguia atrair continuamente


por meio de seus pulmões, e que esse espírito assim atraído ainda não
era suficiente para lhe conservar a vida, que ainda era necessário ex­
trair dos alimentos um espírito de vida mais fixo e mais sólido do que
aquele que extraía do ar, e que os alimentos tomados para sustentar
sua vida já teriam atraído para si quantidade desse espírito vital, infu­
so em todos os elementos, e o haviam preparado para dele se apropriar
e transformá-lo em seu, e que seu estômago, seu fígado, seu coração, e
todas as partes de seu corpo, trabalham noite e dia para separar desse
espírito vital, que estava infuso, tanto entre todos os elementos quan­
to entre todos os indivíduos compostos de elementos a fim de poder
manter e conservar sua miserável vida [...].
No início dos séculos, essa Alquimia natural era bem poderosa
pela potência de seu fogo natural, que separava poderosamente o que
lhe era contrário, e impedia essas perfeições, e rejeitava a realização
desses votos: assim, víamos todas as coisas durarem muito mais do que
vemos agora, uma vez que esse fogo natural está muito enfraquecido
pela associação de uma grande e enorme quantidade de excrementos
que ele não pode rejeitar, que causam sua completa extinção cm uma
infinidade de indivíduos particulares, que é obrigado a abandonar, e
a se recolher, para novamente retomar suas forças, e novamente pro­
duzir mais deles, nos quais ele recomeça sua Alquimia; e dessa forma
jamais a deixa, senão para recomeçá-la com nova forma [...].
Entre os Filósofos, vários quiseram definir a Alquimia como uma
arte que ensina a mudar uns metais em outros; ou seja, os imperfei­
tos em perfeitos. Nessa mudança eles querem compreender todas as
depurações e triagens das coisas metálicas e minerais dos impuros
resíduos* terrestres e feculências, que se encontram entre o gênero
mineral. Mas essa distinção é bastante estreita, e não vai muito além
de sua definição, pois a Alquimia compreende muito mais do que o
gênero mineral. Os vegetais e os animais não podem evitar suas po­
tências, nem mesmo os quatro corpos vastos que chamamos os quatro
Elementos, que são as colunas do mundo, não podem impedir, por
sua grandeza e vasta solidez, que a Alquimia não os penetre de lado
a lado, e não veja por meio dessas operações o que eles têm no ven­
tre, e o que ocultaram no mais recuado de seu desconhecido centro.
O próprio Céu, que está acima de nossos sentidos corpóreos, que só
podemos compreender pela operação intelectual de nossa alma, não
pode ser excluído do campo da Alquimia; uma vez que, pela matéria
120 Filosofar pelo Fogo

incorruptível das coisas inferiores que se encontram em seu centro,


ela vê e toca as matérias superiores e celestes; e vê, pelo mesmo meio
e via, as matérias inferiores serem semelhantes e de igual substância
que as superiores e celestes, e que sua diferença é apenas pelo puro e
pelo impuro que se encontram em seus indivíduos.
Nós diremos, portanto, depois de tantas maravilhas, que a Alqui­
mia nào é apenas uma Arte ou Ciência para ensinar a transmutação
metálica, mas uma verdadeira e sólida Ciência que ensina a conhecer
o centro de todas as coisas, que em linguagem divina chamamos o
Espírito de vida, que Deus infundiu entre todos os elementos para a
produção das coisas naturais, seu alimento e manutenção, que se cor-
porifica no centro de todas as coisas, tornando-se um corpo incorrup­
tível, permanente e fixo, para resistir a todas as formas de alterações
que ele deve sofrer, para a comodidade das diversas gerações que ele
deve eclodir em seu centro.
A Alquimia, portanto, ensinando essa substância divina, espiri­
tual em todas as coisas, e demonstrando por meio de suas operações
químicas como extraí-la e afastar da dificuldade e da corrupção ele­
mentar, para fazê-la gozar das potências e virtudes, quase infinitas,
que seu Criador lhe deu, merece o verdadeiro nome da única Filosofia
natural, uma vez que ela mostra a base, o fundamento, e a raiz de
todas as coisas criadas, ensinando a depurá-las e exaltá-las, de onde
vêm a transmutação metálica nos metais, da fertilidade dos vegetais,
e a prorrogação de vida, com a completa ajuda de todos os seus aces­
sórios nos animais.
Picrre-Jean Fabre,
O Resumo dos segredos alquímicos
(crad. fr. 1636), p. I-II.

*
* *

História da Filosofia hermética, que hoje dou, não tinha sido


empreendida até aqui, e não há razão para se surpreender com isso.
Os eruditos, que se dedicam à História, desprezam, com razão, tudo
o que se relaciona com essa Ciência; e os Filósofos, ocupados apenas
com suas operações, negligenciam sua História, e confundem todos
os tempos. Geber, o Filatelista, Hermes, o Cosmopolita, tudo neles se
encontra confundido, tomara que consigam. Para eles, não se trata de
A Arte de Hermes 121

saber a que séculos é preciso relacionar esses Artistas célebres; é ape­


nas questão de imitá-los e de segui-los nos trabalhos e nas loucuras
que lhes são próprias [...].
Já é hora de dizer uma palavra sobre a etimologia dessa Ciência,
cuja História vou traçar. E preciso observar que existem duas espécies
de Química: uma sábia, razoável, necessária até mesmo para obter
remédios úteis de todos os seres da natureza, sem excetuar nem os
metais nem os minerais; a outra é essa Química louca e insensata, e
todavia a mais antiga das duas, por meio da qual os Artistas se imagi­
nam poder converter os metais imperfeitos em metais puros e perfei­
tos. A primeira conservou o nome de Química, e se deu à segunda o
de Alquimia.
Abade Nicolas Lcnglet-Dufrcsnoy,
História da Filosojia Hermética (1742),
L I, p. 3-4.
120 Filosofar pelo Fogo

incorruptível das coisas inferiores que se encontram em seu centro,


ela vê e toca as matérias superiores e celestes; e vê, pelo mesmo meio
e via, as matérias inferiores serem semelhantes e de igual substância
que as superiores e celestes, e que sua diferença é apenas pelo puro e
pelo impuro que se encontram em seus indivíduos.
Nós diremos, portanto, depois de tantas maravilhas, que a Alqui­
mia não é apenas uma Arte ou Ciência para ensinar a transmutação
metálica, mas uma verdadeira e sólida Ciência que ensina a conhecer
o centro de todas as coisas, que em linguagem divina chamamos o
Espírito de vida, que Deus infundiu entre todos os elementos para a
produção das coisas naturais, seu alimento e manutenção, que se cor-
porifica no centro de todas as coisas, tornando-se um corpo incorrup­
tível, permanente e fixo, para resistir a todas as formas de alterações
que ele deve sofrer, para a comodidade das diversas gerações que ele
deve eclodir em seu centro.
A Alquimia, portanto, ensinando essa substância divina, espiri­
tual em todas as coisas, e demonstrando por meio de suas operações
químicas como extraí-la e afastar da dificuldade e da corrupção ele­
mentar, para fazê-la gozar das potências e virtudes, quase infinitas,
que seu Criador lhe deu, merece o verdadeiro nome da única Filosofia
natural, uma vez que ela mostra a base, o fundamento, e a raiz de
todas as coisas criadas, ensinando a depurá-las e exaltá-las, de onde
vêm a transmutação metálica nos metais, da fertilidade dos vegetais,
e a prorrogação de vida, com a completa ajuda de todos os seus aces­
sórios nos animais.
Pierrc-Jean Fabre,
O Resumo dos segredos alqmmicos
(crad. fr. 1636), p. I-II.

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História da Filosofia hermética, que hoje dou, não tinha sido


empreendida até aqui, e não há razão para se surpreender com isso.
Os eruditos, que se dedicam à História, desprezam, com razão, tudo
o que se relaciona com essa Ciência; e os Filósofos, ocupados apenas
com suas operações, negligenciam sua História, e confundem todos
os tempos. Geber, o Filatelista, Hermes, o Cosmopolita, tudo neles se
encontra confundido, tomara que consigam. Para eles, não se trata de
A Arte de Hermes 121

saber a que séculos é preciso relacionar esses Artistas célebres; é ape­


nas questão de imitá-los e de segui-los nos trabalhos e nas loucuras
que lhes são próprias [...].
Já é hora de dizer uma palavra sobre a etimologia dessa Ciência,
cuja História vou traçar. E preciso observar que existem duas espécies
de Química: uma sábia, razoável, necessária até mesmo para obter
remédios úteis de todos os seres da natureza, sem excetuar nem os
metais nem os minerais; a outra é essa Química louca e insensata, c
todavia a mais antiga das duas, por meio da qual os Artistas sc imagi­
nam poder converter os metais imperfeitos em metais puros e perfei­
tos. A primeira conservou o nome de Química, e se deu à segunda o
de Alquimia.
Abade Nicolas Lcnglct-Dufresnoy.
História da Filosofia Hermética (1742),
t. I, p. 3-4.
Filosofar pelo Fogo

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Alegoria da Grande Obra: Nicolas Valois, Os Cinco Livros, séc. XVII.


A Arte de Hermes 123

JWas enfim qual é então a diferença en­


tre a Química vulgar e a Química hermética?
E a seguinte: a primeira c propriamente a arte
de destruir os compostos que a Natureza fez;
e a segunda é a arte de trabalhar com a Na­
tureza para aperfeiçoá-los. A primeira coloca
em prática o tirano furioso e destruidor da
natureza; a segunda emprega seu agente su­
ave e benigno. A Filosofia hermética toma
por matéria de seu trabalho os princípios
secundários ou princípios das coisas, para
conduzi-los à perfeição de que são suscetí­
veis, pelas vias e procedimentos conformes
aos da Natureza. A Química vulgar toma os
mistos* que já chegaram ao ponto de sua
perfeição, decompõe-nos e os destrói [...].
Os Filósofos herméticos não deixam de
marcar em suas obras a diferença entre es­
sas duas artes. Mas a marca mais infalível
com a qual se possa distinguir um Adepto
r... de um Químico é que o Adepto, segundo o
que dizem todos os Filósofos a esse respei­
to, só toma uma coisa, ou no máximo duas
i de mesma natureza, um único vaso ou dois
no máximo, e um único forno para condu­
zir a obra à sua perfeição; o Químico, ao
contrário, trabalha com todas as espécies
de matérias indiferentemente. E também
a pedra fundamental com a qual é preciso
‘<23^ questionar esses escroques sopradores, que
desejam seu dinheiro, que pedem ouro para
fazê-lo e que, em vez de uma transmuta­
ção que lhe promete, só fazem com efeito
uma translação do ouro de sua bolsa para
a deles.
Dom Antotne-Joseph Pcrnéty,
As Fábulas egípcias e gregas reveladas
e reduzidas ao mesmo princípio (1758),
1.1, p. 20-22.
124 Filosofar pelo Fogo

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Colheita do orvalho celeste por unia dupla de alquimistas: Altus,


Mutus Liber, 1677, prancha 4.
4

O Espírito do Mundo:
Alquimia, Cosmologia
e Astrologia

Esse espírito universal é cao poderoso


que cura quase todos os males somente
com seu vapor e odor; ele está oculto sob
uma forma aérea, aquosa, terrosa c salina.

Sabina Stuart de Cbevalicr.


DiscurseJileséjice sebre oí três Principies,
t. I. p. 156.
A revelação contida na Tábua de Esmeralda teria permanecido letra
morta se os alquimistas não lhe tivessem dado uma dimensão experimen­
tal, indissociável de uma cosmologia que ainda privilegia a astrologia.
Um único e mesmo espírito deve, com efeito, reunir macrocosmo e mi­
crocosmo a quem é assim insuflada a vida, tanto física quanto espiritual:
“Ó verdor bendito girando no universo, tu cujo centro está em toda parte
e a circunferência dispersa em todos os abismos da Natureza ” (Ch. A.
Balduinus). É a captar esse “Espírito de vida ” que vão se dedicar os
alquimistas, operando a junção das virtudes terrestres e celestes em um
“meio ” cuja descoberta se mostra determinante para a realização da
Grande Obra. Nesse “meio-termo ”, ponto focal dos influxos cósmicos,
a conversão recíproca dos extremos dá origem a um corpo espiritual em
que brilha “o espirito corpóreo do mundo ” (H. de Linthaut).
Percebido como um Todo (En to Pan) cuja unidade dinâmica englo­
ba todas as formas de vida no triplo mundo (mineral, vegetal e animal),
o Cosmos hermético-alquímico não é um relógio, cujo mecanismo Deus
-125-
126 Filosofar pelo Fogo

teria concebido e depois minuciosamente regulado, mas um grande


vivente, cuja respiração reúne o astro mais brilhante à pedra bruta
e anónima. Por isso, a Grande Obra, concebida pelos alquimistas à
imagem do Universo, não poderia ser empreendida (sob o signo de
Capricórnio) e depois levada a termo no outono, época das vindimas, a
não ser com a cumplicidade dos ritmos e influxos cósmicos: “Hermes,
o Vindimador, não negligencia avermelhar as espécies brancas de seu
cacho ", dizia um alquimista grego que permaneceu anónimo.
*
* *
|Saiba. portanto, Filho de Doutrina, e a mais querida de minhas crian­

ças, que o Sol e a Lua e as estrelas lançam perpetuamente suas in­


fluências no centro da Terra; para consegui-lo é preciso primeiramente
passar pelas regiões médias do Ar, nas quais essas influências estão reu­
nidas. as quais misturadas uma à outra são então destiladas nos poros
da Terra, e até mesmo em seu centro, depurando-se de areia em areia,
até a última gota de sua umidade aérea; o Ar está, portanto, cheio des­
sas influências, assim como a Terra, e não há nada no mundo que dela
não esteja repleto, pois é o centro de todas as coisas, e a Alma universal
de todos os corpos; mas essa semente é muito pródiga em duas quali­
dades. a saber, calor e umidade, dos quais vemos sair todas as coisas
que estão no mundo, pela aproximação, contudo, do primeiro macho,
que é o fermento que se une a essa semente e que a atrai e a converte à
sua Natureza; dividindo assim as espécies e organizando-as segundo a
vontade e primeira organização do Todo-poderoso, para que nada seja
confundido, e que cada coisa produza frutos de sua Natureza.
O calor dessa semente está oculto em seu centro, e por isso é invisível.
E a umidade é o seu corpo ou o esperma; esse corpo quando aumenta no Ar
requer uma separação e purgação física, que é a preparação dos extremos;
esta deve ser considerada com grande atenção na operação de Natureza.
Essa semente denominada por Hermes, Mercúrio Trismegisto,* por causa
de sua tripla virtude, passando de um lugar a outro nas marcas e veias da
Terra, purga e limpa seus lugares por meio de uma reiteração infinita; por­
que essas umidades se seguem como as ondas do mar, até que estejam em
seu final ou termo, que é o fogo ou o centro da Terra.
Nicolas Valois,
A chave do Segredo dos segredos
(1445), ms. n. p.
*
* *
O Espírito do Mundo: Alquimia, Cosmologia e Astrologia
127

Hermes, o maior Operário e primeiro mestre dessa Arte, diz que


a água e o ar, que estão entre o Céu e a Terra, são a vida de cada coisa,
pois por meio dessas duas particulares e naturais qualidades, quente e
úmido, ele une esses dois Elementos contrários, a Água e o Fogo, como
um meio necessário para harmonizar essas duas extremidades. E assim
que o Céu começa a clarear sobre a Terra, essa água se espalha do alto
e lhe serve de semente fecunda introduzida no gargalo de seu ventre,
no qual ela concebeu uma doçura como o mel e certa umidade que lhe
fazem produzir uma diversidade de cores e de frutos, de onde ainda sc
elevou e cresceu, como pela sucessão de linhagem nos vestígios de seus
secretos caminhos, uma árvore de altura e grossura admiráveis, com
um tronco prateado, que se estende ampla e largamente pelas praças c
cantões do mundo. Nos galhos dessa árvore repousam diversas espécies
de pássaros, que voam na direção do dia, e depois ali aparecem corvos
em abundância; infinidade de outras e raras propriedades ali ainda se
encontravam, pois ela estava carregada de muitas espécies de frutos,
cujos primeiros eram como grãos pequenos, e a outra [espécie] é cha­
mada por todos os filósofos de terra folhada (terra foliata); a terceira
era o ouro mais puro, obrigado a misturar frutos que chamamos saúde,
reaquecendo o que é frio, resfriando o que está quente, e o que contraiu
por uma intempérie extraordinária algum calor excessivo, tornando o seco
úmido e o úmido seco, amolecendo o que é duro e reafirmando o que
está mole. Ora, todas essas conversões de essências contrárias são os
pilotis mais seguros da esperança de nossa obra, nostra operatio est
naturarum mutatio™ dizem eles comumente.
Salomon Trismonin. O lito dr Ouro
ureuni Iflhts, 1598). trad. fr. de 1612,
p. 46-48.
*
* *

Água é propriamente o primeiro Elemento, que dá origem a todos


os corpos criados para produzirem, ou ser produzidos; a Arte, junto
com a Natureza, pode ajudar na produção: o que faz com que os Filó­
sofos produzam uma que pode transformar um metal imperfeito em um
perfeito. Se a Natureza não fez Ouro, o que chamamos Saturno, a Arte
pode fazê-lo [...].

126. Nossa operação consiste na mutação das naturezas.


128 Filosofar pflo Fogo

É a essa Água que os Filósofos deram tantos nomes, chamando-a pri­


meiramente de Essência divina, depois Espírito de vida, Vinagre, Óleo,
Fogo, Enxofre, Terra, Sal, Mercúrio, Prata-Viva; é o
solvente universal, a vida e a saúde de toda carne.
Os Filósofos dizem que é nessa Água que o
Ur L J Sol e a Lua se banham, e que eles mesmos se dis­
í h por meionadessa
solvem água, sua primeira origem; está dito que é
resolução que eles morrem, mas seus
« V
espíritos são levados sobre as águas desse mar, onde
estavam enterrados.
lOHANNES AVRE, Esse Espírito, como uma Fénix* que renasce
lius Ayurcllicg. das cinzas, reveste-se de um corpo negro, branco e
Jean Aurcllius vermelho, com a ajuda do fogo elementar que age
Augurellus: Aquele que continuamente, mas por graus, nessa primeira ma­
me liberta da Água e téria, a qual, desejando se libertar da corrupção, se
me conduz ao seco, reúne no mais alto da Esfera cristalina, de onde é
eu o abençoo como obrigada a descer pelos vapores dos corpos putrefei-
um benfeitor. tos, que pouco a pouco lhe retiram sua volatilidade e
a forçam a tomar corpo com eles; a isso os Filósofos
chamam sublimação, trituração, ascensão, destilação, embebição, ence-
ração; esse orvalho rega a terra, para que ela produza um fruto precioso
em sua época.
Esse orvalho que circula no vaso filosófico demonstra as agradá­
veis cores da íris, pelas diferentes refrações da luz sobre as nuvens va­
porosas que se levantam da terra: o olho e os sentidos estão encantados
de admiração por esses fenômenos.
Preceitos e Instruções do Pai Abraão ao seu Filho
in William Salmon, Biblioteca dos Filósofos Químicos
t. IV, p. 555-556.
*
* *
JE/ o que faz com que esses metais importantes

Não pareçam engendrar seus semelhantes,


Ainda menos ser tão virtuosos
Em converter outras coisas neles,
É que o espírito que dá vida completa
É impedido de tão pesada matéria,
E não tem poder de mostrar a virtude,
Com a qual ricamente a Natureza o vestiu,
O Espírito do Mundo: Alquimia, Cosmologia e Astrologia 120

Se a capacidade humana, e virtude viva,


Não lhe deu caminho, que viva para esse fim,
E se o operário ao extraí-la não manche
Com a matéria espessa que o oculta.
Ver como dizem que o Ar, Terra, os céus,
E do Mar a grande torre espaçosa
Estão excitados interiormente
Por uma alma viva, e gcralmcnte
Que por essa alma viu toda coisa
Que vemos sob o Céu enclausurada;
E (além do mais) que por tal alma
O Mundo vive, e seu rigor vem dela.
Porque é então coisa bem certa
Que toda alma está no mundo incorporada,
E que o mundo em semelhantes acordos.
Do mundo também as partes têm corpos.
Acreditar convém que no meio desses dois
Mora um espírito poderoso c vigoroso,
Que não pode nem corpo nem alma dizer:
Mas que dos dois participa, e reduzir
Apenas pode em uma dessas duas extremidades
Por seus efeitos em tudo bem limitados.
Esse espírito deseja todos os dias
Que Terra, Mar, o Ar e o Fogo sempre
Vivam, e sejam incessantemente inclinados
A aumentar e crescer,
Que toda coisa eles atraem e remexem,
Adicionam a eles, e à sua vontade transmutam:
Ele também quer que todos os arbustos,
Raízes, plantas, produzam frutos novos,
E que em semente ampla e contínua
Dos animais a espécie renove.
Semelhantemente a esse caro espírito mantido
Dentro do Ouro amarelo, como servo detido,
Requer bem polida a mão do operário,
Que nos laços em que está diluído,
Para esse fim que o toma poderoso
E do poder natural desfrutando,
E se nenhuma arte sutil se adianta
Para diluir, e colocar em liberdade
130 Filosofar pelo Fogo

Esse espírito, sabendo-o aquecer,


E por muito tempo recozinhar e requentar,
Ele conhecerá (coisa bastante admirável)
Que ao Ouro chegará a vida desejável
Com o efeito de semente, e ainda
Que do próprio Ouro ele poderá fazer Ouro.
Jcan Aurcllc Augurei
Os Três Livros da Crisopría (1515),
trad. por F. Habcrt dc Berry (1626), p. 12-13.
*
* *

ós ouvimos no discurso anterior, sobre a geração ou a natureza dos


metais, como a sábia e benigna Natureza opera no centro da terra, e como
apenas de uma raiz ela produz e cozinha seus minérios, subindo pouco a
pouco por graus até que atinja finalmente a última perfeição, que é o Ouro.
Falta sair de suas cavernas, pois eis que a Aurora e o cocheiro de crânio
dourado atrelam os cavalos indomáveis para virem ilustrar nosso clima
com sua face brilhante, de forma que veremos sobre a terra, facilmente,
o mesmo sujeito, que outrora vimos entre as mãos da senhora Natureza,
visitando o inacessível e tenebroso castelo do fauno. É o mercúrio do gran­
de mundo, encontrado apenas no veio dessa fonte em cuja borda estava
estabelecida a natureza, e que nos ensinou a tomar sua origem na esfera
superior de nossa baixa Astronomia, e cujo veio é a chave da primeira regra
da Arte dos Filósofos. Pois tanto dela quanto de uma raiz eles produzem os
sete metais mágicos, verdadeiros fundamentos das minas do Elixir, Pedra
de todas as obras dos Sábios. Assim, sem o conhecimento desse mercúrio
ou Espírito do Céu, petrificado no centro da terra, ninguém poderá ver a
desejada luz de nosso Febo, de forma que assim como a Aurora precede o
dia, assim esse Mercúrio supera os metais mágicos, e estes a grande obra
depura antes do Sol e do dia da Ciência. Por essa razão chamamos esse
presente tratado nossa aurora, cuja descoberta eu devo a Deus, e em parte a
um Artista especialista [...].
Para bem entender o Espírito corpóreo do mundo (o qual nomea­
mos mais acima Mercúrio do grande mundo), é preciso saber que ele
é apenas o Espírito do Universo feito corpo dentro do ventre da terra,
Hermafrodita,* e primogénito da natureza, guarnecido com as facul­
dades do Céu e da Terra, mesclando-se indiferentemente a tudo, pois
ele encerra todo germe e virtude, seja mineral, vegetal ou animal; ele
é vivificante, substantivo, essencial, dando substância e vida a todas as
criaturas deste mundo, contudo é muito comum, porque ele passa por
O Espírito do Mundo: Alquimia, Cosmologia e Astrologia
131

todos eles. E novamente está bastante oculto, pois assim como o Céu se
mostra de maneira bastante ampla com seu Corpo na superfície do mun­
do, da mesma forma ele se oculta bem profundamente no centro da terra
com seu Espírito. Ele também é a criatura mais preciosa, pois fora dele,
nele e por ele são, vegetam e crescem todas as coisas, tudo está repleto
de sua virtude e nada está vazio de sua essência; no entanto, início c fim de
qualquer criatura, ele conserva e destrói, é bom e malicioso, triplo c uno,
é composto de Sal, Enxofre e água mineral pura, coagulado c dissolvido,
compacto e separado, regado e seco, mas para excitar todo esse poder em
ação que ainda só tem em poder é preciso torná-lo espiritual.
Hcnri dc Linthau,
A /h<rora (scc. XVI), ms. n. P-
*
* *

espírito universal desce dos espaços celestes na primavera e para


ele retorna no outono. Esse movimento circular de queda e dc ascensão
determina um ciclo anual e regular, no qual o espírito representa o papel
de mediador entre o céu e a terra. Ele é mais abundante na época da
germinação do que no início do verão, e manifesta sua atividade muito
mais durante a noite do que de dia. O esplendor solar o dissipa, o calor o
volatiza, as nuvens o interceptam, o vento o dispersa e o impede dc sc fi­
xar, mas, em contrapartida, as radiações lunares o favorecem c o exaltam.
Na superfície da terra, ele se une à água pura do orvalho, que lhe serve
de veículo para o reino vegetal, e forma com ele um sal dotado dc uma
acidez particular. Na destilação ou na evaporação lenta ao abrigo da luz,
podemos recolhê-lo em cristais minúsculos, verdes, muito refratários c
que possuem certa analogia qualitativa
com o nitro ordinário [...].
A incorporação do espírito, sua
infiltração por meio da textura mais ou
menos frágil dos minerais, não implica
a necessidade de uma dissolução ante­
rior nem seu transporte em um veículo
aquoso. Muito pelo contrário, é dire­
tamente, assim como eles nos chegam
dos espaços celestes - sob forma de vi­
bração obscura ou de indivisível ener­
gia — que ele pode se aliar aos metais MUWBamaBiiíiiíii i hw f > i ■
mineralizados [...]. O maná celeste fecunda a terra:
De Alquimia, Leyde, 1526.
132 Filosofar pelo Fogo

O fluido universal, apesar de sua grande sutileza, não poderia pe­


netrar os corpos metálicos, primeiro porque já está corporificado no
orvalho, em seguida porque a compacidade, a densidade, a inércia dos
metais reduzidos pela indústria humana constituem muitos obstáculos à
sua introdução. Se quisermos ter sucesso em sua animação, é indispen­
sável mantê-los perfeitamente em fusão
O artista possui um criterium infalível da absorção requisitada do
espírito pelo corpo. Este, ao se resfriar, se cobre de linhas radiantes,
dirigidas para o centro único designado como o polo pelo Filatélico,
as quais, em seu conjunto, oferecem de maneira bem nítida uma figura
estrelada.
Engènc Canselict, comentário da 5a Chave:
Basile Valentin, As doze Chaves da Filosofia, Paris.
Les Éditions de Minute, 1956, p. 140-141.

*
* *

xiste um único Espírito corpóreo que a Natureza primeiramente


criou, que é comum e oculto, e que é o Bálsamo precioso da vida, que
conserva o que é puro e bom e destrói o que é impuro e mau. Esse
Espírito é o fim e o início de toda criatura, triplo em substância, pois é
feito de Sal, de Enxofre e de Mercúrio, ou de Água pura, que do alto
coagula, une, reúne e rega todos os lugares baixos, com um suco untu-
oso e úmido.
Ele é limpo e disposto a receber qualquer tipo de forma e figura;
só a Arte que, com a ajuda e o intermédio da Natureza, o torna visível
aos nossos olhos. Ele esconde e oculta em seu ventre uma força e uma
virtude infinita: pois essa é uma coisa que é plena e repleta das proprie­
dades do Céu e da Terra. Ela é hermafrodita* e dá crescimento a todas
as coisas, mesclando-se indiferentemente com elas, porque mantém en­
cerrada em si todas as sementes do globo etéreo. Pois ela está repleta de
um fogo sutil e poderoso, e, ao descer do Céu, influi e imprime sua for­
ça nos corpos da terra, e seu ventre, que é poroso, está cheio de ardor,
e é o pai de todas as coisas. Então esse ventre se enche de outro Fogo
vaporoso, e incessantemente recebe seu alimento do humor radical que,
nesse vasto corpo, se reveste do corpo da Água mineral, o que faz pela
concocção de seu Fogo quente.
Essa Água, que pode ser coagulada e que engendra todas as coisas,
torna-se uma terra pura, que, por uma forte união, mantém uma virtude
dos mais altos Céus encerrada em si; e porque nessa mesma terra ela
O Espírito do Mundo: Alquimia, Cosmologia e Astrologia
133

está unida e misturada com o Céu, é por isso que eu lhe dou esse belo
nome, o Céu* terrestre.
Vinceslas Lavintus de Moravia,
Tratado do Cru terrestre (1612). ín William Salmon.
Biblioteca dos Filósofos ALjuituicos. t. IV. p. 566-567.

A rotação das estações sob o efeito do magnetismo universal: Jean-Jacques


Mangety Bibliotheca Chemica Curiosa, 1702.

ma vez que me engajei a falar sobre o Espírito do mundo, é ne­


cessário que eu faça reconhecer como o mundo está pleno de alma e de
vida. Pois, além de a Natureza não espiritualizar nada do que ela não
vivifica, e de o mundo consistir em contínuas e insuficientes alterações
134 Filosoi-ar pelo Fogo

das formas que não podem ser feitas sem o vital movimento; se é que
ainda vemos essa mesma Natureza, assim'como uma Mãe muito fecun­
da e cuidadosa, envolver e alimentar esse mundo, distribuindo a cada
um de seus membros uma porção de vida suficiente. De forma que não
há nada em todo o Universo a que ela não se dedique a tornar animada;
é por isso que ela não pode ser inativa, mas permanece sempre tensa e
atenta à sua ação, que é a de vivificar. Ora, esse grande corpo é agitado
e provido de um movimento sem repouso, e esse movimento não pode
acontecer sem o espírito vital, pois o que é sem vida é necessariamente
imóvel, não de um lugar a outro, por movimento violento e forçado,
mas de privação da forma, ou, para dizer mais claramente, da imperfei­
ção à perfeição. Da vegetação com plantas, e da concreção com pedras,
avançam com movimento, que se faz pela infusão dessa alma que agita
essa grande massa por meio de certo Espírito radical e alimentador; a
fonte e Mina que está estabelecida no centro da Terra, bisavó de todas as
coisas, para que daí provenham e se estendam por todo o corpo (como
do coração) todas as funções vitais.
Ora, essa raiz e mina estão encerradas no antigo seio do velho
Demogorgon,* progenitor universal, que os poetas, inquisidores muito
diligentes dos segredos naturais, engenhosamente descreveram como
revestido com uma capa verde, envolvida por uma ferrugem, coberta
por obscuras trevas, e alimentando toda espécie de animais, no ven­
tre do qual as virtudes dos globos celestes incessantemente decorrem,
penetrando os flancos da terra que elas engravidam com todas as espé­
cies multiformes. Ali aonde de forma semelhante as qualidades e forças
elementares vêm servir esse velho Pai, como produtor e especificador
de todas as coisas, perpetuamente ocupado na repartição das formas
específicas por meio de seu lliastre,127 e com a excitação do calor vital
por seu Arqueu.128 lliastre e Arqueu são como as duas ferramentas da
formação, da conservação e do aumento das coisas [...].
O corpo do mundo é familiarmente conhecido pelos sentidos, mas
nele se encontra um espírito oculto, e nesse espírito uma alma, que não
pode ser acoplada ao corpo senão pelo meio deste, pois o corpo é gros­
seiro, e a alma bastante sutil, muito distante das qualidades corpóreas. Por
isso, para esse acoplamento, é preciso um terço que participe da Natureza
dos dois, e que seja espírito-corpo, porque as extremidades não podem ser
reunidas senão pela ligação de algum mediador que tem tal afinidade com
ambas, que cada uma delas possa ali reencontrar sua própria natureza.

127. lliastre: provedor que fornece as matérias para as gerações.


128. Arqueu: fogo ou calor natural que digere as ditas matérias e age sobre elas.
O Espírito do Mundo.- Alquimia, Cosmologia e Astrologia 135

O Céu é alto, a Terra é baixa: um é puro, a


outra corrompida. Então como poderíamos
nos elevar e reunir essa pesada corrupção
a essa ágil pureza sem um meio que parti­
cipe das duas? Deus é infinitamente puro e
claro; os homens são extremamente impu­
ros e manchados de pecado: sua reconci­
liação e aproximação com Deus só poderia
acontecer pelo intermédio de Jesus Cristo,
que real mente como Deus e homem foi o
verdadeiro imã. Da mesma forma, na má­
quina do Universo, esse espírito-corpo, ou
corpo espiritual, é como agente comum,
ou argamassa da conjunção da alma com
o corpo. Essa alma é no espírito e no cor­
po do mundo uma isca e sedução da inte­
ligência divina: pois essa inteligência ali O Mercúrio, cabeça e cauda do
é claramente percebida pelas elevações Ouroboros planetário: Aipiin.
efetivas, renovações, mutações, variações Dc Alquimia, ms. séc. XVI.
e multiplicações de formas, que não po­
dem proceder senão da inteligência divina, e não da matéria, que em si
é bruta e não pode causar nenhuma natureza inteligente, para formar c
especificar as coisas. O mundo é, portanto, alimentado por esse espírito
e agitado pela alma infusa nele pelo meio desse próprio espírito.
Clovis Hcstcau dc Nuisement,
Tratado do verdadeiro Sal secreto dos Filósofos
e do Espínto geral do Mundo (1621),
p. 1-5 e 17-22.
*
* *

s Céus estão em um movimento perpétuo, que tende a um de­


terminado fim. Esse fim não é uma progressão de um lugar a outro, ou
uma simples mudança de lugar, mas tem como objetivo chegar a outro
efeito. Todo fim é duplo, um em vista da própria coisa, o outro a fim de
alcançá-la. O fim pelo qual Platão partiu da Grécia para o Egito era o
de aprender a sabedoria. A finalidade dessa viagem era o Egito, para o
qual ele pendia. Da mesma forma, também, o curso dos globos celestes
não somente tem como fim próprio o movimento e a celeridade que
lhes permite se movimentar de lugar em lugar, mas também de poder
136 Filosofar pelo Fogo

transmitir, graças às influências que são as suas, as virtudes e qualida­


des desse espírito nos corpos sublimares ou interiores. Essas influências
jamais faltam e são contínuas, pois seu movimento é circular, sempre
recomeçando e cessando por si mesmo. A razão pela qual a coisa em
que essa influência se exerce, e a partir daí progride, é que elas têm uma
natureza e qualidade semelhantes, uma solidez (resistência) indefinida
e a capacidade de recolher a multiplicação de suas virtudes. E graças
a essa influência que subsiste sem jamais faltar, mas age perpétua e
continuamente no corpo da terra, que é o corpo de todos os corpos e
tem todas as qualidades do verdadeiro corpo e, em seus sujeitos, todas
as capacidades e aptidões, por causa das diversas ações desse corpo, ela
tem um espírito; as propriedades destes últimos sendo as de penetrar,
esquentar, purgar, separar, unir, vivificar, aumentar, restaurar e conser­
var. Todas essas operações admiráveis só podem se efetuar na terra, na
qual apenas se realizam todas as influências celestes, que desse espírito
são as anunciadoras e as mensageiras. A terra é de fato o centro do
mundo universal, e por assim dizer o ponto ou ápice (apex), para o qual
tendem todas as linhas desse grande cerco.
Henri dc Rochas, Do Espírito Universal
ÇDc spiritH nniversali, 1634),
in Theatruin Chemirum, t. VI, p. 771.
*
* *

ós mostramos, não sem razão, que os sábios dedicaram a maior


parte de sua sabedoria ao conhecimento do homem: porque, como é o
centro das criaturas e o milagre do mundo, ele encerra tudo o que está
acima e abaixo de si.
É por isso que foi nomeado o pequeno mundo, e como ele tem essa
natureza contígua entre os superiores e os inferiores, que os harmoniza
quase de maneira divina, celeste e mágica, ele carrega não apenas a
imagem de Deus, mas também o caráter da natureza angélica, e encerra
todas as virtudes, as propriedades do Céu, dos astros e dos Elementos,
e tudo o que está compreendido na natureza vegetal, animal e mineral.
Por essa razão, Trismegisto o nomeou o filho do mundo e, outros
o símbolo de Jesus Cristo, porque podemos dizer que ele é supraceles-
tre em sua parte superior, astral na média e terrestre ou elementar na
inferior. Ele é ainda denominado interior e exterior, homem visível e
invisível, que tem seu Céu,* seus astros e seus Elementos, e que é tudo
em toda coisa.
O Espírito do Mundo: Alquimia, Cosmologia e Astrologia 137

Assim como o grande mundo, ele tem seu polo e seu ímã, isto
é, essa virtude atrativa daquilo que é próprio a cada uma das partes em
geral, e em particular.
Conhecer a virtude atrativa do ar para o pulmão; do sangue ou do
suco para o fígado; das ferocidades para os rins; dos espíritos vitais para
o coração; dos espíritos animais para o cérebro; dos alimentos para o
estômago; e assim para o restante das partes.
E como a terra no grande mundo é o ímã, a atração de todas as
influências celestes, e o Céu é o polo, no qual tudo o que ela engendra
tende ao lugar de sua origem; da mesma forma o Sal, que é essa terra
virginal, no centro de todas as coisas, é o Imã de tudo o que pode man­
ter a vida do microcosmo.
E faz, por sua frieza e sua secura, o que o polo boreal e seten­
trional faz pelos mesmos, porque o próprio da frieza é constranger, e o
da secura é atrair e absorver seu úmido. Ora, como o sal está cm toda
parte, podemos dizer que esse ímã também está, e o todo em toda coisa,
sem o que a vida não pode ser conservada, acerca do que falaremos no
tempo conveniente.
Mas porque a virtude atrativa é mais forte e mais fraca em uma
das partes do ímã do que em outra, como ele não pode ser igualmente
atraído por todas as partes; é preciso admitir duas espécies de virtudes,
uma pela dilatação com o calor, e outra pela contração, que se faz pela
frieza: tanqua media habilia)29 E por isso que o ímã do corpo animal
vivente deve ser mais forte do que o ímã do sangue do animal morto:
pois assim como um deve servir de polo ao outro, o outro deve servir
de forma semelhante de ímã [...].
Ainda mais que a virtude dos Imãs é agir mais por sua forma do
que pelas qualidades sensíveis de frieza, de calor, de úmido e de secura,
ita ut non fit lux neque Stella quae non profunde penetrei ornneni mundi
partem usque ad centram.™ Da mesma forma, a natureza do espírito
magnético do sangue é penetrar por sua sutileza, e por sua agilidade,
sendo espiritual, vital e radiante, até a ínfima de todas as partes do cor­
po humano, para se unir, mesclar-se e se encontrar com o espírito e com
a Múmia131 de nossos corpos, como seu semelhante.

129. Como meios bem apropriados.


130. De forma que não se produz a luz nem a estrela que não penetra profundamente qual­
quer parte do mundo até o centro.
131. Múmia: às vezes assimilada ao túmulo de Osíris (cf. texto de Olimpiodoro, citado p.
422). A arte alquímica supostamente deve realizar sobre os metais e os corpos o equivalente
da imortalizaçào assim praticada no Egito.
138 Filosofar pelo Fogo

De tal fornia que tanto um quanto outro se recebam, abracem-se


em uma mútua ligaçào e se confundam ou passem para a natureza um
do outro; de acordo com esse axioma de que a natureza se ama, regozi­
ja-se e se deleita em sua própria natureza, o que se faz pela similaridade
de sua natureza, que faz esse comércio de raios e de espíritos.
Nicolas de Locqucs,
Os Rudimentos da Filosojia Natural
(1665), p. 19-22.

*
* *
Por que certa substância permanente, celeste, divina, muito estranha

à concretude dos Elementos e que participa do nascimento das coisas


singulares, não seria extraída delas graças à dissolução que podemos
fazer? Ela tem como fundamento um sujeito sólido, menor, necessário
ao condicionamento das coisas. Com ele, ela permanece ou vai embora,
diversifica-se, retorna ou se retira, deixa-se conduzir e extrair.
Essa matéria de que já fala-
1 mos é em seguida nomeada ce­
í' leste, espírito e alma do mundo

RM
(por Avicena e os Platónicos),
orvalho da noite, água rarefeita
do dia, espírito invisível coagu-
, lado, semente de todas as coisas,
espírito vivente de todas as cria­
turas, vida celeste, espírito uni­
versal incluído nas coisas cozidas
e engravidadas pelo ar, semente
universal da Natureza, espírito
salino-sulfúroso-mercurial, subs­
í
a tância una afetada de uma tripla
virtude, princípio mais próximo
de todas as coisas. Athanase
Kircher, livro 12, capitulo 5 do
) Mundo Subterrâneo; Luz, bál-
■ samo da vida, múmia* vital, ca­
■ • J
— lor natural, Úmido nascido com
ai
força e vigor da natureza uni­
Do concurso dos sete planetas depende a versal, princípio do movimento,
realização da Grande Obra: Figurarum enteléquia, esperma do mundo,
/Egyptiorum Secretarum, séc. XVIII. Água do grande Oceano, Água
O Espírito do Mundo: Alquimia, Cosmologia e Astrologia 139

da vida muito pura, Fogo universal, Caos da Natureza e de suas adegas,


cujo calor vital e espírito procedem como de um esperma. Quintessên-
cia e Mercúrio de vida, nomeada para além de mil [...].
E o Leão verde é nomeado vigor, na medida em que ele pode pene­
trar e mover as coisas cozidas: o que Trismegisto ensinou, chamando-o,
na Tábua de Esmeralda, de a potência enérgica de toda força, nós o qua­
lificamos de superior e o nomeamos pássaro, ou Águia de Hermes, ou,
ao contrário, o mais universal Mercúrio que, distinguido (considerado,
inteligível) pelo nome de água seca, serpente no cemitério comum das
coisas superiores e inferiores do mundo a fim de que sejam realizados
milagres do mundo inteiro, e é chamado pelo Cosmopolita alimento de
nossa vida. Este é de fato percebido justamente por uma digestão leve, e
é o pai das grandes regenerações se sua virtude foi convertida em Terra.
Christian /Xdolphc Balduinus, O Own? herme'nro
superior e inferior (Aurum superioris et tnjertorts aur<r
superionset inferioris Henneticum, 1675), p. 13-14.

*
* *
CZ-ada um sabe verdadeiramente, e não deixará de dizer que é o Espí­
rito auxiliado pela água, que faz crescer; sim, certamcnte é o Espírito,
mas, sendo apenas um espírito volátil, ele não fará grande efeito nas
coisas sublunares. É preciso necessariamente, para que ele possa lhes
ser útil, que tenha e que tome em si mesmo um corpo sensível, palpável
e visível, pois o que deve fazer frutificar as coisas corpóreas e terrestres
deve da mesma forma ser ou se tomar corpóreo e terrestre com elas.
É por isso que, como a semente vegetal, animal e mineral é pal­
pável e visível, também é preciso que esse Espírito seja semelhante ou
se torne.
Muitas pessoas frequentemente tocam com suas mãos esse espíri­
to corporificado, e podemos recolhê-lo em quantidade, mas, apesar de
tudo isso, são poucas as que conhecem essa semente corpórea quanto à
sua origem; a razão é que ela usa outro nome além daquele que deveria
ter; pois, segundo sua verdadeira origem e raiz, deveríamos chamá-la
a Semente do macrocosmo, o Espírito universal, o Caos regenerado,
visível, corpóreo e palpável. Esse é o título que lhe convém, uma vez
que ela é a semente concentrada, coagulada, condensada, corpórea e o
Espírito do mundo em um corpo diáfano e visível como um cristal; uma
água que é uma água seca, que não molha de forma alguma as mãos;
140 Filosofar pelo Fogo

uma terra que é uma terra aquosa e cheia de fogo, que também contém o
frio como o gelo; um céu coagulado, um ar coagulado, uma coisa mais
excelente e mais preciosa do que os tesouros do mundo.
A Natureza revelada ou Teoria da Natureza (1772),
Tradução da Aurra Catnia Honwri, dc Ancon Joscph
Kirchwcgcr (1723), c.1, p. 84-86.
*
* *
j/\ntes é preciso saber que essa ciência divina faz uso de termos

próprios à Astronomia, em relação com o curso e as influências dos


planetas, a posição e a disposição própria de cada um dos 12 signos
do círculo do Zodíaco. Sobre isso testemunha Aristóteles, dizendo a
Alexandre que Saturno rege a terra, Mercúrio, a água, Júpiter, o ar, e o
Sol, o fogo: porque toda coisa da ordem dos vegetais e privada de luz é
regida por Saturno e lhe é semelhante. E todo vegetal capaz de floração,
mas não de dar frutos, está ligado a Marte e é por ele regido; e todo
vegetal carregando ao mesmo tempo flores e frutos, está afiliado ao Sol
e é dirigido por ele. E ele também acrescentou: Em seguida, aproxima
e casa essas disposições e dias: todo vegetal que carrega frutos mas não
floresce - como a figueira e a palma -, é atribuído a Saturno e ao Sol.
E toda coisa que floresce sem carregar frutos é dominada por Saturno e
Marte. Eis como a Astronomia trama esse dom de Deus. Aristóteles diz,
com efeito, que todo vegetal privado de luz regido por Saturno tende para
uma terra negra e pantanosa, enquanto toda coisa que carrega flores e é
luminosa, regida por Mercúrio, aspira a uma primeira dealbação* dessa
? terra; e toda coisa portadora de flores, mas não
j de frutos, regida por Marte, quer a delimitação
L após o branqueamento, que é chamada incine-
] ração. E toda coisa portadora ao mesmo tempo
de flores e de frutos, regida pelo Sol, quer a rea-
r lização perfeita da tintura. O autor do Livro das
f Três Palavras diz, com efeito, que no primei­
ro mês, quando a semente foi concebida pela
Avrora consvr matriz, Saturno opera no feto, coagulando e
^n5 vkilofrvkiab. condensando em uma única massa a matéria e
A Aurora nascente: Em a própria matriz. No segundo mês, operam o
cada coisa mora um calor e a umidade de Júpiter, que colocam or­
Espirito inato pelo qual dem nessa massa de carne então chamada em­
ela é animada e cresce. brião. No terceiro mês, intervém Marte, cujos
O Espírito do Mundo: Alquimia, Cosmologia e Astrologia 141

calor e secura ordenam e separam essa matéria em membros distintos.


No quarto mês, é o Sol que age, introduzindo o espírito de vida. No
quinto mês, opera Mercúrio, que molda formas e aberturas. No sexto
mês, é Vénus que dispõe e ordena as sobrancelhas, os olhos e os testí­
culos, e as coisas da mesma ordem. No sétimo mês, intervém a Lua em
razão da expulsão do feto que, caso nasça, é capaz de ver: no caso con­
trário, ele é privado da virtude dos Signos. Sempre de acordo com este
testemunho: quando o Sol está em exaltação no signo de Áries, então é
terminado o primeiro grau [da obra], que é frágil em razão da tempera­
tura, e torna manifesta a ordem da água. Quando o Sol está no signo de
Leão, é então realizado o segundo grau, que é o mais quente por causa
do grande calor: é então a vez do ar. Quando o Sol está em Sagitário,
é finalizado o terceiro grau, que, desprovido de todo calor escaldante,
manifesta a dominação da falta de ar: porque privado de calor ninguém
pode ser inteiramente movido, mas permanece em repouso e cm ver­
dadeira tranquilidade. Nesse estado, o pai suspeita do filho, ou seja, a
terra retém o espírito e não lhe permite de forma alguma fugir. Sénior
diz, com efeito, sobre a virtude dos dois astros:132 Eu, Sol quente e seco,
e tu, Lua úmida e fria, quando estivermos unidos segundo a justiça de
nosso estado na morada fechada de Vénus, eu receberei a alma de tuas
carícias. Depois que formos elevados na ordem dos antigos, brilhará de
ti como de mim a luz das luzes.
O Survtr Aitnm ÍAitrvni fíMSitrgrns),
ãi Aunfcnr Artis ijttíttti Chmiian wcanl,
t.1. p. 206-209.

*
* *
F,s a tábua dos planetas de onde você poderá, se

souber se mostrar hábil, tirar como de uma fonte


os pesos dos metais e aprender a confeccionar e
I-
animar nosso Lunar.*
Saturno é frio e seco, e não contém por essa
razão mais do que quatro onças de Mercúrio e 12
de enxofre. Ele se dissolve facilmente, e dele obte­ GeorgivóRjp
mos uma água viva e um Leite de virgem. lais
George Ripley, Filósofo:
Existem três Mercúrios,
dois superficiais e o
132. cf. texto do Rosário dos Filósofos, citado p. 456-457. terceiro Essencial, o do
Sol e o da lua.
142 Filosofar pelo Fogo

Júpiter, sendo quente e úmido, anima com sucesso nosso Lunar e


detém quatro onças de enxofre e 12 de Mercúrio.
Marte é quente e seco e por isso não tem mais de duas onças de
Mercúrio e 14 de enxofre.
O Sol é de todos os planetas o mais equilibrado; sua constituição é
igual em qualidade, e claro. Nele as naturezas dos quatro Elementos são
perfeitamente realizadas, sem aumento ou diminuição. Dele extraímos
o grande elixir, que é quente e úmido: assim é o Sol entre os planetas,
assim também é o ouro entre os metais; e das 24 partes que o compõem,
apenas três são de enxofre, o resto é do Mercúrio.
Vénus é de natureza quente e seca, menos, contudo, que Marte, e
com ele nosso Lunar é aperfeiçoado: sua terra é bastante pura, bem pro­
porcionada e contém oito partes de Mercúrio e oito partes de enxofre.
A Lua é, verdadeiramente falando, de natureza úmida e fria e com
ela fazemos a tintura do branco. Ela contém uma terra pura e brilhante
e possui duas partes de enxofre e 14 de Mercúrio.
A partir daí, três elementos devem ser levados em consideração: a
largura, a profundidade e o comprimento.
A largura abre, como dizem, os metais, o que significa dizer que
ela prepara sua dissolução.
A profundidade os reduz em sua matéria-prima, isto é, separa o
volátil do fixo e a tintura da terra.
O comprimento estende e multiplica infinitamente a virtude da
tintura, e daí decorrem três outras operações, a saber, a solução, a dis­
solução e a resolução.
Gcorge Rjpley, Cha\e da porta de ouro,
(Clavis aumr porta-, séc. XVI),
in Opera oitinia dxtniea (1649),
p. 290-292.

*
**
O Espírito do Mundo: Alquimia, Cosmologia e Astrologia 143

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Os sete metais simbolicamente associados aos sete planetas: Michael


Maier, Viatorium, De montibus planetarum, Oppenheim, 1518.
144 Filosofar pelo Fogo

_xbserve, portanto, que um planeta deve


jhÊ fazer o outro perder ofício, dominação
e reinado, e lhe retirar toda potência
e majestade real, até que os princi­
pais deles mantenham o reinado nas
mãos, conservando-o por sua cons­
tante e permanente cor, trazendo a
vitória com sua mãe, e ela, desde
o início, associada e desfrutando de
i uma perpétua e natural associação
e amor. Então, o antigo mundo não
será mais mundo; será feito outro
novo em seu lugar, e um planeta terá
consumido espiritualmente de tal for­
ma o outro que os mais fortes, tendo se
alimentado dos outros, serão os únicos
Zodíaco alqiiimico: Ripley a permanecer, e dois e três terão sido
Scrowle. /56’8. vencidos por um único.
Observe, enfim, que é preci­
so levantar a balança celeste e colocar do lado esquerdo Aries, Touro,
Câncer. Escorpião e Capricórnio; e do lado direito Gêmeos, Sagitário,
Aquário. Peixes e Virgem. E faça com que Leão se lance no seio da
Virgem, e que esse lado da balança pese mais. Enfim, faça com que os
12 signos do Leão zodíaco, fazendo suas constelações com os sete go­
vernadores do Universo, se olhem todos com bons olhos, e que, depois
que todas as cores tiverem passado, a verdadeira conjunção aconteça e
o casamento, para que o mais alto se tome o mais baixo e o mais baixo, o
mais alto.
Basilc Valenrin, As doze Chaves da Filosofa
(Claves XII Philosophia, scc. XV?; Ia edição de 1599).
in William Salmon, Biblioteca dos Filósofos Alqiumicos, t. 3. p. 59-60.

JBm minha dominação me são apropriados entre os 12 signos, o Sagi­

tário e o Peixes: Eu nasci em Peixes, porque fui Água diante de minha


VIDA; mas o Sagitário colocou a Sabedoria em meu coração, por meio
do qual perdi minha aquosidade, tendo me tornado, pelo meio do calor,
uma Terra seca; e ainda que minha Terra, pelo meio da Água, tenha se
tornado uma substância mole, no entanto vocês devem entender que a
Água foi secada pelo Ar quente, e que essa Matéria mole foi transfor­
mada pelo calor em uma matéria dura.
O Espírito do Mundo: Alquimia, Cosmologia e Astrologia 145

Disso, vocês que são sábios, ou os demais que devem aprender,


devem diligentemente observar e ter cuidado, que o Estanho está sujeito
aos quatro Elementos e aos outros planetas, e esses Elementos recebe­
ram em seu centro as virtudes do alto e por elas foram engendrados.
Para lhes dizer Adeus, digo-lhes que, quando extraírem desse bom
Júpiter o Sal e o Enxofre, e os unirem ao Saturno para fazê-los escorrer
juntos, vocês verão Saturno tomar um corpo mais fixo, purgando-se c se
tornando mais claro, e terão uma transmutação verdadeira do Saturno
em Júpiter.

Basilc Valentin, ReveLiç.io dos


mistérios ias Ftrituras essenciais ie sete metais
(séc. XV?). p. 70.

O Espírito Mercúrio sob a fornia de uni jovem rapaz se equilibrando sobre o


globo do mundo: Figurarum /Egyptorum Secretorum, séc. XVlil.
146 Filosofar pelo Fogo

/ . X/

• Dc cavtmi/ mftalloruHt orcidtu* Mf.tfiú Lapió fítventmlnlú.Jtniajf

"Nas cavernas dos metais está oculta a Pedra venerável”:


Limojon de Saint Didier, O Triunfo Hermético, 1689.
5

Grande Obra, Génese


e Embriologia Estamos todos aqui nesta vida, cm um mesmo campo, e
crescemos; e as estrelas c os elementos sào o campo em
que crescemos. t)cus nos semeou ali dentro. Adao é o
primeiro grão que o próprio Deus semeou e todos nós
crescemos desse mesmo grão.
Jacob Boehme, Da encarnação do lêrbo (1620),
citado in Confcssions, p. 124.

É próprio do espírito alquímico ter chegado a conciliara intimidade


de uma gestação — a dos metais nas entranhas da terra -e a sublimidade
de uma Génese cujo Deus é o único verdadeiro artesão. Se esse desvio
do olhar para as profundezas noturnas da “mina ” se revela propício à
fantasia, a imitação suscitada pela narrativa bíblica predisporia, quanto
a ela, à inflação psíquica, se a humildade não presidisse o gesto pelo
qual o alquimista recria no ovo filosofal as condições supostas de terem
sido a da Criação, assim como as descreve, por exemplo. Robert Fludd
em sua Philosophia moysaica (1638). Classificando os metais em função
de sua dignidade crescente (ferro, chumbo, cobre, estanho, prata, ouro),
os alquimistas, contudo, não se contentavam em afirmar uma hierarquia
inscrita na Natureza, uma vez que afirmavam a possível passagem do es­
tado mais vil ao mais nobre, simbolizado pelo Ouro: “O ovo é chamado
o mundo com a cabeleira de ouro ” (Olimpiodoro, século V).
Nomeada “transmutação”, essa operação só era possível aos
seus olhos pela redução da diversidade das coisas com uma raiz
única. Por isso lhes era necessário descobrir a “razão seminal”
presente em toda matéria sob a forma de uma prata-viva e de um
enxofre que, livres de suas respectivas sujeiras e unidos pela Arte, são
então capazes de realizar o desejo secreto da Natureza, ao revestir um
único e mesmo corpo de ressurreição e glória. Testemunho de um tempo
que não crê mais na alquimia, é uma Génese invertida aquela descrita
- 147 —
148 Filosofar Pelo Fogo

pelo poeta Rainer Maria Rilke: “O metal langue. E quer deixar as moe­
das, as engrenagens que lhe ensinam uma pequena vida. E das fábricas
e das caixas ele entrará nas nervuras das montanhas entreabertas que
se encerram sobre ele 133

A embriologia metálica e mineral

gora precisamos falar dos efeitos dessa


secreção na própria terra, quando a exala­
ção se encontra presa em algumas partes da
terra. Ali ela produz duas espécies diferen­
tes de corpo, em razão de sua dupla nature­
za, exatamente como faz na região superior.
Com efeito, existem, nós o dizemos, duas
exalações, uma úmida, a outra fumarenta; e
a essas exalações correspondem, formados
A natureza nào produz no seio da terra, corpos de duas espécies: os
a Pintura sem Enxofre e minerais e os metais. O calor da exalação
Prata-viva.
seca é a causa de todos os minerais: estas
são as espécies de pedras que não são fun­
díveis, e a sandáraca, o ocre, o giz verme­
lho, o enxofre e as outras substâncias desse
gênero, a maior parte dos minerais sendo
ou um pó colorido, ou, como o cinábrio,
uma pedra formada dessa composição. A
exalação vaporosa, por seu lado, é a causa
de todos os metais que são ou fundíveis, ou
dúcteis, como o ferro, o ouro e o bronze.
Sabemos que existem
Todos esses corpos têm como causa a exa­
coisas profundas na lação vaporosa aprisionada na terra e muito
Natureza, sob a terra, e especialmente nas pedras: sua secura com­
que é necessário buscar prime essa exalação em uma única massa
nos minerais e em nenhum e a congela, à maneira como o orvalho ou
outro lugar. a geada sobrevêm assim que a exalação se
separou; com essa diferença, contudo, de

133. Rainer Maria Rilke, Le Livre du pèlerinage, Das Buch von der Pligerschaft (1901),
in SãmtiicheWerke. Insel Verlag. 1955, t. 1, p. 329: « Das Erz hat Heimweh. Und verlassen
/ will es die Munzen und die Ràder, / die es ein kleines leben lehren. / Und aus Fabriken
und aus Kassen / wird es ztíruck in das Geàder / der aufgetanen Berge kehren, / die sich
verschiessen hinter him.
Grande Obra, Génese e Embriologia 149

que, no presente caso, os metais são engendrados antes de a separação


ser efetiva. E por isso que, de certa forma, eles são da água, e, de outra
forma, não são. Em potência, sua matéria era realmente matéria da água,
mas ela não o é mais; os metais também não são, como os sabores, de­
vidos a uma mudança qualitativa acontecida na água O bronze e o ouro,
com efeito, não se formam dessa maneira, mas tanto para um quanto para
outro a exalação se congelou antes de se tornar água. É isso o que faz
com que todos esses metais sejam afetados pelo fogo e que contenham
terra, porque eles encerram ainda a exalação seca. O ouro não é afetado
pelo fogo.
Aristóteles, Mf/wrv/égrroí,
trad. fr. Paris, J. Win, 1941,
p. 221-223 (II, 6, 378ab).
*
* *

Retomando por sua conta a teoria das exalações exposta por Aristóteles nes­
sa obra, os alquimistas reterão a lição em relação à geração dos metais nas
entranhas da terra, mas não a conclusão relativa ao ouro, ou melhor, "seu ”
Ouro que escapa à geração como à corrupção. Por isso essa teoria em alqui­
mia é indissociável da dos Elementos e Princípios (cf. capitulo 11).

evemos sem rodeios reconhecer que essa arte possui verdadeiros


princípios naturais, uma vez que a própria natureza corpórea metálica
se forma nas minas, como é mostrado no livro 4 do Meteorológicos,
em que Aristóteles distingue os corpos mine­
rais em quatro espécies: pedras, líquidos, en­
xofres e sais; alguns deles sendo substâncias
de composição pouco densa e frágil, e outras

á
substâncias fortes, sendo algumas dúcteis e ou­
tras não. Mas quaisquer que sejam as causas de
<9/5
sua geração, a mesma coisa aparece tão clara­
mente que, portanto, não é a ocasião de expor 2;
novamente.
RlCHARDVS AN(í
Os corpos minerais são igualmente classi­ Hais Pkiloíãvhus.
ficados em duas categorias principais, a saber:
uma metálica, que reagrupa os metais que tiram Richard, filósofo inglês:
sua origem do Mercúrio, tais como o ouro, a pra­ O estudo da Ciência
suprime a ignorância e
ta, o cobre, o estanho, o chumbo e o ferro, e são
conduz a inteligência ao
nomeados minerais maiores. E uma categoria verdadeiro conhecimento.
150 Filosofar Pelo Fogo

mineral, onde organizar aqueles que não têm sua origem do Mercúrio,
tais como os sais, as tintas, os alumínios, o vitriol,* o arsénico,* orpimen-
ta (ouro-pigmento),* enxofre e outros semelhantes, e que são chamados
minerais menores. Contudo, existem corpos não metálicos que, sendo ma­
nifestamente dos minerais maiores (isto é, corpos metálicos), têm sua ori­
gem no enxofre e na prata-viva em sequência mais ou menos depurados.
Richard 1’AngIais, A Correção dos insensatos
(CorredioJatuorum, scc. XII), in Thealrutn Chetnicwn,
t. II, p. 387-388.
*
* *
Para que em todas as coisas o fim corresponda a seu princípio, deve­

mos procurar se o ouro verdadeiro pode ser feito segundo as regras da


grande Arte, ou não; porque, sendo o próprio ouro um corpo perfeito,
reclama para si o lugar original de sua geração: ou seja, o ventre da ter­
ra, ou suas veias, assim como o vinho requer o ventre da
• R*
vinha;* por isso ele não pode ser engendrado, exceto em
um lugar apropriado. Da mesma maneira, nenhuma for­

I
s Vkiiv/òvhus .
ma substancial poderia ser introduzida ali onde proprie­
dades ativas não podem ser adquiridas artificialmente
por meio das propriedades passivas. Mas a forma subs­
tancial do Sol não é obtida a partir do calor do sol ou de
I «Michaet Scot> um fogo semelhante àquele de que se servem os artis­
tas: ela o é, portanto, antes a partir do calor do Sol, etc.
Quanto a essa questão, devemos saber que nada mais é
Michel Scot. filósofo:
O que era oferecido
buscado exceto saber se de determinado mineral - o Sol
às nossas mãos está limpo ou a Lua - pode ser artificialmente procriada certa
perdido por causa virtude seminal que, imediatamente, fortalece o Mercú­
dos pecados dos rio até que ele tenha obtido a dureza do Sol [...].
homens ímpios. A esse respeito, é preciso saber antes que seme­
lhante virtude seminal pode ser encontrada de maneira
mais adequada a partir do ouro. O que é aprovado pelo bem-aventurado
Agostinho em seu comentário sobre a Génese,134 onde ele diz: estão
de fato presentes nas coisas corpóreas todos os elementos do mundo, e

134. Em várias oportunidades mencionadas por Agostinho ao longo de seu comentário


(La Cenèse au seus littéral). a teoria dos quatro Elementos o interessa muito mais quanto
à relação da “potência de sentir” com esses Elementos do que em razão de sua possível
transmutação, sobre a qual ele não se pronuncia (liv. III, IV, 6-7; V, 7). cf. também La Cité
deDieu. liv. XI, IV. 1-2.]
Grande Obra, Génese e Embriologia
151

certas razões seminais ocultas que, quando lhes for oferecida a oportu­
nidade temporal e causal, se precipitarão nas causas debitadoras. e nas
espécies segundo seus modos e finalidades próprias; e da mesma forma
que não são chamados anjos aqueles que fazem criaturas animais, tam­
bém não são nomeados criadores de corpos vegetais os cultivadores
de quaisquer tipos de cereais na terra, ainda que tenham descoberto o
meio de revelar oportunidades bem comparáveis, e as causas requisita­
das para que elas se manifestem. Somente o Deus único c verdadeiro
é criador, que plantou as próprias causas e as razões seminais nas coi­
sas. Isso mesmo está até dito em A Cidade de Deus e por metalepse
no capítulo 31, questão 5. Portanto, não é surpreendente que os filóso­
fos mostrem esses argumentos de maneira variada e segundo diversos
modos. Uns chamam de virtudes celestes, como está dito no segundo
capítulo do De Generatione’.^ as formas de todas as coisas estão nos
corpos celestes, etc.; outras virtudes igualmente elementares, porque
se precipitam subitamente na ação, como o fogo ou qualquer outro ele­
mento. Outros as nomeiam com razão virtudes minerais, porque são
produzidas a partir dos metais apropriados quanto a seu ser. Outros di­
zem que essas virtudes são as raízes do sol, pois, assim como o grão
alimenta pelo intermédio da raiz, o mesmo acontece com o ouro por
intermédio dessas virtudes, como será exposto posteriormente. Quanto
a nós, chamamo-las espíritos fermentados, porque eles corrompem os
espíritos purificados para que toda a massa seja fermentada; mas esta c
a obra de todas as coisas muito naturais: tornar a outra semelhante a si
mesma; e, para que as coisas sejam perfeitas, não há nada a ser encon­
trado na obra a não ser por que esses espíritos fermentam e tingem. Se,
portanto, foi atingido aquilo de que falam os filósofos no sentido figu­
rado, nós afirmamos que essa questão responde à sua intenção essen­
cial. Da mesma forma aparece claramente em todos os filósofos o que
nós queremos dizer: que a virtude seminal anteriormente citada é de
natureza universal, não certamente que o Mercúrio esteja presente em
sua própria natureza, nem na totalidade de sua substância, mas em pelo
menos uma parte desta. Para isso irá trabalhar, com efeito, o elemento
sublimador, a fim de livrar o Mercúrio de sua umidade fleumática e de
sua substância feculenta, e para que ele possa ser mortificado; pois, sem
ter sido morto nem fixado, ele não poderia aperfeiçoar a obra: e para
isso trabalhará transpirando o agente acelerador com um fogo de uma

135. De la génération et de la corruption, de Aristóteles: cf. Em particular o livro II em que


está exposta a teoria dos Elementos (11, IV), e a relação entre necessidade e forma circular
(II, XI).
152 Filosofar Pelo Fogo

violência muito grande. Da mesma maneira, convém que ele se torne


fluido: a isso se dedicará o resolvedor, porque o que não foi semeado
não poderia germinar, e o que não germinou não poderia ser aperfeiço­
ado, esses dois sendo igualmente obtidos pela dissolução. O ouro é em
todos os sentidos admirável: o que é manifesto a partir de seu peso e de
seu grau de embebição de Mercúrio. Portanto, nele reside a completa e
radical intenção dos filósofos, e da vontade que eles têm de fazê-lo de
fato adquirir as virtudes e excelências pelo intermédio de semelhante
calor, e pelo movimento das inteligências, graças ao qual é impossível
se perder, caso não seja por acidente. E quem começaria a obter tudo
isso no Mercúrio, poderia tê-lo, todavia, pelo sufrágio do fogo e do
savoir-faire, que constitui a riqueza da obra.
Michael Scor, Questão curiosa relativa à natureza do Sol e da Lua
(Questio curiosa de natura Solis et Lunar, scc. XII c XI11),
in Thcatruin Cheinicuni, t. V, p. 713-714.

*
* *

1 Vgora vou enunciar de maneira completa os princípios naturais e


os modos de procriação dos minerais.136 Antes é preciso observar a
esse respeito que os princípios minerais são nas minas a Prata-viva e
o Enxofre, dos quais são engendrados todos os metais, e todos os mi­
nerais, cujas espécies são diversas e variadas. Mas digo que a Natureza
sempre se deu como objetivo a perfeição do ouro, para a qual ela tende.
Todavia, os diversos acidentes que acontecem transformam os metais,
como mostram exaustivamente os livros dos Filósofos. Pois, segundo a
pureza ou impureza dos dois princípios precitados, ou seja, a Prata-viva
e o Enxofre, dos metais puros e impuros são engendrados, a saber: o
ouro, a prata, o estanho, o chumbo, o cobre e o ferro. Quanto à sua
natureza pura ou impura, ou ainda imunda pelo excesso ou falta, tome
isso como verdade.
Da natureza do ouro: O ouro é certamente um corpo perfeito, en­
gendrado a partir da prata pura, fixo, claro, vermelho, e do Enxofre pu­
rificado, vermelho fixo, incombustível, e que não tem nenhum defeito.
Da natureza da prata". A prata é um corpo limpo, puro, quase per­
feito, procriada a partir da prata-viva pura, quase fixo, claro, branco, e

136. cf. também texto de Roger Bacon citado p. 321-222, relativo ao forno e ao vaso, com­
paráveis à montanha e à mina onde são procriados os metais.
Grande Obra, Genese f. Embriologia
153

de um Enxofre semelhante. Só lhe faltam poucas coisas, a cor assim


como o peso.
Da natureza do estanho'. O estanho é um corpo imperfeitamente
limpo, procriado a partir da prata viva, puro, fixo e não fixo, claro, bran­
co em seu aspecto manifesto e vermelho em seu oculto, e de um Enxofre
de qualidade comparável. Somente lhe faltam o cozimento e a digestão.
Da natureza do chumbo'. O chumbo é um corpo sujo e imperfeito,
procriado a partir da prata-viva impura, não fixo, terroso, cheio de sujei­
ras, ou seja, branco cm seu aspecto manifesto e vermelho em seu ocul­
to, e de um enxofre da mesma natureza, e nada combustível. Faltam-lhe
a pureza, a fixação com a cor c a ignição.
Da natureza do cobre'. O cobre é um corpo imundo c imperfeito,
engendrado a partir da prata-viva, impuro, não fixo, terrestre, combus­
tível, vermelho escuro, e de um Enxofre comparável. Fazem-lhe falta a
fixação, a pureza com o peso, e tem cor impura em demasia e elementos
terrosos incombustíveis.
Da natureza do ferro'. O ferro é um corpo imundo c imperfeito,
engendrado a partir da prata-viva impura, fixo demais, terroso c com­
bustível, de um branco e vermelho escuros demais, e de um enxofre fixo
imundo, que sua qualidade terrosa torna combustível. Todo alquimista
deve, portanto, agora observar essas palavras [...].
Será que não vemos que nas minas os elementos grosseiros se
cozinham de tal forma e se espessam tão bem pelo calor constante exis­
tente nas montanhas que com o tempo ele se transforma em Mercúrio?
Que o mesmo calor, o mesmo cozimento transforma as partes gordas
da terra em Enxofre? Que esse calor aplicado por muito tempo a esses
dois princípios engendra, segundo sua pureza ou sua impureza, todos os
metais? Não vemos que a natureza produz e aperfeiçoa todos os metais
somente pelo cozimento?
Roger Bacon. O Espelho da Alquimia,
(Speculum Alchetnia. séc. XIII) in
Jean-Jacq ues Manget.
Bibliotbcca Chemica Curiosa, t. I, p. 613 e 615.

*
* *
2Was, para retornar ao nosso objetivo (pois não pretendemos falar
aqui somente da Pedra), tratemos da matéria dos metais. Disse um
pouco antes que todas as coisas são produzidas de um ar líquido, isto
é, de um vapor que os Elementos destilam nas entranhas da Terra por
154 Filosofar Pelo Fogo

meio de um contínuo movimento; e, assim que o Arqueu* o con­


cebeu, ele o sublima pelos poros e o distribui por sua sabedoria a
cada lugar (como já dissemos anteriormente). E dessa forma, pela
• variedade dos lugares, as coisas provêm e nascem diversas. Existem
aqueles que estimam que o Saturno tem uma semente particular, que
o Ouro tem outra, e assim com cada metal; mas essa opinião é inútil,
pois só existe uma única semente, tanto em Saturno quanto no Ouro,
na Prata e no Ferro. Mas o lugar de seu nascimento foi a causa de sua
diferença (se você realmente me compreende), ainda que a Natureza
tenha acabado muito antes sua obra tanto na procriação da Prata
quanto na do Ouro, assim como nas outras. Pois quando esse vapor
que nós citamos é sublimado no centro da Terra, é necessário que
ele passe por lugares quentes ou frios; pois se ele passa por lugares
quentes e puros, e onde certa gordura de Enxofre adere às paredes,
então esse vapor que os Filósofos chamaram Mercúrio se acomoda
e se une a essa gordura, a qual ele então sublima junto com ele; e
dessa mistura se faz uma determinada untuosidade que, deixando o
nome de vapor, toma o nome de gordura, e depois, sublimando-se
em outros lugares que foram limpos pelo vapor anterior e onde a
Terra é sutil, pura e úmida, ele preenche os poros dessa Terra e se
une a ela, e assim se faz o Ouro. Pois, se essa untuosidade ou gor­
dura chega aos lugares impuros e frios, ali se engendra o Saturno; e
se essa Terra é pura, mas mesclada de Enxofre, então se engendra o
Vénus. Pois quanto mais o lugar é puro e nítido, mais os metais que
ele processa são puros.
Também é preciso observar que esse vapor sai continuamente
do centro para a superfície e que, ao partir ele purga os lugares. É
por isso que hoje existem minas onde há mil anos não havia nenhu­
ma: pois esse vapor, por seu contínuo progresso, subtrai sempre o
cru e o impuro, arrastando também sucessivamente o puro consigo.
E eis como se faz a reiteração ou circulação da Natureza, a qual se
sublima tantas vezes, produzindo coisas novas, até que esse lugar
seja inteiramente depurado, e quanto mais ele é limpo, mais produz
coisas ricas e muito belas. Mas no inverno, quando o frio do ar vem
envolver a terra, esse vapor untuoso também acaba se congelando
e, após o retorno da primavera, se mescla com a Terra e a Água; e
daí se faz a Magnésia,* atraindo para si um semelhante Mercúrio do
Ar, que dá vida a todas as coisas pelos raios do Sol, da Lua e das
estrelas; e assim são produzidas as ervas, as flores e outras coisas
semelhantes; pois a Natureza jamais permanece ociosa.
Grande Obra, Génese f. Embriologia
155

Quanto aos metais, eles se engendram dessa maneira. A Terra


é purgada por uma longa destilação: depois, com a chegada desse
vapor untuoso ou gordo, eles são procriados e não se engendram
de outra maneira, como alguns estimam inutilmente, interpretan­
do mal a esse respeito os escritos dos Filósofos.
O Cosmopolita. Nova Luz Químua
(Novutn Lumen Chymicum 1609).
Tratado da Natureza, in Jean-Jacques Manget,
Bibliotbcca Chctnica Curiosa,
t. II. p. 467.

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Extração dos metais na mina: Der Hermetische Philosophus,


Frankfurt e Leipzig, 1709.

eus, por meio de sua potência e infinita bondade, criou a terra


toda igual, gorda e fecunda, sem areias, sem pedras, sem montanhas,
sem vales, pela influência dos astros e pela operação da natureza, e, no
entanto, vemos que agora ela não mantém nada desse antigo brilho, e
156 Filosofar Peio Fogo

está tão desfigurada em sua perfeição que dificilmente podemos reco-


nhecê-la naquilo que ela desejava ser, transformada exteriormente em
diversas formas e figuras, com pedras fortes, altas montanhas e profundos
vales, c interiormente com coisas terríveis e cores como o bronze e os ou­
tros metais. Ainda que todas essas coisas confusas e diversas se encontrem
no momento no corpo dessa terra, caso ela provenha inteiramente de sua
primeira forma, quando de muito larga, gorda, profunda e longa, como era
antes, ela é reduzida em um grande e vasto espaço pela contínua operação
do Sol, e que o calor sempre é ali veementemente conservado, ardente e va­
poroso, mesclando-se confusamente até o fundo dessa grande massa com
a frieza e a umidade que ela encerra em seu corpo, do qual se elevam algu­
mas vezes vapores frios, nebulosos e aéreos que nascem da mistura desses
dois regimes contrários, que, encerrados e presos na terra, vários outros
vapores consecutivos nascem pela duração do tempo, tão fortes no final que
muitas vezes ela é obrigada a lhes abrir caminho para deixá-los exalar pela
abertura de seu ventre, dando-lhes, apesar dela, livre passagem, quando na
realidade desejou poder retê-los nas masmorras naturais de suas mais pro­
fundas cavernas, onde com o tempo se encontram misturados e acumulam
várias partes de terra em um lugar pela força reunida de suas exalações, e
várias outras em outros lugares. Mas como as montanhas e os vales foram
reduzidos ao seu fim certeiro, ali principalmente se encontra também a ter­
ra muito bem temperada com as quatro qualidades, calor, frio, umidade e
decocção ressecada, fervida ou de forma alguma diminuída; ora, nesses
lugares vemos o melhor e o mais puro bronze. Por essa razão, é fácil crer
que nos lugares em que a Terra é plana não há uma quantidade tão grande
de vapores nem tantas exalações sulfurosas, o que a mantém mais calma e
em repouso. Aquela que é gorda, lamacenta, e onde a umidade do alto se
retira para baixo e para dentro, toma-se mais tenra e mole, mudando-se em
uma brancura extrema, por meio principalmente de uma secura causada
pelo calor do Sol, que a toma mais forte, mais cozida e mais endurecida
após longo espaço de tempo. Mas uma terra corruptível, quebradiça, areno­
sa e que ainda não é tenra, se pende peça por peça como cachos de uvas, é
ordinariamente mais magra e consequentemente tem menos alimento para
a manutenção de sua substância, é mais tardia e recebeu pouca umidade,
ou vigor alimentício, o que a toma muito mais difícil de cozinhar, não se
mantendo senão por sua forma cilíndrica ou outra matéria mal agenciada.
Ora, essa Terra não pode facilmente se reduzir a pedra, se ela não é extre­
mamente vaporosa e repleta de grande umidade: mas é bastante necessário
que com essa secura das águas, que provém dos ardores veementes e con­
tínuos calores do Sol, a umidade da Terra ali sempre se mantenha: de outra
Grande Obra, Génese e Embriologia 157

forma essa Terra permaneceria morna e corruptível e se desfaria facilmente


em pedaços. O que, todavia, ainda não foi nela completamente endurecido
e aperfeiçoado pode com o tempo se tomar e se reduzir em dura e forte
pedra pela operação contínua da Natureza assistida pelo calor do Sol c pela
longa decocção contínua e intermitente. Assim, fumaças e vapores encer­
rados nos poros da Terra, quando vêm se juntar aos vapores aquáticos com
a substância de alguma terra muito sutil, digerida e bastante purificada pela
virtude e influência do Sol, dos outros planetas e de todos os Elementos
juntos, pode se reduzir e colocar em ação a prata-viva.
Mas assim como ele poderia retirar de alguma dureza sutil e radiante,
nós podemos nos servir do Enxofre dos Filósofos, da força e energia sobre
o qual esse grande Hermes conclui quando diz “que a virtude será recebida
dos planetas superiores e inferiores, e que com sua força ele supera c pene­
tra qualquer outra força, até mesmo as pedras preciosas”.
Salomon Irismonin. O l<7c de Ouro
(Aureum vellus. 1598), rrad. fr. de 1612,
p. 40-45.
•k
* *
[...] )Saber
Em primeiro lugar o espaço afortunado
Para engendrar os metais ordenados;
É uma grande Massa de terra redonda
Em seu lugar imóvel e profunda,
Assemelhando-se com o duro
mármore uma taça,
Tomada e cortada na profundeza
rasa
De uma montanha, e se parece
com um lugar fechado
Curvado, côncavo, em forma de
arco fechado,
E esse lugar assim dito e mostrado
E dos raios do sol penetrado,
E muitas vezes por raios e trovões,
Os fogos do Céu ali descem velozes
Que do efeito de sua vivacidade
Cozinham a terra em sua umidade, Planetas e metais trabalham para
E logo depois preenchem as a união do superior e do inferior:
pedras, fendas, Musseum Hemieticum, Frankfurt, 1749.
158 Filosofar Pelo Fogo

E todos os lugares de vapores veementes,


Mas pouco a pouco, quando tal vapor
Enfrentou calor contínuo,
Ele se detém, e não mais se mexe
Pelos secretos dutos da Terra agitada.
Finalmente quando ela noite e dia
Muito endurecida depois de uma longa estadia,
É um metal sem forma, nas veias
Da Terra sagrada abundantes e cheias.
Esse licor de fogo entrelaçado
Em todos os lugares da Terra escorrido
Que antes escorria consagrado e gordo
Sai do profundo dessa grande Taça
Onde bebe o enxofre com a prata-viva,
E de lá sai em movimento muito diligente,
Essa Prata-viva, cuja vida é tal
Que sempre dura e é perpétua:
E desses fogos que aumentam
Qualquer çoisa tem sua geração,
A Prata-viva tem virtude de fêmea,
O outro de macho tem virtude natural.
Da Prata-viva o oficio e o dever
E sempre do calor receber,
E o calor pela Prata-viva recebido
Do dom do Enxofre e ofício é oriundo.
Desse dois vêm a espécie do Ouro vermelho,
Metal refinado, resplandecente entre todos,
Desses dois, a Prata clara e nascida,
E o Ferro negro, e o Bronze avermelhado.
De lá provêm a veia do Chumbo pálido,
E o Estanho, tendo igual cor
Na clara Prata, e ao seu peso reduzido
Se ele não gritasse e fizesse barulho.
Então sobretudo os cúpidos mortais
Vào procurar o Ouro em labores imortais
Por grande desejo, por extrema vontade,
E grandes perigos dessa humana vida.
Jcan Aurcllc Augurei.
Lts Trots Livres de la Cbrysopée (1515),
trad. por E Habcrt dc Berry (1626), p. 23-25.
Grande Obra. Génese e Embriologia
159

Do caos ao Cosmos: génese de um mundo

o início é a todo-podcrosa: Natureza das naturezas; Tempo dos


tempos; Senhor eterno; Universal; Preeminente; Só e único Deus. Um
único Pai; Filho, Espírito Santo e Trindade .
una. Uma única unidade; Substância, Divin­
dade, Glória, Majestade, Essência, Arquéti­
po, Trono, Tabernáculo e Totalidade; Tom:
Segundo, Terceiro, Quarto, Quinto, Diapasão
e Harmonia; Matéria: Círculo, Ponto, Linha,
Metros, Diâmetros, Circunferência, Triângulo,
Quadrado, Pentágono, Hexágono, Heptágono,
Octógono e Eneágono. Número: Um, Dois, _Avgvstenv5 Pan..
Três, Quatro, Cinco, Seis, Sete, Oito, Nove. tluusVenzlus StutrAos■,
Amor, Inteligência, Capacidade universal das Augustin Pantheus,
almas e dos corpos, Operação universal dos Padre veneziano: Eis o
Céus, Pureza, Simplicidade, Fogo, Ar, Água e triplo pui criado pelo sal,
dirigido pelo artista e
única Terra. Um só Caos: mistura dos Elemen­ educado por Vulcano.
tos, Abismo, Trevas, Luz, Dia e Noite. Um só
Firmamento: Separação das Águas e reunião. Aparição da Terra e vir­
tude gerativa. Um só Enxofre: Prata-viva; União dos Espíritos; e uma
única Coisa. Um único Sol: Lua; reunião das Estrelas, dos Signos, dos
Dias, dos Meses e Ordem dos Anos. Uma única sequência de Preceitos:
de Virtudes, de sacrifícios, de animais, de vegetais e reunião dos me­
tais. Um único agente: Vida, Transubstanciação, Primeira causa, Meio
e Fim.
Giovanni Agostino Pantheus,
“Discurso da Unidade metálica”.
Arte e Teoria da Transmutação metálica
(Ars et Theoria transmutationis metalicir, 1519)
in Theatrum Chemicum. t. II. p. 461.
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Filosofar Pflo Fogo

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De Cbaoi.of d Oorípronk derWcreldt . ,

O caos ou a origem do mundo: O Templo das Musas, Amsterdã, 1749.


Grandf. Obra, Génese e Embriologia

“i * ’

Deus criando o inundo: Simeon Ben Cantara, Cabala mineral is, séc. XVII.

geração da Pedra se faz à imagem da criação do mundo: de fato é


necessário que ela tenha seu próprio Caos e sua matéria-prima, na qual
flutuam em estado de confusão os Elementos até que o espirito ígneo
os separe e que, dos Elementos assim separados, sejam levados até as
alturas mais leves e para os baixos mais pesados; que a luz, uma vez
erguida, as trevas recuem; que as águas se reúnam e que surja a terra
árida. Emergindo enfim sucessivamente os dois grandes astros, são pro­
duzidas na terra filosófica as virtudes minerais, vegetais e animais.
Deus criou Adão do limo da terra, ao qual tinham sido enxertadas
as virtudes de todos os Elementos: da terra principalmente, e da água,
que constituem para muitos a massa sensível e corpórea; nessa massa
Deus inoculou um sopro de vida e a vivificou com o Sol do Espíri­
to Santo. Ao macho ele deu Eva como companhia e, ao abençoá-los,
deu-lhes a ordem e a faculdade de se multiplicar. A criação de Adão,
portanto, não é diferente da geração da pedra filosofal: uma vez que de
um corpo com efeito terrestre e pesado dissolvido pela água se forma
primeiro o limo que mereceu por essa razão o nome ilustre de Terra
adâmica, pois estão presentes nela todas as qualidades e virtudes dos
Elementos. Depois uma alma celeste lhe é infundida pelo espírito da
162 Filosofar Pelo Fogo

quintcssência e o influxo do Sol; e enfim, graças à bênção e ao orvalho


do céu, lhe é acordada a virtude de se multiplicar infinitamente por
meio do acoplamento dos dois sexos.
Jcan d’Espagnct, A obra secreta da Ftlosojia de Hermes (1623),
in Jean-Jacqucs Mangct,
Bibliothcca Chemica Curiosa, t. II, p. 656.

*
* *
CZ) ue o Filho dos Filósofos ouça os Sábios, unânimes em concluir que
essa obra deve ser assimilada à Criação do Universo. No início, portanto,
Deus criou o Céu e a Terra, e a Terra era inútil e vazia, e as trevas reco­
briam o abismo, e o espírito de Deus era levado sobre a superfície das
águas, e Deus disse: “Que se faça a Luz!’’ e a Luz se fez. Essas palavras
bastarão aos filhos da Arte. E preciso de fato que o Céu seja parceiro da
Terra no leito da amizade e do amor. Assim ela reinará com honra sobre
toda a vida universal. A Terra é um corpo pesado, a matriz dos minerais
que, conservando-os secretamente dentro de si, tem todo o tempo de levar
para a luz as árvores e os animais. O Céu é o espaço em que dois grandes
astros executam suas revoluções em companhia dos outros astros, e ele
comunica através do ar suas energias às coisas inferiores; mas no início
todas as coisas reunidas formam o Caos. Pronto, eu lhes revelei a verdade
com sinceridade e piedade: nosso Caos é de fato uma Terra, mineral em
relação à sua própria coagulação; mas existe, no entanto, um ar volátil no
centro do qual se encontra o Céu* dos Filósofos; esse centro é verdadei­
ramente astral, irradiando de seu brilho para a Terra até sua superfície.
E qual é o Mago suficientemente sábio que, da reunião de todos os Ele­
mentos, concluirá que um novo Rei nasceu, superando todas as coisas e
prestes a recuperar seus irmãos da Queda original; destinado a morrer e
a ser exaltado a fim de dar sua carne e seu sangue para a vida do mundo?
Deus pleno de bondade, como tuas obras são admiráveis! Pois tu fizeste
isso, e esse milagre surge aos nossos olhos: eu te dou graças, Pai, Senhor
do Céu e da Terra, de ter ocultado isso dos sábios e dos prudentes para
revelá-lo aos simples e às crianças.
Eyrcncc Philalèthc, A Entrada aberta do PalácioJechado do rei
(Introitus apertus ad occlusum Regis Palatium, 1645),
in Jcan-Jacques Mangct,
Bibliotheca Chemica Curiosa, t. II, p. 663.

*
★ *
Grande Orra, Génese e Embriologia
163

grande Deus, estando absolutamente em tudo, e de certa forma


envolvido, deixou emanar em público, por meio do Espírito Santo, a
Luz e as Trevas, que fazem o Céu e
a Terra, o puro e o impuro (para falar
cm tal termo, uma vez que em relação
à criação nada é impuro) estando in­
teiramente combinados; esse Espírito
de Deus tendo sido espalhado, como
uma alma dentro de seu corpo, ele o
separou, por sua virtude divina, em
coisas altas e baixas, sutis e grossei­
ras, espirituais e corporais, naturais e
sobrenaturais, celestes e supraceles-
tes: pois o Santo Espírito de Deus fez
surgir em primeiro, em sua universa­
lidade, as duas qualidades contrárias,
a saber, o quente e o frio, que eram
inimigos in gradu intenso, mas ami­
gos in gradu remisso)31
Essas duas qualidades contrárias
logo começaram a trabalhar juntas A Luz primordial e o mistério da
e produziram a umidade e a secura. separação das trevas: Robert Fhtdd,
Dessas quatro emanaram os quatro Utriusquc Cosmi, Frankfurt, 1621.
Elementos: o Fogo, o Ar, a Água e a
Terra; destes saíram os três Princípios: o Enxofre, o Mercúrio, ou o Es­
pírito, e o Sal; e de todos esses citados: do primeiro Ser; das duas quali­
dades contrárias; dos quatro Elementos e dos três Princípios se originam
todos os mistos ou compostos, tanto os celestes quanto os terrestres,
tanto os puros quanto os impuros, os sutis quanto os grosseiros [...].
Vejamos, meu caro, o que Hermes Trismegisto* (que viveu por
volta de um século e meio antes de Moisés, segundo Patricius) revela
sobre o primeiro ser e sobre a natureza de Deus, e quanto ele desejou
aprender a conhecer o que era Deus e sua natureza, e em que grau de
perfeição ele foi iluminado quando falou com o Espírito de Deus, quan­
do Poemander (que era o Espírito de Deus) lhe perguntou o que ele

137. Os quais eram totalmente inimigos em um grau de tensào muito alto, mas amigos
quando ela se soltou.
Filosofar Pelo Fogo

desejava aprender e conhecer, e ele respondeu: Quero aprender os seres


do mundo, ouvir sua natureza e conhecer Deus.138
Barent Cocndcrs van Helpcn,
Tesouro da Filosojia dos Antigos
ou a Escala dos Sábios (1693), p. 29-30.

*
* *

vós, do divino Hermes osfilhos e os imitadores, a quem a ciência de


vosso pai revelou a natureza a descoberto; somente vós, apenas vós sabeis
como essa mão imortal formou a terra e os céus dessa massa informe do
caos: pois vossa grande obra revela claramente que, da mesma matéria de
que éfeito vosso elixirfilosófico, Deus tambémfez todas as coisas.
Somente os filhos da ciência hermética conhecem os verdadeiros fun­
damentos de toda a natureza, e somente eles, iluminados por essa bela luz,
merecem o nome de médicos. É a eles, assim como às águias, que é permiti­
do olhar fixamente o sol, fonte de toda luz, na hora de seu nascimento, e que
podem com suas mãos tocar esse filho do Sol, tirá-lo de suas trevas, lavá-lo,
alimentá-lo e conduzi-lo a uma idade madura. Mais uma vez são apenas eles
que conhecem e adoram Diana, sua verdadeira irmã, e como tivesse Júpiter
favorável em seu nascimento, são como imitadores do Criador no trabalho
de sua Pedra; mas, se o imitam sabiamente, eles o abençoam e o louvam per-
petuamente, rendendo-lhe graças infinitas pelo grande bem que possuem.
De fato, quem poderia imaginar que de uma pequena massa confusa,
onde os olhos do vulgar veem apenas fezes* e abominação, o sábio alqui­
mista possa extrair uma umidade tenebrosa e mercurial, contendo em si tudo
o que é necessário para a obra, de acordo com o dizer comum: no Mercúrio
está tudo o que os Sábios buscanv, e que nesse reservatório das águas su­
periores e inferiores todos os elementos se encontram encerrados, os quais
devem dali ser extraídos, por meio de uma segunda separação física, perfei­
tamente purificados e em seguida conduzidos ao ato da geração por meio da
corrupção. Quem poderia crer que ali se encontra o firmamento, divisor das
águas superiores das inferiores, e o domicílio dos astros aos quais algumas
vezes acontecem eclipses? Enfim, quem acreditaria que no centro de nossa
terra se encontrava um fogo, o verdadeiro veículo da luz, que não foi nem
devorante nem consumidor, mas, ao contrário, é alimentador, natural e a
fonte da vida, e da ação da qual se engendra no fundo do mar filosófico o
138. cf. texto citado p. 66-67. A continuidade é aqui claramente estabelecida entre a narrati­
va bíblica da Génese e a Revelação de Hermes Trismegisto relatada no Corpus Hermeticum
(séc. II e III d.C.).
Grande Orra, Génese e Embriologia
165

verdadeiro sal da natureza, e que se encontra ao mesmo tempo no seio dessa


terra virgem o verdadeiro enxofre, que é o Mercúrio dos Sábios, e a Pedra
dos Filósofos?
Ó vós, perfeitamente felizes de terem podido juntar as águas superiores
com as inferiores pelo meio do firmamento! Ó vós, ainda mais hábeis por
terem sabido lavar a terra com o fogo, queimá-la com a água e cm seguida
sublimá-la! Certamente toda sorte de felicidade e de glória vos acompanha­
rá sobre a terra e toda obscuridade fugirá de vós. Vós vistes as águas supe­
riores que não molham; vós manejastes a luz com vossas próprias mãos; vós
soubestes comprimir o ar; vós soubestes alimentar o fogo e sublimar a terra
no Mercúrio, no sal e enfim no enxofre.
Vós conhecestes o centro; vós soubestes dele extrair raios de luz, c pela
luz soubestes expulsar as trevas e ver novamente o dia. Mercúrio nasceu, a
Lua esteve entre vossas mãos, e o Sol nasceu em vós; ali ele nasceu uma
segunda vez, e foi exaltado. Vós admirastes esse Sol em sua vermelhidão e
a Lua em sua brancura, e contemplastes todas as estrelas do firmamento no
meio das trevas da noite; trevas diante da luz, trevas após a luz, enfim a luz
mesclada com as trevas vos apareceu. Que mais poderia dizer: Vós produzis­
tes um caos, vós destes uma forma a esse caos que é extraído dele mesmo, e
assim tivestes a matéria-prima, que vós formastes de um jeito mais nobre do
que era antes; enfim vós a elevastes a uma forma inteiramente perfeita. Mas
basta de falar de um assunto em que é melhor ser mais reservado.
Marcantonto Crasselame,
A Luz que sai per st mesma das trevas (1666),
Comentários c tradução de Bruno de Lansac (1687),
in William Salmon. Biblioteca dos Filósofos Alquímieos
t. III, p. 381-384.
*
* *
_LD izemos apenas que os escritos de todos os verdadeiros Filósofos
estão repletos da mesma doutrina, que não é outra, para declará-la mais
nitidamente em poucas palavras, senão que Deus existia antes de que
qualquer outra coisa tivesse começado a existir; que Deus fez e criou
todas as coisas de si, e que as produziu inteiramente perfeitas, conforme
à sua natureza, que é a própria perfeição.
Que esse grande Deus, estando absolutamente em tudo, e tendo tudo
em si, produziu primeiramente a luz e as trevas, que são o Céu e a Terra, e
que o espírito de Deus ali agindo, como a alma no corpo, separou por sua
virtude divina as coisas altas das baixas, as sutis das grosseiras, as espirituais
das corpóreas, as naturais das sobrenaturais.
166 Filosofar Pelo Fogo

Podemos dizer mais detalhadamente que esse Espírito Santo fez surgir
primeiramente nesse grande todo as duas contrariedades, que são: uma, o
calor e o frio; a outra, o seco e o úmido.
Que dessas duas contrariedades agindo juntas se fixam os quatro Ele­
mentos, que são o fogo, o ar, a água e a terra. Que destes saíram os três
Princípios, que são o Enxofre, o Mercúrio e o Sal. E que daí, enfim, todos
os mistos* ou compostos extraem sua origem, tantos os celestes quanto os
terrestres, os puros e os impuros, os sutis quanto os grosseiros, e geralmente
todos os mistos que existem no mundo.
A ideia que toda essa Filosofia nos dá de Deus é que Ele é único e
fecundo, e que é apenas perfeição, luz, pureza. Sobre essa ideia, parece que
a Criatura, pela qual poderemos nos elevar melhor ao conhecimento desse
Criador, é o Sol: e, com efeito, a Sagrada Escritura diz que Deus colocou
seu tabernáculo no Sol, que Deus é um fogo, que Deus habita uma luz ina­
cessível. Mas se o Sol é a imagem do grande Deus, ele está bem distante dos
homens para lhes servir de degrau, pelo qual eles possam subir até esse Ser
supremo. E preciso buscar na Terra alguma outra criatura que seja tão pura,
tão luminosa, tão fecunda e, em uma palavra tão perfeita, se for possível,
para que nós possamos ir por meio de seu conhecimento ao conhecimento
dos outros seres, e ao de seu Criador.
Ora, depois de ter feito uma busca bastante exata com os mais hábeis
dos Sábios, encontramos, como eles, que não há em toda a Terra onde se
encontram melhor todas as qualidades que acabamos de citar do que a Pedra
dos Filósofos; uma vez que ela é composta de raios concentrados do próprio
Sol, que ela é de uma fecundidade quase infinita, que não sofre de nenhuma
impureza perto dela e que transforma tudo o que existe no que há de mais
puro. Nada é tão semelhante ao Sol do Céu, e é o Sol da Terra.
Barent Cocnders van Helpen,
bitrodnção à Filosofia dos Antigos (1689), p. 33-36.

_L/ m relação à nossa matéria: o que ela pode realmente ser e onde deve­
ria ser procurada; o que ela conserva uma vez tornada Pedra ao branco, é
preciso observar o que alguns dizem: Que o Criador Todo-Poderoso, cuja
sabedoria é tão infinita quanto o ser, criou no início, quando nada além
d’Ele existia, duas coisas, certamente celestes, e todas as que estão conti­
das sob os céus. As coisas celestes são os próprios céus e seus habitantes,
de que deveremos falar ou filosofar de maneira mais sutil e fecunda. Mas
as coisas que existem sob o céu e criadas a partir dos quatro Elementos
são em número de três e comumente distribuídas pelos homens em três
gêneros, entre as quais as que vivem, sentem e ocupam o primeiro lugar e
Grande Obra, Génese e Embriologia 167

são chamadas animais. Constituem o segundo gênero, e são chamadas ve­


getais, as que são produzidas da terra e não sentem; e enfim contadas no
terceiro gênero, e nomeadas minerais, todas as que crescem sob a terra.
É por isso que esses três gêneros encerram a totalidade das coisas criadas
a partir dos quatro Elementos sob o globo da Lua, e não poderíamos en­
contrar nem mais nem menos. Ora, se toda coisa que existe é assim con­
firmada em seus gêneros e espécie pelo Deus supremo, é para que lhes
seja impossível transitar de gênero em gênero. De forma que, se alguém
empreendesse fabricar um homem ou uma árvore a partir de uma pedra,
ou, a partir da erva, um macaco ou o chumbo, ou se tentasse moldar um
animal qualquer ou uma planta a partir do chumbo, isso, eu digo, lhe é
impossível em virtude da organização desejada pelo Soberano supremo.
Pois se isso tivesse sido consentido a um deles em acordo com a natureza,
todos os gêneros, ao contrário, poderiam fazer por transformação mais
do que um só. Mas porque a partir daí tudo desabaria, o Mestre das coi­
sas subordinadas não quis autorizar uma transmutação desse gênero. Ao
contrário - e já é muito -, ele desejou não apenas conservar toda coisa cm
seu próprio gênero, mas ele mesmo atribuiu a cada uma das criaturas sua
semente própria que certamente pode ser aumentada segundo sua espécie
e persistir em seu gênero, mas interdita a uma espécie de ser permutada
com outra. De forma que, se alguém desejasse permutar a espécie do
homem e a do cavalo, ou a da árvore frutífera e a da alface ou do aço, ou
de outra pedra em ouro, ele só faria errar por todo o céu, uma vez que não
faz parte da natureza das coisas sublunares que isso seja permitido. Assim
foi a coisa em seu início, assim ela será no final quando, mestre de todas
as coisas, aquele que no início disse FIAT (que assim seja) dirá PEREAT
(que assim morra).
Todavia, dessas coisas, de que é uma matéria comum, um germe e
uma composição de Elementos, o aperfeiçoamento e a exaltação podem
ser facilmente efetuados segundo o grau de pureza da matéria de cada
uma e o aperfeiçoamento realizado. Por exemplo, é possível para nós ver
um homem dotado de talento sutil e perspicaz sendo levado a um grau
mais elevado de dignidade que outros que não são dotados de tal talento,
porque ele conduz seu destino a partir da pureza e sutileza dos espíritos
que nascem de um corpo bem constituído e retificado. Assim, constata­
mos que esse cavalo o supera em muito sobre essa outra em nobreza; e o
que vemos entre os animais pode igualmente se produzir entre as plantas
e as árvores de maneira muito mais importante: nas árvores pelo trans­
plante e enxertos, e todos os outros meios conhecidos pelos jardineiros;
nas plantas também a experiência cotidiana nos ensina quanto ervas
e plantas de uma espécie diferem de outra pela nobreza, beleza, odor e
168 Filosofar Pelo Fogo

sabor [...]. Meu Deus, em quantas espécies se dividem todas essas pro­
duções? Em inúmeras, digo eu, que a cada dia também se tornam mais
nobres e mais raras graças ao cuidado diligente, a tal ponto que chega­
mos até mesmo a pensar que flores tão cheirosas e tão elegantes nunca
tinham existido antes. Mas quanto aos metais de que ela é uma matéria
comum: a Prata-viva, certamente, digerida e coagulada pela força do
Enxofre, o que eu diria? [...]. É por isso que vemos cotidianamente
de que maneira a própria natureza é continuamente solicitada quanto
à mortificação e purificação dos metais, até que eles sejam finalizados
em ouro que é a intenção final da natureza. Portanto, todos os metais
mostram que neles a natureza não foi trabalhada senão com o propósito
de orientar qualquer coisa para uma perfeição posterior. Por isso, não
poderíamos encontrar um metal cuja perfeição seja a tal ponto diminuí­
da que não contenha um grão de ouro ou de prata. E claro, assim como
tal preparação foi feita para que a natureza se dê muito proximamente
o trabalho de engendrar o ouro a partir da Prata-viva que contém em si
seu Enxofre: o que é com efeito possível a menos que algum impedi­
mento exterior intervenha sob forma de um enxofre certamente imun­
do, fedendo e adustível* - assim vemos em vários lugares o ouro puro,
limpo e obrizon* cozido na misturas dos outros metais. Porque isso
também acontece nas minas de Prata-viva quando um enxofre, vindo
principalmente do exterior, lhe é misturado, e isso entrava a perfeição; e
segundo a variedade desse Enxofre as diferentes espécies de metais são
igualmente engendradas.
Tratado de Ouro (Tractatus Aureus, 1692),
in Musaan Henneticum, p. 13-15.
Grande Obra, Génese e Embriologia
169

/
zy
£
tf

Le Christ cosmique: Heinrich Kunrath, Amphitheatrum Sapienta? aetema;,


Hamburgo, 1595.
170 Filosofar pelo Fogo

“Que a natureza seja teu guia, que tua arte a siga passo a passo
Michael Maier, Atalanta fugiens, Oppenheim, 1618, emblema XLII.
6

Diálogo da Artista
e da Natureza

A Arte começa onde a Natureza acabou; significa dizer


que o objetivo da natureza é o Ouro, pois ele c a extremi­
dade dos metais c nele começa a /\rte para engendrar as
tinturas que estão em nosso Sal.
O Túmulo da Ibbreza (1624), p. 19.

Tornado estranho à mentalidade moderna, o “diálogo " entre


Natureza e Arte é o leitmotiv da maioria dos tratados de alquimia e
constitui a esse respeito um ponto entre cosmologia e deontologia (ora
et labora): “A natureza nos serve de livro, de chama, de espelho e de
guia ”. Portanto, falta muito para que o alquimista lance sobre a natu­
reza o olhar distanciado e objetivante de que se prevalece o homem de
ciência moderna. A “grande Natureza ” à qual ele se dirige, que invoca
e suplica, é uma parceira cuja potência e engenhosidade não param
de maravilhá-lo, inspirá-lo e guiar seus passos na conduta da Opus
Chemicum. Trabalhada do interior pelos incessantes combates entre as
naturezas (Enxofre/Mercúrio) cuja dramaturgia o Artista, por sua vez,
orquestra no vaso fechado, a Natureza visa a uma perfeição que requer
a intervenção generosa da Arte que finaliza seus desejos secretos.
Por isso devemos antes falar a respeito de colaboração (trabalho
comum) e não de rivalidade ou de enfrentamento: “Assim prepara e dis­
põe apenas tua matéria, e a Natureza fará todo o resto ” (O Livro de
Artéphius). Equilíbrio frágil constantemente retificado, a relação do Ar­
tista com a Natureza se revela o espelho no qual descobrir os pesos e as
medidas “filosóficas ” necessários à realização do Magistério. Longe de
ser estéril e servil, esse ideal alquímico contribuiu duravelmente para a
sacralização da relação com a matéria nos ojicios manuais tradicionais:
- 171 —
172 Filosofar pelo Fogo

"Para o artesão, todo trabalho que enobrece a matéria, tal qual extrair
o copo transparente de uma pasta opaca, é um sacrifício em que a subs­
tância física é consagrada, pela integração a um modelo espiritual".™

osso mestre estando morto antes que fossemos iniciados, e em um


tempo em que nos ocupávamos ainda com o conhecimento da matéria, di­
zem-nos que seria necessário tentar evocá-lo no Hades.* E eu me esforçava
em atingir esse objetivo, invocando-o diretamente com essas palavras: Por
quais dons tu recompensas o que fiz por ti? Depois dessas palavras, mantive
o silêncio. Como eu o invocasse em várias ocasiões,
gI perguntando-lhe como harmonizar as naturezas, ele
me disse que lhe era difícil falar sem a permissão do
fi| Demónio (gênio). E pronunciou apenas estas pala-
• vras: “Os livros estão no Templo”.
Retornando ao Templo, pus-me a verificar
se poderia me apossar dos livros; pois ele me fa-
I Democritvs ~ Iara desses livros enquanto era vivo, tendo mor­
| íús __ rido sem ter feito disposições testamentárias. Ele
Demócrito. alquimista tinha, como pretendo, tomado um veneno para
grego: A obscuridade separar sua alma do corpo; ou então, pelo que diz
do corpo sólido é seu filho, engolira veneno por engano. Ora, antes
eliminada pelo de sua morte, ele pretendia mostrar os livros a seu
remédio ígneo. filho apenas quando este tivesse ultrapassado a
primeira idade. Nenhum de nós sabia sobre eles.
Como depois de ter feito investigações não tínhamos encontrado nada,
trabalhávamos muito para saber como se unem e se confundem as subs­
tâncias e as naturezas. Mas quando tínhamos operado as composições
da matéria, e chegou o tempo de uma cerimónia no templo, fizemos
uma festa em comum. Portanto, como estivéssemos na parte interior do
templo, de repente uma determinada coluna se abriu, mas não vimos
nada no interior. Ora, nem ele nem ninguém nos tinha dito que os livros
de seu pai aii estivessem depositados. Já que avançou, ele nos conduziu
à coluna, como nos curvássemos, vimos com surpresa que nada nos
tinha escapado, exceto esta fórmula preciosa que ali encontramos: “A
natureza desfruta da natureza; a natureza triunfa da natureza; a natureza
domina a natureza”.

139. Seyyed Hossein Nasr, “A tradição alquímica”, Sciences et savoir en Islam, Paris
Sindbad, 1990, p. 273.
DiAlogo da Artista e da Natureza
173

Ficamos bastante surpresos que ele tivesse reunido em tão poucas


palavras todo o seu escrito: “Eu também venho trazer para o Egito o
tratado sobre as questões naturais para que vos eleveis acima da curio­
sidade do vulgar e da matéria confusa”.
Pseudo-Demócrito, Questões naturais,
in Mareei in Berthelot,
Coleção dos antigos alquimistas gregos,
t. III. p. 44-45.
*
r * *
O naturezas produtoras das naturezas, ó naturezas majestosas que
triunfam das naturezas pelas transformações, ó naturezas que encantam
as naturezas de uma maneira sobrenatural! Estas são, portanto, as coisas
que dizem respeito à grande natureza. Não existem outras naturezas
superiores a esta nas tinturas; não existem iguais nem inferiores. Todas
essas coisas são executadas por meio da dissolução. Ó meus confrades
em profecia, sei que vocês não estavam inclinados à incredulidade, mas
ao espanto, pois conhecem a potência da matéria. Enquanto os jovens
estão confusos e não dão crédito ao que está escrito, porque estão do­
minados por sua ignorância da matéria; não sabendo que os filhos dos
médicos quando querem preparar um medicamento próprio para a cura
não empreendem fazê-lo com um élan imprudente, mas antes testam
que substância é quente, que outra reunida a essa opera uma mistura
média; que substância é fria ou úmida, e em que condição ela deve estar
para favorecer uma mistura média. E é dessa maneira que eles preparam
o medicamento que destinam à cura.
Mas estes, que se propõem a preparar a cura da alma e a libertação
de toda dor, não se percebem que serão confusos se procederem com
um élan desprovido de discernimento e de razão. Com efeito, crendo
que mantemos discursos fabulosos e não simbólicos, eles não experi­
mentam nenhuma das espécies: de maneira a ver, por exemplo, se tal
espécie é boa para limpar, essa outra acessória; esta boa para tingir,
aquela outra para produzir a combinação completa.
Pseudo-Demócrito. Questões naturais,
in Marcelin Berthelot,
Coleção dos antigos alquimistas gregos,
t. III. p. 50-51.

* *
174 Filosofar pelo Fogo

TJ ma verdadeira contemplação da natureza nos conduz agora a nos

perguntarmos: Ó Natureza superior à natureza que triunfa das nature­


zas. O natureza que corretamente administrada
fOz se eleva para além de sua natureza, exaltando
F- e superando as naturezas, Ó natureza una e
sempre a mesma carregando o Todo e aperfei­
I çoando-o, Ó união perfeita do múltiplo pelo
número e separação reconciliada, Ó natureza
semelhante a ti mesma, ignorando qualquer
x> estranheza e alimentando tu mesma o Todo,
ÓTEPHANVS PHL, Ó matéria isenta de materialidade que contém a
IvJóphiiS Chijmúus. matéria, O natureza que conquista a natureza
Stéphanus, filósofo quí­ e a encanta, O natureza celeste que revela a
mico: Do Homem não substância etérea da vida, Ó natureza despro­
nasce nada além de um vida de corpo e que dá aos corpos de não serem
Homem, e o animal en­ corpos, Ó percurso da Lua que ilumina todos
gendra seu semelhante. os paramentos da Terra, Ó espécie mais geral e
gênero mais particular, Ó natureza em verdade vitoriosa das naturezas
para além de toda natureza. Diz-me, por favor, QUAL é tua natureza,
que de ti mesma extrai uma segunda vez com arte essa natureza tão
particular que carrega em si um enxofre incombustível e resistente ao
fogo? Que seja a ideia para múltiplos nomes e denominação para muitas
formas, potente e prolixa natureza, arco-íris multicolorido e esplendo­
roso revelando a partir de si o Todo, O natureza que torna de sua própria
natureza e de nenhuma outra manifesta a natureza, Ó similitude que
atesta a unidade das coisas a partir do semelhante, Ó mar mudado em
Oceano e exaltando em vapor suas inúmeras pérolas coloridas, O con­
junção dos quatro corpos como superfície admiravelmente decorada, Ó
tripla inscrição da Trindade e completude do selo universal, Ó corpo da
Magnésia* que conduz o magistério inteiro, Ó fonte de ouro brilhante
dos céus, O espírito missionário que escorre de um mar de prata, Ó
tu portadora de uma túnica de prata e paramentada com uma cabelei­
ra de ouro, O elegante prática dos talentos mais avisados, Ó operação
onisciente dos homens mais divinos, Ó torrente insondável dos homens
impudentes, Ó imprudência concertada dos homens ambiciosos, Ó ilu­
minação efemera dos mortais orgulhosos, Ó toque manifesto dos seres
de piedade, O visão ela mesma tornada visível dos homens de probi­
dade, O flor suavemente respirante dos Filósofos dedicados à prática
das coisas, Ó exploração única e absoluta de toda realidade, Ó obra de
sabedoria marcada por essa beleza que o espírito compõe, Ó luminosidade
Diálogo da Artista e da Natureza
175

da única Lua, iluminando todas as coisas a partir da luz solar, Ó tu única


e sempre semelhante natureza triunfante sozinha das naturezas, e domi­
nada dominando-os, e protegida preservando-os, o que tens em comum
com a variedade das coisas materiais? Quando a natureza é feita de uma
única coisa que supera todas as coisas.

Stéphanus de Alexandria,
Primeira Leitura (séc. VII), in Demócrito de rXbdèrc,
Da Grande Arte (1573), p. 23-25.

*
* *

odo aperfeiçoamento dado às coisas aumenta a natureza da coisa


da qual ele participa: por isso, inúmeros filósofos dizem em seus escri­
tos que a natureza é aperfeiçoada pela intervenção da arte, para além
do movimento próprio que já anima a primeira forma. E, contudo, nada
pode operar sem uma força mediadora natural; da mesma forma, em
nossa obra, a própria natureza trabalha de maneira interior e oculta gra­
ças à administração da arte: por isso, conclui-se que o aperfeiçoamento
da virtude natural constitui um aumento, e seu aperfeiçoamento, um
trabalho de arte. Por isso, só podemos suplantar a natureza depois de ela
ter aperfeiçoado sua ordem, que ela tem poder natural de aperfeiçoar, a
menos que ela mesma não tenha sido entravada por um obstáculo vindo
da arte. Ainda que na realidade a arte não transcenda a natureza, confec-
cionando uma nova natureza pela simplicidade de seu trabalho, contudo
ela a suplanta até a obtenção dessa natureza que ela mesma pode subu-
tilizar. Por isso podemos dizer que a arte imita a natureza, não naquilo
que uma nova realiza, mas naquilo em que ela torna a virtude mais sutil.
Por isso, a arte começa sua obra ali onde a natureza se mostra vacilante,
colocando a descoberto e tornando manifesto a natureza sutil encerrada
em toda coisa. Ora, uma vez que a natureza engendra os metais, ela não
pode também gerar as tinturas, ainda que contenha ocultamente em si a
plenitude de toda tintura. Por isso, o Filósofo diz: A natureza retém cm
si as coisas que lhe faltam, e só é aperfeiçoada quando posta em mo­
vimento pelo trabalho e pela arte. Essa é a razão pela qual a arte é em
nossa obra apenas um auxiliar generoso da natureza, como igualmente
aparece em inúmeros trabalhos das artes laicas: primeiramente ali onde
a natureza produz a madeira; depois a inflamação do fogo a partir das
cinzas de madeira; enfim, a arte de cozinhar o vidro. Eis, portanto, o
que deve ser perfeitamente compreendido: se nas cinzas não estivesse
176 Filosofar pelo Fogo

oculta essa primeira matéria do vidro, a arte teria podido, a partir de­
las, produzir qualquer vidro que fosse, ou nào o teria aperfeiçoado sem
natureza preexistente. Sendo assim, você se dá conta de que não pode­
mos extrair nada daquilo que não existe: é por isso que toda espécie no
seio de sua espécie, todo gênero em seu gênero e toda natureza em sua
própria natureza procura espontaneamente obter um aumento de vir­
tude, e dá fruto na proximidade de sua natureza, e não naquilo que lhe
é estrangeiro; e uma vez que toda coisa fecundada corresponde à sua
semente, nós dizemos isso até a geração. Nada é engendrado a partir de
um homem se não for um homem, nem nada de comparável que não
o seja igualmente por seu semelhante; e até que a natureza tenha sido
imitada pela arte, toda coisa que trabalha graças ao ministério da arte
só o faz pela constituição dessa natureza: que uma natureza estranha
seja introduzida, e imediatamente a arte não imita mais simplesmente a
natureza, mas esses elementos estranhos e de menor qualidade a pene­
tram e nada daquilo que esperávamos pode mais ser realizado a partir
deles; pois toda coisa pior se esforça em destruir o melhor ali onde ela
trabalha; e toda coisa melhor se esforça, ao contrário, em fazer progre­
dir o pior. Por isso é necessário não imitar a natureza, senão por um
único artifício, e conhecer por que meios sua arte imita a natureza da
coisa, sem o que age estupidamente aquele mesmo que é reconhecido
por aperfeiçoar a natureza pela arte.
Ríchard 1'Anglais, A Correção dos insensatos
(Corrediofatuorum, séc. XII),
in Theatrum Chetnicutn,
r. II, p. 387-388.

*
* *
Portanto, você não tem outra coisa para fazer
senão preparar como se deve a Matéria, exte­
riormente, porque ela mesma faz interiormente
tudo o que é necessário para se tornar perfeita.
Pois ela tem em si um princípio e um mo­
vimento que lhe está intimamente unido, e que a
Artephius, filósofo faz agir de uma maneira segura sem se enganar,
árabe: A sabedoria do e por ordem infalível que é incomparavelmen­
mundo se ocupa de três te melhor do que qualquer outra coisa que os
coisas: a alma, o corpo homens poderiam inventar e imaginar. Assim,
e o espírito. prepare e disponha apenas sua Matéria, e a
Dialogo D/\ Artista e da Natureza 177

Natureza fará todo o resto. Pois, contanto que a Natureza não seja de forma
alguma impedida nem forçada a tomar um rumo oposto ao seu desejo, ela
seguirá seu movimento e sua maneira de agir, que ela regulou muito bem,
e muito certa, tanto para conceber quanto para engendrar. É por isso que,
depois de ter preparado sua Matéria, você deve prestar atenção apenas em
duas coisas: primeiro, a não inflamar o Banho,* fazendo um fogo demasia­
do forte; em segundo lugar, a não deixar exalar o Espírito, pois, se ele sair
do Vaso,* sua operação será inteiramente destruída, e você não terá senão
dor e despeito. O que acabo de dizer evidentemente revela a verdade do
axioma que diz que, segundo o curso e a maneira de agir da Natureza, é
necessário que este não conheça a composição dos metais, que não saiba
como devemos destruí-los. Portanto, é preciso unir e juntar os Pais que são
do mesmo sangue, porque as Naturezas reencontram as Naturezas que são
suas semelhantes e, ao apodrecerem, elas se mesclam inteiramente.
O Livro de Artépio (scc. XII?)
in Willtam Salmon,
Biblioteca dos Filósofos ALpiíniteos
t. II. P. 156-157.
*
•k k

2a_o engendrar, e fazer seu semelhante,


Cuja frágil espécie é perdurável,
Não vês como a Natureza faz
Em toda coisa um acordo tão perfeito?
E como ela é excelente operária
Ao sempre conservar uma maneira
De procriar qualquer coisa? E como
Usa apenas uma semente
Para engendrar qualquer coisa sobre a terra?
E como depois a Natureza repousa?
Se de plantar a vinha o cuidado ela tem,
De ali semear trigo não é necessário,
E se lhe agrada semear centeio ou fermento
Ela não irá plantar precipitadamente
Oliveiras férteis, que Minerva
Ao seu santo nome consagra e reserva.
Breve para o tempo em vão não consumir,
Para colher a cevada, é preciso cevada semear,
Portanto, para que no esforço costumeiro
Do ouro a fonte e semente primeira
178 Filosofar pelo Fogo

Não seja por ti buscada em vão,


Esse ponto tu deves certamente crer,
Que encerrada no Ouro do Ouro está a semente,
Com grande esforço e diligência
Essa semente em seus segredos oculta
Por nós é conquistada quando é procurada.
Jean Aurcllc Augurei,
Os Três Ltvros da Crisopcia (1515),
trad. por E Habcrt dc Berry (1626), p. 40-41.

*
* *
c ão duas as causas que agem nesse refugio curvo do mundo: a Arte e
a natureza. A natureza produz e engendra cotidianamente coisas novas;
a Arte, na realidade, imprimindo em si pelo pensamento as semelhanças
formais dessas coisas, acompanha por um procedimento maravilhoso os
vestígios e os traços da natureza. De forma que, se lhe acontece de não
ser assistida em algumas operações pela invenção do homem, a natureza
entregue a ela mesma é abertamente reconhecida por ter falhado em sua
obra. E de fato a Arte ajudada pela natureza algumas vezes corrige, com­
pleta e de certa forma (principalmente nesse magnífico discurso das coisas
naturais) parece suplantar a natureza. O que há muito tempo foi conservado
na memória por esses primeiros e ilustres filósofos que pertencem a duas
categorias: os que, como os médicos, escrutam por si mesmos a natureza,
transmitiram por meio de escritos monumentais a virtude e a potência que
as coisas sublimares têm, ora a partir das qualidades elementares, ora a
partir do céu e das estrelas; e ainda os que descreveram as naturezas dos se­
res vivos, das árvores, das ervas, dos metais e pedras preciosas. Os outros,
de longe os mais prestigiosos, penetrando com uma grande sagacidade e
uma viva acuidade não apenas a natureza, mas seu próprio arcano* e seus
santuários mais profundos, atribuíram-se em virtude de uma denomina­
ção mais verídica o nome de Filósofos. Mas por que a natureza produz
todos os metais a partir de dois, Enxofre e Mercúrio, e que ela nos terá
deixado os corpos superiores gerados a partir deles bem como os inferiores,
é claro que é possível aos homens diligentes fabricar essas coisas a partir
dessas três operações, e conduzir os corpos inferiores à natureza e perfeição
dos corpos superiores [...]. Nós já dissemos que a natureza é uma deter­
minada força implantada nas coisas e procriando os semelhantes a partir
dos semelhantes. A natureza com efeito engendra, faz crescer as coisas,
porque ela carrega o nome de todas as coisas. O animal é pela natureza, a
Dialogo da Artista e Dz\ Natureza
179

pedra, a madeira, a árvore e os corpos que você vê são pela natureza


e pelo vínculo desta. A natureza é o vínculo dos elementos e a vir­
tude de toda união a realizar, que efetua as misturas dos elementos
deste mundo sublimar e imprime a forma conveniente de seu espaço:
pelo intermédio de quem as coisas a partir de qualquer direção são
distinguidas e isoladas das outras coisas. A natureza não é de uma
cor particular, participando, contudo, ativamente de todas as cores:
fecunda genitora das qualidades não existentes e também das coisas.
O que é então a natureza? Deus é a natureza, e a natureza é Deus.
Compreenda então: de Deus se originou toda coisa próxima dele. A
natureza é, portanto, um determinado fogo invisível, por meio do
qual Zoroastro ensinou que as coisas eram geradas: com o que Heráclito,
o Éfeso, parece ter concordado.
Livro da arte aLjuímica de um autor desconhecido
(Líber de Arte chmuca incerti authoris)
in Aurífera Artis ijuam Chemiam vocant,
t. I, p. 614-615 e 633-634.
*
* *

omo Natureza se queixa,


E narra sua dor e sua pena
A um tolo soprador, sofístico,
Que só faz uso da arte mecânica [...]
Falo a ti, tolo fantástico,
Que te diz e nomeias na prática,
Alquimista, e bom filósofo:
E tu não tens saber, nem estofo,
Nem teórica, nem ciência
Na Arte, nem de mim conhecimento.
Tu rompes alambiques, grande idiota,
E queimas carvão que te embriaga:
Tu cozinhas alumes, sais, orpimentas (ouros-pigmentos),*
E fundes metais, queimas atramentos,140
Tu fazes pequenos e grandes fornos,
Cansando diversos vasos.
De fato eu te garanto
Que me envergonho de tua loucura.
Além do mais, sofro de grande dor.
140. Atramcnto (de atramentum, tinta): sulfato de ferro empregado para a fabricação da
tinta ou, mais geralmente, da cor da tinta.
180 Filosofar pelo Fogo

E por teu fogo quente, que queima muita gente,


Tu pretendes fixar a prata-viva
Que é volátil e vulgar,
E não aquela de que faço metal.
Pobre homem, tu te cansas:
Por esse caminho não farás nada,
Se tu não andas de outra maneira.
Tu usas mal meus compassos:
Tu compreendes mal meu artifício.
Aprende, aprende a me conhecer
Antes de te nomear mestre.
Segue-me, que sou mãe natureza
Sem a qual não há criatura
Que não pode ser, nem tomar existência,
Vegetar, aumentar em crescimento
Nem ter alma sensitiva
Sem céu e elemento ativo.
E, para conhecer tais efeitos,
É bom carregares o fardo
De estudar e trabalhar
Em filosofia e velar.
| ean Perrcal, Queixa da natureza
10 alquimista errante, 1516. E se tu sabes tanto aperfeiçoar,
Que tu conheças as virtudes
Dos céus, e suas grandes ações:
Dos elementos as paixões,
E como são suscetíveis:
Que são os meios convertíveis:
E que é causa de apodrecer,
E de engendrar, e de alimentar:
Tu terás da arte conhecimento.
Quanto basta apenas,
Para ter um belo entendimento,
Considerando minhas obras.
Mas todos os clérigos e sábios não tiveram
Esse dom de Deus por sua ciência:
Mas os que, com boa consciência,
Cultivaram-me com Razão,
Tiveram-no por longa duração,
Tendo boa paciência,
Diálogo da Artist/v e da Natureza
181

Aguardando o tempo que eu ordene.


Faça então o que te digo, ora,
Se quiseres ter o tesouro
Que os verdadeiros médicos
E Filósofos antigos tiveram,
É o tesouro e a riqueza,
Da maior virtude e nobreza
Que desde os céus até a terra.
Pela arte o homem poderia adquirir.
É um meio entre o Mercúrio
E metal que levo em conta:
E por tua arte e meu saber,
Aperfeiçoemos um tão nobre ter.
É o fino e bom ouro potável,
O úmido radical* notável:
É soberana medicina,
Como Salomão a designa
Em seu livro bem autêntico
Que chamamos eclesiástico [...]
Eu te digo, eu te anuncio,
E ousadamente o pronuncio,
Que sem mim, que fornece matéria,
Tu não farás então obra inteira
E sem ti, que serve e administra,
Sozinho não posso a obra tecer.
Mas por ti e por mim te asseguro
Que tu conhecerás a obra em pouco tempo.
Jcan Perréal, As Redamafòes da Natureza
ao Alquimista errante (1515), p. 20-35
(jDt la Transformation mélalliqite. 1561}.

*
* *

ratemos agora do terceiro fundamento sobre o qual repousa a arte


médica, ou seja, a alquimia. Se o médico nào lhe dedica o maior cuida­
do e dela não adquire uma profunda experiência, toda sua arte corre o
risco de permanecer inútil. Pois a natureza é tão sutil, tão penetrante em
suas diversas produções, que dela só podemos extrair seus benefícios
com o auxílio de uma grande arte. De fato ela não revela nada que se
mostre realizado por si mesmo, e cabe, portanto, ao homem finalizar
182 Filosofar pelo Fogo

seus desejos; essa realização leva o nome de al­


quimia.

•3
ÍT Assim, o alquimista é semelhante ao padei­
ro que assa o pão, ao vinhateiro que faz o vinho,
ao tecelão que confecciona um tecido. E con­
sequentemente é alquimista qualquer um que
leve ao termo desejado pela Natureza o que nela
cresce para o proveito do homem. Saibam que a
PH ILIPPV5 THEíX; respeito dessa arte deve ser feita aqui uma dis­
vhrafíus ParOíéyuS. tinção notável: se alguém tomasse uma pele de
Philippe Théophraste carneiro e, deixando-a em estado bruto, a usasse
Paracclso: Esta é a como pclica ou casaco, seria o maior exemplo
medicina, assim também de grosseria e inabilidade em comparação com
se torna o ouro. a arte do peleteiro e do fabricante de tecido. Tão
grosseiro e inábil é aquele que, recebendo algum
dom da Natureza, não o usa. Sim, mais grosseiro e inábil até mesmo,
pois aqui estão em jogo a saúde, o corpo e a vida, em relação aos quais
devemos redobrar a atenção e a dedicação. Mas hoje todos os ofícios
manuais escrutaram a Natureza e adquiriram a experiência de suas pro­
priedades, de forma que eles sabem, em todas as operações que são as
suas, seguir suas vias e extrair o que nela existe de mais elevado. Ora,
hoje isso não é mais posto em prática em medicina - onde, no entanto,
isso seria o mais necessário - e que, no estado em que ela se encontra
hoje, é a mais grosseira e inábil das artes [...]. Ora, a própria Natureza
o avisa, por meio das coisas, ao que você deve se dedicar a fim de ofe­
recer à sua medicina toda a sua eficácia. O que o verão efetua com as
peras e as uvas também deve ser introduzido e realizado na medicina.
E, quando sua medicina seguir tais preceitos, você também estará em
condição de obter bons resultados. Por isso é necessário agora mais
uma vez relembrar que sua medicina deve dar frutos como o verão o faz
com os seus. Saiba que o verão age assim com a ajuda do Astro,* e não
sem ele. Quando o Astro exerce no tempo desejado sua influência, saiba
mais uma vez que sua preparação médica deve lhe ser rigorosamente
ordenada e submetida; pois é ele que realiza a obra da arte.
Paracclso, I.ibcr Paragranum,
VIII. 181 (1528), in Samtlicht Wrkc, 1.1.
p. 381-382.

*
* *
Diálogo da Artista e D/\ Natureza
183

Para retornar então ao nosso propósito, prometi neste primeiro Trata­


do explicar a Natureza, para que nossa vã imaginação não nos desvie da
verdadeira e simples via. Digo, portanto, que a Natureza é una, verda­
deira, simples, completa em seu ser, e que Deus a fez ao longo de todos
os séculos, e a envolveu com uma espécie de espírito universal. No
entanto, é preciso saber que o limite da Natureza é Deus, assim como
ele é o seu princípio; pois qualquer coisa sempre acaba naquilo em que
ela tomou seu ser e seu começo. Disse que ela é única e que é por meio
dela que Deus fez tudo o que fez; não estou dizendo que ele não pode
fazer nada sem ela (pois foi ele quem a fez, e ele é todo-poderoso), mas
lhe agradou assim e então ele a fez. Todas as coisas provêm dessa única
Natureza, e não existe nada no mundo fora da Natureza. E se algumas
vezes vemos acontecer abortos, a culpa é do lugar, ou do artesão, e não
da Natureza. Ora, essa Natureza é principalmente dividida cm quatro
regiões ou lugares, onde ela faz tudo o que se vê e tudo o que está
oculto; pois sem dúvida todas as coisas estão mais na sombra e ocultas
do que verdadeiramente expostas. Ela se muda ao macho c à fêmea; é
comparada ao Mercúrio, porque se une em diversos lugares, e de acordo
com os lugares da Terra, bons ou maus, ela produz cada coisa, ainda que
na verdade não existam lugares maus na Terra, como nos parece. Exis­
tem quatro qualidades elementares em todas as coisas, e essas jamais
estão de acordo, pois uma sempre excede a outra.
Portanto, deve-se observar que a Natureza não é de forma alguma
visível ainda que aja incessantemente, pois é apenas um espírito volátil,
que faz seu ofício nos corpos e que tem sua sede e seu lugar na Volati­
lidade divina. Nesse lugar ela só nos serve para que saibamos conhecer
os lugares dela, e principalmente aqueles que lhes são mais próximos e
convenientes, isto é, para que saibamos conjugar as coisas em harmonia
de acordo com a Natureza, por medo de conjugar a madeira ao homem,
ou o boi ou qualquer outro animal com o metal: mas, ao contrário, que
um semelhante aja em seu semelhante, pois então a Natureza não deixa­
rá de fazer seu ofício. Ora, o lugar da Natureza não está em outro lugar
senão na vontade de Deus, como já dissemos antes.
O Cosmopolita. Nova I.uz al^utnuca
(Novutn Lutnen Chynúcum, 1609).
Tratado da Natureza, in Jean-Jacques Manget,
Bibliotheea Cbantca Curiosa t. II, p. 465.
*
* *
184 Filosofar pelo Fogo

JWas existe coisa mais tola e iníqua do que odiar o que ignoramos?
Considere que a coisa deve ser odiada; existe, no entanto, algo de mais
abjeto e de mais vil do que condenar uma ciência sobre a qual nós ape­
nas compreendemos uma ínfima parcela, nem conhecemos a Natureza e
seu poder, ainda menos as propriedades ocultas dos metais? Mas como
compreenderiam o que está fora deles, que não sentem nem sabem o
que em menos de 24 horas a Natureza opera neles mesmos, transmutan-
do ervas, plantas e todos os frutos e animais comestíveis em seu sangue,
e substância total? De resto, que aqueles que negam que a Alquimia seja
uma ciência verdadeira, leiam A Defesa da Alquimia de Libavius,141 a
qual eu recomendo. E para concluir esta parte, vejamos como a arte
pode fazer o Ouro. É preciso conhecer antes de mais nada que existem
três causas efetivas, que são o início, o meio e o fim de todas as coisas,
que elas as conservam encerradas em si mesmas, e são Deus, Natureza
e a Arte. Triângulo divino cujo Deus diz, a Natureza faz e a Arte imita.
Assim, a Natureza comandada pela causa primeira produz todos os dias
coisas novas, cuja arte, que por meio da concepção imprime em si a
similitude dessas coisas, continua de uma maneira admirável o traço e
as linhas da Natureza: de forma que, se o entendimento do homem não
fosse algumas vezes obstruído, vocês diriam que a Natureza é falha
em suas operações. Pois a Arte, com o auxílio da natureza, corrige-a,
suplanta-a e a apoia quando ela falta, principalmente nessa sagrada
Filosofia natural e operativa, assemelhando-se por isso à Medicina, que
não nos pode mostrar a verdade daquilo que ela ensina, a não ser pela
experiência.
Henri de Linthaut,
Comentário sobre o Tesouro
dos tesouros de Christojle de Gamou
(1610), p. 68-69.
*
* *

± XNatureza é una, verdadeira, contínua, isenta de confusão, paciente,


constante e simples [...].
É por isso que você, que foi colocado no alto dessa Natureza in­
ferior, se propõe a confeccionar pela arte o que a Natureza jamais te­
ria feito espontaneamente, nem mesmo pensado; sem nenhuma dúvida
141. Obra publicada em 1604, (Defensio et Declaratioperspicua Alchentice transmutatoria>)
sendo uma sequência à Alchemia (1587).
Diálogo da Artista e da Natureza
185

você precisa saber que a Pedra filosofal deve ser necessária e inteira­
mente feita tal qual a própria Natureza.
Una, o que significa que você não se convence de que a Pedra
filosofal possa ser feita de diversas maneiras, mais do que de uma só:
tudo o que é conduzido a termo, como convém, é aperfeiçoado por um
modo único.
Verdadeira, o que quer dizer que você não busca na coisa o que
não está nela: não se faz qualquer coisa a partir de qualquer coisa, mas
algo de determinado a partir do que já existe ali.
Continua, ou seja, que você não comece agora para em seguida
interromper, mas que antes adquiriu a matéria verdadeira, e o verda­
deiro modo operatório, de forma que suas ações sejam contínuas e não
interrompidas.
Isenta de confusão significa que, assim como a Natureza conduz
as coisas da potência ao ato de acordo com uma ordem, você deve agir
em todas as coisas da mesma forma e sem confusão, segundo a ordem
mais justa. Ou ainda: porque a Natureza não pensa nem efetua nada sem
ordem, da mesma forma nada deve ser feito nessa arte confusamente,
mas sempre de tal forma que uma tarefa decorra necessariamente da
outra.
Paciente, pois toda digestão para ser efetiva requer um tempo su­
ficiente.
Constante, o que significa dizer não passar de um reino da natu­
reza ao outro, e assim de uma matéria à outra, mas ao menos concentra
seu espírito na unidade da matéria.
Simples, pois é verdade que você não desejará imaginar coisas
sutis sobre as quais a Natureza nada sabe, mas permanecer na via real,
fácil e simples, que a Natureza prescreve a partir dos exemplos de suas
operações. Por isso, tudo o que é tentado fora dessa luz da Natureza é
vão, e não chegamos a nada a não ser a uma perda de tempo e à ruína
dos trabalhos empreendidos.
Micbatl Pvtier, A Filosofia Pura
(Philosophia Pura, 1619), p. 83-88.
*
* *

osso grande Deus colocou tais limites à Natureza, que ela tem
bastante poder, que ela pode aperfeiçoar o Enxofre, o Mercúrio e o Sal
espirituais, não apenas em enxofre, em Mercúrio e em sal corpóreos,
e em corpos que são compostos desses Princípios nos reinos vegetal,
186 Filosofar pelo Fogo

animal e mineral, e aperfeiçoar até mesmo os metais, se não são inter­


rompidos por acidentes, até a mais alta perfeição do Ouro; mas, uma
vez que já os produziu até esse grau de perfeição, o grande Deus deteve
então seu curso, e desejou que aquilo que a Natureza não pôde desen­
volver mais, que isso poderia ser feito com a ajuda da arte, e pelo enge­
nho daqueles que são superiores em espírito, em virtudes, em ciências
e em sabedoria, para que aquilo que a Natureza só pode produzir com
a perfeição do ouro possa ser exaltado pela arte que vem em auxílio da
Natureza, por um ser muito mais perfeito e glorioso, e que o lugar que
é dado ao ouro, o que ele necessita para representar as qualidades que o
Criador desejou que ele possua, que esse mesmo ouro possa ser exalta­
do. pela aplicação das coisas naturais e compatíveis com sua natureza,
ate um grau tão alto de perfeição, que ele possa penetrar todos os corpos
compostos como um espírito e transformar os metais em sua própria
natureza e perfeição. Mas, antes que esse ouro possa conseguir e chegar
até esse grau de perfeição, é preciso crer que isso não pode acontecer
sem grandes combates e dificuldades:
Pois é preciso que ele sofra in Ponto, isto é, no mar.
É preciso que ele seja crucificado.
É preciso que ele morra. É preciso que ele seja enterrado.
É preciso que ele desça aos infernos.
É preciso que ele seja ressuscitado da morte para a vida, para que,
sendo glorificado após sua ressurreição, tenha a potência de purificar*
seus irmãos (os metais imperfeitos) de suas manchas e imundícies, e de
transformá-los até a perfeição dos seres eternamente duráveis.
Barent Coendcrs van Helpen,
Tesouro da Filosofia dos Antigos
oit A Escala dos Sábios (1693), p. 218-219.

eus portanto, Natureza e Arte, de unânime desejo


Mostram a infinidade de seu triplo poder.
Deus comanda a Natureza e fornece a matéria:
A natureza lhe dá forma e o revela:
E depois a Arte, aperfeiçoando o que a Natureza fez,
O impuro corrige e aperfeiçoa o imperfeito.
De tal forma que, sem a Arte que as coisas ilustra,
Suas virtudes definhariam sem efeito e sem brilho:
Pois a Natureza não pode por simples ações
Realizar como a Arte por preparações.
E da Arte todavia a virtude singular
Di/\logo da Artista e da Natureza
187

É apenas a emenda da própria matéria


Em quem a Natureza colocou esse tesouro afluente
Que em todos os corpos compostos os céus vão influindo.
A Natureza é uma ordem e potência infalível,
Que o Espírito desconhecido do incompreensível
Desde o nascer do mundo ao mundo estabelecido,
Para ver efeitos diversos seu desejo enobrecido,
Produzindo, conservando e aumentando as coisas
Que em sua presciência ele reservava encerradas,
De toda eternidade a toda eternidade,
Sob o infinito progresso de um projeto limitado.
E o que Arte chamamos é um ato inacreditável
Do intelecto humano, que torna o homem admirável
Na imitação dos naturais efeitos,
Que muitas vezes ele corrige, e revela mais perfeitos,
A terra com largos flancos, do germe de seus irmãos
Que de todo corpo físico são igualmente pais,
Concebe, alimenta, aumenta, em seu interior,
O espírito universal do mundo inferior;
Que em branca e fina flor a Natureza faz nascer,
E que em cristal brilhante a Arte nos revela.
Em sua simplicidade esse espírito geral,
Triplo uno, é animal, vegetal, mineral,
Começo e fim de todo corpo corruptível,
De que é a substância e o bálsamo invisível.
Clovis Hesteau dc Nuiscment,
Pcema Jilosófico da verdade da Física mineral
(1621), p. 15-17.

A Natureza portadora do selo de Salomão guiando o alquimista em sua busca:


Musceum hermeticum, Frankfurt. 1625.

rÉI
188 Filosofar pelo Fogo

■p
JL/u protesto diante de Deus, e na salvação eterna de minha alma, com
um coração sincero, tocado de compaixão por aqueles que desde sem­
pre estão na grande busca; eu certifico a todos vocês, que acalentam
essa maravilhosa Arte, que nossa grande obra nasce de uma só coisa,
e que nessa coisa a obra encontra sua perfeição, necessitando apenas
ser dissolvida e coagulada, e isso ela deve fazer por ela mesma, sem o
auxílio de nenhuma coisa estranha.
Quando colocamos gelo em um vaso posto sobre o fogo, observa­
mos que o calor o reduz a água; devemos usá-lo da mesma maneira com
nossa Pedra, que não precisa senão do auxílio do Artista, da operação
de suas mãos e da ação do fogo natural, pois ele jamais derreterá por si
mesmo se permanecer eternamente sobre a terra: é por isso que deve­
mos ajudá-lo, de tal forma todavia que não lhe acrescentemos nada que
lhe seja estranho e contrário.
Assim como Deus produz o fermento nos campos, e que em segui­
da cabe a nós colocá-lo na farinha, amassá-lo e com ele fazer o pão; da
mesma maneira nossa Arte requer que façamos a mesma coisa. Deus nos
criou esse mineral para que sozinhos o tomássemos, que decompusés­
semos seu corpo grosseiro e espesso; que separássemos e tomássemos
para nós o que ele encerra de bom em seu interior; que rejeitássemos o
que há de supérfluo; e que de um veneno mortal aprendêssemos a fazer
uma Medicina soberana.
Alcxandre-Toussaint Limojon dc Saint-Didier,
Entrevista da Pedra dos Filósofos com o Ouro e o Mercúrio,
O Triunfo Hermético (1699), in William Salmon,
Biblioteca dos Filósofos Alqutmicos, t. III, p. 181-183.

ciência dos Sábios é o conhecimento e a obra da sabedoria, que é


o único e soberano bem da vida do homem: o que ela tem de admirável
é não tomar nada emprestado das ciências do mundo, e que é superior
a todas, que, por ser verdadeiras e sólidas, só podem derivar delas mes­
mas; pois ela é a fonte delas, como é seu fundamento e sua regra; todas
as Artes tendo extraído seus princípios e suas primeiras ideias das obras
naturais, e tendo delas copiado a indústria e a conduta de seu trabalho.
A Natureza nos serve de livro, de tocha, de espelho e de guia, para
conhecer e encontrar em seu interior essa sabedoria operária e gover­
nante do Universo e de todas as suas produções; por ela nós passamos à
contemplação e adoração de Deus, que nela colocou as virtudes maravi­
lhosas de seu espírito eterno: nela, vemo-lo com os olhos da inteligência
DiAlogo da Artista e D/\ Natureza
189

como nosso Autor e conservador, e o criador de todas as coisas; nela,


reconhecemo-lo como nosso princípio espiritual de vida e de saúde; a
sabedoria é, com efeito, o signo de sua aliança com os Homens, e para
ele é um deleite habitá-los por meio de Verbo incriado, como seu povo
querido, o mais favorecido e honrado de seus dons celestes
Com efeito, a obra hermética é a exata e fiel imagem da obra da
criação do Universo: é um caos primitivo, ou uma confusão do líquido
com o sólido, ou seja, dos quatro Elementos, onde tudo está no vazio fí­
sico, e de onde tudo sai; ali a vida está em letargia na morte natural, para
ressuscitar e regenerar a vida ativa, poderosa e prolífica nos sujeitos
onde ela é paciente, ou então alterada: cada um dos sete trabalhos filo­
sóficos e naturais que se produzem c manifestam no regime é relativo ao
reino, à qualidade e ao caráter, bem como às propriedades e virtudes de
cada um dos sete planetas, e dos sete metais que eles dominam, assim
como, pela virtude do poderoso sopro de Deus, eles também são oriun­
dos em ordem de criação; e suas aparições e operações ali se fazem
gradualmente em uma sequência e em uma sucessão maravilhosamen­
te regrada pela sabedoria, até a perfeição periódica. Não existe ser na
Natureza que não participe dos raios cintilantes dessa sabedoria, isto é,
do Fiat específico da essência divina, criadora de todas as coisas; que
dali não extraia seu nascimento, seu crescimento, sua conservação, c a
multiplicação de sua espécie [...].
Mas essa flor do Céu, esse fruto precioso da pura Natureza, essa
real virtude triunfando de todas as enfermidades terrestres não é conhe­
cida nem cultivada por ninguém; e aqueles cuja vida ela faz a despre­
zam tão soberanamente que eles a esmagam com os pés, ainda que ela
seja o mais belo ornamento em sua cabeça: sua doutrina, que tem sua
origem na sabedoria divina, e que é o mais alto período da sabedoria
humana, não é mais do que o brinquedo do povo, e de santa que ela é, o
comum e o vulgar insensato a toma por magia negra, diabólica, infame,
e repleta de ilusões: no entanto não é preciso se imaginar que a obra da
Medicina universal seja a da pedra que transmuta os metais imperfeitos
em perfeitos; existe uma grande diferença entre um e outro: o primeiro
tem uma teoria e uma prática própria e simples, que serve de fundamen­
to, de primeiro princípio, e de chave à Arte das transmutações verdadei­
ras; e o segundo para operações inúmeras, longas, que não podem ser
conhecidas e praticadas senão pelos Adeptos.
A Icrd.idc saindo do Poço hermético (1753),
p. 71-72. 101-104.
190 Filosofar pflo Fogo

Nicolas de Locques, Os Rudimentos da Filosofia natural,


Paris, J665 (frontispício).
DiAlogo da Artista e da Natureza
191

. ./í

Alquimista implorando a ajuda de Deus: Matthaeus Merian,


Pharmazie-Historisches Museum, Basileia.
7

A Deontologia
Operativa
( Ora et Labora)
Portanto, aquele que deseja ser introduzido nessa
sabedoria oculta que possuímos deve fugir
do vício da arrogância, ser piedoso, ser homem de bem,
de um profundo raciocínio,
c guardar os segredos que lhe foram revelados.

Os sete capítulos atribuídos a Hennes,


in William Salmon,
Biblioteca dos Filósofos Alquíniicos,
1.1, p. 30.

Que a divisa dos alquimistas (ora et labora) seja idêntica à dos


monges cristãos mostra claramente o parentesco entre duas formas de
engajamento “monacal”, ou seja, de despojamento quase ascético e
de renúncia ao supérfluo em proveito somente do essencial e do ab­
soluto.142 Tanto para uns quanto para os outros desses “operativos”,
com efeito, prece e trabalho manual são os dois polos de uma oração
perpétua dirigida a um Deus criador e soberano. Buscando, quanto a
ele, “conhecer Deus a partir da luz da Natureza ” (Pierre Jean Fabre),
o alquimista se remete assim ao “gênio do fogo ” que, penetrando os
arcanos naturais, torna a Arte capaz de fabricar o único remédio (pa­
naceia) de que a humanidade precisa para recobrar a saúde.

142. cf. a esse respeito Raimon Panikkar, Éloge du simple, trad. fr. Paris, Albin Michel,
1995, em que o parentesco entre vida monacal e transmutação alquímica é esboçado.
-192-
A Deontologia Operativa (Ora et Larorà)
193

Portanto, não acabaremos nunca de enumerar as qualidades exi­


gidas do candidato a Adepto: “Aquele que quer se introduzir nessa arte
e nessa sabedoria oculta deve expulsar de si o vicio da arrogância,
ser piedoso e sóbrio, ter uma inteligência profunda, ser humano em
relação aos homens, ter um rosto sereno, ser alegre, perseguir sua sal­
vação com zelo e guardar os segredos eternos que lhe são abertos ”,
recomenda O Rosário dos Filósofos (séc. XIV). Se ele não tem nada de
santo, o alquimista é realmente um eremita (IX arcano do Tarò), cuja
reclusão meditativa acompanha a mortificação e depois a glorificação
de sua “matéria” no vaso filosofal. Atento a desarmar as armadilhas
estendidas pelo Diabo (precipitação, tédio, presunção), ele sabe que
sua verdadeiraforça (virtus) depende tanto de sua paciência quanto de
uma forma particular de visão - “segundo a natureza ", dizem os textos
-próxima de uma iluminação.

Ver segundo a natureza: uma oração visionária

m relação ao que diz a Filosofia católica (que- j—


ro dizer segundo a Sagrada Escritura), a obediência fe
vale mais do que o sacrifício feito por causa da vitória ?
ganha, pelo amor da reverência que conferimos aos
estatutos e recomendações de nossa ordem, e a obe- V
diência dos prelados da santa Igreja de Deus, é fazer ■
[Wg)i
medicinas maravilhosas e soberanamente desejadas
pelos homens, e essas medicinas não curam tão so­
-lOHANNES DE Ry
mente nosso corpo de todos os males, doenças, mas
também transmutam os metais imperfeitos em ouro e
em prata em um piscar de olhos. Sobre essas medici­ Jean de Rupescissa.
nas, a verdade do magistério me foi revelada na prisão Filósofo: A pobreza
ensina todas as artes e
pelo desejo de Deus, verdade todavia que não decla­
o ventre é o dispensa-
rarei a todos, pois não cabe aos de nossa religião falar dor de invenções.
sobre as obras dos Alquimistas. Por essas razões, en-
cerro em consideração à Quinta essência, na qual essas considerações
e operações da Alquimia podem e devem ser mescladas. Declaro diante
de todos os homens evangelizadores, tomando Deus como testemunha,
que, se pela instigação do Diabo eles caem nas obras da Alquimia, logo
serão reprovados. E considerem como verdadeiro que esse é o caminho
da perdição, pois nenhum dos Filósofos escreveu a verdade em seus
livros, senão dissimulada e em parábolas, as quais não podem ser com­
preendidas nem ouvidas pelo espírito humano. E ninguém pode penetrar
os grandes segredos da Alquimia se seu espírito e entendimento não são
194 Filosofar pelo Fogo

definidos pela alta contemplação, e pela vida santa, tanto ele não conhece
apenas as entranhas da natureza, mas também ele deve saber transmutar
as coisas transmutáveis. Essa coisa é conhecida por poucas pessoas. Cla­
ro. existem aqueles que comumente se ocupam com essa ciência, sem
ter dela nenhum conhecimento; esses seguem ordinariamente as ficções
e sofisticações, e por essa razão se tornam falsificadores de moedas e
servos dos prelados e dos príncipes, sendo vagabundos, enganadores e de
vida incorreta, sem religião [...]. Quanto às outras obras maravilhosas
da Filosofia, elas dependem daquelas que já citei, e eu as aprendi por
meio das altíssimas iluminações e inspirações celestes, eu as revelarei
a vocês enquanto me for possível, homens evangelizados (se agradar a
Deus) aos quais eu escrevo amplamente.
Jcan dc Rupcscissa,
A Virtude e Propriedade da Quinta essência de todas as coisas
(scc. XIV, rrad. fr. 1549), p. 110-112.

*
* *
lE/ u ordeno a todos os exploradores dessa arte que em primeiro lugar

façam um fogo leve, até que a água e o fogo tenham começado a se


suportar. E quando tiver visto a água se tornar fixa e sem nenhum mo­
vimento de ascensão, não se preocupe com a qualidade do fogo; mas é
bom governá-lo pacientemente até que o espírito e o corpo não façam
mais do que um, de maneira que as coisas corpóreas se tornem incor­
póreas e as incorpóreas, corpóreas. A Água é, portanto, essa coisa que
branqueia e faz corar. A Água é o que mata e vivifica.
A Agua é o que queima e se transforma em um branco
brilhante. A Agua é o que dissolve e coagula. A Agua
ó é que putrefaz e em seguida faz germinar coisas novas
e variadas. É por isso que, meu filho, eu o advirto de
Sár que toda empreitada consiste no cozimento da Agua. Por
i isso, não se deixe vencer pelo tédio, se quiser obter um
fruto, e não se preocupe com outras coisas vãs, mas ape­
Branqueai o Latão e nas com a Agua. Cozinhe-a devagar, putrificando-a, até
rasgai vossos livros, que passe da cor inicial à cor perfeita.
para que vossos E cuide no início para não queimar suas flores nem
corações não sejam seu verdor; e não se preocupe em terminar rapidamente
corrompidos.
sua obra. Vele também para que sua porta esteja bem e
solidamente fechada, para que aquele que está no interior não possa
voar e, com a permissão de Deus, você conseguirá assim o resultado.
A Deontologia Operativa (Ora et Labora)
195

A natureza efetua pouco a pouco sua operação; e na verdade quero que


você aja assim, e, sobretudo, que sua imaginação esteja em acordo com
a natureza. Veja, então, segundo a natureza, graças à qual os corpos são
regenerados nas entranhas da terra; e imagine por meio da imaginação
verdadeira e não fantástica. E veja, assim, com que calor operar o cozi­
mento, se ele é violento ou suave.
O Rosário dos Filósofos
(Rosanum Philosophorutn, séc. XIV), in Jcan-Jacqucs Manget.
Bibliotbeca Chantca Cunosa, t. II. p. 89.
*
* *
B ntão eu adjuro por meio desta todos aqueles que, por intermédio de
meu presente Opúsculo, chegarão ao verdadeiro conhecimento dessa
divina obra, que eles a manipulem de tal forma que os pobres com ela
sejam alimentados; os oprimidos, libertados; os atormentados, alivia­
dos pelo amor de nosso bom Deus, que lhes teria comunicado um tão
grande bem; do qual eu peço mais uma vez reconhecer o todo e, já que
vem dele, usá-lo segundo seus santos mandamentos. Sendo assim, ele
fará com que eles prosperem em seus negócios, como do contrário ele
permitirá que tudo seja entregue à confusão.
Eu lhe suplico, portanto, Amigo fiel, que ao ler nossos livros tenha
sempre esse bom Deus em seu entendimento, para que tudo o que é
bom descenda dele, e sem sua ajuda não há nada de perfeito nesse baixo
mundo; falta pouco para que possamos chegar ao conhecimento desse
grande e admirável bem, se seu Espírito Santo nos é dado por guia.
Como de verdade ele o fará, se a avareza não lhe conduz, e que você
seja o verdadeiro zelador de Jesus Cristo; o qual seja gloriosamente
louvado pelos séculos e séculos. Assim seja.
Dcnis Zachaire, Opúsculo da Filosofa Natural
dos Metais (1567), in William S.ilinon.
Biblioteca dos Filósofos ALpamicos, t. II. p. 454-455.
*
* *

imaginação opera no homem à maneira do Sol: da mesma forma


então que o Sol corpóreo age sem instrumento no sujeito, reduzindo-o
a carvões e cinzas, assim a cogitação incorpórea do homem trabalha em
espírito no sujeito como o faria um instrumento visível; o que faz o corpo
visível, o corpo invisível (ou homem sidérico que age sobre o que traz
prejuízo) também pode fazê-lo. É que a imaginação do homem é um
196 Filosofar pelo Fogo

Imã capaz de atrair para si a mais de mil léguas de


distância; ou melhor: ainda que ela deseje em sua
exaltação, ela o extrai para si fora dos quatro Ele­
mentos. Mas a imaginação só é eficaz se antes atrair
para si a coisa concebida pela força de sua virtude
atrativa, de forma que seja assim procriado fora dela
seu próprio Arquiteto, uma espécie de espírito natu­
ral. Depois que a imaginação, de certa forma grá­
vida, tiver produzido suas impressões, e ainda que
Oswald Croll. discípulo seja impalpável, ela, no entanto, parece corpórea, à
dos Filósofos: Essa imagem do vento. Daí, o verdadeiro Mago ou Sábio
ciência não è nada pode, pela operação dos astros, atrair em imagem
além do segredo dos as pedras, os metais, para que eles exerçam con­
Sábios e dos Filósofos. juntamente a mesma força e potência: como, por
exemplo, o espelho de fogo [ardente] pelo intermé­
dio do qual os raios do calor solar são desviados para nós. Tudo o que
atrai nossos olhares no grande mundo, a imaginação pode até mesmo
conceber: assim todas as ervas, todos os metais e as coisas capazes de
crescimento podem ser produzidos pela imaginação e pela verdadei­
ra Cabala.* Esta também é a parte da Magia dita cabalística, que se
apoia em três colunas: primeiramente, nas verdadeiras preces feitas
em Espírito e em Verdade, em que nos Santos dos Santos é consagrada
a união de Deus e do Espírito criado; em que, sem abertura da boca
nem exalação do sopro, mas em um silêncio sagrado, Deus é invoca­
do pelo Espírito interno e não pela força das palavras. Em segundo
lugar, na fé natural na criação, ou Sabedoria incriada comunicada por
Deus, o Pai, de modo igual a todos os homens a título de pecúlio e
de património particulares. Em terceiro lugar, na imaginação forte­
mente exaltada, cuja força é tão grande e tão maravilhosa que a luz
da Natureza se manifesta então abertamente, tanto no bastão de Jacó,
mencionado por Moisés, quanto, entre as mulheres grávidas impres­
sionáveis, na marca da coisa desejada sobre o feto, como foi dito an­
tes. A imaginação ou fantasia do homem é, por sua natureza, à imagem
do ímã, pois atrai as fantasias dos outros homens, como vemos, entre
aqueles que enganam veementemente a imaginação, transmutarem não
somente o próprio corpo, mas também algumas vezes o dos outros, e
isso naturalmente por certa virtude que detém a similitude da coisa a
ser transmutada: virtude que a imaginação desestabiliza, como aparece
no ranger dos dentes ou no atrito do ferro contra o ferro, etc., que gera
o ranger dos dentes: da mesma maneira o bocejo incita a bocejar. São
A Deontologi/X Operativa (Ora et Labora)
197

muitos os que, afligidos por sua imaginação, creem reconhecer a causa


em um desacordo interior, como se estivessem tentados por um espírito
imundo ou inteiramente possuídos por ele. Também são bem numero­
sos os que, livres de qualquer suspeita de impotência por sua imagina­
ção intensa, dotados de uma fé em Deus sem falha e bastante garantida,
de um espírito em todos os pontos elevado, animados de uma esperança
infalível por preces contínuas e ardentes, colocaram-se cm condição de
se tornar subitamente o templo do Deus vivo.
Oswald Crollius, A Química Real
(Basílica Chymica, 1609). p. 65-66.
*
* *

ão somente Dionísio, o Areopagita, como também a maior parte


dos sábios antigos aprenderam a conhecer Deus a partir da luz da natu­
reza, como Hermes Trismcgisto,* Geber, Demócrito, Pitágoras, Platão,
Arisleus, Artephius e muitos outros alquímicos bastante antigos de sua
linhagem, e todos floresceram antes do nascimento de Cristo e não pra­
ticaram a religião dos hebreus nem por eles foram instruídos: eles reco­
nheceram, no entanto, o Deus único e eterno, incriado, todo-poderoso,
criador infinito, protetor e governante de todas as coisas, iluminados
que foram pelo único raio da luz intelectual da natureza, fonte da qual
extraíram essa capacidade quase divinatória; e se o conhecimento que
tiveram assim de Deus permaneceu por essa razão ainda grosseiro, nem
por isso ele foi menor e mais claro do que o que pode ser adquirido pelo
simples senso externo. Ainda que de fato Deus conheça a si mesmo
a partir de si mesmo, uma vez que ele é o único a compreender a si
mesmo, todavia nós somos capazes de conhecê-lo de alguma maneira
pelas obras de suas mãos que nos prestam assistência e substância para
que voltemos em sua direção, como diz o Apóstolo. Assim, as coisas in­
visíveis de Deus podem ser contempladas por meio daquelas que foram
feitas e compreendidas desde a criação do mundo; e esse conhecimento
divino que encontra seu ponto de partida nas obras de Deus é tão sim­
ples, evidente e fácil de adquirir que ninguém instruído pode se manter
distante, ou pelo menos procurar se desviar dele, que não saiba ali pe­
netrar apenas pelo raio luminoso da própria razão. Essa ciência é, com
efeito, tão bem conhecida por ela mesma que aqueles que procurassem
esquecer sua existência necessariamente suprimiriam a si mesmos, imer­
giriam nas profundas trevas e se privariam da luz; pois aquele que não
é iluminado certamente é apenas um cego, um fardo inútil para a terra,
198 Filosofar pelo Fogo

um pelo duro c um escudo de mármore; inapto a sentir que silenciosas


centelhas divinas ele retém prisioneiras dentro dele, excitadas somente
pelos atritos e entrechoques, e tão incapaz de dar-lhes algum uso cuja
utilidade lhe seria própria. Mas essas centelhas espalham luz suficiente
para que não confundíssemos Deus e as criaturas, cuja pcrccpção nós
temos, e que reconhecêssemos essa verdadeira luz que nos arranca para
fora das trevas do vazio, e conosco toda outra luz. E para que em sua
estadia eterna ela não se apague, ele a conserva e alimenta com certo
estimulante, sem o qual ela retornaria para as trevas primeiras, enquan­
to recairíamos igualmente no primeiro vazio, se por sua virtude infinita
não fôssemos sustentados.
Não tendo jamais servido sob as bandeiras de Cristo, como foi o
caso dos sábios mais antigos, os primeiros Filósofos Alquímicos - mas
também étnicos c pagãos - jamais caíram em um torpor tão profundo
de ignorância que não tenham reconhecido e proclamado Deus como
o autor de toda a natureza e, quando o evocaram, não tenham afirmado
encontrá-lo no centro de todas as coisas: pois em todas as coisas sempre
permanece esse centro que não é dominado pelos movimentos flutuantes
e escorregadios da corrupção, mas sempre em sua imutabilidade, mes­
mo se movendo, subsiste e por si mesmo persiste; e a adivinhação que
então se pode ter daquilo que o ultrapassa revela e invoca a potência e
mostra a verdadeira imagem de Deus. E como dele decorrem todas as
coisas que também retornam para onde elas tiveram sua origem, tudo
isso mais uma vez atesta a presença de Deus. Pois, a partir desse centro
ou substância, ou ainda sal da terra e do mundo e, como eles dizem,
suporte e apoio de toda a natureza, eles assim podem iluminar o estimu­
lante e o elemento nutritivo. No entanto, esse sal, base e fundamento,
virtude e energia, para não dizer a própria natureza, não é Deus, uma
vez que ele ignora sua eternidade e sua potência infinita, sua suprema
bondade e sua imensa inteligência, e que lança para bem longe de si o
apogeu inacessível de todas as virtudes e perfeições supremas: todas as
coisas eminentemente virtuosas que, não tendo sido outorgadas a esse
sal, que só é natureza, também podem ser distribuídas e oferecidas.
Resta, portanto, alguma coisa a ser dada ao exterior, ao interior e para
além da natureza; alguma coisa que por meio desses atributos merece
ser mostrada e, que ele o possa, isso também é só Deus; pois se parece
incontestável e reconhecido por todos que se possa na própria essência
das coisas descobrir esses atributos, eles no entanto não convêm senão
a Deus e são o próprio Deus, assim como em Deus todas as coisas são
Deus e que nele não há nada de dissonante que sofre por ser repetido.
A Deontologia Operativa (Ora et Labora)
199

Adeptos rezando ao pé do duplo Mercúrio: Hermes Bi rd, in Elias Ashniolc,


Thcatrum chcmicum britannicum, 1652.
Eis a partir do que a Alquimia parte novamente cm busca c des­
cobre Deus, dizendo que, se a natureza tendesse espontaneamente às
mais profundas e absolutas de suas próprias perfeições, uma vez que
não pode admitir ser em intenção rude e vazia, isso impediria a Deus
instituir seu próprio centro tão verídico e único com o qual se regozijar
e onde repousar, e de ter imergido no abismo de sua suprema perfeição.
De fato é bem verdade, e em verdade ainda mais verdadeira c absolu­
tamente verdadeiro,143 que na natureza das coisas são dadas virtudes,
energias, potências e grandezas que se estendem espontaneamente ao
supremo grau de perfeição. Ora, esse grau na verdade não pode ser
absolutamente supremo, a não ser que ele seja igualmente infinito c de
uma incomensurável magnitude, sem nenhum fim nem limite c de todas
as partes propagado. Portanto, concluímos que somente Deus pode ser
reconhecido como unidade dessa imensa virtude, energia, potência e
grandeza sem nenhum fim nem limite, e de todas as partes profusa. Mas
não creio mesmo assim que essas propriedades naturais e essas virtudes
possam ser da mesma natureza que as divinas: pois as coisas naturais c
as divinas não são mensuráveis entre si sem medida comum, ainda que
estejam colocadas próximas umas das outras, pois na verdade elas não
são nada, todavia, dotadas de um sentido alegórico que lhes permite
serem abordadas para que pelo intermédio dessa essência fluida nos
venha o desejo de contemplar essa outra essência: infinita, eterna e sem­
pre igual a si mesma; como está manifesto no sal da terra e do mundo
143. Provável alusão à Tábua de Esmeralda, citada na p. 65.
200 Filosofar pelo Fogo

em que, ainda que seja sal e por mais criado que seja, Deus inscreveu
no entanto - e de forma maravilhosa - imagens vivas de si mesmo para
que não possamos encontrar ninguém, ou no máximo alguém de jul­
gamento fraco, que não seja levado a ignorá-los e que ao contrário não
os entenda, clamando de todas as partes e cantando em alta voz: Deus
fez todas essas maravilhas, e suporta além do mais todas as coisas pela
força de seu Verbo. Com efeito, d’Ele e de semelhante força elas se
manifestam de ter sido criadas e de ser conservadas. Vimos de fato que
a natureza não é capaz por ela mesma de se criar; e, se lhe é permitido
ser por si mesma contemplada, não lhe é possível se conservar a partir
de si mesma. Portanto, resta que ela foi criada por outro e que nós nos
dedicamos além do mais a conservá-la, e a reconhecer esse Deus único e
sozinho: pois criar, que significa tirar alguma coisa para fora do vazio,
e isso unicamente pela potência de seu Verbo, depois conservar o que
foi criado, pressupõe uma virtude infinita, eterna e todo-poderosa; e
essa virtude infinita, eterna e todo-poderosa é o próprio Deus.
É por isso que, com a cabeça livre de qualquer suspeita, podemos
alegremente concluir que todas as coisas, de qualquer qualidade que
sejam na série daquelas que existem e que vivem, são e vivem graças a
Deus, que é o ser dos seres e a verdadeira vida dos viventes, e que só o
bem, o repouso e a felicidade supremos podem ser atendidos. Assim a
Alquimia, escrutando as coisas naturais pelo gênio do fogo, que é o ob­
servador de todas as realidades ocultas, recolhe de certa maneira os so­
brenaturais e leva a conhecer e revela Deus: não no estado em que ele se
encontra em relação a si mesmo, mas tal como ele aparece na natureza;
e, no entanto, apresentando-lhe e iluminando tudo, a luz natural e o fogo
são sob outros pontos de vista obscuros e mais de uma vez inteiramente
Cimérios; isso para que seja contemplada essa luz superinacessível e
superincomunicável, que não pode se igualar a nenhuma outra luz, caso
essa não seja a única verdadeiramente autêntica, descendo do céu para
iluminar todo homem que vem ao mundo e que os homens até agora
não reconheceram [...].
Eis o que revela a Alquimia interior da natureza criada, contem­
plando à medida de suas capacidades mentais os mistérios na natureza
incriada, que nem as hierarquias estabelecidas pelos homens, nem todas
as ordens angélicas conjugadas podem penetrar. Somente o podem o
Pai, só o Filho, só o Espírito Santo, só essa Trindade: o Deus Uno que
conheceu esses mistérios e os comunicou a nós por sua graça; não para
lhes dar uma existência verídica, mas para que nós possamos percebê-los
A Deontologia Operativa (Ora et Labora)
201

de maneira inteligível, tanto que o espírito humano seja capaz, por meio
das barras de sua luz, de atravessar seu próprio espelho.
Pierrc-Jcan Fabre,
O Alquimista Cnstào
(Alchymista christianus, 1632), p. 6-13.

*
* *

ó lhes resta orar a Deus para que Ele realmente deseje fazê-los che­
gar à posse de uma joia, que é de um preço inestimável. Afiem então
a ponta de seus espíritos; leiam os escritos dos Sábios com prudência;
trabalhem com diligência e não ajam com precipitação em uma obra tão
preciosa. Ela tem seu tempo ordenado pela Natureza, assim como os
frutos que estão nas árvores e os cachos de uvas que a vinha* carrega.
Tenham a retidão no coração e proponham, em seu trabalho, um objeti­
vo honesto; senão Deus não lhes dará nada: pois ele não comunica um
tão grande Dom senão àqueles que querem fazer bom uso dele; e Ele
priva aqueles que desejam dele se servir para cometer o mal. Rogo a
Deus que Ele lhes dê sua santa bênção. Assim seja.
Alcxandre-Toussainc Limojon de Saint-Didicr,
O Triunfo hermético (1699). in William Salmon,
Biblioteca dos Filósofos Alquímtcos, t. III, p. 202-203.

“Ore, leia, leia, e releia, trabalhe e tu encontrarás


Altus, Mutus Liber, 1677, prancha 14.
202 Filosofar pelo Fogo

C-^uando procuramos o Azoto* dos Filósofos, não devemos ter outro

motivo além de glorificar Deus por prover nossa conservação, e aliviar


os pobres, que são os membros de Jesus Cristo. É preciso afastar de
nós tudo o que pode ser contrário à religião, submetermo-nos comple-
tamente à moral do Evangelho, e, sobretudo, banir de nosso espírito
qualquer afeição pelas riquezas, pois não nos é permitido desejar por
nenhum outro motivo a não ser o de aliviar os pobres, as viúvas e os
órfãos, sobretudo quando temos o necessário para viver.
O conhecimento desse Tesouro só pode vir de Deus, que ele con­
cede àquele que tem todas as disposições necessárias para usá-lo com
prudência; pois Deus jamais permitirá que um ímpio, um voluptuoso e
um homem sem fé sejam possuidores de uma coisa tão preciosa, para
empregá-la para alimentar seu orgulho, molestando e esmagando as
pessoas de bem que estão na necessidade, e cujo destino infeliz de ne­
nhuma outra maneira o tocaria.
Sabinc Stuart dc Chcvalicr,
Discurso JilosóJico sobre os tris
Princípios (1781), 1.1, p. 164-165.
*
* *

Paciência e duração do tempo...


I luminai-me, diz ela, sobre as dúvidas e decepções relativas à obra,

que não deixam de se apresentar ao meu espírito, quando vejo as di­


vergências dos filósofos sobre os nomes, as operações, as combina­
ções e os pesos. Os Filósofos, responde ele, não
acharam útil falar abertamente sobre tudo isso; é
deliberado eles terem variado assim entre si. Eles

K1^^
desejaram tornar as coisas obscuras para o homem
inteligente, para que os demónios hesitassem em
conceber o ciúme, pois sem dúvida eles teriam ten­
tado aqueles que teriam se distinguidos nessa obra.
Pertence aos Sábios Deus, em sua clemência, quis que eles pudessem
procurar as mais altas supor que isso não existiria na realidade. Talvez
coisas eternas ao os demónios tivessem tentado, fazendo-lhe entre­
elevar seu espirito e ver grandes despesas e o perigo de ser arruinado,
seus olhos. como outros já haviam tentado antes dele, desviar
A Deontologia Operativa (Ora tr Labora)
203

o homem da busca desse favor divino e generoso, pois ele deve conduzir
aqueles que são seu objeto às delícias da vida futura: a obra é uma grande
marca do favor que Deus faz a seus adoradores. Eu os engajo, portanto,
a se apoiarem em minhas recomendações: não se desanimem na leitura
dos livros nem na prática das operações. Tenham paciência, esperem que a
tintura esteja terminada, e peçam a Deus (que seu nome seja glorificado!),
peçam-lhe por meios de suas preces e súplicas que ele os faça chegar ao
objetivo. Desconfiem do fogo no momento da operação, sendo o fogo o
inimigo da água, enquanto não houver acordo entre eles, assim como disse
aos filósofos Nosso Senhor, o Messias,144 quando estes vieram colocar cm
prova sua ciência com a ajuda de seus conhecimentos: “Estou surpreso, ó
filósofos, diz-lhes, de ver como podeis harmonizar a água com o fogo. A
obra não pode ter sucesso senão a esse preço, com a permissão de Deus.
Agi portanto e não vos desencorajai, não desanimai. Tende paciência; lede
assiduamente os livros e tentai compreende-los; pedi a Deus que Ele vos
coloque no bom caminho e Ele vos conduzirá”.
O Livro de El-Habíb, in Marcelin Berthelot,
A Química na Idade Média, t. I, p. 99-100.
*
* *

V ocês não podem alcançar seu objetivo sem Iluminação e sem pa­
ciência, e sem ter coragem de atingir; pois quem não tiver paciência
não entrará nessa Arte. Como acreditam entender nossa Matéria desde
a primeira vez, nem da segunda, nem da terceira? Leiam tudo todas as
vezes que duvidarem e tenham esse Livro como uma luz diante de seus
olhos, e tenham paciência de esperar. Vi em meu tempo um grande Fi­
lósofo, que sabia tanto quanto eu, e que não era um de nós; mas por sua
impaciência e pressa, e desmedida ambição, pela justiça de Deus, como
eu creio, pela força do fogo, perdeu tudo, e não pôde ver o que deseja­
va. E por isso, nosso Mestre Pitágoras diz que quem ler nos Livros, e a
eles se dedicar, não terá vãos pensamentos na cabeça, e rezará a Deus,
ele comandará pelo mundo. Pois vocês buscam um grande segredo, por
que então não desejam ter trabalho? Não veem que um Homem mata
o outro, e também se mata por dinheiro? O que então vocês deveriam
fazer, e que esforço ter a fim de chegar a essa alta Ciência, que é de tão
grande proveito? Quando plantam e semeiam, não esperam o fruto até o

144. Nota de Mareei in Berthelot: “Essa passagem é singular, estando intercalada em uma
obra muçulmana. Parece que é realmente uma citação de Maria, personagem gnóstico”.
(Origines de l 'alchimie, p. 64).
r

:o4 Filosofar pelo Fogo

tempo de sua maturidade? Como então desejam ter o fruto dessa Arte em
tào pouco tempo? Eu lhes digo, para que depois não me amaldiçoem, que
toda precipitação nessa Arte vem do Diabo, que se dedica a desviar os ho­
mens de seus bons propósitos. Sejam firmes e creiam em seu Mestre, como
acreditamos no nosso. Por nele ter crido e ter sabido, nós tivemos proveito:
da mesma forma se vocês acreditarem, terão proveito.
A Assembleia dos Filósofos
(Turba Philosophorum, scc. XII), in William Salmon,
Biblioteca dos Filósofos Alqtttmicos, t. II, p. 22-24.
*
* *

orien respondeu: Ó bom Rei, eu peço a


1 Deus que ele o converta, e que o torne melhor.

kw gfjj
Dedique-se agora a considerar e a examinar esse
Mestre, e esteja certo de que o saberá e o com-
preenderá facilmente. Mas lembre-se sempre,
sobretudo, de estudar bem o começo e o fim.
3ÍORIENV5ROMAN.
Phifofõphus. Pois, por esse meio, com a ajuda de Deus, des­
Morienus, filósofo cobrirá mais facilmente tudo o que é necessário
romano: E no esterco de para fazê-lo. Ora, eu o advirto que esse Magis­
nossa putrefação que se tério, que você tanto busca, não se descobre
encontra o começo e a nem com violência nem com ameaças, que não
causa sine qua non. é se irritando que chegamos ao objetivo; e que
somente aqueles que são pacientes e humildes,
e que amam a Deus sincera e perfeitamente, po­
dem pretender adquiri-lo. Pois Deus só revela
XF5 essa divina e pura Ciência aos seus fiéis servi­
dores, e somente àqueles a quem de toda eterni­
i dade ele resolveu, por sua divina providência,
revelar um tào grande mistério. Assim, aqueles
__ _ íJJ a quem ele concedeu uma graça tão singular
CaÊtD R£X AGIPT devem considerar muito bem a quem podem
fraanj.Mprvm confiar um tão grande segredo, antes de dizê-lo
e de descobri-lo; porque só devemos considerá-
Calid, rei sarraceno do
Egito, discípulo de lo como um Dom de Deus, que ele concede de
Morienus: Aquele que acordo com sua vontade, e a quem lhe agrada
vem em terceiro depois dentre os escolhidos entre seus fiéis Servidores.
do Pai e da Mae é o E eles devem continuamente se prostrar e se
mestre do Fogo. humilhar diante de Deus; reconhecer com uma
A Deontologi/\ Operativa (Ora et Labora) 205

completa submissão que só d’Ele eles têm esse bem tão grande, e usá-lo
apenas segundo as ordens de Sua santa vontade [...]. E é apenas Deus
quem escolhe, entre seus servidores, aqueles que lhe agradam, e que
Ele destina a buscar essa Ciência divina, que é desconhecida e oculta
dos homens, e para guardá-la e mantê-la em segredo em seus corações,
quando enfim a tiverem descoberto. Por isso é uma Ciência admirável
que destaca e retira aquele que a possui da miséria deste mundo, e que
o conduz e o eleva ao conhecimento dos bens da vida eterna. É por isso
que os antigos Filósofos eram tão ciumentos dela, que ao morrerem
deixavam essa Filosofia uns aos outros, por tradição, como uma herança
que só a eles pertencia. Em seguida veio um tempo cm que essa Ciência
foi quase destruída, sendo desprezada por todos. E ainda que dentre
todo esse desprezo que dela se fazia existiram vários livros dos antigos
filósofos, que foram conservados, nos quais essa Ciência se encontrava
completa e sem nenhuma mentira.
Entrevista do Rn Calid e do Filósofo Morien,
in William Salmon, Biblioteca dos Jilósofos
aLjuítnicos, t. II, p. 64-67.
*
* *

m geral esses impedimentos vêm ou da impotência natural do Ar­


tista, ou porque ele não tem o meio de fazer a des-
pesa necessária, ou porque não pode se dedicar
à causa de suas outras ocupações. Em relação
à impotência natural do Artista, ela vem ou de
seus órgãos, que estão ou frágeis ou então cor­
rompidos, ou de seu espírito, que não pode agir
livremente, seja pela má disposição dos mesmos
órgãos, que estão ou pervertidos ou estragados, Gebek Arabs
como eu disse, assim como se pode ver nos lou­ PhiLfópkús.
cos e insensatos; seja porque o espírito está cheio Gcber, filósofo árabe:
de fantasias, e que ele passa facilmente de uma No Sol e no Sal todas
opinião para outra contrária, seja enfim porque as coisas sào situadas
não sabe o que quer exatamente, nem a que ele pela natureza.
deve se determinar [...].
Vemos, pelas coisas que acabamos de dizer, que aquele que deseja
se dedicar à nossa obra deve ter várias qualidades. Primeiramente, deve
ser sábio e consumido na Filosofia natural [...] porque essa Ciência lhe
dará luzes e aberturas que seu espírito, por mais vivo que seja, não
206 Filosofar pelo Fogo

poderia lhe sugerir. E assim o estudo reparará o defeito da inteligência


natural. Em segundo lugar, é preciso que o Artista tenha naturalmente
um espírito vivo, penetrante e industrioso, porque, quando possuir todas
as Ciências, se naturalmente não tiver indústria e habilidade, ele jamais
será Filósofo [...]. Porque a Arte e o Espírito se ajudam mutuamente, e
substituem um na falta do outro. Ainda é necessário que nosso Artista
seja firme e resoluto naquilo que terá empreendido, e que não se divirta
a mudar incessantemente, fazendo ora um teste ora outro, estando mui­
to certo de que nossa Arte não consiste na pluralidade das coisas. E não
é certamente nisso que repousa sua perfeição. Pois só há uma Pedra,
uma só Medicina, e um só cozimento: e é nisso unicamente que consiste
todo nosso Magistério, ao qual não acrescentamos nada estranho, e não
diminuímos em nada também, é somente na preparação que nós lhe
damos, nós lhe retiramos o que é inútil e supérfluo [...].
Além do mais, é preciso que o Artista seja moderado, e que não
esteja sujeito a se alterar, por medo de que, caso venha a se desapontar,
ele não deteriore, em seu ímpeto, a obra que teria começado.
Não lhe é menos necessário conservar e economizar seu dinheiro,
que não deve dissipar em despesas insensatas, e de maneira inoportuna, na
và confiança do sucesso de sua obra, para que, caso não consiga, não caia
na necessidade e no desespero; ou que talvez, quando por sua indústria e
por seu raciocínio ele se aproximasse da verdade, e que a tivesse quase
descoberto, não tenha com o que executá-la, por se ter imprudentemente
esgotado [...]. Essa Ciência não é, portanto, para os pobres nem para os
miseráveis; ao contrário, ela é seu inimigo, e lhes é inteiramente oposta.
Mas eu advirto que não é necessário que você gaste suas posses
nessa busca. Pois garanto que, se você sabe uma vez os Princípios dessa
Arte, e que compreende bem o que ensinarei, você chegará à completa
perfeição da obra, sem que isso lhe custe nada e sem que seja obrigado
a fazer alguma despesa considerável durante seu trabalho [...]. Eis outro
conselho muito importante que ainda tenho a dar. Não se divirta com
sofisticações que podemos fazer com essa Arte, mas dedique-se unica­
mente à sua perfeição. Pois nossa Arte depende apenas de Deus, que o
dá e o retira de quem lhe agrada.
Pseudo-Gcber, A Súmula da perfeição do Magistério
(Simima pefectionis Magisterii, séc. XIV),
in William Salmon,
Biblioteca dos filósofos
abjiiímicos, 1.1, p. 90-99.
*
* *
A Deontologi/\ Operativa (Ora ft Larora) 207

MATÉRIA: assim não se zangue, uma vez que conheço sua boa
vontade e que você quer me fazer um favor, eu o conduzirei pelo reto
caminho, c você chegará à realização de seu desejo, mas note bem mi­
nhas palavras porque elas são divinas e de grande efeito, e, para o pri­
meiro ponto, eu sou aquele que você busca, tão monstruoso e selvagem,
todavia grande virtude c riqueza extraem de mim.
Eis como você fará: é preciso que entenda que desci das regiões
celestes, e caí aqui nessas côncavas cavernas da terra, aqui me alimentei
durante um espaço de tempo e desejo apenas retornar, e o meio para
isso é que você me mate, e depois me ressuscite, e com o instrumento
com o qual me matará você me ressuscitará, pois, como diz a pomba
branca, aquele que me mata me fará viver, e eis o meio como você deve
me matar: é preciso que me pegue puro e limpo assim como cu sou, pois
nunca estive em má companhia, e não me sujei com nenhuma mácula,
e para isso mantenha em mim minha pureza depois você mc cortará cm
fatias bem pequenas e cortará dentro de mim minha água, que é minha
bem-amada, tão suavemente quanto possível, e mc mesclará dc tal for­
ma que não se reconheça nada de mim e que haja duas matérias diferen­
tes, ainda que elas sejam de uma raiz, todavia, é apenas uma natureza,
ainda que uma se chame macho e a outra, femea.
E depois que tiver sabiamente feito, você me colocará em uma
câmara redonda e clara, para que veja em torno de mim, e que ela seja
justamente fechada, e que nada ali possa entrar nem causar prejuízo.
Além do mais, você construirá duas outras câmaras e as colocará uma
dentro da outra, e tomará aquela onde estou, e a colocará no meio das
duas, e que nada possa prejudicar. E quando estiver assim acomodado,
você me aquecerá sem qualquer violência, com um calor próprio para
me fazer morrer, pois só isso pode me fazer morrer; é preciso que isso
seja uma morte langorosa e não súbita, pois ela seria prejudicial.
Eu também o advirto sobre um ponto, ou seja, que você seja pacien­
te, ainda mais que é preciso que o calor seja vaporoso e úmido, contínuo
até o tempo que eu esteja morto e ressuscitado, e é preciso evitar esse
dardo e fogo de Vulcano, e não seja preguiçoso, pois estaríamos arruina­
dos e destruídos, ou seja, você, e a natureza, e eu sem jamais me levantar.
Até aqui é a metade do tempo da obra e não é preciso mexer nem
mudar nada no primeiro tempo. Falaremos agora da profundidade da
ciência de ponto em ponto, e das operações secretas da Natureza, e para
esse fim que você não ignore nenhuma coisa.
208 Filosofar pelo Fogo

Saiba, para o primeiro ponto, que tenho uma viagem de um ano


para fazer e tenho de passar por diversos caminhos. E é nesse ponto
que você deve prestar atenção e sem esmorecer, pois é ali onde tudo
repousa. Foge de três inimigos que me surpreenderão no caminho, por
não estar bem instruído, mas, como você está bem advertido, prestará
atenção a isso; para que os conheça eu vou nomeá-los: é Vulcano, Netu­
no e o deus da impaciência, são os três que me querem causar danos, e
sempre estarão perto de mim durante minha viagem, e me emboscarão
para me surpreender em tempo obscuro, mas como um sábio você me
acompanhará, munido de tais preservações e defesas que lhe são neces­
sárias, e portará em sua mão uma tocha flamejante para me iluminar
ao longo do caminho, tanto de dia quanto de noite, continuamente sem
qualquer intervalo.
E depois, anote bem, quando estivermos perto dessas passagens
perigosas, você fará por sua própria arte nascer uma nuvem escura bas­
tante negra e tenebrosa e me cobrirá, e ao passar eu não serei visto; e é
preciso que você continue até que eu tenha inteiramente passado, e depois
ela desaparecerá sozinha pouco a pouco, pois então eu me fortificarei
e não temerei mais nada a não ser o deus da impaciência, que não me
abandonará até o retorno de minha viagem e sempre estarei em perigo.
É por isso que eu comando que você seja constante e paciente, e
não se aborreça em me manter, pois a única coisa que ele quer é que
você se irrite, e, se compreendeu e reteve, você é bem-aventurado e tem
o que procura.
Jacques leTcsson,
A Obra do Leão Verde (séc. XVI), ms. n. p.
*
* *
-/VLuitas vezes me encontrei entre uma multidão de pessoas que

vulgarmente chamamos de alquimistas, ainda que, pela ignorância da


maioria, nós lhe daremos mais apropriadamente o nome de lacrimistas,
aos quais queremos falar por caridade, esperando que eles aproveitem
bastante nossa advertência.
Mas compreendam, vejam bem quanto são diferentes, ó pobres
lacrimistas, do verdadeiro caminho e meio de chegar ao conhecimento
e inteligência da perfeita transmutação.
Vocês recorrem à leitura dos livros, das sentenças, dos ditos dos
antigos Filósofos, mas seguem o sentido literal e não penetram o místico,
A Deontologia Operativa (Ora et Labora)
209

é também aos Sábios que eles falam, não à tropa ignorante, ouçam,
escutem como chegamos ao conhecimento dessa ciência tão desejada.
Existem quatro vias:
Pela ciência infusa, isto é, que Deus em seu nascimento os preor-
denou a isso, ou depois lhes comunica por sua potência essa Ciência,
dom particular e raramente visto neste século, senão pelo senhor Bom-
bast.145
Por revelação, isso também é Deus, dom gratuito, essas duas vias
são difíceis ao homem carnal.
Ser marcado por um bom espirito, São Pedro e Tobias estão mor­
tos, quis vult sumere oracula, vel dona divina, oportet sanate caste que
viveref6 ou são os outros que o são, Nigro que similis signo,147 vejam
lacrimistas pecadores de que lado vocês estão.
A quarta via mais fácil, ser assinalado por um homem que tenha
feito essa perfeita transmutação, mas quem a conhecer não dirá nada
sobre ela, ou quem entende os Antigos.
Fora dessas quatro vias não chegaremos jamais, conheçam um, e
lhes faltará o outro, um ponto rompe o centro, a perfeição dessa ciência.
O espelho dos Alquimistas
pelo Cavaleiro imperial (1609).
p. 12-13.
*
* *

ois se o dente vulgar nesse fruto pudesse morder


Não se viu portanto sobre a terra semelhante desordem.
Todos ricos em ouro e prata na medida do possível
De cem comodidades se tornariam indigentes.
Cada um, novo Cresus, fecharia seu comércio,
Abominando o tráfico de sua Arte mecânica.
O magro lenhador desdenhando seus feixes,
Foice e machado fundidos aumentariam os lingotes.
O pescador diligente em destruir suas redes
Arrancaria o chumbo para em ouro reduzi-los.
O ferreiro fundiria bigornas e martelos.

145. Théophrastus Bombastus (Philippus Aureolus) von Hohenheim, dito Paracelso


(1493-1541).
146. Quem quer compreender os oráculos, ou os dons divinos, deve viver saudavelmente, e
de maneira desinteressada.
147. Semelhante a um signo negro (alusão pouco clara).
210 Filosofar pelo Fogo

O lavrador retiraria as ferraduras de seus cavalos;


Desarmaria sua carroça; e Ceres abandonada
Não teria mais o lombo eriçado por espigas douradas.
Em breve o belo século de ouro outrora admirado
Renasceria aqui loucamente desejado:
Pois as glandes das florestas, com a água das fontes,
Seriam em nossas festas as branduras soberanas;
Servindo-as no ouro, quem com olhos mais alegres
Não daria ao palato o pedaço mais suculento.
Seria necessário caminhar nus: e como os selvagens
Enfrentar com o corpo as tempestades celestes.
Vire portanto a medalha, e veja (pobre Midas)
Os frutos de teus desejos dos quais não viverias.
Este romperia realmente a celeste organização,
E cometeria ímpia uma execrável ofensa,
Indigna de esperar nem perdão nem graça
Quem assim esse segredo divulgasse.
Clovis Hcstcau dc Nuiscmcnt,
Poema filosófico da verdade
da Física mineral (1621), p. 40-41.

ciência de confeccionar a Pedra filosofal é o conhecimento perfeito


da Natureza universal e da arte relativa ao reino dos metais. Sua prática
consiste em buscar pela decomposição os princípios ativos dos metais
e, depois de tê-los tornado mais perfeitos do que eram antes, fazê-los
acoplar-se novamente para que deles resulte uma medicina católica,148
muito poderosa para restituir a perfeição aos metais imperfeitos e aos
corpos doentes, não importando o gênero ao qual pertencem.
Que aqueles que estão plenos de honras e de funções públicas, ou
que se dedicam continuamente às ocupações privadas e constrangedo­
ras, não pretendam chegar ao ápice mais elevado dessa filosofia: ela
exige de fato o homem por completo, mantém-no em sua posse uma vez
reencontrado e obriga aquele que ela possui a se distanciar de qualquer
empresa séria e de longo prazo, considerando como insensato e despre­
zível tudo o que não é ela.
Que aquele que estuda essa doutrina despoje sua alma de suas
más inclinações, principalmente o orgulho, que é a abominação do Céu
e a porta do Inferno; que ele se torne frequentemente disponível para

148. cf. textos citados p. 559 ss.


A Deontologia Operativa (Ora et Larora)
211

as orações e realize obras de caridade; que pouco se prenda às coisas


do mundo, fuja da conversa dos homens e se dê uma constante tran­
quilidade, para que na solidão seu entendimento possa raciocinar mais
livremente e mais alto se elevar, pois, se um raio da luz divina não se
acender nele, ele jamais penetrará os arcanos* da verdade.
Os alquimistas que só acostumaram seu espirito às incessantes
sublimações, destilações, soluções, congelamentos, extração dos múl­
tiplos espíritos e tinturas, e todas as outras operações mais sutis do que
úteis, e as despedaçaram por meio dos erros variados e por assim dizer
torturantes, jamais voltarão por seu próprio gênio à simplicidade da via
natural e à luz da verdade, de que os desvia mais do que necessário essa
sutileza laboriosa que, por circunvoluções quase movediças, submerge
seus talentos travados. A única esperança que lhes resta é a de encontrar
um guia e um fiel preceptor que, depois de ter libertado seus olhos das
trevas, lhe dê a visão do puro Sol.
Jcan d’Espagnct, A obra secreta da Filosofia
de Hermes (1623), in Jean-Jacqties Manget.
Bibliotheca Chetnica Curiosa t. II. p. 650.

certo que um Filósofo causaria a maior desordem que jamais acon­


teceu, que ensinaria claramente o meio de fazer tanto ouro e prata quan­
to poderíamos desejar; de forma que esses dois metais, que servem de
ornamentos a todas as dignidades, e que fazem as vezes do comércio
e da sociedade humana, fossem tão comuns quanto as pedras; assim
como a Escritura nos ensina que elas eram na Judeia durante o reinado
de Salomão.
Não é que não se desejasse para a paz e a tranquilidade dos ho­
mens, ou que o ouro e a prata sempre lhes foram desconhecidos, ou
que pelo menos sempre lhes foram inúteis; uma vez que são esses dois
metais que, pela necessidade que deles temos, e pelo mau uso que deles
fazemos, são a causa dos maiores males que acontecem sobre a Terra;
que são eles que agora fazem quase toda a distinção das condições dos
homens; que fazem a diferença entre os ricos e os pobres, entre os se­
nhores e os servidores, entre os Grandes e os pequenos, entre os magis­
trados e o povo, e que são enfim os ídolos deste mundo. Mas depois de
tudo, isso seria absolutamente destruir a sociedade, que está estabeleci­
da após tantos séculos entre os homens pelas leis divinas e humanas, e
seria derrubar todos os Estados tornar tão comuns o ouro e a prata, que
os mantêm e os fazem subsistir por seu comércio.
212 Filosofar pelo Fogo

E de fato, uma abundância tão


grande e tão geral faria todos os homens
igual mente ricos, ou melhor, tomá-los-
ia igualmente pobres. As cidades fica­
riam desertas, as comunidades seriam
desunidas; cada um seria obrigado a
cultivar a terra para sua subsistência
particular, e cada um seria obrigado
a fazer diversos ofícios para poder vi­
Trabalho manual e espiritual:
ver. E essa obrigação e necessidade
Jean-Jacques Manget,
seriam ainda maiores nos climas em
Bibliotheca Chemica
que estamos, em que, pela intempé­
Curiosa, 1702.
rie das estações, podemos dizer que o
homem não pode viver apenas de pão e que as roupas e os outros cui­
dados que ele recebe das Artes mecânicas nem por isso lhe são menos
necessários para a vida do que a alimentação [...]. Assim, necessaria­
mente seria preciso uma das duas coisas, ou retornar à troca das coisas,
que não poderia fazer muitos subsistirem, nem por muito tempo, já que
todas as coisas não têm igual necessidade; ou estabelecer uma maneira
de sociedade e de governo semelhante àquela que o ilustre chanceler
da Inglaterra Thomas Morus deixou em um projeto em sua Utopia [...].
Mas porque essas inovações não poderiam acontecer sem pertur­
bar a ordem estabelecida há muito tempo no mundo e, consequente­
mente sem serem acompanhadas por grandes infelicidades; e porque
no estado em que as coisas se encontram agora, pelo comércio do ouro
ou da prata, cada um fazendo apenas um único ofício, e uma única
profissão, pode ter facilmente todas as coisas necessárias à vida; e que
um único homem desfrute assim do trabalho de todos os outros, como
se ele mesmo fizesse todos os ofícios e todas as profissões; o que faz
com que cada um possa viver contente e em repouso em sua família de
acordo com sua condição. E sem dúvida devemos considerar o silêncio
e a escuridão dos Filósofos, como um grande bem para o repouso e a
tranquilidade de todos os homens.
William Salmon,
Biblioteca dos Filósofos Alquímicos (1741),
Prefácio, p. CXXXI-CXXXIV

*
* *
A Deontologia Operativa (Ora et Labora)
213

s Filósofos dissimularam essa preciosa Pedra


de duas maneiras; primeiro falando dela sob o véu da
alegoria, como Morienus na [tradução de] Castren-
sis.149 Os livros relativos a essa ciência foram de fato
compostos sob forma de representações figuradas,
cuja maior parte é extremamente obscura e formada
por sentenças, para que elas só possam ser compre­ LibekSatvbni
endidas por seus autores, que designaram a Pedra por Philoj&phorwn.
nomes múltiplos que, contudo, não dizem nada aos O Livro de Saturno dos
espíritos ordinários; calando por outro lado seu ver­ Filósofos: Ele é tanto
dadeiro nome que o vulgar usa para nomeá-la. De em vida que não morre
forma que às vezes eles a chamam por seu próprio a partir dessa forma
nome, para que seja conhecida apenas pelas pessoas metálica que é a som­
perspicazes. bra leprosa da Pedra.
Em segundo lugar, eles inventaram operações e pesos variados.
Por isso está dito em A Assembleia’, os Filósofos expuseram muitas coi­
sas sobre as quais nada fazem. Por duas razões eles agem assim: pri­
meiro, para que o artifício só se torne inteligível ao longo da operação,
a qualquer um que se torne atento e circunspecto. Pois aquele que lê
seus livros deve aprender a considerar a natureza das coisas, e não a sc
remeter à letra. Todos na verdade sabem que, se os metais imperfeitos
devem ser aperfeiçoados, eles não podem sê-lo senão a partir do enxo­
fre e da prata-viva; mas nem todos sabem reconhecer a prata-viva, nem
o que ela é. Por isso, inúmeros são os que operam na ignorância. Esta
é a razão pela qual aquele que empreende trabalhar deve ser apoiado
pela autoridade dos Filósofos e pela força das razões, e operar gratuita­
mente, como diz Mestre Bonus, no capítulo V:150 um estado de espírito
muito elevado deve presidir a utilização desse artifício, para que sejam
percebidas pelo intelecto as operações que a natureza efetua de acordo
com uma visão oculta, e que a outra operação seja percebida, suplan­
tando a natureza. Geber também diz: o artifício deve ser secundado pela
doutrina e acompanhado de uma acuidade de observação muito aguda.
Quem quer que tenha de fato adquirido essa ciência, em qualquer nível
que seja, sem ter sido assistido pela engenhosidade natural, não será
convidado a tão preciosos banquetes e, sob esse aspecto, incorrerá no
erro caso não saiba, por indústria, remediá-lo de forma conveniente. É

149. cf. texto citado p. 98-99.


150. No capítulo V de La Précieuse Perle nouvelle (1330) editado e comentado em 1546
por Janus Lacinius.
214 Filosofar pi;lo Fogo

sobre isso que Haly fala de maneira figurada, quando diz que as raízes
de seus minerais se encontram no ar e nas extremidades na terra, e que,
quando elas são arrancadas de seus lugares de origem, um som terrível
se faz ouvir, gerando um terror imenso. É por isso que você precisa
caminhar rapidamente, pois elas logo se esvanecem.
Em segundo lugar, para que os homens maus não se apropriem
indevidamente dessa ciência para seu próprio proveito. Por isso está
escrito no Livro de Saturno’, nossa Pedra bendita é conhecida de todos,
ela c lançada nas ruas e podemos encontrá-la em qualquer lugar. É por
isso que os Filósofos antigos dissimularam tanto essa Pedra quanto a
conduta de seu magistério. Não se surpreenda, portanto, se os Filósofos
omitiram o início e o fim do magistério, conservando apenas seu meio;
pois, se a totalidade tivesse sido abertamente exposta, alguns ímpios a
usurpariam de maneira indigna. Assim como diz outro Filósofo: não
deixarei de encorajá-lo para que a ninguém mais além de você, meu
caro, sejam abertos os tesouros de nossos segredos, e que as cabras mal­
cheirosas e repugnantes não esmaguem as rosas brancas e vermelhas de
nosso jardim. É por isso que devemos semelhantemente dissimular,
e não informar nenhum de nossos amigos, para não excitar contra
nós o furor divino.
Laurcnt Ventura. Do meio de confeccionar a Pedra JilosoJal
(De ratione confieiendi Lapidis philosophiei, séc. XVI?),
in Thealntm Cheinicum, t. II, p. 226-7.

O alquimista em prece recebe o "dom de Deus Johann Conrad Barchusen,


Elementa Chemiae, Leyde, 1715.
A Deontologi/X Operativa (Ora et Labora) 215

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Giovanni Bellini, Alegoria (Fortuna-Melancolia?), por volta de 1490.


8

Enigmas, Fábulas
e Parábolas

Tenho nove letras c quatro sílabas; decifra-me.


As três primeiras sílabas tem cada uma duas letras.
A outra sílaba contem o resto das letras:
cinco sào mudas (consoantes).
O número total expresso encerra 16 centenas,
mais três: mais quatro vezes 13: sabendo quem
cu sou, tu serás iniciado na sabedoria divina que eu contenho.
_ f “Enigma da Pedra Filosofal”
£ | in Marcelin Berthelot,
Colffão dos antigos alquimistas gregos, t. III, p. 256.

I j imbolos, alegorias, parábolas, metáforas, enigmas, fá-


bulas, hieróglifos... todos os meios foram bons para não
deixar passar sobre um ensinamento secreto senão o que os ouvidos,
os corações e os espíritos puros e esclarecidos eram capazes de com­
preender sem trair por sua vez seu segredo. Todavia, a distinção nem
sempre é muito clara entre essas formas retóricas que muitas vezes se
interpenetram. Por isso a classificação aqui efetuada se mantém em
uma linha divisória quase nítida entre o diurno e o noturno, entre a
narração deliberadamente cifrada e a visão recebida no estado de vigí­
lia ou de sonho (cap. 8). Contribuindo certamente para a obscuridade
da linguagem alquímica muitas vezes desprezada, essas narrativas de
tamanhos e de estilos contrastados mantêm sua força encantatória na
medida em que ali se reflete, como em um espelho, a Obra completa.
AU onde o enigma geralmente dá a palavra àquele ou àquela cuja
identidade paradoxal -a da misteriosa Pedra - exige ser decifrada (quem
sou eu na verdade, eu que lhesfalo?), a parábola declina as peripécias de
-216-
Enigmas, Fábulas e Parábolas
217

uma história edificante pela qual o leitor se sente por sua vez concernido:
não é sua própria história, aquela de seu desejo mais oculto que lhe ê con­
tada e que, de seu próprio imaginário, ressurge assim exaltada? Nenhuma
resposta, nenhuma tradução em linguagem clara é, todavia, espetada de
quem responde, por sua única transformação, à narração cuja injunção ele
ouviu. Em contrapartida, a “fabulação ” começa quando a narrativa só é
mais pretexto a uma laboriosa decifração em vista de uma total elucidação.
*
* *

s Filósofos não expressam o verdadeiro sentido de seu pensamento


em linguagem vulgar, e não se deve interpretá-los a partir das ideias apre­
sentadas pelos termos em uso para expressar as coisas comuns. O sentido
que a letra apresenta não é o seu. Eles falam por enigmas, metáforas, alego­
rias, fábulas, similitudes, e cada Filósofo os considera segundo a maneira
como ele é afetado. Um Adepto alquímico explica suas operações filosófi­
cas nos termos usados nas operações da alquimia vulgar; ele fala de desti­
lações, sublimações, calcinações, circulações, e dos fornos, dos vasos, dos
fogos em uso entre os alquímicos, como fizeram Geber, Paracelso, etc. Um
homem de guerra fala de cercos, de batalhas, como Zacarias. Um homem
da Igreja fala em termos de moral, como Basílio Valentin em seu Azoto*
Eles falaram de forma tão obscura, em termos tão diferentes, e em estilos
tão variados que é preciso estar a par para compreendê-los. e um Filósofo
muitas vezes não se sentiria à vontade para explicar totalmente outro. Uns
variaram os nomes, mudaram as operações; outros começaram seus livros
pelo meio das operações, outros, pelo fim; alguns entremearam sofistica­
ções; este omitiu alguma coisa, aquele acrescentou algo de supérfluo. Um
diz pegue tal coisa, outro diz que não é preciso pegar a mesma coisa [...].
Denis Zacarias se explicou alegoricamente de forma muito mais
detalhada, durante o cerco do que ele supõe, ele fala da matéria sob o
nome daquele que sustenta o cerco, e daqueles que o fazem, e dá uma
ideia das cores pelas quais essa matéria passa sucessivamente, quando
se refere às cores dos estandartes e das bandeiras de uns e dos outros.
Outros se explicaram parabolicamente. O rei Artus, por exemplo, diz na
Assembeia'. um grande Tesoureiro ficou doente com diversas doenças,
pálidas cores, hidropisia, paralisia [...]151 .
Hermes, ou alguém sob esse nome, falou da obra em estilo pro­
blemático, e disse: Eu considerei o raro e admirável pássaro dos Filó­
sofos, que voa perpetuamente no signo de Áries. Se o dividirmos, se o

151. cf. texto citado p. 232-234.


218 Filosofar pelo Fogo

dissolvermos em muitas partes, ainda que pequeno, e que sua obscuri­


dade seja dominante, para ti ele continuará sendo de temperamento e de
constituição terrestre [...].
Arislcus se explica em estilo típico, quando diz: Ao passear à
beira-mar, vimos que os habitantes dessa costa dormiam juntos, e não
engendravam; eles plantavam árvores e semeavam plantas que não fru­
tificavam. Então lhes dissemos que, se houvesse um Filósofo entre eles,
seus filhos engendrariam e multiplicariam, suas árvores frutificariam c
não morreriam, seus frutos se conservariam, e eles seriam Reis valentes
que venceriam todos os seus inimigos[...].152
Todas essas maneiras de se expressar formam uma linguagem ex­
tremamente difícil de compreender; mas alguns Filósofos, para ocultar
ainda mais sua obra, empregaram o enigma. O Cosmopolita, entre ou­
tros, colocou um enigma bastante longo na sequência de seus 12 tra­
balhos. Ele supõe que, viajando do polo Ártico ao polo Antártico, foi
lançado à beira-mar; um delírio o tomou enquanto observava as Melo-
sinas153 que ali voavam e as Ninfas que ali nadavam. Ele estava atento
para descobrir se não veria o peixe* Echeneis [rêmora] naquele mar.
Adormeceu durante esses acontecimentos, e o velho Netuno lhe apare­
ceu com seu tridente. Esse Deus lhe mostrou duas minas, uma de ouro,
a outra de aço; depois duas árvores, uma solar, a outra lunar; e disse-lhe
que a água, para regá-las e fazê-las frutificar, era retirada do Sol e da Lua
por meio de um imã. Saturno tomou o lugar de Netuno e colocou nessa
água o fruto da árvore solar, que ao aperfeiçoá-lo se fundiu como o gelo
na água quente. Essa água, ele acrescentou, serve-lhe de mulher, e tem a
propriedade de aperfeiçoá-la de maneira que somente ela lhe bastará sem
que seja necessário plantar outras. Pois, quando se aperfeiçoaram, elas
tiveram a virtude de tornar todas as outras semelhantes a elas.
Os Antigos empregavam comumente as fábulas, e as dos egípcios
e dos gregos não foram inventadas senão por causa da Grande Obra, se
acreditarmos nos Filósofos que com frequência as evocaram em suas
obras [...]. Alguns Filósofos empregaram uma linguagem muda para falar
aos olhos do espírito. Eles apresentaram, por meio dos símbolos e dos
hieróglifos à maneira dos egípcios, tanto as matérias requisitadas para a
obra quanto para suas preparações, e muitas vezes até dos sinais demons­
trativos, ou das cores que sobrevêm a essa matéria durante o curso das
operações; pois é por meio desses signos que o Artista sabe se operou
bem ou mal. Vários Filósofos adicionaram um discurso a esses hierógli­
fos, mas essa explicação aparente é sempre tão difícil de entender quanto
152. cf texto citado p. 222-224.
153. Alusão pouco clara às criaturas aladas cujos cantos deviam ser melodiosos (meios).
Enigmas. Fabulas e ParAbolas
219

o próprio símbolo, e muitas vezes até mais. São os de Nicolas Flamel,


de Sénior, de Basile Valentin, os de Michael Maier, ainda que Espagnet
diga que estes últimos são como espécies de lunetas que nos revelam
muito claramcnte a verdades que os Filósofos ocultaram.
Dom Antoinc-Joscph Pcméty, artigo "Linguagem”.
in Diíiottárw mítico-hcrmético (1758).
*
* *

Enigmas
1. Eis o mistério: a serpente Ourobo-
ros [que morde sua cauda] é a composição
que em seu conjunto é devorada e fundida,
dissolvida e transformada pela fermenta­
ção. Ela se torna de um verde-escuro, e a
cor de ouro deriva dela. E dela que deriva
o vermelho chamado cor de cinábrio: é o
cinábrio* dos filósofos.
2. Seu ventre e seu dorso são cor de
açafrão, sua cabeça é de um verde escuro,
seus quatro pés constituem a tetrasomia,*
suas três orelhas são os três vapores subli­
mados.
3. Um fornece ao Outro seu sangue, e o
Um engendra o Outro. A natureza regozija a
natureza, a natureza encanta a natureza, a na­
tureza triunfa da natureza, e a natureza domi­ Serpente devorando sua própria
na a natureza; e isso não por essa [natureza] cauda (Ouroboros): Abrahani
Eléazar, Uraltes chymisches
oposta a tal outra, mas por uma única e mes­
Werk, Erfurt, 1735.
ma natureza [procedente] dela mesma pelo
processo [químico], com dor e muito esforço.
4. Ora, meu caro amigo, aplique sua inteligência nessas matérias e
não cairá em erro, mas trabalhe seriamente e sem negligência até que tenha
visto o fim [de sua busca].
5. Uma serpente está estendida, guardando esse templo [e] aquele
que a domou; comece por sacrificá-la, depois tirar sua pele e, depois
de ter tomado sua carne até os ossos, faça um caminho na entrada do
templo, suba até ele e lá encontrará o objeto buscado. Pois o sacerdote,
primeiro homem de cobre, mudou de cor e de natureza, ele se tornou
r

220 Filosofar pelo Fogo

um homem de prata; poucos dias depois, se quiser, você o encontrará


mudado em um homem de ouro.
Autor anónimo, in Mareeiin Bcrthclot,
Cokfâo dos antigos alquimistas gregos,
t. III, p. 22-23.
*
* *
JE/ lia Lelia Crispis é seu nome.

Nem homem, nem mulher, nem andrógino.*


Nem casta, nem prostituta, nem virtuosa,
Mas tudo isso junto:
Nem a fome, nem o ferro, nem o veneno
Não a suprimiram, mas os três reunidos.
Nem no céu, nem nas águas, nem sobre as terras,
Mas em todos os lugares ela permanece e dorme.
Lucius Agatho Psiscius
Nem marido, nem amante, nem parente,
Sem aflição, sem alegria, sem choros,
Sabe e não sabe para quem ele edificou isso:
Nem colina, nem pirâmide, nem túmulo,
Mas todas essas coisas ao mesmo tempo.
Isso é um sepulcro que não guarda nenhum cadáver;
Isso é um cadáver que nem túmulo guarda.
No entanto, sào um só o cadáver e o túmulo.
Autor anónimo, in Theatrnm Chcmiaun,
t. III, p. 744, e IV, p. 805.
tf. também Jcan-Jacqucs Manget,
Bibliotheca Cbenuca Curiosa, t. I, p. 26.
*
* *
_E/ xiste em nosso mar um pequeno peixe* redondo, desprovido de es­

pinhas e escamas, mas que contém uma gordura de admirável virtude.


Por isso devemos cozinhá-lo em fogo brando até que seu humor e sua
gordura estejam integralmente desfeitos e destruídos. Depois disso é
preciso embebê-lo com água do mar e triturá-lo tão energicamente que
ele se torne mole e viscoso; enterrá-lo em seguida durante uma semana,
depois assá-lo até que brilhe de brancura. Quando estiver brilhante e
suficientemente branco, que sua água lhe foi devolvida e que estiver
embebido em seu próprio humor, somente então, após que essa embe-
bição o tenha feito parecer de cor amarela, o colírio dos Filósofos pode
Enigmas, Fábulas e Parábolas
221

ser reparado: e os olhos untados com esse licor podem facilmente ver e
compreender os arcanos* filosóficos.
Enigma da Pedra in A Assembleia dos Filósofos
(Turba Philosophorum, séc. XII), in Jean-Jacqucs Mangct,
Bibliotbeea Chemiea Curiosa, t. I. p. 496.

*
* *
B u sou um Dragão* venenoso, de preço vil e presente em todos os
lugares. A coisa sobre a qual repouso, e que se repousa sobre mim, se
encontra em mim, buscando cuidadosamente minha Água e meu Fogo,
que compõe, que destrói e que restabelece. Você extrairá de meu corpo
o Leão verde e vermelho. Se você não me conhece exatamente, tome os
cinco sentidos de meu fogo. De minhas narinas sai um veneno que logo
amadurece, e que trouxe prejuízos a muitos. Separe então com artifício
o sutil do espesso, a menos que a pobreza o agrade. Eu lhe aumento as
forças dos machos e das fêmeas, bem como as do Céu e da Terra. Os
mistérios de minha Arte devem ser tratados com coragem e magnani­
midade. Se você deseja que eu vença a força do Fogo, saiba que nisso
muitos perderam seu tempo, seus bens e seus esforços. Eu sou o ovo
da Natureza, conhecido somente dos Sábios, que, sendo piedosos e
modestos, engendram de mim o pequeno Mundo que Deus, muito bom
e muito grande, preparou para os homens; mas ainda que muitas pessoas

Dragão furioso e venenoso: Basile Valentin, Claves XII


Philosophise, séc. XV/.
222 Filosofar pelo Fogo

o desejem, no entanto ele só é dado a poucas pessoas, que devem socorrer


os pobres com meu Ouro, cm vez de colocar seu desejo em um tesouro
que deve perecer. Os Filósofos me nomeiam Mercúrio, e meu marido c o
Ouro filosófico. Eu sou o velho Dragão, presente cm toda a Terra. Sou pai
e mãe, jovem e velho, forte e frágil, morto e vivo, visível e invisível, duro
e mole, que desce à Terra e sobe ao Céu, muito grande c muito pequeno,
muito leve e muito pesado. Em mim, a ordem da natureza muitas vezes sc
muda em cor, número, peso e medida. Contenho a luz natural. Sou claro
e escuro. Saio do Céu e da Terra. Sou conhecido e não sou nada, quero
dizer de estável. Todas as cores reluzem em mim pelos raios do sol, Rubi
solar. Terra muito nobre e clarificada, pela qual você poderá transformar
em ouro o cobre, o ferro, o estanho e o chumbo.
Basilc Valcntin, O Azoto ou o meio defazer o
Ouro oculto dosfilósofos (scc. XV?) iti William Salmon,
Biblioteca dos Filósofos AL]itímicos,
t. III, p. 165-166.

*
* *
JE/u moro nas montanhas e nas planícies; sou o

I Pai antes de ser filho: engendrei minha mãe, e mi­


nha mãe, ou meu pai, me carregou em sua matriz,

... : M
y engendrando-me sem ter necessidade de alimento.
Sou Hermafrodita* e tenho duas naturezas; sou
li 4 vitorioso sobre todos os fortes, e sou vencido pelos

I
' OM ui'- mais fracos e menores; não se encontra no céu nada
de tão belo nem que tenha uma figura tão perfeita.
Nasce de mim um Pássaro admirável, que de
seus ossos, que são meus ossos, se faz um peque­
no ninho, onde, voando sem asas, ele se revivifica
ao morrer, e a Arte ultrapassa as leis da Natureza,
ele no final se transformou em um Rei, que supera
em virtude os outros seis. Eis o verdadeiro Mila­
Andrógino hermético: Liber gre do Céu* terrestre, pela Arte do Sábio.
der heiligen Dreifaltigkeit,
1488. Vinccslas Lavinius dc Moravia,
Tratado do Céu Terrestre (1612), in William Saltnon,
Biblioteca dos Filósofos Alquímicos, t. IV, p. 569.

*
* *
ENIGMAS, Fábulas e PARÁBOLAS
223

terra me outorgou um corpo, e das forças o fogo.


No alto busco minha morada, se sempre em baixo eu moro:
Impregna-me e mc tinge quem prontamente me acorda a humildade.
Minhas sào essas lágrimas, sem que haja causa de dor
Existe um caminho para o ccu, mas me trava o peso do ar:
E aquele que me engendrou, sem mim não saberia nascer de si mesmo.
Fino limo da água, escorrido com uma carga módica.
Impregnado de sol, fluidificado pelo tempo, seco no frio,
Disposto à abundância, ocupo antes todas as terras,
Relatar-lhe-ei os maravilhosos inícios de nossa vida:
Ainda não tinha nascido, nem ocupava então a oca matriz,
Que já, nascido pela geração estabelecida, ninguém me via.
Nascer não posso sem ter matado minha mãe:
A mãe eu degolo, mas sou então feito prisioneiro.
Disso, que já fez minha origem, minha morte carrega o sofrimento.
A vida me é uma morte, e morro se nascer tivesse começado:
Porém mais do que fonte da luz, importa-mc a dor de Lctc:
Assim apenas os manás serão meus pais.
Importante não sou, mas em mim reside a virtude suprema.
Potente é o espírito, ainda que alojado em um corpo frágil,
E por mim a semente não sofre dano, nem o erro o rubor.
Os dois somos Pedras, una no entanto, e a dois jazemos:
Tanto inerte é um, quanto menos indolente é o outro;
E aquele que repousa imóvel não impede o movimento do outro.
Ninguém pode me abrir, se a me suprimir são numerosos.
Mas brilhante eu sou, e às vezes disposto a me tornar branco.
Negro eu prefiro ficar, temendo menos assim os destinos últimos.
Se não tenho nenhuma certeza, nenhuma figura não me é estranha.
Interior é meu brilho, e de uma radiante luz brilhante,
A qual todavia nada mostra a quem não a viu antes.
Mais perseverante fui apenas um único corpo que não era tributário.
Três almas tive, e todas em mim eu possuía.
Duas vieram a faltar, mas da terceira louvo a fidelidade.
Não se pode negar de forma mais clara que ao dizer: Não.
224 Filosofar pelo Fogo

Não se pode mais claramente afirmar que ao dizer: É isso.


Quem esse dom não recebeu não me compreende; ao outro de fato tudo
é dado.
Tu procuras muito e não encontras
Talvez encontrasses, não procurando.

Arcano dos Filósofos por Um Homem muito ilustre


(Arcantan Philosophontm per virum doctissimurn),
in Theatrum Chcmtcuin, r. IV. p. 806-807.

A matéria vil elevada pela Arte de Hermes ao estado real: Lambsprinck,


De Lapide philosophico, séc. XVI.
Enigmas, Fabulas e Parábolas
225

Senhor das florestas reina sobre seu império e, do mais baixo,


Ao lugar supremo se elevou.
Se a fortuna voa, de Orador tu serás feito Cônsul:
Sc ainda voa, de Cônsul tu serás feito Orador.
Compreende o primeiro grau de aparição da verdadeira Tintura.
Ouçam agora uma história maravilhosa,
Pois grandes coisas eu lhes ensinarei:
Como o Rei para além de todo género se eleva,
E compreendam o que diz o nobre Senhor das florestas:
De todos os meus inimigos cu triunfei
E do dragão* venenoso os pés esmaguei,
Sou um Rei eminente, e rico em terras,
Ninguém me é superior pelo nascimento
Ou pelas artes, nem pela natureza
Por nenhuma criatura viva:
Todas as coisas que o homem deseja eu realizo de fato.
Outorgo a potência, uma salvação durável,
Sem contar o ouro, a prata, as pérolas e pedras preciosas
E toda medicina, mínima ou suprema.
Pois antes de vil extração eu era,
Antes de ter nascido e moldado em um lugar tão sublime.
Para que nesse momento seja enfim elevado,
Da natureza e de Deus o favor todos esses bens me concedeu.
Para que do mais baixo seja realizado o melhor
E que a um tão alto ele possa ser transportado
Como ao estado de realeza,
É por isso que Hermes me nomeou o Senhor das florestas.
Lambsprinck, Tratado da Pedrafilosofal
(Traetatulus de Lapide phdosophieo. 1599),
in Mtiseum Hertneíieutn, p. 358-359.
*
* *
226 Filosofar pelo Fogo

Parábolas

m Rei, desejando prevalecer sobre poderosos ri­


vais, fez contra eles preparativos de guerra. No momen­
to de montar a cavalo, ordenou a um de seus soldados
que lhe desse de beber da água de que tanto gostava.
Respondendo ao Rei, este lhe disse: Senhor, qual é
ALLEGORJA. AÍER1 essa água que vós me pedis? A água que te peço, disse
teni Phãtycnhua.. I

A Alegoria Filosófica o rei, é aquela que eu amo mais do que tudo e com a
de Merlim: Saturno é qual fui eleito diante de todos os outros. Esclarecido
o planeta da Morte, por essas palavras, o soldado logo se foi e a trouxe.
veja, aqui ele usa unia Assim que a recebeu, o Rei bebeu e bebeu mais ainda,
túnica preta. até que todos os seus membros dela estivessem pre­
enchidos e suas veias inchadas. Vendo-o então muito
pálido, seus soldados lhe disseram: Senhor, eis o cavalo; montai, por
favor. Ele lhes respondeu: Saibam que não posso montar. Por que não
o podeis?, disseram os soldados. Porque me sinto pesado, respondeu-
lhes, a cabeça me dói, e me parece que todos os meus membros se des­
tacam um a um de mim. Eu lhes ordeno, portanto, que me coloquem em
um quarto claro, que colocarão em um lugar quente, mantido dia e noite
em um calor temperado: assim poderei transpirar e a água que bebi se
secará em mim, e estarei livre. Os soldados então fizeram assim como o
rei lhes havia ordenado. No final do tempo estabelecido, eles abriram a
porta do quarto e o encontraram quase morto. Os parentes logo se pre­
cipitaram em direção dos médicos egípcios e alexandrinos, que convém
honrar mais do que todos os outros e, contando-lhes imediatamente o
que tinha acontecido, levaram-nos para perto do rei. Tendo-o visto, eles
disseram que sem dúvida era possível livrá-lo. E os parentes pergunta­
ram: Quem de vós se encarregará? Nós, responderam os alexandrinos,
se isso vos convier. Isso não nos convém, disseram os egípcios: nós, ao
contrário, queremos assumir essa tarefa, pois somos mais antigos que
vós, ainda que parecendo mais jovens. Os alexandrinos consentiram, e
os médicos escolhidos tomaram o rei, cortaram-no em pequenos peda­
ços e os trituraram, misturaram-nos pouco a pouco com suas medicinas
emolientes. Tendo assim o preparado, eles o depositaram em seu quarto,
em um lugar onde reinava como antes, de dia como de noite, um calor
temperado. Isso feito, eles o retiraram quase morto, e conservando ape­
nas um sopro de vida. Vendo-o nesse estado, os parentes exclamaram:
Infelizmente, o rei está morto! Ele não está morto, replicaram os médi­
cos. Não gritem, pois ele dorme, e seu sono está quase terminando. Então
Enigmas, Fábulas e Parábolas 227

eles retomaram o Rei e o lavaram com uma água suave até que o odor
das medicinas tivesse desaparecido: e lhe administraram novamente a
mesma estranha medicina, e o colocaram no mesmo lugar que antes. E
quando o retiraram, ainda o encontraram experienciando a morte [em
perigo de morte?]. Então os parentes gritaram muito alto: Infelizmen-
te! O Rei está morto. Os médicos, respondendo-lhes, disseram: Nós
o matamos para que ele reapareça neste mundo, melhor e mais forte
depois de sua ressurreição, no dia do Julgamento, do que ele era antes.
Ouvindo isso, os parentes do Rei os tomaram como impostores e, assim
que lhes confiscaram suas medicinas, expulsaram-nos do reino. Depois
disso eles deliberaram entre si, examinando o que deveriam fazer com
esse corpo envenenado e morto. Decidiram enterrá-lo com medo de que
o mau cheiro de sua putrefação espalhasse a pestilência. Ouvindo isso,
os médicos alexandrinos vieram até eles e disseram: Não o enterrem,
pois, se vós desejardes, nós o restituiremos ainda mais são, mais belo
e mais poderoso do que no passado. Então os parentes sorriram, dizen­
do: Vós quereis zombar de nós, como os outros? Sabei que, se vós não
mantiverdes vossas promessas, não saireis vivos de nossas mãos. Assim
considerados como responsáveis, os médicos tomaram o Rei morto c
como os outros o colocaram e o esfregaram, depois o lavaram até que
não restasse nada das medicinas dos outros, enfim o secaram. Em se­
guida tomaram uma parte de sal* amoníaco e duas partes de nitro* ale­
xandrino que misturaram com o pó do morto, depois fizeram uma pasta
com um pouco de óleo de linho e a colocaram em uma câmara cm for­
ma de cruz aberta em sua parte inferior; sob a abertura eles colocaram
outro vaso limpo (mundum) igualmente em forma de cruz e o deixaram
lá por uma hora. Em seguida eles o envolveram com fogo, soprando até
que ele se liquefizesse completamente e descesse até a outra cruz aberta
embaixo. Então, retornando assim da morte à vida, o Rei gritou com
uma voz forte e disse: Onde estão meus inimigos? Que eles saibam que
eu os matarei se não vierem sem demora se submeter a mim. Ouvindo
isso, todos se apresentaram e disseram: Senhor, estamos aqui prontos a
obedecer. E por isso que desde esse momento todos os Reis e poderosos
de outras regiões o honraram e o temeram como antes.
E quando eles desejavam ver algumas de suas maravilhas, coloca­
vam em um vaso em forma de cruz uma onça de mercúrio bem lavado
e projetavam sobre ele quase a grossura de um grão de trigo das unhas,
dos cabelos ou do sangue do Rei; e soprando sobre os carvões, não
os deixavam senão quando se tornassem frios, e encontrassem a pe­
dra que eu sei. Dessa pedra, eles projetavam um pouco sobre Saturno
22S Filosofar pelo Fogo

purificado. cuja forma era logo transformada como eu sei. Então, eles
em seguida colocavam uma parte de dez de Vénus, e tudo se tornava
de uma única cor e excelência. Da mesma forma. Eles tomavam então
essa terceira pedra, misturavam-na com sal e Sol, depois a liquefaziam
e projetavam os ditos sais sobre o leite de cabra. Assim se realizava a
melhor obra de todas.
Irmão, conserva esse tratado e exerce tua vigilância, pois a me­
lhor coisa é impostura entre os insensatos, mas não entre os sábios.
Essa é. com efeito, a via das três jornadas reais, emprestada por aqueles
que. pelo preço de um pouco de trabalho, desejam obter um grande
benefício. Dirijamos nossos louvores ao Criador supremo que inspi­
rou graciosamente seus fiéis a transmutar os acidentes [de matéria] em
substâncias para que aquilo que dormia em potência nas coisas possa
ser conduzido ao ato e reinar sabiamente.
Alegoria de Merlim (Merlini Allegoria), in Jcan-Jacques Mangct,
Bibliotheea Chemiea Curiosa c. II. p. 191-192.
*
* *
1E/ u entrei em uma morada subterrânea e, depois que Elsaham e eu

mesmo consideramos com atenção e em seu conjunto as escaldantes


prisões de Joseph, vi no teto as imagens pintadas de nove águias* com
asas abertas, como se voassem, as patas amplamente estendidas e aber­
tas. Entre as garras de cada uma delas se podia reconhecer um arco
tenso, como aquele que os arqueiros têm o hábito de carregar; e, no
muro da casa, entrando à esquerda e à direita, as imagens de homens em
pé que não poderiam ser mais perfeitas e mais
belas, revestidos com vestimentas muito colo­
ridas, as mãos estendidas para o interior da câ­
Aí, mara como se procurassem atingir uma estátua
situada no interior da casa, no lado próximo da
parede da câmara interior, a partir daqueles que
entram no cômodo, à esquerda e de frente para
o rosto da estátua: o velho estava sentado em
f Senioic Philo-, uma cadeira comparável àquela dos médicos e
JovktLS . prolongada pela estátua, e trazia sobre o peito
Sénior, filósofo: A e nos braços, assim como nas mãos estendidas
geração do Filho da sobre seus joelhos, uma tábua de mármore pa­
Lua é mais forte do que recendo sair da estátua, cujo comprimento era
todo seu parentesco. de um passo, a largura de uma mão, enquanto
Enigmas, Fabulas e ParAbolas 229

os dez dedos de suas mãos estavam dobrados sobre a tábua, como se


a segurassem. Era uma tábua semelhante a um livro aberto para quem
ali entrasse, como se ela indicasse que deveria ser considerada; c na
parte da câmara onde ela estava se encontravam as imagens de coisas
variadas em número infinito, assim como caracteres de escrita bárbara.
A tábua que ele tinha sobre os joelhos estava dividida em seu
meio por uma linha: na parte inferior desta, inclinada para o peito,
era visível a imagem de duas águias, das quais uma tinha as asas cortadas
e a outra não, cada uma das duas segurando em seu bico a cauda da outra,
como se a águia que voava quisesse voar com a outra, e a outra retinha
consigo aquela que voava. Essas duas águias estavam ligadas, homoge­
neizadas e representadas cm uma esfera como se a imagem das duas
fizesse apenas uma, e a cabeça daquela que voava estava perto das
duas esferas; e acima das duas águias,
perto do alto da tábua e próxima dos de­
dos da estátua, encontrava-se a imagem
da Lua brilhante. Sobre a outra parte da
tábua estava outra esfera, voltada para
a águia inferior. Havia, portanto, ali ao
mesmo tempo cinco figurações: as duas
águias naturalmente, a imagem da Lua
naturalmente, e as duas outras esferas.
Na outra metade da mesma forma,
no alto da tábua e inclinada na direção
dos dedos da estátua, encontrava-se a
imagem do Sol emitindo raios e apare­
cendo a imagem de dois em um. E na
outra parte estava outra imagem do Sol
emitindo um único raio descendente. E Hermes Trismegisto sob os traços
essas são, portanto, três: ou seja, dois de um velho Sábio segurando a
astros e o esplendor dos dois em um, e o "Tábua química ” descrita por Sé­
raio do único descendente, dirigido para nior Zadith: Arte química, 1566.
baixo da tábua e envolvendo uma esfera
negra dividida pelo círculo solar: assim eram feitos dois terços, e um
terceiro.
O terceiro em verdade tem a forma da Lua ascendente, e a parte
interior branca sem negror, e a esfera negra a envolve: a forma dessas
constituindo quase a forma dos dois em um e um Sol simples. E essa é a
imagem de um no outro, e eles são também cinco, e fazem no total dez,
segundo o número dessas águias e da terra negra.
230 Filosofar pelo Fogo

Expus todas essas coisas de que nós temos conhecimento apenas


pela graça de Deus - bendito seja seu nome - e eu as reuni em um
poema para que você possa pensar em tudo isso e adquirir a inteligência
delas, e muito mais; e representei as imagens singulares dessa tábua e quais
sào nela, em seu lugar respectivo, as imagens e figuras desse canto, para
que possa apreciar nos capítulos seguintes o que essas figuras significam.
Scnior Zadith, Arte química
(original árabe scc. X; trad. lat. séc. XIII).
in Jcan-Jacqucs MangcC, Bibliotbfca Chcnúca Curiosa
t. II, p. 216-217.

*
* *
1E/ ntenda, Filho, entenda a doutrina do Pai dos Filósofos, Aristóteles,

o Espagírico,* que prescreve recolher a Pedra animal, vegetal e mineral


ali, onde é evidente que se encontra a Pedra animal que, como a serpen­
te, é concebida e engendrada entre duas montanhas, da corrupção da
perfeitíssima natureza humana; e, por causa de um trabalho assíduo, é
recortada e mortificada, encerrada no fosso de uma caverna onde, regi­
da por um fogo moderado, é sustentada e atentivamente vigiada.
Essa serpente é quente, procurando a saída antes do nascimento, que­
rendo destruir o feto e desejando o aborto: ora, ela, em quem indevidamen­
te se misturam de forma extrema calor e frio, é antes de tudo sufocada por
um calor excessivo, e a partir dela nada do que era buscado é um dia reali­
zado. Mas o veneno da serpente desce também através das veias até o vaso
interior onde ela é completamente expurgada: de forma que o aumento da
vida lhe é conferido em razão da sutileza da natureza dessas veias por in­
termédio das quais ela foi reduzida em naturezas bastante perfeitas; e essa
saída constituirá para você a primeira e mais perfeita Tábua.
Em toda geração natural da mais perfeita natureza, o tempo conve­
niente dado é de 40 dias. Portanto, como a partir da conjunção e da revo­
lução dos sete planetas através da esfera dos signos e graças à mutação
dos quatro elementos, todas as coisas contidas pelo círculo sublunar são
dirctamente conhecidas e mudadas, como da mesma forma elas são nessa
obra convertidas pelas exalações, evaporações, ascensões e extrações dos
quatro elementos citados na Unidade de uma quaternidade semelhante a
um PRADO florido, ornado do orvalho do céu, e de flores, cores e odores
das diversas naturezas concebidas a partir dessa terra, graças ao regime
natural dos corpos subcelestes que recolhem na terra a forma, o fruto e
o efeito: e isso por causa do negror da TERRA, da brancura da ÁGUA,
do verdor do AR, do vermelho do FOGO e da mistura da NATUREZA.
Enigmas, Fábulas e Parábolas
231

A razão é que, fora da concepção verdadeira de nossa Serpente, todas as


cores perfeitas aparecerão ao mesmo tempo. E essa Serpente de admirável
aparência começa então a olhar ao seu redor, e a se inchar como um sapo
muito negro que, por causa de sua baixeza e verdadeira liquefação, aspira
a ser libertado de sua tristeza. Eis, portanto, que, levantando-se, abre suas
asas brancas e deseja que elas sejam perfeitamente rasgadas, sem ressentir
seu incómodo. O que é feito quando, por esse regime da cor, seu suor que
é Ar e Água está animado, e a Agua extraída dos sóis com moderação c di­
ficuldade. Por isso, a depuração do suor não é mais renovada sobre a terra;
ou em razão do envio apropriado de algumas coisas
ao interior da terra e da ligação, no vaso, da cabeça
e dos pés que se tomaram muito negros, as coisas
são individual e continuamente vigiadas segundo as 1^1
chaves citadas mais acima, até que a Água adquira
te
v < j K-
31
uma cor pálida, e que vejamos a terra se calcinando.
Então, os que OPERAM de forma sutil e fiel ouvem
a voz da Natureza dizer: O HOMEM QUE É MEU
AvthorinTa,
se unirá agora a mim. bula.jtnuyri$ pkilofoph^
Parece inútil enumerar as perfeições dessa Autor da Tábua do
natureza, pois a teríaca154 confeccionada a partir de Mais Velho dos Filó­
nossa Serpente logo expulsa todas as enfermidades sofos: Recomecemos
curáveis dos corpos imperfeitos. E esse ARCANO,* isso até que ele morra
confiado à discrição do Mestre, é o mais potente que e amoleça.
existe. Ora, assim como dessa Serpente assim puri­
ficada e alimentada (como eu diria metaforicamente e mais amplamente ao
louvor de Deus), pode igualmente ser encontrada no homem que foi feito
à semelhança de Deus, a origem e a medicina superam cm perfeição todos
os minerais e pedras preciosas, já que ele tem em si uma natureza bastante
perfeita, a virtude e a graça.
Bendito seja o Deus glorioso que nos inspirou a conhecer essa medi­
cina graças à semelhança com a Astronomia inferior, em que brilham plc-
namente para nós todas as ciências dos Filósofos, se são regidas conforme
à natureza e não pela força. Pois, se for diferente, só podemos deplorar a
perda daquilo que era buscado.
Tratado do alquimista Aristóleles ao Rei Alexandre
a respeito da Pedra filosofal (T'aetaeus A ristotelis
alehemista ad Alexandrum Magnun de Lapide phtlosophieo),
in Theatrum Chetnicum, t. V. p. 787-788.
*
* *

154. cf. artigo Antídoto do Glossário.


232 Filosoi ar pelo Fogo

rei Artus relata que a nobre e preciosa Mãe Alquimia pediu um


dia que se procurasse uma erva medicinal única em potência entre todas
as ervas, graças a ela seu corpo doente poderia ser cuidado e recobrar
as forças, de forma a ser libertado e curado de sua enfermidade. Pois
naquele tempo o Sol e a Lua a tinham dotado de uma dupla coloração
brilhante de pureza, que desde o alto da cabeça até o peito fazia seu
corpo parecer da cor do ouro, e do peito até as coxas da cor da prata;
enquanto das coxas até os joelhos ele revestia um aspecto hidrópico, e
dos joelhos até a planta dos pés parecia paralisado: por isso dizem da
Mae Alquimia que ela não pode se erguer nem se levantar, a não ser que
esteja muito doente e quase enferma.
yr,.^ ruí- Ela enviou mensageiros
ao sapientíssimo médico Ma­
cer, mestre em matéria de er­
vas e capaz de tratar os corpos
debilitados por suas virtudes,
W para que ele viesse até ela e
lhe trouxesse as ervas mais
naturais, melhores e mais for­
tes, e acrescentasse mais uma
à sua colheita para livrá-la de
sua enfermidade hidrópica e
paralítica. E se por acaso ele
encontrasse o bom remédio e
ela se curasse a partir de en­
Mestre Macer trazendo plantas medicinais para tão, ela certamente irá enri­
a Mãe Alquimia'. Aurora consurgens, séc. XV. quecê-lo e remunerá-lo com
generosidade.
Aceitando seu pedido, Mestre Macer foi até a montanha de Mam-
bré, onde colheu uma quantidade de ervas muito nobres, mais fortes, me­
lhores e mais raras; e, enquanto ele subia o monte, percebeu uma erva de
bela aparência e de cor singular que desenraizou completamente, dizendo
para si mesmo que jamais tinha visto, em seu conhecimento, erva tão
cheirosa e tão curativa. Ele desceu em direção à Mãe Alquimia e foi até
ela apressando-se; e, quando a encontrou e a olhou bem, ele disse:
Minha cara Alquimia, eu posso garantir que jamais vi corpo mais
belo do que o seu, pois sua parte superior é de ouro e o peito de prata,
mas em sua parte inferior jamais vi algo de mais disforme, pois toda a
sua constituição aparece ali hidrópica e paralítica. Muito surpreso, eu
não consigo, portanto, compreender o que acontece para que você seja
Enigmas, Fábulas f. Parábolas
233

tào bem provida do alto da cabeça até as coxas, e infectada das coxas
até as plantas dos pés.
Mãe Alquimia lhe respondeu: Nào se surpreenda que eu tenha um
dia sido assim gratificada pelo Sol até o peito e pela Lua até as coxas,
mas a partir das coxas até os pés infectada e hidrópica; por essa razão
meu corpo está até agora incompleto e imperfeito. Eu o mandei inquirir,
Mestre e pai sobre todas as ervas, para que cuide de mim e que reconfor­
te meus membros tào paralíticos quanto hidrópicos. E caso consiga cui­
dar de mim e me devolver a saúde, eu me comprometo a recompensá-lo
generosamente. Apresente-me então agora suas medicinas e mostre-me
as virtudes de suas ervas para que eu possa novamente andar. Saiba en­
tão que eu o tornarei rico: não apenas você, mas o mundo inteiro.
Mestre Macer lhe disse: Minha cara Alquimia, tudo o que desejar
de mim você obterá e, claro, poderá usar as virtudes de minhas ervas;
espero com efeito que todos os seus membros debilitados sejam assim
devolvidos à saúde. Isso eu o quero e o desejo, pois a vejo em estado de
extrema indigência. Veja então agora, e escolha entre essas ervas muito
nobres a que mais agrada e convém melhor para a fraqueza de sua natu­
reza. E Alquimia, lançando logo seus olhares sobre a erva mais cheirosa
e notável por sua cor, designou-a dizendo: Ó Mestre, percebo certa erva
cheirosa e extremamente resplandecente que me agrada muito, diga-me
qual é sua virtude e onde a encontraste.
E Macer: Ó minha cara Alquimia, eu lhe responderei que recen­
temente, assim que você me enviou suas mensagens e esperou a minha
ajuda, eu prontamente me apresentei aos seus enviados, levantei-me e
subi então à grande montanha de Mambré, onde colhi todas essas er­
vas; e, subindo em um monte mais elevado, vi plantada ali essa erva
que lhe é tão agradável e a extraí com suas raízes por amor a ti, para
conseguir cuidá-la graças a ela. Saiba, com efeito, que essa erva é de
grande virtude, pois é capaz de cuidar indistintamente, ao penetrá-los,
seus membros paralíticos e hidrópicos, e ela é chamada por alguns de
Almíscar aromático.
Como resposta Mãe Alquimia lhe disse: Eis o que é bom para
mim, e eu lhe agradeço, meu verdadeiro e caro Mestre Macer, de ter vin­
do e de ter me trazido essa erva muito nobre e para meu corpo caridosa
e curativa. Explica-me se ela foi batizada por alguém com outro nome.
E Macer: Ela é igualmente nomeada raiz de Mambré, por ter sido
encontrada no Monte Mambré, onde cresce.
A nobre Alquimia disse então com alegria: Ó Mestre de vasta ex­
periência, eu lhe faço desde já o pedido: não demore mais, e envolva
logo energicamente meus membros enfermos com as raízes de Mambré
234 Filosofar pelo Fogo

para que eu experimente sua eficácia quando as sentir em torno do meu


corpo. E de fato eu o enriquecerei ao remunerá-lo, mas com a condição
de que essa mesma raiz me sirva sempre e se tome serva devotada de
meu corpo. Eu lhe rogo, portanto, de adicionar a essa erva outra planta
ainda mais eficaz, que alivia melhor e convém mais às necessidades de
meu corpo: de forma que não preciso mais enviar mensageiro e que nem
você nem eu doravante conheçamos tormento, mas que essa medicina
consagrada a meu uso pessoal me seja uma permanente consoladora.
Mestre Macer realizou a vontade de Mãe Alquimia e logo’a enviou
para escolher a erva mais agradável, mais eficaz e de maior virtude, e
entre as outras belas ervas ela escolheu a melhor, chamada joio. En­
volvida com essas duas outras plantas, Mãe Alquimia ficou curada e
plenamente realizada: por isso, concedeu a Mestre Macer dons reais e o
remunerou o melhor possível, dirigindo-lhe também de diversas formas
agradecimentos por seus bons feitos. Assim foi com alegria e riquezas
que Mestre Macer a deixou.
O Levantar da Aurora (Aurora consurgtns),
in Aurífera Artis quam Chemian vocant,
1.1, p. 212-7.
*
* *
CZ-Íantilena

Ele era um Rei privado de progenitura,


De pura aparência e de nobre figura;
Sanguíneo era de natureza,
E, no entanto, lamentava ter perdido seus direitos:
Eu, chefe dos corpos, estéril e inútil sou,
Já que sem descendência avança minha vida;
Todavia, durante esse tempo eu não recuso,
Das coisas da terra ser nesse mundo o Rei.
Sob as asas do Sol formado
E das baixezas de uma matriz poupado,
Algum defeito original mesmo assim me afeta
Ou certa causa não menos natural.
Assim como em suas sementes vegetam todas as coisas
Que, das entranhas da terra arrancadas,
Animadas e então no tempo desejado aumentadas,
Enigmas, Fábulas e Parábolas
235

São em suas espécies enfim multiplicadas.


Mas muito frígida é minha natureza;
Infecunda é por isso minha constituição
Que, do germe, não pode revelar a virtude.
Constante permanece, contudo, a massa de meu corpo,
Em todos os pontos agradável e muito firme,
E, quando uma criatura do fogo a pesa,
Não assinala a falta de nenhuma parte de meu peso.
De uma casa esférica minha mãe me engendrou,
Mas a quadrangularidade me seria salutar,
E que antes de todas as outras, de espécie pura cu seja,
Pelo direito da nobreza superando os Reis.
Disso ao menos estou certo:
Que se a ajuda das espécies eu não recebo,
Engendrar não poderei; pois certamente o tempo passa,
E com idade avançada estou, e então paralisado.
Da florescente juventude totalmente privado,
Estou pela morte completamente invadido; mas estupefato,
Da boca do Cristo do Céu ouvi
Que um amor desconhecido me permitiria ressuscitar.
No Reino de Deus de outra forma não posso entrar
E me humilhar, até nascer novamente;
No ventre de minha mãe quero portanto retornar,
E na matéria primeira me desagregar.
Para isso sua mãe aceitou carregar o Rei,
E a concebê-lo uma segunda vez se apressou;
Sob seu manto logo ela se escondeu,
Até que mais uma vez ele se encarnasse.
Era admirável vê-lo logo reconstituído,
E para a totalidade naturalmente destinado
Em virtude da união amável com o outro sexo e,
Por asas leves, para além das montanhas transportado.
E ao quarto de pudor vai então a mãe,
E ali se instala em um pequeno leito de honra;
Ali, no meio dos lençóis cheia de candura,
Ela logo mostrou os sinais da futura languidez.
236 Filosofar pelo Fogo

Do corpo moribundo exalava um mau cheiro


Turvando o rosto radiante da mãe;
Das coisas exteriores manifestando a aparência,
E com um selo a porta do quarto se fechava.
Das carnes de um pavão durante esse tempo ela
se alimentava,
E do sangue de um Leão verde se molhava,
Que em uma taça de ouro da Babilónia, Mercúrio
Por um traço de paixão lhe administrava.
Assim impregnada, pesadamente ela jazia,
E durante nove meses certamente se enfraquecia,
Antes que lágrimas espalhadas ela paria
Na brancura o Leão verde que dela fugia.
Muitas cores sobre sua pele se manifestavam
Incesto filosofal: séc. XVI
ou AI 7/ (British Library).
Que ora negra, ora branca e ora vermelha,
De diversas maneiras para o alto se elevavam,
E para o baixo logo repousavam.
Durante 50 noites em seu coração ela definhava e,
Mortificada, nesses inúmeros dias ela arqueava;
Em 30 depois disso o Rei retomou à vida,
Que uma dor familiar de flor acompanhou.
Antes pela grandeza real inchada
O ventre aumentou, mil vezes amplificado,
Para que sobre sua origem ele viesse a se fixar,
No termo perfeito pelos fogos aprovado.
Sem asperezas e plano era o quarto que,
Durante esse tempo, prolongavam as paredes
A mão erigidas: sem o que dali sairia um fruto vão,
E o filho não renasceria são.
Uma estufa acima do leito disposta,
Um e outro pela arte executados,
Era nesse lugar bem temperada
Para que os membros delicados não tomassem frio.
E a abertura do quarto obstruída
A alguém não revelando sua entrada,
E do forno o orifício preparado
Para que nenhum vapor possa voar.
Enigmas, Fabulas e ParAbolas
237

Dos membros corrompidos um odor infecto exalava,


E da massa de carne do rebento decomposto:
Assemelhando-se à Lua sem as joias do Céu,
E em seguida respirando no esplendor do Sol.
Assim como vinha o tempo da mãe mostrou brida
Esse filho que ela uma primeira vez engendrara;
Ele cujo nascimento restaurava dos Reis a dignidade,
E a plena possessão do germe benéfico do Céu.
Quadrangular foi antes o leito da mãe,
Que, os tempos uma vez conhecidos, tornou-se orbicular,
E cuja tampa de forma circular
Brilhava completa com um raio lunar.
Assim, tornou-se redondo o leito quadrangular,
E de um negro muito denso e depois de um branco puro,
Do qual logo se produziu um vermelho muito vermelho
Que recobriu amplamente o cetro dos Reis.
Por isso Deus abriu a porta ao paralisado,
De forma que a Lua brilhante o decorou e,
Depois de ele ter deixado os lugares, o sublimou
E de um Sol ardente dignamente o coroou.
Graças aos quatro Elementos, Deus te conferiu
Instrumentos insignes e luminosos
Entre os quais estava uma Virgem redimida
Que no quinto círculo foi fixada.
Do sangue menstrual logo expurgada,
Era o unguento que dela escorria:
De uma ferida de todas as partes irradiando,
Ornada de uma pedra muito preciosa.
E em seu seio um Leão verde repousava
Que uma águia* continuamente alimentava;
Do flanco do Leão um sangue vermelho escorria
Que, da mão de Mercúrio, a Virgem bebia.
A Virgem oferecia ao Leão seus próprios seios,
De um néctar tão delicioso repletos;
Molhando frequentemente em seu leite a esponja
Com que ela com cuidado lhe limpava a face.
238 Filosofar pelo Fogo

Por um diadema de fogo ela estava coroada,


Mas de seus pés pelo ar privada;
E nas vestimentas esplêndidas constelada,
Para o império do Céu atraída.
Pelos signos, pelas estações e pelos outros planetas envolvida,
As trevas pelas nuvens uma vez detidas,
Cabelos trançados entrelaçando a informidade ela reúne,
Tão agradavelmente iluminada que o Rei para ela se voltou.
De todas as coisas esse Rei tornou-se o vencedor,
E dos corpos doentes a medicina suprema;
De todos os seres deficientes o grande reformador
Ao qual devem obediência o Imperador e o viajante.
Aos prelados e aos Reis ensinando o adorno, ela possa
Aos doentes e inválidos trazer o consolo!
Ninguém sendo insensível a essa medicina
Rejeitando o incómodo de qualquer penúria.
Que Deus então realize o desejo que dele temos,
Em cada espécie pela multiplicação,
Para que nos seios três vezes suaves
Experimentemos o fruto da
regeneração.
Gcorgc Ripley, "Cantilena”
in Opera ornnia Chemica (1649), p. 421 -426.

*
* *

rande Segredo está oculto nes­


ta parábola, que exporei da maneira
mais sucinta que me for possível. É
preciso, portanto, supor que os sete
metais são como um corpo, do qual
o Ouro, como o mais precioso e emi­
nente, é o chefe; a Prata é seu corpo;
o Ferro e o Bronze são as coxas; o
Estanho e o Chumbo, as pernas; os
Figuração cristã da transmutação alqui- pés são a Prata-Viva. Esse corpo
mica (Lapis-Christus): Buch der heiligen está doente, isto é, imperfeito: pois
Dreifaltigkeit, 1488. ainda que a Natureza sempre aspire
Enigmas, Fábulas e Parábolas
239

ao melhor, todavia ela deixou alguns na sua imperfeição, sendo sua causa
a impureza das matrizes, não a matéria, pois ela é a mesma. Ora, esse cor­
po deseja duas ervas para curá-lo. E preciso observar que é uma similitu­
de, tomada pela conveniência das circunstâncias da Matéria dos Filósofos
com a dos planetas; pois assim como os planetas têm a faculdade de ve­
getar, assim também essa Pedra tem a potência de crescer e de aumentar
até o infinito (maneira de dizer) caso ela seja ajudada. Aliás, assim como
com as plantas nós preparamos remédios que curam as doenças do corpo
humano, da mesma maneira essa Pedra cura as doenças dos metais. Ora,
quanto ao fato de existirem duas ervas, é preciso compreender a Matéria
que, sendo de duas substâncias, tem apenas uma mesma raiz considerada
como o Espírito universal, que alguns chamaram Montanha de Satur­
no, e outros, seu Enxofre perfeito, que participando da natureza do Fogo
ocupa o lugar mais alto e mais eminente de todos os seus companheiros,
assim como as montanhas em relação aos vales. Além do mais, podemos
dizer o que essas duas ervas significam: uma, a obra ao branco; a outra,
ao vermelho; a Montanha, que é dupla, o lugar de onde são retiradas, ou
seja, os metais e os fornos. Que observemos sobre esse assunto os Filó­
sofos que em sua maioria consideram os metais e os fornos* como suas
montanhas: quanto aos primeiros, ainda mais que a fermentação de nossa
massa é retirada deles, pois a Natureza se regozija em sua Natureza e ao
se regozijarem [eles] se conjugam, ao se conjugarem [eles] se colorem e
se perfazem, etc. Quanto aos segundos, é neles e com eles que essa rara
operação se perfaz, com a qual os corpos dos metais acima citados sc
curam, e deixam ricos para sempre aquele que os possui [...]. A glória seja
dada ao Trino-um, para sempre, Amém.
David dc Planis Campy, L'Ouverture de 1’Escolle de
Philosophie transmutatoire tnétallique (1633),
tn (Euvres (1646), p. 679-680.
*
* *

Fábulas e alegorias
_/Weu Filho, compreendendo esse pequeno resumo, você poderá fa­
cilmente conciliar os Filósofos, que, com efeito, possuíram a mesma
Sabedoria; só há uma verdade, mas suas vestimentas são diversas: se
um filósofo pomposamente a apresenta paramentada de finas pedrarias
e do mais puro Ouro; o outro, também verídico, cobre-a com o lodo e o
Filosofar pelo Fogo

esterco podre; um terceiro exclama: Ó felizes sábios,


cuja Ciência divina encontra no invisível um ponto
indivisível que somente o milagre da Arte pode
compor.
Esses três evidentemente dilaceram seu
véu e lhe revelam à vista sua amável verda­
de; só dependerá de você seguir seus pre­
ceitos, e por ela facilmente desenvolverá os
hieróglifos e todas as ficções; verá, não sem
espanto, que esse Mar vermelho consente
em voltar atrás, abrindo-lhe uma passagem
para a terra prometida; contemplará suas
serpentes, que, devorando-se, se destruirão
diante de seus olhos assustados; e Mercú­
Monstro contendo a “massa rio, regando essa areia grávida, as fará re­
confusa ” de onde se elevará o produzir para ornar seu bastão, com o qual
Pelicano: Hemiaphroditisches ao bater no elmo que cobre a cabeça tudo se
Sonn und Mondskind, 1752.
confundirá na primeira terra.
No ovo filosófico você poderá desco­
brir esses dois dragões antigos da raça dos deuses; o fogo secreto se
manifestará diante de seus olhos e o Mar glacial logo aparecerá: o ramo
de Ouro estará em seu poder; os lírios e as rosas* você colherá com
suas mãos: tranquilo possuidor do fruto das Hespérides, você poderá
compartilhar a felicidade dos deuses, e beber em sua taça com longos
goles seu néctar, ou sua ambrósia.
Veja, sem espanto, esse horrível dragão,* que não tem outra pas­
tagem do que a de si mesmo; essa fenix* renascendo de suas cinzas, e
esse pelicano* caridoso com seus filhotes; em um mesmo quadro lhe
serão representadas as montanhas famosas do Vulcano, bem como as
diversas obras dos Ciclopes, ali você verá também os impotentes Titãs
vencidos pelo Apoio, filho luminar do Sol.
Penetrando esse caos tenebroso, que formou o Universo, veja de
um Dilúvio horroroso a Terra submergida renascer em pouco tempo
lúcida e purificada. A verdade sempre arrasará a mentira: lembre-se de
que ela está nua e una, e que não pode aparecer senão aos olhos do sá­
bio, pois o vulgar ali está cego.
Reflita sobre a História de Jasão* e a de Cadmus;* considere
Eneias nos Infernos, o belo Ganimedes transportado até os Céus: veja
o Mar agitado do Pai de nossos deuses, que de uma espuma escaldante
engendra sob seu olhar a Deusa Vénus, a mãe dos Amores.
I

Enigmas. Fabulas f. ParAbolas 241

Ah! Lembre-se, cara criança, de nossas Letras sagradas; penetre


o sentido delas, você encontrará a vida: sim, você poderá explicar, com
um contentamento indizível, os esplendorosos quadros do gênio dos
humanos; segure seu lápis com as mãos para formar um ponto, somente
ele pode instruí-lo, uma vez que tudo encerra.
Extasiado de admiração sobrenatural, considere esse ponto, con­
ceba seu centro, veja sua circunferência, julgue a extensão, que une ao
outro; feliz, meu filho, se o Pai das luzes, por um raio de seu Espírito
divino e um fogo radiante de inteligência, aquecendo seu coração, lhe
revela em segredo a multiplicação desse ponto pelo seu centro.
Preceitos e instruções do Pai Abraão ao seu Filho,
in William Salmon. Biblioteca dos Filósofos ALjuímicos
t. IV. p. 560-563.
*
* *

Ikinda que eu dê noções, ao que me parece, bastante fáceis dc com­


preender, e manipulações fáceis de executar, não deixarei de colocar aqui
tudo o que me vier em pensamento para iluminar mais amplamente e forti­
ficar as ideias que devemos formar antes de começar essa obra.
É preciso confessar que a prática na Alquimia é uma parte absolu­
tamente necessária; mas também é preciso que o raciocínio venha cm
auxílio do Artista, para conduzir sua empreitada com perfeição.
É por isso que os Filósofos dizem que Quíron foi o Mestre e o
Preceptor de Jasão* e que, sem as forças de Hércules, ele jamais teria
chegado a Colchis, e não teria levado a Teseu o Velo de Ouro, como
recompensa por seus trabalhos.
Quíron é a prática da resolução dos mistos;* os 12 trabalhos de
Hércules são a verdadeira pintura das operações que o Artista deve em­
pregar na deputação dos princípios essenciais; e enfim Jasão, que é a
teoria e a razão, tendo encontrado os instrumentos da natureza, isto
é, a matéria-prima e a forma de seus regressos,155 entre mais profunda­
mente no labirinto.*
Ora, depois de ter domado os touros, que lançavam fogo e chamas,
ter adormecido a serpente pela fixação da substância mercurial, matado
o Minotauro de dupla natureza, ele enfim encontra o Velo de ouro, que
é o fogo de natureza fixa no centro do labirinto, que ele retira e carrega
consigo como o prémio de sua vitória.

155. Retorno, regressão.


242 Filosofar pelo Fogo

E então ele tem a ciência mais sublime do que a de Medeia, que


ele abandona; e retornando sobre seus passos, conduz por uma luz su­
perior à razão, que caminhava hesitante na via da análise, caminha com
retidão, com certeza para a composição com o Velo de Ouro, que é o
verdadeiro e único agente que dá novamente vida aos mortos, e reúne
todas as partes do corpo despedaçado pela solução.
Todas essas fábulas misteriosas revelam bem a profundidade dos
conhecimentos cabalísticos*, e ao mesmo tempo o erro dos sofistas,
que tiram a água insípida e a terra morta, que são apenas os acidentes
na verdadeira Filosofia, que tem outros licores secretos, e outras terras
além das dos sofistas.
RevfldfÕes cabalísticas de uma
Medicina universal extraída do Vinho,
pelo senhor Gosset (1735), p. 135-137.
*
* *
P rometeu, a quem Júpiter antes tinha enviado Pandora, desconfiou da
armadilha que lhe estendiam e não quis recebê-la como sua companhei­
ra; foi por isso que Júpiter enviou Mercúrio para acorrentar Prometeu
no monte Cáucaso, onde um abutre devia lhe devorar o fígado perpe-
tuamente; e em razão disso ele deu a esse fígado a propriedade de se
regenerar, à medida que o abutre o devorava. Hércules, que tinha sido
intimamente ligado a Prometeu, resolveu socorrer seu amigo e livrá-lo
desse tormento cruel, e para isso lançou tão perfeitamente uma flecha
contra o abutre que o matou, e desacorrentou em seguida seu amigo.
Existem poucos homens nesse século que se apressam a imitar o belo
exemplo de Hércules, matando os abutres que devoram seus amigos
quando eles são infelizes.
Os Filósofos herméticos encontram nessa fábula um símbolo de
sua obra, e dizem que Prometeu representa seu Enxofre animado por
um fogo celeste, uma vez que ele mesmo é um minério desse fogo:
segundo o testemunho de D’Espagnet, o Sol é seu pai e a Lua, sua mãe.
É nessa volatilização com o Mercúrio que ele voa para o céu* dos
Filósofos, onde se unem e trazem esse fogo do céu para a terra, isto é,
que com esse fogo eles impregnam a terra depositada no fundo do vaso
e com ela se coobam.* Ao se fixar com ela, Prometeu se encontra ligado
pelo Mercúrio à rocha, e as partes voláteis que agem incessantemente
sobre essa terra são o abutre ou a águia* que lhe dilaceram o fígado.
Enigmas, Fábulas e Parábolas
243

Hércules, isto é, o Artista, liberta-o desse tormento, matando a águia,


isto é, fixando essas partes voláteis.
Ainda que a explicação dessa fábula trate da obra dos Filósofos,
podemos interpretá-la ainda dizendo que o ócio é tào perigoso em um
estado, sendo o maior de todos os vícios e a fonte de todos os crimes; a
melhor comparação é com a caixa de Pandora, na qual estavam tranca­
dos todos os males que se espalharam pelo Universo e que muitas vezes
tomam suas forças no ócio.
Clande Chcvalicr,
jLrmíhSbdarltin iA incxt Discurso filosófico sobre os três Princípios
'DerlaiumcinesTuacó. (1784). p. 38-42.
iiria

o ua. .
Do sangue do Dragão nasce o Mercúrio dos Filósofos: Ripley Scrowle, 1588.
Geometria divina e visionária: William Blake, Europa, 1794.
9

Sonhos e Visões
Um homem está ali, transparente, no calmo da noite.
Seu corpo está vestido de verde. Suas partes mais ocultas
aparecem aos meus olhos. Sua cabeça altaneira está coberta
por uma preciosa coroa. Uma estrela a sobrepuja, ela reluz
nas trevas. Enquanto cu o interrogo, ele me ordena a
segui-lo.
Daniel Stolcius, ViriJahurn cbymicutn (1624).

Muitas vezes entrelaçados em uma mesma narrativa, visão e so­


nho quebram a continuidade narrativa do texto, como se de repente se
abrisse, graças a eles, a cortina do palco do teatro alquímico. Intro­
duzido pela visão em um universo desconhecido, arrancado ao mundo
diurno pelo sonho, o operador é então capaz de receber o ensinamento
cujo segredo não lhe poderia ter sido dispensado nas condições ordiná­
rias da vida: as chaves do Magistério lhe são estendidas e a composi­
ção da misteriosa Matéria é revelada. Ainda que a visão de certa forma
prolongue a oração visionária cotidianamente praticada pelos alqui­
mistas, ela se impõe, contudo, como uma repentina revelação, indício
de uma possível mutação; e se a imaginação não é um simples sonho, é
porque somente Deus poderia outorgar sua lição.
Ninguém, no entanto, levará consigo essa preciosa colheita sem
que um véu oculte novamente o segredo que dentro dele desde então ca­
minha por vias obscuras, naquilo que é preciso chamar o inconsciente,
do operador ou do leitor. Vendo nas visões de Arisleus e de Zózimo uma
"forma dramatizada” da concepção primitiva da alquimia - projeção
sobre a matéria de conteúdos inconscientes -, Cari Gustav Jung igual­
mente mostrou, à luz de sua própria prática analítica, "que tais visões
também se apresentam nos homens modernos que não têm a mínima

-245-
246 Filosofar pelo Fogo

ideia do simbolismo alquímico ”.156 Assim, a linguagem do inconsciente


tal como se manifestava ontem nas visões e nos sonhos, e nos dias
atuais nos sonhos, seria uma ponte entre psicologia das profundezas e
alquimia.

Visões

composição das águas, o movimento, o crescimento, a retirada e


a restituição da natureza corpórea, a separação do espírito do corpo, e a
fixação do espírito no corpo; as operações que não resultam da adição
de naturezas estrangeiras e vindas de fora, mas que são devidas à natu­
reza própria, única, agindo sobre ela mesma, derivada de uma única es­
pécie, bem como [o emprego] dos minerais endurecidos e solidificados,
e dos extratos líquidos do tecido das plantas; todo esse sistema unifor­
me e policrômico compreende a busca múltipla e infinitamente variada
de todas as coisas, a busca da natureza, subordinada à influência lunar e
à medida do tempo, os quais regram o termo e o crescimento de acordo
com os quais a natureza se transforma.
Ao dizer essas coisas, adormeci; e vi um sacrificador que se man­
tinha em pé diante de mim, no alto de um altar em forma de taça. Esse
altar tinha 15 degraus para subir. O sacerdote ali se mantinha em pé, e
ouvi uma voz do alto que me dizia: “Eu realizei a ação de descer os 15
degraus, caminhando para a escuridão, e a ação de subir os degraus,
indo para a luz. E o sacrificador que me renova, ao rejeitar a natureza
espessa do corpo. Assim consagrado sacerdote pela necessidade, eu me
torno um espírito”.
Tendo ouvido a voz daquele que se mantinha em pé sobre o altar
em forma de taça, eu lhe perguntei quem ele era. E ele, com uma voz
frágil, respondeu-me nestes termos: “Eu sou ION, o sacerdote dos san­
tuários, e sofri uma violência intolerável. Alguém veio precipitadamen­
te de manhã e me violentou, ferindo-me gravemente com sua adaga, e
me desmembrando, de acordo com as regras da combinação. Ele retirou
toda a pele da minha cabeça, com a espada que segurava [na mão]; mis­
turou os ossos com a carne e os queimou com o fogo do tratamento. Foi
assim que aprendi, pela transformação do corpo, a me tornar espírito.
Essa é a violência intolerável [que eu sofri]”. Como ele ainda me segu­
rasse, e que eu o forçasse a me falar, seus olhos se tornaram como san­
gue, e ele vomitou todas as suas carnes. E eu o vi, [transformado em]
156. Cari Gustav Jung, “Les visions de Zosime”, Les racines de la conscience, trad. fr.
Paris, Buchet Chastel, 1971, p. 164.
Sonhos e Visões 247

pequeno homem contrafeito, dilacerar-se a si mesmo com seus próprios


dentes, e se abaixar.
Cheio de medo, despertei e pensei comigo: “Não é essa a com­
posição das águas?”. Fui persuadido de que tinha compreendido bem,
e adormeci novamente. Eu vi o mesmo altar em forma de taça e, na
parte superior, a água fervente e muitas pessoas indo ali sem parar.
E fora do altar não havia ninguém a quem eu pudesse interrogar. Subi
então até o altar, para ver esse espetáculo. E percebi um homenzinho,
um barbeiro embranquecido pelos anos, que me disse: “O que você está
olhando?”. Respondi-lhe que estava surpreso por ver a agitação da água
c a dos homens queimados e vivos. Ele me respondeu nesses termos:
“Esse espetáculo que você vê é a entrada, e a saída, e a mutação”. Per-
guntei-lhe ainda: “Qual mutação?”. E ele me respondeu: “É o lugar da
operação chamada maceração, pois os homens que querem obter a vir­
tude entram aqui e se tornam espíritos, depois de ter deixado o corpo”.
Então lhe disse: “E você é um espírito?”. E ele me respondeu: “Sim, um
espírito e um guardião de espíritos”. Durante nossa entrevista, como a
ebulição aumentasse, e o povo lançasse gritos lamentáveis, vi um ho­
mem de cobre, segurando em sua mão uma tabuleta de chumbo.
Ele me disse as seguintes palavras, olhando a tabuleta: “Prescrevo
a todos os que estão submetidos ao castigo que se acalmem, que cada
um pegue uma tabuleta de chumbo, escreva com sua própria mão, e
mantenha os olhos levantados para o ar e as bocas abertas, até que sua
vindima* esteja desenvolvida”. O ato acompanhou a palavra e o mestre
da casa me disse: “Você contemplou, esticou o pescoço para o alto e viu
o que aconteceu”. Eu lhe respondi o que via, e ele me disse: “Aquele
que você vê é o homem de cobre; é o chefe dos sacrificadores e o sa­
crificado, aquele que vomita suas próprias carnes. A autoridade lhe foi
dada sobre essa água e sobre as pessoas punidas”.
Depois de ter tido essa aparição, despertei novamente. Eu lhe dis­
se: “Qual é a causa dessa visão? Não é então a água branca e amarela
fervente, a água divina?”. E achei que tinha bem compreendido.
Zózimo, “Sobre a virtude”,
in Marcellin Berthelot,
Cokfão dos antigos alquimistas gregos,
t. III. p. 117-119.
*
* *
248 Filosofar pelo Fogo

inha acabado o estudo dos astros, o da superfície da terra, de sua


posição e de seus elementos variados; tinha terminado o estudo da ciên­
cia do direito e das formas da lógica, quando vim ao templo de Serápis,
proclamando que não há outra divindade a não ser Deus, o Criador. Ali
encontrei, na biblioteca do rei, um livro claro, sem expressões obscu­
ras e que tratava da obra sublime cujo conhecimento Deus reservou às
pessoas que possuem a sabedoria. Jamais livro mais admirável e mais
claro foi composto antes do meu e nada de parecido não será composto
em seguida, pois eu adquiri uma ciência certa. Eu trouxe meu livro e o
escondi no santuário do templo de Serápis; e é só com a permissão de
Deus e sobre sua designação especial que alguém poderá tomá-lo.
Enquanto estava orando e pedindo ao meu Criador para afastar de
mim a serpente que se esgueira nos corações dos humanos e a me ajudar
na empreitada que tinha estabelecido de compor meu livro, senti-me
de repente transportado nos ares, indo pela mesma estrada que o sol
e a lua. Vi então em minha mão um pergaminho intitulado: Modzhib
ed-dholnia ou monawwir ed-dhow (Aquele que expulsa as trevas e que
faz resplandecer a claridade). Sobre esse pergaminho estavam traçadas
figuras que representam os sete céus, a imagem dos dois grandes astros
brilhantes e os cinco astros errantes que seguem uma rota oposta. Cada
céu estava envolvido por uma legenda escrita com estrelas.
Depois vi um velho, o mais belo dos homens, sentado em uma
cadeira; ele estava vestido com roupas brancas e segurava na mão um
pedaço de madeira, sobre o qual estava colocado um livro. Diante dele
estavam vasos admiráveis, os mais maravilhosos que eu jamais vi.
Quando perguntei quem era aquele velho, responderam-me: “É Her­
mes Trismegisto, e o livro que está diante dele é um dos que contêm a
explicação dos segredos que ele ocultou dos homens. Guarde bem tudo
o que vê e guarde tudo o que ler ou ouvir, para descrevê-lo aos seus
semelhantes depois de você. Mas não vá além do que lhe for ordenado,
quando quiser lhes explicar as coisas; isso será agir no interesse deles e
se mostrar bondoso com eles.”
O Livro de Crates, in Marcellin Berthelot,
A Química na Idade Média, 1.1, p. 46-47.
*
* *

itágoras diz: Nós já escrevemos tudo sobre como essa preciosa ár­
vore deve ser plantada, com medo que ela morra, e como o fruto, após as
Sonhos e Visões

flores brancas, pode ser aperfeiçoado


e comido, e aquele que comê-lo nào
terá mais fome nem atribulação, mas
será Príncipe e fará parte de nossos Fi­
lósofos, e terá o dom que Deus reser­
va aos seus eleitos e não aos outros, e
terá essa recompensa para o sofrimen­
to de seu espírito, em remuneração e
retribuição de Filosofia. Entretanto,
ainda que tenhamos falado bem de to­
dos, mesmo assim alguns não poderão
chegar ali plantando essa árvore, se
não tiverem uma certeza maior de seu
trabalho. E para isso, para que aqueles
que a plantarão não possam blasfemar
contra todos, nem também ser frustra­
dos em sua intenção, se essa árvore
morrer: eu, Arisleus, quero que você,
que recolheu todas nossas sentenças e
reuniu meus discípulos e eu, fale mais
claramente sobre isso, com generosi­ A Arvore da Filosófica Hermética:
dade e sem desejo para os que vieram Jean Daniel Mylius, Anatomia Auri.
depois, e que nós possamos ser a ra­ Frankfurt, 1628.
zão do bem de nossos sucessores, e
que ninguém possa faltar nessa árvore preciosa. Arisleus responde: De
boa vontade, mas me deem um prazo. E Pitágoras diz: Acabe amanhã;
e no dia seguinte os discípulos e Arisleus estão reunidos, Pitágoras diz:
0 que você viu?
Arisleus responde: Vi a mim e dez de nós, e parecia que girávamos
por todo o Mar, e vi os habitantes do Mar, e dormiam os machos com os
machos, e deles não vinha nenhum fruto; e eles plantavam árvores e não
frutificavam, e do que semeavam nada vinha. Parece que eu lhes disse:
Vós sois várias pessoas, e não há nenhum de vós que seja Filósofo e que
ensine os outros. E eles disseram: O que é um Filósofo? E respondi: É
aquele que conhece as virtudes de todas as coisas criadas, e suas nature­
zas. E eles me disseram: Para que serve essa Ciência? Nós não fazemos
nenhuma conta, se não há lucro. E eu respondi: Se em vós existisse
Filosofia, ou Ciência e Sabedoria, vossos filhos seriam multiplicados,
e vossas árvores cresceriam e não morreriam; e vossos bens seriam au­
mentados, e seríeis Reis, vencendo vossos inimigos. Eles me ouviram.
250 Filosofar pelo Fogo

e incontinênti partiram, e levaram o que eu tinha dito


ao maior e mais importante Príncipe do país, e lhe
narraram os dons que lhes tínhamos dito. E quando

wTwl o Rei os ouviu falar, veio até nós e disse: Quem vos
trouxe a nós? E lhe respondemos: Nosso Mestre,
a cabeça dos Sábios e o fundamento dos Profetas,
i. P1TÁGORAS, que ele nos enviou para vos oferecer
AuxgoriaAris. um dom muito grande. E o Rei perguntou: Onde está
\io . esse dom? E eu disse: A oferta e o dom estão ocultos,
Parábola alegórica de e não descobertos. E ele diz: Dê-os para mim agora,
Arisleus: A concepção senão eu vos matarei. Eu respondi: Nosso Mestre por
e o noivado sefazem nosso intermédio vos envia a Arte de engendrar e de
na decadência e a plantar uma árvore, e aquele que comer do seu fruto
geração das gerações não terá fome. E o Rei me respondeu: Vosso mestre
no ar. me envia um grande dom, se é assim como dizeis. E
eu digo: Nosso Mestre jamais o enviaria nem nós o
revelaríamos por nada, caso nesse país já soubessem algo sobre essa
árvore; pois, se já tivesse sido mencionada, jamais o teríamos feito.
Mas, para que a Ciência não perecesse, e que fosse conhecida em todo
o país e terras, nosso Mestre, que é o Mestre dos Sábios e dos Filósofos
a quem Deus fez mais dons do que a qualquer outro homem depois de
Adão, aqui nos enviou para que a comunicássemos a cada um em um
país. E o rei disse: Diga-me o que é. E eu disse: Senhor Rei, ainda que
sejais Rei, e vosso país bem fértil, todavia vós usais de um mau regime
nesse país, pois vós reunis os machos com os machos, e sabeis que os
machos não engendram: pois toda geração é feita de homem e de mu­
lher. E quando os machos se reúnem com as fêmeas, então Natureza se
regozija em sua natureza. Como então, quando reunis indevidamente as
naturezas com as estranhas naturezas, esperai engendrar algum fruto? E
o Rei disse: O que é conveniente reunir? E eu lhe disse: Traga-me vosso
filho Gabertin e sua irmã Béya. E o Rei me disse: Como tu sabes que o
nome de sua irmã é Béya? Eu creio que tu és mágico. E eu lhe disse: A
Ciência e a Arte de engendrar nos ensinaram que o nome de sua irmã é
Béya. E ainda que ela seja mulher, ela o corrige; pois ela está nele. E o
Rei disse: Por que tu queres tê-la? E eu lhe disse: Pois não se pode fazer
uma verdadeira geração sem ela, e nenhuma árvore pode multiplicar.
Então ele nos enviou a dita irmã, e ela era bela e branca, suave e delica­
da. E eu disse: Eu reunirei Gabertin e Béya. E ele respondeu: O irmão
leva sua irmã, não o marido sua mulher. E eu disse: Assim fez Adão;
é por isso que somos vários filhos, pois Eva era da mesma matéria de
Gabertin, o belo e resplandecente. Mas ele é homem perfeito, e ela é
Sonhos e Visões
251

mulher crua, fria e imperfeita; e creia-me, ó Rei! Se fordes obediente


aos meus mandamentos, e às minhas palavras, vós sereis bem-aventu­
rados. E meus companheiros me diziam: Toma a tarefa, e termina de
dizer a causa pela qual nosso Mestre nos enviou aqui. E respondi: Pelo
casamento de Gabertin e de Béya, nós estaremos fora de tristeza, e nào
de outra forma; pois nào podemos fazer nada até que eles sejam feito
uma natureza. Matéria. E o rei disse: Eu os entregarei. E assim que
Bcya acompanhou seu marido e irmão Gabertin e com ele se deitou, ele
morreu e perdeu sua viva cor, e se tornou morto e pálido, da cor de sua
mulher. E o Rei, vendo isso, ficou muito irado, e disse: Vós sois a causa
da morte de meu filho e querida criança, que era tào bonito e tão brilhan­
te quanto o Sol: como sua face está agora! Eu entregarei todos à morte.
Realmente sempre temi vossa Arte mágica, e vós viestes aqui com má
intenção por meio de vossa arte maldita, eu vos matarei. E ele pegou
todos os dez e nos fechou em uma prisão de uma casa de vidro, sobre a
qual está edificada outra casa, sobre a qual ainda muito sabiamente foi
edificada outra. E assim nós fomos aprisionados em três casas redondas,
bem fechadas e bem firmes. Então eu lhe disse: Ó rei! Por que vos irritais
tanto, e nos fazeis tanto sofrer? Dai-nos ao menos vossa filha, e pode
ser que Deus terá piedade de nós e fará com que vossa filha, com nossa
ajuda em pouco tempo dará o filho que ela mantém morto em seu ventre,
e que ela tudo animou, jovem, forte e poderoso, multiplicando muito sua
linhagem mais do que jamais fizestes. E o Rei disse: Vós quereis ainda
matar minha filha? E eu lhe respondi: Ó Rei! Nào penseis tão mal de
nós, e não nos façais sofrer tantas penas. Tende um pouco de paciência
e dai-nos, por favor, vossa filha. E o rei a deu a nós, e ela permaneceu
conosco na prisão da casa de vidro por 80 dias. E todos nós permanece­
mos nas trevas e escuridão nas ondas do mar, e em um grande calor lento
de verão, e na agitação e elevação do mar, de que jamais tínhamos visto
semelhante. Quando fomos deixados, nós o vimos, PITÁGORAS, em
nosso sonho, e nós vos pedimos para alimentar nossa criança, que foi ali­
mentada, encorajada e animada, e venceu a mulher, que o havia vencido
antes, e eles multiplicaram igual ao filho. Então nós ficamos contentes c
dissemos ao Rei que seu filho já poderia ser visto.
“Visão de Arislcus”, A Assembleia dos Filósofos (séc. X),
in William Salmon. Biblioteca dosfilósofos químicos
t. II, p. 47-55; cf. também Aurífera? Artis quam Chetniam vocant.
1.1, p. 159-162.
*
* *
252 Filosofar pelo Fogo

■p
JL/ sta visão, que aqui descrevo, apareceu à minha vista cansada durante
certa noite em que eu estava ocupado com meus livros.
Vi um Sapo vermelho beber o suco de uvas com tanta avidez e energia
até ficar saturado e então morrer. E do seu corpo envenenado ele lançou um
veneno mortal; a dor que sentiu fez com que todas as partes de seu corpo
começassem a inchar. Ele se aproximou de sua caverna secreta, gotejando
um suor infecto e, com os vapores fedorentos e fumcgantes de seu hálito,
envenenou toda a sua toca.
Desses vapores se formou, após algum tempo e no mesmo lugar,
um humor dourado; humor que escorria do alto da abóbada, manchava a
terra com um orvalho de cor vermelha. Quando seu corpo começou
a perder as forças, o hálito vital lhe faltou. E esse Sapo moribundo
tornou-se então semelhante ao carvão (por causa de sua cor negra); e
permaneceu assim submerso no dilúvio envenenado de suas próprias
veias, e durante o espaço de 80 dias ficou cozinhando.
Quis tentar expulsar esse veneno, e para isso coloquei sua carcaça
sobre um fogo lento, o que produziu uma coisa surpreendente de se
ver, e mais ainda de se contar. Esse Sapo estava penetrado em todas as
partes por cores raras, e quando toda essa diversidade de cores passou,
o branco apareceu. Em seguida se tingiu da cor vermelha, e permaneceu
para sempre nesse estado.
Em seguida fiz uma Medicina com esse veneno assim preparado; des­
se veneno, eu digo, que mata e que cura aquele que se atreve a tomá-lo.
Glória àquele que oferece seus segredos, honra e louvores eternos,
com ações de graças. Assim seja.
Gcorge Riplcy, tn Filosofia natural dc
três antigos Filósofios (1682), n. p.
*
* *
JPrimeiramente, o Sol e a Lua surgiam com todo o firmamento, depois
se imobilizavam: certamente eles tinham uma cor, mas estavam privados
de qualquer brilho. Acima deles tomavam-se igualmente visíveis um globo
da cor da terra. Em seu centro se encontrava uma pequena esfera, mui­
to branca e cintilante como a neve. Enquanto eu contemplava tudo isso,
produziu-se um terrível trovão acompanhado de uma grande rachadura e
de um brilho de fogo, que me fez sentir um imenso terror. Ali também
se encontrava uma enorme nuvem e, quando esta se dissipou, tomava-se
visível acima do Sol, da Lua e de todo o firmamento uma estrela cujo bri­
lho tinha uma claridade tal que nela não conseguiria fixar meu olhar, tan­
to seu vermelho superava o do Sol. Assim que essa estrela surgiu, todo o
r
I
Sonhos e Visões
253

firmamento, o Sol e a Lua se colocaram


em movimento e começaram a dançar. No
intervalo, a estrela em questão lançou seus
raios de fogo, de cima para baixo, através
do firmamento e até muito longe: ora em
grande quantidade, ora somente alguns.
Alguns deles eram apenas levados para a
parte superior do globo, e a pequena es­
fera recebia a menor parte desses raios.
Ora, os raios que entravam na parte supe­
rior do globo colocavam em movimento as
águas para que elas iniciassem seu curso,
e nelas podíamos perceber alguns peixes.*
Os outros raios trabalhavam tão bem que
o grande globo começava a viver, e trazia
árvores e plantas de todos os gêneros, en­ Figura cabalística:
quanto ali passeavam animais e seres hu­ Jean-Jacques Manget,
manos. Alguns dos raios que entravam no Bibliotheca Chcmica Curiosa,
pequeno globo também o colocavam em 1702.
movimento, de forma que, a exemplo da água em um enorme caldeirão,
ele começava a ferver e a espalhar para fora de si um vapor branco, claro
e puro, em forma de estrela, e isso até a raiz das plantas e das árvores. Em
seguida, desse globo sem estrela cintilante começaram a crescer, muito len­
tamente, no entanto, árvores e plantas de todas as espécies que se estendiam
até a circunferência do grande globo; e como eles quase o atingissem, eis
que duas pedras surgiram de uma montanha branca na outra extremidade
do globo. No mesmo tempo, eu via árvores e plantas crescerem continua-
mente, de tal forma que no final a montanha trazia pequenas flores de todas
as espécies e cores que se fechavam novamente e se tomavam botões ala­
ranjados, vermelhos, verdes e brancos. À direita da montanha, os botões
eram pequenos e transparentes; à sua esquerda, na verdade maiores, mas
não transparentes. Durante esse tempo, a estrela superior e a maior con­
tinuavam a emitir quantidade de raios, por cujo benefício as árvores e as
plantas cresciam sempre. No final, uma voz clara e sonora se fazia ouvir,
proclamando: “Louvado seja Deus que criou essa estrela, que sempre será
chamada a estrela da sabedoria e da luz eterna”.
Johannis Grasscus (scc. XVI),
Physica naturalis rotunda Vtsionts chamar cabalística’,
in Theatrum Chanicum, t. VI. p. 344-345.
*
* *
Filosofar pelo Fogo

uça atentamente e jamais esqueça


suas dores, para ter sempre presente aos
seus olhos os desafortunados. Siga-me, e
nada tema. Eu vi então uma nuvem que
saiu do seio da terra, que nos envolveu c
nos transportou pelos ares. Nós percorre­
mos a beira dos mares, onde percebi pe­
quenas corcovas. A noite chegou: o céu
estava muito estrelado; seguíamos a via
láctea, dirigindo-nos para a estrela polar.
Combate contra o Dragão: Um frio extremo se apossou de mim, e pro­
Lambsprink. De Lapide vocou um profundo sono. Reaquecido em
philosophico. séc. XVI seguida pelos raios do sol que surgia no
(ms. austríaco). horizonte, fiquei bem surpreso, ao acor-
dar, dc me encontrar sobre a terra e de ali avistar um templo. A ninfa
me tomou pela mão e me conduziu para sua entrada. Eis que você está,
ela me disse, no lugar em que deve resolver o seguinte problema. Lima
vez que você é bom matemático, reflita bem, pois sem a solução dele
você nada pode.
De um por um, que é apenas um, são feitos três; dos três, dois; e
dos dois, um.157
Você me disse ser conhecedor de alquimia: veja que meios os co­
nhecimentos podem lhe oferecer para abrir apenas a fechadura da porta
desse templo, com o objetivo de ali penetrar até o santuário.
Se vencer sem perigo, ela acrescentou, triunfamos sem glória.
Antes de deixá-lo, quero ainda observar que você só pode combater o
dragão,* que protege interiormente a entrada desse templo, com essa
lança que deve ficar vermelha com a ajuda do fogo vulgar, a fim de
transpassar o corpo do monstro, que você deve combater e penetrar até
seu coração: dragão que foi bem descrito pelos antigos, e sobre o qual
eles tanto falaram.
Pense no orvalho de maio, ele lhe é indispensável como veículo,
e como sendo o princípio de todas as coisas. Lancei meu olhar sobre a
ninfa, e ela se pôs a sorrir. Enfim, você vai começar os trabalhos de Hér­
cules; reúna todas as suas forças, e seja de uma vontade firme. Adeus. A
ninfa me tomou pela mão e a apertou. Você ama a vida?, ela me disse.
Em sua presença eu a quero mais do que nunca, eu lhe respondi. Trate

157. Formulação sensivelmente modificada do famoso axioma de Maria, a Profetisa (ou


Maria, a Judia), cf. Introdução, p. 24.
Sonhos e Visões
255

de não perdê-la por imprudência: esperando o resultado do combate,


eu velarei perto de você e, caso aconteça algo, virei confortá-lo. Adeus.
Ela desapareceu.
Cyliani, Hermes revelado (1832),
p. 16-17 (cd.de 1931).
*
* *

Sonhos

esse sonho tudo parece sublime; o sentido aparente não é indigno


daquele que ele nos oculta; ali a verdade brilha por si mesma com tanto
esplendor que é difícil descobri-la através do véu com o qual se preten­
deu mascará-la.
Eu estava absorvido em um sono muito profundo, quando me pa­
receu ver uma estátua, alta, de cerca de 15 pés, representando um velho
venerável, belo e perfeitamente bem-proporcionado em todas as partes
de seu corpo. Ele tinha longos cabelos prateados ondulados; seus ca­
belos eram de turquesas finas, no meio das quais estavam encastoados
carbúnculos, cujo brilho era tão forte que não podia aguentar a luz.
Seus lábios eram de ouro; seus dentes, de pérolas orientais; e todo o
resto do corpo era feito de um rubi muito brilhante. Com o pé esquerdo
ele tocava um globo terrestre, que parecia sustentá-lo. Tendo o braço
direito levantado e estendido, ele parecia segurar, com a ponta do dedo,
um globo celeste acima da cabeça e, com a mão esquerda, ele segurava
uma chave feita de um enorme diamante bruto.
Esse homem se aproximou de mim e disse: Sou o Gênio dos Sá­
bios, não tenha medo de me seguir. Depois, tomando-me pelos cabelos,
com a mão que segurava essa chave, levantou-me e me fez atravessar
as três regiões do Ar, do Fogo e os Céus de todos os planetas. Ele me
levou ainda para muito além; depois de me ter envolvido em um tur­
bilhão, ele desapareceu, e me encontrei em uma ilha, flutuando sobre
um mar de sangue. Surpreso por estar em um país tão distante, passeei
pelas margens; considerando esse mar com muita atenção, verifiquei
que o sangue de que ele era composto estava vivo e quente. Observei até
mesmo que um vento muito suave, que o agitava sem parar, mantinha
seu calor e excitava nesse mar fervente, que causava em toda a ilha um
movimento quase imperceptível.
256 Fii.o.sofar pelo Fogo

Encantado de admiração por ver essas coisas tão extraordinárias,


cu refletia sobre tantas maravilhas, quando percebi várias pessoas ao
meu lado. Primeiro imaginei que talvez elas quisessem me maltratar,
e deslizei sob um monte de jasmins para me esconder; mas, tendo o
odor me adormecido, elas me encontraram e me pegaram. O mais alto
do grupo, que parecia comandar os outros, me perguntou com um ar
orgulhoso quem me tinha tornado tão temerário a ponto de vir dos Paí­
ses Baixos para esse alto Império. Eu lhe contei de que maneira tinham
me transportado. Então esse homem, mudando de repente o tom, me
disse: Seja bem-vindo, você que foi conduzido aqui por nosso altíssimo
e muito poderoso Gênio [...]. Ele me pediu que o perdoasse, pois não
tinha nenhuma carruagem para me levar até a cidade, da qual estáva­
mos distantes uma légua. Ele me mantinha pelo caminho somente com
a potência e as grandezas de seu Hagacestaur, que ele dizia possuir
sete reinos, tendo escolhido aquele que estava no meio dos outros seis
para estabelecer sua residência comum [...]. Como me advertiram para
observar o aspecto da cidade, da qual ainda estávamos distantes apenas
200 passos, assim que levantei os olhos para vê-la não vi mais nada e
me tornei cego; com isso meu condutor começou a rir, e seus compa­
nheiros fizeram o mesmo.
O ressentimento de ver que esses Senhores se divertiam com meu
acidente me causava ainda mais dor do que meu próprio sofrimento.
Então, apercebendo-se de que suas maneiras não me agradavam, aquele
que sempre tinha tido o cuidado de me entreter consolou-me, dizendo-
me para ter um pouco de paciência e que em um instante eu voltaria a
ver. Então foi buscar uma erva, com a qual esfregou meus olhos, e logo
vi a luz e o brilho dessa magnífica cidade, cujas casas eram feitas do
cristal mais puro que o sol iluminava continuamente; pois nessa ilha
jamais fazia noite. Não quiseram permitir que eu entrasse em nenhuma
dessas casas, mas só ver o que se passava através dos muros que eram
transparentes [...].
Depois de ter visto todas essas curiosidades, informaram-me como
eram feitos os casamentos entre os habitantes dessa ilha. O Hagacestaur,
que tem um perfeito conhecimento dos humores e do temperamento de
todos os seus súditos, desde o maior até o menor, reúne os parentes
mais próximos e coloca uma jovem, pura e limpa, com um bom velho
saudável e vigoroso. Depois ele purga e purifica a moça, lava e limpa o
velho, que apresenta a mão à moça, e ela toma a mão do velho. Então
eles são conduzidos a um desses cômodos, cuja porta é selada com os
mesmos materiais de que o cômodo é feito; e devem permanecer assim
Sonhos f. Visões 257

trancados durante nove meses, e durante esse tempo fazem todos esses
belos móveis que me mostraram. Ao final desse prazo, os dois saem
unidos em um mesmo corpo; e, tendo apenas uma alma, são apenas
um, cuja potência é muito grande sobre a Terra. O Hagacestaur serve-se
deles então para converter todos os maus, que estão cm seus sete reinos.
Bcrnard IcTrévisan. O Sonho verde (scc. XV).
in William Salmon. Biblioteca dos Filósofos Al.jutmtcos,
t. II. p. 437-446.
*
* *
d^erta vez, navegando do Polo Ártico ao Polo Antártico, fui lançado,

pelo desejo de Deus, à beira dc um grande mar. E, ainda que tivesse um


completo conhecimento das correntes e propriedades desse mar, toda­
via ignorava se naquelas regiões eu poderia encontrar esse pequeno pei­
xe nomeado Echeneis, que tantas pessoas de melhor ou pior condição
procuraram até agora com tanto zelo e trabalho. Mas, enquanto obser­
vava na margem as Melosinas nadando aqui e ali com as Ninfas, e como
estivesse cansado dos meus afazeres anteriores e abatido pela variedade
de meus pensamentos, deixei-me adormecer pelo suave murmúrio da
água. E, enquanto eu dormia assim suavemente, surgiu em sonho uma
visão maravilhosa: vejo sair de nosso Mar o velho Netuno, de aparência
venerável e armado com seu tridente; ele, após uma saudação amigável,
levou-me até uma ilha agradável. Essa ilha estava situada ao Sul c era
muito abundante em todas as coisas necessárias para a vida e para as
delícias do homem: os Campos Elíseos, tão cantados por Virgílio, não
seriam nada comparados a ela. Toda a costa da ilha era cercada dc mur­
tas, de ciprestes e de alecrim. Os bosques verdejantes, cobertos de di­
versas cores, regozijavam a visão por sua variedade e inundavam o nariz
com um odor muito suave. As colinas estavam repletas de vinhas, de
oliveiras e de cedros. As florestas só tinham laranjeiras e limoeiros. Os
caminhos públicos sendo plantados e salpicados de um lado e do outro
por uma infinidade de loureiros e romãzeiras, entrelaçados e enlaçados
com muito artificio, forneciam uma sombra agradável aos passantes.
Enfim, tudo o que se pode dizer e desejar no mundo ali se encontrava.
Enquanto passeávamos, Netuno me mostrava nessa ilha duas minas de
Ouro e de Aço, ocultas sob uma rocha: e não muito longe dali me con­
duziu a um bosque, no meio do qual havia um jardim repleto de mil
belas árvores diversas e dignas de ser admiradas. Entre várias dessas
árvores, ele me mostrou sete e cada uma tinha seu nome; e dentre essas
Da união dos dois peixes (alma e espírito) nascerá o Mercúrio duplo:
Lambsprinck, De Lapide philosophico, séc. XVI.

sete eu observei duas principais e mais eminentes do que as outras, das


quais uma tinha um fruto tào claro e tào reluzente quanto o Sol, e as fo­
lhas eram como Ouro; a outra tinha seu fruto tão branco quanto o lírio,
e suas folhas eram como Prata. Netuno nomeava uma a Arvore solar e a
outra, Arvore lunar. Mas, ainda que na medida do possível todas essas
coisas se encontrassem nessa ilha, uma coisa, todavia, ali faltava: só se
podia ter água com grande dificuldade; eram muitos os que se esforça­
vam em conduzir a água de uma fonte por canais, outros que a tiravam
de diversas coisas: mas todo esse esforço era inútil, pois naquele lugar
só se podia obtê-la caso se servisse de algum instrumento como meio;
caso se tivesse um, ela era venenosa, a menos que fosse tirada dos raios do
Sol e da Lua: o que poucas pessoas puderam fazer. E, se alguns tiveram a
sorte bastante favorável para consegui-lo, nunca puderam tirar mais do
que dez partes: pois essa água era tào admirável que superava a neve em
Sonhos e Visões
259

brancura. E creia-me, pois eu a vi e toquei-


a, e ao contemplá-la me encantei muito.
Enquanto essa contemplação ocupava
todos os meus sentidos e já começava a me
cansar, Netuno desmaiou, e em seu lugar
surgiu um grande homem, na testa do qual
estava o nome de Saturno. Este, tomando
um vaso, retirou as dez partes dessa água
e imediatamente pegou o fruto da Arvore
solar e o colocou nessa água; e eu vi esse
fruto se consumir e se resolver nessa água,
como o gelo na água quente. E como lhe
perguntasse: Senhor, vejo aqui uma coisa
maravilhosa, essa água é quase nada e, no
entanto, vejo que o fruto dessa árvore se
consome nela por meio de um suave calor;
para que serve tudo isso? Ele me respon­
deu graciosamente: É verdade, meu filho,
que é uma coisa admirável, mas não se Basile Valentim: Azoto ou o meio
espante, é preciso que isso seja assim, pois dc fazer o Ouro oculto dos
essa água é água da vida, que tem a potên­ filósofos. Paris, 1624.
cia de melhorar os frutos dessa árvore, de
maneira que, doravante, não será mais necessário plantá-la e enxertá-la,
porque ela poderá apenas por seu odor tornar todas as outras seis árvo­
res da mesma natureza que ela. Além do mais, essa água serve de fêmea
a esse fruto, da mesma forma que essa árvore lhe serve de macho, pois
o fruto dessa árvore só pode apodrecer nessa água. E, ainda que esse
fruto seja por si uma coisa preciosa e admirável, todavia, se apodrecer
nessa água, ele engendra por meio dessa putrefação a Salamandra per­
severante ao fogo, cujo sangue é mais precioso do que todos os tesouros
do mundo, e tem a faculdade de tornar férteis as seis árvores que você
vê e de lhes trazer frutos mais doces do que o mel.
Então perguntei-lhe: Senhor, como isso acontece? Eu lhe disse
aqui (ele retomou) que os frutos da Árvore solar são vivos, são doces;
mas enquanto o fruto dessa Arvore solar que neste momento cozinha
nessa água só pode saciar um único fruto, após a cocção ele pode saciar
mil. Depois lhe perguntei: Cozinha-se em fogo alto e durante quanto
tempo? Respondeu-me que essa água tinha um fogo intrínseco, o qual,
quando é ajudado por um calor contínuo, queima três partes de seu cor­
po com o corpo desse fruto; e dele só restará uma pequena parte, que
260 Filosofar pf.lo Fogo

dificilmente poderemos imaginar;


mas a prudente conduta do Mes­
tre cozinha esse fruto por meio de
uma grande virtude durante o es­
paço de sete meses primeiramente
e depois, durante o espaço de dez;
contudo, várias coisas surgem, e
sempre no 509 dia após o começo,
mais ou menos.
Perguntei ainda: Senhor, esse
fruto pode ser cozido em outras
águas? E não se adiciona nada? Ele
Comendo osfrutos da árvore da vida, me respondeu: Só há esta água que
o velhote adquire uma imortaljuven­ seja útil em todo esse país e em toda
tude: Michael Maier, Atalanta fugiens, essa ilha, nenhuma outra além des­
Oppenheim, 1618, emblema IX. sa pode penetrar os poros desse fru­
to; e saiba que a Árvore solar saiu
dessa água, a qual é extraída dos raios do Sol e da Lua, pela força de
nosso Imà. É por isso que juntas elas têm uma tão grande simpatia e
correspondência, e se lhe acrescentamos algo de estrangeiro, ela não
poderia fazer o que faz por si mesma. Portanto, é preciso deixá-la só,
e não lhe acrescentar nada além desse fruto: pois após a cocção é um
fruto imortal, tendo vida e sangue, porque o sangue faz com que todas
as árvores estéreis carreguem o mesmo fruto e de mesma natureza que
o fruto.
Também lhe perguntei: Senhor, essa água pode ser retirada de ou­
tra maneira? E a encontramos em toda parte? Ele me respondeu: Ela
está em todo lugar, e ninguém pode viver sem; ela pode ser obtida por
diversos meios. Mas essa é a melhor, a que se tira pela força de nosso
Aço, que se encontra no ventre àtAries. Disse-lhe então: Qual sua uti­
lidade? Ele respondeu: Antes de seu devido cozimento, é um grande
veneno; mas, depois de um cozimento conveniente, é uma soberana
Medicina: e então ela dá 29 grãos de sangue, e cada grão lhe fornecerá
864 do fruto da Árvore solar. Perguntei-lhe: Não se podem melhorar
mais? Segundo o testemunho da Escritura filosófica (ele diz), ele pode
ser exaltado primeiramente até dez, depois até cem, depois até mil, a 10
mil, e assim por diante. Insisti: Senhor, diga-me se muitos conhecem
essa água, e se ela tem um nome próprio? Ele gritou bem alto: Poucas
pessoas a conheceram, mas todos a viram, todos a veem e a amam; ela
não tem apenas um nome, mas vários e diversos. Mas seu verdadeiro
Sonhos e Visões
261

nome próprio é a Agua de nosso mar, a Agua de vida que não molha as
mãos. Perguntei-lhe ainda: Outras pessoas além dos Filósofos a usam
para outra coisa? Toda criatura (ele diz) a usa, mas invisivelmente. Nasce
alguma coisa nessa água?, eu lhe disse. Dela se fazem todas as coisas que
vivem nela, disse-me, mas não há nada propriamente nela, a não ser
que é uma coisa que se mistura com todas as coisas do mundo. Pcrgun-
tei-lhc: Ela é útil no fruto dessa árvore? Ele me diz: Sem esse fruto ela
nào c útil para essa obra: pois ela só se aperfeiçoa com esse único fruto
dessa Árvore solar.
E então eu comecei a pedir: Senhor, por favor, nomeie-a para mim
tão clara e abertamente que eu não possa duvidar. Mas ele, aumentando
sua voz, gritou tão forte que me despertou: e por essa razão nào pude
lhe perguntar nada mais e que ele não desejou mais responder, nem eu
também não posso lhe dizer mais. Contente-se com o que lhe disse, e
creia que não é possível falar mais claramente. Pois, se você não com­
preende o que declarei, jamais entenderá os livros dos outros Filósofos.
O Cosmopolita. Nova I.uz ALjuíniúa
(Novutti Lumen chymicutn, 1609), in Jean-Jacqties Manget,
Bibliothaa Chanica Curiosa c. II, p. 474-475.
*
* *
^.L^endo adormecido de um profundo sono, por volta da meia-noite

me pareceu ver o Senhor que tinha descido do céu envolto por uma
chama mil vezes mais pura do que aquela que vemos sair das coisas que
queimamos. Nove anjos o acompanhavam e estavam de joelhos diante
dele, rogando para que quisesse aperfeiçoar e realizar o número, assim
como ele tinha tido a misericórdia de querer lhes fazer esperar. O Se­
nhor lhes respondeu: “Vós pedis uma coisa que vos causará dor”; e eles
responderam: “Não importa, Senhor, vossa glória será ainda maior”, e
se prosternaram diante do Senhor, de cujo interior saiu um vapor diluí­
do que se condensou em uma água muito tenebrosa sobre a qual lançou
seu olhar, e no mesmo instante saiu dessa água uma grande luz que se
dividiu e tomou a forma de quatro homens carregando cada um uma co­
roa; eles se olharam por um momento e se abraçaram com tanta força,
que, mesmo tendo apenas como armas seus membros, se entremataram
e permaneceram mortos no local, mantendo-se tão estreitamente liga­
dos após sua morte que não desuniram mais. Então Deus lançou sobre
eles um pouco de fogo e de água e deles saíram três novos homens
armados, mais fortes e mais robustos do que os primeiros, que, assim
262 Filosofar pelo Fogo

que tomaram vida, começaram uma furiosa guerra e se entremataram;


do sangue que escorria desses três foram produzidos um homem c uma
mulher que tiveram um forte amor um pelo outro e foram colocados em
um leito de amizade no qual, de tanto se abraçarem e se acariciarem,
se sufocaram e apodreceram de tal forma que o mau odor me causava
enjoo. Deus fez com que esses cadáveres fossem jogados em um fogo
suave em que foram depurados, e deles restou uma terra vermelha com
a qual ele fez e formou uma espécie de homem que lhe assemelhava; no
mesmo instante essa forma de homem foi transformada em um furioso
dragão* que, dirigindo-se a mim, quis me devorar, mas, como me lancei
entre os braços do Senhor, Ele me salvou e disse: “Não tenhas medo
e confia em mim e me serve bem, eu te tirarei de todos os perigos”, e
ordenou a esse dragão que retomasse o ser que lhe dera ao formá-lo,
e ele o fez; e Deus, tendo-o regado com uma água muito límpida que
misturou com a terra vermelha, beijou-o e o levou para seu trono e o
nomeou Adão. Depois disso ele me disse: “Tu saíste dele e assim criei o
mundo” e, dirigindo-se aos Anjos, lhes disse: “Eis o mundo realizado”,
e os Anjos e o homem o louvaram e fizeram tanto barulho cantando os
louvores do Senhor que despertei e fiquei maravilhado com o que tinha
visto, que ainda não posso me impedir de crer que esse sonho não seja
verdade.
CartasjUosóJicas (scc. XVII), m.s. n.p.

*
•k *

á dois dias, ao dormir, pensei ter visto Vénus nos braços de Mar­
te. Vulcano, infelizmente para eles, surpreendeu-os , no exato instante
em que estavam no auge de suas carícias; e para se vingar dessa afronta
atravessou o peito dos dois com um forte golpe de punhal. Logo o san­
gue escorreu de suas veias e foi dar no mar, que acabou tingido com
sua cor. Netuno, surpreso com tão abrupta mudança, e para saber sua
causa, partiu naquele mesmo instante; e como ele percorria a margem,
lançou seu olhar para o lugar onde Vénus e Marte tinham permaneci­
do, e os viu estendidos mortos sobre a areia ainda ensanguentada. Esse
triste espetáculo o tocou sensivelmente, mas, vendo-se na impotência
para poder remediar a situação, ele bruscamente lançou com cólera seu
Tridente ao mar, na própria presença de Vulcano. Esse golpe, assim
lançado com tanta precipitação e força, remexeu tanto com as ondas do
mar que este espumou por todos os lados; e para marcar ainda mais sua
perturbação, ele encheu o ar com vapores malignos que o infectaram
Sonhos e Visões
263

com seu mau odor, e que em seguida formaram uma nuvem espessa
tão desagradável que Júpiter ficou indignado. Vulcano apercebeu-se
disso e, com medo de que Júpiter não o acusasse de ter causado essa
desordem, retirou-se sutilmente para junto de Mercúrio e lhe pediu, se
fosse possível, acalmar logo essa tempestade. Solícito, Mercúrio logo
se levantou sem hesitação no ar e, passando através dessa nuvem, co­
meçou pouco a pouco a dissipá-la: o mar logo se tornou mais calmo, e,
de sanguinolento que estava, surgiu sob um belo véu branco tão claro
quanto a mais bela e a mais pura água de rocha. Então Saturno, que
acabara de chegar, logo se dirigiu a Mercúrio e lhe disse admiravelmente
que na verdade ele fizera muito em ter assim purificado o ar, mas que lhe
suplicava de querer em seu favor desviar de cima do mar esse belo véu
branco que o ocultava, para que assim todos que ali estavam reunidos
pudessem vê-lo sem impedimento e até mesmo se banharem se assim
lhes parecesse adequado. Mercúrio assim o fez com toda diligência e o
bom sucesso que Saturno esperava. Todavia Ceres, que se amedrontara
de não ver mais frutos sobre a terra, não demonstrou estar de acordo; é
por isso que Mercúrio tentou consolá-la e, para consegui-lo, mostrou-
lhe no mar uma infinidade de flores que um suave Zcfir ali tinha seme­
ado e lhe garantiu que, não obstante isso, ainda restava o suficiente nas
árvores para que elas carregassem frutos em abundância. Ainda que
Ceres estivesse bastante persuadida da boa amizade de Mercúrio, tanto
quanto de sua sinceridade, no entanto não acreditou muito em suas pa­
lavras e porque ela conhecia o prazer que ele tinha em fazer mensagens,
suplicou-lhe que no momento oportuno, e para acabar com a dor que
a atormentava, ele mesmo fosse então colher os mais belos e melhores
frutos, para ser apresentados em um festim que ela decidira fazer aos
deuses e às deusas. Mercúrio logo tomou o bastão de Caduceu* e se
pôs a caminho; mas sua viagem, ainda que longa, não teria tido todo
o sucesso que Ceres esperava dela se Apoio não o tivesse ajudado em
sua empreitada. Em seu retorno, Ceres pegou o fruto e, começando por
Diana, apresentou-o a todos os deuses e deusas, e colocou-o enfim na
boca de Marte e de Vénus, que no mesmo instante ressuscitaram. Fiquei
surpreso ao despertar em sobressalto e, com medo de esquecer um so­
nho tào misterioso, logo me levantei para escrever e partilhar com os
curiosos.
“Sonho filosófico”,
in O Túmulo da pobreza
pelo Filósofo desconhecido (1672), n. p.
264 Filosofar pelo Fogo

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Raphael Sanzio, O Sonho do cavaleiro, 1504 (Londres, National Gallery).


Sonhos f. Visões 265

Cadmus-Mercúrio secundado por Vulcano faz girar a roda da Obra:


Specuium veritatis, séc. XVII.
10

Eleaaentos e Princípios
Efetua primeiro a rotação de teus Elementos, c converte
antes todas as coisas da Terra cm Água; extrai cm seguida
o Ar de tua Água, pela levigação,* c reduz teu Ar cm Fogo,
tu serás entào mestre de todo o nosso Magistério.

Gcorge RJplcy, O Livro das 12 Portas da Alquimia (1591), iti


Jean-Jacqucs Manget,
Btbliothaa Cbcntica Curiosa t. II, p. 278.

Platão já afirmava, no Ti meu, muitas vezes invocado pelos alqui­


mistas: “Os Elementos, ao que parece, se transmitem em círculo o nas­
cimento uns dos outros” (49c). Nenhum dos quatro Elementos (Agua,
Ar, Terra, Fogo) é, portanto, nesse sentido, um corpo simples e insecá-
vel, como outrora outrosfilósofos pensaram sobre o átomo (Demócrito,
Leucipo). Identificável em razão da relativa estabilidade de uma quali­
dade dominante, cada um dos Elementos contém de fato os três outros,
segundo proporções suficientemente variáveis para tornar possível sua
mútua transformação. Existe, no entanto, uma distância entre o “circulo ”
ao qualfaz alusão Platão e a mudança qualitativa de “natureza ” nome­
ada pelos alquimistas transmutação.
Da rotação ininterrupta dos Elementos e de sua conversão recí­
proca são de fato oriundos “os dois Princípios universais da natureza
sensível ” (Willian Salmon), chamados a representar um para o outro o
papel do macho (Enxofre) e da fêmea (Mercúrio). Antes unidos na morte
(Nigredo), eles o serão em seguida em um corpo imputrescível (Rebis,
Pedra) cuja realização confirma a veracidade do postulado (unidade
da matéria) sobre o qual repousa a Arte alquímica. Considerados como
“os ingredientes que compõem o magistério ” (Dom Pernety), esses dois
Princípios no fundo formam apenas um: e sua união permaneceria esté­
ril sem o intermédio de um terceiro (Sal), dotando de um corpo - terroso
- 266 -
Elementos e Princípios 267

primeiramente, depois ígneo - o processo de extração e de purificação


cpie sua própria exaltação ameaça de volatização.
■k

* *

Rotação e circulação dos elementos

ra, os filósofos lhe dizem: Tu nos transportaste, ó


Cleópatra, pelo que nos disseste. Bem-aventurado o seio
que te carregou!
Cleópatra por sua vez lhes disse: E dos corpos
celestes e dos divinos mistérios que eu vos falei. De
fato, por sua transformação e sua alteração, eles trans-
mutam as naturezas, eles lhes fazem revestir uma gló­ Cleópatra, rainha do
ria desconhecida e suprema que antes elas não tinham. Egito: O Divino está
E o Sábio lhe disse: Explica-nos ainda isso, ó oculto para o povo
Cleópatra. Por que escrevemos: “E o mistério do tur­ segundo a Sabedoria
bilhão; os corpos são a arte, semelhante à rotação de do Senhor.
uma roda. Não se pode comparar o mistério ao movi­
mento da roda, e ao polo superior do mundo, em torno do qual giram
os habitantes, as torres e os campos gloriosos”?
Cleópatra disse: Os filósofos puseram [a arte] nesse patamar conve­
niente, em que foi colocado pelo autor e o mestre de todas as coisas. Eis
que eu vos digo que o polo girará, partindo dos quatro elementos, e que
não parará de forma alguma. Essas coisas foram fabricadas na terra da
Etiópia,* nosso país, onde são tomadas as plantas, as pedras e os corpos
divinos: aquele que ali os colocou é um Deus, e não um homem. Em cada
um [deles] o demiurgo fez germinar a potência; um [deles] brotou e o
outro não brotou; um [é] seco, o outro úmido; um é suscetível de reunir, o
outro de separar; um domina, o outro é subordinado; em seus encontros
mútuos, eles se dominam uns aos outros, e um se incorpora ao outro e
comunica o brilho ao outro. Eles se tornam uma natureza única, perse­
guindo e dominando todas as naturezas. A própria unidade triunfa de
toda natureza ígnea e terrestre e transforma toda a sua potência. Eis que
eu vos exponho o termo da obra: quando ela está terminada, obtém-se
uma preparação mortífera, que percorre o corpo. Assim como percorre
seu próprio corpo, ela penetra nos outros corpos. De fato, pela decom­
posição e ação do calor, obtém-se uma preparação que circula sem obs­
táculo por toda espécie de corpo. Assim foi realizada a arte da Filosofia.
Livro de Comarius, in Marcellin Barchclot.
Coleção dos antigos alquimistas gregos, t. UI. p. 286-287.
268 Filosofar pelo Fogo

odo corpo sendo, segundo os Filósofos, ou elementar ou engendra­


do a partir dos Elementos, sua geração por nosso magistério é no mais
alto ponto necessário: ela só pode consistirem uma extração a partir das
quatro naturezas que são os quatro Elementos. Esses Elementos na ver­
dade são quatro: ar, água, fogo e terra, sem os quais
toda geração é privada de efeito. Dois dos Elementos
são da natureza da pedra, e dois da natureza da água:
os sólidos certamente são o fogo e a terra; os líquidos
na verdade são o ar e a água. Por isso dois deles estão
em relação de amizade e dois, de inimizade: a terra e
a água são amigas, o fogo e a água inimigos.
Faça então a paz entre os inimigos, e você obte­
rá a totalidade do magistério. Mas você só pode fazer
Arisióteles, filósofo a paz entre os Elementos por meio de uma conversão
da Alquimia: A vivi­ recíproca, que por sua vez também pode ser conver­
ficação e a nutrição tida. É por isso que, no dizer do Filósofo, todos os
dos Filósofos são os Elementos têm uma aptidão natural a se transformar
primeiros passos da mutuamente. E, de fato, o fogo mudou em água, e a
Obra filosófica do água, em terra, e inversamente.
Sábio. Converta, portanto, os Elementos e encontrará
aquilo que procura: nossa composição de fato, corno
diz Morian, é uma mutação das naturezas, e da mescla íntima do quente
que é a sua com o frio, do úmido com o seco. Pois a frieza da água e o
calor do fogo, a umidade do ar e a secura da terra, reciprocamente unidas
e vivendo em harmonia, constituem a coisa íntegra, a saber, primeira e re-
engendrada. É que, com efeito, os Elementos, como diz o Filósofo, foram
circularmente convertidos: por isso eles se corromperam mutuamente e
engendraram; mas isso não poderia ser levado à perfeição sem operação
e sem regime.
Considere então que as maneiras pelas quais realizar as operações
são em número de quatro: a dissolução da pedra em uma água espiritual;
a separação da pedra em um estado espiritual; a redução da pedra em
uma terra natural, e a deposição da pedra em um corpo pedroso.
A dissolução da pedra é feita por contrição; sua separação, por
destilação; sua redução, por incorporação; e sua deposição, por fixação.
Pseudo-Aristótelcs, Pequeno Tratado relativo prática
da Pedra (Tractatulus de Practica Laptdis philosophict),
in Jean-Jacqucs Mangct,
Bibliolheca Chemica Curiosa t. I, p. 659.
Elementos f. Princípios
269

Bela diz: Você aconselhou bem os discípulos. Mas eu lhe digo que
Deus criou o mundo de quatro Elementos, e o Sol é seu Mestre c Se­
nhor; mas vemos apenas dois: a Terra e a Água. E existe um Ar preso
na Água, e outro na Terra, e o Ar é tirado do Fogo, que mantém a Terra
no Ar, e a Terra mantém a Água e o Fogo acima do Ár. A Terra e o Fogo
são amigos; o Ar e a Água são amigos; o Fogo é amigo da Água pelo
Ar. e o Ar é amigo da Terra pela Água; e a Água mantém o Ar acima c
abaixo, e a Terra mantém o Ar, e o Ar também mantém a Terra. O Fogo
é mantido na Terra, e o Ar o abre e o prende na Água; e a Água o abre
para o Ar, e o coloca no Ar, que está preso na Terra, pelo Fogo que ali
também está preso. O Ar abre, e o Fogo fecha a Água no Ar, e o Ar abre
o Fogo na Terra. Bendito seja aquele que ouve minhas palavras; pois
jamais homem falou mais claramente.
A Assembleia dos l ilósofos
(Turba Philosopborum, séc. XII), in William Salmon.
Bibhoteea dos Filósofos Al<]uitnieos, t. I, p. 24.
*
* *
\/eja, mestre, o que você faz, você senhor e tirano de minha alma,
ao me distanciar da grandeza da filosofia e me dire­
cionar para a arte que no fogo e nos fornos consis­
te, ao me engajar, para permutar as matérias e para
transformar as naturezas das coisas? Pois ainda que
tudo isso convide a considerar que essa ciência tende
principalmente para a filosofia natural, a maior parte
a considerara mística e oculta e nào estava disposta
a colocá-la entre as ciências racionais. Na realidade, | AUchael Psellvs
eu mesmo sou há muito tempo admirador dessa ope­
ração; e como ela não reteve meu espírito pelo uso Michel Psellus,
das palavras, em consequência eu a julguei extraor­ filósofo: Alma e Na­
dinária, tendo a bem dizer me engajado nessa tarefa tureza fazem descer
na companhia de certo Euristeus, a fim de transferir, Deus dos céus.
graças ao movimento giratório das coisas, dos ouros
de má qualidade ou o chumbo em ouro ou em estanho, ou em qualquer
outra das coisas naturais comumente realizadas nessa obra. Por isso me
empenhei antes em descrever a função dessa arte, buscando as causas
das coisas que por meio dela são feitas, para que se encontrasse um mo­
tivo conforme a razão dos fatos que a partir daí se produzem, para que
270 Filosoi-ar pelo Fogo

cu possa me colocar do lado da causa da obra e, sem nada omitir, propor


uma exposição fiel, reconhecendo pelo que elas valem as realizações
que sào as suas.
Então, assim refletindo comigo mesmo sem deixar de observar cui­
dadosamente em volta, e de uma atividade à outra prosseguindo em mi­
nha busca, cheguei a me interessar pela própria natureza daquilo que se
nomeia Elementos, a partir dos quais as outras coisas perduram, e no que
elas se resolvem uma vez dissolvidas. Adquiri de fato a certeza - c não
sem sérias razões - de que as coisas que se mantêm a partir dos Elemen­
tos foram igualmente moldadas a partir deles; e que, na verdade, a partir
de então foram também adquiridas as simpatias de todas as coisas com­
postas do temperamento dos quatro Elementos: algumas receberam com
razão um nome da terra, pois são terrestres e mais grosseiras; outras se
apropriam de uma classificação vinda do ar, sendo verdadeiramente mais
leves e muito mais espirituais; outras participam sem dúvida da natureza
do fogo, sendo mais quentes e mais brilhantes; outras, enfim, tendo sido
produzidas a partir da natureza úmida, são por isso viscosas e escorre­
gadias. Algumas outras ainda tiveram o costume de guardar, endurecer
e irritar a superfície das coisas: estas são, sem dúvida, as obras da água
do mar que, com efeito, de todas as águas são as que detêm muito mais
a natureza desse Elemento. Pois os rios não engendram os mares, como
muitos acreditam, mas preenchidos por vapores intermediários são logo
engrossados por eles [os mares] e a partir daí começam a confluir. Se,
portanto, uma coisa de natureza mais grosseira torna-se úmida, como era
apenas terra, ela desaparece na água; e se qualquer outra coisa foi reco­
nhecida por ser muito mais tênue, mais rara ou mais densa, o que nela é
fogo se encontra transformado em ar, ou o ar na água, ou a água em ter­
ra. Portanto, eu me perguntei se uma mutação dessa espécie poderia ser
descoberta nesses Elementos primordiais; estimava na verdade que, se o
fogo se transformasse em ar, o ar em água e a água em terra, e se a mes­
ma transformação se efetuasse em sentido inverso, realidades superiores
para as inferiores, nada de novo se produziria, ainda que uma quantidade
de coisas terrestres se tornasse mais aquosa, e até mesmo as aéreas e as
ígneas. Assim, portanto, como eu acedia à Filosofia natural e dava meu
consentimento aos mais prestigiados Filósofos, descobri que esses Ele­
mentos se geravam mutuamente e que um originava o outro: com efeito,
as coisas criadas suportam e agem reciprocamente, e suas densidades e
raridades respectivas permutam suas naturezas. Pois a água congelada
se petrifica em cristal; o que sob uma forma menor se produz também
quando a água dissolvida em vapor se torna ar que, aquecido, se consome
ao contrário em fogo. Da mesma forma, o fogo resfriado é mudado na
Elementos e Princípios 271

natureza do ar que, densificado, forma as nuvens e se toma água celeste


que, por ser mais dura na parte de cima, se transforma em neve ou em
chuva, e certamente em cristal no plano inferior.
Portanto, eu mesmo vi sem perder muito tempo - de fato, nessa
época eu era um efcbo um pouco mais maduro do que antes, e iniciado
nos mistérios da Filosofia - a raiz de um carvalho na medida em que ela
me pareceu muito exatamente transformada em pedra; e isso era admi­
rável de se ver, pois participava das duas naturezas: ela era de fato dife­
rente dos tumores fibrosos, de acordo com a natureza das árvores, uma
vez que estava oculta sob um envelope duro, em parte verdadeiramente
rugoso, em parte aumentado nos poros também umbilicados. Toda a
sua massa era sólida, e semelhante a uma verdadeira pedra. Isso, naque­
le momento, decerto me deixou absolutamente contemplativo, mas na
verdade eu me afastei um pouco depois e, avançando mais nobremente
sob a conduta da Filosofia, observei que essa terra tinha sido atingida
pelo raio: não verdadeiramente escaldante e destruidor, mas muito sua­
ve e mais rápido que, aproximando-se com frequência do carvalho em
suas passagens e aumentando toda umidade, reuniu assim as fibras e
as transformou nessa raridade material dura comparável à da pedra.

Toda composição e geração éfeita a partir dos quatro Elementos:


Johann Daniel Mylius, Philosophia reformata, Frankfurt, 1622.
272 Filosofar pelo Fogo

Estrabão, o geógrafo, de fato relata que determinada natureza muito fria


da água de fonte faz nascer em raras naturezas uma dureza dessa espé­
cie. O que é muito mais admirável do que as mutações efetuadas a partir
do fogo, pois foi dito com frequência desde o início que as mutações
das matérias sofrem certa alteração natural, e não por causa de algum
encantamento ou milagre ou de qualquer outro segredo que exista; mas
também por isso o fato deve ser admirado. Nessa arte da transmutação
eu avanço e progrido desde então.
Michcl Psclkis, Carta a Xiphilinum,
in Da arte e a maneira de conjeecionar o Ouro
(De Auri eonfieiendi ratione, scc. XI), p. 66- 69.

*
* *
(Saiba então que nossa Ciência consiste no conhecimento dos quatro

Elementos, cujas qualidades reciprocamente se transformaram umas nas


outras; a esse respeito os Filósofos compartilham um sentimento seme­
lhante. E saiba ainda que em todas as coisas, criadas sob o Céu, existem
quatro Elementos, não visíveis a olho nu, mas que de fato existem; assim
sendo, sob as cores de uma doutrina elementar, os Filósofos ensinaram sua
Ciência, que parece compreender por quatro Elementos várias coisas como
sangue, pelos, cabelos, ovos, urinas e outras matérias que eu não levo em
consideração quando consegui compreender seus escritos.
Tendo então reconhecido a verdadeira Matéria, ou Esperma e Se­
mente de todos os metais, e o que é o Mercúrio cozido e congelado no
ventre da Terra, pelo calor do Enxofre, que o cozinha por sua própria
virtude, e pela Multiplicação do qual diferentes metais são produzidos e
procriados na Terra, pois sua Semente ou Matéria é única e semelhante.
Todavia esses diversos metais são diferentes por uma ação acidental, a
saber, pelo cozimento e alimentação maiores ou menores, mais ou me­
nos temperado, mais ou menos escaldante, o que os Filósofos afirmam
de comum acordo. Pois é certo que todas as coisas são aquilo em que
elas se decompõem por sua dissolução; como se pode ver no gelo,
que, sendo formado de Água, se decompõe em Água pelo calor. Se é
evidente que o gelo, sendo Água, se converteu em Água, assim também
os metais, que em seus Princípios foram Mercúrio, também se conver­
tem em Mercúrio, o que demonstrarei nesse discurso.
Isso suposto, resolvemos facilmente o argumento de Aristóteles, que
diz no livro 4 das Meteorológicas.^ saibam todos os Artistas que as
158. cf. nota da presente obra, p. 148-149.
Elementos e Princípios
273

espécies de metais não podem se transmutar, a não ser que sejam reduzidos
em sua primeira Matéria; redução de que falaremos em seguida.
A multiplicação dos metais é fácil, mas não sua transmutação, pois
toda coisa que nasce na Terra, e ali cresce, se multiplica; o que pode ser
visto nas plantas, nas árvores e nos animais; pois de um grão outros mil são
engendrados; de uma árvore procedem mil ramos, ou melhor dizendo, uma
infinidade de outras árvores; e de um único homem se faz a procriação de
todo o gênero humano.
Portanto, todas as coisas aumentam e se multiplicam por meio de sua
espécie, da mesma forma o metal pode aumentar e se multiplicar, e isso
sem nenhuma diferença. Aristótelcs pergunta se esse aumento e multiplica­
ção acontecem nas minas naturais ou artificiais. Ora, já está bem estabeleci­
do que todos os metais nascem c crescem na Terra. Portanto, é possível que
neles aconteça um aumento e uma multiplicação infinita. Mas isso só pode
acontecer pelo que é aperfeiçoado na Lua, ou ordem dos metais, cm cuja
geração e aperfeiçoamento o Elixir dos Filósofos é a perfeita Medicina, c
que só se pode conseguir fazer por um meio próprio ou coisa interposta,
porque não existe nenhum movimento de uma extremidade à outra senão
por um meio que lhes é próprio. Eu conheci a natureza desse meio, ou coisa
mediante, que contém as extremidades, que são o Enxofre e o Mercúrio. De
um e de outro se faz e se realiza o Elixir pela coisa mediante, que natural­
mente deve ser mais purificada, mais cozida, mais bem digerida, melhor,
mas perfeita, e consequentemente mais próxima.
Assim, meu caro Leitor, cuide para não errar e faltar, pois o homem
recolherá apenas o semelhante do que ele semeou. Então, agora você
vê o que é a Pedra dos Filósofos e conhece os meios pelos quais é pos­
sível fazê-la. Lembre-se sempre de que nada de estrangeiro é colocado
nem acrescentado em sua composição e, ao contrário, as coisas imperfeitas
devem ser retiradas: e que nada convém ao nosso segredo, senão o que
é próximo e de sua natureza. Venho portanto explicar-lhe as sentenças c
os ditos dos Antigos, com suas palavras obscuras e ocultas sob enigmas e
parábolas. E o faço para que você julgue que bem compreendi a doutrina
dos Filósofos, e que compreenda que tudo o que eles escreveram é verdade.
Nicolas Flamel, O Desejo desejado (Scc. XIV),
in Wtlliam Salmon. Biblioteca dos Filósofos ALjuhnicos,
t. II, p. 286-289.
*
* *
274 Filosofar pelo Fogo

uele que é da terra fala da terra, aquele


que vem do céu está acima de todos. Portanto,
já designamos aqui a terra como sendo o prin­
cípio dos Elementos, os céus designam em ver­
dade os três Elementos superiores. É por isso
que convém falar um pouco da terra e do céu,
THOMA5 Aqvi „ uma vez que são o principio e a mãe dos outros
na5 Italus CJujmiatí. Elementos, como testemunha o Profeta: “No
Tomás de Aquino, quí­ início. Senhor, tu fundaste a terra, e os céus são
mico italiano: Como a a obra de tuas mãos; os céus, isto é, a água, o ar
natureza, a Arte produz e o fogo. Ao morrer, os Elementos se separam
metais a partir do En­ de fato da terra, e a ela retornam a fim de se
xofre e do Mercúrio. revivificar, pois toda coisa é finalmente dissol­
vida no Elemento de que foi composta, segun­
do o testemunho da palavra sagrada: “O homem é cinza, e retornará à
cinza”. Os Filósofos prescreveram que tal cinza seja misturada com
a água permanente, que é o fermento do ouro, e sua água é um cor­
po, ou seja, a terra que Aristóteles nomeou coagulante [coalho?] porque
ela coagula a água: esta é a terra da santa promessa na qual Hermes
ordenou a seu filho semear o ouro para que subam dela uma chuva viva
e uma água que a reaqueça, assim como diz o Senhor: Quando deseja­
ram extrair essa água divina, que é um fogo, eles a aqueceram graças ao
fogo deles, que é água; fogo que eles regularam até o fim e mantiveram
secreto por causa da imbecilidade dos insensatos. Sobre isso, todos os
Filósofos juraram nunca falar de maneira clara em nenhum lugar dos
seus escritos; mas deixaram ao Deus glorioso o cuidado de revelá-lo ou
de proibi-lo a quem ele desejar, pois nele reside um grande enigma e
a obscuridade dos Sábios. E quando o calor desse fogo tiver atingido a
terra, ela se dissolverá na água fervente, isto é, vaporosa, que em segui­
da retomará sua forma terrestre original. Assim a terra foi remexida e os
céus caíram sobre ela gota por gota, inundando de mel a totalidade de
um mundo cuja glória eles narram. Mas essa glória não é conhecida se­
não por quem compreende de que maneira os céus foram feitos a partir
da terra; e como essa terra sobre a qual são fundados os céus continua
eternamente com esse objetivo, como testemunha o Profeta: Foste tu
que fundaste a estabilidade da terra, e ela não se desviará por séculos e
séculos. O abismo é sua vestimenta; sobre ela se manterão a água, o ar,
o fogo; os pássaros do céu nela habitarão, regando-a com os Elementos
superiores, para que ela se satisfaça com o fruto de seu trabalho. Uma vez
Elementos e Princípios
275

que os sete planetas se enraizaram no centro da terra e ali depositaram


suas virtudes, existe na terra uma água que faz germinar diversos tipos
de cores e frutos, e produzem o pão e o vinho que agradam o coração
do homem, os fenos para os animais e as plantas para o serviço dos
humanos. É esta terra, eu digo, que fez a lua em seu tempo, depois o
sol se levantou na primeira manhã do Sabá, após as trevas que tu nela
colocaste antes do levantar do sol: e foi a noite. Nela transitarão, com
efeito, todos os animais da floresta, pois tu lhes impuseste um fim que
eles não transgredirão até o branco, perseverando até o vermelho em
virtude dessa organização, porque todas as coisas obedecem à terra.
O Levantar da Aurora, atribuído a São Tomás de Aqumo.
Texto cm latim in Maric-Louise von branz,
Jtirora consurgens, p. 130-136.
*
* *
j/Vssim o verdadeiro fundamento da alquimia reside na progressão
conveniente da obra e no ajuste correto entre o quente e o frio, entre a
umidade e a secura, assim como no conhecimento de que essas qualida­
des engendram outras como a dureza e a doçura, a gravidade e a leveza,
a rugosidade e a ausência de asperezas - e isso graças à adição dessas
qualidades primárias segundo algumas proporções de peso, número e
medida. Sob essas três categorias podemos de fato organizar toda coisa
que Deus fez, pois Deus criou e ordenou todas as coisas em acordo
com certa proporção em matéria de número, peso e medida; e se vocês
se distanciarem dessas proporções, destruirão a harmonia da Natureza.
Por isso é uma sábia precaução a que nos deu Anaxágoras, ensinando-
nos a não proceder à união dos Elementos enquanto não descobrirmos
a proporção exata de peso na qual todos os Elementos são encontrados
nas substâncias com as quais temos de lidar. Bacon diz que os Anti­
gos nada dissimularam com exceção dessas proporções em relação às
quais eles não nos dão qualquer informação. Pois, quando falam de
proporções, eles desanimam o estudante com as asserções mais con­
traditórias. Se vocês desejam conhecer a verdade em relação a essas
proporções, podem obtê-la estudando as obras de Albert, Raymond,
Bacon e Anaxágoras, o Antigo. Devem coletar seu saber através das
páginas desses quatro autores, na medida em que apenas um deles
não pode trazê-lo. E mesmo assim, quando compreenderem o pro­
cedimento secreto que permite unir ao mesmo tempo os quatro Ele­
mentos em um todo homogéneo, no entanto, a tarefa mais difícil, que
276 Filosofar pelo Fogo

consiste em combinar os diferentes Elementos, ainda


deve ser realizada.
Uma união conveniente deve ser efetuada entre a
terra e a água de uma parte, entre o ar e o fogo de outra.
Ainda que o terceiro e o segundo sejam os mais nobres
de todos, o primeiro e o quarto não podem, contudo, ser
excluídos. A terra é o Elemento mais útil, e aquele de
Thomas Norto| que temos mais necessidade. Nela repousam a possibi­
nu# An^ lus. Pkifof: |
lidade latente do crescimento e a potência da geração;
Thomas Norton, é o litargírio terrestre da Pedra. Sem ele não pode haver
filósofo inglês: Nossa nenhuma geração e, portanto, nenhuma fixação. Como
Matéria é uma coisa não há nada de fixo exceto a terra, todos os outros Ele­
de pouco preço e de mentos são voláteis. A experiência cotidiana nos ensina
nenhum valor, apenas que isso é verdade para o fogo, a água e o ar. O fogo
quem a encontra a
é a causa da expansão e torna a substância capaz de
valoriza.
misturas, mas o esplendor transparente e a bela cor são
produzidos graças à influência do ar. Mais ainda, quando o ar é con­
densado, ele produz substâncias que se prestam tranquilamente para a
mistura, como a cera, a manteiga e a goma; as quais são liquefeitas por
meio de um grau de calor muito baixo. A água purifica pela ablução e
permite a revivificação das coisas mortas. Não há nada de magnífico na
multiplicação do fogo, e isso é muito inferior à multiplicação inerente
à terra. Pois a terra produz cotidianamente ervas frescas, ao passo que
uma centelha de fogo não é milagrosamente amplificada a não ser que
ela seja alimentada com uma abundância de matéria combustível. O
fogo e a terra são os únicos Elementos capazes de multiplicação e estão
na origem da potência multiplicativa própria à nossa Pedra.
Thomas Norton, Ordinal
(Crede inibi seu Ordittale, 1477),
in Jean-Jacqucs Mangct,
Bibliotheca Chemica Curiosa, t. II, p. 298.
*
* *

s quatro Elementos, com os quais tudo é construído, consistem


em quatro qualidades: quente e seco; frio e úmido; duas delas acopladas
a cada um deles. A terra, a saber, de frio e de seco; a água, de úmido
e de quente; e o fogo, de quente e de seco, os quais vêm se unir com a
terra, pois os Elementos são circulares, como quer Hermes, sendo cada
um envolvido por dois outros, com os quais se harmoniza uma de suas
Elementos e Princípios 277

qualidades, que lhe é apropriada:


como a terra entre o fogo e a água,
participa com o fogo na secura, e
com a água na frieza. E assim por
diante.
O homem, portanto, que é a
imagem do grande mundo, e por
isso é chamado de microcosmo
ou pequeno mundo, assim como o
mundo, que é feito à semelhança de
seu arquétipo, é chamado o grande
homem, uma vez que é composto Comofabricar os metais a partir do Enxofre
dos quatro Elementos, também terá e do Mercúrio: Michael Maier. Symbola
seu céu,* e sua terra. A alma e o en- aurccu mens®, Frankfurt, 1617.
tendimento são seu céu; o corpo e a sensualidade, sua terra. Tanto que
conhecer o céu e a terra do homem é ter pleno e completo conhecimento
de todo o Universo, e da natureza das coisas. Do conhecimento do mun­
do sensível chegamos ao do Criador e do mundo inteligível: Per crea-
turam creator intelligitur, diz Santo Agostinho.159 O fogo de resto dá ao
corpo o movimento; o ar, o sentimento; a água, o alimento; e a terra, a
substância. O céu além do mais designa o mundo inteligível e a terra, o
sensível: cada um dos quais é subdividido em dois (em todo caso cu só
falo segundo o Zohar'60 e os antigos Rabinos), o inteligível ao Paraíso,
e ao Inferno; e o sensível ao mundo celeste e o elementar.
BLuse de Vigcnère,
Tratado do Fogo e do Sal (1618). p. 4-5.
*
* *
|Saiba além do mais que a terra contém as sementes de todos os seres,

suas operações e suas virtudes: por isso, ela é o receptáculo de todos


os raios e de todas as influências do céu; ela também está impregnada
pelos outros elementos e os outros céus; ela é o centro, o fundamento,
ou melhor, ela é a mãe de todos os seres, uma vez que todos eles nascem
em seu seio; pois sabemos que basta colocá-la ao ar livre, depois de tê-la
suficientemente purificado, para que seja fecundada e impregnada das
operações e das virtudes celestes, a tal ponto que ela mesma poderá
159. Por meio da criatura [ou da Criação] se compreende o Criador.
160. O Zohar ou Livro do Esplendor, provavelmente redigido na Espanha no século XIII. é
um dos textos fundamentais da Cabala judaica.
278 Filosofar pelo Fogo

então produzir ervas de toda espécie, vermes, insetos e átomos ou lâ­


minas metálicas. Nela se encontra um grande número de Arcanos;* e
o espírito de vida, que é o recém-nascido da natureza celeste, e ali já
desenvolve sua atividade.
Também existe em seu centro uma terra virgem composta de três
princípios; e a lei da natureza é tal que, se vocês souberem separar esses
três princípios e reuni-los em seguida à maneira dos Filósofos, serão
possuidores do maior tesouro de todos. Vamos falar mais claramente:
essa terra contém em seu seio três princípios sensíveis. O primeiro é o
nitro* filosófico que a terra concebeu pelas influências do Sol, da Lua e
dos outros astros. Pois, se os raios que emanam do Sol são mais quen­
tes, disso resulta uma maior quantidade de sal nitro central; o que no
entanto deve ser compreendido não como nitro comum, mas como nitro
filosófico. O segundo princípio, que está oculto nessa terra virgem, é
o espírito celeste e invisível da natureza. Isto é, o espírito do mundo
encerrado em um sal sutil. O terceiro é um sal fixo que é como o recep­
táculo dos dois corpos precedentes plantados e colocados por Deus em
seu seio: assim esses três sais estão contidos e ocultos nessa terra.
Huginus A Banna, O Reino de Saturno
transformado em Século de Ouro
(Saturnia Rcgna in aurea sarula conversa, 1657),
p. 19-23 (cd. de 1780).
*
* *

ueles que, por menos que tenham ouvido falar das coisas naturais,
sabem bem que no início do mundo Deus todo-poderoso separou teus
Elementos do caos informe; que ele colocou a Terra no fundamento ou
centro; que sobre tua terra ele colocou a água; sobre a água, o ar, e sobre
o ar, o fogo. De tal forma que cada um tem sua sede e seu receptáculo,
de onde não sai sem a ordem de Deus. Ora, nós achamos que existe tal
comunicação entre eles, que um não é nada sem o outro; e se existe
um que predomina em alguma parte, os outros estão ocultos nele, daí
podem ser retirados pela engenhosidade. Assim, da terra nós tiramos
a água, o ar e o fogo; da água, a terra, o ar e o fogo; e do fogo, o ar,
a água e a terra. Assim os Elementos se convertem e passam de uma
espécie à outra, e cada um deles recebe e dá a vida a seu companheiro
reciprocamente. O fogo não poderia queimar sem o ar; o fogo age sobre
a água, e dela faz o ar; a água repousa na terra, à qual dá a umidade; o
fogo engrossa o ar; o ar escorre sua semente na terra, a terra alimenta
Elementos e Princípios 279

e fomenta essa semente até a perfeição, depois ela a produz e dá ori­


gem ao que tinha em seu ventre. Foi necessário dizer isso rapidamente.
Mas, para retornar à água concentrada, e para declarar sua natureza, é
preciso saber que a água é o princípio de todos os outros Elementos.
0 que vemos e experimentamos todo dia, principalmente nas minas
subterrâneas, de que as mais profundas entranhas estão impregnadas.
É aí que vemos que não apenas a água existe, mas que ela se converte
em diversas formas de corpos minerais. Não há nenhuma dúvida a esse
respeito. E quanto mais a água for clara e nítida, mais ela engendra as
mais reluzentes pedras e os mais puros minerais [...].
Os Antigos a usaram para fazer coisas admiráveis, e até para pre­
parar a medicina universal, e deram a essa Arte o nome dc alquimia, isto
é, fusão do sal.161 Eu não me pronuncio a esse respeito, pois nunca ousei
empreender uma tão alta operação.
Johann Rudolf Glaubcr, Tratado da Mediana universal
ou o verdadeiro Ouro potável (trad. fr. 1659), p. 9-23.
*
* *

Dois ou três princípios?


T^m relação à ciência e experiência, os Filósofos

que me precederam tiveram como alvo a Rocha da


verdade, mas nenhuma de suas linhas atingiu seu ob­
jetivo. Eles acreditavam que o Mercúrio e o Enxofre
eram os princípios de todos os metais e não mencio­
naram, nem mesmo em sonho, o terceiro princípio.
Contudo, se pela arte espagírica* separamos muito
mais que a Agua, parece-me que a verdade que eu
proclamo está suficientemente demonstrada; nem rl
Galeano nem Avicena a conheciam. Se me fosse ne­
cessário descrever para nossos excelentes médicos o
nome, a composição, a dissolução, a coagulação; se
me fosse necessário dizer como a natureza age nos
seres desde o início do mundo, bastar-me-ia apenas Os três Princípios:
um ano para explicá-la e as peles de todo um rebanho Forno akpúniico de
de vacas para escrevê-la. Ora, eu afirmo que nesse Winthertur, 1754.

161. cf. Introdução, p. 14.


280 Filosofar pei.o Fogo

mineral encontramos os três seguintes princípios: o Mercúrio, o Enxo­


fre e a Agua metálica que serviu para alimentá-lo; a ciência espagírica
pode extrair esta última de seu próprio suco, quando ela ainda não está
completamente madura, no meio do outono, assim como a pera na árvo­
re. A árvore contém a pera em potência. Se os astros e a natureza con­
cordam, a árvore lança seus ramos por volta do mês de março, depois os
botões crescem, desabrocham, a flor aparece, e assim por diante, até o
outono, em que a pera amadurece. É a mesma coisa para os metais, Eles
nascem de uma maneira semelhante no seio da terra. Que os alquimis­
tas que buscam o Tesouro dos tesouros observem isso cuidadosamente.
Eu lhes indicarei o caminho, o começo, o meio e o fim: mais adiante,
vou descrever a água, o enxofre e o bálsamo particular do Tesouro.
Pela resolução e a conjunção, essas três coisas se unirão em uma.
Paracelso, O Tesouro dos tesouros dos alquimistas
(Der Schatz der Schãtze der Alehimisten, séc. XVI),
in Sdmtliehe IIírÀr, t. III, p. 343.

*
* *
J^^ão podemos ignorar que são Três os Princípios de todas as coisas,
presentes em toda composição. De fato, é evidente que aqueles, em que
estão dissolvidos os corpos naturais, bem como as partes a partir das
quais eles continuam, existiam desde o início de sua composição; de
forma que nenhum corpo composto pela operação da Natureza pode
ser artificialmente dissolvido e dividido em mais ou menos do que Três.
Mercúrio, ou licor, Enxofre, ou óleo, e o SaT, pois nesses três não im­
porta qual coisa criada é engendrada e conservada. Ao proferir seu tri­
plo verbo Fiat, a Santa Trindade dotou, com efeito, todas as coisas de
triplicidade, assim como testemunha a análise espagírica:* por seu ver­
bo Fiat, Deus produziu a matéria-prima, tripla antes em razão dos três
Princípios constitutivos, e isso mesmo depois que essas três espécies
tenham sido separadas em quatro corpos diversos ou Elementos, como
se um artesão experiente preparasse o mínio a partir do chumbo, a ce-
rusa, o vidro e o Espírito de Saturno. Da mesma forma o mundo não é,
junto com os corpos criados, nada mais do que uma fumaça coagulada
a partir dessas três substâncias: essas três (Enxofre, Sal e Mercúrio) são
de fato a matéria de que todos os corpos foram criados, o que podem
mostrar e provar os Espagíricos por meio de uma experiência visível e de
uma demonstração irrefutável; pois na madeira verde residem igualmen­
te três espécies de umidade: a primeira, aquosa, corresponde ao Mercúrio
fugitivo que preserva a madeira da combustão; a outra, absolutamente
Elementos e Princípios 281

gorda e oleaginosa, administra a causa da inflamação e da combustão a


exemplo do Enxofre: e essas duas são consumidas pelo fogo. A terceira,
untuosa e reduzida em quantidade, permanece na cinza (o Sal aparen­
temente) e é sutil e eterna: esta também
é a causa do corpo humano material.
Assim, a terra é enriquecida em subs­
tância por esses três Princípios que são
o Sal, o Mercúrio e o Enxofre: pela co­
agulação, o Sal traz solidez, cor e sabor
aos corpos; por uma mistura benigna, o
Enxofre tempera a coagulação do Sal,
dá corpo, substância e transmutação. O
Mercúrio que, semelhantemente ao Eli­
xir, outorga virtudes, forças e arcanos*
pela irrigação regular do licor vital e ve­ A Santa Trindade (Pai, Filho, Espirito):
getal, mantém pela frequência de suas Aurora consurgcns, scc. XI’
intervenções os dois primeiros, sempre
prestes a se dirigir para a secura e a senilidade, e torna fácil qualquer
mistura, graças a uma substância fluida e lábil. Esses três Princípios de
todos os corpos são muito distintos pelos ofícios e propriedades e, em
razão de sua mistura com a virtude, é permitido que eles façam surgir
aos sentidos uma única e idêntica substância corporal.
Oswakl Crollius, A Real Quinncj
(Basílica Chytnica, 1609), p. 29-30.

•fc

* *
C-)ue os amantes dessa Santa Ciência saibam, portanto, que exis­

tem quatro Elementos; cada um deles tendo em seu centro um outro


Elemento com o qual ele é composto. São os quatro pilares do mundo,
separados do Caos durante a criação do Universo pela Sabedoria divina
e que, por suas ações contrárias, mantêm essa máquina do mundo em
equilíbrio segundo uma justa proporção. Enfim, são eles que, por causa
da inclinação das influências celestes, produzem todas as coisas no in­
terior e na superfície da Terra [...].
Depois que a Natureza recebeu do altíssimo Criador o privilégio
de reger toda essa Monarquia do mundo, ela começou a distribuir a cada
coisa um lugar e uma tarefa de acordo com sua respectiva dignidade. Eia
instituiu primeiramente os quatro Elementos príncipes deste mundo, e
282 Filosofar feio Fogo

para que a vontade do Altíssimo (da qual depende toda a Natureza) fos­
se realizada, ela ordenou que cada um desses quatro Elementos tivesse
de agir incessantemente no outro. O Fogo começou então a agir no Ar,
e isso produziu o Enxofre; o Ar semelhantemente começou a agir na
Água, e essa ação produziu o Mercúrio. A Água também começou a
agir na Terra, e isso produziu o Sal. Quanto à Terra, não encontrando ne­
nhum Elemento no qual agir, ela não produziu nada, mas reteve em seu
seio o que os outros três Elementos tinham produzido: Esta é a razão
pela qual só surgiram três Princípios, e por que a Terra foi considerada
como a matriz e a alimentadora dos outros Elementos. Três Princípios,
assim como nós dissemos, foram produzidos, e que os antigos Filósofos
não consideraram de forma tão estrita, eles que descreveram apenas
duas ações dos Elementos (e se ignoraram isso, quem os julgará então
quando dedicarem seus escritos aos seus filhos?) e afirmaram, e isso
nos basta, que o Enxofre é junto com o Mercúrio a matéria dos metais,
ou melhor, da Pedra dos Filósofos.
O Cosmopolita (Michacl Scndivogius dit),
Tratado do Enxofre (Tractatus dr Sulpbure, 1609),
in Jean-Jacques Manget, Bibliotheca Chnnica Curiosa,
t. II, p. 480 c 485.
*
* *
JE/ stá claro em segundo lugar que todos os compostos desses quatro
Elementos se reduzem em três Princípios, a saber, em Enxofre, Sal e
Mercúrio, que segundo suas diversas misturas compõem todas as coisas
sublunares, ainda que infinitas em número, proporções e virtudes. É um
belo assunto de meditação, e digno motivo para admirar o Autor da Na­
tureza, observar essa grande variedade de flores e de frutos, de pedras
e de metais; essa diversidade de espécies entre os animais não provém
senão da mistura das três coisas. Essa variedade parece muito evidente,
uma vez que na resolução de todos os compostos vemos essas três coi­
sas, e nada mais: vemos uma parte terrestre, uma aquosa e uma sulfu­
rada; vemos uma alma, um corpo e um espírito; e nesse ternário vemos
também o quaternário das quatro qualidades e Elementos. O corpo é
composto de terra e de água, e o chamamos Sal; o espírito é composto
de água e de ar, e o chamamos Mercúrio; a alma é composta de ar e de
fogo, e a chamamos Enxofre. O Sal é a matéria, o Enxofre é a forma e
o Mercúrio é o meio que une. Pois como o corpo e a alma participam
das qualidades demasiado distantes e opostas, o Mercúrio que participa das
Elementos e Princípios
283

qualidades da alma e do corpo serve de mediador; e como ele é água e


ar, e enquanto água, ele participa do corpo, e enquanto ar, ele se apro­
xima da alma, por isso faz a ligação do Sal com o Enxofre, do corpo
com a alma; e é verdade que, segundo a mistura dessas três coisas. Sal,
Enxofre e Mercúrio, um sobre o outro e um com o outro, procede essa
admirável diversidade de todas as coisas. E para que nada seja esque­
cido, eu direi que essa mistura se faz de três maneiras, de acordo com
as três ações diferentes que se encontram entre os Elementos; a saber, a
açào do fogo sobre o ar, do ar sobre a água c da água sobre a terra, que,
como a base e o princípio puramente passivo, não pode agir, c não age.
A açào do fogo sobre o ar faz o Enxofre, a ação do ar sobre a água faz o
Mercúrio, e a ação da água sobre a terra faz o Sal; e porque só existem
três espécies de ação entre os Elementos, só pode haver essas três coisas
em todos os compostos da natureza inferior.
Apologia da Crandf Obra ou Elixir doi Eilóiofos
Pelo abade Jcan Albcrt Belin (1659 '. p. 22-26.

*
* *

evidente que todos os minerais são compostos de sal, de enxofre c


de mercúrio.
Todos os metais são compostos de uma terra tripla; a primeira é
vitrificável, e serve de base e de matriz para os metais; a segunda é uma
terra gorda que se assemelha ao Enxofre e retém a tintura; a terceira é
uma terra sutil que se chama Mercúrio, ou, melhor dizendo, o arsénico*
dos metais.
Os antigos Filósofos escreveram que todos os corpos são compos­
tos de sal, de enxofre e de mercúrio; mas não se deve acreditar que eles
sejam absolutamente compostos dessas três substâncias; isto é, que dc tal
corpo possam ser retiradas algumas partes de sal, de enxofre e de mercú­
rio, ou que serão análogas a esses três minerais. Eis por que essas partes
mantiveram o nome que ainda comumente lhes damos.
A substância corpórea do sal é considerada em seu princípio como
um sal álcali fixo, retirado das cinzas ao lavar, e que se torna a substân­
cia dos corpos fixos.
A alma de todas as matérias é uma substância oleaginosa, untuosa,
gorda e inflamável, que pode ser comparada ao enxofre, por causa de
sua analogia com esse mineral.
284 Filosofar pelo Fogo

O espírito ou a substância sutil, volátil, clara, é chamada mercúrio,


porque sua base homogénea se assemelha absolutamente; ela é sutil,
volátil, e de uma penetração impressionante.
Os Sofistas que tomam as coisas ao pé da letra se enganam gros-
seiramcntc ao pretender que os sais, enxofres e mercúrios dos metais se
assemelham aos enxofres, sais e mercúrios vulgares.
Sabtnc Stttart dc Chcvaltcr,
Discurso filosófico sobre os três princípios
(1781), t. Lp. 90-92.
*
* *

alquimia entre os gregos estava, pela própria razão de sua origem,


mesclada à magia e à teurgia. Mais tarde, graças aos filósofos árabes,
essa ciência se depurou e foi apenas nos séculos XV e XVI que ela no­
vamente se aliou às ciências ocultas propriamente ditas. Desde então,
um grande número de alquimistas pediu Cabala,* à Magia, à Astrolo­
gia, a chave da Grande Obra [...].
Os alquimistas místicos entendiam como Enxofre, Mercúrio e Sal
a matéria, o movimento e a força. O Mercúrio, princípio passivo e fê­
mea, é a matéria; o Enxofre, princípio ativo e macho, é a força, que
molda a matéria e lhe dá toda espécie de formas pelo intermédio do
movimento que é o Sal.
O Sal é o meio-termo, é o resultado da aplicação da força à ma­
téria, simbolicamente é o novo ser que nasce pela união do macho e da
fêmea. Essa alta teoria não parece em contradição com a ciência atual.
A química não repugna a hipótese de uma Matéria única, hipótese ad­
mitida há muito tempo pela metafísica como indispensável à explicação
do mundo [...]. A unidade da força também se impõe aos físicos. Qual
é o sábio que hoje faz uma diferença entre a causa do magnetismo, do
calor, da eletricidade, da luz, do som? Os fluidos não existem mais, fo­
ram substituídos pelas forças redutíveis umas às outras; o que diferen­
cia a força dela mesma aos nossos olhos é o número de vibrações que
ela imprime a este ou aquele corpo e ainda não há limite absoluto, um
corpo vibrando ou em movimento, o que é a mesma coisa, produz antes
um som; se as vibrações se tornam mais numerosas, o corpo se aquece
sensivelmente e logo acontecem fenômenos luminosos. Onde acaba o
som, onde começam o calor e a luz? Não existe intervalo.
Natura non facit saltus.'*1

162. A natureza nào efetua saltos.


Elementos e Princípios
285

É preciso acrescentar que os alquimistas tinham apenas entrevisto


essa alta teoria, o estado das ciências em sua época não lhes permitiu
lhe dar o desenvolvimento que demos. Para eles, como já demonstra­
mos, a Matéria era única em princípio; eles a chamavam matéria-prima
ou Hylé, e reconheciam também uma força universal. Badoim163 a cha­
ma magnetismo universal, Sopro magnético, para os místicos a força, é
o sopro de Deus, princípio primeiro da vida, do movimento. Paracelso a
chama Arqueu.* O Arqueu é a força sempre ativa, que ao ser aplicada
à matéria a coloca em movimento e lhe dá uma forma.
Os termos Ares e ClissusXM têm em Paracelso quase o mesmo sen­
tido. Quanto ao movimento, eles o assimilavam ao fogo, o que é, com
efeito, a imagem mais perfeita da maneira acionada pela força.
Essa era a alta teoria alquímica que poucos adeptos possuíram;
que não fiquemos surpresos com essa admirável síntese; o raciocínio
tinha aqui bastado aos alquimistas, como antes bastara a Pitágoras, a
Demócrito e a Platão, para se elevar à concepção das mais altas verdades.
Albcrt Poisson,
Teorias e Símbolos Jos Alquimistas
(1891). p. 27-33.

Selo hermético: Basile Valentim, Claves XII


Philosophias, séc. XVI.

163. Sem dúvida, trata-se de Christian Adolphe Balduinus, autor da obra Aureum superíus
et inferius, publicada em 1679.
164. Força de inclinação, de motivação, aqui relacionada ao deus Marte (Ares), associada
pelos alquimistas ao ferro.
286 Filosofar pelo Fogo

Sal da terra, sal da pedra


c.
J^Jaibam que os sais são múltiplos e que o mais nobre dentre eles é
extraído de um lugar chamado Andaram; em seguida vem o sal do pão,
e o sal do Indus, que é vermelho, e o sal nabateu, e o sal de cal; dc-
pois o sal com gosto amargo que é
encontrado na Espanha, em um lugar
“si chamado Bolongi. A natureza do sal
é certamente quente e seca: ele é a
?= água que coagula a secura do fogo;
por isso adquiriu suas propriedades,
*

uma vez que liquefaz a prata pela


virulência do fogo e lhe adiciona a
brancura, converte-a de corporei-
dade em espiritualidade. Ele faz o
mesmo a partir do ouro, cuja verme­
lhidão ele aumenta; lava os corpos
de sua sujeira, corrói seu sacrifício:
com ele são calcinados todos os cor­
pos, e com nenhum outro. Por essa
razão os sábios o nomearam prata de
ligação, por causa de sua brancura;
e porque todos os homens precisam
dele e o utilizam em todas as coisas,
e também por meio dele as criaturas
O trabalho do sol nas salinas. são retificadas, o perfeito Deus não
louvou a criação na antiga lei sem o
sal, e prescreveu que nenhum sacrifício ou oferenda ritual fosse feito
sem sal. E encontramos o sal em todas as partes das plantas, na cal das
pedras e nos ossos dos animais, e em todas as coisas: portanto o segredo
de tudo está no sal. E quem conhece a dissolução e a coagulação deste
é doravante elevado acima do segredo oculto, que é a Pedra dos Sábios.
O sal branqueia os corpos, purifica-os e os dissolve, coagula o espírito
e os retém a ambos, interditando a partir deles a adustão* do fogo. Fixe,
portanto, seu espírito no sal, prepare-o e não pense em mais nada a não
ser nele. Você não os vê, a título de complemento, retornarem ao sal*
amoníaco dos Sábios e nomeá-lo em várias ocasiões? E aqueles querem
para si o sal depois que ele foi preparado: provém de fato deste o sal
dos Sábios, nobre, fixo, e que não foge do fogo. Em verdade, o pró­
prio Hermes diz ao seu filho: Ó meu filho, quando tiveres conhecido o
Elementos e Princípios
287

sabào’ dos Sábios, alcançarás o prazer e dele tirarás a melhor parte.


E, com certeza, esse sabào é de difícil acesso para aquele que o
ignora e, no entanto, acessível para quem o conhece. E o Compilador
também lhe disse: Não perecemos ao buscar sua propriedade, mas sim
pela ignorância deste que os Sábios na verdade ocultaram, do qual esva­
ziaram todos os livros ao não expô-lo. E quanto a mim, juro por Deus,
sem o qual não existe Deus, que é sábio, ausente, presente. O homem
que ignora o segredo do sal compreende, a partir dele, muito ou pouco
o que lhe é concedido comer: porque quando ignora a natureza do sal,
ele é como alguém que lança flechas sem corda. Quanto ao modo dc
utilização, você deve tomar uma parte dele, esfregue-a o melhor que
puder e enfim coloque-a em um pote; destrua bem, recubra e coloque
no forno dc pão tanto de dia como de noite; em seguida, dissolva-o no
dobro de sua água, depois coagule-o até que ele sc torne como a neve:
coloque-o, portanto, novamente e só o utilize dissolvido, de acordo com
o que você sabe.
Jcan dc Rupcscissa, Da confeeção da verdadeira
Pedra dos Filósofos (Líber Magisterit de confecttone
veri Lapidts Pbilosopborutn, scc. XIV),
in Jcan-Jacques Manget,
Bibliotbeca Chemica Curiosa, t. II. p. 83.
*
* *

jje pela arte uma coisa qualquer é reduzida a cinzas, ela entrega por si
mesma seu sal: pois, se você consegue, na análise desse corpo, conser­
var separadamente o Enxofre e o Mercúrio, e depois restituí-los ao seu
sal segundo a exigência da arte, então, a partir daí, com a ajuda do fogo
poderá novamente ser feito o que já existia antes da destruição ou aná­
lise desse corpo: e isso é o que os prudentes deste mundo denominam
besteira e consideram como vaidade, nomeando-a uma nova criação
que não é permitida ao pecador por Deus; mas estes não compreen­
dem que o que parece ter sido criado já existira antes, e que o artista
demonstra sua maestria graças à semente da natureza e ao aumento que
ele pode lhe oferecer.
Por isso, um artista que não guarda a cinza também não pode con-
feccionar o sal a partir de nossa arte, pois sem o sal nossa obra corpórea
não pode ser realizada: somente o sal opera, com efeito, a coagulação
de todas as coisas.
♦ N.T.: Termo de alquimia. Sabào dos filósofos, o mercúrio.
288 Filosofar pelo Fogo

Assim como o sal é o suporte alimentar de todas as coisas, uma


vez que as preserva da podridão, também o sal de nossos mestres pro­
tege os metais para que eles não sejam corrompidos e reduzidos a nada
uma segunda vez. Nada de muito novo pode acontecer a partir disso,
a não ser o desaparecimento de seu potente Bálsamo, de forma que o
espírito insuficientemente incorporado abandona a natureza: o corpo
estaria então completamente morto, e nada com fruto poderia ser con-
feccionado. uma vez que os espíritos metálicos teriam desaparecido e
teriam, por causa de sua morte natural, deixado a casa interiormente
nua e vazia, na qual nenhuma vida poderia ser trazida.
Observe também aqui, estudante da arte, que o sal extraído da
cinza é mais valoroso na medida em que nele se ocultam inúmeras vir­
tudes: ora. esse sal é. no entanto, inútil se seu interior e seu exterior não
são mutuamente reduzidos e convertidos. Pois o espírito é o único a
dar forças e vida: por isso, o corpo despojado não deixa nada aparecer.
Quando você souber reconhecer isso, obterá o sal dos Filósofos e o óleo
realmente verdadeiramente incombustível, sobre o qual tantas coisas
antes de mim foram escritas:
Ainda que a maioria dos Sábios
Tenha-me ansiosamente procurado,
Ainda que tenham sido muitos os
Que contemplaram minhas forças ocultas.
Basilc Valcntim, As Doze Chaves da Filosofia
(Claves XL1 Philosophia?, séc. XV?; Ia cd. 1599),
in Jcan-Jacqucs Mangct, Bibliotheea Chemiea Curiosa
t. II, p. 415-416.
*
* *

xistem três espécies de Sais. O primeiro é um Sal central, que o es­


pírito do mundo engendra sem nenhuma descontinuação no centro dos
Elementos pelas influências dos astros e que é governado pelos raios do
Sol e da Lua em nosso Mar filosófico. O segundo é um Sal espermático,
que é o domicílio da semente invisível, e que, em um suave calor natural,
por meio da putrefação oferece por si mesmo a forma e a virtude vege­
tal, para que essa semente invisível e muito volátil não seja dissipada e
não seja inteiramente destruída por um calor externo excessivo, ou por
qualquer outro contrário e violento acidente: pois, se isso acontecesse,
ela não seria mais capaz de produzir. O terceiro Sal é a última matéria
de todas as coisas, que nela se encontra e nela permanece após sua
destruição.
Elementos e Princípios
289

Esse triplo Sal surgiu desde o primeiro ponto da Criação, quando


Deus disse: SEJA FEITO; e sua existência foi feita do nada, ainda mais
que o primeiro Caos do mundo não era outra coisa senão uma espessa
e salgada escuridão, ou névoa do abismo, que foi concentrada e criada
das coisas invisíveis pela palavra de Deus, e, pela força de sua voz, sur­
giu como um ser que deveria servir de matéria-prima e dar a vida a tudo
o que até hoje ainda existe. Ele não é nem seco, nem úmido, nem espes­
so, nem diluído, nem luminoso, nem tenebroso, nem quente, nem
frio, nem duro, nem mole; mas é apenas um caos misturado, a partir do
qual então todas as coisas foram produzidas e separadas. Mas, aqui, nós
ignoraremos essas coisas e trataremos apenas de nosso Sal, que é o ter­
ceiro Princípio dos minerais, e que é o começo de nossa obra filosófica.
O Cosmopolita (Michael Scndivogius dit),
h'ova Luz alquítnica (Novum Lumen chymtcunt, 1609).
Tratado do Sal, p. 2-4 (Ed. fr. de 1669).

* *

de fato, existe algo de mais perma­


nente e mais fixo ao fogo (que o Sal), ou
mais análogo à sua natureza? Porque ele
é cáustico, acre, ácido, incisivo, sutil, pe­
netrante, puro e nítido, fragrante, incom­
bustível e incorruptível, ou seja, o que
preserva todas as coisas da corrupção: e
por suas preparações se torna claro, crista­
lino e transparente como o ar; pois o vidro
não é outra coisa senão um sal bastante
fixo, que pode ser extraído de todas as es-
pécies de cinzas, de umas mais rapidamen­
2W
te que de outras; mas ele não é dissolúvel
no úmido como o sal comum, nem aquele
que se extrai das cinzas por uma espécie
de lavagem, que pode ser liquefeito, nas 1
fortes manifestações do fogo: que são, no -
entanto, duas resoluções contrárias, e de­ Vaso que contém a cinza de que é
sagradáveis uma à outra: princípio então fedo o diadema do Rei: Donum Dei.
de toda umidade que pode ser liquefeita, séc. XV11.
untuosa, mas incombustível.
1

290 Filosofar pelo Fogo ■

Além do mais, ele é a primeira origem, tanto dos metais quanto i

das pedras e pedrarias, e até mesmo de todos os outros minerais, assim


como dos vegetais e dos animais, cujo sangue, humor urinai* e qualquer
outra substância é salgada para preservá-la da putrefação e, em geral, de
todos os mistos e compostos elementares. O que se verifica uma vez que
eles se dissolvem nele, e que é como a outra vida de todas as coisas, e sem
ele, como disse o Filósofo Morien, a natureza não pode trabalhar nada em
nenhum lugar; nem coisa nenhuma ser engendrada, segundo Raymond
Lulle em seu Testamento. Com o que todos os Filósofos Alquímicos
concordam, que nada de melhor nem de mais precioso do que o Sal foi
criado aqui embaixo, na parte elementar. Existe, portanto, um Sal em to­
das as coisas; e nada poderia subsistir se não fosse o sal que é misturado a
tudo; ele liga todas as partes como se fosse uma cola, caso contrário elas
partiriam em um pó finíssimo, e também as alimenta. Pois no Sal existem
duas substâncias; uma viscosa, pastosa e untuosa, de natureza do ar, que
é doce: e, de fato, não há nada que alimente a não ser o doce; o amargo
e o salgado, não. A outra é adusta, acre, pungente e cáustica, da natureza
do fogo, que é laxativa; pois todos os sais são laxativos; e tudo o que se
entrega participa da natureza do Sal.
BInisc dc Vigencrc,
Tratado do Fogo c do Sal (1618), p. 242-243.
*
* *

JL odos os Filósofos alquímicos antigos falaram manifestamente do


Enxofre e do Mercúrio, princípios radicais de todas as coisas, mas são
poucos os que falaram do Sal radical, que também é o princípio de todas
as coisas; pois eles estimavam que na manifestação desse princípio toda
a natureza era descoberta, e que, ao declarar sua essência, colocava-se
a nu toda a natureza. Eis por que o três vezes Grande Hermes* disse:
In Sole et Sale naturae sunt omnia65 Pois na verdade a anatomia
do Sal é tão alta e tão elevada que quem quer que realmente saiba fazer,
e unir todas as partes integrantes que a compõem, na verdade verá que
é a sede fundamental de toda a natureza em geral e em particular, que
é o ponto e o centro em que todas as virtudes e propriedades celestes
e elementares desembocam e se terminam, e que ali se pode formar e
constituir a verdadeira definição nessa forma. O Sal central de todas as
* (N.T.:) Urinai dos filósofos, forno filosofal no qual se cozinha e se digere a matéria da
pedra dos sábios, ou o ovo hermético.
165. No Sol e no Sal da natureza estão todas as coisas.
Elementos e Princípios
291

coisas é seu princípio radical e seminal, que encerra em si o fogo natu­


ral ou enxofre vital, o úmido radical* ou Mercúrio da vida com todas
as virtudes celestes e elementares; e assim não é o resumo de toda a
natureza para constituir um pequeno mundo em cada indivíduo, onde
ele está encerrado como princípio de corporificaçào, e que é o nó e o
vínculo dos outros dois princípios, enxofre e mercúrio, e lhes dá corpo,
e dessa maneira os faz parecer visíveis aos olhos de cada um.
Picrre Jcan-Fabre. O Rffunw (fos
srgrfdes al.juimicc>5
(1636). p. 33-34.
*
I * *

sal, que é geralmente reconhecido por ser o primeiro princípio cm


nossa obra, ainda se encontra invisível, ou só é visto pelos olhos da imagi­
nação, ainda que real, exceto que, por um golpe desajeitado (c no momento
de sua formação), o artista o torna visível; ele sempre nos é mais favorável
quando é invisível. Mas o que é difícil compreender é que. dos três princí­
pios essenciais, dos quais dois são sempre visíveis e palpáveis, o sal, não o
sendo e não devendo sê-lo, uma vez que só é produzido pela destruição cor-
pórea de seus irmãos, seja colocado na primeira posição, represente (ainda
que se mantendo sempre oculto atrás da cortina filosófica) o primeiro papel
e se torne o objeto indispensável de nossa obra; assim é preciso, uma vez
que ele é reconhecido como princípio fundamental em todas as operações
filosóficas; que de dois sempre se deve produzir um terceiro, que se torna
ele próprio o primeiro, e então ele é depositário das virtudes de seus pai e
mãe, para representá-lo caso haja necessidade.
Esse sal não pode ser mais bem representado do que como aquele que
cresce na terra, e que muitas vezes vemos nos porões quando ali vamos,
que é somente um nitro* próprio para a fabricação da pólvora para canhão.
Mas não creia com isso que aquele de que falo é o nitro comum,
nem o sal marinho, nem o sal do tártaro; aquele de que falo, ainda que
vegetal, animal e mineral, pertence mais a este último reino, uma vez
que é a base deste, e que é sempre incombustível: vantagem que os ou­
tros sais não têm. Portanto, é preciso encontrá-lo incombustível e pró­
prio para ser reduzido em água mercurial, de onde é extraído; porque
ele também é de princípio fundamental que, para chegar à transmutação
metálica, é preciso que os princípios corpóreos que servem para nossa
obra se tornem novamente o que eram antes, isto é, é preciso que eles
mudem de forma e se tornem novamente água.
292 Filosofar pflo Fogo

Portanto, é preciso trabalhar a matéria até que dela tenhamos esse


sal invisível, o qual é apenas um espírito metálico, que será necessário
livrar de suas impurezas, para que ele conserve em si esse amor para
com seus irmãos e não possa se tornar ingrato em relação à virtude que
ele terá de fixar; vantagem que ele só obterá deles. Portanto, não será
quando estiver reduzido em mercúrio que ele poderá manifestar sua
virtude. Então, em harmonia com o enxofre e com o mercúrio, com os
quais deverá estar unido, ele poderá ser visto como se estivesse prestes
a adquirir pela cocção o poder de exercer sua potência, a qual o pó de
projeção de que ele será parte essencial conterá perfeitamente.
François Cambricl, Curso de Filosofia hermética
(1843), p. 129-130.

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'14 mina de nosso Mercúrio é nosso salitre, não o do vulgar Siméon Ben Cantara,
Cabala mineralis, séc. XVII.
Elementos e Princípios 293

O Mercúrio dos Filósofos reconcilia os opostos: Basile Valentin,


Claves XII Philophiae, séc. XV.
11

A Obra do Leão Verde


Sc vós dissipastes c perdestes o verdor
do Mercúrio e o vermelho do Enxofre,
perdestes a alma da Pedra.
Huginus à Barmâ, A Pedra de toque,
máxima XV.

Comumente qualificados como Princípios, Enxofre e Mercúrio de­


signam mais precisamente este ou aquele estado da matéria (ativo ou
passivo, morto ou vivo) em fase de transformação. Princípio de dissolu­
ção (solve) como dissolvente universal (úmido radical) capaz de reduzir
a matéria a seu estado “originar', o Mercúrio também o é de coagulação
(coagula; quando, ele mesmo se tornando duplo, restaura sua unidade:
“É por ele que o Todo se desfaz, depois se restabelece novamente ”,
afirmava Sinésio. Principio de fixação por causa das suas qualidades
solares e ígneas, o Enxofre não é, contudo, suscetível de dar novamen­
te forma e vida ã liquefação mercurial, a não ser que antes ele seja
extraído da gangue nativa e malcheirosa que o mantinha prisioneiro.
Brandindo sua foice para cortar as asas do demasiado fugidio Mer­
cúrio, Saturno prepara assim o retorno da Idade de Ouro da qual é o
soberano decaído.
Por isso é preciso que se evitefixar pela linguagem em pares opos­
tos (macho/fémea, água/fogo) as qualidades de certos contrários, mas
que a lógica alquimica convida a declinar e a entrecruzar de uma forma
flexível em torno de um eixo invisível, como o são as duas serpentes em
volta do bastão que, brandido por Hermes-Mercúrio, leva o nome de ca­
duceu. Tornado o emblema dos alquimistas tanto quanto dos médicos,
essa insígnia dos arautos parece ter atravessado as eras para trazer a
boa nova de uma “saúde ” reencontrada graças à extração e ao aumento
recíproco das qualidades trazidas por essas duas entidades moventes.

- 294 -
z\ Obra do LeAo Verde 295

nomeadas Enxofre ou Mercúrio segundo afunção que lhes é dada exer­


cer ao longo do processo que diversifica e renova sua identidade: “O
interior do ouro é semelhante ao exterior do chumbo, e o exterior do
ouro é semelhante ao interior do chumbo ” (Djábir ibn Hayyàn),
*
* *

Metamorfose da prata-viva
c(Jobre o Mercúrio maravilhoso. Seus primeiros nomes, em grego, são
os seguintes: enxofre, arsénico, sandáraca.
Apesar da diversidade desses nomes, é a mesma matéria. De fato,
quando a natureza recebe alguma coisa contrária e a ela se assimila, for­
tifica-se: essa coisa não é expulsa, porque ela toma e é tomada. É dessa
forma que escondemos o nome do Mercúrio e que o tornamos obscuro.
Da mesma forma o ziouqa (nome siríaco do Mercúrio) varia
de nome, de acordo com as diversas tradições; às vezes ele é chamado de
zioug e às vezes de ziouq, e prata líquida, água de prata, matéria que
branqueia o cobre, nuvem branca, corpo que foge do fogo, enxofre,
arsénico, sandáraca, e água de todos esses, água de enxofre clarificado,
mistério revelado, água de cobre e água de fogo, água de vidro, selcni-
ta (acppoÉXrvuoD), espuma de mar, espuma de rio, espuma de todas as
espécies e de todos os animais, principalmente do cão raivoso, água do
rio e do orvalho, mel ático - aquele que é intermediário de todas as
coisas e de todos os méis -, água de Saturno, isto é, provada pelo chum­
bo (Saturno), crisócalo; água que serve para a ferrugem e as escritas.
Ele ainda é chamado o fiel de todos os animais, o fermento, e leite
de todos os animais, leite de resina de todas as árvores e todas as plan­
tas, por causa de sua formação e de suas relações com o leite. Dizem
que também é chamado de urina do filho dos tetos (demónio lunático);
e ainda,o que se dissolve e escorre; transparência (ôíoyiç) e nuvem, e
todos os vapores do enxofre suspenso.
É com razão que o chamamos enxofre suspenso, porque, quando é
aquecido, encontramo-lo suspenso na tampa do vaso.
Essa substância não carrega um nome único, mas seus nomes são
inúmeros, porque ela não é de uma única espécie e representa inúmeras
espécies, de que cada uma é diferente das outras.
296 Filosofar pelo Fogo

Os livros dizem: Tome o Mercúrio, mas de forma alguma eles


mostram de que espécie nem de que corpo ele é extraído. Somente o
Filósofo o disse, ao expor suas duas tinturas, em amarelo e em branco.
Tratados de alquimia siríaca e árabe,
Pseudo-Dcmócrito, in Marcelin Bcrthelot,
A Química na Idade Média, t. 2, p. 82-83.

*
* *
IE/ m um distante país do Ocidente, ali onde se encontra o estanho, exis­
te uma fonte que sai da terra e faz surgir o mercúrio como água. Quando
os moradores desse lugar veem que ele está no ponto de se espalhar para
fora da fonte, escolhem uma jovem notável por sua beleza e a colocam
diante dele toda nua para que ele se encante com a beleza da jovem.
Ele se atira sobre ela de um salto, buscando aprisioná-la, mas a jovem
escapa com um passo rápido, enquanto os jovens se mantêm perto dela
carregando machados em suas mãos. Assim que o veem se aproximar
da jovem, eles o atingem, cortam-no, e então ele vem e por sua própria
conta entra no buraco preparado e por si mesmo se fixa e endurece.
Fcrnand de Mcly, A Alquimia entre os chineses e a alquimia grega,
in Os lapidarias da Antiguidade e da Idade Média, 1895, t. 2, p. 24.

*
* *
_j/\jguns, e até mesmo bem numerosos, querem então trazer a con­
tradição, e particularmente aqueles que não compreendem nada dessa
Arte e não conhecem as naturezas dos metais, ignorando o que lhes é
intrínseco ou extrínseco, e muito pouco instruídos sobre suas dimen­
sões e profundezas. A esses portanto, objetando, segundo Aristóteles,
sua certeza de que os artifícios da Alquimia não podem permutar as
espécies das coisas, é preciso responder o que disseram aqueles que
têm fé nessa operação e querem por isso transubstanciar os metais cor­
rompidos: que isso é sem dúvida possível, mas com dificuldade. Que
então eles compreendam os seguintes propósitos de Aristóteles: que a
experiência destrói a forma das espécies, e particularmente nos metais.
Pois é verdade que, quando um metal é calcinado, se torna assim cinza
e cal, que é terrificada, lavada e queimada com uma água ácida até que
se torne branca e viva: assim, pelas calcinações e medicinas diversas
rejeitam a umidade corrompida e adustiva* e adquirem uma umidade
aérea que vivifica os próprios corpos; e a cal purificada é reduzida em
A Obra no LeAo Verde 297

uma massa sólida que pode receber a tintura branca e vermelha. Desse
fato, Hermes diz que os corpos nào podem penetrar os espíritos caso
não tenham sido purgados, e só os penetram com uma água doce. E
Aristóteles diz: Não creio que os metais possam ser transubstanciados
se não são reduzidos em sua primeira matéria, isto é, purificados de sua
corrupção pela adustão* do fogo. Mas quero de maneira mais convin­
cente ainda objetar aos contraditores e incrédulos, pois aquilo sobre o
que falamos nós o vemos, e o que vemos, testemunhamos.
Vemos, com efeito, as diferentes espécies receberem em diversos
tempos formas diversas: assim como pelo Arsénico,* que é vermelho, e
por uma decocção constante se tornará negro, e pela sublimação o bran­
co, e sempre da mesma maneira. Ora, alguém francamente afirmava que
tais espécies podem ser facilmente transmutadas de uma cor em outra,
mas que essa operação é irrealizável nos metais. Para esses eu respondo
a partir de uma razão manifesta e por diversas provas e evidencias, que
destroem totalmente seu erro: Vemos, com efeito, que o azul é engen­
drado da prata que é chamada transmarina; e ainda que seja perfeita
de natureza e isenta de corrupção, ela aparece mais facilmente, c isso
consiste em destruir acidentalmente mais que cssencialmcnte.
Vemos também o cobre receber a cor citrino de uma pedra
calaminada;166 a qual adquire assim uma perfeita neutralidade e não se
torna nem cobre nem pedra calaminada, pois nas duas o fogo age. Ve­
mos o estanho se tornar litargírio, e ser mudado na cor do ouro por uma
forte decocção, ainda que também tenha sido bem possível converte-lo
na espécie da prata que é da mesma natureza dele. Vemos o ferro con­
vertido em Prata-viva, o que é considerado por alguns como impossível;
e eu disse anteriormente a razão pela qual isso é factível. Mas a partir
daí, como a Prata-viva é a origem de todos os metais, é igualmente pos­
sível reduzir o ferro em Prata-viva. Seria graças ao vaso* que contém
a água em estado líquido e que durante o inverno não se endurece pela
excessiva frieza e se torna gelo? Será que o gelo não se dissolve pelo
calor do sol até se tornar água como antes? Isso é o que acontece com
a Prata-viva em toda parte onde ela reside na terra; e se lá também se
encontra o enxofre, então esses dois são reunidos e endurecidos durante
um tempo bastante longo por uma decocção muito temperada, e assim
será confeccionada a pedra mineral de onde se extrai o metal. Vemos
também que do chumbo é feita a cerusa; da cerusa, o mínio; e do mínio,
o chumbo. Eis, portanto, provado de forma bastante clara que as espé­
cies podem ser permutadas de cor em cor até a terceira ou quarta forma.
Sendo assim, é bem plausível que os metais corrompidos possam ser
166. Transformada cm carvão pela combustão.
298 Filosofar pelo Fogo

trazidos à saúde por seus médicos. Doravante, entào, um fundamento foi


encontrado para essa Arte, de forma que vemos o que afirmamos antes.
Alberto, o Grande, £)<i Alquimia
(Df Alehimia, séc. XIII),
in Aurífera- Artis qitam Chemiam vocant,
t. 1, p. 618-620.
*
* *

Prata-viva que, segundo o uso dos Antigos, também se chama


Mercúrio, é uma Agua viscosa, feita de uma Terra branca sulfurosa,
muito sutil, e de uma Água muito clara, as quais foram cozidas e dige­
ridas nas entranhas da Terra pelo calor natural das minas, e mescladas e
unidas de forma bem precisa por suas partes menores, até que o úmido
tenha sido igualmente temperado pelo seco, e o seco pelo úmido. É
por isso que ela escorre muito facilmente sobre uma superfície igual c
unida, por causa da fluidez e da umidade de sua Água, e não se liga ao
que toca, ainda que sua matéria seja viscosa e pastosa, porque a secura
que nela está encerrada tempera essa umidade e a impede de se ligar
ao que ela toca. Segundo a opinião de alguns Antigos, é ela que, tendo
se juntado ao Enxofre, é a Matéria dos metais. Ela se liga facilmente
a Saturno e a Júpiter e ao Sol; mais dificilmente à Lua, e ainda mais
dificilmente a Vénus do que à Lua, mas
nunca a Marte, se não for por artifício;
e por isso podemos descobrir um grande
segredo. Pois ela é amiga dos metais e,
sendo de sua natureza, une-se facilmente
a eles, e serve de intermediária ou meio
para encontrar as Tinturas: e somente o
Ouro vai ao fundo do Mercúrio, e nele se
f afunda. Ela dissolve Júpiter, Saturno, a
Lua e Vénus, e esses metais a ela se mis­
turam, e sem ela não poderíamos dourar
nenhum metal. Ela se fixa e se torna uma
Tintura de um vermelho muito exuberan­
te, para aperfeiçoar os corpos imperfei­
tos, e de um grande esplendor; e jamais
se separa do corpo ao qual está unida,
Mercúrio no estado “vivo enquanto permanece em sua natureza. O
Siméon Ben Cantara, Cabala
Mercúrio não é, no entanto, nossa Maté­
minera lis, séc. XVII.
ria nem nossa Medicina, caso a tomemos
r

A Qrra do LeAo Verde 299

como a Natureza o produz; mas pode contribuir com condição, tanto


quanto o Enxofre.
Pseudo-Gerber, A Súmula da Pcrfci(ão do Magistério
(Summa perfcctionis Magisterii, séc. XIV),
in William Salmon, Biblioteca dos Filósofos ALjuímicos,
t. I. p. 156-157.
*
* *
l^everendo Pai, abra seus piedosos ouvidos e compreenda que o Mer­
cúrio é o esperma cozido de todos os metais, permanecido imperfeito
no ventre da terra por causa do calor do enxofre; e, segundo a variedade
sulfurosa desse Mercúrio, os diversos metais são engendrados na terra.
Assim, sua matéria original c única, e é naturalmente, pela ação do Sol
mais ou menos escaldante ou temperado, que ela é diversamente traba­
lhada; nisso todos os Filósofos estão de acordo. E eu o demonstrarei da
seguinte maneira, porque é certo que toda coisa é aquilo em vista de ou
a partir do que ela se dissolve. Eis, a título de comparação, um exemplo
verídico: se o gelo mudou em água e por meio do calor, é porque antes
ele foi água; ora, todos os metais são convertidos em Mercúrio, portan­
to esse Mercúrio é sua matéria-prima.
Eu lhe ensinarei mais adiante o modo de conversão. Isso estabele­
cido, será dissipada a opinião daqueles que pretendem que as espécies
dos metais não podem ser convertidas: é isso o que eles afirmam, sendo,
contudo, verdadeiro caso os metais não tenham sido reduzidos em sua
matéria-prima; ora, essa redução é fácil, como demonstrarei, e a trans­
mutação, tão fácil quanto e realizável. Com efeito, toda coisa que cresce
e vive pode ser multiplicada em sua própria espécie, assim como os
homens, as árvores, os grãos e todas as coisas desse gênero; pois de um
grão mil são engendrados: portanto, é possível aumentar uma coisa até
o infinito. Do que acaba de ser dito se pode, ao que parece, compreender
com sutileza o que os Filósofos escreveram em seus livros de maneira
obscura, mas verdadeira. Eles afirmaram, com efeito, que nossa Pedra
é composta de um corpo, de uma alma e de um espírito, e falaram a
verdade. Pois compararam o corpo metálico imperfeito ao corpo, e
essa é a razão pela qual ele está enfermo; e qualificaram a água como
espírito, e ela é com efeito espírito, uma vez que, tendo sido condena­
da à morte, ela concede ao corpo imperfeito uma vida que não tinha
antes e o eleva a uma forma melhor. Eles disseram que o fermento é
uma alma, pois concede a vida ao corpo imperfeito e em sua natureza
o eleva e o converte. O Filósofo diz: “Converta as naturezas e encon-
300 Filosofar pelo Fogo

trará o que você busca”; e isso é verdade. Pois


em nosso magistério primeiro damos graças
ao que era espesso: do corpo nós extraímos o
espírito, e logo após do úmido o seco, ou seja,
da água a terra, e assim convertemos as natu­
rezas e fazemos do superior o inferior: o que
W/J é realizado quando o espírito é feito corpo e,
^71 ao contrário, quando o corpo é feito espírito.
|_Arnoldvs de Vil Da mesma forma nossa pedra, de acordo com
Ll noía. CluimúuS. os Filósofos, é constituída de uma única coisa,
em um único vaso, e eles dizem a verdade. Pois
Arnauld de Villencuvc, todo o magistério é efetuado com nossa água e
alquímico: Se a doença a partir dela. Pois ela dissolve os corpos, assim
dura uni mês, ela cura em como já foi dito, e isso diferentemente do que
um único dia; se ela dura imaginam os ignorantes, pois ela é convertida
um ano. ela cura em 12 nessa água de chuva que calcina e reduz em
dias. terra: aquela mesmo que transforma os cor-
pos em cinzas, incinera-os, branqueia-os e limpa conforme a palavra
de Morien dizendo que o Azoto* e o fogo lavam o Latão,* isto é, puri­
ficam-nos e lhe retiram a obscuridade de que estava revestido. O Latão
é, com efeito, o corpo imundo, enquanto o Azoto* é a Prata-viva.
Arnaud dc Villcncuve, O caminho do caminho
(Semita scmitir, séc. X1II-XIV), in Jean-Jacques Manget,
Bibliotheca Chcmica Curiosa, 1.1, p. 702.

*
* *

causa pela qual os Filósofos chamaram seu Mercúrio de Ovo tam­


bém é esta: pois, assim como o ovo é uma coisa redonda circular, con­
tendo em si duas naturezas e uma substância, a clara e a gema, e tira de
si mesmo outra coisa que tem alma, e vida, e geração, ou seja, quando
dele sai um frango, da mesma forma aqui o Mercúrio contém em si duas
coisas de uma natureza, corpo e espírito, e tira de si a alma e a vida
quando o todo é espiritual, de onde depois se faz a geração do verda­
deiro Elixir, o que fez Mirandus dizer: esse Ovo tira de si a vida que ele
tem e então, a alma e a geração. E Platão disse: no Ovo dos Filósofos
existem coisas que estavam completamente misturadas e pútridas e se
converteram em espírito, pois ele está vivo e não morto; é, portanto,
esse Ovo que, sendo colocado no fogo somente pela decocção, sem que
o toquemos com as mãos, faz um frango apenas por uma disposição,
A Obra do Le?\o Verde
301

que termina em si mesmo, e se confirma, e isso é


de natureza hermafrodita,* pois ele é macho e
femea, e da constituição hermafrodita, como /
confirma o Filósofo quando também diz: as­
sim a semente da planta é semelhante à im­ (•• ••.. / // . 7
pregnação, que é uma mistura do macho e W ,v
da fêmea, e assim como no Ovo existe uma
força para engendrar um frango, e da mes- \
ma forma sua matéria lhe é necessária até
que ele saia, o mesmo acontece no nosso, e
assim como a fêmea coloca um ovo em uma
hora, e a semente da planta, assim também
nos oferece nosso ovo, para que se engendre Ovo Filosófico: manuscrito do
século XVIII (Universidade de
um Elixir, de onde é fácil ver que um Elixir Glasgow Library).
não se pode engendrar senão das coisas que
têm nelas a compleição hermafrodita, como se vê no Ovo citado.
Bernard Ic Trévisan. Tratado do Ovo dos Filósofos
(séc. XV), in Basile Valentin,
As 12 Chaves da Filosofia
(1659). p. 13-15.
*
* *
]E/ agora, meu filho, para lhe dizer algo sobre o Mercúrio dos Filóso­
fos, aprenda que, quando você colocou sua água da vida com o homem
vermelho, que é nossa magnésia,* e com a mulher branca, que chama­
mos Albifica, e que todos eles serão conjugados como se fossem um,
você terá então na verdade o Mercúrio dos Filósofos. Pois depois que
ela é conjugada dessa maneira com o macho e a femea, essa água é
então nomeada Mercúrio dos Filósofos, água da vida dos Filósofos, ou
ainda sangue, carne, corpo e osso do homem vermelho. Compreenda
então que existem inúmeras espécies de leite, a saber, o leite de virgem,
o leite de mulher e também o leite de homem. Com efeito, quando eles
sào primeiramente unidos em um só, e que a mulher se tornará grávida
pela concepção, a criança deve então ser alimentada com leite. Você
poderá nesse momento também compreender que esse leite não é um
leite de virgem, mas antes de homem e de mulher, com o qual a criança
deverá sempre ser alimentada até que, tendo se tornado mais robusta,
ela possa ser criada com uma alimentação mais forte e substancial. Esse
alimento, assim como o compreendo, é a fermentação do que lhe dá
302 Filosofar pelo Fogo

forma, para que ele faça obra viril. Pois até que a criança, isto é, nossa
Pedra, esteja em forma e fermentada com seu semelhante, a saber, com
o sangue verde do Dragão verde, e com o sangue vermelho do Dragão
vermelho - que a Pedra seja branca, ou que ela seja vermelha ele
jamais poderá fazer uma obra perfeita. Compreenda então, filho, que a
primeira água é essa água e esse leite que Deus formou a partir da natu­
reza, e que é a causa da geração, como disse anteriormente. Na verdade,
naquele momento, após a conjunção que se faz desse casamento, eles
engendram a água da vida e o leite dos Filósofos, com o qual ou com os
quais você aumentará e alimentará indefinidamente sua Pedra.
Gcorge Riplcy, Livro do Mercúrio c da Pedra dos Filósofos
(Liber de Mercúrio et Lapide Philosophoruin,
in Opera omnia chemica (1649), p. I09-I 10.
Cf também Theatrum Chcimcum, t. III, p. 824.

*
* *

osso Mercúrio é essa serpente que devorou os companheiros de


Cadmus*, o que não tem nada de surpreendente, uma vez que antes
ele tinha devorado o próprio Cadmus, no entanto mais robusto que os
outros. Contudo, no final, Cadmus os atravessará de lado a lado, assim
que pela força de seu enxofre ele terá sabido coagulá-lo.
Saiba, portanto, que nosso Mercúrio comanda todos os corpos me­
tálicos e que ele pode dissolvê-los em sua mais próxima matéria mer-
curial ao separar seus enxofres; e saiba que o Mercúrio de uma, duas
ou três águias comanda Saturno, Júpiter e Vénus; de três a sete águias,
comanda a Lua; enfim, ele comanda o Sol quando tem de sete a dez.
Sobre isso concluo que esse Mercúrio está mais próximo do pri­
meiro ser dos metais do que nenhum outro Mercúrio; é por isso que ele
penetra radicalmente os corpos metálicos e manifesta suas profundezas
secretas.
Eyrcnce Philalcthc, A Entrada aberta ao paláciofechado do Rei
(Introitus apertiis ad occlusum Regis Palatium, 1645),
in Jcan-Jacqucs Manget. Bibhotheca Chemica Curiosa,
t. II, p. 664.
A Obra do LeAo Verde
303

H m toda a Natureza corpórea nào existe 1 .''®

sujeito mais digno de admiração do que o


Mercúrio. Estando vivo, ele se deixa matar;
sendo volátil, deixa-se fixar; sendo opaco,
deixa-se tornar transparente como um cris­
tal; e sendo transparente, torna-se novamente
se o quisermos escuro como a terra; toma-se
I P '■ ,
í
Éí ‘; I
solúvel como um sal, e depois indissolúvel
como a cinza de osso; deixa-se escurecer e sgL. .
depois branquear; e recebe até mesmo to­
das as cores da Natureza. Às vezes ele é o
maior veneno do mundo, às vezes a maior
medicina; ora é o marido, ora a mulher, ora
texi© ESI
o marido e a mulher juntos. E corpo e depois
é espírito; é visível e depois é invisível. As &
vezes ele tem a forma de fumaça, às vezes
de fogo, às vezes de fogo e de fumaça jun­
tos. Ora ele é fogo, ora é ar, ora é água, ora
é terra; e, quando é levado à sua mais alta
perfeição, ele é fogo, ar, água e terra unidos, Coletânea de manuscritos
de acordo com o justo peso da Natureza. alquímicos, Anisterdã, 1760.
Ele é fixo, fundível, penetrando em todos os
compostos dos três Reinos e os aperfeiçoando. Enfim, nós jamais termina­
ríamos de expor aqui todas as qualidades extraordinárias desse Mercúrio
assim levado à sua mais alta perfeição, que é o Mercúrio dos Filósofos; já
falamos bastante a respeito de nosso mênstruo.* Acabemos pelas palavras
de um de nossos mais célebres autores, que disse que tudo o que os Sábios
buscam se encontra no Mercúrio, e que nenhum composto, nem do reino
dos vegetais, nem do dos animais, nem do dos minerais pode ser perfeito
sem o Mercúrio.
Barcnt CoenJcrs van Hclpen,
Intrcditfífo à Tdesojw dc$ Anhgcs (1689),
p. 69 c 359-361.
*
* *
CZÍreio que poucas pessoas deixaram de observar que, entre os hie­
!
róglifos dos deuses da Antiguidade, o Galo é particularmente consa­
grado a Mercúrio. Albricus, em seu pequeno Tratado das Imagens dos

>
304 Filosofar pelo Fogo

Deuses^1 diz essas poucas palavras ao falar do Mercúrio: Diante dele


havia um Galo que lhe era particularmente dedicado. Portanto, é o
Galo o signo e a marca do Mercúrio, que os Químicos vulgares sempre
têm na boca, raramente entre as mãos, e nunca na meditação de seu
espírito; e, contudo, o Mercúrio é seu Todo’, mas, enquanto eles buscam
esse Todo no Mercúrio vulgar, eles nunca encontram nada.
O verdadeiro e simples Mercúrio dos Filósofos é, portanto, aquele
sobre o qual eu já disse que é úmido, aéreo, quente, espírito volátil, o
hermafrodita de Ovídio, o ácido e o álcali volátil; o Mercúrio duplo se
encontra com o Enxofre e o Sal filosófico, ou com o ácido e álcali fixo:
o que acontece quando se encontram e se unem em régulo,* e que as
fezes* e o lixo são rejeitados. Mas ele ainda não está puro, é preciso que
o Rei entre em seu Banho* filosófico, e que ali se lave; que ali morra,
que ali se vivifique; e que estando revestido de seu manto de púrpura
suba em seu trono.
Ouçam então isto, vocês Alquímicos mercuriais, que me enchem
sem parar os ouvidos com suas fixações e coagulações do Mercúrio vul­
gar; aprendam a partir do que eu lhes disse sobre o que é o Mercúrio fi­
losófico, sua fixação, sua coagulação, sua precipitação, sua sublimação
e sua revivificação, mas aprendam antes o que os Filósofos entendem
por morrer.
Sem dúvida, vocês viram algumas vezes mortos ou moribundos;
não observaram que o espírito quente volátil que tinha costume de pe­
netrar todos os membros do corpo, e de vivificá-los, uma vez apagado,
o sangue permanece e se coagula no cadáver: assim a morte, segundo
os Filósofos, não é outra coisa senão a coagulação e fixação da matéria
volátil.
Então, o régulo* não é volátil? Fixe-o, e ele estará morto. Mas um
cadáver está em condição de entrar em uma nova morada? E ele não
permanece em seu sepulcro em paz e em repouso eterno, como li várias
vezes nas Inscrições dos velhos túmulos, até que por meio de uma po­
tência divina ele ressuscite? Da mesma maneira, nada de fixo penetra
nos outros corpos metálicos. Devolver a vida a esse corpo, isto é, de
fixo que se tornara, faça com que ele se torne volátil novamente: e então
ele penetrará facilmente. Existe (diz o poeta) um calor e um espírito
vital no corpo que nos abandona à morte.
Enfim, de que cor são os corpos mortos? Segundo os poetas, a
morte é violeta, ou melhor, negra; e a vida não é de uma brancura como
a luz? Vocês sabem então o que é que os Filósofos querem dizer por
167. Obra publicada em 1520 (De Deorum Imaginibus).
A Orra do LeAo Verde 305

enegrecer e por branquear. Mas, então, existe alguém que ignore o que
é o paramento branco dos anjos? E as crianças, que têm pouco uso da
razão, conhecem-nos bem quando os veem pintados com asas. Se eles
têm asas, então esses Espíritos são voláteis.
Vocês podem se retirar agora, vocês que buscam com extrema de­
dicação suas diversas cores em seus vasos* de vidro. Vocês que me
cansam os ouvidos com seu Corvo negro, vocês são tão loucos quanto
aquele homem da Antiguidade que costumava aplaudir no teatro, ainda
que estivesse sozinho, porque sempre imaginava ter diante dos olhos
algum espetáculo novo. Vocês fazem o mesmo quando, derramando lá­
grimas de alegria, imaginam ver em seus vasos sua Pomba branca, sua
Aguia* amarela e seu Faisão vermelho: vão, eu lhes digo, e retirem-se
para longe de mim, se buscam a Pedra filosofal em uma coisa fixa; pois
assim como ela não faria do corpo de um homem do mundo as mura­
lhas mais sólidas, também não penetrará os corpos metálicos.
JacqucsTol, O Caminho do Cni iiLjuúnuv
(Sfanuductio ad Ccrlum Cbemicum),
trad. fr. 1688. p. 22-26.
*
* *
J^epitamos para concluir que o Enxofre e o Mercúrio são a mina de
nossa Prata-viva quando estão conjugados, porque a Prata-viva tem o
poder de dissolver, matar e vivificar os metais; poder que recebe do En­
xofre, ácido por natureza. Mas, para que você possa compreender me­
lhor, entenda que diferença existe entre nossa Prata-viva e o Mercúrio
vulgar. O Mercúrio vulgar não dissolve o Ouro nem a Prata, de forma
que ele não se separa deles; nossa Prata-viva dissolve verdadeiramente
o ouro e a prata e deles não é jamais separada, não mais que a água
misturada com a água. O Mercúrio vulgar tem em si um Enxofre com­
bustível ruim que o escurece; nossa Prata-viva contém um Enxofre
incombustível, fixo, bom, muito branco e vermelho. O Mercúrio vulgar
é frio e úmido; o nosso é quente e úmido. O Mercúrio vulgar escurece e
corrompe os corpos; nossa Prata-viva os branqueia até lhes dar a trans­
parência do cristal. E, precipitando o Mercúrio vulgar, nós o converte­
mos em um pó cor de limão e em um mau Enxofre, ao passo que nossa
Prata-viva é convertida pelo calor em um Enxofre muito branco, bom,
fixo e fusível. O Mercúrio vulgar torna-se tanto mais fundível quanto
mais é cozido, mas quanto mais nossa Prata-viva é cozida, mais ela
engrossa. Assim você poderá então concluir sobre essas considerações
306 Filosofar pelo Fogo

em que diferem entre si o Mercúrio vulgar e a Prata-viva dos Filósofos


[...].
E com razào que, entre os três Princípios, os Filósofos atribuíram
o primeiro lugar ao Enxofre como ao mais digno dos princípios, na pre­
paração do qual a Ciência é oculta. Existem três espécies de Enxofres,
entre os quais é preciso escolher um que tinge ou então colore; o se­
gundo é um Enxofre que congela o Mercúrio, e o terceiro é um Enxofre
essencial que conduz à maturidade e do qual devemos na verdade tratar
seriamente [...]. O Enxofre é o mais maduro dos outros Princípios, e o
Mercúrio não poderia ser coagulado senào pelo Enxofre, de forma que
toda nossa operação nessa Arte não é senão aprender a tirar o Enxofre
dos metais, por meio do qual nossa Prata-viva é congelada em ouro e
em prata nas entranhas da terra. Nessa obra, esse Enxofre representa
o papel do macho, e essa é a razão pela qual ele é considerado
como o mais nobre, e o Mercúrio lhe faz o papel de fêmea. Da
composição e da ação desses dois são engendrados os Mercúrios
dos Filósofos.
O Cosmopolita (Mtchad Sendivogius dit),
Tratado do Enxofre (Tractatus De Sulpbure, 1609),
in Jcan-Jacqucs Mangct, Bibliotheca Chetnica Curiosa,
t. II, p. 487-488.
*
* *
f'1
v chegamos então à contemplação de um sujeito de milagres, pois Al-
caeste* é sem dúvida um dos mais admiráveis Segredos da Natureza. É
um ser imortal e incorruptível, que pode reduzir todos os mistos* à sua
primeira matéria líquida, destruindo sua solidez corpórea e os volatizando.
O Nome alemão, que Paracelso foi o primeiro a lhe dar, composto das duas
dicções Algehest, que significam todo Espírito, pode bem marcar sua Natu­
reza. E de fato um Espírito de uma substância tão homogénea que não pode
ser alterado em sua Natureza senão por um semelhante (seu confrade) que
o muda e lhe faz perder sua virtude, quando se encontram misturados [...].
Ora, como só existe apenas um fogo na Natureza, só existe mesmo, conti­
nua esse grande homem [Van Helmont], um único Licor dissolvente que
lhe seja semelhante: e ele é ainda bem mais poderoso e bem mais violento
do que a chama do fogo ordinário. Pois as coisas que são colocadas neste
último, que ali permanecem sem alteração, são destruídas pelo primeiro e
são alteradas radical e fundamentalmente [...].
O Licor de que falamos é um Licor pesado, sendo apenas Sal sem
fleuma. Ele é inteiramente volátil, porque é todo espírito, separado de
r\ Obra do Leão Verdf. 307

todo excremento grosseiro. Seu odor é fra­


co, ainda mais que tudo o que tem o odor
forte é em sua maioria ou volátil, ou com­
posto de várias partes heterogéneas. Ora,
esse Licor, ainda que volátil, no entanto
‘Ã&X: - fjg ’
>■< ■3->—-i
nào o é no grau do Espírito do vinho, do < A" ■•-ífetlíSííeà
Espírito da urina, ou de qualquer outro Es­
pírito semelhante, que voam ao mínimo
calor; mas ele é no grau dos Espíritos pe­
sados, que entregam sua fleuma na desti­
lação antes de subir. Por isso, depois que vÁ,--v. ’
dissolveu os vegetais c os volatizou, ele os
deixa evaporar por completo, e dele se se­
parar, em um calor muito fraco do Banho-
Maria.* Ele os deixa, eu digo, subir apenas
ornados por suas cores diferentes; e eles,
ao contrário, deixam esse Licor que os dis­
solveu e volatizou no fundo da cucúrbita,*
na mesma quantidade e com a mesma vir­
tude que tinha antes de dissolvê-los. “Nosso Filho ” ou a divina Agua
Enfim, esse Licor é um ser imortal, mercurial: Barus Urbigenus,
quero dizer que é uma substância cuja vir­ Bcsondcre Chymische Schriften,
tude não se esgota na continuidade de sua Hamburgo, /705.
ação sobre os mistos, mas que conserva seu
vigor sem alteração, estando sempre prestes a dissolver os corpos. Ele
está apenas sujeito aos acidentes, mas não a mudar de natureza, se não for
pelo meio de seu semelhante. E isso por causa de todas essas belas quali­
dades que aqueles que o conhecem o consideram um Segredo sem igual.
O Alcaeste ou o Dissolvente universal Je lún Helmont
Revelado cm vários Tratados que descobrem seu
Segredo pelo Senhor Jean Le Pcllctier (1704).
p. 138-156.

*
* *
1SJ osso Mercúrio, creio que já o dissemos, é esse peregrino, esse

viajante ao qual Michael Maier consagrou um de seus melhores trata­


dos.168 Ora, ao utilizar a via seca, representada pelo caminho terrestre
que acompanha, no início, nosso peregrino, chegamos a exaltar pouco

168. Viatorium: Hoc est de Montibus Planetarum septem seu metallorum, 1651.
308 Filosofar pelo Fogo

a pouco a virtude difusa e latente, transformando em atividade o que


estava apenas em potência. A operação está terminada quando surge na
superfície uma estrela brilhante, formada de raios que emanam de um
centro único, protótipo das grandes rosáceas de nossas catedrais góticas.
Esse é um sinal certo de que o peregrino chegou felizmente ao final de sua
primeira viagem. Ele recebeu a bênção mística de São Jacques, confirmada
pela impressão luminosa que irradiava, como dizem, acima do túmulo do
apóstolo. A humilde e comum conchinha que ele levava no chapéu se trans­
formou em astro brilhante, em auréola de luz. Matéria pura, cuja estrela
hermética consagra a perfeição: é agora nosso composto, a água bendita de
Compostela (lat. compos, que recebeu, possui, stella, a estrela), e o albatre
dos sábios (albastrum, contração de alabastrum, estrela branca). É também
o vaso dos perfumes, o vaso de alabastro (gr. alabaston, lat. alabastrus) e o
botão nascente da flor de sabedoria, rosa hermética.
Fulcanellí, As Moradas Filosofais,
1.1. p. 435-436.
trad. fr. 1688, p. 7-10 c 31.

Um fogo vivo e simples (Avicena)

uando encontramos nos escritos dos Filósofos o termo Leão em­


pregado sem qualquer acréscimo, ele significa o enxofre dos Sábios,
seja branco, que eles também chamam Ouro branco, seja vermelho, que
nomeiam simplesmente Ouro.
Algumas vezes eles dão o nome de Leão ao pó de projeção, por­
que ele é ouro perfeito, mais puro do que o próprio ouro das minas, e
transforma os metais imperfeitos em sua própria substância, isto é, em
ouro, assim como o Leão devora os outros animais e os transforma
em sua substância, porque deles se alimenta.
Quando eles se servem do termo Leão para designar seu mercúrio,
a ele acrescentam o epíteto qualificativo de verde. Para distingui-lo do
mercúrio digerido e feito enxofre. E nesse sentido que as seguintes ex­
pressões de Morien devem ser compreendidas: “Tome a fumaça branca,
e o Leão verde, e o Almagra* vermelho, e a imundície”.
LEÃO VERDE. Matéria que os Filósofos Alquímicos empregam
para fazer o magistério dos Sábios; essa matéria é certamente mineral,
e tomada do reino mineral. Ela é a base de todos os mênstruos* de que
os Filósofos falaram. É dessa matéria que compuseram seu dissolvente
universal, que em seguida afiaram com as essências dos vegetais, para fa­
zer o mênstruo vegetal; e com as essências dos animais, para o mênstruo
animal e com as essências dos minerais, para o mênstruo mineral
A Obra do LeAo Verde 309

LEÃO VERMELHO. Os filósofos espagíricos* chamam assim a


matéria terrestre e mineral que permanece no fundo do vaso após a su­
blimação dos espíritos que deles saíram, e que eles chamam Águias.*
Esse Leão vermelho também é o que chamam Latão.*
Dom Antoinc-Joseph Pernéty,
Dicionário mítico-hermético (1758).

*
* *

ocê não me pediu a explicação em relação aos enxofres, permane­


cendo até hoje fiel ao seu juramento? Essa explicação lhe será dada em
tempo oportuno. Você que não é apenas o filósofo
que mencionou os enxofres, mas também todos os r;
profetas; pois sem os enxofres não existirá nada, isto
é, sem água divina. De fato, toda a composição é
absorvida por ela; é por ela que é cozida; por ela que g
é queimada; por ela que é fixada; por ela que é tingi­
da; por ela que sofre o iosis* e por ela que é afinada.
Pois ele diz: “Coloque água de enxofre nativo em
um pouco de goma:* assim você tinge toda espécie O que luta contra o Jogo
de corpo”. Ouça ainda o mesmo autor: “Deixe des­ é o Enxofre, o que o
cer e o produto se forma: esse é o mistério manifes­ mantém é o Mercúrio.
to”. Mas alguém dirá: Entre os sulfurosos, o que é
que se assemelha à água divina? Nós lhe respondemos: em primeiro,
o que é que operou com outra coisa além da água divina? Ora, se [nin­
guém] operou de outra forma, é com razão que meu Filósofo não falou
de outra coisa além daquilo que compreendemos.
Portanto, chamamos água divina a água do enxofre. Ouça bem. Cha­
mamos divino o vapor sublimado, emitido de baixo para cima. Da mesma
forma, a cinza formada sobre as paredes dos condutores de fumaça é cha­
mada divina. Possivelmente também as gotas que escorrem das caldeiras,
também as chamamos de divinas. O mercúrio branco, nós ainda o chama­
mos divino, porque ele também é emitido de baixo para cima.
Zózimo. “Os Enxofres”,
in Marcelin Berthclot,
Cokfão dos antigos alquimistas gregos
(1888). t. III. p. 173.
*
* *
310 Filosofar pelo Fogo

Enxofre é uma gordura da Terra, que se tornou espessa nas minas


por meio de um cozimento moderado, até que ela se tornasse dura e seca,
e então ela se chama Enxofre. Ora, o Enxofre tem uma composição muito
forte, e é de uma substância semelhante e homogénea em todas as suas par­
tes. É por isso que não poderíamos extrair seu óleo pela destilação, como
fazemos com as outras coisas que o têm. E aqueles que pretendem calciná-
lo. sem nada perder de sua substância que seja útil e considerável, perdem
seu tempo, só podendo ser calcinado com muito artifício e sem uma grande
dissipação de sua substância. Pois de cem libras de Enxofre que colocamos
para calcinar, apenas encontraríamos três, depois da calcinação. Também
não poderíamos fixá-lo, se ele não foi calcinado antes. No entanto, ao mis­
turá-lo com alguma outra substância, podemos impedir que se evapore c
fuja de maneira tão rápida, e garantir sua adustão* Ele se calcinará mesmo
estando misturado. Mas, se quiséssemos lhe extrairá Matéria da Obra, pre­
parando-o por si mesmo, não conseguiríamos: porque ele só se aperfeiçoa
se estiver misturado com outra coisa, e sem ele o Magistério demora tanto
para ser feito que somos obrigados a abandonar a obra. E, se o misturamos
com seu semelhante, o Arsénico,* ele se transforma em Tintura, e dá a cada
metal o peso dos metais perfeitos; ele lhe retira suas impurezas e o toma
resplandecente. Ele se tornou perfeito por meio do Magistério, sem o qual
não pode fazer nada do que eu acabo de dizer: ao contrário, ele estraga e
escurece os corpos com os quais o misturamos. É por isso que não devemos
jamais nos servir dele sem o Magistério [...].
Outro efeito do Enxofre é que com certeza ele aumenta o peso de
qualquer metal que calcinamos com ele, e que com o Enxofre podemos
tornar o cobre semelhante ao Ouro. Ele se une também com o Mercúrio.
E, se sublimamos os dois juntos, temos o Cinábrio[...].* É o Enxofre
que ilumina, isto é, dá o brilho, e aperfeiçoa todos os corpos, ou metais,
pois ele é por si mesmo Luz e Tintura [...].
No mais, o Enxofre se sublima, porque é um Espírito. Se o mistu­
rarmos com Vénus, e fizermos dos dois uma composição, teremos uma
cor violeta muito bela. Ele também se mistura com o Mercúrio, e pelo
cozimento se faz um Azul muito agradável. No entanto, não é neces­
sário imaginar com isso que o Enxofre possa por si mesmo servir para
fazer a Obra dos Filósofos. Pois isso seria um erro, como demonstrarei
claramente em seguida. Para escolhê-lo, é preciso tomá-lo maciço e
claro. Creio que não é mais necessário falar do Enxofre.
Pscudo-Gcber, Súmula da Perfeição do Magistério
(Summa perfeetioms Magisterii, scc. XIV),
in William Salmon, Biblioteca dos Filósofos Alqtumicos, r. I,
A Obra do LeAo Verde
311

O Leão verde ou bronze de Hermes: Michael Maier. Atalanta


fugiens, Oppenheim, 1618, emblema XXXVII.
p.I51-154.
*
* *

Leão verde dos Filósofos169 é o meio pelo qual todas as coisas


adquirem seu vigor e crescem graças à sua virtude atrativa, elevadas
que elas são das entranhas da terra (ela também elevada) para fora das
cavernas invernais; e cujo filho nos é particularmente agradável e sa­
tisfatório quanto à composição de todos os Elixires realizados a partir
dele. Pois é dele que será obtida a potência do enxofre branco e verme­
lho não escaldantes, que é, como diz Avicena, a melhor coisa que os al­
quimistas podem tomar para em seguida fazer o ouro e a prata. E essas
palavras podem bastar ao homem sábio para reconhecer e obter o Leão
verde. Mas esse nobre filho é assim chamado porque, uma vez dissolvi­
do, está recoberto de uma vestimenta verde. No entanto, dele é extraído
pelo fogo veemente dos insensatos essa água que talvez invocaremos,
na qual o dito Leão deve ser transformado em Elixir. Pois todo ouro Al-
169. cf. essa definição complementar de George Ripley: “Por Leão verde entendemos o
ouro vivo multiplicável e espermático que não é realizado pela natureza, mas detém o poder
de reduzir os corpos em sua primeira matéria, torná-los fixos, espirituais e fugitivos, e é por
causa disso nomeado com razão Leão”: Clavis aurecvportce, op. cit., p. 245.
312 Filosofar pf.lo Fogo

químico é preparado a partir de corrosivos: é por isso que o ouro assim


feito não ataca as medicinas do corpo humano; pois seria melhor para
o homem comer os olhos de Basilisco* que o ouro confeccionado com
nosso fogo contra natureza. E essa coisa da qual é extraída a água forte
é o Vitriol* verde, a água de chuva de Vénus; e chamado por muitos
Filósofos ouro romano, por causa da abundância de sua nobre tintura,
pois ele deve ser fermentado com o ouro vulgar.
Georgc Riplcy, A Medula da Filosofia ALpiímica
(Medula Philosophir ehetnicae, 1476),
in Opera omnia Cbeuiica (1649),
p. 139-HO.

*
* *
Ty preciso ter o agente, que é o Leão verde, e o paciente, que é seu irmão
uterino, chamado nigrum nigrius nigro,'10 retire dele seu espírito ou a
parte superior da alma pela dissolução, é o Mercúrio dos Filósofos; depois
tire sua alma, que é o óleo, fogo ou enxofre secreto e oculto vermelho e
sangue desse Leão verde; depois retire seu corpo e depois da purificação
reúna-os pela embebição, trituração, dessecação, seja ao branco ou ao ver­
melho, desde que ele esteja próprio para fazer a projeção.
Jacqucs Ic Tcsson,
A Obra do Leão Verde (séc. XVI),
ms. n. p.

j^Jaiba que com certeza existem


duas espécies de enxofre, o vivo e o
combustível. O Enxofre vivo consti­
tui a parte ativa dos metais que, quan­
do é purgada pela natureza de todas
as suas sujeiras, não é a matéria da
Pedra, mas se comporta em relação a
essas últimas como inimiga. Avicena
e Ricardo, o Inglês, ensinam de fato
que o enxofre vulgar e combustível
Leão verde coroado de Ouro: Rosarium não entra em nosso Magistério por­
Philosophorum, Praga, 1578. que este não pode ser originado dele;
170. Negro mais negro do que o negro: fórmula clássica que designa o caráter tenebroso
do Nigredo.
A Obra do LeAo Verde
313

mas que, cuidadosamente preparado pela operação da Arte, esse enxo­


fre enegrece, impregna e corrompe todos os metais. Pois, sendo capaz
de corrupção, ele impede a fusão quando é fixado, assim que o vemos
no ferro que contém um enxofre fixo, grosseiro e imundo. Mas, quando
esse enxofre é queimado, ele se retira em uma substância terrosa, com­
parável às cinzas de um morto. Como poderia então comunicar a vida
às outras coisas? De fato nele existem duas causas de corrupção, ou
seja, uma substância inflamável e uma terra pulverulenta. Examine en­
tão a partir dessa exposição preliminar o enxofre vulgar, não aquele dos
Filósofos, que é um fogo simples, vivo, amadurecendo c vivificando os
outros corpos mortos. Por isso o enxofre qualificado como comum nào
poderia ser a matéria da Pedra.
Tratado de Ouro sobre a Pedra dos Filósofos
(Traetatus Aureus, 1625), in Museurn Hermetuum,
p. 24-25.
*
* *

o Mercúrio dos Filósofos reside aquilo que os Sábios procuram, c


nada pode ser extraído da Alquimia que nele não esteja encerrado ape­
nas: existe ali um Enxofre branco e um Enxofre vermelho, masculino e
feminino, os quatro Elementos, e a totalidade da natureza metálica. Tudo
o que pode ser extraído com o objetivo de realizar a obra está encerrado
na intimidade das entranhas mercuriais, e todas essas coisas são tornadas
manifestas somente pelo cozimento: o Enxofre branco primeiro, o En­
xofre vermelho em seguida; um masculino, o outro feminino. Eis o que
proclamam os Filósofos: o marido vermelho atrai sua branca esposa; o
marido vermelho é o Enxofre vermelho, e a esposa cândida é o Enxofre
branco. Dos Enxofres vermelho e branco é realizado o verdadeiro casa­
mento químico, do qual apenas nasce nosso filho metálico da natureza do
fogo, que enobrece toda a descendência e o parentesco seguinte e conduz
a uma majestade real. Somente no Mercúrio dos Filósofos se encontra,
em minha opinião, portanto, tudo o que pode ser extraído pela alquimia.
Contudo, somente nele acontece certa crueza excessiva, decorrente de
sua frieza e de sua umidade mal temperadas. Conjugamos então ao En­
xofre o ouro absolutamente puro, para corrigir com sucesso todo esse
excesso de crueza, porque o ouro muito maduro é aquele de todos os me­
tais. A maturidade do ouro nos permite então corrigir a crueza metálica
do Mercúrio; e assim esses Enxofres vermelho e branco que residem em
suas profundezas progridem mais facilmente fora em direção à luz, como
o próprio Geber o afirma por essas palavras no capítulo XII da Súmula
da Perfeição [...].
314 Filosofar pelo Fogo

O Enxofre perfeitamente branco que permanece oculto em todas as


coisas é um fogo natural ou uma luz interna cujo calor nativo está incluí­
do em todas as coisas, que cada coisa faz amadurecer e fabrica, a fim de
existir assim como elas são. Também nos metais ele preexiste da mesma
forma, assim como nas outras coisas; ele constitui sua perfeição, leva-os
à maturidade e os colore, e se revela duplo, volátil e fixo. O volátil apa­
rece sob a forma de uma terra folhada, do mais belo branco quanto à cor
e à luminosidade, a exemplo da melhor prata. O fixo também é uma terra
muito branca e luminosa, que, por meio de um fogo leve, escorre de tal
forma que transforma em prata a cera e todas as imperfeições metálicas,
e que fixa na melhor prata o mercúrio cru e vulgar. Por isso ela merece
ser chamada Lua dos químicos, pois as virtudes e propriedades da Lua
merecem ser imitadas: existe de fato um Sol não digerido e imperfeita­
mente maduro, que, no entanto, amadurece inteiramente e se torna Sol
perfeito, cuja brancura é então mudada em vermelho perfeito e mais es­
curo. Esse Enxofre também pode ser, como já disse, descoberto em toda
parte, e ele se encontra principalmente em todos os corpos metálicos, a
partir dos quais nossa água pôntica é preparada; por isso convém limpar
principalmente os metais comuns e vulgares que provêm da Lua. Se nos­
sa água pôntica é dissolvida, e cozida por uma digestão permanente e
lenta, ela é enfim convertida, por dissoluções e coagulações repetidas em
um Enxofre branco brilhante e esplêndido, de uma penetração suprema
e de um poder de transmutação muito potente [...].
Esse Enxofre vermelho dos Filósofos é um fogo natural e sob todos
os aspectos verdadeiramente perfeito, muito perfeitamente digerido, e
não difere substancialmente do Enxofre branco de nenhuma maneira, a
não ser pelo cozimento e digestão. No Enxofre vermelho, a digestão e o
cozimento são, com efeito, perfeitos e absolutos, enquanto eles não o são
total mente no Enxofre branco. Portanto, o Enxofre vermelho e o Enxo­
fre branco não diferem substancialmente mas acidentalmente, pois essa
matéria que contém esse fogo ou luz da natureza é a matéria muito pura
dos Elementos, perfeitamente digerida graças a essa última, por esse
fogo mesmo e essa luz natural, de onde provém a matéria muito nobre
e muito perfeita de todas as coisas. Quem detém esse fogo da natureza
muito perfeitamente separado, e tirado dos corpos metálicos aperfeiçoa­
dos, possui um tesouro infinito e incomparável.
Pierrc-Jean Fabre, Defesa da Alquimia
(Propugnaculutn Alchemiae, 1645),
p. 60-61,94-96.
*
* *
A Obra no LeAo Verdf.
315

|Saiba então que o Enxofre filosófico não é outra coisa além do fogo
muito puro da natureza, disperso nos elementos, e preso por essa mesma
natureza em nosso sujeito,* e nos vários
outros em que já recebeu alguma cocção, £
pela qual ele é cm parte congelado e fi­
xado; todavia, sua fixidez é ainda apenas
potência, porque ele está envolvido por
muitos vapores voláteis, que são causas
que evaporam facilmente e desaparecem
nos ares.
Pois, quando em um sujeito a parte
volátil suplanta a fixa, as duas se tornam
voláteis, e isso acontece segundo as regras
e a possibilidade da natureza. Portanto,
essa luz não se encontra de forma algu­
ma, atualmente, fixa sobre a terra, sem
ser suplantada pelas qualidades contrá­
rias, fora no Ouro; o que faz com que o
Ouro seja o único de todos os corpos em
que os elementos estão em uma proporção Leão verde brandindo a Terra dos
igual, e consequentemente fixo e constan­ Sábios: Hermaphroditisches Sonn
te ao fogo. Mas, quando essa virtude fixa und Mondskind. 1572.
é suplantada por uma maior parte volátil
da mesma natureza que ela, e que ela se encontra unida a excremen­
tos vaporosos, então perde essa fixidez por um tempo, ainda que esteja
sempre em potência.
Nosso Enxofre, que é requisitado pela Obra, é o esplendor do Sol
e da Lua, da natureza dos corpos celestes, e revestido de um corpo se­
melhante. Assim, é preciso que você procure cuidadosamente em que
sujeito esse esplendor pode estar e se ali pode conservar, e saiba
que ali onde está esse esplendor, ali está a Pedra tão procurada. É da
natureza da luz não poder aparecer aos nossos olhos sem estar revestida
de algum corpo, e é preciso que esse corpo também seja adequado para
recebera luz. Ali, portanto, onde está a luz, ali necessariamente também
deve estar o veículo dessa luz.
Eis o meio mais fácil para não errar. Procure então, com a luz de
seu espírito, a luz que está envolvida pelas trevas, e aprenda então que o
sujeito mais vil de todos, segundo os ignorantes, é o mais nobre segun­
do os sábios, uma vez que somente nele a luz repousa, e que é por meio
316 Filosofar pelo Fogo

dele que ela é retida e conservada. Nào há nenhuma natureza no mundo,


exceto a alma razoável, que seja tão pura quanto a luz, assim o sujeito
que a contem deve ser muito puro, e ao vaso que deve servir a todos os
dois também não deve faltar pureza. Eis como em um corpo muito abjeto
está encerrada uma coisa muito nobre, e isso para que todas as coisas nào
sejam conhecidas de todos.
Bruno Jc Lansac, comentários de A Luz que sai por si mesma das
trrvas, dc Mascantonio Crassclamc (1687),
úi William Salmon, Biblioteca dos Filósofos Alquimicos,
t. III, p. 504-506.
*
* *
CZÍomecemos então dizendo que o Enxofre, que é óleo ou resina do cor­

po. contém em si o fogo de natureza, alimentador e conservador da vida.


Ou bem que o Enxofre é esse bálsamo doce, ainda que participando de
alguma acidez, oleaginoso acompanhado de viscosidade, que conserva o
calor natural das partes, sendo o meio de toda vegetação, crescimento e
transmutação, a origem e a fonte de todos os odores, tanto os bons quanto
os ruins. Esse Enxofre tem alguma analogia e relação com o fogo, ainda
mais que ele se inflama facilmente, assim como todos os outros corpos
oleosos e resinosos. Quando este nào faz parte de sua depravação, ele tem a
virtude de adoçá-lo e conjugar as extremidades contrárias do Mercúrio e do
Sal: pois como aquele é volátil e este fixo, eles só podem se unir e ligar em
uma mesma substância por intermédio do Enxofre, o qual participa de um
e de outro, temperando por sua viscosidade a secura do Sal, e a liquidez do
Mercúrio; e, por sua doçura, a acidez do sal, e a acidez do Mercúrio. Ora,
esse Enxofre, vindo a recuar em seu ser e constituição natural, produz uma
infinidade de doenças que podem ser chamadas sulfuradas, para as quais o
remédio não se encontra senão nos Enxofres de natureza extraídos de seus
corpos, e bem retificados pela Arte espagírica.*
David de Planis Campy,
Buquê composto das mais belasflores alqumúcas (1629).
in Obras, (1636), p. 420.
A Obra do LeAo Verde 317

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Fonte da juventude de onde jorra a Agua mercurial:


Rosarium philosophorum, Praga, 1578.
318 Filosofar pelo Fogo

Vaso contendo o Dragão com três cabeças: Salomão


Trismonin, Splendor Sol is, Londres, séc. XVI.
Fechamento do Vaso
e Cores do Tempo

Essa rosácea circulante no vaso filosófico demonstra


as agradáveis cores da íris. Pelas diferentes refrações
da luz sobre as nuvens vaporosas que se elevam da terra:
o olho e os sentidos estão radiantes de admiração por esses
fenômenos.

Preceitos e Instruções do Pai Abraão ao seu Filho,


in William Salmon, Biblioteca dos filósofos
alquínucos, t. IV. p. 556.

Nada exprime melhor a unidade da Matéria e o processo operan­


do sua transformação do que a imbricação dos dois “vasos ”, da Na­
tureza e da Arte. Abrigado pelo forno que o suporta (athanor), o vaso
alquimico é realmente matraz de vidro, mas os alquimistas também no­
meiam esse vaso sua Agua; é o mesmo que dizer sua preciosa Matéria
em quem e por quem pode ser efetuada a transmutação dos metais, à
imagem dessa “alquimia ” natural que já é o crescimento das sementes
metálicas nas profundezas da terra. Hermeticamente fechado (selo de
Hermes), o vaso da Arte corre o risco de explodir a todo momento, se
o operador não demonstrar ponderação e habilidade na conduta das
operações que afetam o conteúdo do vaso.
Comumente designado pelas principais cores que pontuam o cur­
so (negro, branco, vermelho), a Opus Chemicum revela ao especta­
dor iniciado os sutis esplendores de um microcosmo a caminho de sua
própria glória, de acordo com um tempo muito preciso, cujo desenro-
lamento permanece constantemente em frequência com os ritmos cós­
micos. “Como o ano está dividido em quatro partes, assim está dividido

-319-
320 Filosofar pelo Fogo

nosso trabalho bendito ”, sugere o Pretiosissimum Donum Dei (séc.


XV). Toda urna paleta de cores infinitamente mais cheia de nuanças
se oferece de fato ao seu olhar atento e maravilhado, cuja qualidade
própria e a ordem de aparição infirmam e confirmam o bom andamen­
to das operações. E o próprio tempo que assim se colore, tornando
dessa forma perceptivel a presença do grande mundo (macrocosmo)
no coração do matraz.
*
* *

Vaso de natureza e vaso da arte


Preparação da Água divina:

Pegue alguns ovos, a quantidade que desejar, ferva-os e, depois de tê-


los quebrado, retire toda a clara, mas não use a casca. Pegue um vaso
de vidro macho e fêmea, este que é chamado de
alambique, jogue nele as gemas dos ovos e use as
seguintes medidas: uma onça de gema; dois qui­
lates de casca dos ovos calcinada, nem mais nem

bX menos, mas apenas como está escrito. Em segui­


da triture; depois, pegue outros ovos, quebre-os e
jogue-os no alambique com as gemas batidas, de
Zi modo que os ovos inteiros sejam recobertos pelas
gemas.
Quem não conhece a Vede o alambique e sua tampa ao recipiente,
conduta da verdade ig­ com muito cuidado servindo-se da gordura, ou
nora o vaso de Hermes.
do gesso, ou então de cera de abelha, ou de cinzas
misturadas com óleo, ou com o que você bem desejar. Faça digerir no
esterco de cavalo ou de asno, ou no fogo de serragem de madeira, ou
no forno de padeiro. Empregue qualquer gênero de calefação conve­
niente, no grau que a mão humana possa suportar.
Que o lugar onde os aparelhos estão instalados esteja protegido
do vento, que ele receba a luz do leste ou do sul, mas não a do poente,
ou do norte, ou do noroeste, ou do nordeste, por causa do resfriamento.
Deixe digerir durante 14 ou 21 dias, até que cesse a subida dos vapo­
res; e mantenha cuidadosamente apertadas as junções do aparelho, a
fim de conservar o odor, pois, se ele escapar, todo o trabalho estará
Fechamento do V/\so e Cores do Tempo
321

perdido. Com efeito, esse odor é muito desagradável, c é nesse odor


que reside o trabalho.
Zózimo, Sobre a Água Divina",
in Marcclin Berthclot,
Cokfão dos antigos alquimistas gregos, t. III, p. 143.
*
* *
Depois de ter sido determinado para que fim e segundo que meios
operar, agora é permitido ouvir de que maneira e a partir de que elemen­
tos o vaso* e o forno* devem ser construídos. Como a natureza cozinha
os metais nas minas graças ao fogo natural, ela se recusa a efetuar essa
decocção em outro lugar que nào seja um vaso adaptado a esse fim. E
se nós nos propomos a seguir a natureza quanto ao modo de cozimen­
to, por que rejeitaríamos o vaso? Vejamos então primeiramente de que
qualidade é o lugar da geração dos metais. Ora, cm todos os lugares
em que crescem os metais, é evidente que existe no fundo da montanha
um calor que subsiste uniformemente, cuja natureza é sempre a de se
elevar e que, subindo sem cessar, resseca e coagula a água mais densa
oculta na Prata-viva ou aquela, mais grosseira, existente seja no ventre,
seja nas veias da terra ou da montanha. E se a gordura mineral desse
lugar foi assim extraída da terra então reunida em suas veias, ela corre
através da montanha e é Enxofre. E como é possível vê-lo nas veias
já mencionadas desse lugar, quando o Enxofre oriundo da gordura da
terra foi finalmente engendrado, ele, além do mais, vai além ao encon­
tro da Prata-viva nas veias da terra (como já foi descrito) e provoca a
condensação mineral da água. Então, graças ao calor igual e contínuo
que reina no seio da montanha, os diversos metais são engendrados em
um longo espaço de tempo, segundo a diversidade do lugar, pois nos
lugares próprios aos metais encontramos um calor sempre constante.
Por isso, é para nós um fato ajusto título estabelecido que a montanha
mineral sempre é, vista do exterior, de todas as partes fechada sobre ela
mesma e pedrosa, pois, se o calor pudesse sair, os metais não seriam de
forma alguma engendrados.
Se queremos então imitar a natureza, devemos necessariamente
possuir tal gênero de forno, comparável às montanhas não pela grande­
za, mas pelo fato de que ele produz um calor contínuo, de tal forma que
o fogo que ali está disposto não possa encontrar a saída quando se eleva,
e que o calor reverbera o vaso hermeticamente fechado que contém cm
si a matéria da pedra. E por isso que o vaso deve ser redondo com um
322 Filosofar pelo Fogo

pequeno gargalo, e feito de vidro ou de certo tipo de terra que reproduz


a natureza sem mistura do vidro; e sua boca deve ser marcada ou selada
com uma tampa ou betume. E da mesma forma o calor nas minas nào
atinge imediatamente a matéria do Enxofre e da Prata-viva porque a ter­
ra da montanha se interpõe em toda parte; assim o fogo não deve ime­
diatamente tocar o vaso que contém em si a matéria desses elementos,
mas deve ser depositado em outro vaso fechado da mesma forma, para
que assim o calor temperado atinja a matéria por cima e por baixo e cm
toda parte de maneira mais suave e apropriada. Por isso Aristóteles diz,
em A Luz das luzes, que o Mercúrio deve ser cozido em um triplo vaso
e que o vaso deve ser feito de um vidro muito duro ou, o que é melhor,
de uma terra que possui a natureza do vidro.
Rogcr Bacon, O Espelho da Alquimia
(Spcadum Akhftniar. scc. XIII), in Jcan-Jacqucs Mangct.
Bibliolhtca Cbeniica Curiosa, 1.1, p. 615.
*
* *

artista deve fazer seu forno de acordo com o grau de fogo que ele
quer dar. Assim, se quiser fazer um fogo forte e violento, deve fazer seu
forno espesso, com grandes registros, e suficientemente largo para ter
um grande espaço entre seu vaso sublimatório e os lados do forno. E, se

Forno alquíniico: Frontispício do tratado de Geber De


Alchimia libri tres, Strasbourg, 1529.
Fechamento do V/\so e Cores do Tempo 323

ele quiser que seu fogo seja medíocre ou fraco, deve dar a todas essas
coisas uma extensão mais medíocre e menor [...].
Se então você quiser fazer uma grande sublimação, deve ter um
aludel tão grande que toda a matéria que você colocará no fundo de
seu vaso só tenha um palmo* de altura. Em seguida você colocará esse
aludel em um forno tão largo que, uma vez o vaso colocado no meio,
ele tenha pelo menos dois polegares de distância entre ele e os lados do
forno, no qual será necessário fazer buracos ou registros que também
sejam espaçados, para que o calor também se comunique em toda par­
te. Depois, você colocará uma barra de ferro espessa de um polegar no
meio do forno, apoiando-se firmemente nos dois lados e elevada acima
do fundo do forno de um bom palmo, sobre a qual você colocará seu
aludel, que será reunido a cada espaço ao forno, para que esteja mais
firme. Então, faça um fogo e tome cuidado para que a fumaça saia bem,
e para que a chama se espalhe livremente por todo o forno c envolva o
aludel. Pois, se assim acontece, isso será uma marca de que a proporção
está sendo bem observada [...].
Em relação à espessura do forno, ela depende do fogo que se queira
fazer. Pois, se ele deve ser alto, é preciso que o forno tenha mais espessura
e esta deve ser sempre de um bom palmo. Se for médio, um forno com a
espessura da largura da mão será suficiente. E, se o fogo for baixo, bastará
que o forno tenha duas polegadas de espessura. Essa mesma proporção
deverá ser usada para a madeira de que o artista se serve. Pois a madeira
sólida e estreita faz um fogo forte, e que dura muito tempo. Aquela que
é esponjosa e leve faz um fogo fraco e que não dura muito. A madeira
seca faz um fogo alto, mas de pouca duração. A madeira verde, ao con­
trário, faz um fogo fraco e que dura muito tempo [...].
Para ter um bom aludel, ou vaso sublimatório, é preciso que ele
seja de vidro e muito espesso. Pois não seria bom de outra maneira,
uma vez que só o vidro é capaz de reter os espíritos, impedir que se exa­
lem e que sejam consumidos pelo fogo, porque o vidro não tem poros,
ao contrário, como os outros materiais são porosos, os espíritos saem
e partem pouco a pouco através deles. Os próprios metais não valem
nada para fazer essas espécies de vasos, pois, como os espíritos têm
uma grande afinidade com eles, penetram-nos, ligam-se a eles e passam
consequentemente com facilidade através, como se pode inferir daquilo
que dissemos antes, e como a experiência o demonstra. Logo, não há
outra matéria além do vidro de que possamos utilmente nos servir para
fazer vasos sublimatórios.
É preciso então fazer uma cucúrbita de vidro, que seja redonda,
cujo fundo não seja muito arredondado, mas quase plano, no meio da
324 Filosofar pelo Fogo

qual é preciso fazer, na parte externa, um círculo ou cinturão de vidro que


a cerque; e sobre esse círculo é preciso erguer uma parede redonda,
que avance para dentro a mesma espessura da tampa da cucúrbita, para que,
nesse espaço, a tampa possa encaixar facilmente e sem dificuldade; c é pre­
ciso que essa tampa tenha a mesma altura, ou quase, da parede da cucúrbita
acima do círculo. Além do mais, é preciso fazer duas tampas, na proporção
da concavidade dessas duas paredes, que são iguais, com o tamanho de um
palmo, que sejam feitas em ponta ou em pirâmide; e no alto de cada uma
deve haver dois buracos iguais, e o suficientemente grandes para ali entrar
uma pena grossa de galinha, como se verá mais claramente com o que eu
direi aqui depois. Ora, em geral, a razão pela qual devemos fazer o aludel,
da maneira como acabo dc dizer, é para que o Artista possa girar e remexer
a tampa como lhe agradar, e que essas duas peças se encaixem tão exata­
mente uma à outra que, se for preciso, permaneçam sem ser seladas, os
espíritos não possam de forma alguma sair. Que se alguém puder imaginar
algo de melhor e de mais apropriado [para fazer essa operação], o que eu
ensino aqui não deve impedi-lo de se servir disso.
Pscudo-Gcbcr, Súmula da perfeição do Magistério
(Summa pcrfectionis Magisteru, scc. XIV), m Wtlliam Salmon,
Biblioteca dos Filósofos Alijuímicos,
c. I, p. 187-193.

*
* *
JR.esolvemos falar, agora, de nosso vaso. Vocês, filhos da doutrina,
prestem bem atenção, para compreender nosso sentimento e nosso espí­
rito. Ainda que tenhamos descoberto vários gêneros de vasos, descritos
enigmaticamente em nossos livros, todavia, nossa opinião é a de não se
servir de diversos vasos, mas de apenas um único, que será aqui exibi­
do com demonstrações visíveis e sensíveis; nele nossa obra é realizada
desde o início até o fim de todo o Magistério. De toda forma, nosso
vaso é composto da seguinte maneira: existem dois vasos ligados a seus
alambiques, de mesmo tamanho, quantidade e forma em altura, em que
o bico de um entra no ventre do outro, para que, pela ação do calor, o
que está tanto em uma quanto na outra parte suba até a cabeça do vaso e
depois, pela ação do frio, desça até o ventre. Ó filhos da doutrina, vocês
têm o conhecimento de nosso vaso e não são pessoas de cabeça dura.
Falaremos agora de nosso forno, mas nos será muito desagradável
relatar aqui o segredo de nosso forno, que os antigos filósofos tanto
ocultaram, pois descrevemos em nossos livros vários fornos. Contudo,
Fechamento do Vaso e Cores do Tempo
325

eu lhes declaro sinceramente que só nos servimos de um único forno,


que é chamado atanor, cujo significado é ser um fogo imortal, porque
ele sempre fornece um fogo igual e contínuo em um mesmo grau, vivi­
ficando e alimentando nosso composto desde o início até o fim de nossa
pedra. Ó filhos da doutrina, ouçam nossas palavras e entendam: nosso
forno é composto dc duas partes; ele deve ser bem vedado em todas
as junções. Eis como é a natureza desse forno. Ele deve ser grande
ou pequeno, dc acordo com a quantidade dc matéria, pois a grande
quantidade de matéria exige um grande forno; a pequena, um peque­
no. Deve ser feito à maneira de um forno para destilar com sua tampa,
deve ser bem fechado. Assim, quando o forno já tiver uma tampa, faça
com que tenha um respiro no fundo, para que o calor do fogo aceso
possa respirar. Para aquecer, essa natureza dc fogo requer c exige um
único forno e não outro; e o fechamento das junções dc nosso forno é
chamado o selo de Hermes, ainda mais que ele só foi conhecido pelos
sábios e não está expresso em nenhum lugar, por nenhum dos Filóso­
fos, pois ele é reservado na sapiência, ainda mais que ela o guarda por
uma potência comum.
Pscudo-Lullc, A elucidação do Testamento de Raimond 1 ulle
(séc. XIII-XIV), in William Salinon,
Biblioteca dos Filósofos Alauímicos,
t. 4, p. 299-301.
*
* *
U ma Escrivaninha com um nicho em forma de

forno.
Explicação dessa Figura, com a maneira do Fogo.
Esse vaso de terra com essa forma é chamado
pelos Filósofos de triplo vaso, pois no meio ele tem
um nível sobre o qual existe um prato cheio de cin­
zas mornas, nas quais é colocado o Ovo filosófico,
que é um matraz de vidro que você vê pintado em
forma de Escrivaninha, e que está repleto das formu­
lações da Arte, isto é, da espuma do Mar vermelho
e da gordura do vento Mercurial. Ora, esse vaso de
terra se abre por cima, para que se coloque dentro o
prato e o matraz, sob os quais, por essa abertura, se Selo de Nicolas Flamel:
coloque o Fogo filosófico, como você sabe. Assim, O Livro das Figuras
você tem três vasos, e o vaso triplo. Os invejosos o hieroglíficas, séc. XIV.
326 Filosofar pelo Fogo

chamaram atanor, crivo, esterco, banho-maria,


fornalha, esfera, leão verde, prisão, sepulcro,
urinol, frasco, cucúrbita\ eu mesmo, em meu
Sumário filosófico, que compus há quatro anos
ê. e dois meses, o nomeio no final a casa e habitá-
culo do frango, e as cinzas nomeio de palha do
%
frango. Seu nome comum é forno, que eu jamais
teria encontrado, se Abraão Judeu não o tives­
NicoláwFLa.,
mãlus Gadlus . se descrito com seu fogo proporcionado, que é
uma grande parte do segredo. Pois ele é como
Nicolas Flamcl, fran­
o ventre e a matriz, contendo o verdadeiro ca­
cês: Aquele que bem
viveu não pode morrer lor natural para animar nosso jovem rei. Se esse
de nenhum mal. fogo não é medido de acordo com a proporção
do forno, diz Calid, se ele é aceso com a espada,
diz Pitágoras, se você inflama seu vaso, diz Morienus, e lhe faz sentir
o ardor do fogo, ele lhe dará o sopro e queimará suas flores, antes que
elas tenham subido do profundo de suas medulas, e sairão mais ver­
melhas do que brancas; e, então, sua operação será destruída, mesmo
se vocêfizer muito fogo. Pois, então também, você não verá jamais seu
fim, pois as naturezas são resfriadas e impregnadas de frio e não terão
tido movimentos tão potentes para se digerirem.
Ntcolas Flamcl, O Livro das Figuras hieroglíjicas
(scc. XIV), in William Salmon,
Biblioteca dos Filósofos Alquíniicos,
t. 4, p. 221-223.
*
* *

epois disso você terá um forno curiosamente inventado para poder


manter um calor igual e contínuo, e é esse nosso agente externo, do qual,
estando privada, a obra caminha a passos largos para sua ruína, ou, se
você o fizer muito violento, verá por experiência que a pressa arruina
tudo, como concordam todos os autores. E como pela operação interna
aplicamos o calor externo e que o julgamos, eu declararei a maneira pela
qual poderemos nos conduzir pelas aparências visíveis para dar um gran­
de ou pequeno calor, assim como o artista poderia desejá-lo.
Primeiramente, quando seu vaso for colocado no ninho de areia,
faça de forma que ele fique tão imóvel que só se mova quando agitado
por um calor suficiente para colocar sua matéria em fusão; além disso,
tome cuidado para que o ninho esteja fechado, de tal forma que o ar
Fechamento do Vaso e Cores do Tempo 327

não possa entrar ou sair para resfriar o vaso ao tocá-lo diretamente. No


entanto, cuide para que ele não esteja demasiado preso, pois, se houver
algum acidente que ameace arruinar a obra, você poderá retirá-lo. Tam­
bém não tema que o fogo possa se apagar durante o dia ou a noite c que
o frio possa incomodar o vaso; faça de forma a fornecer nova matéria
antes que a velha seja consumida e que o fogo não morra, c para isso é
necessário um forno que os sábios chamam de atanor, onde o calor seja
sempre conservado. Uma vez o fogo aceso, forneça-lhe carvão para que
dure 12 horas; se observar isso cuidadosamente, você poderá empregar
esse espaço de tempo no que lhe agradar.
Você fará esse forno de tijolos c de terra gorda misturada com
areia e esterco dc cavalo, até que a massa tenha uma boa consistência e
que, colocada entre os tijolos, ela não derreta; existem aqueles que pre­
param a terra com o tijolo e outros com cinzas, outros com crina; use a
terra da maneira que você achar melhor. O cuidado principal do artista é
ter um bom forno, que é a coisa mais próxima da matéria, pois é o fogo
que conduz a obra à perfeição. Você deverá gastar uma semana para fa­
zer um forno que pode ser a garantia do grau dc fogo que é necessário.
Ele não deve ser composto de uma matéria que pode sc degradar, pois,
como conservamos o fogo por muito tempo e que devemos fazer dc for­
ma que seja sempre igual, se ele morrer ou tiver aberturas, o ar que ali
entrar, já que possui um calor desigual, não poderia ser bem regulado c
se tornaria mais ou menos alto do que o desejado.
No mais, faça de forma que seu forno não seja construído em
um lugar onde a chuva e o vento possam molhá-lo, mas coloquc-o dc
maneira que sua precaução possa protegê-lo de qualquer perigo: aliás,
escolha um lugar claro para que, todas as vezes que quiser ver sua ope­
ração, você possa fazê-lo à vontade, sendo a luz ainda mais necessária
porque ela dá ao artista uma felicidade ao lhe revelar como a obra da na­
tureza se aperfeiçoa. O lugar onde você entreterá seu fogo imortal deve
ser disposto de forma que a fumaça que o carvão exala possa ter uma
saída, pois, como vários já provaram, a falta de precaução poderia fazer
com que sofresse algum incómodo e você até colocaria sua vida em pe­
rigo pelos maus odores que saem e então teria tempo dc se arrepender.
Eyrénéc Philalcthe, A Medula da Alquimia (1654),
reedição Paris, Editions dc la Hutcc, p. 87-88.
*
* *
328 Filosofar pelo Fogo

vaso da Arte é o ovo filosófico; ele é feito de um vidro muito puro,


de forma oval, tendo o gargalo de comprimento médio; é preciso que
a parte superior do gargalo possa ser selada* hermeticamente, e que a
capacidade do ovo seja tal que a matéria que ali
será colocada só preencha um quarto; pois essa
matéria deve ter espaço suficiente para circular
livremente, porque esse orvalho mercurial, ani­

1N mado c posto em movimento pelo calor exterior,


sobe e desce sucessivamente, e é por meio dessa
revolução oblíqua que se operam as sublimações,
as embebições, as regas, as precipitações, as coo-
bações, as separações dos elementos, as diges­
tões, etc., sobre as quais os Filósofos escreveram
capítulos particulares, para levar os Sofistas ao
erro, pois todas essas operações não são feitas em
Jk- r-uAk diferentes vasos, mas em um único e por um fogo
Matraz de vidro em um labo­ simples [...].
ratório alquimico: Pharma- Quanto ao vaso interno ou vaso da natu­
zie-Historisches Museum, reza, que alguns chamam a matéria de nosso
Basileia (foto E B.). Enxofre, é uma gordura mercurial, úmida, que
por sua viscosidade retém, encadeia e tempera
o calor interno do Enxofre, e o impede de ser queimado, e lhe dá uma
fluidez muito suave, sem a qual ele se tornaria demasiado duro, por cau­
sa da fixidez natural de seu corpo. Vemos, com efeito, que as sementes
lançadas nas rochas não apenas não produzem nada, mas endurecem
e secam, porque lhes falta uma matriz que lhes forneça essa umidade
viscosa e mercurial, que é tão necessária ao desenvolvimento de suas
virtudes.
Huginus A Barma,
O Reino de Saturno transformado em Século de Ouro
(Saturnia Rcgna in aurea strcula conversa, 1657),
p. 147-153 (cd. dc 1780).

*
* *
1E/ m relação ao primeiro forno, ele pode ser construído grande ou pe­

queno, de acordo com sua vontade, dando atenção à quantidade da maté­


ria que deseja destilar. Assim como se pode fazê-lo redondo ou quadrado,
com tijolos, ou então com terra de cerâmica. Se o diâmetro for de um pé
Fechamento do Vzxso e Cores do Tempo 329

na parte interna, é preciso que a altura seja de quatro, ou seja, um pé do


fundo até a grelha, outro da grelha até a porta, por onde se colocam os
carvões dentro, e dois desse ponto até o alto do cano; este deve sair para
fora do forno, pelo menos um pé, senào os recipientes se aqueceriam,
pois estão muito próximos do forno: o cano deve ter a quarta parte do
diâmetro, respondendo à terça parte da intrínseca do diâmetro do forno.
Como também ele deve ser um pouco mais largo dentro que fora: a grelha
deve ser feita de tal forma que as barras possam ser retiradas quando se
desejar, para limpá-la quando estiver entupida pela matéria depositada
durante a destilação, ainda mais que ela entope com facilidade ao destilar
sais que derretem com os carvões. Por esse meio, o ar está impedido de
chegar até o fogo, e consequentemente impede a destilação. Ou então
coloque duas grossas barras atravessadas no forno, sobre as quais você
colocará quatro ou cinco menores, distantes uma da outra de um dedo,
saindo um pouco para fora do forno, para que, quando ele estiver entu­
pido, você possa retirá-las com pequenas pinças, recuá-las e limpá-las
da matéria queimada, depois recolocá-las em seu lugar. E por isso que o
forno também deve ser aberto sob a grelha, para que você possa melhor
governá-la. Além do mais, ela deve ter em cima uma tampa de ferro, ou
de pedra, com um buraco no meio de certa distância, que deve ser preen­
chida com areia, para que a tampa possa com mais justeza fechar o bura­
co, para impedir que os espíritos não exalem: dessa maneira, os espíritos
serão forçados a passar pelo cano e ir para os recipientes, depois que você
tiver lançado as matérias que devem ser destiladas.
Que os recipientes sejam de vidro, ou de terra forte, que possam
reter os espíritos, como são as de Valdebourg, de Hesse, etc. Mas os
melhores são os de vidro, se puder tê-los, e particularmente aqueles
que são feitos de um vidro muito forte, que deve ser polido e igua­
lado com esmeril, para que possam ser bem encaixados, e então não
há necessidade de vedar; [...] ainda mais que dessa maneira eles estão
tão bem encaixados que os espíritos não poderiam sair pelas junções,
senão é preciso fechar as junções com a melhor vedação, de forma que
ela não deixe exalar os espíritos [...]. Para a forma do recipiente você
a vê na demonstração do forno, com a quantidade necessária, e saiba
que, quanto maiores eles forem, melhores serão, mas não é tão neces­
sário assim; entretanto é preciso mais quando eles são pequenos. Preste
atenção para que o buraco superior seja mais largo do que o interior, de
forma que outro recipiente, com seu buraco inferior, possa ser encaixado,
e que o buraco inferior tenha três graus de largura, ou por volta disso, de
diâmetro. Nesse caso, entendo que o diâmetro da fornalha seja de um pé,
pois para uma fornalha maior são precisos buracos maiores, e maiores
330 Filosofar pelo Fogo

orifícios dos recipientes, para que assim se possa dar uma suficiente e
justa proporção de ar ao fogo; porém, se o diâmetro é de mais de um pé,
é preciso também que haja dois ou três canos (que, considerados juntos,
também devem ter a largura correspondente à largura da terça parte do
forno; pois é necessário que ele tenha tanto de largura, tanto de ar, para
que o fogo queime facilmente e faça seu trabalho) aos quais é preciso
aplicar vasos da mesma proporção, para que o fogo não se apague.
Jcan Rodolphc Glaubcr,
A descrição dos novosfornosfdosófcos
(1658, trad. do latim cm 1659), p. 5-8.

* *

nome de vaso também é equívoco, pois existe o vaso da arte e o


da natureza.
O vaso da arte é um simples vaso de
vidro, assim como a maioria dos Filósofos o
descreve, redondo e oval.
Mas o vaso da natureza é o mais impor­
tante e o mais difícil de se encontrar; é pro­
priamente o vaso feminino que chamamos
matriz, no qual o Rei deve se corromper e es­
palhar sua semente, para ali produzir a criança
filosófica.
Eles também chamam esse vaso natural
de vaso da arte, porque é o único meio pelo
qual a arte se realiza. E, como esse vaso é ao
mesmo tempo licor, eles chamam esse licor
Atanor clássico: Johann
mênstruo* ainda mais que ele faz o mesmo
Conrad Barchusen, Elementa
ChemiczE, Leyde, 1718. efeito do mênstruo feminino, o qual dá cresci­
mento à semente masculina que se muda em
sua natureza, assim como faz a do macho
em relação à da fêmea: é por isso que os Filósofos comparam com mui­
ta frequência a união do ouro e da prata-viva ao casamento e à geração
do homem.
Até sobre o selo* do vaso eles cometeram um equívoco, pois di­
zem que é preciso selar o vaso hermeticamente: ora, o selo de Hermes
tem um duplo sentido. O sentido literal é de selar o vaso de vidro, de
maneira que nada do que está dentro possa se evaporar, mas o sentido
filosófico do selo de Hermes é fazer de maneira que os dois mercúrios
Fechamento do Vaso e Cores do Tempo
331

se unam de tal forma que se tornem um único ser e uma única Pedra, e
é também o que se chama selar a criança no ventre de sua mãe, isto c
dissolver e encerrar o ouro no mais profundo das entranhas do mercúrio
que o produziu.
Crosset dc la Haumcric
(pseudónimo dc François-Maric-Pompcc Colonna),
Os Segredos ntais ocultos da Filosofia dos Antigos
(1722). p. 301-303.

Laboratório de alquimista: Elias Ashmole,


Theatrum Chemicum Britannicum, 1652.
332 Filosofar pelo Fogo

dlom raras exceções, a planta das igrejas góticas - catedrais, aba­

dias ou colegiadas — tem a forma de uma cruz latina estendida sobre


o chão. Ora, a cruz é o hieróglifo alquímico do crisol (cadinho), que
outrora se nomeava cruzol, crucible e croiset (na baixa latinidade, cru-
cibulum, crisol, tem como raiz crux, crucis, cruz), segundo Ducange.
E com efeito no crisol que a matéria-prima, como o próprio Cris­
to, sofre a Paixão; é no crisol que ela morre para em seguida ressuscitar,
purificada, espiritualizada, já transformada. Aliás, o povo, guardião fiel
das tradições orais, não expressa a experiência humana terrestre por
meio das parábolas religiosas e similitudes herméticas? Carregar sua
cruz, suportar seu calvário, passar pelo crisol da existência são tantas
locuções correntes em que encontramos o mesmo sentido sob um mes­
mo simbolismo [...].
A cruz é um símbolo muito antigo, empregado em todos os tem­
pos, em todas as religiões, em todos os povos, e estaríamos errados em
considerá-la como um emblema especial do Cristianismo [...]. Nós até
mesmo diríamos que a planta dos grandes edifícios religiosos da Idade
Média, pela adjunção de uma abside semicircular ou elíptica unida ao
coro, adota a forma do signo hierático egípcio da cruz ansata, que se
diz ank, e designa a Vida universal oculta nas coisas [...]. Por outro lado,
o equivalente hermético do signo ank é o emblema de Vénus ou Cypris
(em grego, KÚnpiç, o impuro), o cobre vulgar que alguns, para ocultar
ainda mais o sentido, traduziram por estanho e latão. “Branqueia o la­
tão e queima teus livros”, nos repetem todos os bons autores.
KÍmpoç é a mesma palavra que Eovõpoç, enxofre,171 cuja signifi­
cação de adubo, excremento, esterco, sujeira. “O sábio encontrará nos­
sa pedra até no esterco, escreve o Cosmopolita, enquanto o ignorante
não poderá crer que ela esteja no ouro.”
E é assim que a planta do edifício cristão nos revela as qualidades da
matéria-prima, e sua preparação, pelo signo da Cruz', o que resulta, para
os alquimistas, na obtenção da primeira pedra, pedra angular da Grande
Obra filosofal. É sobre essa pedra que Jesus construiu sua Igreja; e os
franco-maçons medievais seguiram simbolicamente o exemplo divino.
Fulcanclli,
O Mistério das catedrais (1964), p. 59-61.
*
* *

171. Jogo de palavras próprio à Cabala fonética (cf esta palavra no Glossário), mas intra­
duzível, uma vez que enxofre se diz em grego Oeiov.
Fech/VMENTO do Vaso f. Cores do Tempo
333

Um espetáculo de muitas cores

a prática, faremos denotação das cores e dos acidentes, tanto na


solução quanto na vivificação, para que várias cores ali apareçam, e
a primeira é a verde e nesse verdor a natureza se aquece enquanto a
matéria se torna negra, como carvão; e, quando o negror chegou, po­
demos reconhecer que é o fogo da natureza que age e que foi o frio
que a manteve adormecida e excluída de seu movimento; e assim que
o negror surge, ainda que ele não tenha chegado de repente, então a
natureza começa a digerir a matéria; e o negror passado, a digestão
da primeira solução está realizada. Então começa a chegar a brancura,
que é a segunda digestão, e dura até o avermelhar; e nessa brancura a
natureza separa o sutil do espesso, e então começa a matéria a se tornar
citrino, e pela continuação ela se avermelha. E então estão realizadas as
três digestões; pois não se pode passar do negro ao vermelho sem que
primeiramente tenha branqueado; pois a brancura não passa do negror
lavado, e amarelar é a digestão realizada.
Ni colas Grosparmy,
Livros (1449). ms. n. p.

V? uando tudo está realmente negro, um fogo de mesmo grau deve


ser mantido até que apareça a brancura oculta em seu ventre: pois se
aproxima assim do fixo. E preciso observar que nesse negror aparecem
inúmeras cores de que fazem menção os Filósofos. De fato, tudo se
torna ora verde, ora lívido ou violeta; ora, igualmente o verde se tor­
na visível em uma das paredes do vaso* e, na outra,
negro; ou então uma cor lívida no interior, e verde
no exterior; mas todas essas cores são, no entanto,
parte integrante do negro. E porque não há em ne­
nhuma delas perfeição essencial, os Filósofos falaram
principalmente, entre tantas outras, das três cores que
certamente podem ser consideradas como virtudes da
alma, a saber, o negro, o branco e o vermelho. E por
isso que está dito em A Assembleia'. Venerai o Rei e Unia vez vista a Brancu­
sua esposa e não os calcinai, para não colocá-los em ra. resfria tua Obra e
fuga por causa de um fogo excessivo, pois vós igno­ tu verás a Lua revestida
rais quando tereis necessidade daqueles que retificam da cor do Sol.
334 Filosofar pelo Fogo

o Rei e sua esposa. Cozinhai-os até que eles se tornem negros, depois
brancos, enfim vermelhos: deles no final será preparado o veneno tingi­
do. Da mesma forma é confeccionada a Pedra ao branco pela combus­
tão, e pela umidade ou liquefação. Dizem, com efeito, que a água traz a
mortificação que aparece no negror que a precedeu, e na qual o espírito
e o corpo são unidos graças à mortificação: significa dizer que eles são
ressecados, pois, se os corpos não são desmantelados, não aparecem as
cores da alma que são chamadas negror e nuvem. Da mesma forma a
magnésia,* quando foi branqueada, não permite ao espírito que fuja, ele
que pela natureza contém a natureza. A umidade, portanto, que curava
o negror no cozimento, manifesta-se no estado ressecado no momento
em que a cor branca começa a surgir. De fato, eu vi na transmutação do
negror, antes que ele se tornasse perfeitamente branco, uma brancura
sombria que é vulgarmente chamada castanha; ora, dessa sombra casta­
nha se realiza em seguida a verdadeira brancura. Durante a cor castanha,
aconteceu que meu mestre quebrou o vaso e a pedra e, examinando-o
tanto no interior como no exterior, descobriu o castanho no exterior
enquanto o negror se encontrava, no entanto, também no interior. Ele
me afirmou que a causa desse fenômeno era certamente que as partes
da matéria que aderiram às paredes do vaso tinham se ressentido mais
do calor que lhes era próximo do que a matéria que estava no meio, e
que por isso elas tinham logo começado a ser transmutadas no calor. E
ele me disse por que essa cor castanha se elevava: porque a brancura
era extraída desse negror, como está dito em A Assembleia', quando de
fato você observar essa ocorrência, saiba que a brancura estava oculta
no próprio ventre do negror que tinha se manifestado antes. Convém
então que você extraia esse negror, e isso pelo negror mais sutil que lhe
pertença: não se espante então se a partir daí eu chamar essa matéria de
pedra. Saiba, com efeito, que pelo tempo que durar a brancura, e mesmo
quando o vermelho for obtido, ela permanece por muito tempo dura e
persiste sob o aspecto de uma massa sólida, até que começa a ser des­
truída e muito pouco elevada pela continuação do cozimento.
Arnaud de Villencuvc, Nova Luz
(Novum Lumen, scc. XIII-XIV),
in Jean-Jacques Manger,
Bibliotheca Chemica Curiosa, t. I, p. 678.
*
* *
Fechamento do Vaso e Cores do Tempo
335

como aqui Aros prosternou o rosto contra a


terra, Maria lhe disse: Levante, Aros. Mais uma
vez eu vou reduzir a obra. Tome o corpo claro,
tomado nas pequenas montanhas, que nào é fei­
to pela putrefação, mas apenas pelo movimen­
to. Triture esse corpo com a goma* Elzaron, e
as duas fumaças. Pois a goma Elzaron é o corpo
que atrai e que prende o espírito. Triture tudo,
aproxime do fogo, tudo se fundirá, e, se você
faz sua projeção sobre a chama, tudo isso virá Maria, a Judia,
como a Água que destilamos, e se congelará irmã dc Moiscs:
com o ar, e será apenas um corpo. E se fizer Duas fumaças se
sua projeção sobre os corpos imperfeitos, você misturam uma à outra e
verá maravilhas. Pois este é o segredo oculto a erva das montanhas
pela Ciência. Saiba que as duas fumaças, de as absorve.
que acabo de falar, são as raízes dessa Arte: e
são o Kibric172 branco, a Cal úmida, a quem os Filósofos deram toda
espécie de nomes. Mas o corpo fixo vem do coração de Saturno, que
compreende a Tintura e aperfeiçoa a obra da Sabedoria. O corpo que
tomamos nas montanhas baixas é claro e branco, e são Medicinas, ou
as duas Matérias dessa Arte, e uma é comprada e a outra é tomada nas
montanhas baixas. Eu o advirto, Aros, que os Sábios só as chamaram a
obra da Filosofia porque a Ciência não pode ser aperfeiçoada sem essas
coisas, e que é nelas que se fazem
todas essas maravilhas da Arte.
Pois nelas entram quatro pedras, e
seu regime* é verdadeiro, como eu
disse. E Hermes fez várias alego­
rias sobre isso em seus Livros. E
os Filósofos sempre prolongaram
seu regime, dizendo que é neces­
sário mais tempo para fazê-lo do
que é realmente necessário. E até
mesmo disseram que seria preciso
fazer Operações que não são ne­
cessárias, e sempre disseram que Maria, a Judia, designando a montanha onde
seria preciso um ano para fazer o superior se une com o inferior:
seu Magistério. O que eles fizeram Michael Maier, Symbola aureai mensa?,
Frankfurt, 1622.

172. Kibric (ou Kibrich, Kibrith): “É o enxofre dentro da terra” (Salmon).


336 Filosofar pelo Fogo

apenas para ocultá-lo do povo ignorante, fazendo-lhes acreditar que sua


obra só pode ser realizada em um ano. Por isso é um grande segredo, e
só Deus pode revelá-lo. Aqueles que ouvem falar sobre isso não podem
fazer sua experiência, pois não sabem nada a esse respeito. Você me
entendeu, Aros?
Diálogo de Maria e de Aros,
in Wiiliam Salmon,
Biblioteca dos Filósofos Al(]uímtcos
1.1, p. 81-83.
*
* *

Pedra filosofal, que domina e engloba todas as coisas, corrige e me­


lhora os defeitos do corpo. Seus nomes são múltiplos, em função da gran­
de variedade das cores que se manifestam. Durante o
primeiro regime* com efeito, quando reina o negror,
ela é chamada terra, Saturno, pelos nomes de todos
os corpos negros e terrestres. Em seguida, quando
branqueia, é chamada água viva, e recebe os nomes
de todas as águas, dos sais, aluminas e coisas portado­
ras de brancura. Depois que foi amarelada, sublimada
e subtilizada, ela é então chamada ar, óleo citrino, e
leva o nome de todas as realidades espirituais e vo­
Gvldo de Mon„ láteis. Depois, quando avermelha verdadeiramente, é
tonar JPlnlo/opkp . chamada céu,* enxofre vermelho, ouro, cabochào,
Guido de Montanor, filó­ e ocultada sob os nomes de todas as matérias precio­
sofo: A conjunção final sas dotadas de beleza, tanto entre as pedras quanto
é aquela dos quatro Ele­ entre os animais e as plantas.
mentos e isso se nomeia Guido dc Montanor,
a Filosofia quádrupla e A Escala dos Filósofos
espiritual. (Scala Philosopborum, 1593),
in Jcan-Jacqucs Mangcr,
Bibliothcca Chemica Curiosa, t. II, p. 137.
*
* *

á Filósofos que dividem o trabalho da Pedra em sublimação, deal-


bação* e rubificação; mas, sob cada parte, existem outras consideráveis
que ali estão compreendidas e subentendidas. Ou seja, sob a sublima­
ção, a extração do Mercúrio e a putrefação. Sob a dealbação, o curso
de diversas cores que aparecem antes e depois, e a primeira fixação
Fechamento do Vaso e Cores do Tempo 337

dos espíritos da matéria reduzida em uma cor branca, que é a primeira


Pedra. E sob a rubificação, a última perfeição da segunda Pedra, que ao
se avermelhar faz surgir várias cores e várias espécies de vermelhos e,
enfim, se avermelha de uma cor vermelha invariável; e entre essas três
partes, todas as cores que se podem imaginar se revelam várias vezes,
até que a cor de papoula tenha tomado o lugar delas; nessa cor todas as
precedentes se estragaram e são contidas.
Na putrefação a cor negra reina, que é a terra; na dealbação, a branca,
que é o ar; e na rubificação, a cor vermelha, que representa o fogo; essas
três principais cores da pedra, nas quais as outras estão contidas, finalizam
toda a operação. A cor negra é o sinal da corrupção c boa mistura do úmido
com o seco terrestre; a brancura, o sinal do fim da umidade supérflua; e,
caso o fogo continue, o calor agindo sobre o seco engendra o vermelho.
Hcinrich von Bastdorff,
O Fio dc Anadne (1695). p. 94-95.

*
* *
^JTodos esses movimentos fazem surgir em 40 dias o que os sábios

chamam a cabeça do corvo, seu Saturno, sua morte, sepulcro, tenebro­


sidade e outros nomes que duram bastante tempo e, sobretudo, 40 dias
nessa grande tenebrosidade; depois ela toma uma cor um pouco mais
serena, puxando para um cinza de ardósia, que dura 30 dias; então se
torna um pouco mais branca e dura nessa brancura um pouco escura
aproximadamente 30 dias; assim que sai dessa cor, entra um vermelho
fogo; essa cor é como uma coluna no meio e a tenebrosidade nas pare­
des de seu vaso, permanecendo assim por muito tempo, isto é, dois me­
ses, e clareando pouco a pouco de forma que esse vermelho se perde c
deixa aparecer um verde nascente que se fortifica pouco a pouco cm dez
ou 15 dias, no final dos quais você vê em seu vaso as marcas da aliança
feita do céu com a terra, quero dizer, a íris tão bela e tão admirável c as
cores tão vivas que é impossível ver algo de tão belo no mundo; depois
disso, aparecem as caudas dos pássaros que puxam a leve carruagem da
bela Juno; isso é maravilhoso de se ver e suas aparições são tão longas e
duram de 35 a 40 dias, entre os quais você vê entrelaçamentos de flores
de diamantes e outras pedras preciosas, e, no final, no alto do globo de
seu vaso,* uma coroa de pérolas tão finas que jamais o Oriente forneceu
iguais, a via láctea ali parecendo tão bela quanto não é jamais nos céus;
depois a estrela de Luciferia se revela e conduz a aurora, logo seguida
da bela Diana, com a cabeça cornuda, que repousa 30 dias nesse belo
338 Filosofar pelo Fogo

palácio ornado, depois dos quais ela, assim como tinha surgido, pouco
a pouco desaparece e dá lugar a seu irmào Febo, que vem devagar e só
mostra sua face depois que tiver manifestado os ornamentos de seus men­
sageiros, que são violeta envelhecido e escuro, azul, citrino e vermelho, e
só então ele revela seu rosto mais resplandecente que o Sol, seu pai; então,
tudo é feito para que essa operação finalizada, como acabo de dizer, o Trc-
visam a nomeie a fonte onde o rei se banha, e toda essa operação acontece
por si mesma, sem que jamais as mãos a toquem: a natureza, ajudada pela
arte, faz tudo sozinha e sem outra ajuda além dessa que eu lhe digo, e essa
arte ajudando não é outra coisa senão um fogo externo, doce e mais próxi­
mo do natural, o qual excita esse fogo natural que está encerrado em nosso
Mercúrio para fazer tudo o que venho de dizer.
CartasJilosóJiais (scc. XVII), ms. n. p.

0 tempo da obra
./Worien: Tome a fumaça branca, e o Leão verde, e o Almagra* ver­
melho, e a imundície. Dissolva todas essas coisas, e as sublime, e depois
as una, de tal forma que em cada parte do Leão verde haja três partes
da imundície da morte. Da mesma forma, faça uma parte da fumaça
branca, e duas da Almagra, que você colocará no Vaso* verde, e ali as
cozinhe, e feche bem a abertura do vaso, assim como foi dito antes.
Em seguida, coloque-o ao Sol, para que seque, e, quando estiver seco,
acrescente o Elixir; e por fim despeje por cima a Agua do sangue até
que ela flutue; e após três dias e três noites, será necessário regar com a
Agua fétida ou malcheirosa, prestando atenção para não deixar passar
o dia e para que o fogo não se apague, que não aumente ao se inflamar,
e também não diminua, para que seu cozimento se faça corretamente.
Depois de 17 noites, abra seu vaso e retire a Agua que encontrar dentro,
e ali coloque pela segunda vez outra Agua fétida, o que é preciso fazer
durante três noites, sem retirar o vaso do forno;* e será necessário colo­
car Agua fétida uma vez a cada três noites; e na 21a noite, você retirará
o vaso do forno e secará o Elixir que estará no interior. Depois disso
você tomará o corpo branco, no qual fixou o branco, e o colocará em
um vaso bem pequeno, de acordo com o tamanho do forno filosófico,
depois que o tiver construído. Em seguida, coloque corretamente o vaso
no forno, com cuidado para que a chama não o queime nem o toque.
Você também deve colocar nele o Elixir, de que falamos anteriormente,
de acordo com a seguinte proporção: se colocar em cima uma parte do
corpo branco, ali você colocará 11 partes do Elixir. E, depois que os
Fechamento do Vaso e Cores do Tempo 339

tiver misturado, adicionará a cada onça desse corpo misturado apenas a


quarta parte de uma dracma de Eudica; depois você colocará esse vaso
em um grande forno e o deixará ali dois dias e duas noites com um
fogo que queimará incessantemente acima: feito isso, você tirará o que
encontrar no vaso. E não se esqueça então de louvar o Criador altíssimo
pelos dons que lhe terá feito.
Entrevista do Rct Calid e do Filósofo Morim,
in William Salmon, Biblioteca dos Filósofos Afyuimicos
t. II. p. 106-108.

*
* *

“<9 fruto da sabedoria humana é a árvore da vida Michael Maier,


Atalanta fugiens, Oppenheim, 1618, emblema XXVI.
340 Filosofar pelo Fogo

odos os bens chegaram até mim ao mesmo tempo que ela, essa Sa­
bedoria do Sul que sai para pregar fora, faz ouvir sua voz nas praças pú­
blicas, grita nos ouvidos das multidões, expõe-se na entrada das portas
da cidade, dizendo: “Vinde a mim e sede iluminados, e vossas opera­
ções nào virarão confusão; todos vós que me desejais sereis agraciados
com minhas riquezas. Vinde então, filhos, e eu vos ensinarei a ciência
de Deus”. Que sábio, no entanto, a compreende, sobre quem Alphidius
diz que os homens e as crianças passam ao lado dela nos caminhos e nas
ruas, e que ela é cotidianamente esmagada com os pés no excremento
pelos rebanhos e pelos animais de carga? [...].
O Levantar da aurora (Aurora consurgens), esse é o título batismal
que demos a esse tratado, e isso por quatro razões: primeira, a aurora
(aurora) é por assim dizer uma hora de ouro (aurea hora); por isso essa
ciência comporta uma hora cujo fim é de ouro para aqueles que operam
corretamente. Em segundo lugar, a aurora ocupa o meio entre a noite e
o dia, brilhando de uma dupla cor: vermelho e amarelo. Da mesma for­
ma, essa ciência é pródiga em cores vermelha e amarela, intermediárias
entre o preto e o branco. Em terceiro lugar, porque na aurora os doentes
enfim descansam aliviados de todas as enfermidades noturnas; assim,
na aurora dessa ciência todos os odores e vapores ruins que atacam o
espírito do operador se distanciam e desaparecem, como diz o Salmo:
à noite permanecerão presos os choros, e na manhã a alegria. Em quar­
to, e em último lugar, a aurora é chamada fim da noite e início do dia,
ou ainda mãe do Sol: assim também nossa aurora põe fim na extrema
vermelhidão a toda tenebrosidade e põe em fuga a noite, esse longo
período invernal onde tropeçará o caminhante que não prestar atenção.
De fato a esse respeito já foi escrito: e a noite designa a ciência à noite,
o dia profere a palavra ao dia, e a noite se ilumina tanto quanto o dia no
seio de suas próprias delícias.
A Sabedoria não grita nas praças, e a prudência não faz ouvir sua
voz nos livros dos sábios, dizendo: “Ó Homens, eu grito para vós e
minha voz se dirige aos filhos da inteligência: compreendei, insensa­
tos, percebei a parábola e a interpretação, as palavras dos sábios e seus
enigmas, pois os sábios se serviram de diversas expressões quando
estabeleceram que similitudes uniam todas as coisas sobre essa terra;
e [vivendo] sob o globo da Lua, eles multiplicaram as parábolas em
relação a essa ciência”. Ao ouvir, o sábio também se tornará mais sá­
bio e compreenderá; ao compreendê-la, ele possuirá essa Sabedoria: a
Rainha do Sul vinda, como dizem, do Oriente, como a Aurora em seu
Fechamento do Vaso e Cores do Tempo
34!

levantar (Aurora consurgens), ouve, compreende e contempla a sabe­


doria de Salomão, ela cuja mão detém poder, honra, potência c glória.
Trazendo sobre a cabeça a coroa real brilhante dos raios de 12 estrelas,
como uma esposa paramentada para seu esposo, ela tem sobre suas vestes
uma inscrição em letras douradas gregas, bárbaras e latinas: Reinando
eu reinarei e meu reino não terá fim para todos aqueles que me encon­
tram e me escrutam com sutileza, engenhosidade e constância.
O levantar da zlurcru,
atribuído a Sào Tomás de Aqutno.
Texto latino in Marie-Louisc von Franz,
Aurora consurgtns. p. 50-53, 68, 70-72.
*
* *

comparação feita pelos amantes da ciência, dc nossa obra, com


a vinha*, de forma alguma é fora de propósito; falarei sobre ela su­
cintamente para não aborrecer o leitor generoso. É preciso saber que
o sarmento ou a vinha que é sua seiva, e como a cor branca da maté­
ria, será tirada de sua quinta-essência, mas seu vinho será aperfeiçoado
no terceiro grau segundo a verdadeira proporção, pois ele aumenta na
decocção e se forma na pulverização, que são os únicos meios para
compreender o início e o fim dessa sementeira natural. É por isso que
alguns de nossos doutores nos deixaram por escrito que o Cobre filoso­
fal estará inteiramente perfeito em sete dias, pelos quais compreende­
mos as sete cores metálicas, cuja perfeita vermelhidão é a última outros
não prolongam seu prazo de perfeição para além de quatro dias, que
também podem ser relacionados às quatro cores principais que apenas
alguns lhe atribuem, e das quais depende principalmente toda a obra
outros lhe dão apenas três dias, que são os prazos atribuídos às três
mais fortes e mais necessárias cores permanentes na matéria e outros
ainda, economizando menos o tempo e se entregando à boa medida, lhe
garantem caridosamente um ano inteiro para se colocar fora da tutela,
e poder absolutamente depois usar de todos os seus direitos, sem qual­
quer outro governante do que sua discrição capaz de manter um mundo
com suas benfeitorias e liberalidades. Esse prazo de um ano para sair da
tutela ainda pode ser relacionado às quatro estações do ano, e aos quatro
elementos, que não têm direito sobre nossa matéria. E assim se torna
conforme ao julgamento que dele faz Alphidius, seguido por vários ou­
tros da mesma sociedade, julgando o final da obra pelo final dos quatro
tempos do ano, na primavera, no verão, no outono e no inverno, para
342 Filosofar pelo Fogo

que novamente o ano seja composto de quatro estações. Muitos outros


abreviam em um dia, que é o tempo da decocção perfeita, metaforica­
mente falando, pois um ano filosofal é todo o tempo estabelecido para a
decocção que pode ser de uma semana, ou de um mês. Arnauld, Ray-
mond, Geber, Hortulano e Augurei falam de três anos, porque cada cor
é compreendida como um ano. E todas essas diversidades se referem a
um mesmo objetivo e a um mesmo sentido, pela doutrina, experiência
e destreza dos mais capazes que a conhecem, mas que sempre ocul­
tam em seu gabinete o tempo, os nomes e a matéria: o que não podem
compreender os ignorantes, que os Sábios prudentemente proibiram
dessa maneira a venerável entrada em suas Escolas misteriosas, assim
como Platão proibia absolutamente a comunicação de sua eloquência
divina àqueles que não tinham o conhecimento das matemáticas.
Salomon Trismonin, O Velo de Ouro
(*>tireian Vellus, 1598), trad. fr. dc 1612,
p. 143-147.
*
* *
c e você trabalhou com o Sol e a Lua para neles buscar nosso Enxo­
fre, examine atentamente se sua matéria é semelhante à massa inflada,
à água fervente ou, antes, à seiva derretida; pois nosso Sol, bem como
nosso Mercúrio, tem na obra do Sol vulgar uma imagem emblemática
junto com nosso Mercúrio. Com seu forno* aceso de um fogo vivo, co­
loque durante 20 dias sua esperança no calor escaldante, tempo em que
você observará diversas cores, e quase no final da quarta semana, com a
condição de que o calor tenha sido contínuo, verá um verdor agradável
que não desaparecerá durante cerca de dez dias. Alegre-se, então, por­
que certamente logo verá bem negro como se fosse carvão, e todos os
membros de seu composto serão reduzidos a átomos. Essa operação não
é, com efeito, nada mais do que a resolução do fixo no não fixo, para que
em seguida tanto um quanto outro não sejam mais do que uma única ma­
téria, em parte espiritual e em parte corpórea. E por isso que o Filósofo
diz: “Pegue um cão de Khorassan e uma cadela da Arménia, cruze-os,
e eles engendrarão um filhote da cor do céu”. Pois essas naturezas são
mudadas por uma breve decocção em uma sopa semelhante à espuma do
mar, em que uma névoa espessa tinge de uma cor lívida [...].
Por isso, quando tiver visto em seu copo as naturezas simultanea­
mente se misturarem como sangue coagulado ou queimado, esteja
certo de que a fêmea sofreu o abraço do macho. Espere então dez
Fechamento do Vaso e Cores do Tempo 343

dias, a partir da primeira desidratação de sua matéria, que as duas na­


turezas sejam transformadas em uma mistura gorda; elas circularão então
juntas como uma nuvem espessa ou a espuma do mar, como foi dito, cuja
cor será das mais escuras. Considere então como certo que a progenitura real
foi concebida, pois a partir desse momento você perceberá no fogo e nas
paredes do vaso* vapores verdes, amarelos, negros e azuis. Estes são ventos
frequentes durante a formação de nosso Embrião, e que é preciso guardar
com cuidado para que não escapem e que a obra não seja destruída. Preste
igualmente atenção para que o odor não se exale por alguma fissura, pois a
força da Pedra sofreria um prejuízo considerável. Essa é a razão pela qual o
Filósofo ordena conservar cuidadosamente o vaso com sua ligadura; e seja
cuidadoso para não operar de forma alguma de maneira descontínua, para
não deslocar nem abrir o vaso, ou interromper em nenhum momento o cozi­
mento, e continuar a cozinhar até que assista ao desaparecimento do humor
o que é realizado durante 30 dias. Alegre-se, então, e esteja certo de estar
engajado na via justa. Vele então sobre sua obra porque verá talvez, duas
semanas depois desse momento, toda a terra se tomar seca e extremamente
negra. Foi porque aconteceu a morte do composto: os ventos cessaram, c
todas as coisas se entregaram ao repouso. Aí está o grande eclipse do Sol c da
Lua, durante o qual nenhum dos dois astros brilhará sobre a terra e o mar
desaparecerá. Então o Caos terminou e surgirão, ao comando de Deus c na
ordem que lhe é própria, todos os milagres do mundo.
EyTÓnée PhiLiIcthc,
A Entrada aberta ao paLuio feehado do Rri
(Introitus apertus ad orelusutn R/gu Palatium, 1645),
tn Jean-Jacques M.inget. Bibhcthtea Cbnnua Cunasa,
t. II, p. 672.
*
* *
I epois de algumas ligeiras experiências, estou mais esclarecido
do que antes, e comecei a ver mais do que esperava: sim, eu vi, mas por
meio de um trabalho e de uma aplicação de espírito bem extraordiná­
rios; vi, como disse, coisas que jamais, eu acho, ninguém viu, mesmo
dormindo e em sonho [...]. Eu disse que era uma obra de três ou qua­
tro dias; mas, se é preciso falar mais exatamente, tem uma que são só
três horas, pois a obra é dobrada e dividida em duas, como aquela que
chamamos a Pedra dos Filósofos [...]. Essa primeira obra é, portanto,
chamada a obra de três horas, e também de três dias, mas de três dias
filosóficos, como direi a seguir.
344 Filosofar pf.lo Fogo

A segunda obra é terminada no espaço de três ou quatro dias naturais;


e esse tesouro imenso que é procurado pelos homens avaros com tantos tra­
balhos e despesas pode ser adquirido em pouco tempo, seja ao branco, seja
ao vermelho: pois a diferença do fermento ou, se você desejar, a adição do
enxofre do Ouro ou da Prata em nossa primeira Pedra, termina e aperfeiçoa
a segunda.
Em relação ao Tempo, o que disse Paracelso é muito verdadeiro. Os
Filósofos, ele diz, compreendem-se bem quando falam do tempo. Todos se
encontram aqui extremamente embaraçados, e como se estivessem no meio
das trevas. Vamos nos esforçar para dissipá-las, e para descobrir coisas que
parecem estar enterradas nos abismos impenetráveis.
O Ano dos Filósofos não é senão a volta feita pelo Sol filosófico,
quando pelo Zodíaco ele percorre a Terra.
O Mês filosófico é o da Lua.
A Semana, a dos Sete Planetas.
E o Dia, o da luz e das trevas.
O Zodíaco que contém os 12 signos celestes representa os 12 Traba­
lhos do Hércules filosófico, que mostrei, em meu Tratado Dos Aconteci­
mentos imprevistos, ser o Sol; isto é, o ácido, cujo percurso termina o Ano
filosófico, enquanto a matéria está em fusão no Vaso [...].
No final do Outono, beberemos o Néctar e a Ambrósia encerrados no
Céu* alquímico, mas filosoficamente, e cujos primeiros fundamentos nós
apenas lançamos.
Jacques Tol, O Caminho do Céu ALpiímico
(Manuductio ad Cadiun Chmwum),
Trad. Fr. 1688, p. 7-10 e 31.
Fechamento do Vaso r. Cores do Tempo
345

Realização da Obra ao branco e da Obra


ao vermelho: Donun Dei, séc. XVII.
346 Filosofar pelo Fogo

Negra mas bela, como a noiva do Cântico dos Cânticos:


Aurora consurgens, séc. XV.
13

A Matéria com
Mil Nomes
Dupla c a matéria-prima, ao mesmo tempo próxima
c distante: próxima ela c Prata-viva; distante
c água, pois a Prata-viva antes foi água,
c cm seguida Prata-viva.

Aviccna, in Jean-Jacques Manget,


Bíbliothaa Chtntúa Curiosa, t. II, p. 353.

A maneira pela qual os alquimistas falavam de sua Matéria basta


para provar que suafilosofia não tem nada de um materialismo, no sen­
tido moderno do termo: é de uma substância ao mesmo tempo material
e espiritual que se trata, em quem e por quem foram dissolvidas (Água
mercurial) e depois transmutadas (Pedra Filosofal) todas as oposições
que estruturam comumente a linguagem e o pensamento. Dessa Maté­
ria una e proteiforme, virgem e prostituta, muitas vezes representada
por um mar ou por uma esfera, no fundo não se pode, portanto, nada
dizer, mas devemos, se quisermos tentar sugerir sua potência ilimitada,
usar tantos nomes quanto ela comporta de qualidades, ocultas e mani­
festas; o mais importante permanecendo, no entanto, "nos libertarmos
dessa imaginação da pluralidade das matérias ” (Sinésio).
Fundamentalmente una, a Matéria traz dos elementos sua ubiqui-
dade, sem que seja possível reduzi-la a nenhum dos dois. Dos Princípios
(Mercúrio e Enxofre) ela herdou uma bipolaridade que, reconduzida
pelas operações da Arte a uma unidade mais original (prima matéria),
se tornará o 'fundamento muito precioso ” (Basile Valentin) tão procu­
rado e diversamente nomeado: Agua que não molha as mãos, Agua da
vida, Sujeito dos Sábios, Úmido radical... Muitas vezes negligenciada.

-347-
348 Filosofar pelo Fogo

e até mesmo desprezada pelo vulgar que, indi­


ferente às suas qualidades ocultas, a espezinha

Síííf» de boa vontade, ela só revela sua perturbado­

fttíH ra e fecunda proximidade ao Artista que soube


descobri-la e prepará-la, tal uma esposa, para
uma glória compartilhada.
*
* *
Eis a matéria que ao Isso é o divino e grande mistério; o objeto que
mesmo tempo contém a
prata-viva e a fulguração. buscamos. Isso é o Todo. Dele [provém] o Todo
e por ele [existe] o Todo. Duas naturezas, uma
única essência; pois uma atrai uma e uma do­
fv
Ifc H ™
mina uma. Isso é a água de prata, o hermafrodi­
ta,* o que sempre foge, o que é atraído para seus
próprios elementos. E a água divina, que todos
Tr 'j W ignoraram, cuja natureza é difícil de contemplar,
pois isso não é um metal, nem água sempre em
1 movimento, nem um corpo [metálico], ela não é
A Matéria Filosófica é dominada.
por sua natureza nomea­ E o Todo em todas as coisas; ele tem vida e
da Vulpi, isto é, o Animal. espírito e é destruidor. Quem compreender isso
possui o ouro e a prata. A potência foi oculta,
mas ela está depositada no Erotyle.173
Zózimo, Memórias autênticas
sobre a Agua divina, in Marcelin Berchclot,
Coleção dos antigos alquimistas gregos, t. III, p. 146.
*
* *

ardais diz: “O que os mestres já disseram sobre a água permanente


é bem conhecido. Portanto, não podemos pretender avançar na conduta
dessa arte antes de ter reconhecido a potência dessa água permanente.
Devemos sempre usá-la, essa famosa água permanente, na mistura, na
contrição e na totalidade do magistério. Quem portanto a ignora, e tam­
bém o regime que lhe convém, não penetrará nessa arte, pois sem a água
permanente nada pode ser feito. Sua força é a do sangue espiritual, e é
por isso que os Filósofos a denominaram “permanente”, pois, triturada
com o corpo que os mestres antes de mim lhes mostraram, ela converte,

173. Autor citado no Papiro de Leyde.


A Matéria com Mil Nomes 349

com a ajuda de Deus, esse corpo em espírito. Mistura­


dos com efeito um ao outro e reduzidos à unidade, eles
se convertem mutuamente: o corpo incorpora o espirito,
e o espírito na verdade converte o corpo em um espírito

iãll
TVkhaPhiidsoJ
ihorum acJãpientunv . |
tinto de sangue. E saiba que tudo o que possui um espí­
rito tem igualmente um sangue: lembrem-se, portanto,
sempre desse arcano”.
A Assembleia dos Filósofos
(Turba Philosophorum, scc. XI I\
tn Jcan-Jacques Manget.
A Assembleia dos Filó­ Bibltolheea Chemiea Curiosa, r. 1. p. 451.
sofos e dos Sábios:
0 primeiro agenciamen­ *
to ê o coito; o segundo, * *
a concepção; o terceiro, ]E/ ssa Água dissolve igualmcntc tudo o que pode ser fun­
a gravidez; o quarto, o
nascimento; o quinto, a dido e liquefeito. É uma Água pesada, viscosa ou pegajosa,
nutrição. preciosa, e que merece ser honrada; ela dissolve todos os
corpos, que são crus, em sua primeira Matéria, isto c, cm
uma terra e pó viscosos, ou, para falar mais claramente, cm Enxofre e cm
Prata-viva. Portanto, se você colocar nessa Agua qualquer tipo de metal,
em limalha ou em lâminas trituradas, e deixar durante algum tempo cm um
calor suave, o metal se dissolverá todo e será inteiramente transformado
em uma Água viscosa, ou Óleo branco, como acabei de dizer. E assim essa
Água amolece o corpo e o prepara para a fusão e a liquefação; e ela toma
até mesmo fundíveis todas as coisas, tanto as pedras quanto os metais, e cm
seguida lhes comunica o Espírito e a Vida. E, dessa maneira, ela dissolve
todas as coisas com uma Dissolução admirável e converte o corpo perfeito
em uma Medicina fusível, fundível e penetrante, que é mais fixa do que não
é o próprio corpo, e aumenta seu peso e sua cor.
Trabalhe então com essa Água e você terá o que deseja dela. Pois
ela é o Espírito e a Alma do Sol e da Lua; o Óleo e a Água dissolvente,
a Fonte, o Banho-Maria,* o Fogo contra natureza, o Fogo úmido, o Fogo
secreto, oculto e invisível. É o Vinagre muito ácido, sobre o qual um
antigo Filósofo disse: Pedi a Deus, e ele me mostrou uma Agua nítida,
que eu vi que era um puro Vinagre, alterando, penetrando e digerindo
Essa Água é, portanto, a única maneira ou meio próprio c natural
pelo qual devemos dissolver os corpos perfeitos do Sol e da Lua, por
uma dissolução admirável e particular, conservando-os sempre em seu
mesmo espaço, e sem que esses corpos sejam de forma alguma destruí­
dos, que para receber uma forma e uma geração nova, mais nobre e
350 Filosoi-ar pf.i.o Fogo

mais excelente do que a que eles tinham antes: uma vez que é por te­
rem sido mudados na Pedra perfeita dos Filósofos; o que é seu segredo
admirável.
O Livro de Artépio (scc. XII?),
in William Salmon,
Biblioteca dos Filósofos Alquíinicos, t. II, p. 119-122.

*
* *
JWorien: Considere o que disse o Sábio: Que o Magistério foi acos­

tumado a ser feito de uma única coisa. Guarde então isso muito bem em
seu espírito, e pense a respeito, e o examine de tal forma que não so­
fra mais nenhuma contradição [...]. O mesmo filósofo diz: Quem, para
fazer o Magistério, buscar alguma outra coisa além dessa Pedra, será
como um homem que quis subir em uma escada sem,degraus e, como
não pode fazê-lo, cai com a cabeça para baixo.
Calid: O senhor está falando de uma coisa rara, ou a encontramos
com facilidade?
Morien: Sobre isso o Sábio disse: é para o rico e para o pobre, para
o pródigo e para o avaro, para aquele que anda e para quem está senta­
do. Pois é uma coisa que jogamos nas ruas, e andamos sobre os estercos
onde ela está. O que foi a causa para que muitos esquadrinhassem nos
estercos acreditando ali encontrá-la, e se enganaram. Mas os Sábios
conheceram o que era, e muitas vezes experimentaram e recomendaram
essa coisa única, que contém em si os quatro Elementos, e que tem do­
mínio sobre eles.
Calid: Em que lugar e em que mina devemos procurar essa coisa
para encontrá-la?
Nesse momento Morien se calou e, abaixando a cabeça, pensou
por muito tempo no que deveria responder ao Rei; e, enfim, levantando-
se, ele disse:
O Rei, eu vos confesso a verdade, que Deus, segundo seu desejo,
criou em vós essa coisa tão notável, e não importa onde estejais, ela está
em vós, e não poderia ser separada, e tudo o que Deus criou não poderia
subsistir sem ela, de forma que, se a separarmos de alguma criatura, ela
logo morre.
Calid: Não entendi nada do que vós acabastes de me dizer, se não
me explicais.
Morien respondeu: Os discípulos de Hermes lhe disseram: Nos­
so bom Mestre, os Sábios, nossos predecessores, compuseram livros
/\ Matéria com Mil Nomes
351

sobre esse Magistério, que deixaram para seus filhos e seus discípulos;
portanto, rogamo-vos de não nos ocultar a explicação, mas de querer,
por favor, sem mais demora, declarar-nos o que os Antigos deixaram
um pouco obscuro em seus escritos. E ele lhes disse: Ó Filhos da Sabe­
doria! Sabei que Deus, o altíssimo e bendito Criador, criou o mundo dos
quatro Elementos, que são todos dessemelhantes entre si, e colocou o
homem entre esses Elementos, como sendo o maior ornamento.
Calid: Eu vos rogo, explicai-me mais uma vez o que dissestes.
Moricn: Qual a necessidade de tantos discursos, ó Rei, é de vós que
se extrai essa coisa; sois vós a mina, pois ela se encontra em vós, e, para
confessar sinceramente a verdade, nós a tomamos e a recebemos de vós.
E, quando a tiverdes experimentado, o amor que tendes por ela aumentará
em vós. Estai certo de que o que eu digo aqui é verdadeiro c indubitável.
Entrevista do Rei Calid e do Filósofo Morim, m William Salmon.
Biblioteca dos Filósofos AL]niiniios, t. 11. p. 84-87.

* *

K^xOmpreenda então que nossa matéria é mais elevada do que todos os


seres que estão sobre a terra, mas que por ela temos pouca estima c não lhe
conferimos nenhum preço, como isso ficará mais claro cm seguida. Pois,
se a água se incorpora com a terra, ela será a mais baixa de todas as coisas;
mas, se é fixada pelo fogo, ela ascende a um grau superior. Assim, você
pode ver de que maneira a água será ao mesmo tempo a coisa mais baixa c
a mais alta; ainda mais que o que dissemos antes - que é uma coisa muito
vil - é confirmado por todos. Em nossa terra de fato existe essa água, c
nessa terra malcheirosa você encontrará uma água pura e clara, que é nosso
esperma e nossa quinta-essência; e essa terra suja e repugnante não pode
então ser de nenhum uso e não vale nada [...].
A primeira matéria é o que nomeamos quinta-essência. Compreenda,
no entanto, filho, que a quinta-essência é uma coisa e a matéria do au­
mento é outra; e, como já dissemos anteriormente, o crescimento dos
metais não é comparável ao do corpo humano. Ainda que a quinta-
essência que causa o crescimento dos metais possa se tornar uma medi­
cina benéfica aos corpos humanos, da mesma maneira a quinta-essência
que causa o crescimento dos corpos também pode se tornar uma medi­
cina favorável aos corpos dos metais. E por isso, como já disse, que a
quinta-essência é uma coisa, e o crescimento é outra.
Portanto, você vê por que razão nossa água é chamada primeira
matéria e esperma dos metais, uma vez que é dela que todos os metais
352 FilosoivXR pelo Fogo

são engendrados. Então você precisa dela no início, no meio e no fim


da operação, já que ela é a causa de toda geração e que por seu conge-
lamcnto é convertida em toda espécie de metais, isto é, na primeira ma­
téria de suas espécies. É por isso que a chamamos esperma dos metais e
água de vida metálica, porque ela traz vida e saúde aos metais doentes
e àqueles que estão mortos, e ela reúne o homem vermelho e a mulher
branca, ou seja, o Sol e a Lua.
Ela também é chamada Leite de virgem, pois, enquanto não esti­
ver conjugada ao Sol e à Lua, ou com qualquer outro corpo, exceto com
aqueles que são de seu gênero, ela sempre pode ser nomeada virgem.
Mas, quando está conjugada com o macho e a fêmea e conclui com eles
um casamento, então deixa de ser virgem, uma vez que fez corpo com
eles e se torna una com aqueles com os quais está ligada, ou seja, o Sol
e a Lua, que ela une e com os quais se une para a geração. Mas, por mais
que dure seu estado virginal, ela será chamada Leite de virgem, água
bendita, água de vida, e por inúmeros outros nomes.
Georgc Riplcy, O Livro do Mercúrio e da Pedra dos Filósofos
(Liber de Mernirio e Lapide Philosophoruin, scc. XVI),
in Opera omnta cheniica (1649), p. 101 -109.

*
* *

fundamento muito precioso, de que todas as coisas são produzi­


das nessas terras, ainda que antes tu sejas um veneno, decorado com o
nome de Águia* fugitiva! A primeira Matéria é a semente branca e ver­
melha, no corpo da qual a seca e as chuvas estão encerradas e ocultas
dos ímpios, por causa do ornamento e do vestido virginal, espalhada por
toda a Terra. Teu Pai e Mãe são o Sol e a Lua: e a Água e o Vinho* tam­
bém operam em ti, como o Ouro e a Prata na Terra, para que o homem
dessa maneira ali se regozije. Deus, muito bom e muito grande, espalha
sua Bênção e sua Sabedoria com a chuva e os raios de Sol para a eterna
glória de seu nome. Mas, ó Mortal! Considera aqui quais são as coisas
com as quais Deus te presenteia! Atormenta a Águia até que ela espalhe
lágrimas, e o Leão até que ele esteja tão enfraquecido, que chorando
deseje a morte. O sangue deste, conjugado com as lágrimas da Águia,
é o Tesouro da Terra. Os dois animais têm o costume de se engolir um
ao outro, de se perseguir por um amor mútuo, e de tomar a natureza e a
propriedade da salamandra.174 Se eles permanecem misturados no fogo
sem ser ofendidos, dissipam as doenças dos homens, dos animais e dos
metais. Depois que os antigos Filósofos tiveram o conhecimento desse
174. cf textos citados p. 470 -471.
r\ Matéria com Mil Nomes
353

mistério, eles cuidadosamente procuraram o centro da árvore, que está no


meio do Paraíso terrestre, entrando ali pelas cinco portas contenciosas.
A primeira dessas portas foi o conhecimento da verdadeira Matéria, na
qual se dá o primeiro combate. A segunda foi a preparação dessa Matéria,
isto é, como se deve trabalhá-la para encontrar as cinzas da Águia e o
sangue do Leão. Nessa operação acontece um rude combate, em que o
sangue e a água adquirem um corpo espiritual resplandecente. A terceira
é o Fogo, que conduz o composto a uma perfeita maturidade. A quarta é
a multiplicação, na qual o peso é necessariamente requisitado. A quinta, e
última Porta, é a projeção sobre os metais imperfeitos. Aquele que chega
até essa Porta é coberto de glória e de riquezas, pois possui a Medicina
universal de toda espécie de doenças, e ela é a prova daquilo que o grande
Livro da Natureza contém, do qual sai todo o alfabeto. Esse Mistério, o
mais antigo de todos, subsiste desde o início, antes mesmo da criação de
Adão, e é a Ciência da Natureza, que Deus, muito bom e muito grande,
inspirou por seu Verbo.
Basilc Valentin, O Azoto ou o Meio dc fazer o
Ouro oculto dos Filósofos (séc. XV?), in Willi.un Salmon,
Biblioteca dos Filósofos ALjuinucos
r. III. p. 162-164.
*
* *

ma pedra se vê, e a vil preço se vende;


Dela um fogo fugitivo toma sua origem.
Nossa pedra dele se faz e se compõe
E de branca cor e de vermelho paramentada.
Ela é pedra e não pedra e nela a natureza
Pode apenas demonstrar sua virtude não semelhante,
Para dela fazer jorrar um riacho claro,
No qual ela irá seu pai sufocar,
E então, com ele morto, ávida se apascentar,
Até que sua alma em seu corpo renascerá.
E sua mãe, que é de natureza volátil,
Em potência lhe seja e em toda semelhança;
E à verdade, seu pai renascendo
Com muito mais virtude do que antes.
A mãe do sol supere os anos
Em idade, a esse efeito por ti, Vulcano, auxiliadas.
Seu pai, no entanto, precede em origem,
Por seu espiritual ser e essência divina.
O espírito, a alma, o corpo são contidos em dois.
354 Filosofar pelo Fogo

O magistério vem de um que, só e um sendo,


Pode junto reunir o fixo e o fugidio.
Ela é dois, ela é três e, todavia, não passa de uma.
Se tu não és nisso sábio, nada compreenderás.
Faze lavar em um banho Adão, o primeiro pai,
Onde se banha Vénus, das sensualidades a mãe;
De um muito velho Dragão esse banho se preparava,
Quando todas as suas virtudes e suas forças ele perdia;
E como diz muito bem o gênio de natureza,
Só se pode nomeá-lo o duplo Mercúrio.
Eu me calo, eu encerro, eu nomeio a
matéria.
Feliz, três vezes feliz, aquele que compre­
ende esse mistério.
Que o apreensivo tédio não te surpreenda;
A saída te fará ver esse ponto tão desejado.
Basilc Valcntin, “Da primeira Matéria
da Pedra dos Filósofos”
(séc. XV?), in William Salmon,
Prima matéria: Arthur Dee, Biblioteca dos Filósofos ALpiimicos,
Arcana arcanorum. c. 1631-1634 t. 3, p. 70-71.
(British Librar)').
*
* *

primeiro princípio presente junto de Deus foi a matéria última, que


ele mesmo criou assim como a primeira, tal um fruto que produzirá outro
fruto: ela mesma tem uma semente, e essa semente está na primeira maté­
ria. Da mesma forma, na matéria última dos minerais foi criada a matéria
primeira, isto é, produzida na semente, porque a semente é o elemento
da água que dissolve, para que ela se torne água. Em razão disso, ele deu
ordem à natureza, ou ordenou nela, para que produzisse a matéria última,
essa mesma que está na água. A natureza tomou então o que está na água
sob sua potência e separação, e o que é útil para o metal ela o escolheu
no metal, qualquer coisa por seus próprios meios; assim é para as gemas,
pedras, imãs, e esse gênero em sua natureza independentemente daquele
em sua própria espécie. Da mesma maneira, Deus organizou também um
tempo de colheita para o fermento, o outono para os doces e segundo seus
elementos semelhantes, e em relação ao elemento da água ele não quis
que o outono fosse seu tempo de colheita próprio: a qualquer outra coisa
ele predeterminou seu próprio tempo de colher o fruto.
A Matéria com Mn. Nomes
355

O elemento da água é,
portanto, a mãe, a semente e a
raiz de todos os minerais, e nela
é o Arqueu* que dispõe as coi­
sas singulares em determina­
da ordem, para que uma coisa,
qualquer que seja ela, se torne
segundo sua última matéria na­
tural, que, contudo, o homem
recebe segundo sua primeira
matéria artificial, ou seja: Onde
se detém a Natureza, ali mesmo Figuração simbólica da Matéria-prima:
começa a Arte do homem, pois Goossen Van Vreeswijk, De Groene Leeuw.
a matéria última da arte é para o Amsterdã, 1674.
homem a primeira. Em contra­
partida, a corrupção da natureza graças à arte é para o homem a matéria
última. Por uma obra tão digna de admiração Deus criou a água como pri­
meira matéria da natureza, substância a tal ponto mole e frágil de onde pro­
vêm no entanto um fruto metálico muito sólido, pedras, etc., assim como
do muito mole o muito duro, e que da água nasça o fogo acima do alcance
do intelecto humano, mas não, contudo, acima da natureza. Deus criou o
feto admirável a partir de sua mãe, como é visível nos homens, se eles tam­
bém se fazem ver em sua mãe, cada um em particular é reconhecido por
sua engenhosidade e sua propriedade, não segundo seu corpo, mas por sua
fundação (preparação, criação) de temperamento.
Gérard Dorn. Ccngmcs PanuAsisa Chentit
df Transmutationibus mftallorum (1581),
in Jean-Jacqucs Manger, Btbhothtca Chemira Curwta,
( II. p. 455.

*
* *

s Filósofos de que me lembro de memória não conseguiram in­


culcar suficientemente a ideia e atrair a atenção dos buscadores da arte
sobre a extrema importância que para eles têm o conhecimento da
primeira e depois da segunda matéria da Pedra filosófica: essa matéria
sendo, no entanto, apenas uma coisa única, a partir de que se deve
necessariamente preparar essa única Pedra, sem adição do que quer
que seja de estranho, ainda que a designe sob outros mil nomes dife­
rentes. Os Filósofos descreveram de forma admirável a qualidade, o
356 Filosofar te lo Fogo

aspecto e a propriedade dessa matéria, e em geral a apresentaram nos


seguintes termos: inicialmente produzida pela conjunção de três coisas,
ela é, contudo, adequadamente falando, apenas uma. Da mesma forma,
engendrada e constituída de um, dois, três, quatro e cinco, ela é igual­
mente encontrada no um, no dois e em toda parte. Eles também a cha­
mam Magnésia* católica ou esperma do mundo, de que todas as coisas
materiais extraem sua origem. Admirável e única pela natureza e forma,
ela possui uma qualidade difícil de buscar e pouco conhecida, que não
é nem quente e seca como o Fogo; nem fria e úmida como a Agua; nem
fria e seca como a Terra, mas que é feita de certo acoplamento perfeito
de todos os Elementos. Ela também é um corpo incorruptível que não
pode ser destruído por nenhum elemento, mas que os supera por todas
as suas propriedades, como o fazem o Céu* e a Quinta-essência dos
quatro Elementos e qualidades. Segundo o aspecto corpóreo exterior, a
figura, a forma e a espécie, é uma Pedra, e não é uma, pois se assemelha
muito mais a uma goma* de um branco brilhante e a uma água branca.
Eles também a chamam água do Oceano, água de vida, e ainda a mais
pura e bendita dentre as águas. Contudo, ela não é uma água prove­
niente das nuvens ou de alguma fonte vulgar, mas é uma água espessa,
permanente e salgada; uma água pituitária, saindo da gordura salgada
da terra. É o Mercúrio duplo e o Azoto* que, putrefato e conservado
pelo vapor ou suor do globo superior e inferior, o Celeste e o Terrestre,
se consome sem fogo. Esse é, com efeito, o Fogo universal e cintilante
da luz da natureza, detendo em si o Espírito celeste com que Deus o
animou no início, e que Avicena nomeou Alma do mundo, penetrando
todas as coisas. Assim como a alma reside em todas as partes do corpo
humano e ali se move, esse espírito se encontra em todas as criaturas
elementares e ali se move. Além do mais, ele é o elo indissolúvel do
corpo e da alma e, sobretudo, a mais pura e a mais nobre Essência, na
qual se ocultam todos os mistérios de uma eficácia admirável e de uma
virtude plena. Os Filósofos lhe atribuíram além do mais uma potência
infinita e uma virtude divina, quando dizem que ela é o próprio Espírito
do Senhor que preenche o orbe terrestre e que flutuava no início sobre
as águas. Eles a nomeiam também espírito de verdade, que está oculto
ao mundo e não pode ser compreendido a não ser graças à inspiração
divina ou pela instrução daqueles que a conhecem. O que certamente
está em potência em toda parte e em tudo, não é em verdade perfeita e
plenamente descoberto a não ser nesse sujeito* único. Em suma, é uma
substância espiritual que não é nem celeste nem infernal, mas é um corpo
aéreo, puro e excelente; meio entre o alto e o baixo, eminentemente nobre
A M/\TÉRiA com Mil Nomes
357

e entre todos precioso sob o céu. Ao contrário, essa matéria é igualmente


tida pela coisa mais vil, e por assim dizer a mais abjeta, por aqueles que
nào têm o conhecimento ou que começam apenas a estudar. Ainda
que certamente buscada por muitas pessoas perspicazes, ela só é desco­
berta por poucas. Observada de longe ou escrutada de perto, ela ainda
pode ser vista por todos, no entanto só é conhecida por poucos.
Johann Ambrosius Siebmachcr.
O A.piárto dos Sábios (Hydrolitbus Sophuus,
seu Aijuariuni Sapientum, 1619\
in Jcan-Jacqucs Mangct. Bibhotheca Cheiniea Curiosa,
t. II. p. 540.

*
* *
JE/ssa primeira matéria é, portanto, um sal. O que significa dizer que
o Sal é o primeiro corpo, pelo qual ela se torna palpável c visível; desse
sal, Raymond Lullc pretende falar em seu Testamento, quando diz: An-
teriormente, declaramos que no centro da Terra existe uma terra virgem,
e um verdadeiro elemento: e que é a obra da Natureza. Essa Natureza
está situada no centro de cada coisa. Assim, o sal é essa terra virgem
que ainda nada produziu; na qual o espírito do mundo se converteu
primeiramente, por vitrificação, isto é, por extenuação de humor. É ele
quem dá forma a todas as coisas, e nada pode aparecer ao sentido da
vista nem do tato a não ser pelo sal. Nada se coagula, a não ser o sal.
Nada além do sal se congela. É ele quem dá a dureza ao ouro, a todos
os metais; ao diamante, e a todas as pedras tanto preciosas quanto as
outras, por uma potente e muito secreta virtude vitrificante. Além do
mais, observa-se que todas as coisas compostas dos quatro Elementos
retornam ao sal. Pois, caso um corpo apodreça, o que restará dele senão
um pó de cinzas que guarda um sal precioso? E se o corpo for destruído
por queimada, calcinação ou incineração, o que tiraremos dele em últi­
ma instância a não ser o sal?
Clovis Hestcau de Nuisctncnt,
Tratado do verdadeiro Sal dos Filósofos e
do Espínto geral do Mundo (1621),
p. 87-89.

*
* *
358 Filosofar pelo Fogo

p
JL/ u lhes confesso sinceramente que a Prática de nossa Arte é a coisa
mais difícil do mundo, não em relação às suas operações, mas em rela­
ção às dificuldades que existem em aprendê-la distintamente nos livros
dos Filósofos. Pois se, de um lado, ela é com razão chamada um Jogo dc
crianças; do outro, ela requer daqueles que buscam sua verdade por seu
trabalho e seu estudo um conhecimento profundo dos Princípios e das
operações da Natureza nos três gêneros; mas particularmente no gênero
mineral e metálico. É um grande ponto encontrar a verdadeira Matéria,
que é o Sujeito* de nossa obra: é preciso atravessar para isso mil véus
escuros, com os quais ela foi envolvida; é preciso distingui-la por seu
próprio nome, entre um milhão de nomes extraordinários, com os quais
os Filósofos diversamente a expressaram; é preciso compreender todas
as suas propriedades, e julgar todos os graus de perfeição, que a Arte é
capaz de lhe dar; é preciso conhecer o Fogo secreto dos Sábios, que é o
único Agente, que pode abrir, sublimar, purificar e dispor da Matéria a
ser reduzida em Água; é preciso para isso penetrar até a Fonte divina da
Água celeste, que opera a solução, a animação e a purificação da Pedra; é
preciso saber converter nossa Água metálica em Óleo incombustível por
meio da completa solução do corpo, de onde ela extrai sua origem; e para
isso é preciso fazer a conversão dos Elementos, a separação e a reunião
dos três Princípios; é preciso aprender como se deve fazer seu Mercúrio
branco, e um Mercúrio citrino; é preciso fixar esse Mercúrio, alimentá-
lo com seu próprio Sangue,175 para que se converta em Enxofre fixo dos
Filósofos. Eis quais são os pontos fundamentais de nossa Arte; o resto da
obra se encontra muito claramente ensinado nos livros dos Filósofos, para
não ter necessidade de uma explicação mais ampla.
Alexandrc-Toussaint Limonjon dc Saint-Didicr,
O Triunfo hermético (1699), in William Salmon,
Biblioteca dos Filósofos Alíjtdinicos
r. III, p. 294-296.
*
* *

Natureza: Filho, a Obra trará com bastante prolixidade um epílogo


ao que você procura; no entanto, apercebendo-me do seu interesse pelas
outras coisas, exporei de maneira tào clara e breve quanto possível ao
que você aspira. Saiba entào que a matéria mais inacessível é nome­
ada Hylé, e ela é o princípio primordial de todas as coisas, a respeito
do qual eu relatarei o que escreve Agostinho, quando diz: Quando eu
175. cf. artigo Pelicano do Glossário.
A Matéria com Mil Nomes 359

concebo alguma coisa de informe, começo por não


compreender mais nada do que compreendia, pois,
nào vendo nada, são as trevas que vejo, e de for­
ma semelhante, não ouvindo nada, é o silencio que
percebo. Portanto, conclui-se ser essa Hylé o que
é percebido entre algo e nada. A outra matéria em
ÃÍ ■ As- .
verdade, que não está assim tão distante, c nomeada
Caos, porque o Caos é ccrtamentc uma massa bru­
ta e não elaborada na qual todas as coisas estavam
misturadas no estado dc confusão, c que alguns cha­ Agidivs DEVA-
dú Philojájilnis.
mam matéria ou massa confusa: essa mesma que se
abriu desde a origem; e outros, matéria informe do /Egidius de Vadis. filóso­
céu e da terra, que foi feita bem no início do nada fo: A o tato e à visào isso
e da qual em seguida foram levadas a se manifestar nào ê tuna pedra, mas
todas as coisas por meio das espécies variadas c das uma terra sutil, de um
formas próprias; o que Lactâncio176 definiu assim: vermelho púrpura e nào
o Caos é uma massa amorfa e desorganizada, um transparente.
amontoado confuso; e para que você compreenda
melhora natureza dessa primeira matéria, que mais do que todas as outras
lhe é necessária, pois sem ela você só aperfeiçoaria mediocrementc sua
obra, eu lhe direi mais amplamente qual ela é. Pois, ainda que o Deus su­
premo tenha no início preparado os quatro Elementos, que nela eram con­
fusos, de tal forma que a terra e a água, que são mais pesados, chegavam
até o círculo da Lua, e que o fogo e o ar, que são mais leves, desciam até o
centro da terra - e é por isso que tal matéria era com razão qualificada dc
confusa -, permaneceu, no entanto, neste mundo, uma certa parte dessa
massa amorfa, que é conhecida de todos e publicamente vendida; pouco
numerosos sendo, todavia, aqueles que se fizeram uma opinião justa do
que é um Caos ou matéria confusa dessa espécie.
zEgidius de Vadis, Diálogo nitre a Naturesa
c uni Filho da Filosofia (Dialogus inler Xaturam
et filium Philosophia-, 1965). iti Jean-Jacques Mangct,
Bibliotheea Cbeitiica Curiosa, t. II. p. 328.
*
* *

176. Em As Instituições divinas (liv. II. VIII. 8). Lactâncio defende de fato a criação ex
nihilo contra aqueles que pretendem tirar uma coisa da organização do caos: “Não se deve
ouvir os poetas, que contam que no inicio havia o caos, isto é, a confusão dos objetos e dos
elementos, e que. mais tarde. Deus tinha feito uma triagem em toda essa massa, extraído
dessa confusão todas as coisas uma a uma, e as tinha colocado em seu lugar e tinha simul­
taneamente organizado e ornado o mundo”.
360 Filosofar pelo Fogo

p
JL/ também considerando que todas as coisas se engendram de duas
substâncias, uma quente e seca, a outra fria e úmida, representadas pelo
Sol e pela Lua, os Filósofos também nomeiam Enxofre e Mercúrio, di­
zendo que é preciso que a irmã tire seu irmão e o irmão, sua irmã, assim
como se vê na dissolução.
Todavia, antes de continuar, saiba que os Filósofos chamam a maté­
ria: agente e paciente, irmã e irmão, para declarar que é preciso que eles
sejam de uma mesma espécie e apenas diferentes no sexo; portanto, os
que trabalham em vão são os que reúnem seu fermento masculino com
uma água estranha e de outra natureza que não é extraída deles, mas em­
pregada pela natureza em sua geração, na qual eles não podem dissolver
pois ela é estrangeira e de outro sangue e que ela não é sua irmã, como
o mercúrio o é do enxofre; essa consaguinidade denota muito mais que
a semente feminina de nossa obra se assemelha muito à semente mas­
culina, e pouco falta para que elas não sejam uma mesma coisa; essa
diferença não depende senão do calor de uma e da frieza da outra, para
que vejamos abertamente que o mercúrio vulgar, considerando-o em suas
qualidades sem se adequar à nossa obra, está tão distante do parentesco
do Sol, que, se não se aproximou dele por uma nova Aliança, ele não pode
ser a matéria feminina do Elixir, mas, ao macerá-la primeiramente com
um espírito da natureza do fermento filosofal e que seja seu próprio ir­
mão, nós os colocamos tão perto um do outro, que por esse meio ele rece­
be a consaguinidade do fermento, o que se faz animando-o e cozinhando
como já dissemos, e então ele é tão bem-proporcionado à natureza do Sol
que pode verdadeiramente ser nomeado sua irmã.
Henri dc Linthaut,
A Aurora (séc. XVII), ms. n. p.
*

c
•k *

^Jim, nossa primeira Matéria é um Sal, isto é, o Sal é o primeiro cor­


po pelo qual ela se torna palpável e visível; Raymond Lulle, em seu
Testamento, traz informações sobre esse Sal, quando diz: já declaramos
que no centro da Terra existe uma Terra virgem que contém um quinto
Elemento, que é a mais eminente obra da natureza; essa natureza está
localizada no centro de cada coisa. Assim, o Sal é essa Terra virgem que
nada produziu ainda, na qual o Espírito do mundo se converteu. E o
Sal que dá Forma a todas as coisas, e nada pode surgir ao sentido da
vista nem do tato, a não ser pelo Sal; nada se coagula a não ser o Sal, e
A Matéria com Mn. Nomes
361

nada além do Sal se congela. É ele que dá a dureza do Ouro e a todos


os outros metais; é por isso que o operador sem o Sal fará apenas (diz
Armand em seu Breviário) um arco sem corda. É essa substância cris­
talina exaltada por sublimação, e mais branca que a neve, que contém
ocultamente em si a semente Sulfurosa vermelha, escarlate, segundo o
que está dito na Assembleia: Mirati sunt Philosophi rubedinem in tan­
ta albedine existere. Também chamado Sal animado. Água viva, Água
seca e Água congelada, sobre a qual Moisés Egípcio dizia: divisit Deus
lumen et tenebras, et aquas ab aquis, et congelata est gata media. Eis
o que dizemos ser verdadeiramente a Matéria, sobre a qual c na qual os
verdadeiros Filósofos devem operar. Ao nosso bondoso Deus, Pai Filho
e Espírito Santo, honra e glória. Amém.
David dc Pl.inis Catnpy,
[.'Ouverture de 1’Esídlf de Philosopbie
transrmitatoire métalli^ue (1633),
m (Euvres (1646), p. 698-699.
*
* *

ora, então, posso falar com segurança sobre a matéria da Pedra


dos Filósofos, e dar como uma verdade constante e indubitável que essa
matéria não se pode encontrar fora do Reino mineral, e que no Reino
mineral é inútil buscá-la sem prata-viva, que é a única base sobre a qual
são colocadas as colunas da Natureza nesse reino mineral.
Essa matéria não é outra que o Mercúrio
duplo, reduzido por seu pai a uma água, que o
peixe Rêmora* sempre deixa turva, e a mantém
em tal estado que ela é capaz de reduzir todos os
metais e minerais à sua matéria primeira, para
ascender a um ser melhor do que aqueles que
tinham; e esse duplo Mercúrio, sem adição de
qualquer coisa estranha, mas dele mesmo, por si
mesmo e nele mesmo, sendo manejado por um
Sábio artista, passa da cor negra à branca, e des­
sa à vermelha, que são as três cores capitais, pe­
las quais deve necessariamente passar a matéria
da Pedra, segundo todos os filósofos.
Barent Coenders van Hclpen, A Matéria mercurial repre­
Introdução à Filosofia dos Antigos sentada por unia moça: Ms.
(1689), p. 69. alchimique. Basileia. 1550
362 Filosofar pelo Fogo

antimônio* pode com razão ser comparado a um círculo que não


tem fim, assim como o Mercúrio também é qualificado. Ele é de todas
as cores do mundo e, quanto mais buscamos suas virtudes, mais pode­
mos aprender, caso se proceda como se deve. Enfim, um homem não
pode conhecer todas as suas virtudes ao mesmo tempo, uma vez que sua
vida é demasiado curta.
É verdade que ele é um veneno, e até mesmo um veneno no úl­
timo grau. Mas também, sem veneno, se pode dizer que é o remédio
dos remédios e o primeiro tesouro da vida, exte­
riormente aplicado e tomado interiormente [...].
O antimônio tem em si as quatro extremidades

o* 1 e qualidades com suas propriedades. Ele é frio


e úmido, quente e seco. Regula-se pelas quatro
estações do ano. E fluido e fixo, e aquele que é
><41 fluido tem veneno; e aquele que é fixo está livre
de qualquer veneno. É por isso que muitos escre­
Separada e preparada, vem diversas ficções sobre o antimônio, quando
nossa Matéria é nomea­ falam de suas faculdades malignas. Pois eles não
da litargíriofilosófico. entendem o que escrevem. E bem verdade que é
um mineral admirável, muito difícil de conhecer
bem. Podemos até mesmo chamá-lo um dos sete milagres do mundo,
ainda mais que até hoje não se encontrou ninguém, nem mesmo na mi­
nha época, que tenha podido conhecer inteiramente toda a sua potência,
suas virtudes e suas operações, e que tenha podido penetrar totalmen­
te sua essência, até o ponto de encontrar alguma novidade. E no caso
que se encontre essa pessoa, ela mereceria ser carregada em triunfo em
uma carruagem, como outro ra se costumava fazer entrar na cidade de
Roma os grandes heróis que tinham obtido alguma grande vitória sobre
os inimigos. Mas, a esse respeito, creio que jamais empregarão muitos
operários para construir essa carruagem [...].
As virtudes do antimônio e suas forças são ocultas; é preciso pro­
curá-las no mais profundo de sua essência, o que no começo não se
compreenderá tão facilmente. E necessário introduzi-los em tal conhe­
cimento pelas coisas mais notórias e conhecidas, para que, todos os
princípios sendo compreendidos, se possa chegar ao fim desejado.
O antimônio é assim como um pássaro que voa no ar e que com a
ajuda dos ventos vai para onde deseja. O operador ou o Artista pode se
comparar ao vento, que pode conduzir o antimônio aonde lhe agradar.
Ele pode torná-lo vermelho, amarelo, branco, negro e como desejar,
A Matéria com Mil Nomes
363

segundo a disposição que seu fogo lhe dê. Pois o antimônio contem
todas as cores, como o mercúrio. Coisa com a qual não é preciso se
surpreender, porque a Natureza tem dois recursos admiráveis, os quais
não podemos aprender nem hoje nem depois [...].
Portanto, você saberá que antimônio é apenas uma fumaça ou en­
tão um vapor excitado pelos astros nas entranhas da terra c, por meio
dos Elementos, reduzido a uma coagulação formal. E as mesmas cons­
telações que produzem o mercúrio também produzem o antimônio,
comunicando-lhe sua essência, suas virtudes, suas operações e suas
qualidades do início; e não há nenhuma outra influência cm seus princí­
pios dc geração, a não ser que o antimônio é mais duro c mais coagula­
do do que o mercúrio - ou prata-viva - em seu começo [...].
O antimônio não passa de um mineral feito por um vapor elevado
c dissolvido em um licor. Esse vapor é o verdadeiro astro do antimônio.
E esse licor, atraído do elemento da terra pelos astros celestes e sendo
ressecado pelo elemento do fogo que está no ar, se reduz pela coagu­
lação em uma forma e essência palpável, c nessa forma o enxofre, em
seguida o mercúrio; e a mínima parte dos três princípios é o sal. do qual
contudo existe o suficiente para lhe dar uma forma sólida. As qualida­
des primeiras e elementares do antimônio são secas e quentes e não
participam na frieza e umidade, a não ser cm um grau bem mais baixo;
assim como o mercúrio, ou prata-viva comum, e o ouro corpóreo têm
mais calor do que frieza [...].
Digo-lhes imediatamente que no antimônio encontramos um mer­
cúrio, um enxofre e um sal que são os soberanos medicamentos da saú­
de dos homens. O mercúrio do antimônio consiste em seu regula.* o
enxofre em sua vermelhidão; e seu sal permanece na terra negra que
deixamos. E quando se sabe separar bem essas três coisas uma da outra,
e uni-las imediatamente segundo as regras da arte e que delas se pos­
sa fazer uma fixação sem veneno, quem o fez pode se vangloriar com
honra de que encontrou a pedra de fogo que se faz do antimônio para a
saúde dos homens.
Basilc Valcntin, A Carruagem triunfal do Antimônio (séc. XV?),
reedição da tradução francesa de 1646.
Paris, Rerz. p. 97-99. 107-108. 144. 148. 156.
*
* *
Podemos com razão conjeturar que essa base, essa raiz dos mistos.*
que seguiu à sua destruição, é uma parte da primeira matéria, a porção
364 Filosofar pelo Fogo

mais pura e indestrutível, que traz a marca da luz da qual recebeu a


forma. Pois o casamento dessa primeira matéria com a forma é indisso­
lúvel, e todos os elementos corporificados nos indivíduos tiram dela sua
origem. De fato, não era necessário semelhante matéria para servir de
base incorruptível, e de raiz cúbica aos mistos corruptíveis, para poder
ser seu princípio constante, perpétuo e, no entanto, material, em torno
do qual girariam sem parar as vicissitudes e as mudanças que os seres
materiais experimentam todos os dias.
Dom Antoinc-Joscph Pcrncty,
As Fábulas egípcias egregas reveladas (1758), t. I, p. II7.

*
* *

m nossa explicação da cena macabra, ilustrando a quarta chave de


Basile Valentin, falamos sobre essa matéria, simbolicamente designada
pelo adubo, que os químicos conhecem bem, mesmo que a considerem
como um desprezível resíduo e nem se importem com ele. Porque é
difícil extrair algo que se mostre de algum valor, a menos que seja com
a ajuda de nossa técnica, essas fezes* nem mesmo entraram na classe
dos subprodutos utilizáveis. No entanto, é essa substância, em aparên­
cia imunda, que os Filósofos denominam baba do dragão, e da qual
afirmam que é ao mesmo tempo vil e muito preciosa. De cor negra, de
odor cadavérico, ela se eleva do fundo do mar hermético e se espalha
pela superfície, assim como o pus sai de uma ferida, sob o aspecto de
uma espuma infecta, bolhosa e pútrida, que o casal do Mutus Líber se
dedica a coletar alegremente. O alquimista e sua mulher recolhem, com
a colher, esse caldo gordo e apimentado que recobre sua solução e que
Fulcanelli evoca no capítulo do Homem dos Bosques em suas Moradas
filosofais,177 Dessa maneira, enfim, os dois personagens da iconografia
de Altus colocam em prática o conselho Magistri Arnoldi Villanovani in
ejus Philosophorum Rosário*.™
“No entanto reúna à parte o negro flutuante, uma vez que ele é o
óleo e o verdadeiro sinal da dissolução; porque o que está dissolvido
vem do mais alto, de onde se separa das coisas inferiores o que se eleva

177. Fulcanelli observa, com efeito: “Esses vómitos do enxofre sào os melhores indícios
de sua dissolução e mortificação. Quando chega a essa fase, a Obra adquire, na superfície,
um aspecto de “caldo gordo e salpicado de pimenta”, brodium saginatum piperatum, como
dizem os textos. A partir de então, o mercúrio enegrece cada dia mais e sua consistência se
torna viscosa e pastosa” (op. cit., p. 446).
178. Do Mestre Amaud de Villeneuve, em seu Rosário dos Filósofos.
A Matéria com Mil Nomes

Na terra jaz a Pedra desprezada pelos ignorantes: Michael Maier. Symbola


aureae mensse, Frankfurt, 1522.

e busca atingir outros lugares, como um corpo de ouro. Por outro lado,
guarde-o com cuidado, para que ele nào desapareça em fumaça.”
Este é realmente nosso adubo, foi aprovado pelo Mestre, nosso
adubo que os Filósofos designaram pelas expressões de enxofre negro,
enxofre de natureza, prisão do ouro, túmulo do Rei. ou pelos nomes
de latão, bronze, corvo, Saturno, Vénus, cobre, estanho, etc., e ao qual
atribuíram as mais raras e maiores virtudes. Eles consideraram, com
todo direito, como um real presente do Criador, e nos afirmam que, sem
uma inspiração do Céu, não poderíamos jamais reconhecer, nesse mag­
ma deserdado, repulsivo de aspecto, o Dom de Deus, que transforma o
simples alquimista em sábio e o Filósofo em Adepto experimentado.
Eugènc Canseliet,
Prefácio de As McraJas jibscfais,
de Fulcanelli (1964), t. I. p. 33-34.
366 Filosofar pelo Fogo

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A Matéria-prima da Pedra dos Filósofos, ms, século XVIII.
A Matéria coa\ Mn. Nomes 367

O Filósofo abre a porta que conduz ao Jardim de Hermes: Der Hermetische


Philosophus, Frankfurt e Leipzig, 1709.

I
14

Chaves do Magistério
Eu só vos peço para cozinhar: cozinhai no início,
cozinhai no meio, cozinhai no fim,
e não façais outra coisa,
pois muito a Natureza se aperfeiçoará.
A Assembleia dos Filósofos (séc. X),
in William Salmon,
Biblioteca dos Filósofos Alqiiímicos, t. II, p. II.

Se algumas chaves não abrissem realmente as sucessivas portas


da cidadela hermética - as famosas 12 Portas enumeradas por George
Ripley-, a Obra alquímica é que estaria completamente desacreditada.
Não é menos verdade, no entanto, que ao afirmar em um dado momento
entregar o segredo do Magistério, a maior parte dos textos rivaliza em
duplicidade quando dissimula cuidadosamente o que pretendia mos­
trar, revelar: ‘Nessa arte de nosso magistério, nada foi oculto pelos
filósofos, exceto o segredo da arte que não é permitido a ninguém reve­
lar”, relembra o Rosário dos Filósofos (séc. XIV). Às vezes os autores
designam ostensivamente uma coisa, para fazer compreender outra,
que o operador astuto consegue então distinguir melhor.
Quanto ao leitor, por não ser ele mesmo operativo, ele é confron­
tado a um caleidoscópio textual cuja rotação não é, no entanto, sem
relação com a da roda da Obra: designação da “matéria ” em que re­
side o Alfa e o Ômega do trabalho a ser realizado; enumeração das
operações maiores (dissolução, calcinação, putrefação, destilação, su­
blimação, fixação...) em uma ordem apropriada ou em uma desordem
sabiamente calculada: lembrança das cores cardeais acompanhadas
de suas nuanças niais significativas; indicação exata dos graus, fases,
escalões, que supostamente conduzem de forma infalível ao sucesso
esperado, tanto é verdade que a Opus Chemicum só é finalmente, uma
vez a prima matéria devidamente preparada, um “trabalho de mulheres
-368-
Chaves do Magistério
369

e Brincadeira de crianças”. Alertar solenemente contra os erros ma is


correntes cometidos é ainda a esse respeito secundar, guiar, esclarecer.
*
* *
onienclatura do Ovo\ esse é o mistério da arte.

1. Foi dito que o ovo é composto de quatro Elementos, porque ele c


a imagem do mundo e encerra cm si mesmo os quatro Elementos. Tam­
bém foi nomeado “pedra que faz girar a Lua”, pedra que não é pedra,
pedra de águia e cérebro de alabastro.
2. A casca do ovo é um elemento semelhante à terra, frio c seco;
foi nomeada cobre, ferro, estanho, chumbo.
A clara do ovo é a água divina; a gema do ovo é a rosácea; a parte
oleosa é o fogo.
3. O ovo foi nomeado a semente, e sua casca, a pele; sua clara e
sua gema, a carne; sua parte oleosa, a alma; sua parte aquosa, o sopro
ou o ar.
4. A casca do ovo é o que leva essas coisas para fora do adubo
durante dez dias. Triture-a, com a ajuda de Deus, no vinagre; quanto
mais você a triturar, mais sua obra será útil. Quando tiver batido a com­
posição durante oito dias, deixe fermentar; e prepare então o pó seco.
Quando tiver realizado esse trabalho, jogue mercúrio e, se não obtiver a
tintura da primeira vez, repita uma segunda e uma terceira vez.
5. Primeiro foi nomeada a gema do ovo: ocre ático, vermelhão da
Ponte, natrào do Egito, azul da Arménia, açafrão de Cilicia, quelidónia;
a clara do ovo diluída com água de enxofre é o vinagre, a água do alú­
men, a água de cal, a água de cinzas de repolho, etc.
Autor anónimo, in Marcelin Berthelot.
Cclífão dos antiges aLjuttntstas greges,
t. III. p. 21-22.
*
* *
|Saiba que no campo existem muitos trabalhadores inúteis; se você

nào sai do campo, nào poderá tirar proveito dele. Sào os seis irmãos que
envolvem o Claudianos* e seus congéneres. Ora, só existem dois úteis;
a brancura radiante nào serve para nada. O campo encerra uma serpente
cujo sopro resseca esse lugar, e [os irmãos] ali se tornam lânguidos. Eu
a vejo, com suas escamas de cor variada. O nascimento de sua cauda é
branco como leite; seu ventre e suas costas são da cor do açafrão; sua
370 Filosofar pelo Fogo

cabeça é dc um negro esverdeado. É preciso que você divida o campo em


três: coloque os quatro irmãos em uma parte, e a grande pedra em outra.
E assim que os antigos tratam de operar para encontrar [a coisa oculta].
Assim opera Teodoro Magistrianus, e Jacques Cabidasius o ensina com
sinceridade. Existe um vapor úmido e um vapor seco. O vapor úmido é
extraído por meio do aparelho com garganta;179 o vapor seco [sublima­
do], por meio do caldeirão com uma tampa de cobre, pelo procedimento
empregado para tirar o mercúrio do zinabre.* Ao regar o sublimado com
o vapor úmido, você realizará a obra divina. Saiba que todos os minerais
e vapores são substâncias, ou então se tornam, e, quando as regamos,
elas se tornam vapores úmidos. A comaris* cítica, misturada com o va­
por, basta para realizar tudo. Uma coisa é a Alquimia fabulosa; outra é
a Alquimia simbólica e oculta. A Alquimia fabulosa em vão se espalha
em uma variedade de discursos, enquanto a Alquimia simbólica procede
com método na organização do mundo, para que o homem inspirado de
Deus e nascido dele seja instruído por discursos divinos e alegóricos do
andamento exato da obra.
Sréphanus dc Alexandria (séc. VII),
in Marcclin Bcrthclot, Introdução ao estudo
da Qnítniea dos Antigos e da Idade Média,
p. 290-291.
*
* *
JEj preciso observar de que maneira e segundo que procedimentos essa

obra celeste é realizada; e também observar que os Filósofos atribuíram


diversos nomes a essa operação. Alguns deles disseram, com efeito, que
é calcinando, dissolvendo, destilando e coagulando que essa obra se
realiza. E Hermes o ensina por meio dessas palavras, quando diz: Seu
pai é o Sol, sua mãe é a Lua; esse vento o carregou em seu ventre; sua
mãe é a terra.
Outros em verdade disseram: é sublimando, reiterando e fixando
até que isso permaneça no fundo; outros, inserindo ou embebendo até
que isso escorra; outros, limpando ou lavando até que surja o branco e
o vermelho; outros, matando, até que morra e seja branqueada; outros,
vivificando e alimentando até que a geração se faça; outros, putrefa-
zendo e corrompendo, até que o manifesto esteja ocultado, e recipro-

179. Ou alambique de Sinésio (séc. IV) deve seu nome à garganta (ou ranhura circular) que
permite aos líquidos, condensados no vaso cm forma de mama, ajustado sobre o matraz
inferior, que escorram pela tubulação e que sejam recolhidos.
Chaves do Magistério 371

camente; outros, separando os elementos e depois os reunindo; outros,


triturando até que se resseque; outros, trabalhando até que isso seja
quebrado; outros, rompendo até que aconteça alguma coisa de novo;
outros, retificando os corpos e os espíritos, por exemplo, ao branquear
Vénus, retirando de Júpiter o assobio, endurecendo ou purificando Sa­
turno, amolecendo Marte, amarelando a Lua e dissolvendo esses corpos
na água, procurando não menos a perfeição de todos os corpos assim
diminuídos; outros, coagulando o Mercúrio, o arsénico,* o orpimenta
(ouro-pigmento),* o enxofre, a magnésia,* a marcassita, branqueando
e fixando a Thutie;180 outros, preparando sais penetrantes, semelhantes
a uma deusa untada de cera. Para falar da realização de seu Elixir ao
branco e ao vermelho os Filósofos usaram, portanto, diversas expres­
sões, que seria demasiado longo enumerar; todas falando da mesma
coisa ao homem perspicaz, e constituindo entre elas uma corrente: as­
sim, ali onde se termina, a outra começa.
O Levantar da zlwroru ztiiroru eensnrvens),
in Aurijertr Artis ijttani Chemiam weant,
t. l.p. 241-242.
*
* *

udo o que foi tratado neste Livro, nós demonstramos sua vera­
cidade, pois vimos com nossos próprios olhos, tocamos com nossas
próprias mãos; nós mesmos operamos e o realizamos. Por isso vamos
recapitular em uma breve conclusão desprovida de qualquer alegoria a
totalidade de nosso Magistério.
Portanto, pegamos e trituramos a pedra de que falamos, a fim de
enfraquecê-la com a ajuda e habilidade da natureza e da arte, e de redu­
zi-la em Prata-viva, à qual acrescentamos o corpo branco que é de uma
natureza semelhante, e que se cozinha até conseguir transformá-la cm
uma verdadeira mina, que em seguida se multiplicará à sua vontade.
Faça de modo que essa matéria seja mais uma vez reduzida a Prata-
viva, que você dissolverá em nosso mênstruo* até que a Pedra se torne
volátil e separada de todos os seus elementos. Enfim, purgue-a até a
última perfeição, tanto do corpo quanto da alma, para que, graças a
um calor natural temperado, possa ser realizada a íntima conjunção do
corpo e do espírito. Assim a pedra se tornará mina, e o fogo será manti­
do constante até que ela seja reduzida a um pó branco, que nomeamos
180. Thutie: termo que provavelmente designa aqui a Cádmio (cf. esta palavra no Glossá­
rio), mas às vezes também certo lugar conhecido dos alquimistas gregos por seus santuários.
372 Filosofar pelo Fogo

Enxofre e Prata-viva dos Filósofos. Graças ao vigor do fogo, o fixo se


torna então volátil e, na medida em que o volátil se livra de suas partes
terrestres grosseiras, mais branco que a neve, ele se eleva; e as escórias
que permanecem no fundo são rejeitadas, pois não valem nada. Tome
então nosso Enxofre, que é o óleo de que falamos, e multipliquc-o em
seu alambique, até que seja novamente reduzido a um pó mais bran­
co do que a neve, e, pela engenhosidade conjugada da natureza e da
prática, que os pós assim multiplicados sejam fixados; cozinhando-os
com água até que a prova do fogo os faça aparecer tão fluidos quanto a
cera sem fumaça. Convém então acrescentar a água da primeira solução
e, depois de efetuada essa dissolução, a ela misturaremos algo de cor
citrino, que é o ouro; e isso graças à conjunção acompanhada da des­
tilação completa da alma. O fogo será em seguida levado ao primeiro,
segundo, terceiro e quarto graus, até que o calor revista o composto da
cor do Jacinto verdadeiro,181 e que o fixo se torne mole e fundível. Você
projetará uma parte dessa matéria em mil de mercúrio vulgar, que será
assim transmutado em ouro muito fino.
Pscudo-Lullc, A Clavícula
(Clavícula, séc. XIII-XIV), ín Jcan-Jacqucs Manget,
Bibliothcca Cheniica Curiosa, 1.1, p. 875.
*
* *

A Matéria três vezes sublimada pelo Fogo secreto:


Speculum veritatis, séc. XVII.

181. Amarelo puxando para o vermelho ou azul puxando para o violeta.


Ch.wes do Magistério
373

que evidentemente nos revela que para fazer o Magistério precisa­


mos de várias coisas, e que não se deve gastar muito para nossa obra. Pois
há apenas tuna Pedra, uma Medicina, um Vaso, * um
Regime,* e só uma dissolução ou maneira para fa­
zer sucessivamente o branco e o vermelho. Assim,
apesar do que dissemos em vários lugares, coloque !?/
isso, coloque aquilo, não ouvimos, no entanto, que
c preciso pegar, se não uma única coisa, colocá-la
uma única vez no Vaso, e fechá-lo em seguida, ate
que a obra esteja inteiramente perfeita e realizada; V'
porque, como já tinha observado, os Filósofos não Aquele que conhece 2 e
dizem essas coisas a não ser para enganar os impru­ 7 sabe tudo o que pode
dentes. E será que realmente não sabem que nossa ser sabido. 2 e 7 são os
Arte é uma Arte cabalística?* Quero dizer, que se pesos alquimicos.
revela somente pela boca, e é cheia de mistérios; e
você, pobre idiota, você seria tão ingénuo para acreditar que ensinaríamos
aberta e claramente o maior e o mais importante de todos os segredos, e
para considerar nossas palavras ao pé da letra? Eu lhe garanto de boa-fé
(pois não sou ciumento como os outros Filósofos), garanto, como disse,
que aquele que conseguir explicar o que os outros Filósofos escreveram,
segundo o sentido ordinário e literal das palavras, se encontrará preso nos
desvios de um labirinto,* do qual jamais se livrará; porque não terá o fio
de Ariadne* para se conduzir e para dele sair; e qualquer gasto que ele
faça para trabalhar será dinheiro perdido. E, para lhe dizer a verdade, cu
mesmo, Artépio, quem escreve isso, depois de ter aprendido a verdadeira
e perfeita Sabedoria, nos livros do verídico Hermes, confesso que outrora
eu era ciumento da Ciência, tanto quanto dos outros Filósofos; mas há mil
anos, ou quase isso, que estou no mundo, pela graça do único Deus todo-
poderoso e pelo uso dessa admirável Quintesséncia, tendo reconhecido
durante o longo espaço de tempo que vivi que ninguém poderia adquirir
o conhecimento do Magistério de Hermes, por causa da linguagem dema­
siado obscura dos Filósofos; comovido pela caridade c pelos sentimentos
de um homem de bem, resolvi nestes últimos dias de minha vida escrever
tudo sincera e exatamente; de forma que se encontrará inteiramente em
meu Livro tudo o que se pode desejar, e tudo o que é necessário saber,
para fazer a Pedra filosofal; com a reserva todavia de alguma coisa, que
não é permitido escrever; porque somente Deus ou um amigo devem re-
velá-lo.
O Livro df Artépio (scc. XII?). :n William Salmon.
Biblioteca dos Filósofos ALpamicof,
t. II. p. 144-146.
374 Filosofar pelo Fogo

alid: Como e de que maneira se pode fazer com que nesse Magis­
tério só haja uma Raiz, uma Substância e uma Matéria, uma vez que nos
escritos dos Filósofos encontramos vários nomes dessa raiz, e todos são
diferentes? [...].
Morien: Hércules diz a alguns de seus
discípulos: O núcleo da tâmara é produzido e
alimentado pela palma e a palma o é pelo seu nú­
cleo. E da raiz da palma surgem vários pequenos
brotos, que se multiplicam e produzem várias
outras palmeiras em torno dela. E Hermes disse:
Olhe o vermelho realizado, e o vermelho dimi­
Existem duas nuído em sua vermelhidão; considere também o
Matérias: uma para alaranjado perfeito, e o alaranjado diminuído de
queimar, a outra para sua cor laranja, e toda a cor laranja. E olhe ainda
endurecer. o negro realizado, e o negro diminuído de seu
negror, e todo o negror. Assim também a espiga
vem de um grão, e de uma árvore saem vários ramos, ainda que árvore
venha apenas de sua semente. Outro Sábio, que renunciara ao mundo
por amor a Deus, oferece-nos um exemplo semelhante. Pois ele diz:
A semente é a primeira formação do homem; e de um grão de trigo
surgem cem, e de uma pequena semente surge uma grande Árvore, e
de um homem é tirada uma mulher semelhante a ele; e desse homem
e dessa mulher nascem muitas vezes vários filhos e filhas, que têm a
tez, os traços e o rosto diferentes. O mesmo Sábio ainda diz: Veja o
trabalhador: de um mesmo tecido faz uma camisa, e todo tipo de ves­
timenta, e cada parte tem um nome particular e diferente das outras.
E, contudo, ao considerar essas partes naturalmente, isto é, segundo
sua matéria, pensaremos que todas são feitas de um mesmo tecido, e
que um único tecido, que é a principal matéria com a qual foram feitas
todas as roupas. Pois, ainda que o corpo, as mangas e caudas tenham
nomes diferentes, como partes da roupa o tecido é, no entanto, sua
principal matéria. Pois podemos desfazer a roupa, e separar suas partes
retirando o fio com o qual estão cosidas e mantidas juntas, sem que o
tecido deixe de ser ele mesmo, e sem que ele tenha necessidade de ou­
tro tecido para isso. Assim, nosso Magistério é uma coisa que subsiste
por si mesma, sem ter necessidade de qualquer outra coisa. Ora esse
Magistério está oculto nos livros dos Filósofos, e todos os que falaram
dele lhe deram mil nomes diferentes. Ele está até mesmo selado, e só
se abre para os sábios. Pois os sábios o buscam com zelo e o encontram
depois de tê-lo procurado; e assim que o encontraram, eles o amam e o
honram: mas os Loucos não prestam atenção, e o estimam bem pouco,
Chaves po Magistério
375

ou, para dizer a verdade, eles não o estimam de forma alguma, porque
não sabem o que é.
Eis alguns desses nomes dados ao seu Magistério em seus escritos
pelos Sábios. Eles o chamaram Semente, que quando se transforma se
torna sangue na matriz, e enfim se coalha e se torna uma espécie de pe­
daço de carne composta. E isso acontece dessa maneira até que a criatura
receba outra forma, ou seja, a do homem, que sucede a essa primeira for­
ma de carne, e então é preciso necessariamente que se faça um homem.
Outro desses nomes é que ele se assemelha à palmeira pela cor de seus
frutos, e por que têm suas sementes, antes de chegar à sua perfeição.
Entrevista do Rei Calid e do Filósofo Monen,
m William Salmon, Biblioteca dosfilósofos
alqiiítnicos, t. 11, p. 72-76.
*
* *

1. O verdadeiro aumento dos metais procede apenas de sua própria


semente, ou seja, de uma raiz metálica, como é evidente quando se olha
sob a luz natural. Qualquer operação visando ao crescimento dos metais
fora dessa semente é, portanto, falsa e errónea.
2. Mas ainda é necessário que essa semente seja antes reduzida à
sua primeira matéria, pois sem tal redução nenhuma alteração pode ser
efetuada.
3. Também é preciso que essa semente morra, se quisermos que
em seguida ela tenda para uma nova geração, e graças a isso ela c dez
vezes, cem vezes, mil vezes melhorada, e conduzida a uma maior per­
feição, que então ela pode comunicar aos outros corpos doentes.
4. Esse novo corpo engendrado é chamado Arcano* dos Filósofos,
pois o que estava oculto, e secretamente dissimulado em potência na
semente, agora se tornou manifesto e aparece em ato, graças à atividade
diligente do Filósofo, e se mostra de natureza celeste. E por isso ele
adquiriu toda potência para transformar os corpos metálicos na nova e
incorruptível forma do ouro e da prata.
5. Portanto, toda obra que não procede de acordo com essa ordem
é falsa, e contrária às possibilidades da natureza.
6. Pois nossa arte não é aperfeiçoada a partir das coisas contrárias
e estrangeiras; e caminhar segundo uma via estrangeira e sem a confor­
midade com o que a natureza exige não passa de uma vaidade.
7. De fato, todas as resoluções, calcinações, sublimações, destila­
ções dos Sofistas destroem mais nossa obra filosófica do que lhe são de
alguma valia.
376 Filosofar pelo Fogo

8. Nenhuma transmutação real pode, portanto, ser realizada nos


metais, fora do Arcano já mencionado.
9. Nossa tintura é confeccionada exclusivamente a partir do Mer­
cúrio dos Sábios, que se origina no ouro e na prata fixa e volátil; de todo
modo, nesses dois repousa a totalidade do magistério.
10. A união deles, pela qual o corpo é convertido na sutileza de um
espírito, deve ser formal e essencial, pois assim eles jamais se separam
um do outro.
11. Dessa união se origina um terceiro corpo, que é chamado água
de vida, quinta-essência, óleo combustível, água permanente, vinagre
e Mercúrio dos Filósofos: primeira e próxima matéria de nossa Pedra.
12. Assim, o Sol é seu Pai, e a Lua, sua Mãe: porque o Sol não im­
prime sua virtude nos corpos sem a mediação da Lua, que tem o poder
de dissolver os corpos com uma verdadeira solução filosófica, de onde é
extraída uma tintura permanente; um e outro sendo constituídos de uma
natureza única e homogénea.
13. A Prata-viva oriunda do ouro é quente, masculina e seca. Nossa
tintura não é nada além de um Enxofre vermelho, que é um fogo vivo,
simples, vivificante e que leva à maturidade os outros corpos, já que ele
é extraído do próprio ouro, pois esse ouro está perfeitamente digerido.
14. É por isso que o ouro conduzirá metais a uma perfeição tanto
maior quanto ele mesmo terá sido duas vezes, quatro vezes, cem ou mil
vezes aumentado em potência e qualidade.
15. Nossa medicina é, portanto, realizada a partir de duas coisas
de uma única e mesma essência, isto é, pela união do Mercúrio fixo
e não fixo, espiritual e corpóreo, frio e seco, e não poderia ser feita a
partir de outra coisa.
16. Assim, o segredo dessa arte reside nesses dois: o marido e a es­
posa, o agente e o paciente, em que um é seco e outro, úmido e a quem
damos, uma vez unidos, o nome de composto.
17. Pela destruição a alma é extraída do corpo, pois ela não pode
sê-lo se o corpo não se tornou um espírito livre, o qual deve sua existên­
cia somente à Prata-viva; nenhum enxofre é obtido sem a cal da Prata-
viva.
18. Ainda que seja legítimo ver exposta a totalidade dos múltiplos
modos segundo os quais efetuar as preparações, no entanto sua sig­
nificação é completamente compreendida apenas a partir da noção de
sublimação, pois somente em nossa sublimação todos esses modos são
levados à perfeição: a qual é realizada em um fogo vaporoso e, como é
dito, nosso Mercúrio encerrado em seu vaso* hermeticamente fechado
é depositado em seu forno durante todo um mês filosófico, até que ele,
Chaves do Magistério
377

por si mesmo, entre em putrefação e em seguida se converta em bran­


cura de neve, e nesse vermelho púrpura, que é o sinal do fogo secreto
celeste.
19. Pegue então esse corpo e misture-o com a água do mar; colo­
que essa mistura em segurança em função das estações do ano, assim
uma água permanente dela nasce e é um vinagre muito corrosivo, pois
é um fogo que queima e mortifica os corpos, e é igualmcnte chamado
água de vida, Goma, veneno: porque ele consome os corpos e os trans­
forma em cinza, e cuja força é a do sangue espiritual.
20. A preparação perfeita dos quatro regimes* é completada pelo
exercício das quatro estações do ano, e ela se eleva assim da terra para
o céu, e de novo do céu volta para a terra, e recebe a força das coisas
superiores e inferiores.
21. Dessa maneira é gerado o Ouro potável dos médicos, que é o
Arcano mais precioso de todos, superando todas as coisas no mundo
por meio dele são milagrosamente curadas todas as doenças suposta-
mente incuráveis do corpo humano, e a vida conservada cm sua integri­
dade até o termo instituído, quando sobrevém a morte.
22. Podem assim ser facilmente prevenidos as deccpçõcs c os so­
fismas dos insensatos, que se engajam de maneira desconsiderada a rea­
lizar nosso Arcano filosófico ao operar a mudança rápida dos metais em
uma forma mais nobre.
Arnaud de Villcncuve, 22 Proposições ou máximas nas quais
a totalidade da arte alquítnica está brevemente compreendida.
(scc. XIII-XIV), in Theatrum Chemicum, t. IV. p. 577-579.

* *
^_l/ábua da Ciência maior.

Primeiramente, temos a verdadeira matéria em nosso Leão verde, da


cor que lhe é própria; e o chamamos Adrop, Azoto* ou Ducnech1*2
verde. No segundo grau, temos a mesma coisa e, no terceiro, os corpos
se dissolvem na Prata-viva dos Filósofos, isto é, na água de nosso Mer­
cúrio, e surge um corpo novo. No quarto, temos a putrefação dos Filó­
sofos, que jamais foi vista até nossos dias, e que chamamos enxofre. No
quinto, obtemos que a maior parte dessa água se torne a terra negra e
feculenta de que falam todos os Filósofos. No sexto grau, observamos
como essa terra negra, que no início se mantinha sobre a água, pouco a

182. Duenech: é o negro muito negro, de outra forma chamado o Latào, que é preciso em­
branquecer pela açào de um fogo continuo.
378 Filosoear pelo Fogo

pouco submerge no fundo do vaso.* No sétimo,


como essa terra é novamente dissolvida na água,
da cor do óleo, e a chamamos então óleo dos Fi-
] lósofos. No oitavo grau, é-nos permitido ver que
1 o dragão* nasceu no negror, e se alimenta de seu
I Mercúrio e se mata a si mesmo, e ele é seu Mer-
i cúrio submerso, e a água branqueia um pouco,
3 e esse é o Elixir. No nono grau, a água está to­
Um corre para o Leste, talmente purificada de seu negror e permanece
o outro se apressa em da cor do leite, e numerosas cores aparecem no
direção ao Oeste. negro. No décimo, as nuvens negras que estavam
no vaso, acima da água, desceram em seus cor­
pos de onde tinham saído. No 1 le, essa cinza se tornou muito branca,
como o mármore brilhante, e esse é o Elixir ao branco e a criança da
cinza. No 12-, essa brancura é transformada em vermelho transparente
como um rubi, e esse é o Elixir ao vermelho.
O Rosário dos Filósofos
(Rosariuni Philosophorum, scc. XIV),
in Jcan-Jacques Manguet,
Bibliotheca Chemica Curiosa, t. II, p. 92.

Uma lavagem purificadora: Johann Daniel Mylius, Philoso-


phia reformata, Frankfurt, 1622.
Chaves do Magistério 379

progressão completa da obra é chamada “tra­


balho de mulheres e brincadeira de crianças". De­
pois do início da obra, o sutil investigador observa
continuamente o desenvolvimento da divina natu­
reza. Essas palavras não são, portanto, nem fala­
ciosas nem desprezíveis, muito pelo contrário; que
vocc possa lhes prestar atenção a fim de não se dc-
ccpcionar com o conteúdo dos antigos livros que
transpõem às vezes o sentido das palavras, como
s
LVDV5 PVERORvH
PJiilofovkicorum.. I
diz Apuleu, o filósofo, no Livro dos Segredos da A Brincadeira das Crian­
natureza. ças Filosóficas: A coisa
Mas a tripla brincadeira de crianças deve pre­ pode existir, mesmo que
ceder a obra de mulheres. As crianças se divertem muitas pessoas nào a ve­
de fato com três coisas: primeiro, e com frequência, jam e ainda que andem
com as paredes muito austeras. Em segundo, com a por cima dela.
urina. Em terceiro, com os carvões.
A primeira brincadeira confecciona a matéria da pedra.
A segunda aumenta sua alma.
A terceira prepara o corpo para a vida. Pois da flor de sangue é
feito um sal pedroso, durante a primeira brincadeira de crianças. As­
sim, resta admirar e dissolvê-lo várias vezes na água, com seu cônjuge,
graças às duas outras brincadeiras de crianças, que são necessárias até
a obtenção da terceira cor de nosso Elixir na obra de mulheres, cujo
trabalho é o de cozinhar. Quem quiser compreender, compreenderá.
Tratado da Obra de mulheres e da Brincadeira de crianfas
(Tractatus Opus multerutn et Ludtis pucrorum)
in Auriferat Artis ijuam Cbemiam vocant,
t. II. p. 184-185.
*
* *
£u dividiria a totalidade da Arte nas seguintes partes: a primeira en­

cerraria as coisas que constituem a obra substancial e essencialmente;


e a segunda, sua disposição. As coisas que constituem a Pedra são pelo
essencial o corpo ou o Enxofre maduro, ou ainda o estanho vermelho;
a água ou Mercúrio imaturo, ou estanho branco, aos quais é preciso
acrescentar o vaso, o forno, o triplo fogo. A disposição dessas coi­
sas designa o peso e o regime. Duplo peso, duplo regime, os quais
realizam as seguintes operações: calcinação, dissolução, separação,
Brincadeiras de crianças depois do “trabalho de mulher": Salonion
Trismonin, Splendor Solis, Londres, séc. XVI.
Chaves po Magistério
381

conjunção, putrefação, destilação, coagulação, sublimação, fixação e,


enfim, exaltação. Dessas operações, as duas primeiras são principal­
mente efetuadas por um primeiro fogo bem regulado, que não queima;
depois por uma ignição giratória que aquece o banho do Rei, que c an­
tes transformado em uma terra sutil viscosa, descontínua, negra, fétida
e, em seguida, em uma água mineral diversamente colorida; esse fogo
sendo chamado Natureza. As três operações que se seguem são efetua­
das a partir da aliança do primeiro e do terceiro fogo, certamcntc natural
e contra a natureza, que assim conjugados produzem o fogo inatural,
fazendo circular constantemente a matéria e a separando mais uma vez
e mais sutilmente do espesso até que um equilíbrio total seja realizado;
as coisas separadas devendo então ser reunidas, impregnadas c, assim
putrificadas.
As cinco últimas operações são efetuadas pelo fogo de Natureza,
dia a dia crescente e dominante, que em princípio agita cotidianamcnte
de maneira circular a matéria putrificada e a purga de suas fezes, pela
ascensão e descensão repetidas, que também são chamadas destilação,
volatilização, ablução, mundificação, coobação, embebição, cibação.
umidificação da terra. Isso é produzido pelo calor durante o tempo ne­
cessário e sem interrupção, até que enfim a secura comece a provocar
a coagulação, nomeada espessamento, que outorga por cozimento con­
tínuo a fixidez; ou a sublimação, cujo fim é a exaltação, que não é uma
mutação local de um lugar inferior a um superior, mas o fato de tirar de
uma coisa vil certa coisa muito nobre.
Essas são todas as nossas operações e as disposições sucessivas
que são também chamadas regimes por alguns outros. Se alguém prefe­
re impor esse nome, pode fazê-lo, sendo o essencial que esteja advertido
de que é apenas um fogo duplo, natural e contra natureza. Desses dois, o
segundo age em primeiro, porque um não é atraído pela luz senão pelo
outro, e é preciso que a putrefação preceda a regeneração; e como esses
dois se combatem, eles produzem o fogo inatural, e dessa contenção é
oriunda a putrefação; depois disso advém a gloriosa regeneração, na
qual o Enxofre e a água são apenas um, e só recebem simultaneamente
a congelação pelo fogo natural.

Eyrcnée Philalèthc. Fonte da Filosofa aLjuitnica


(Fons Chemiar phtlosophur, séc. XVII),
in Museum Flemietieum, p. 799-800.
382 Filosofar pelo Fogo

Observar que o número e a designação dessas operações podem variar


sensivelmente de um autor para o outro. George Ripley, por exemplo, dá
no Livro das 12 Portas (1591) a seguinte nomenclatura: calcinação, dis­
solução, separação, conjunção, putrefação, congelação, cibação, sublima­
ção, fermentação, exaltação, multiplicação, projeção; essa lista incluindo
a transmutação como tal.

*
* *
d^uero colocar em suas mãos seis Chaves, com as quais você poderá

entrar no santuário da Filosofia, abrir todos os seus redutos e chegar à


inteligência das verdades mais ocultas.
A primeira Chave é aquela que abre as prisões obscuras, nas quais
o Enxofre está trancado; é ela que sabe extrair a Semente do corpo, e
que forma a Pedra dos Filósofos, pela conjunção do macho e da fêmea;
do Espírito com o corpo; do Enxofre com o Mercúrio [...]. Essa Pedra
tem um brilhante esplendor: ela contém um Espírito de uma origem
sublime. Ela é o Mar dos Sábios, no qual pescam seu misterioso Pei-
xe[...].* Considere que é pela separação da fumaça negra, suja e mal­
cheirosa do Negro muito negro que se forma nossa Pedra astral, branca
e resplandecente, que contém em suas veias o sangue do Pelicano:* é
nessa primeira purificação da Pedra, e nessa brancura luzente, que ter­
mina a primeira Chave da primeira obra.
A segunda Chave dissolve o composto ou a Pedra e começa a se­
paração dos Elementos, de uma maneira filosófica. Essa separação dos
Elementos só se faz elevando as partes sutis e puras acima das partes
sujas e terrestres. Aquele que sabe sublimar a Pedra filosoficamente me­
rece ajusto título o nome de Filósofo, uma vez que ele conhece o Fogo
dos Sábios, que é o único instrumento que pode operar essa sublimação
[...]. Dedique-se então a conhecer esse fogo secreto, que dissolve a Pe­
dra naturalmente e sem violência, e a faz dissolver na Água no grande
Mar dos Sábios, pela destilação que se faz dos raios do Sol e da Lua. É
dessa maneira que a Pedra que, segundo Hermes, é a Vinha dos Sábios,
se torna Vinho,* que produz pelas operações da Arte sua Água de vida
retificada; e seu Vinagre muito ácido [...].
A terceira Chave é a única que compreende uma sequência de ope­
rações mais longa do que as outras juntas. Os Filósofos falaram muito
pouco sobre ela, ainda que a perfeição de nosso Mercúrio dependa dela
[...]. Depois que o sábio Artista fez sair da Pedra uma fonte de Água viva,
que ele mostrou o suco da Vinha dos Filósofos e com ele fez seu Vinho,
Chaves do Magistério 383

ele deve observar que nessa substância homogénea, que aparece sob a
forma da Água, existem três substâncias diferentes, e três Princípios na­
turais de todos os corpos. Sal, Enxofre e Mercúrio, que são o Espírito, a
Alma c o Corpo; e ainda que pareçam puros e perfeitamente unidos, ain­
da falta muito para que o sejam; pois, quando pela Destilação retiramos
a Água, que é a Alma e o Espírito, o corpo permanece no fundo do Vaso,
como uma Terra morta, negra e feculenta, que no entanto não deve ser
desprezada; pois em nosso Sujeito* não há nada que não seja bom [...].
Você sabe que nada é mais contrário que o Fogo e a Água; é preciso no
entanto, que o sábio Artista faça a paz entre os inimigos, que no fundo
se amam ardentemente [...]. Com efeito, essas duas substâncias, que são
de uma mesma natureza, mas de dois sexos diferentes, abraçam-sc com o
mesmo amor, com a mesma satisfação, que o macho e a femea, e se elevam
insensivelmente juntos, deixando apenas um pouco de fezes* no fundo do
vaso, de forma que a Alma, o Espírito e o corpo, após uma exata depuração,
parecem enfim inseparavelmente unidos, mas sob uma forma mais nobre
e mais perfeita do que antes, e tão diferente da primeira forma líquida
quanto o Álcool do vinho, exatamente retificado, e acuado em seu sal, c
diferente da substância do Vinho do qual foi extraído [...].
A quarta Chave da Arte é a entrada da segunda obra; é ela que
reduz nossa Água em Terra; existe somente essa Água no mundo que,
por um simples cozimento, possa ser convertida em Terra; pois o Mer­
cúrio dos Sábios traz em seu centro seu próprio Enxofre, que o coagula.
A terrificação do Espírito é a única operação dessa obra [...]. Cultive,
portanto cuidadosamente essa preciosa Terra: regue-a com frequência
com sua umidade; seque-a muitas vezes, e você não aumentará menos
suas virtudes que seu peso e sua fecundidade.
A quinta Chave de nossa obra é a fermentação da Pedra com o
Corpo perfeito, para fazer dela a Medicina da terceira ordem. Nào direi
nada de especial sobre a operação da terceira obra; senão que o corpo
perfeito é um fermento necessário para nossa massa; que o Espírito
deve fazer a união da massa com o fermento, assim como a Água ume-
dece a farinha, e dissolve o fermento, para compor uma massa fermen­
tada, própria para fazer o pão [...]. Em relação à fermentação, o Filósofo
repete aqui toda a obra e mostra que, assim como a massa da pasta
se torna fermento, pela ação do fermento que lhe foi acrescentado, da
mesma maneira qualquer confecção filosófica se torna por essa ope­
ração um fermento, próprio para fermentar uma nova Matéria, e para
multiplicá-la até o infinito [...].
384 Filosofar pelo Fogo

A sexta Chave ensina a multiplicação da Pedra, pela reiteração


da mesma operação, que não consiste senão em abrir e em fechar, dis­
solver e coagular, embeber e ressecar; por onde as virtudes da Pedra
aumentam ao infinito.
Alcxandre-Toussaint Limojon de Saint-Didicr,
O Triunfo hermético (1699), in William Salmon,
Biblioteca dos Filósofos Alquímicos,
t. III, p. 297-387.
*
* *

ora falta falar dos erros que se produzem na obra, e por isso são
responsáveis pelo distanciamento de muitos do caminho correto. Por­
tanto, é preciso advertir que o primeiro ERRO está na descontinuidade
e na oposição dos fogos nessa obra, segundo o próprio grego. De fato,
não é apenas o calor, mas a qualidade do calor que se deve vigiar; pois
o fogo quente e úmido, como em um banho, e seco como na [palavra
que falta], têm efeitos diferentes: um, assim como o ventre do cavalo,
contribui com efeito para a perfeição da dissolução; enquanto que o ou­
tro produz igualmente uma dissolução, mas de outra ordem, e provoca
a alteração da Matéria. Por isso os verdadeiros Filósofos dizem que Um
único Fogo, Um único Regime,* e Um único Vaso* são requisitados
para que a obra seja perfeita, e assim reinarão em todas as coisas a pa­
ridade da obra e a harmonia do todo. Segundo o grau da operação, esse
fogo deve ser conduzido com moderação, de forma que sempre seja
lento até a obtenção da brancura, como o calor natural do homem ou o
do ovo enquanto é chocado no ninho pela mãe: daí sairá a matéria da
Pedra correspondente à quarta digestão do homem, composta a partir
das quatro naturezas.
Durante a primeira obra e a putrefação, sua verdadeira essência é
abstrata em sua Quinta Essência, que é o princípio de nossa obra ter­
minada e do Magistério: o início da corrupção do Um corresponde à
geração do outro, em vista de outra natureza e de outro efeito. Por isso,
essa matéria deve ser dissolvida em um calor Contínuo, que terá em si
este TRÊS: a umidade, um calor sem secura, e a raridade de sua matéria
tornada homogénea. E se um desses elementos viesse a faltar, não se
poderia contar com nenhum efeito benéfico, a menos que a obra seja
conduzida de maneira mais sutil e mais segura.
O segundo ERRO diz respeito à matéria de onde a Pedra é re­
conduzida à origem ou ao ato. Com efeito, a Pedra a ser retida deve
ser descoberta por jovens de idade média, alertas, felizes e saudáveis,
Chaves no Magistério
385

ou por mais jovens de constituição sanguínea, cujo


sangue será retirado após uma digestão perfeita e
de uma pequena veia saudável. Pois os bêbados, os
glutões, voluptuosos, velhos ou doentes não podem q
utilmente engendrar a Pedra, por causa das obscuras
fir ***
virtudes da Natureza que não podem ser adquiridas
por homens desse gênero. E como nossa Pedra c as­
similada a um MUNDO mais nobre, sua composi­
ção não pode de forma alguma conhecer o defeito, Alexandri Epes.I
tokr Duhoru. . I
em razão da à efervescência de todo elemento com­
plementar. Observação sobre a
O terceiro ERRO está no VASO:* este de fato Carta de Alexandre:
deve ser esférico e provido de um fundo perfeita­ Morte, mar e trevas
mente redondo, com paredes bem-proporcionadas; fogem dele e o Dragão
a parte mais alta do corpo principal, de uma altura foge dos raios do Sol.
de cerca de um cotovelo, medindo quase o dobro. Da mesma forma,
ele deve ser de vidro não poroso, bem fechado com a vedação que lhe
for conveniente. Mas isso foi feito no começo, depois da evaporação da
matéria em sua elevação perfeita, depois de sua geração perfeita, como
foi dito anteriormente.
De fato, é preciso cuidar para que a evaporação da matéria não
exceda o tempo que o calor deve ser mantido, que muitas vezes é de
três horas. Por isso, nós nos apercebemos que não há mais nada a fazer
nessa obra a não ser depositar e deixar o vaso e sua matéria em um lugar
secreto, recoberto por um pedaço de tecido para que o pó não o penetre,
e que a umidade acidental seja completamente expulsa do vaso pelo
tecido. E essa obra é realizada graças à expulsão da MATÉRIA VIVA
em nossa Pedra e de sua efervescência mortal.
O quarto ERRO acontecerá às vezes durante a destilação, quando
a matéria é destilada mais do que deve ou muito exaltada; pois na Água
geralmente são estes três: Espírito, Alma e Tintura. Ora, o Espírito e
a Alma só penetram graças à certa força corrosiva, a menos que sua
virtude, e a Natureza, não sejam completamente enfraquecidas por uma
destilação contrária; e se a água é agitada e se torna turva, ela própria
se retifica sem destilação, e o que poderia permanecer no fundo é pro­
jetado na terra.
O quinto ERRO está na retificação da Terra: isso é efetuado pou­
co a pouco; para esse fim, ela deve ser cotidianamente embebida, tão
frequente quanto estiver seca. Por isso é necessário tomar três partes
de água para uma de sua Terra, e às vezes mais, caso ela necessite,
386 Filosofar pelo Fogo

em razão da dissolução perfeita. E a dissolução perfeita dessa obra


consiste na sua perfeitíssima Quinta Essência, dotada de toda virtude
medicinal e, sobretudo, plena de toda suavidade, exalando um mara­
vilhoso perfume.
Três são os sinais da dissolução perfeita: primeiro, que ela seja
uma Agua verdadeira, desprovida de todas as impurezas; segundo, que
apareça um Leite em sua superfície; e, terceiro, que ela deixe sobre a
língua um sabor e uma suavidade de mel. N. B.: Essa matéria aqui trata­
da se congela a si mesma igualmente com um fogo muito quente e seco,
e se dissolve a si mesma com um fogo quente e úmido. E essa Água é
permanente e perpétua que, por causa de suas maravilhosas virtudes,
tem todas as forças das Pedras e por essa razão recebe o nome: Prata-
viva, o Enxofre, o Orpimenta (Ouro-pigmento);* e por uma infinidade
de outros nomes ainda é designada, mesmo que nenhum deles tenha,
todavia, existência natural, mas somente virtual: a Prata-viva com efeito
só existe porque detém em si a virtude perfeita e a vida; e ela é Enxofre
incombustível. Portanto, podemos concluir que todo sinal traz em si um
significado de primeira ordem: porque o sinal adquire sua denomina­
ção, quanto à sua significação principal, do que lhe é posterior.
O sexto ERRO, e o último, se dá na continuidade da obra e na
projeção. Se uma descontinuidade se manifestasse com efeito no calor,
no vaso e no tempo, seguir-se-ia uma combustão mortal da obra, cuja
duração é igualmente repartida: ou seja, de 40 dias para a putrefação,
de 40 dias até a albificação183 e de 40 dias ainda até a rubificação;184
enfim, 40 dias até a dissolução perfeita, se todavia o regime do fogo for,
de maneira justa, moderado e convenientemente empregado.
Tratado de Aristóteles, o Alquimista, a Alexandre, o
Grande, a respeito da Pedra filosofal
(Trataetus Aristotelis alchiniisttr ad Alexandrum
Magnum de Lapide philosophico), in Theatrum Chentieuni,
t.V.p. 787-788.

183. cf. artigo Dealbação do Glossário.


184. Obra ao vermelho (Rubi, Grená - a cor da Granada).
Chaves do Magistério
387

Tentar entrar sem a chave no Roseiral dos Filósofos é o mesmo que andar sem os
pés: Michael Maier, Atalanta fugiens, Oppenheim, 1618, emblema XXVII.
388 Filosofar pelo Fogo

Volatização do fixo efixação do volátil: Michael Maier,


Symbola aureae mensee, 1617.
F

Os Dois Pilares da Arte


{Solve et Coagula)
A Alquimia é a arre de dissolver os corpos compostos
c dc coagular aqueles que foram dissolvidos.
a fim dc confeccionar remédios mais apropriados,
mais uteis à saúde e mais reconfortantes.

Philippe Muller, Milagrrs t Misténos


tnéduo-aLjutinicos (1614)

Adágio tão célebre quanto ora et labora (reze e trabalhe), a injuti­


ção de ter de dissolver e coagular (solve et coagula) dá unia dimensão
operativa ao ensino de Hermes, visando a espiritualizar os corpos e cor-
porificar os espíritos. A dificuldade todavia reside na justa correlação
dessas duas operações, que não devem nem se ignorar nem se anular
ao acumular seus efeitos contrários. Se certa cronologia é evidente­
mente conveniente para que os efeitos de uma permitam a efetuação da
outra, seu alcance filosofal depende essencialmente da sincronização
que o operador é capaz de realizar, à imagem do entrecruzamento das
naturezas já considerado (cf. cap. 14). Toda dissolução quejá não seria
mais ou menos coagulação conduziria a Matéria á sua perdição; e toda
coagulação que não mantivesse em seu seio as benfeitorias da dissolu­
ção faria da Pedra um bloco de iniquidade.
Se dissolver consiste bem “em dividir e corromper, e reduzir à
matéria-prima ” (J. D. Mylius), o efeito de tal dissolução também é “de
trazer para fora a natureza oculta ” (Sinésio). E se coagular significa
fixar o que foi assim diluído, a operação não poderia acontecer sem
que a Matéria tivesse sido limpa e submetida à “lavagem mística ” que
lhe restitui sua pureza. Outras operações tão decisivas quanto, para o

-389-
390 Filosofar pelo Fogo

sucesso do Magistério - em particular a sublimação — tomam portanto


necessariamente lugar entre esses dois pilares, que são dissolver e coa­
gular. Pois o que está em jogo entre esses dois gestos fundadores é mais
uma vez a questão dos pesos e medidas “filosóficos ”, graças aos quais a
alquimia merece o nome de “ciência da balança ”, que lhefoi atribuído.
*
* *

CZZmeço agora a falar desse artificio maior que nomeamos Alqui­

mia; e provarei meus dizeres, não calarei nem dissimularei nada, ex­
ceto o que não convém nem dizer nem mostrar. De fato, dizemos que
os quatro magistérios constituem esse artifício maior ou, como dizem
os Sábios: dissolver, coagular, branquear e avermelhar. E essas quatro
quantidades também são parceiras ativas, das quais duas são talvez en­
tre si partícipes, e as duas outras da mesma forma entre si. E cada uma
dessas duas quantidades duplas tem outra quantidade partícipe, para
ela dominante, depois dessas duas. Isto é, a propósito dessas quantida­
des, em que não entra nem diminuição nem adição na quantidade das
naturezas e no peso das medicinas que são dissolvidas e coaguladas
segundo a ordem. Mas essas duas, a saber, a solução e a coagulação,
serão efetuadas em uma única operação e produzirão um único efeito,
e isso antes da composição; pois, depois de sua composição, a obra
será diferente. Mas essa solução e essa congelação já nomeadas são a
solução do corpo e a congelação do espírito que, caso sejam duas, não
têm todavia senão uma única operação, pois o espírito só é congelado
pela solução do corpo; e da mesma forma o corpo só é dissolvido pela
congelação do espírito. E quando o corpo e a alma estão reunidos, cada
um deles provoca em seu companheiro um fato semelhante em si mes­
mo, a exemplo da terra e da água: quando a água está unida à terra, ela
de fato se esforça em dissolvê-la com suas próprias virtudes: a umidade
e a virtude; ela a toma mais sutil do que era antes, e semelhante a si
mesma, caso a água fosse de fato mais sutil do que a terra. E a alma age
de forma semelhante no corpo, e dessa maneira a água é espessada com
a terra, e se torna em densidade inteiramente semelhante à terra, pois
esta é mais espessa do que a água. E saiba que entre a solução do corpo
e a congelação do espírito não há nenhum intervalo de tempo, nem uma
obra diferente, de forma que um possa ser sem o outro; também não há
entre a água e a terra, no momento de sua união, uma porção diferente
de tempo suscetível de ser conhecida, ou que um possa ser distinguido do
outro durante suas operações; mas delas duas só há um único termo e um
Os Dois Pilares pa Arte (5o4vf et Coagula)
391

único resultado, uma e outra operação circulam sobre essas duas c da


mesma forma antes da composição. Por isso eu disse antes da composi­
ção, para que aquele que tiver lido esse livro e ouvido falar de solução c
de congelação, como eu efetivamente disse, não pense que sc trata aqui
da composição de que falaram os Filósofos; pois ele estaria cntào erra­
do, por seu feito e o de sua ciência. Porque nesse artificio ou magistério
a composição é a conjunção, ou casamento, do espírito congelado c do
corpo dissolvido; tanto sua conjunção quanto sua paixão sc efetuam no
fogo, pois o calor é seu alimento, e a alma não deixa o corpo, nem sc
une de maneira total com ele, a não ser pela mutação da virtude c pro­
priedade de cada um deles, e por causa da conversão de suas naturezas.
Essa é bem a solução e a congelação que os Filósofos assim chamaram
primeiramente. E saiba que os Sábios as ocultaram, c sobre elas falaram
de maneira sutil, em termos obscuros c com palavras veladas, para que
a inteligência daquele que busca seja amplificada e não os discernimen­
tos dessas coisas.
Calid, O Livro dos Segredos de Alquimia
(Líber Secreíorutn Alehemiir, scc. XI?),
in Aurifere Artis quam Chemtam wcant,
t. I, p. 353-355.
*
* *
jSão quatro os regimes* dessa Pedra: primeiro dividir, cm seguida la­

var, depois reduzir e enfim fixar. Pelo primeiro regime é realizada a


divisão das naturezas que, se não são separadas e limpas, não podem
ser unidas. Pelo segundo regime são efetuadas a ablução e a purificação
das naturezas divididas, de tal maneira que elas sejam assim reduzidas
à simplicidade. O terceiro regime opera a redução de nosso enxofre a
uma mina: ou seja, a do Sol e da Lua, e também das outras naturezas.
Pelo quarto regime, nossa Pedra realiza a união de todas as coisas c dos
corpos assim produzidos, sua composição e fixação, para que se man­
tenham firmemente juntos. E, de fato, existem os que assinalam cinco
objetivos para a conduta desse Magistério, sendo o primeiro dissolver
as substâncias até a obtenção da matéria-prima. O segundo é reduzir
nossa terra, ou magnésia* negra, a uma proximidade da natureza: isto
é, à do enxofre e da Prata-viva. O terceiro é reduzir duravelmente o
enxofre a uma natureza mais próxima: a uma matéria minerai, e à do
Sol e da Lua. O quarto objetivo é de compor o Elixir ao branco a partir
do grande número de partes presentes. O quinto, queimar perfeitamente
o Elixir ao branco e convertê-lo em cinábrio* vermelho e, além desse.
392 Filosofar pelo Fogo

pcla adição de uma base e da composição do Elixir. Também há os que


propõem dividir o processo dessa arte em diversas sequências: quatro
para uns, três para outros, e até dois para aqueles que dividem toda a
obra em correção e ablução das partes, depois em composição destas.
Alberto, o Grande, O Composto dos compostos
(Compositimi dc compositis, séc. XIII),
in Tbcatrutn Chemicum, t. IV, p. 830-831.

*
* *
Passemos agora, com a bênção de Deus, à segunda preparação,‘que
é o branqueamento (dealbaçào)* da terra pura. Pegue então duas par­
tes da terra anteriormente fixada, chamada cabeça de corvo: triturc-a

“Branqueai Latão e rasgai vossos livros": Michael Maier,


Atalanta fugiens, Oppenheim, 1618, emblema XL.

com sutileza e precaução em um pilão muito limpo, e acrescente


uma parte da Água filosófica (aquela que você conhece), que você
conservou. Exerça toda a sua habilidade para reduzi-las à unidade,
embebendo pouco a pouco de água a terra seca até que ela tenha ma-
Os Dois Pilares d/\ Arte (Solve lt Coagula)
393

tado sua sede. Depois de tê-las triturado, misture-as bem para que essa
massa caótica por meio da união do corpo, da alma e da água se tome
perfeita e íntima; e isso até que eles se interpenetrem na própria pro­
fundeza do corpo. Isso feito, recoloque a mistura em sua cucúrbita*
hermeticamente fechada para que não se evapore, e coloque-a cm seu
pequeno leito bem preparado, temperado, mantido no calor constante,
para que no espaço de oito dias ela sue e se livre de toda a água absor­
vida cm suas vísceras, para que a terra seja perfeitamente branqueada.
Em seguida, pegue novamente essa pedra c a quebre e a embeba de leite
virginal como já tinha feito antes, graças à mistura, para que ela satis­
faça mais uma vez sua sede; e coloque-a mais uma vez cm sua âmbula,
c então sobre seu pequeno leito suavemente temperado para que ela se
resseque ao suar como antes. Repita quatro vezes a operação de acordo
com esta ordem: embebição da terra pela água ate a obtenção dc uma
união estável, dessecação e calcinação, dessa maneira você cozinhou o
suficiente a terra da preciosa pedra e, por meio dessas etapas: cozimento,
trituração, embebição contínua pela água, secamcnto c calcinação, você
limpou perfeitamente a cabeça do corvo, a terra negra malcheirosa, c a
conduziu à brancura pela força do fogo e do calor, e a do branqueamento
da água. Recolha então com cuidado essa terra branca e coloque-a dc
lado, pois ela é o tesouro procurado: a terra branca folhada, o enxofre
branco, a magnésia* branca, etc. E é nesse ponto que o Filósofo Morien
designa dizendo: Essa terra se putrifica com sua água e, se ela está limpa,
o Magistério está totalmente terminado, com a ajuda dc Deus. Hermes
também diz que o Azoto* lava o Latão* e distancia dele toda impureza.
Da mesma forma, nessa composição e operação foi realizada a verda­
deira conjunção dos Elementos, pois ali se efetuou a união de um elemento
água com o elemento terra, e do ar com o fogo. Da mesma maneira, ali foi
consumada a união do homem e da mulher, do macho e da têmea, do ouro
e da prata, do enxofre e da água celeste impura, assim como realizada a
revivificação dos corpos mortos. E por isso que o Filósofo diz:
Que aqueles que não sabem mortificar e revivificar não operem
essa arte.
Alberto, o Grande, O Composto dos compostos
(Ccmpcsitum dc compositis, séc. XIII),
in Thtatrum Chenucum, t. IV, p. 837.
*
* *
394 Filosofar pelo Fogo

■p
JL-/ u declaro, portanto, que toda Obra só consiste em pegar a Pedra
(isto é, a Matéria da Pedra), que deve ser bem conhecida por todas as
coisas já ditas nos capítulos deste tratado; e, por um trabalho assíduo
e contínuo, dar-lhe o primeiro grau da sublimação, a fim de lhe retirar
toda impureza que a corrompe; a perfeição que a sublimação deve dar a
essa matéria consiste em apenas fazê-la tornar-se tão sutil que ela seja
elevada à última pureza e sutileza, que ela se torne enfim completamcn-
te espiritual e volátil. Depois disso, é preciso torná-la tão fixa, pelas
maneiras de fixações que já descrevi, que ela possa resistir ao fogo, por
mais violento que ele seja, e ali permanecer sem escapar nem evaporar;
e esse é o final do segundo grau da preparação que essa Matéria deve
receber. Pelo terceiro grau, sua preparação se encerra. O que acontece
pela sublimação dessa Pedra (ou dessa Matéria) é que, assim, de fixa
ela se torne então volátil, e de volátil fazendo-a fixa uma segunda vez,
dissolvendo-a depois de tê-la fixado; e, estando dissolvida tornando-a
ainda volátil, e a refixando mesmo assim, enquanto ela for fundível e
transmutar os imperfeitos e lhes der a verdadeira perfeição de Sol e de
Lua a qualquer prova. Assim, ao refazer as operações desse terceiro
grau, aumenta-se a perfeição da Pedra e multiplica-se a virtude que
ela tem de transmutar os corpos imperfeitos. De forma que é somente
ao refazer continuamente as mesmas operações da Obra, que damos a
multiplicação à Pedra, pela qual a tornamos tão perfeita que uma de
suas partes poderá converter, em verdadeiro Sol e em verdadeira Lua,
cem partes de metal imperfeito, depois mil e assim por diante, aumen­
tando sempre até o infinito. Depois disso, só nos resta passar pelas pro­
vas o metal que terá sido transmutado, para conhecer se o Magistério,
que terá feito sua transmutação, é verdadeiro e perfeito.
Pscudo-Gcbcr, Súmula da perfeição do magistério
(Summa perfectionis Magisterii, scc. XIV),
in William Salmon, Biblioteca dos Filósofos Alquimias,
1.1, p. 380-382.
*
•k *
(S^aiba, meu caro, que nossa sublimação não está no fato de se ele­

var; mas o sublimar dos Filósofos consiste em transformar uma coisa


vil e corrompida em outra, elevada e nobre, isto é, pura: como se diz
de um homem que foi “sublimado” (glorificado), ou seja, elevado em
dignidade; assim, dizemos com efeito que os corpos são sublimados,
Os Pois Pilares da Arte (Solve et Coagula)

isto é, convertidos em outra natureza, mais


sutil. Mas, no entanto, sublimar, segundo
os Filósofos, também significa enfraquecer
e diminuir: o que faz nossa água totalmente
bendita. Assim, compreenda então qual é
nossa sublimação, pois muitos são os que
se enganam nisso. E que nossa água tam­
bém mortifica e vivifica, e faz surgir uma
cor, negra primeiramente na mortificação
do corpo, até o momento em que ele é
convertido cm terra; logo depois se mani­
festam cores tão inúmeras quanto variadas
antes da dcalbação,* o final de todas essas
coisas sendo a obra ao branco (Albedo). Na
verdade, durante a conjunção do corpo pre­
parado e fermentado, cores infinitas apare­ A sublimação Filosófica:
cem em uma diversidade tão grande que a Jérôme Reussner, Pandora,
imaginação humana não concebe. E assim Basileia, 1582.
se torna manifesto que nosso magistério é
uma única coisa e é feito de uma única coisa, e a partir de quatro, como
está dito, e a partir de três, como foi dito antes. A partir de então saiba,
meu caro, que os Filósofos multiplicaram os nomes dc nossa Pedra para
ocultá-la, e disseram que ela é corpórea e espiritual, e nisso eles não
mentiram, na medida em que os sábios podem compreender. Corpo e
espírito certamente estão nela, e o corpo é espiritualizado pela dissolu­
ção, como está dito; e o espírito é corporificado por sua conjunção com o
corpo perfeito e fermentado que alguns nomeiam de fato “Filósofos”, em
acordo com os propósitos de Eximenus na Turba (Assembleia). Saibam,
portanto, vocês os investigadores de ciência, que não existe nenhuma ver­
dadeira tintura, se não for com nosso ar, ao qual foram atribuídos nomes
infinitos para que ele não seja de forma alguma conhecido com certeza
pelos ignorantes, se ele fosse especialmente designado: um todavia ele é,
assim como nossa obra.
Arnaud dc Villcncuvc, A jlor das flores
(FiosJlorutn, séc. XIII-XIV), in Aunfenr Anis
quam Cbctnian vocant, t. II, p. 528-529).
*
* *
396 Filosofar pelo Fogo

razão pela qual imaginamos e inventamos a Sublimação foi porque


nem nós nem os antigos nada encontramos, e que aqueles que vierem
depois de nós jamais poderão encontrar algo que possa se unir aos cor­
pos, além dos espíritos, ou pelo menos aquele que tem reunido a natureza
do corpo e do espírito. Ora, a experiência nos revela que os espíritos, sem
ser purificados por alguma preparação, sendo projetados sobre os corpos,
ou metais imperfeitos, ou não lhes dão a cor perfeita, ou os corrompem
inteiramente, e os queimam, e os enegrecem. E isso, mais ou menos, se­
gundo a diversidade dos espíritos [...].
Para evitar esses inconvenientes, os Alquimistas imaginaram um
meio de retirar a untuosidade (que é o que faz a adustão)* dos espíritos
que a têm, e de retirar de todos os espíritos em geral as fezes* terrestres
causadoras dessa cor lívida. O que eles não puderam fazer por nenhuma
outra operação que não fosse a sublimação. Pois o fogo, ao elevar os espí­
ritos, quando são sublimados, sempre eleva suas partes mais sutis. E con­
sequentemente as partes mais grosseiras permanecem no fundo do vaso.*
O que com certeza revela que a sublimação purifica os espíritos, ao sepa­
rar deles seu lado terrestre, que os impedia de ser penetrantes; isto é, que
não pudessem penetrar os corpos, e que era a causa da cor imperfeita e
impura que esses espíritos lhes comunicavam. Ora, vemos manifestada-
mente que pela sublimação os espíritos são despojados dessa qualidade
terrestre, porque, tendo sido sublimados, eles estão mais resplandecen­
tes e mais diáfanos; que eles entram e penetram com mais facilidade na
espessura dos corpos, e que não lhes imprimem uma cor desagradável,
como faziam antes de ter sido sublimados.
Pscudo-Gcbcr, Súmula da perfeição do magistério
(Sumiria perfectionis Magisterii, séc. XIV),
in William Salmon, Biblioteca dos Filósofos Alquimias,
r. I, p. 174-176.
*
* *
_PRIMEIRA REGRA. Toda coisa provém daquilo em que ela se dis­
solve: de fato, o gelo se transforma em água por intermédio do calor.
Portanto é necessário que ela já tenha sido água antes de ser gelo.
Assim todos os metais antes foram Prata-viva; isso se observa pelo
fato de que, liquefeitos por meio do fogo, eles se transformaram em
Prata-viva. Observe aqui que os filósofos chamam igualmente o metal
liquefeito Mercúrio ou Prata-viva: consequentemente, a redução dos
metais em Prata-viva operada dessa forma é chamada liquefação,
Os Dois Pilares pa Arte (Sòívf et Coagula)
397

ainda que ela aconteça pela violência do fogo. Contudo, como


nessa forte liquefação ela guarda seu aspecto, conservamos dela o
nome de Prata-viva. Todavia, essa solução não é filosófica mas profana:
ela tende para um particular, e corresponde em certa medida aos dizeres
dos filósofos.
SEGUNDA REGRA. Toda natureza deseja ser conduzida à per­
feição, ela tem horror da destruição e foge dela: é por isso que abraça
avidamente aquilo que a melhora e rejeita seu contrário tanto quanto
pode; e, em segundo lugar, a arte deve imitar a natureza, senão ela sem­
pre erra.
TERCEIRA REGRA. Tudo o que opera mal cm uma arte tende
por sua malícia natural a destruir o que existe de melhor. E tudo o que
opera bem em uma arte esforça-se em aperfeiçoar o que é pior. É por
isso que você deve conhecer as naturezas das coisas para saber discernir
o que é melhor ou pior na natureza, porque ela se aperfeiçoa e porque
está paralisada; e que a quantidade de mau não deve exceder a quanti­
dade de bom, senão você errará totalmente.
QUARTA REGRA. Todo seco deseja naturalmente beber seu úmido
para ser contínuo em suas partes. Observe que se trata do úmido radi­
cal* de todos os corpos líquidos, e alimente o que é demasiado seco por
meio de tal úmido, e ele se tornará temperado, etc. E dessa forma você
terá o que deseja.
O Rosário dos Filósofos (Rcsariutn Philosophorum, séc. XVI),
in Jcan-Jacques Mangct, Btblicthfca Cbrmica Curiosa, t. II,
p. 103-104.
*
* *
ó^-Ní^
ssa solução e congelação que nomeei são a so­ X4
lução do corpo e a congelação do espírito; são duas
e, todavia, são uma mesma operação. Pois o espírito
' r\ ‘•.Tk .t
só se congela com a solução do corpo, e também o
corpo só se dissolve com a congelação do espírito.
E quando o corpo e a alma estão reunidos, cada um
deles age e opera em seu companheiro de forma se­
melhante. O exemplo disso está na água e na terra. ___ NESMEHV.
lOHANN
ni Phil/oi
Pois, quando a água se junta com a terra, ela tenta
dissolvê-la pela umidade, virtude e propriedade que Jean dc Meung, filósofo:
estão nela, e a faz mais sutil do que era antes, e a Este saber requer um
torna quase em tudo semelhante a ela, pois a água é verdadeiro Filósofo, não
mais sutil do que a terra. Assim como faz a alma do um louco.
398 Filosofar pelo Fogo

corpo, de forma semelhante também a água se


faz espessa com a terra e se torna semelhante à
terra em espessura, pois a terra é mais espessa do
que a água. E saiba que, entre a solução do corpo
.1 e a congelação do espírito, não há nenhuma dife­
ÍÊW
r í.
rença de tempo; e não há obra diferente, de forma
que um exista sem o outro, como entre a água e a
ÍOHAN DANIELWLIVS terra não existe em sua conjunção uma parte dife­
Vít a-an^^eneiit^philí^ò - rente de tempo, de forma que se possa reconhe­
cer e discernir um do outro, em suas operações;
Johann Daniel Mylius, mas seu fim é o mesmo, um mesmo fato, e uma
discípulo da Sabedoria mesma operação circular sobre as duas, e juntas
filosófica: E andar nos antes da composição. Disse antes da composição,
cantinhos divinos e no para que, quem leu esse livro e tiver ouvido falar
Magistério tendo conto da solução e congelação (como mencionado), não
companheiro Nosso Se­
pense que se trata da composição de que falam os
nhor Jesus Cristo.
Filósofos. Pois seria um erro em seu feito e ciên­
cia. Já que a composição nesse artifício, ou Ma­
gistério, é a conjunção ou casamento do espírito congelado com o corpo
dissolvido, e essa conjunção e paixão se faz sobre o fogo. Pois o calor é
seu alimento, e a alma só deixa o corpo, só se conjuga com ele de forma
completa pela mutação e mudança da virtude e propriedade de todos os
dois, e depois da transmutação de suas naturezas. E isso é a solução e
congelação que os Filósofos primeiramente assim nomearam; e toda­
via eles as ocultaram, e por razões sutis falaram sobre elas com palavras
obscuras e dissimuladas, para que o sentido do inquisidor da verdadeira
inteligência fosse alongado.
Jean de Meung, O Espelho da Alquimia,
in O livro dos Segredos de Alquimia (1613), n. p.

Nota: esse Livro é de fato a tradução francesa bem livre do Espe­


lho de Alquimia, de Roger Bacon.
*
* *

solução é de fato o fundamento da arte, e é por isso que os Filóso­


fos enunciam regras:
1. A solução é a redução do corpo à sua primeira matéria, que
produz então o Elemento primordial, isto é, a água.
2. Dissolver consiste em dividir e corromper, e reduzir à matéria
primeira.
Os Dois Pilares da Arte (Solvi: et Coagula) 399

3. Na Pedra estão uma alma, um corpo e um espírito, ainda que


seja uma Pedra que convém dissolver.
4. A solução é a calcinação dos corpos e dos espíritos, ou ainda a
redução da coisa calcinada em água graças à potência do adubo ou do
calor do fogo.
5. Nossa Pedra é ainda mais aperfeiçoada quando ela é mais bem
dissolvida.
6. O princípio de nossa obra é a dissolução da Pedra, pois os cor­
pos dissolvidos são assim reconduzidos à natureza do espírito, porque
são muito mais fixos.
7. A solução Filosófica é a conversão dos corpos na água, de onde
eles são engendrados, assim como o gelo é mudado em água fluida de
que antes era constituída.
8. Dissolve e coagula: dissolve o corpo c a alma cm água, e con­
gela a água com o espírito misturando-a ao corpo.
9. O que é dissolvido chega ao estado da sublimação a partir do
qual ele é separado das coisas inferiores, elevando-se e buscando atin­
gir lugares mais elevados.
Essa solução é realizada não pela e na água vulgar, mas na Água
mercurial, e terminada da mesma maneira pela dissolução.
Johann Daniel Mylius,
A Filosofa refonnoda
(Pbtlosophta reformata, 1622), p. 8
*
* *
D igamos então que as operações da Alquimia são SEPARAÇÃO e
ALTERAÇÃO. A primeira é uma operação pela qual dividimos atual­
mente os Princípios constitutivos de alguns corpos, sendo que a disso­
lução a precedeu [...].
A Destilação é uma separação das substâncias úmidas reduzidas
em vapores, as quais em seguida, uma vez condensadas pelo frio am­
biente, são recebidas como licor dentro do recipiente. Ela acontece
de três formas, a saber, pela elevação, pela descida, e oblíqua, ou
pelo lado [...].
Retificação separatória é uma destilação reiterada, rejeitando as
fezes* e impurezas que restam no vaso* destilatório; e isso se faz com
o objetivo de obter o remédio com mais virtude. Essa operação é tão
necessária que, sem ela, na maioria das vezes, não possuiríamos a vir­
tude que desejamos ao medicamento [...].
400 Filosofar pi:lo Fogo

' £

A dissolução, chave para obter o Dissolvente universal: Gossen Van


Vreeswijk, De Groene Leeuw, Amsterda. 1674.

Calcinação é uma redução dos corpos em cal ou pó desagregado,


e tão sutil que apenas a sentimos entre os dedos [...]. Ora, essa ope­
ração de calcinação existe por duas razões: a primeira é para privar o
composto de sua umidade acidental ou fleuma supérflua, e dispô-lo às
outras operações, principalmente de solução; depois da qual, e não de
outra forma, se pode fazer a separação das partes elementares do dito
composto.
A segunda causa é para retirar e consumir o Enxofre combustível
impuro e corrompedor, que está no composto e não é conduzido à per­
feição pela Natureza.
Reverberação é uma ignição ou redobramento de calor em torno
da matéria, para calciná-la pela reflexão do calor inflamado sobre aque­
la [...].
Extração é uma separação das partes mais líquidas do misto,* por
algum dissolvente afiado,* retirado do próprio corpo do qual se quer
fazer a Extração, ou então por qualquer outro licor conveniente, caso
falte umidade suficiente no dito corpo
A Tintura, sendo considerada aqui como uma operação alquímica
e não como um medicamento, não difere da Extração, a não ser pelo
Os Dois Pilxres d/x Arte (Solve et Coagula) 401

fato de que na Tintura não fazemos evaporar tanto o dissolvente: é, por­


tanto, uma separação da essência do corpo em forma fundível e líquida
por meio de um dissolvente [...].
Circulação é um movimento de um licor puro, que eleva continua-
mente as partes mais leves como vapores até o alto do vaso, os quais,
dissolvidos ou condensados pelo frio, ou por falta de saída, são repercu­
tidos embaixo para penetrar c abrir as sujeiras, a fim de torná-las mais
sublimes, e assim, sendo espiritualizadas, acontece uma união insepará­
vel de todas as partes que recebem assim uma perfeita fixação: por isso
essa operação pode ser chamada servente da Sublimação, Exaltação e
Fixação perfeitas.
Exaltação é o aumento das virtudes de todas as substâncias do
misto* por meio de sua união inseparável, resultante do fato de que o
corpo é fato espiritual, e o espírito corpóreo [...]. Como não c obra de
um dia, ele é repleto de maravilhas. E é dessa maneira que os verdadei­
ros Filósofos fazem suas grandes e universais Medicinas.
David dc PLinis Campv.
Buíjué composto com as mais belas Flores ALpanucas (1629),
tn Obras (1636), p. 423-425.
*
* *

Fermentação é a incorporação do ser vivente, a renovação do


sabor, a inspiração do odor, o adjuvante trazido aos seres; e ela é dupla,
ou seja, branca e vermelha: o fermento do Sol, sendo de natureza solar,
e o da Lua, parente das luzes lunares.
E assim como os corpos substanciais fixados sobre o fogo não
podem manifestar suas qualidades, nem vivem e se elevam por eles
mesmos se não forem em primeiro lugar purificados e vivificados, gra­
ças a certa imaterialidade, da mesma forma as realidades espirituais de
ordem acidental também não podem revelar suas virtudes permanen­
tes se antes não tiverem sido unidas com os corpos fixados e, assim,
perpetuadas: o corpo abraça então o espírito, ensinando-lhe a fugir ao
se fortificar contra o próprio fogo; é o espírito que ensina ao corpo pe­
netrar por sua própria atividade as coisas grosseiras, a tornar as coisas
compactas sutis, a amolecer e aperfeiçoar os imperfeitos, e também a
sempre trazer remédio a todas a enfermidades possíveis dos corpos.
Avicena diz: O corpo e o fermento que você mistura nessa circunstância
devem adquirir a forma de um pó puro e sutil: contudo, só faça uma
mistura completa quando cada um deles estiver dissolvido em água, de
402 Filosofar pelo Fogo

forma que os menores elementos estejam intimamente misturados a ela,


pois é mais fácil separar o vinho da terra do que da água; mas, quando
a água foi unida à água, ela a acolhe como uma natureza tão apropria­
da que não se separam, mais uma da outra; e por essa razão a natureza
encanta a Natureza, a Natureza busca a Natureza, deseja-a, recolhe-a,
abraça-a. ergue e reconforta, branqueia e avermelha.
Johann Daniel Mylius, A Filosofia reformada
(Philosophia reformata, 1622), p. 127-128.
*
* *
Portanto, os Filósofos trataram do fermento, que realmente existe,

sem o que a Arte da alquimia não pode ser aperfeiçoada e finalizada,


de uma maneira muito secreta e mediante discursos velados que usam
termos bastante secretos. E então é isso o que compreendemos, e do que
nos distinguimos no momento. Os Filósofos referem-se, ao que parece,
ao fermento segundo um duplo ponto de vista: é por um lado a própria
pedra, composta de seus Elementos e finalizada durante sua realização
nos metais: e é. por outro lado, aquilo mesmo que aperfeiçoa a pedra e
lhe traz seu complemento.
Quanto à primeira maneira, dizemos: assim como o fermento da
massa se impõe a ela‘e sempre a converte nele, o mesmo acontece com
a pedra que reduz a ela todos os metais restantes. E como uma parte da
massa fermentada tem poder de mudar um número infinito de partes
da massa sem ser por sua vez transformada, da mesma maneira essa
pedra tem o poder de converter nela um grande número de partes dos
metais, e não de ser por elas convertida. E assim como a massa é alte­
rada e interiormente modificada pelo fermento porque ele participa de
sua natureza e extrai dela sua origem (nada de estranho, é de fato capaz
de transformá-lo), da mesma maneira os metais são semelhantemente
alterados e convertidos por ele, que é da mesma natureza deles e que
neles encontra sua origem, e não de nada que venha do exterior. E como
a massa não altera nem reduz a si outra massa, se antes não tiver sido
alterada e tiver recebido determinada virtude, cuja adjunção lhe dá a
potência de alterar e de converter outra massa a si, da mesma maneira
essa pedra não altera nem converte a si os metais, se ela antes não tiver
sido alterada, convertida, e se não acolhe determinada natureza pela
qual ela adquire poder de alterar e de reduzir a si os metais. É por isso
que está dito na Assembleia dos Filósofos que nada altera o que não foi
antes alterado, nem colore o que não foi antes colorido, nem transforma
Os Dois Pilares da Arte (Solve et Coagula) 403

o que não foi em primeiro lugar transformado. E assim como o fermen­


to recebe essa potência de alterar, converter e transmutar outra massa
de determinado calor oculto, ao efetuar seu cozimento pelo intermédio
do ar que envolve e digere, e fazendo passar da potência ao ato o que
era apenas potência: virtude pela qual ele converte intcgralmente a si a
outra massa em potência realmente existente; da mesma maneira essa
pedra recebe a virtude de alterar, converter e transmutar a outra massa
(isto é, todos os metais) graças a determinado calor: isto é. o da arte,
quente e digestivo, e que conduz da potência ao ato a virtude da matéria
pela qual ela converte a si todos os metais, uma vez que sem cor não há
nem digestão, nem operação, nem movimento, como dizTcófilo [...].
Também se fala do fermento a partir de um segundo ponto de vis­
ta: é ele que aperfeiçoa e realiza a pedra; e sem ele a pedra dos Filóso­
fos não pode existir: isso de fato por causa do fermento, no qual reside
toda a dificuldade da arte. Pois o fermento está oculto no sentido mais
manifesto ao intelecto e à razão, ele é o corpo que retém a alma; c
unida com seu corpo a alma pode demonstrar as forças que não pode
tornar manifestas sem essa união. Portanto, quando o artista terá visu­
almente pesado a alma brilhante assim gerada, no mesmo momento ele
a conjugará ao seu corpo, pois a alma não pode sem o corpo ser detida;
semelhante união se fazendo por outro lado graças ao espírito, pois a
alma não pode adquirir vida independentemente do corpo, nem nela
perseverar, se não for pelo espírito: e semelhante união e conjunção é a
finalidade da obra. E não devemos compreender que o corpo ao qual ela
está unida seja alguma coisa de novo e de estranho que lhe é adicionado,
mas apenas que o que estava oculto se toma manifesto, e inversamente:
como o que aparece na cola líquida quando está coagulada, assim a
potência do corpo é tão forte que a alma não pode eternamente dela ser
separada por qualquer outra coisa [...].
Esse corpo é, portanto, a forma, o fermento, a perfeição e a tin­
tura que os Filósofos procuraram; ele é o Sol e o Ouro dos Filósofos,
que é branco no ato e vermelho em potência, e o branco é imperfeito, que
é aperfeiçoado ao vermelho, e em nenhuma outra coisa, como está dito
na Assembleia dos Filósofos.
Pctrus Bónus, A Preciosa Pércla nova
(Pretiosa Marga rita novclla. 1330), in Jean-Jacqucs Mangct,
Bibliothaa Cbnnica Curiosa, r. II, p. 39-42.
*
* *
404 Filosofar pelo Fogo

solução torna manifesto o que anteriormente estava subtraído à


visão, diminui as coisas que até então estavam compactas, graças à vir­
tude de nosso primeiro mênstruo* claro e lúcido, no qual nossos cor­
pos sofrem um eclipse e, sutilezas de suas duras e secas compactaçõcs,
recuam naturalmente em sua primeira matéria. Pois, se eles são um do
ponto de vista do gênero, não é o que acontece em relação ao seu nú­
mero; eles, cujo pai é o Sol e a Lua, na realidade a mãe, e o Mercúrio,
o elemento mediador. Pois somente eles são nossa magnésia,* nosso
Adrop, etc., e não inúmeros outros; e eles não são nada mais que irmão
e irmã, isto é, se você compreende seu sentido, Agente e paciente, en­
xofre e Mercúrio, coessenciais à nossa empreitada. Entres esses dois,
contrários em qualidade, é de fato engendrado um meio-termo supre­
mamente admirável, que é nosso Mercúrio e mênstruo untuoso, nosso
enxofre secreto, operando invisivelmente, queimando os corpos mais
violentamente do que o fogo, até que eles sejam dissolvidos em água
mineral: o que nós chamamos noite e setentrião, por causa das trevas
então reinantes.
Mas eu suponho que você ainda não percebe perfeitamente o ver­
dadeiro segredo da dissolução dos Filósofos; e é por isso que lhe peço
para conceber sabiamente minhas palavras, pois vou lhe revelar sem
dissimulação que, qualquer que seja nossa solução, ela é a causa de
nossa congelação. A dissolução de uma parte corpórea provoca de fato
a congelação da outra parte, espiritual, e dissolvemos em uma água que
não molha as mãos, pois, quando a terra está completamente reduzida
a cinzas, compreenda que ela é então água congelada: e por causa do
estreito encadeamento dos elementos, quando um corpo foi alterado de
sua primeira forma, uma nova ali se introduz imediatamente, pois não
faz parte da natureza das coisas nenhuma vacância de forma [...].
Por isso, não é um erro que se compare nossos corpos às mon­
tanhas, que emprestaram aos planetas seus nomes. E por isso que, se
você não quer sofrer nenhum prejuízo, lance-os no mais profundo do
Mercúrio, e um belo espetáculo lhe será oferecido: tudo será de fato
convertido em um pó impalpável; e, se os corpos, durante esse tempo,
perderam sua primeira forma, logo eles se revestiram de outra. Você
pode nesse caso considerar ter convenientemente empregado seu di­
nheiro ali onde outros, doutos, mas ignorando os segredos de nossa
Filosofia, se perderam. Depois disso, acrescentarei uma única palavra,
a saber, que cada corpo comporta três dimensões: a altura, a largura e
a profundidade, pelas quais nossa roda é continuamente girada, saben-
Os Dois Pilares da Arte (Solve et Coagula)
405

do que suas entradas devem ser procuradas no Ocidente, empurrando


mais adiante para o setentrião, ali onde os astros perdem totalmcnte sua
claridade: ali de fato [os corpos] devem permanecer 90 noites sem luz
nas trevas do purgatório. Dirija então o mais cedo possível seu trajeto nà
direção do Oriente, transitando pelas cores variadas e múltiplas, e dessa
maneira o inverno e a primavera transcorreram. Esforce-sc então para
se elevar para o Oriente, ali onde o Sol se levanta no verão com uma
clara luz: o que se efetua com grande delcitamcnto, pois sua obra co­
nhece ali o branqueamento perfeito. Suba em seguida do Oriente para
o Sul - e que ali ela se repouse em sua cadeira dourada pois ali é a
colheita, ou seja, o final da obra conforme ao seu desejo de ver sua rea­
lização. Em seu hemisfério, o Sol resplandece em todo o seu vermelho,
triunfando depois do eclipse na glória, como um Rei e um Imperador
reinando sobre o Mercúrio e os metais.
Gcorgc Riplcy, O Livro âas 12
(Liber íhioíkdni Portarutn, 1591), in Jcan-Jacqucs Manger,
Bibliothoca Chanica Curiosa, t. II. p. 278.
*
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O banho do Rei: Salomon Trísmonin, Splendor Solis, Londres, séc. XVI.


406 Filosofar pelo Fogo

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JL ortanto, eu digo que todo trabalho da pedra não é senão uma per­
pétua sublimação filosofal e não química, pois a química é apenas uma
elevação da matéria ao cume do vaso,* mas a filosofal é uma melhoria
e elevação a um grau mais alto de perfeição a que levamos a matéria, o
que sempre acontece até que a pedra tenha adquirido sua última perfei­
ção, por meio da arte e da natureza que estão sempre juntas.
Ora, a sublimação pressupõe sempre a dissolução do corpo, e todo
corpo é dissolvido pelo espírito com o qual ele está misturado, e por
meio dele é feito espiritual; e, quando o corpo é dissolvido, o espírito se
coagula pela mesma operação, que é divina, sobrenatural e incompreen­
sível: daí é preciso inferir que o que dissolve e o que é dissolvido são
de mesma natureza e que, se houvesse alguma natureza estrangeira,
não aconteceria uma verdadeira e física dissolução do corpo e con­
gelação do espírito.
A primeira operação se chama a extração da semente do ouro, que
é a primeira sublimação ou preparação do mercúrio filosofal; por meio
da arte, o ouro nessa semente adquire a potência de se multiplicar, e as­
sume então o sujeito* da matéria que o Artista deve escolher para fazer
sua obra, e de onde ele pode extrair a forma da semente da pedra [...].
Essa primeira sublimação também é nomeada destilação, pois, ao
destilar, a água vai para o alto do vaso* filosofal em espécie ou em for­
ma de fumaça; é por isso que Hermes diz: O vento o leva em seu ventre.
Pela sublimação perfeita, a destruição, a contrição e a pulverização da
matéria acontecem, isto é, colocar na cal por meio de um fogo forte o
corpo que permaneceu no fundo do vaso: o que se faz para que o elo
e a consolidação das partes terrestres e combustíveis sejam rompidos e
que as substâncias sejam separadas, e que a alma sutil, que é a parte que
tinge, seja mais facilmente extraída [...].
A sublimação dos Filósofos contém várias operações, a saber, a
purificação, a fim de ter uma substância pura e nítida; a dissolução, para
reduzir toda a massa da matéria em uma água; a terceira, a putrefação
ou corrupção, ainda mais que nada se acontece sem que primeiramente
a corrupção preceda, seguindo o axioma dos Filósofos, corruptio unius
est generatio alterius.1** A ablução, a limpeza, branqueamento e ensa-
boamento vêm depois, porque toda coisa sórdida deve ser limpa de toda
impureza corrompedora; essa ablução também se nomeia inceração e
mundificação.* A outra é a coagulação, pois é preciso que essa água tão
preciosa da qual falamos seja ressecada e retorne em forma de pó do
185. A corrupção de um é a geração do outro.
Os Dois Pilares da Arte (Solve et Coagula)
407

qual ela tinha sido extraída. A calcinação vem depois,


ainda mais que a matéria calcinada é mais limpa e
mais disposta à sublimação, e que ela é mais próxima
da fixação, o que vários Filósofos nomeiam fusão. E
a última é a fixação, que é perfeita quando a cor não
muda mais.
Todas essas operações estão na sublimação, as
partes voláteis são elevadas como fumaça e devem
permanecer no vaso para ser fixadas com o corpo Prepare, purifique,
fixo, e para que elas possam dar a fusão ao corpo ou dissolva, coagule os
às partes mais grossas, e se defender da vitrificação: corpos e jogue-os
c isso justifica o que eu já tinha adiantado, que todo sobre o Corpo.
trabalho da pedra não é senão uma perpetua sublimação filosofal, e essa
sublimação, quanto sua fixação, que é elevada cm sua substância, em
virtude e em cor a uma mais alta perfeição.
Essa sublimação contém a dissolução que foi feita desde o início,
e no final se faz a fixação, que é a coagulação perfeita, e consequen­
temente, como se diz, que o trabalho da pedra é uma perpétua subli­
mação, podemos também dizer que consiste apenas em uma perpétua
dissolução e coagulação.
Heinrich von Bastdorff,
O Fio df A rudne (1695), p. 53-61.

A pesagem filosófica: a balança alquímica

uçam, portanto, Filhos dos sábios Filósofos, nossos predecesso­


res, não corporal nem inconsideradamente, a Ciência dos quatro Ele­
mentos que são passíveis, e que podem ser alterados e mudados, por
suas formas, e que são ocultos com sua ação.
Pois sua ação está oculta em nosso Elixir, porque ele não poderia
agir se não fosse composto da união muito exata desses mesmos Ele­
mentos; ele só é perfeito se tiver passado por todas as suas cores, de que
cada uma marca a dominação de um Elemento particular.
Saibam, Filhos dos Sábios, que existe uma divisão da Água dos
antigos Filósofos, que a divide em quatro outras coisas. Uma para dois,
e três para uma. E à cor dessas coisas, isto é, ao Humor que coagula,
pertence a terceira parte, e as duas outras terceiras partes são para a
Água. Esses são os pesos dos Filósofos.
Tomem do Humor uma onça e meia, e da Vermelhidão meridional,
ou da alma do Sol a quarta parte, que é uma meia onça, e da Goma*
A pesagem alquimica: Basile Valentin, in Michael Maier,
Tripus aureus, Frankfurt, 1618.

I alaranjada também uma meia onça, e a metade de Orpimenta (Ouro-


pigmento),* que sào oito, isto é, três onças.
E saibam que a Vinha* dos Sábios se divide em três, e que seu
vinho é perfeito no final de 30.
Concebam como a operação se faz. O cozimento o diminui em
quantidade, e a Tintura o aumenta em qualidade, porque a Lua começa
a diminuir depois de seu 15Q dia, e ela cresce no terceiro. Esse é, por­
tanto, o início e o fim.
Então, acabo de lhes declarar o que tinha sido selado. Pois a obra
está com vocês e em vocês; de forma que, encontrando-a em vocês
mesmos, onde ela está continuamente, vocês sempre a têm em qualquer
lugar que estejam, seja na Terra ou no Mar.
Guardem, portanto, a Prata-viva, que se faz nos lugares ou gabine­
tes interiores, isto é, nos Princípios dos metais, que são seus compos­
tos, e nos quais ela está coagulada. Pois a Terra que resta é chamada a
Prata-viva.
Os Dois Pilares da Arte (Solve et Coagula) 400

Que aquele que, portanto, não entende minhas palavras, peça a


inteligência a Deus, que não justifica as obras de nenhum malvado,
e que não recusa a nenhum homem de bem a recompensa que lhe é
devida.
Pois descobri tudo o que estava oculto nessa Ciência, declarei um
grande segredo, e até mesmo disse toda Ciência àqueles que saberão
ouvi-la.
Portanto, vocês, Inquisidores da Ciência, e vocês, filhos da Sabe­
doria, saibam que, quando o Corvo está sobre a montanha, grita bem
alto: Sou o branco do negro, e o vermelho do branco, e o laranja do
vermelho. Claro que eu digo a verdade.
Saibam também que o Corvo que voa sem asas na escuridão da
noite, e na claridade do dia, é a cabeça, ou o início da Arte.
O colorido se toma do amargor que está em seu papo, e a Tintura
saiu de seu corpo, e se extrai uma Agua verdadeira e bem pura de suas
costas.
Compreendam, portanto, o que eu digo, e recebam pelo mesmo
meio o Dom de Deus que eu lhes comunico: mas selem-no a qualquer
imprudente.
É uma Pedra que se deve honrar, que está oculta nas cavernas ou
na profundeza dos metais. Sua cor a torna brilhante; é uma Alma, ou um
Espírito sublime, e um Mar aberto.
Então, eu lhes declarei; deem graças a Deus por ele lhes ter ensina­
do essa Ciência, pois ele ama aqueles que reconhecem suas graças [...].
Meus Filhos, essa Pedra está envolta em várias cores que a ocul­
tam; mas só existe uma única que marca seu nascimento e sua completa
perfeição. Conheçam qual é essa cor, e nunca digam nada.
Com a ajuda de Deus Todo-Poderoso, essa Pedra lhes livrará e lhes
protegerá de doenças, por maiores que elas sejam; ela lhes preservará
de toda tristeza e aflições, e de tudo o que poderia lhes prejudicar o
corpo e o espírito.
Ela lhes conduzirá ainda das trevas à luz, do deserto à casa e da
necessidade à abundância.
O Sete Capitules atribuídos a Hermes,
in William Salmon, Biblioteca dos Filósofos ALjuíuiicos,
r. I. p. 16-23.
*
* *
410 Filosofar pelo Fogo

ora eu vou lhe explicar o procedimento da balança. Siga bem mi­


nhas recomendações e, se Deus quiser, você realizará seus desejos.
Você sabe que as grandes balanças são em número de três, assim
como expliquei em várias de minhas obras relativas às balanças. Duas
delas sào simples, a da água e a do fogo; a terceira é composta das duas
primeiras. Juro pelo meu mestre, o produto se manifestará com essas
duas balanças, todavia haverá perigo nesses dois casos, com a dificul­
dade, contudo, de que o perigo será maior com a balança do fogo. Vou
lhe mostrar como se opera com essas duas balanças, e é dessa maneira
que terminarei o presente opúsculo.
Portanto, direi: a balança da água não apresenta no início nenhum
perigo, e isso é, e juro pelo meu mestre, um verdadeiro milagre [...].
Saiba, caro irmão, que se dá o nome de balança à balança da água, por­
que ela faz aparecer os excessos da natureza dos corpos e seus déficits
de uma maneira evidente e mais exata, e juro isso pelo meu mestre, que
a balança ordinária não ressalta as diferenças de peso do ouro e da prata.
O mesmo não acontece com a balança do fogo, que apresenta junto com
a da água uma notável diferença; é por essa razão que a balança da água
precisa da balança do fogo, ao passo que a balança do fogo não tem, de
forma alguma, necessidade da balança da água.
Em todos os meus livros eu falei da balança do fogo em termos
enigmáticos e um pouco complicados, ao contrário do que tinha feito
em relação à balança da água; agi assim porque a balança do fogo é
extremamente difícil e perigosa. Por causa desse perigo mesmo, e dos
grandes riscos de erros que cometem nesse ponto os homens mais co­
nhecedores da obra, não foi necessário empregar termos enigmáticos e
difíceis de compreender, pois não se pode compreender essa balança, a
não ser com a condição de ter chegado ao mais alto nível de habilidade
na obra [...]. Saiba que a coisa pode sair apenas da balança do fogo em
toda a sua perfeição; mas, o mais frequente, ela não poderia aparecer
com a ajuda apenas dessa balança, a menos que isso seja em sua forma
e não em sua ação. Se reunirmos a balança da água àquela do fogo, é
muito certo que a coisa sairá em sua forma mais completa, a menos que
haja um erro por parte do operador, e tudo isso se produz em um piscar
de olhos. Saiba isso e você compreenderá o que eu disse sobre a balança
no Tratado das balanças, livro que basta a si mesmo [...].
Em tudo isso, caro irmão, o princípio fundamental é que os Ele­
mentos da pedra sejam bem purificados e livres dos óleos que a corrom­
pem e que a impedem de produzir completamente seu efeito: é isso que
exige operações mais longas e curtas. Certo, caro amigo, a verdadeira
Os Dois Pilares da Arte (5oivf et Coagula) 411

substância, quando ela está livre desses óleos que a viciam, é uma coisa
que tinge e, se não fosse assim, as operações não poderiam lhe dar essa
virtude. Que Deus, o Altíssimo, o ajude nisso!
Djâber. O Livro da Realeza. tn Marcelin Bcrthclot,
A Química na Idade Média, t. I. p. 130-132.
*
•k *
Para que servem todos essas diversas misturas? Uma vez que nossa

Ciência encerra todo o Magistério em uma única Raiz, o que eu já lhes


revelei o suficiente, e talvez mais do que deveria. Essa raiz contém em
si duas substâncias que, no entanto, só têm uma única essência; e es­
sas substâncias, que são apenas Ouro e Prata em potência, tornam-se
enfim Ouro e Prata em ato, se soubermos equalizar bem seus pesos.
Como nosso autor fala aqui da igualdade dos pesos, nós nos sen­
timos obrigados, não obstante o que já dissemos, a instruir novamente
o leitor estudioso.
É o ofício da arte, e não da natureza, observar exatamente o peso
de todas as coisas. Mas, quando a natureza já tem seus próprios pe­
sos, como revelamos no sétimo capítulo, a mesma doutrina nos ensina
a acomodar nossos pesos aos pesos da natureza, e de trabalhar com
eles como ela o fez, por via de purificação e de atração, isto é, quan­
do tivermos purificado bem nossas substâncias I
e que da natureza terrestre nós os elevamos à
dignidade celeste, no mesmo momento e pela
força da atração pesamos nossos elementos em
uma proporção tão justa que eles permanecem
de certa forma equilibrados, sem que uma par­
te possa superar a outra, pois, quando um ele­
mento iguala o outro em virtude, de forma que,
por exemplo, o fixo não seja de forma alguma ;
superado pelo volátil nem o volátil pelo fixo, Tudo o que é alimentado
então, dessa harmonia nasce um justo peso e o é por rações reduzidas,
uma mistura perfeita. tudo o que é vivificado o é
Essa igualdade de peso se vê manifesta­ por rações duplas.
mente no ouro vulgar, e é isso que faz com que
neles as virtudes dos elementos permaneçam tranquilas, sem nenhum
domínio sobre o outro; mas, ao contrário, sua força estando unida por
esse meio, ele é capaz de resistir a todas as qualidades contrárias dos
elementos que vêm de fora.
412 Filosofar pelo Fogo

Em nossa obra também, quando semelhante mistura está termi­


nada, podemos dizer que temos o verdadeiro Ouro vivo dos filósofos,
porque a vida é bem mais abundante nele do que no ouro vulgar e que
ele está repleto de espíritos, de forma que se pode olhá-lo logo como
um verdadeiro Mercúrio quanto um Enxofre. Isso deve bastar ao sujeito
dos pesos.
Marcanconio Crassclame,
A Luz que sai por si só das trevas (1666),
comentários c tradução de Bruno de Lansac (1687),
ínWilliam Salmon, Biblioteca dos Filósofos Alquímicos,
t. III, p. 517-518.
Os Dois Pilares pa Ar it. (Solve et Coagula) 413

O selo de Salomão, símbolo da unidade do fixo (coagula)


e do volátil (dissolve).
414 Filosofar pelo Fogo

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Hans Baldung Grien, Saturno, 1516.
16

Nigrum Nigrjlg Nigro


(Obra ao Negro)
Essas cinzas negras e infectas nào devem ser
desprezadas, pois elas contêm o diadema de nosso Rei;
c cu vos digo cm verdade que a brancura
jamais será obtida se nào for produzida a escuridão.

Eyrénée Philalèthe. Rrcvis Sfamditaie aJ


Rubinum arltstan, tn Jcan-Jacques .Manget,
Bibliotbaa Chanica Curiosa. r. II. p. 690.

O que é então esse negro "mais negro do que o negro ” do qual


os alquimistas afirmam em uma única voz que é de bom augúrio? Ne­
nhuma regeneração, com efeito, nenhum renascimento sem corrupção,
mortificação, putrefação. Pivô da Obra, a Nigredo alquímica substitui
um velho tema evangélico (“Se o grão não morre ’) com sua própria
dramaturgia, sem deixar de emprestar sua força simbólica da mitologia
egípcia antiga - a morte e a ressurreição de Osíris -, prefigurando ela
mesma a Paixão e a transfiguração de Cristo. Mergulhando assim suas
raízes no imaginário coletivo, a Obra ao Negro186 exerce sobre os espí­
ritos uma inegável sedução, à imagem desse mistério que é o da vida
ressurgente, embelezada, das trevas, em que a morte a mantinha cativa.
A alquimia é bem nesse sentido uma “lição de trevas ” cujo impacto se
mede pelo interesse ambíguo dado pelo Ocidente cristão aos estados
melancólicos. E é de uma forma bem extrema de melancolia que se
trata, pelo menos se nos mantivermos às aparências: imobilidade cada­
vérica, mau cheiro, torpor, sombra tenebrosa recobrindo a matéria em

186. Contrariamentc a seu título, o romance de Marguerite Yourcenar coloca em cena antes
a história de um sábio na matéria antiga que de um alquimista.
-415-
416 flLOSOFAR PELO l;OGO

decomposição. No túmido, no entanto, são dois corpos e não apenas um


quejazem, cujas bodas só serão celebradas quando as tiverem deixado
“o espírito tenebroso e fétido ” (Comarius) que corrompia seu brilho.
Da mesma maneira é preciso ao dragão-serpente se mortificar a ele
mesmo, para que, absorvendo seu próprio veneno, transmita sua no­
cividade como panaceia (remédio universal). Nenhum outro deus, ne­
nhum outro planeta, a não ser Saturno, poderiam presidir a esse título
os destinos da Opus Chemicum, cujo tempo dá um lugar tão eminente
à Nigredo. Quando, portanto, aparecem os corvos, emblemas do grande
taciturno, os alquimistas sabem que não está longe o “reino de Ouro ”
de Saturno, soberano decaído cuja glória eclipsará um dia a de Zeus.

Saturno, crivo dos sábios

mais elevado dos planetas dos céus, chamado Saturno, é em nos­


so magistério de condição muito baixa: mas não deixa de ser a principal
chave de toda a Arte e, posicionado na parte inferior da escala, ele é tido
em baixíssima estima ainda que tenha, com um voo rápido, se elevado
ao cume supremo, acima de todos os astros. Todavia, com as asas sec­
cionadas, rebaixado ao grau mais inferior de iluminação que existe, ele
deverá ser encorajado ao aperfeiçoamento por intermédio da corrupção
em que o negro é transformado em branco, e o branco em vermelho; e
pelo movimento de todas as cores do mundo, os outros planetas tam­
bém desfilam até a cor própria e superabundante do Rei triunfante. E
até direi o seguinte: se Saturno parece o mais vil aos olhos do mun­
do, ele, no entanto, detém em si mesmo uma força e uma eficácia tão
grandes que sua preciosa essência - que é, aliás, uma espécie de frieza
insensível - começa a atacar, e o corpo metálico ígneo é por assim dizer
desviado; sua vivacidade fluida pode lhe ser confiscada, e o corpo assim
reduzido se torna tão manejável quanto Saturno pode sê-lo, ainda que
dotado de maior constância. Ora, essa permutação tem sua origem, seu
princípio e seu fim no Mercúrio, no enxofre e no sal. Para muitos, isso
parece difícil de compreender; mas, na medida em que isso se produz
e ainda que na realidade a matéria seja vil, é preciso que o espírito seja
penetrante e elevado: e no mundo as condições que permitem distinguir
os Mestres dos servidores permanecem desiguais.
De Saturno provêm as várias cores produzidas pela preparação e
pela arte, como o negro, o cinza, o branco, o amarelo e o vermelho, sem
contar as cores oriundas de suas misturas. Da mesma forma, a matéria
comum a todos os Sábios passará por cores variadas antes que essa
grande Pedra seja exaltada e chegue ao seguro limite de sua perfeição;
Nigrum Nigrius Nigro (Obra ao Nlc.ro) 417

pois, todas as vezes que uma nova porta de entrada é aberta ao Fogo,
uma nova forma ou gênero de vestimentas é a partir de então concedi­
da, todas as vezes a título de privilégio, até que a Pedra, em si mesma
desprovida, adquira as riquezas e não tenha mais necessidade de manter
com as outras uma troca mútua.
Basilc Valentin, As 12 Chaves Ja Filosofia
(Claves X.1L Philosopha. séc. XV?; Ia edição 1599).
in Jcan-Jacqucs Mangct. Btbliolheca Cheinica Curiosa. t. 11. p. 419.
*
* *
Desejo agora começar por Saturno, sem nenhuma palavra de duplo
sentido, nem obscuridade nem enigma, assim como já fiz em relação
aos metais precedentes, pois nos próximos também encontraremos a
verdade.
Ora, é algo muito provável e demonstrável que Saturno é não ape­
nas conhecido pela invenção astronómica - por ser o principal regente
e governante dos céus -, mas também que a pedra, que é o bálsamo de
todos os nobres filósofos e desse vale de miséria, como também dessa
vida caduca, extrai seu princípio e sua coagulação apenas da cor negra
do planeta de Saturno, que todos os outros seguem e imitam em tudo
o que eles produzem de bom e de melhor, pois o esplendor do planeta
Saturno, que é incorruptível e imortal, esclarece e ilumina todo o fir­
mamento do céu.
Mas, ainda que pareça que eu deveria dizer algo sobre o nasci­
mento de Saturno e de como ele extrai sua origem e seu princípio tanto
do macrocosmo como de sua própria terra, todavia, uma vez que já
mencionei muitas vezes e já discorri de várias maneiras em meus outros
livros, não achei adequado falar ainda mais sobre ele aqui, ainda mais
que isso não traria nenhum avanço ao desejo de meus discípulos e que
este meu livro se tornaria muito longo se desejasse descrever tudo o
que poderia ser dito sobre Saturno - de que me abstenho no momento
-, não tendo outra intenção senão a de declarar e iluminar com verdade
e sinceridade as coisas que outrora foram obscuras e desconhecidas, por
não ter conhecido essa minha declaração ou instrução.
Portanto, vocês devem saber que de modo algum se deve rejeitar e
desprezar Saturno por causa de sua aparência externa. Mas ele recom­
pensará suficientemente os trabalhos e os sofrimentos daquele que é in­
quiridor e amante da ciência, se este operar filosoficamente com aquele
por meio de um verdadeiro procedimento ou prática. É por isso que
418 Filosofar pelo Fogo

Saturno deve ser considerado mais como um senhor do que como um


servidor. Sendo assim, devemos amá-lo e honrá-lo, não apenas por ele
fazer maravilhas pela saúde dos homens, mas também porque por meio
dele os metais são reduzidos e tornados bem melhores.
Basilc Valentin, O último testamento (scc. XV?),
reedição da tradução francesa dc 1645,
Paris, Rctz, 1978, p. 286-287.

*
* *

-ÍJuvicena, tratando da humildade e de todos os seus efeitos, diz que


em primeiro lugar se percebe algum negror, quando o calor faz sua
operação em alguns corpos úmidos. E por isso que os antigos Sábios,
sem, no entanto, desenvolver a ambiguidade de suas figuras enigmáti­
cas, afirmam ter avistado de longe um nevoeiro que se elevava, envol­
vendo toda a terra e tornando-a úmida; também afirmam ter previsto a
grande impetuosidade do mar e o concurso abundante das águas flutu­
antes sobre toda a face da terra, de tal maneira que a forma e a matéria,
destituídas de sua força original e repletas de putrefação, farão parte das
próprias trevas que agitarão até o Rei da Terra, que ouvirão assim gritar
e lamentar com uma voz triste e cheia de compaixão: “Aquele que me
resgatar da servidão dessa corrupção deve viver comigo em perpétuo
contentamento, e reinar glorioso em clareza e luz brilhante para além
do meu trono real, superando até mesmo em prémios e em honra o pri­
meiro brilho de meu cetro dourado”. Com um sono encantador, o véu
da noite colocou um fim em seu lamento, mas no alvorecer vimos sair,
além da pessoa do Rei, uma Estrela muito resplandecente, e a luz do
dia iluminou as trevas, o Sol parecia radiante entre as nuvens ornadas e
embelezadas de diversas cores: as estrelas brilhantes penetravam com
um odor muito perfumado, que superava toda espécie de bálsamo, e
provinha da terra uma bela claridade reluzente de raios brilhantes; tudo
o que pode enfim servir de contentamento ou de prazer agradável a um
grande Rei que quer se deleitar com as novidades raras.
Salomon Trismonin, O Velo de Ouro
(Aureitm Vcllus, 1598),
trad. fr. dc 1612, p. 53-55.
*
* *
Nigrum Nigrius Nígro (Obra ao Negro) 419

)S aturno, filho de Ceio e de Vesta (que são o Céu e a Terra) e marido de

Opis, sua irmã (que é essa virtude auxiliadora e conservadora de tudo),


representa o mesmo Demogorgon.* Pois seus filhos, que ele devora c
depois vomita, são os corpos por intermédio dos quais ele deu o ser a
cada um dos três gêneros, os quais em
seu final a ele se reduzem, para repro­
duzir novos: para que, por essa perpé­
tua vicissitude, a ordem estabelecida
desde a criação do mundo possa para
sempre se manter e conservar? Ele é
descrito como sórdido e com cabelos
brancos, a cabeça coberta, na mão uma
foice, e como divisa lhe é dada uma ser­
pente que se enrola e morde sua cau­
da. Ele é realmente muito velho, uma
vez que é o princípio de tudo. Tem os Saturno em sua carruagem:
cabelos e a barba brancos, que vão Nicola d’Antonio degli Agli, 1480
crescendo como se pode observar em (Biblioteca do Vaticano).
vários lugares, e crescem da mesma
maneira como as coisas que germinam. Ele é sórdido e sujo, por causa
da imundície terrestre que se junta a ele, plena de adustão* sulfurosa e
corruptora. Sua cabeça está coberta, isto é, o fermento de sua perfeição
está oculto sob o véu de sua impureza e o torna desconhecido de mui­
tos, dificulta sua obscura busca. Sua foice é o instrumento cortante e
pontiagudo com o qual ele corta e devora tudo. E a serpente que morde
sua cauda é sua virtude e natureza regenerante, pela qual ele se refaz e
se reengendra, assim como se diz da Fénix:* e por isso algumas vezes
lhe dão esse nome. De forma que ele está sempre enrodilhado c em
ineficiente crescimento, rastejando pela terra à maneira das serpentes.
Clovis Hesteau de Nuisement,
Tratado do verdadeiro Sal secreto dos Filósofos
e do Espinto geral do Mundo (1621),
p. 280-282.
*
* *

espírito do desejo é sol, e o corpo é ouro, entendam o ouro em


Saturno, segundo a propriedade do Desejo livre, e não segundo a própria
qualidade terrestre e salinidade do Chumbo. O desejo saturnino carrega
420 Filosof/XR pelo Fogo

essa criança dourada dentro dele, não em


sua forma cinza, mas em um brilho obscuro;
é um grande Senhor não por si mesmo, mas
pelo filho que carrega dentro de si. Ele não é
seu pai, mas o cobre com seu manto negro,
para que o Mercúrio que trabalha a criança
o possa receber com alegria; ele é seu Fiat
ou Criador, ele não pode lhe dar um corpo
diferente de sua propriedade, pois constitui
i w,; a essência do livre desejo (o corpo de ouro)
que chegou ao mais alto grau da corporei-
dade na morte fixa, no entanto ele não é a
morte, mas um encerramento representativo
■ %<

da divina essência celeste.


ífaj»? K 1 Mercúrio é o Arquiteto dessa criança
Frontispício do De Signatura que Saturno oculta, ele a engole e a molda
rerum: Jacob Boehme. segundo sua fome ígnea e a despoja do man­
Theosophische Wercke. to negro; o sol lhe é necessário (sua mulher)
Amsterdà. 1682. para estar saciado; em seguida ele trabalha
na criança com seu fogo e preenche seu de­
sejo apaziguado com a propriedade do sol com o qual acaba de se ali­
mentar: ele sustenta a criança até que ela tenha assimilado os quatro
elementos e os astros. Então, o Pai lhe dá a Alma como espírito ígneo;
e sua primeira Mãe satisfaz a fome de Mercúrio como Espírito da alma,
ou vida luminosa; a morte é expulsa nesse momento, a Tintura está pro­
duzida. a criança nasceu, ela se individualiza pouco depois e se toma
melhor do que seu Pai, mas não que sua Mãe, na semente da qual esta­
va antes que seu pai operasse. Ela quebra a essência ígnea de seu Pai,
que é a cabeça da serpente, e passa pela morte do Fogo. Se você não
compreende isso, não nasceu para conceber as sublimidades da ciência
espagírica.*
Jacob Boehmc, Da Assinatura das coisas
(Dc Signatura rerum, 1621),
reedição Scbastiani, 1975, p. 29-30.
*
* -k
CZ^ue maravilhosa potência é a da Alquimia, ensinando a explorar

os arcanos* da natureza pelos quais nos é claramente demonstrado que


o espírito do mundo não pode nada engendrar nem produzir, se não foi
Nigrum Nigrius Nigro (Obra ao Negro)

condenado à morte depois de ter sido reves­


tido da natureza elementar e de ter suportado
o destino das coisas sublunares: ele é com
efeito grão, e semente de vida, confiado à
terra para que apodreça e morra, depois car­
regue o fruto; sem isso, ele permanece estéril
e se perde. Hermes, o Arquissábio entre to­
dos os Alquímicos e na verdade Trismcgis-
to,* não proclama nada além na companhia
de toda a Assembleia (Turba) dos Filósofos: Aquele que é Saturno me
que cm outras condições a morte do espírito destrói, mas nào
ou Mercúrio dos metais é vã, e de nenhuma minha natureza.
importância na obra física, que não pode atingir o cume da perfeição à
qual aspira com todas as suas forças - que sejam pelo cozimento fixa­
dos em ouro ou em prata os metais ainda imaturos caso pela morte
não se livre das sujeiras impuras e fétidas inerentes às suas misturas
e composições; e daí não se erige como corpo frágil e sutil, detentor
de uma força de penetração que ele comunica aos metais crus c não
digeridos; força que, assistida por sua perfeição adquirida e pelos mé­
ritos do cozimento, permite-lhe assim finalizar a metamorfose metálica
e demonstrar sua realidade. Ora, não é somente nos metais que convém
observar isso, mas em todo o Universo, onde está manifesto que nada
pode ser engendrado sem o subterfúgio cúmplice da corrupção c da
morte; pois é ela que prepara o fundamento da vida nova, que. como os
velhos ramos, uma vez cortados, começam a brotar e a se multiplicar
em novos e promissores jovens brotos da vida. Caso contrário, o Mer­
cúrio, que é a sede e a base imutável de toda geração e corrupção, não
poderia comunicar às coisas sublunares seu calor inato recebido de seu
pai quente e úmido, em virtude dessa lei e condição do mundo, que
deseja que o que existe na série das coisas seja mais bem espalhado em
todas as partes da natureza. E por isso que ele desce do céu na terra e
reveste a natureza inferior para se tornar em todos os pontos semelhante
às coisas deste baixo mundo, e assim alimentar, aquecer e conservar
todas as coisas inferiores, pelo intermédio das quais ele também sofre o
destino das coisas sublunares.
A partir daí, quanto se pode considerar como estúpida e obscure­
cida a engenhosidade humana! Por não compreender que a morte do
espírito do mundo pode ser o símbolo da morte de Cristo, quando a
lei divina tiver sido pronunciada e sancionada da redenção do gênero
humano, graças à morte do filho único de Deus; apenas e única morte
422 Filosofar pelo Fogo

de que dependia a salvação de todo gênero humano. Pois o mistério do


Verbo encarnado não teria se manifestado se o próprio Verbo não tivesse
se feito carne e não tivesse sofrido o tormento da morte. Isso mesmo,
todos os Profetas antes do nascimento de Cristo tinham obstinadamente
anunciado e, tocados por um mistério divino e não pítico, já haviam
proclamado que Cristo, filho de Deus e do homem, deveria morrer; e da
mesma forma Cristo costumava dizer e fazer durante o tempo em que
seus passos percorreram essa terra: E preciso que Cristo sofra a Paixão
e entre assim em sua glória; destruam e derrubem esse templo, e eu o
reconstruirei em três dias, decorado de ornamentos mais imponentes e
preciosos do que os que vocês viram até agora. Eis esse corpo imolado
que regenera as forças de todos os homens que pertencem ao verdadeiro
templo, para que o verdadeiro templo seja merecido. E eu lhe restituirei
em dias seu brilho original, e muito mais ainda de que muitos foram
testemunhas, que virão o triunfo de sua morte e de sua ressurreição, e
no que todos nós cremos.
Pierre-Jcan Fabrc, O Alquimista cristão
(Alchymista christianiis, 1632), p. 45-47.
*
* *

ratem de conhecer o rio filosófico que sai de uma montanha, cujo cume
se perde nas nuvens; uma chuva meridional lhes indicará essa montanha, se
quiserem ser um pouco atentos: pois, ainda que esteja continuamente cober­
ta de neve, ela encerra, no entanto, um fogo devorante, que exala um vapor
absolutamente necessário à operação hermética. Excitem esse fogo para
aumentar o vapor. Cavem a terra ao pé da montanha e sairá o verdadeiro
mercúrio com seu caduceu* que opera maravilhas.
Eis o Mercúrio filosófico, assim como o vaso* e o fogo, mas não se
enganem nem tomem do mercúrio vulgar pelo Mercúrio filosófico. Eu lhes
aconselhei a cavar a terra ao pé da montanha, mas não posso deixá-los ig­
norar que terão muito trabalho para executar esse serviço, pois encontrarão
pedras bem duras.
Em seguida, peguem a erva de Saturno que é encontrada nos lugares
saturninos. Os ramos dessa planta lhe parecerão mortos, mas que isso não
os esmoreça; sua raiz é plena de suco, arranquem-na e joguem-na no buraco
que fizeram ao pé da montanha. Em seguida, façam intervir Vulcano, e no
mesmo instante todos os poros da montanha estarão repletos de vapor sa­
turnino, que será impregnado do espírito ígneo, filosófico, ou espírito
de Saturno, cuja propriedade é de branquear. Eis o mercúrio filosófico e a
Nigrum Nigrius Nigro (Obra ao Negro) 423

maneira de prepará-lo. Eis a satúrnia* vegetal e mineral para fazer o banho


do Rei.
Eis o segredo do Mercúrio filosófico, mas, como é fácil dc ver, sem o
enigma. Os Filósofos jamais falaram de forma tão clara sobre essa parte do
magistério. Reconhecem que o Mercúrio filosófico é o vaso* no qual o rei
ou o ouro está contido e encerrado pelo fogo espiritual, que envolve o ouro,
penetra-o, amolece-o e o branqueia na ejaculação de seu esperma.
Saturno faz maravilhas sem parar até que tenha dado ao ouro toda a
força que lhe é necessária para exercer seu império, e revelar até onde pode
se estender sua potência, que é a dc fixar, coagular e tingir. Eis por que a
Pedra dos Sábios é um mundo ativo e passivo, pois ela contém a reunião de
tudo o que pode se encontrar sobre a terra; ela é o movimento ativo e passivo
de todos os seres.
Ela é fixa e volátil, crua e madura, porque sua crueza é corrigida pela
sua maturidade, e que tanto uma quanto a outra lhe são homogéneas.
Sabine Stuart dc Chcvalier,
Dtxursoffoscjw sdre cí inrs Pnnatws
(1781), l II. p. 82-84.

i Saturno ceifando os pés de


Mercúrio: Nicolas Flaniel, Livro de
Abraào Judeu, por volta de 1700.
424 Filosofar pllo Fogo

A obra ao negro (nigredo)

experiência nos servirá de mestre e me esforçarei mais uma vez para


explicar a questão por demonstrações verídicas, voltando ao primeiro as­
sunto. O asem* não se torna ouro por si mesmo, como se diz, e ele não se
tornará sem a ajuda de nossa obra.
Não é justo depreciar os Antigos, pois “a letra mata, mas o espírito
vivifica”. Essa palavra, dirigida pelo Senhor aos que o interrogavam sem
reflexão, se aplica a tudo o que disseram os Antigos que se ocuparam com
essas matérias. Quem conhece a arte oculta da alquimia lhes disse: “Como
devo entender agora a transmutação? Como a água e o fogo, inimigos e
contrários um ao outro, opostos por natureza, se reuniram no mesmo corpo,
por concórdia e amizade?, etc. Ó inacreditável mistura! De onde vem essa
inesperada amizade entre inimigos?”.
Também aqui os oráculos de Apoio declaram a verdade, pois eles fa­
lam do túmulo de Osíris. Ora, o que é o túmulo de Osíris? E um morto
amarrado e envolto em faixas, tendo apenas o rosto descoberto. O oráculo
diz, ao designar Osíris: “Osíris é o túmulo estreitamente fechado, ocultando
todos os membros de Osíris e não deixando ver aos mortais senão seu rosto.
Pois Osíris é o princípio de toda liquidez; é ele que opera a fixação nas esfe­
ras do fogo. É assim que ele amarra e encerra o Todo do chumbo”.
Olimpiodoro (séc. V), “Sobre a Arte sagrada”,
in Mareeiin Bcrtliclot, Coleção dos antigos alejitimistasgregrs,
t. IH, p. 102-103.
*
* *
JEj is o mistério dos filósofos; é aquele que nossos pais lhes juraram

não revelar nem divulgar; é aquele que diz respeito à espécie divina e à
ação divina. Com efeito, é divino o que, pela união da divindade, torna
as substâncias divinas; é o meio pelo qual o espírito toma um corpo, os
seres mortais adquirem uma alma e, recebendo o espírito que sai das
substâncias, são dominados e se dominam entre si. O espírito tenebro­
so, cheio de vaidade e de preguiça, quando domina os corpos, impede-
os de ser branqueados e de receber a beleza e a cor que o Criador lhes
faz revestir. Assim, os corpos, o espírito e a alma são enfraquecidos, por
causa da sombra estendida sobre eles.
Mas quando o espírito tenebroso e fétido é rejeitado, a ponto de não
deixar nem odor nem cor sombria, então o corpo se toma luminoso e a
Nigrum Nigrius Nigro (Obra ao Negro) 425

alma se regozija, assim como o espírito. Enquanto a sombra escapou


do corpo, a alma chama o corpo que se tornou luminoso e lhe diz:
“Desperta do fundo do Hades e levanta-te do túmulo, acorda ao sair
das trovas. De fato, revestiste o caráter espiritual e divino, a voz da
ressurreição falou, a preparação de vida está introduzida em ti”. Pois o
espírito se regozija por sua vez no corpo, assim como a alma no corpo
em que ela reside. Ele corre com uma alegre precipitação para abraçá-
lo, abraça-o e a sombra não o domina mais, desde que ele alcançou a
luz; o corpo não suporta estar separado do espírito para sempre, c ele
se regozija na morada da alma, porque, depois que o corpo foi oculto
na sombra, ele o encontrou repleto de luz. E a alma se uniu a ele, desde
que se tornou divino em relação a ela e que nela ele habita. Pois reves­
tiu a luz da divindade [e eles foram unidos], e a sombra escapou dele,
e todos foram unidos na ternura: o corpo, a alma e o espírito. Eles se
tornaram um; e é nessa [unidade] que o mistério se ocultou. Por causa
de sua união o mistério se realizou. A morada foi selada, e [então] se
ergueu uma estátua plena de luz e de divindade. Pois o fogo os uniu e os
transmutou, e eles saíram de seu seio.
Livro dc Comanus, tn Marcclin Bcrthclot,
Cclffão dos antigos aLjuimistas grrgos,
t. III. P. 283-284.
*
* *
IVLeu Filho, o que nasce do Corvo é o começo dessa Arte. Eis, ocul­

tei o que lhe disse e lhe retirei sua clareza por um circuito de palavras,
e disse que o que está unido estava desunido, e o que está muito próxi­
mo estava distante. Asse, portanto, essas
Matérias, e em seguida cozinhe-as pelo
espaço de sete dias, de 14 e de 21, na­
quilo que vem do ventre dos cavalos.
Então o Dragão* se faz, o que come
suas asas e mortifica a si mesmo. Depois
disso, coloque-o em um pedaço de teci­
do e no fogo do forno, e vigie cuidado­
samente para que ele não saia do vaso.*
E saiba que os tempos da Terra es­
tão na Água, e que a Água sempre se faz,
Mortificação do composto:
até que você coloque a Terra sobre ela.
Johann Daniel Mylius,
Philosophia reformata, 1622.
426 Filosofar pi:lo Fogo

Quando a Terra for então reduzida em Água e queimada, pegue


seu cérebro e triture-o com Vinagre muito forte e a Urina das crianças,
até que ele fique escuro.
Quando isso tiver sido feito, seu Magistério vive na podridão, as
nuvens negras que nele estavam antes de morrer serão mudadas e con­
vertidas em seu corpo. Ora, sendo refeito da maneira como descrevi, cie
morre uma segunda vez, e depois recebe a vida, assim como eu disse.
No mais, nós nos servimos de Espíritos, e em sua vida, e em sua
morte. Pois, assim como ele morre quando seus Espíritos lhe são reti­
rados, ele também se reanima quando lhe são devolvidos, e com isso se
regozija.
Se você consegue chegar até essa etapa, eu lhe garanto que terá a
satisfação de ver o que procura. E digo-lhe aqui os sinais que alegram
aqueles que os veem, e o que fixa seu corpo.
Ora, ainda que seus antecessores tenham chegado por essa opera­
ção ao que tinham se proposto a fazer, eles, no entanto, estão mortos.
Eu já lhe mostrei a realização ou o fim da obra', abri o Livro aos
que sabem, selei aos outros as coisas que lhes são ocultas e desconheci­
das, adicionei e incorporei as que estão separadas e que tinham figuras
diferentes, e uni os espíritos. Receba esse Dom das mãos de Deus.
Os Sete Capítulos atribuídos a Hermes,
in William Salmon, Biblioteca dos Filósofos Alquímicos,
1.1, p. 46-51.
*
* *
B onellus diz: Já aprendemos com você, Pitágoras, que todas as coi­
sas vivem e morrem pela vontade de Deus. Portanto, em consequência,
essa natureza da qual retiramos a um idade, e que abandonamos durante
noites, se assemelha então a um morto, pois nesse exato momento ela
está abandonada e convertida na obscuridade, assim como um homem
se torna pó em seu túmulo. Isso feito, Deus lhe devolve sua alma e seu
espírito e, despojada de sua enfermidade, essa coisa é reconfortada e
aperfeiçoada após a corrupção, da mesma maneira o homem se torna
mais forte depois da ressurreição, e mais jovem do que quando estava
neste mundo. É por isso que você precisa, filho da doutrina, queimar
sem medo essa coisa até que ela se torne cinza. Saiba então que você re­
alizou uma boa mistura, graças ao que essa cinza recebe o espírito, e se
embebe desse humor a ponto de finalmente se revestir de uma cor mais
bela do que tinha antes. Portanto, filho da doutrina, considere o fato de
Nigrum Nigrius Nigro (Orra /\o Negro) 427


[ Cavut Caput Corin
Putrc - a la c
Plulo - IcMíi

A Nigredo simbolizada pelas cabeças do corvo: Johann Daniel Mylius,


Anatomia Auri, Frankfurt, 1628.
428 Filosofar pf.lo Fogo

que os pintores só podem se servir de todas as suas cores se as reduzi­


rem a pó. O mesmo vale para os Filósofos que não podem compor suas
medicinas com ingredientes doentes, e por isso devem transformá-los
em cinzas, das quais algumas são cozidas e reduzidas em cinza, en­
quanto outras são trituradas com a mão, e o mesmo fazem os que con-
feccionam sujeitos* mais importantes. Por isso, se você compreende o
que foi dito, saberá que de todo modo eu disse a verdade. E por isso
que lhe prescrevi queimar esse corpo e reduzi-lo a cinza. Pois, se você
o rege sutilmente, muitas coisas nascerão dele, e de uma pequena quan­
tidade de cada parte surgirá um grande bem.
A Assembleia dos Filósofos (Turba Philosophorum, scc. XII),
in Jcan-Jacqucs Manget,
Bibliotheca Chemiea Curiosa, t. 1, p. 454-455.
*
* *

s discursos mais discretos são sempre ambíguos, e seus escritos


sérios, entremeados de certa obscuridade, são tão bem entendidos nes­
se juramento solene que sua vontade não é mais bem expressa pelos
primeiros do que pelos outros. E é por isso mesmo que Rosinus, nesse
ponto em harmonia com os Filósofos, não explica no seguinte enigma
a operação da Obra senão pela face de uma pessoa morta que ele diz
ter visto mutilada em vários lugares
de seu corpo, e com todos os seus
membros divididos. Mas o grosso
da massa e o tronco do corpo, que
ainda permanecia inteiro, pareciam
brancos como o sal; sua cabeça se­
parada das outras partes do corpo
era de um belo dourado, perto da
qual estava um homem muito negro,
com membros desconjuntados, com
um olhar calmo, mas uma aparência
assustadora, que se mantinha em pé,
com o rosto virado para esse corpo
morto, tendo em sua mão direita uma
faca bem afiada dos dois lados e sem
r- , nenhuma marca de sangue, que, cruel
e sempre alimentada pela carnificina
Cena de desmembramento: Salomon e pela efusão do sangue humano, ele
Trismonin., O Velo de Ouro, 1613. pegava para seus grandes embates
Nigrum Nigrius Nigro (Orra /\o Negro) 429

e para as mais voluptuosas delícias de seus prazercs: a morte violenta e


o assassinato voluntário, ainda que a sangue-frio, de qualquer espécie de
pessoa. Ele mostrava em sua mão esquerda a forma de um bilhete em que
estas palavras estavam escritas: Eu te matei e despedacei teu corpo, para te
beatificar e te fazer reviver uma vida mais longa e mais feliz, que tu nào
sentiste diante da morte que conspirei contra ti pelo fio de minha espada,
mas ocultarei tua cabeça, para que os humanos nào possam te conhecer, e
nào te vejam mais com o mesmo equipamento mortal que tu tinhas antes,
e misturarei teu corpo cm um vaso de Terra, no qual o enterrarei, para que,
estando em pouco tempo podre, ele possa multiplicar muito mais e trazer
maior quantidade de melhores frutos.
SalomonTrismonin. O IHo de Chtrt
(Auman Irllus, 1598),
trad. fr. 1612, p. 69-72.

*
* *

bserve então que, quando nosso composto começa a ser impreg­


nado com nossa Agua permanente, então ele se tornou inteiramente
Seiva fundida, e se tornou negro como carvão; nesse estado ele é cha­
mado a Seiva negra, o Sal queimado, o Chumbo fundido, o Latão* não
limpo, a Magnésia* e o Melro de João; pois durante essa operação ve­
mos uma espécie de nuvem negra, voando pela região média do vaso *
no fundo do qual permanece a Matéria, fundida na forma de Seiva, que
se dissolve totalmente. Ao falar dessa nuvem, Jacques du Bourg Saint
Saturnin exclama: Ó bendita nuvem que voa em nosso vaso! Esse é o
eclipse do Sol, de que fala Rai-
mond Lulle.
Quando essa massa está
assim enegrecida, ela é chama­
da morta e privada de sua for­
ma; o corpo também é chamado
morto, e distante de sua armadi­
lha, sua alma estando separada
dele. Então a umidade se mani­
festa na cor Prata-viva, negra e
fétida, que antes era seca, bran­
ca, perfumada, ardente, depu­ Em uma paisagem de desolação vela a
rada de Enxofre pela primeira chama do espirito: Basile 1'alentin,
operação, e é preciso recomeçar Claves XII Philosophiíe, séc. XK
430 Filosofar pi:lo Fogo

a depurá-la pela segunda operação. Esse corpo se encontra privado de


sua alma, que ele perdeu, de seu esplendor e dessa maravilhosa lucidez
que primeiramente ele tinha, e agora ele está negro e feio; o que faz
com que Geber o nomeie por sua propriedade, Espírito fétido, Negro
branco ocultamente, e Vermelho manifestamente, e ainda Água viva
seca.
Essa massa, assim negra ou enegrecida, é a chave, o começo e o
sinal de uma perfeita maneira de operar no segundo regime* de nossa
Pedra preciosa. Por isso Hermes diz, ao ver esse negro: Acredite que
você operou usando a boa via.
Portanto, esse Negror mostra a verdadeira maneira de operar; pois
a massa tornando-se disforme, e corrompida de verdadeira corrupção
natural, dessa corrupção surge uma geração de nova disposição real
nessa matéria; a saber, aquisição de uma nova forma, lúcida, clara, pura,
resplandecente, e de um odor suave e doce.
Bcrnard 1c Trévisan, A Palavra abandonada
(Verbum dimissuni scc. XV),
in William Salmon, Biblioteca dos Ftlósojos Alqttítnicos,
t. II, p. 426-428.

*
* *

ui começa o capítulo relativo à putrefação, ponto cardeal sem o


qual nem a terra preparada nem a semente podem ser multiplicadas;
esta deve, por outro lado, ser efetuada unicamente com a ação contínua
do calor no corpo, e não manualmente. Pois todos os corpos não podem
ser alterados sem ela, como o próprio Cristo testemunha quando diz:
se o grão de fermento não morre na terra, ele não produzirá nenhum
crescimento. Da mesma forma, se a matéria não se putrifica, ela não
pode de nenhum modo ser corretamente alterada, nem os Elementos
naturalmente divididos, nem sua conjunção ser absoluta. Para que você
não corra o risco de agir precipitadamente, compreenda de forma inte­
ligente os princípios da putrefação antes de empreender essa obra.
A putrefação pode ser definida desta maneira, segundo os Filóso­
fos: é a condenação à morte dos corpos, e em nosso composto a divisão
de três coisas, os corpos destruídos chegam à corrupção e em seguida
estão aptos para voltar à geração. Pois todas as coisas engendradas nas
terras o são indubitavelmente pela rotação distante dos céus; e, por isso,
misture seus elementos e equalize-os sabiamente. Mantenha-os em um
calor temperado, prestando muita atenção, para que um calor excessivo
Nigru.u Nigmus Nigro (Obra ao Negro) 431

não os reduza em cinzas, em um pó seco de um vermelho castanho e


inútil, mas em um pó negro semelhante à cabeça do corvo. Conserve
tudo com cuidado em um calor úmido, em um banho quente ou nos ou­
tros em nosso adubo, durante um tempo correspondente à passagem de
90 noites. Logo depois, o negror será para você o sinal de que essas coi­
sas se prepararam para a putrefação; em seguida, depois do surgimento
de diversas cores, você facilmente conduzirá a uma brancura perfeita,
e sua semente será então multiplicada em sua própria natureza. Faça
com que elas se abracem e se cortejem mutuamente para que, rolando
de baixo para cima e de cima para baixo, brinquem como crianças, e,
quando seus tecidos forem uma loção fétida, então a mulher deverá
lavar, ela que muitas vezes cai enfraquecida em um abatimento da alma,
e no final morre com todos os seus filhos e irá ao Purgatório para ali
ser purgada do pecado original. Quando estiverem ali, suas penas serão
insensivelmente e pouco a pouco agravadas por um calor em constante
aumento, e que não deve jamais cessar. Que então seja bem apropriado
para esse trabalho o forno que os sábios chamam Atanor, conservando
um calor igual, já que ele é temperado, e assim a matéria se putrifica
naturalmente.
Gcorge Ripley, O Livre das 12 Pcrtat
(Líber duodrnm Pertarum, 1591),
in Jcan-Jacques Mangct, Biblivtbeeii Chetnira Curwia,
c. II. p. 280.
*
* *

Sol e sua sombra finalizam a Obra.


Clara chama do polo, o Sol nào penetra a densidade dos corpos:
Portanto lhe permanece oposta a sombra de todas as coisas:
Com certeza mais vil do que elas, nem por isso é menos utilizada
Pelos Astrónomos, a quem ela oferece muitas comodidades.
Porém mais numerosos são os dons que aos Sábios o Sol outorga que,
Com sua sombra, oferece ao trabalho da arte o Ouro de uma realização.

Juntos, essa sombra e o Sol fazem o dia e a noite, o que o Sol não
poderia realizar sozinho, ele, cuja tarefa é iluminar todos os lugares e cor­
pos que lhe estão opostos, e nào apenas fazer sombra, se não for por aci­
dente em sua ausência. Da mesma forma, o Sol filosófico faz o dia com
432 FlI.OSOFAR PELO FOGO

sua sombra, isto é, a luz, e a noite


ou trevas, ou seja, o Latão ou a
magnésia* cuja sombra deve ser
destruída e queimada com um
remédio ígneo, assim como apa­
rece nos propósitos de Demó-
crito no início do Livro três de
A Tábua de Ouro.™ A utilidade
das sombras em Astronomia é
tão grande que, sem elas, essa
ciência poderia apenas ser fina­
lizada. Os alquímicos também
atribuíram às suas sombras o
"O Sol e sua sombra terminam a obra fato de que sua arte chega à per­
Michael Maier, Atalanta fugiens, 1618, feição. De fato, o que seria esse
emblema XLV. Sol sem sua sombra? O que é o
badalo sem o sino: é claro que
ele dá o impulso inicial para que seja produzido o som, mas somente
o sino o propaga; ele é o plectro, o sino é o instrumento; ele é a língua, o
sino é a vasta boca. Por isso a sombra é uma coisa muito útil, ainda que
próxima do não Ser: assim é a sombra dos Filósofos, que é o Negro
mais negro do que o negro, como eles a chamam, ou mais vil do que a
alga, não por si mesma, mas segundo a opinião dos homens e do ponto
de vista da riqueza. Com efeito, o que de mais útil do que o fogo, o que de
mais precioso do que a água, o que de mais amável do que a terra que
dá flores e todas as coisas amáveis, o que de mais agradável do que o ar,
cuja rarefação priva todas as coisas de poderem ser agradáveis? E, no
entanto, oferecidos à disposição dos homens em suas esferas próprias e
amplamente acessíveis, esses elementos são considerados como coisas
muito vis, em virtude de uma inversão da imaginação. São até mesmo
comumente julgadas a sombra vulgar e a sombra filosófica. Aqueles
que ficam por muito tempo no seio das sombras subterrâneas perdem
a visão e a acuidade dos olhos, quando são subitamente conduzidos à
clara luz do Sol; da mesma forma, aqueles que demoram e operam so­
mente na sombra filosófica, e não lhe acrescentam o Sol, são privados
de julgamento dos olhos do espírito: e ficarão frustrados por não ter
sucesso. Quando ao meio-dia o sol está em seu ponto culminante no
céu, o calor é maior e a sombra menor; aqui igualmente a sombra é
diminuída pelo aumento do calor, e inversamente. Por isso é necessário
187. Alusão à obra de Michael Maier, Synibola aurece Mensce duodecim Nationum (1617).
Nigrum Nigrius Nigro (Obra ao Negro)
433

começar [a obra] em Capricórnio, quando, partindo do lado meridio­


nal, o Sol novamente gira em direção ao nosso polo; e a primeira
operação será realizada até Aries: então começa a obra de mulheres,
até Leão; depois um trabalho sai do outro, até que o ano, como uma ser­
pente, pegue sua cauda com sua cabeça, isto é, conheça sua realização.
Michacl Maicr, AtaLinta fugitiva (Atalantafugtais. 1618).
in Tripus aurnis, p. 189-191.
*
* *
I I iram: Assim como a África torna os homens negros, como os etío­

pes ou os escravos, a Obra filosófica produz o mesmo efeito?


Salomão: Quando o calor do Sol está ativo, ele queima a pele dos
homens e atrai para ela as superfluidades interiores. Da mesma for­
ma observamos isso se produzir naqueles que, obrigados a permanecer
por muito tempo sob o calor estival do Sol, expõem aos seus raios os
membros nus e apresentam no espaço de aproximadamente um mês um
negror de pele comparável ao da seiva, ao passo que antes sua epiderme
era branca. Da mesma maneira, quando o calor de nosso Sol começa a
operar, ele atrai os elementos heterogéneos para a superfície e engen-
dra o negror, que é chamada nossa ter­
ra de Etiópia. Ripley diz com efeito no
Tratado do Mercúrio: Nosso Mercúrio,
e nosso espírito de vida, é o que é ex­ L 1
traído dessa terra bendita da Etiópia.
Os Filósofos mencionaram esse calor
em mil ocasiões. Assim O Rosário: É
permitido que o Azoto apareça branco
na primeira mistura ou conjunção, e
em conformidade com ele os elementos
femininos vencem por sua cor, e na pu-
trefação ocorre o mesmo, os dois per­
dem seu negror graças à ajuda do fogo.
Pelo fogo, que age no calor úmido, o
d ...

Um Etíope: ms. séc. XVII (University


negro apodrece e produz a tintura, que
por isso deve ser preservada. E Ar- ofGlasgow Library).
naud: quando ele primeiramente perde
seu negror, dizemos que é a chave da Obra, pois não está ausente do
negror, etc. O espelho: por isso. meu caro filho, quando estiver traba­
lhando, faça de maneira a obter primeiro a cor negra, e então estará
434 Filosofar pelo Fogo

certo que você putrifica e caminha na via correta. E da mesma maneira


no Rosário'. De fato, como diz Avicena no escrito sobre os humores: o
calor que age em um corpo úmido engendra antes o negror, como isso
é visível na cal, que para o vulgar é nomeada Haecille.
Michacl Maior, A Semana filosófica
(Seplimana Philosophiea, 1620), p. 221 -222.
*
•k k

corrupção está muito mais próxima do princípio da geração do que a


privação, pois ela está na origem do movimento que dispõe a matéria para
a geração mediante os graus sucessivos de alteração. A privação, por outro
lado, não age, não executa nada na obra da geração, ao passo que a corrup­
ção coloca em movimento a matéria e a prepara para que ela se torne capaz
de manter a forma. Assim como uma mediadora, ela intervém então para
que a matéria satisfaça mais facilmente o desejo da natureza e para que,
com sua assistência, ela chegue ao acoplamento da forma.
É por isso que a corrupção é a causa instrumental e necessária da
geração, ao passo que a privação não passa de pura carência do princípio
ativo e formal, comparável às trevas que cobrem a face do abismo: ou seja,
da matéria informe e tenebrosa.
Jcan d’Espagnet, A Filosofia natural restituída
(Enchiridion Physicir restituía, 1623),
in Jcan-Jacqucs Mangct, Bibliotheca
Chenúca Curiosa, L II, p. 631.
*
* *

e você trabalhou com o Sol e a Lua para neles procurar nosso Enxofre,
examine atentamente se sua matéria é semelhante à da massa inchada, à
água fervente, ou melhor, à seiva derretida; pois nosso Sol, assim como
nosso Mercúrio, tem na obra do sol vulgar uma imagem emblemática jun­
to com nosso Mercúrio. Seu forno* está aceso com o fogo alto, coloque
durante 20 dias sua esperança no calor fervente, durante esse tempo você
observará diversas cores e, lá pelo fim da quarta semana e com a condição
de que o calor tenha sido contínuo, você verá um verdor agradável que
não desaparecerá durante dez dias ou quase. Alegre-se, então, pois logo
certamente você verá tudo negro como carvão, e todos os membros do
seu composto serão reduzidos a átomos. Essa operação, com efeito, não é
Nigrum Nigrius Nigro (Obra ao Negro)
435

nada mais do que a resolução do fixo no não fixo, para que ambos unidos
não façam senão uma matéria, em parte espiritual e em parte corpórea. É
por isso que o Filósofo diz: “Pegue um cão de Khorassan e uma cadela
da Arménia, cruze-os, e eles engendrarão um filhote da cor do céu”. Pois
essas naturezas são transformadas por uma breve decocção em uma sopa
semelhante à espuma do mar, em que uma névoa espessa tinge dc uma
cor lívida [...]. Por isso, quando tiver visto em seu copo as naturezas se
misturarem simultaneamente como sangue coagulado ou queimado, esteja
certo de que a fêmea sofreu o abraço do macho. Espere então dez dias, a
partir da primeira desidratação dc sua matéria, para que as duas naturezas
sejam transformadas em uma mistura gorda; elas então circularão juntas
como se fossem uma nuvem espessa ou a espuma do mar, como já foi
dito, cuja cor será das mais escuras. Considere então garantido que a pro­
genitura real foi concebida, pois você perceberá a partir desse momento
no fogo e nas paredes do vaso* vapores verdes, amarelos, negros e azuis.
Estes são ventos frequentes durante a formação dc nosso Embrião, c que é
preciso guardar com cuidado para que não escapem e para que a obra não
seja destruída. Preste também atenção para que o odor não se exale por
alguma fissura, pois a força da Pedra sofreria um prejuízo considerável.
Essa é a razão pela qual o Filósofo ordena conservar cuidadosamente o
vaso com sua ligadura, e seja cuidadoso para não operar de forma alguma
de maneira descontínua, de não deslocar nem abrir o vaso, ou interromper
em nenhum momento o cozimento, e continuar a cozinhar até que assista
ao desaparecimento do humor, o que é realizado durante 30 dias. Alegre-
se então, e esteja certo de estar engajado na via justa. Vele então sobre
sua obra, pois talvez verá, duas semanas após esse momento, toda a terra
se tomar seca e extremamente negra. Foi porque aconteceu a morte do
composto: os ventos cessaram, e todas as coisas se entregaram ao repouso.
Aí está o grande eclipse do Sol e da Lua, durante o qual nenhum dos dois
astros brilhará sobre a terra, e o mar desaparecerá. Então, o Caos terminou
e surgirão, ao comando de Deus e na ordem que lhe é própria, todos os
milagres do mundo.
Eyrénée Philalèthc,
A Entrada aberta ao palácio fechado do Rct
(Introitus apcrtus ad occlusum Regis Palatiutn, 1645),
in Jcan-Jacques Mangct, Bibltothcca Cbeniica Curiosa,
t. II. p. 672.

*
* *
436 Filosofar pelo Fogo

putrefaçao é a corrupção da matéria, ou do Mercúrio filosofal, que


se faz pelo fogo lento, pois o fogo forte consome e destrói; o fogo lento,
ao contrário, é chamado o fogo da regeneração. Mas, antes que a gera­
ção possa ser feita, é preciso necessariamente que a corrupção aconteça
antes; então, para fazê-la bem, é preciso saber que, quanto mais o tempo
for prolongado, mais ela será excelente, e levando-se em consideração
que aqueles que a precipitam, aumentando o fogo, não fazem nada de
bom, e jamais podem ter sucesso; é por isso que um Filósofo dizia:
Onmis praecipitatio a diabolo.™
Quando se tem o grau do fogo, e que o ovo
está bem selado com o selo* de Hermes, de for­
ma que nada respire, isto é, que alguns espíritos
da matéria não possam fugir, a contar do dia em
que se começa a trabalhar essa matéria ou esse
Mercúrio, quando está no ovo, no final de 40 ou
42 dias, ou talvez 52 no mais tardar, o negror
começa a surgir, e é o sinal de que a putrefa-
ção está acontecendo e de que o Artista está no
yela putrefaçao ele morre caminho correto. Os filósofos lhe deram vários
como corpo, por uma
nomes, e o chamaram Ocidente, trevas, eclipse,
vegetação nova ele nasce
como espírito. lepra, cabeça do corvo, morte, e a mortificação
do Mercúrio, para depois ressuscitar mais claro,
mais nítido, mais puro e mais forte do que antes, e assim ele recebe e
adquire a virtude mineral do Sol e da Lua, que ali se unem de forma
inseparável, e que os Sábios nomearam o casamento filosofal, e o anel
do soberano Elo.
Dessa união do macho e da femea de mesma natureza e de mes­
ma espécie (pois na geração de cada coisa é necessário ter seu seme­
lhante) acontece a fecundação, ou sublimação nos elementos leves, de
forma que essa terra negra, pelas contínuas circulações que acontecem
no ovo e que sempre recaem sobre esse corpo morto que é chamado
pelos Sábios o corpo, a terra, o fixo e o fermento; e a parte que se eleva
e que é a espiritual e a mais sutil, eles a nomearam a parte volátil, que
recaindo faz por si mesma as embebições e calcinações necessárias, e
que, quanto mais se eleva, mais ela se sutiliza, e também calcina melhor
esse corpo, e essa calcinação é a purgação do Mercúrio, e a congelação
é uma fixação dos espíritos; de forma que depois de um longo tempo,
de negro imundo que ele era, parece que foi limpo, purgado, purificado
188. Toda precipitação vem do Diabo.
Nigrum Nigrius Nigro (Obra ao Negro) 437

e ensaboado, pois está muito branco, é por isso que os Mestres da Arte
lhe deram os nomes de lavações, purgações, purificações, ensaboamen-
tos e abluções. No início a água aparecia, pois O Mercúrio é água, mas
quando essa água é espessa e que o negro se revela, é então a terra negra
que se revela.
Constata-se então que, por essa putrefação, acontece a separação
do puro e do impuro. O que a Natureza não pôde fazer, mas é ao Artista
que esse poder é devolvido, o que, sendo bem feito, a matéria não pode
mais permanecer em sua espécie nem em sua forma, mas bem dentro de
seu gênero, e assim a matéria está disposta a receber a forma de todos
os metais, e é uma operação, a única que a dispõe à separação de todas
as partes que a compõem, não sendo de forma alguma permitido ao
Artista, nem mesmo aos Anjos, destruir o gênero sem uma particular
permissão de Deus,, que assim o quis desde o início e desde a criação
de todos os seres.
Hcinrich von Bastdorff,
O Fto AriaJnc (1965), p. 96-99.
ir

* *
H ntão qual é a condição primordial, essencial, para que uma geração

qualquer possa se manifestar? Respondemos a vocês: a ausência total


de toda luz solar, mesmo difusa ou tamisada. Olhem cm volta dc vo­
cês, interroguem sua própria natureza. Não veem que, no homem c nos
animais, a fecundação e a geração se operam graças a certa disposição
dos órgãos, em uma obscuridade completa, mantida até o dia do nasci­
mento? É na superfície do solo - em plena luz - ou na própria terra - a
obscuridade - que os grãos vegetais podem germinar e se reproduzir? É
durante o dia ou à noite que cai o orvalho fe­
cundante que os alimenta e os vitaliza? Vejam
os cogumelos, não é durante a noite que eles
nascem, crescem e se desenvolvem? E quanto
a vocês, não é à noite, no sono noturno, que
seu organismo repara suas perdas, elimina
seus dejetos, reforma novas células, novos te­
cidos no lugar daqueles que a luz do dia quei­
mou, gastou e destruiu? Mesmo o trabalho de Eis o ponto culminante
digestão, de assimilação e de transformação do Magistério a Jim de
dos alimentos em sangue e em matéria orgâ­ que a sombra mortal seja
nica só se realizam no escuro. Querem fazer afastada do raio.
438 Filosofar pelo Fogo

uma experiência? Peguem alguns ovos fertilizados e deixem-nos chocar


em ambiente bem iluminado; no final da incubação, todos os ovos con­
terão embriões mortos, mais ou menos decompostos. Se um pintinho
acabar nascendo, ele será cego, frágil e não viverá muito. Essa é a
influência nefasta do sol, não na vitalidade dos indivíduos constituídos,
mas na geração. E não imaginem que é necessário limitar somente aos
reinos orgânicos os efeitos de uma lei fundamental na natureza criada.
Mesmo os próprios minerais, apesar de suas reações menos visíveis,
estão sujeitos a ela, bem como animais e plantas.
Fulcanclli, O Mistério das catedrais,
(1964), p. 172-173.
Nigrum Nigrius Nigro (Obra ao Negro) 439

Bodas alquimicas do Rei Sol e da Rainha Lua: Jean Daniel Mylius,


Anatomia Auri, Frankfurt, 1628.
17

Quando os
Opostos Se Unem
A Pedra branca começa a aparecer acima da superfície das
«águas ao pôr do sol, escondendo-se até a meia-noite, para
depois cair na profundeza. A vermelha opera na verdade
de maneira oposta, já que ela começa a se elevar acima das
águas ao nascer do sol até o meio-dia e em seguida cai na
profundeza.
Consilium Conjuga (1566), in Jcan-Jacqucs Manget,
Bibhotbcca Chenuca Curiosa, t. II, p. 237.

Poucas configurações alquimicas atraíram tanto a atenção e se­


duziram a imaginação quanto a famosa “coincidência dos opostos”
(coíncidentia oppositorum) da qual Cari Gustav Jung relembra, com
razão, que permanece um mistério.'89 Nenhum raciocínio lógico,
com efeito, deixando de lado que uma mutação genérica da identidade
possa zombar do principio de não contradição em favor de uma ter­
ceira possibilidade, pode dar conta dessa estranha união, condição
de uma unidade superior que permaneceu paradoxal (Hermafrodita,
Rebis). Pois é na e pela morte (Nigredo) que os dois parceiros desse
enfrentamento amoroso, mas fúnebre, preparam sua hora de glória co­
mum. E, da mesma maneira, é a partir do mais corrosivo veneno que
será preparado o remédio (teríaca) que supostamente acabaria com os
males endémicos de que sofre o gênero humano.
Por isso, todas as figuras que simbolizam essa união encarnam, à
sua maneira e no momento oportuno, o mistério de um entrecruzamento

189. Cari Gustav Jung, Mysterium conjunctionis, trad. fr. Paris, Albin Michel, 1980 e 1982,
2 vol.
-440-
Quando os Opostos Se Unem
441

das qualidades, supondo, para ser (operativo, que tanto um quanto outro
dos parceiros tenham renunciado ao seu “si ” vulgar. Se Rei
„ j e Rainha,
Sol e Lua são as representações mais espetaculares do enfrentamento
terrestre e celeste entre Enxofre e Mercúrio, de outros corpos a cor­
pos não menos mortíferos (Aguia/Leão, Lobo/cão), representam com
a mesma força o estado efervescente e sacrificial de uma Matéria cuja
transformação engaja o destino de toda a Criação: Queimar pela água
e lavar pelo fogo, matar o vivo e ressuscitar o morto, como ensina O
Rosário dos filósofos (séc. XIV), é apenas uma maneira de dizer, desta
vez operativa, que “o que está em cima é como o que está embaixo ”
(Tabula Smaragdina).

Mercurio/enxofre
C^ombates, cobre; combates, mercúrio; unem o macho à fcmea; este

é o cobre que recebe a cor vermelha e o ios* tintorial dourado; esta é


a decomposição de Isis [...]. Combates, cobre; combates, mercúrio; o
cobre está destruído, tornado incorpóreo pelo mercúrio, e o mercúrio
está fixado por sua combinação com o cobre.
Srcphanus de Alexandria (séc. VII),
in Marcelin Bcrthelot. Introdução ao estudo
da Alquimia dos Antigos e da Idade Média, p. 292.
*
* *
A primeira prâ.ie. der.e preaee.e rra.adp „ío P see5o reapir e c.

zinhar nosso Mercúrio e nosso Enxofre juntos, os quais os Filósofos


esconderam
’ sob' esses nomes, para que os Ignorantes — não> compreen-
dessem suas intenções; eles o chamaram Mercúrio rei rei, porque ele é o
mais excelente dos metais, e tem uma potência
oculta de coroá-los como ele, a qual em nossa
arte é executada. E também leão, pois ele é o rei e
o mais forte dos animais, assim como o ouro é o 3
mais soberbo e precioso dos metais, e já que ele
tem a quinta casa do céu que é o signo do leão,
que então é chamado Sol, participando de suas
excelentes qualidades, deram-lhe o nome da casa
do Leão. Eles o chamam latão,* pois ele termina Casamento de duas
pela cor do ouro e tem um enxofre avermelhado. gomas, a Branca e a
Vermelha.
442 Filosofar pelo Fogo

Eles chamaram o Mercúrio Dragão* voador


e pernicioso, pois é um veneno muito mortal, ou
seja, tão forte que pode matar o mais nobre metal
ao mordê-lo, isto é, o ouro quando é dissolvido;
voador, pois não pode se submeter ao fogo, mas
parte em fumaça porque é pernicioso e é sempre
flamejante e caloroso* e, principalmente, porque
escorre sem parar, seguindo uma forma redonda
e deslizante que denota seu perpétuo movimento,
Case a goma com a goma se não for bem fechado e não puder encontrar a
em um verdadeiro saída. Águia* voadora, porque a águia é o pássa­
casamento e as torne ro que voa mais alto e é dedicado a Júpiter que
semelhantes à água fresca. carrega o fogo sagrado, e é anunciadora de bons
augúrios e de grandes novidades, assim é nosso mercúrio, de todos os
espíritos metálicos é o mais leve, e se converte mais cedo em fumaça.
Dedicada ao Sol que é o ouro dos metais, e para lhe levar as novidades
de todos os sujeitos, que, reduzidos ao mercúrio, podem se tornar ouro,
e assim todos podem ser Reis e ser levados ao céu de seu Rei, ainda que
o Sol de seu quarto Céu possa por si mesmo subir até a primeira e a
mais alta das esferas, isto é, à sua medicina perfeita, a mais excelente de
todo o alto, e excelente obra que a Natureza poderia realizar sob o Céu
da Lua, a qual eles chamaram mãe de sua obra, e o Sol, o pai, querendo
dizer que o Sol é o metal do qual o esperma e o enxofre de nossa pedra
procedem, pois, como o Sol é quente e seco em todas as suas obras e
ações e que o fim da Influência de seus raios serve apenas para tirar as
umidades elementares e ressecá-las, por isso nosso Sol em seu Céu*
metálico não pretende senão ressecar e tirar o humor dos metais imper­
feitos aos quais está reunido devida e filosoficamente para elevá-los em
direção a seu Céu.
Hcnri de Linchaur,
A Aurora (scc. XVI), ms. n. p.
*
* *

sim, a conjunção é quádrupla. A primeira, a do marido e da mu­


lher, é a conjunção da totalidade do Mercúrio com seu próprio corpo
(que desde muito tempo era chamado Terra), que é a operação que pre­
cede a putrefação e é chamada casamento. A segunda é a conjunção do

*(N.T.:) No original está chalerant. palavra inexistente atualmente, o autor sugere caloroso.
Quando os Opostos Se Unem
443

fogo com a terra, que jamais se produz antes da criação do Enxofre


Pois, após os enxofres terem sido convertidos em brancura, esse Enxo­
fre recebe sua tintura vermelha ou alma, e é então que advém a terceira
conjunção. Em um primeiro momento eia é a do espírito e do corpo
e cm seguida se torna a do espírito, da alma e do corpo, que é a per­
feição da Pedra. A terceira conjunção se produz com o novo Mercúrio
vermelho, que é chamado Cibação, Contrição, Enceração. A quarta c a
conjunção do Enxofre (ou da Pedra) com seu fermento oleoso para que
a Pedra entre em fermentação [...].
Quanto à primeira conjunção da água com a terra, é preciso ouvir
Maria no livro Rosinus as Euthiciam: congelem, diz ela, a terra com
uma água pesada. Isso se faz na primeira composição, isto é, quando o
espírito e a terra estão na presença do Enxofre. Em relação à segunda,
ou seja, a conjunção do fogo com o Enxofre, ela diz o seguinte: essa
água de Enxofre é a Água viva que liquefaz e coagula todas as coisas;
as que ela abandonou em primeiro pela decocção e que em seguida coa­
gula, sem que se misture nada de estrangeiro. E saibam que nessa água
está a totalidade da tintura misturada.
Sobre isso Aristóteles disse em seu Pequeno tratado-, pegue então
seu filho querido e una-o de maneira equilibrada com sua irmã branca
Por filho querido, compreenda a Prata-viva, o Mercúrio ou o Espírito
da Pedra; e por sua irmã, a terra branca, ou corpo. Dando um passo a
mais, ele ensina que o terceiro grau de nossa obra é a redução da Pedra
em uma terra natural, a qual é feita graças à contrição da terra e a en­
ceração da água acima dela. Coloque então, ele diz, em seu vaso a terra
calcinada e espalhe por cima uma água retificada, como já foi dito [ 1
Uma vez a conjunção encerrada, cuja perfeição consiste na putre-
fação, é então necessário que se trate disso uma próxima vez, para que
possam ser considerados os acidentes. A conjunção seria com efeito
inútil se o feto não fosse procriado, e isso não poderia acontecer sem a
putrefaçào.
Samuel Norton, Pequeno Tratado relativo às opiniões
dos autores antigos sobre a Alquimia, em
O Mercúrio ressuseiiitado (Tractatulus de Antiquorum scnptcrum
considerationibus in Alchytnia, in Mereurius
redivivus, 1630), p. 7-8.
*
* *
444 Filosofar pelo Fogo
n
ueles que não são experientes creem que branquear uma coisa
vermelha, ou colorir de vermelho uma coisa branca, significa lhe dar
outra forma, mas eles muito se enganam, pois formar é dar essência,
animar, vivificar; é, em uma palavra, dispor uma matéria, que sem for­
ma não poderia ser nem subsistir como matéria, de tal maneira que a
forma é a própria essência de sua matéria, e, se ela for retirada, a ma­
téria desaparece, não sendo mais o que ela era, e não pode permanecer
sem retomar sua forma. De maneira que ela não pode subsistir sem sua
forma na natureza, e também a forma não pode mais nos aparecer sem
matéria; então as duas coisas são apenas uma, e uma são duas coisas;
ou seja, a matéria que é terrestre e corpórea, e a forma que é espiritual,

Combate das duas “naturezas": Rosarium Philosophorum, Praga, 1578.

e ainda que uma não possa aparecer aos nossos olhos sem a outra, e a
outra subsistir na natureza sem ela, mesmo assim é uma coisa.
Eis por que os Filósofos chamaram a matéria de sua bendita Pe­
dra Rebis, que é uma palavra latina composta de Res e de Ris, que
significa dizer uma coisa dois, querendo-nos induzir a buscar duas
coisas, que não são duas, mas uma única que eles nomearam Enxofre
e Mercúrio.
Por isso é preciso concluir que eles desejaram que pegássemos um
Enxofre não estrangeiro, mas da natureza do nosso Mercúrio, senão ele
não poderia lhe dar sua forma; e também que o Mercúrio que pegamos
seja da natureza do Enxofre, do qual ele deseja a perfeição e a forma,
senão isso seria esforço e despesa perdidos. Ora, para retornar à verda-
Quando os Opostos Se Unem
445

deira tintura branca e vermelha, ela dá forma perfeita aos imperfeitos


na fusão, penetrando até suas profundezas, entrelaçando-se insepara­
velmente e lhes dando a forma de sua espécie, a saber, de Sol e de Lua,
por isso se conclui necessariamente que o Sol e a Lua são o Mercúrio
dos Filósofos.
Philippe Rouillac, Resumo do Tratado da Grande
Obra dos Filósofos (scc. XVI). in William Salmon,
Biblioteca dos Filósojos ALjutmicos, t. IV, p. 250-251.

*
* * ^-ítÍLX.^

á, filho, na direção da montanha da índia,


cujas cavernas lhe entregarão as pedras dignas
de ser honradas, isto é, os corpos que se dis­
solvem na água permanente depois que a ela
foram adicionados. Saiba que os montes da
índia não são senão o Sol e a Lua. E quando
essa água tiver sido extraída dessas montanhas PeTRVÓ D£^\_zz
Lento PkilopQ1humiçr).
e com frequência liquefeita com seus corpos
apropriados, a obra altíssima se tornará ope­ Petrus de Zalento.
rativa. Eu lhe recomendo, portanto, tomar a filósofo e alquimista:
Prata-viva que é de virtude feminina (isto é, Ofermento é o meio
lunar) e cozinhá-la com o corpo, isto é, o do da conjunção. Se ele é
Sol, até que ele se mude em água fluida. Cozi­ empregado no inicio e no
nhe então o macho ao mesmo tempo que seu meio, a Obra é conduzida
vapor, até que um dos dois esteja congelado. A irmã (istoVJoítíercuFi10) ão.
é passiva, o irmão é ativo. Case assim o filho citrino com o vermelho,
------------- , ou
seja, o Sol com sua irmã (que é o Mercúrio lunar), para que eles gerem
em comum a Arte, pois a perfeição da obra é produzida pelo irmão e
pela irmã graças à água do enxofre. É por isso que aquele que busca
obter a verdadeira tintura não a buscará sem o Sol e sem a sombra, isto
é, sem nosso Mercúrio lunar. Contudo, não quero, por causa da cobiça
reinante, deixar de dizer que qualquer um que opere sem o Sol age em
vão. Pois o Sol adoça os ossos dos mortos em seus sepulcros e aumenta
a tintura da brancura e do avermelhado.
Petrus de Silento, in Johann Michalis Faustus,
Pandora (1706), p. 21 l -212.
446 Filosofar pelo Fogo

Oriente/Ocidente

Fénix,* animal do sul, arranca o coração do peito de um poderoso


animal do Oriente, dá asas ao animal do Oriente, e da mesma maneira
ao do Sul, para que eles se tornem semelhantes, pois o animal do Orien­
te deve ser despojado de sua pele de leão e perder suas asas; e nesse
momento eles entram juntos no grande Oceano salgado e dali saem
novamente belos.
Basilc Valentin, As 12 Chaves da Filosofa
(Claves XII Philosophiat, scc. XV?); Ia edição 1599),
in Jean-Jacques Mangec, Rtbhotheea
Chemica Curiosa, t. II, p. 413.

* *
exandre da Pérsia escreve livremente
Que o Lobo e o Cão se encontram no vale.
No entanto o Sábio nos mostra
Que cada um dos dois tem sua própria origem,
Pois c do Oriente que vem o Lobo
E do Ocidente sai o Cão.
Os dois tém ciúmes mútuos,
Furiosos, enraivecidos, ferozes até a demência.
Um priva o outro de sua vida
E de seu combate é produzido o grande Veneno.
Mas se, novamente, eles retomam à vida,
Então, verdadeiramente, de sua ressurreição
Faz-sc a mais alta Medicina e a melhor Teríaca190
Que possa ser encontrada na terra.
Por isso ela alegra todos os Sábios
E eles agradeceram a Deus,
Dando-lhe honra c louvor.
Lambsprínck, Tratado da Pedra filosofal
(Tractatulus de Lapide philosophico, 1599),
in Museuni Hermeticum, p. 350.

190, Cf, urligo Antídoto do glossário.


Quando os Opostos Se Unem 447

Delfos Júpiter lançou, como dizem, duas águias*


muito
semelhantes
Em direção às praias da Aurora e às do Ocidente:
Enquanto eles exploravam o centro do Universo,
A lenda diz que em Delfos as duas se manifestaram.
São aquelas duas pedras: uma vinda do Levante
E a outra vinda do Poente, e as duas combinam muito bem.
Michael Maicr, Atalanta fugitiva
(Atalanta fugiens. 1618).
in Tripus aurcus (1618). p. 193.
*
* *

Águia/leão

endo perfeitamente purga­


do a Águia* e o Leão, feche-os e
acople-os em seu recipiente transpa­
rente e, assim que o vestíbulo estiver
fe
i-aSia
hermeticamente fechado, cuide para
que seu hálito não escape ou que o
ar externo ali não se insinue. Em seu
acoplamento, a Águia dilacerará e
devorará o Leão; depois, tomada de
um grande sono e tornada hidrópica “Duas águias vindas, uma do Oriente,
pelo inchamento de seu estômago, a outra do Ocidente, se encontram
ela se transformará, graças a uma Michael Maier, Atalanta fugiens,
maravilhosa metamorfose, em um Oppenheim. 1618. emblema XLVl.
corvo muito negro que, ao abrir devagar suas asas, começará a voar e
com seu voo fará cair a água das nuvens até que, mil vezes molhado,
ele mesmo se despoje de suas asas e, caindo por terra, se transforme
em um Cisne muito branco. Que aqueles que ignoram as causas das
coisas admirem isso, muito espantados, considerando que o mundo
não passa de uma simples metamorfose: que eles admirem como as
sementes das coisas perfeitamente digeridas encontram seu termo em
uma perfeita brancura. Em sua obra, o Filósofo imita a Natureza.
jcan d’Espagnet, Arcano da
Filosofa hermética (A rcanun Hermética Philosophta, 1623),
in Jcan-Jacqucs Mangct, Bibliotbeca
Chemica Curiosa, t. II. p. 654.
448 Filosof/\r pelo Fogo

Lobo/cõo
q e você desejar trabalhar com nossos corpos, torne um ávido lobo
cinzento que, submisso ao belicoso Marte em razão de seu nome, tam­
bém é filho do velho Saturno, por sua raça de nascimento, e que é en­
contrado em todas as montanhas e vales do mundo, assaltado por uma
fome atroz: lance-lhe o corpo do Rei, para que com ele faça o seu pasto
e, quando o tiver devorado, faça uma grande fogueira e lance o lobo para
que seja inteiramente consumido: então o rei será novamente libertado;
e quando tiver reiterado isso três vezes, o Leão terá vencido o Lobo, e
nele você não encontrará mais nada a ser consumido, dessa maneira, no
início de nossa obra nosso corpo está adequadamente preparado.
E saiba que essa é a única via correta e legítima para a purgação
de nossos corpos, pois o Leão se purifica a si mesmo com o sangue
do lobo, e a tintura do Leão se regozija prodigiosamente com a tintura
desse sangue, estando claro que o sangue de ambos se uniu mutuamen-
te em virtude de certa afinidade de vizinhança; e, quando o Leão está
enfim satisfeito, seu espírito tornou-se mais forte do que era antes, e

Lobo e cão lutando: Lambsprinck,


De Lapide philosophico, séc. XVI.
Quando os Opostos Se Unem
449

seus olhos emitem um brilho vivo, comparável ao do Sol, e sua essência


interior, que se tornou muito vigorosa e preciosa, é de grande utilidade
para todas as coisas procuradas.
Basile Valcnttn, As 12 Chaves da Filosofia
(Claves XJI Philosophia, séc. XV: I * edição 1599).
in Jcan-Jacqucs Mangct. Bibltotheca
Cbetnica Curiosa, t. II. P. 414.

Veneno/teríaca

is o Dragão* que devora sua cauda.


Uma fome sinistra obriga o Polvo a roer seus membros,
E os homens a se alimentar de seus semelhantes durante um festim.
Enquanto o Dragão digere a cauda que devorou,
O alimento se torna para ele a parte de si mesmo sacrificada.
Pelo ferro, a fome e a prisão ele precisará domar.
Enquanto ele se come e vomita, mata-se e se gera novamente.
Por Dragão os antigos Filósofos na realidade só compreendem os
sujeitos* alquímicos. Por isso dizem que as montanhas produzem Dra­
gões duplos e a terra, fontes e, referindo-se à sua fome extrema, que
o Dragão devora sua própria cauda. Na medida em que é permitido,
outros expõem a mesma coisa em relação ao ano que retorna sobre si
mesmo e desenha um círculo. No entanto, a imagem foi relatada pri­
meiramente pelos Filósofos aos seus sujeitos. Por Dragão, eles querem
de fato significar a serpente que, ao devorar outra de sua espécie, é
apropriadamente chamada Enxofre, como todos atestam em inúmeros
lugares. Lulle, no capítulo 31 de seu Codicille, escreve: “Este é o Enxo­
fre, meu filho, é a víbora e o dragão devorando sua cauda, o Leão que
ruge e a espada afiada, separando, mortificando e destruindo todas as
coisas”. E o Rosário'. “O Dragão só morre se for morto com seu irmão
e sua irmã”. E logo depois: “O Dragão é a Prata-viva extraída do corpo,
que possui em si corpo, alma e espírito; essa água é ainda chamada água
fétida, que é obtida depois da separação dos Elementos”.
Também se conta que o Dragão devora sua cauda quando absorve
a parte movente, venenosa e úmida de seu ser, de forma que, privado de
cauda, ele parece então mais corpulento e mais lento, uma vez que seu
movimento e agilidade vinham de sua cauda. Todos os outros animais
se apoiam nas patas, mas os dragões, serpentes e vermes desse gênero
se servem da contração e da extensão de seus corpos no lugar das patas,
450 Filosofar pelo Fogo

Do veneno sairá a Medicina suprema: Lambsprinck,


De Lapide philosophico, séc. XVI.

e, como a água corrente, eles se inscrevem em circuitos determinados,


orientando-se ora de um lado, ora do outro, assim como se pode comu-
mente observar nos rios que, à maneira das serpentes, dobram e curvam
seu curso. Portanto, é com razão que eles qualificaram a prata-viva de
serpente e atribuíram serpentes ao Mercúrio, que arrasta por assim dizer
com ele uma cauda e, ora aqui, ora ali, se lança com toda a sua massa
movente. Da mesma maneira que a serpente sobe, assim também faz o
Mercúrio, que por essa razão possui asas na cabeça e nos pés. Também
se relata que na África existem serpentes aladas que devastariam tudo se
não tivessem sido destruídas por Ibis. Por isso Ibis tem seu lugar entre as
representações sagradas dos egípcios, tanto em razão dos serviços mani­
festos assim prestados ao país quanto por uma razão oculta compreendida
apenas por alguns. Dizem que o Dragão, depois de ter mordido e rejei­
tado sua cauda, adquire tanto outra nova quanto a juventude, de forma
que a natureza teria concedido uma vida mais longa às gralhas, corvos,
águias e cervos, mas também à raça das serpentes. A formiga, quando
envelhece, adquire asas e o mesmo fazem inúmeros vermes. O homem
Quando os Opostos Se Unem
451

em seu declínio é confiado à terra e, renascendo da terra será consagrado


à vida eterna. De qualquer serpente queimada pode ser feito um pó que
se revela completamente inócuo, mas de uma grande eficácia contra to­
dos os venenos. Dessa maneira um antídoto (alexipharmakon)* deve ser
igualmente preparado com esse Dragão depois de ele ter devorado sua
cauda (de ordinário amputada entre as víboras), remédio muito poderoso
contra os males do destino e do corpo.
Michacl Maicr, Afalanta fugitiva
(Atalanta Jugiens, 1618).
in Tripas aureus (1618), p. 65-67.

*
* *
1E/ m verdade, eis a grande maravilha e astúcia alada
Que em um Dragão* venenoso reside a Medicina suprema.
0 Mercúrio correta e quimicamente precipitado e sublimado,
Em sua própria Água reduzido e uma vez mais coagulado.
Um Dragão terrível mora na floresta,
Terrivelmente venenoso e a quem nada escapa:
Quando do Sol ele vê os raios e do fogo, o brilho,
Espalha então seu veneno e alça um voo tão prodigioso
Que nenhum animal permanece vivo para onde ele vai,
Que até mesmo o Basilisco* não pode lhe ser comparado.
Que sabiamente saberia matá-lo,
Escaparia de todos os perigos.
Sua morte acentua todas as suas veias, e suas cores,
E de seu veneno é confeccionada a Medicina suprema:
Pois seu veneno subitamente ele absorve,
Devorando, com efeito, sua própria cauda venenosa.
Aperfeiçoar em si todas as coisas ele mesmo se obrigou.
Dele escorre um bálsamo renomado,
E todos os Sábios enfim contemplam suas virtudes
Das quais eles se regozijam no mais alto grau.
Lambsprinck. Tratado da Pedrafilosofal
(Traetatulus de Lapide phtlosophúo, 1599),
in Museum Hemieticum, p. 352-353.
*
* *
452 Filosofar pelo Fogo

m enorme Dragão* tinha penetrado no mais profundo de uma ca­


verna para espalhar seu veneno mortal sobre os passantes. Temido por
seu sopro furioso e pelo simples contato, ele já havia destinado mil à
morte, que ele fazia assim desaparecer a distância, e ninguém entendia
de onde podiam vir tais prejuízos.
Em pouco tempo Sócrates descobriu, com a ajuda de um espelho
côncavo, que se escondia em uma alta coluna uma serpente chamada Ba­
silisco:* a pior de todas as serpentes, e a inimiga jurada dos seres vivos.
Por isso ele instalou na frente, em uma torre alta, certas efígies sus­
cetíveis de ser vistas pelo animal, de forma que este pudesse lançar seus
olhares para as figuras representadas. Alguns espelhos, feitos de metais
brilhantes e de um polido reluzente, foram também dispostos, e voltados
para a torre: pela força da atração magnética, eles aspiram pelo efeito de
um sopro as coisas próximas envenenadas, e subjugam as coisas distantes.
Quando o Basilisco viu sua aparência refletida e sua imagem, en­
cantado, absorveu o veneno repugnante e sucumbiu assim sob as fle­
chas que ele próprio tinha lançado.
Pertence à Arte matar esse Dragão prejudicial e, com precaução
e astúcia, extrair dele as forças e, por sua vez, introduzi-las nos metais
mais leves.
Michacl Maior. Cantilenas intelectuais sobre a ressurreição
da Fénix (Cantilena' intelleetuales
de Phenice redivivo, 1622), p. 82-84.
*
* *
JPara começar o tratado do antimônio* pela etimologia do nome, é
preciso saber que os árabes o chamam Asinat. Os caldeus o intitularam
Stibium. Os latinos, Antimonium. Os alemães o chamaram Spissglass,
pois tal matéria é fluida e com ela se faz o vidro que retém todas as cores
com as quais se pode formá-lo. Por isso é necessário deduzir que pela
mesma razão dos árabes, caldeus e latinos, nossos primeiros pais, e ou­
tros povos, deram um nome particular ao antimônio, não o fizeram sem
razão nem sem ter respeitado a coisa e observado suas faculdades [...].
Mas como já havia confessado que o antimônio era um veneno, antes
de lhes apresentar suas virtudes vou mostrar com um exemplo que um
veneno atrai para si outro veneno e o expulsa de nossos corpos mais cedo
do que os outros antídotos* ou contravenenos. E isso por causa da simpa­
tia e da semelhança de natureza. Pois é preciso que vocês saibam que o
verdadeiro licome [unicórnio] expulsa toda espécie de venenos e não pode
sofrê-los. E eis a prova.
Quanpo os Opostos Se Unem
453

Peguem uma aranha viva, façam um círculo


em volta dela com o licorne. Verão que ela não
sairá do círculo que vocês marcaram, ainda mais
que ela foge do que resiste e é contrário à sua na­
tureza. Mas, se colocarem outra coisa em volta
que se harmoniza com sua natureza venenosa, ela
nào terá antipatia para passar por cima.
Alem do mais, observem que, se coloca­
rem um denário de prata que tenha sido cunha­
do (como existem na Alemanha) com a flor do
lírio, a flutuar sobre a água como se fosse um
barquinho, e aproximarem dele um pequeno
pedaço dc licorne, sem que, todavia, se toquem,
verão que o licorne, por sua virtude espiritual, em­
purrará para trás o denário de prata, como se fosse Como um Lobo, o
um pato que quisesse evitar o golpe dc um caça­ antimônio devora a
dor. E, ao contrário, se jogarem um pequeno peda­ matéria da Pedra: Buch
ço de pão puro e limpo, sem nenhuma mistura, em Von Wunderverken, séc.
um vaso cheio de água até a borda, e mantiverem XVII (University of
o verdadeiro licorne perto da água, mas sem tocá- Glasgow Library).
la, verão que ele atrairá pouco a pouco o pedaço de pão. De forma que é
uma maravilha ver a simpatia das coisas naturais, como uma atrai a outra
com a qual se harmoniza e expulsa e distancia aquela que lhe c contrária
Assim os médicos podem tirar uma justa consequência- que os
venenos atraem para si o que é de natureza semelhante; e, da mesma
forma, o que não é veneno atrai para si o que está isento. Também é por
isso que todos os venenos podem ser expulsos de duas maneiras- pri­
meiramente, por seus contrários que ali resistem e os combatem assim
como acabamos de relatar sobre o licorne. Em segundo lugar podem
ser expulsos de nossos corpos por meio de seus semelhantes pois um
veneno atrai o outro, como o imã atrai o ferro. É preciso que ò antídoto
que deve expulsar o veneno, e que também é veneno, seja, no entanto
previamente preparado de tal forma que sua malignidade se converta
em medicina ou antídoto e seja ainda suficiente para expulsar o outro
veneno em razão do qual ele é recomendado.
Basilc Valentin, A carruagem triunfal do Antimônio (séc. XV?),
reedição da tradução francesa de 1646, Paris, Rerz. 1977,
p. 117-120.
*
* *
454 Filosofar pelo Fogo

odas as coisas foram criadas perfeitas em relação à matéria origi­


nai, mas a Química aperfeiçoa a matéria última pelo intermédio de Vul­
cano, pois nesse baixo mundo nada chega por si mesmo a essa nobreza,
submetida que está à geração e à corrupção, ainda que nela determinado
Veneno conviva com a Essência e a Medicina: em todas as grandes obras
de Deus em que existe um mal, também existe um remédio, aqui é um
veneno, ali é uma virtude. É por isso que nada foi criado em vão, mas
todas as coisas para um uso particular. De fato, foi esta a previdência
da Natureza: que sempre o bem e o mal estejam unidos em todas as
coisas produzidas pelos Elementos sublimares, e isso se levando em
consideração uma contínua rememoração do temor a Deus. Pois, como
diz Firmianus, assim que o Todo-Poderoso introduziu no homem a vir­
tude, no mesmo instante Ele lhe deu um inimigo para que essa virtude
não abandonasse sua natureza cochilando no ócio [...]. Portanto, não
se pode conhecer o bem sem o mal e, o inimigo uma vez reconhecido,
é possível se proteger do dano: assim até mesmo o sagrado Hermes e
muito antigo Teólogo revela em uma única chave, junto com o Eclesi­
ástico, que todas as coisas sublimares devem subsistir a partir de uma
contraposição e contrariedade, e que nada além pode acontecer em ra­
zão da geração e da corrupção; pois todas as coisas que não têm um
contrário a temer agem contra as leis, e a única maneira de o homem
chegar ao fausto supremo é se tomar pela mão e, por uma luta contínua,
impelir a si mesmo para a salvação.
Com efeito, em sua sabedoria, Deus
ordenou que sejam igualmente boas
a antipatia e a simpatia: graças a
J|l
^SS3B **5,R7
esse espetáculo a Natureza desejou
convidar os mortais para que eles
busquem e contemplem os segredos
dela, de forma que, se uma vier a te­
mer a outra, aquela que é detestada
possa, no entanto, reparar e cuidar
?W y. do defeito daquela que a inveja. E
por isso que Heráclito diz que a Na­
A conjunção ou o coito: Rosarium tureza foi engendrada pela Guerra,
Philosophorum, séc. XIV. já Homero diz que foi pela Conten­
ção: o homem é inimigo de si mes­
mo, e a causa da dissolução e da morte é esse nosso Reino separado de
si mesmo por uma guerra interna. Ora, se realmente a conjunção das
Quando os Opostos Se Unem
455

coisas adversas provoca no corpo microcósmico contínuas mágoas, da


mesma forma se mantêm ocultos o construtor e o destruidor da saúde,
por isso os Santos nomearam Inferno e Purgatório o corpo no qual sem­
pre é preciso guerrear. E por essa razão, e como a anatomia da Morte
encontra na república da Vida um alojamento hospitaleiro, a Natureza
ordena que os médicos sejam os ministros ou os separadores, não os
senhores ou os compositores. Os remédios, com efeito, requerem pre­
parações, separações e exaltações antes de poderem demonstrar suas
virtudes conjuntas e ocultas.
Oswald Crollius, A Química Rr.il
(Basílica Chyinica, 1609), p. 81-82.
*
* *

Sol/Lua
O Sol, como diz Algazel, é o < " ,
olho do mundo, o brilho do firma-
mento, a beleza do céu, o viajante das esferas celestes, a fonte de todo
calor, o guia dos planetas, o distribuidor das horas, a
graça e a honra de Deus. Ele também diz que a Lua
é a púrpura do céu, a acompanhante do Sol, a conso­
lação dos navegantes, a generosa ama do orvalho, a
anunciadora da tempestade, a senhora da humanida­
de. Dizem que o Sol ilumina quase todas as coisas,
e que a Lua espalha sua luz sobre as coisas contrá­
rias: supondo que se possa falar dessa forma, uma
vez que ela não brilha por si mesma, mas empresta
Eis o irmão e eis a
lodo o seu brilho do Sol. Hermes diz: O Sol também
irnià. eis o marido e a
é o mestre dos corpos e das pedras, e é mais nobre do mulher, ofilho e a mãe.
que eles, pois é seu rei e a fonte de sua abundância,
pois nem a terra nem a água não o corrompem, nem o fogo, que não
o diminui, mas, ao contrário, retifica-o e o umedece; e também não o
consomem os enxofres corrompidos, porque sua natureza é igual, clara
e corretamente temperada. Por essa razão os Sábios o honraram e glori­
ficaram, e nele colocaram a composição do Elixir da nobre Pedra, pois
ele é uma substância igual e permanente, fixada para sempre. Esse Eli­
xir certamente tem a mesma constituição da substância do ouro, porque
é quente e úmido, e se mantém nos corpos como o Sol entre as estrelas,
das quais ele é o rei e a luz; e por meio dele são finalizadas as coisas

!
456 Filosofar pelo Fogo

da terra a partir das plantas, dos frutos e dos mine­


rais. De fato, ele retém em si todo corpo pelo qual
RhiWl
K6 é por sua vez retido, é o fermento dos dois Elixires,
ao branco e ao vermelho que são retificados apenas
tá 'q.
1 por ele, e não são concluídos senão por ele; assim
como a realização da massa depende apenas do fer­
ssaa mento, da mesma forma o ouro é como o fermento
do Elixir, como o coalho no leite e o almíscar em um
Case o escravo com sua odor agradável. A Lua, em verdade esposa do Sol, é
irmã perfurmada e eles de cor celeste, de constituição semelhante à do Sol,
engendrarão um filho ela é a senhora da umidade, e dela são procriadas
que não se parecerá todas as coisas com a ajuda do Sol. O Mercúrio cer­
com seus pais.
tamente é o senhor dos comércios, pois foi ele que
imaginou que os mercadores ocultassem voluntariamente no lodo o Ouro,
a Prata e as Pedras preciosas. O Mercúrio é a parte comum da matéria de
todos os metais, ele é de natureza seca e terrestre, sutil, úmido e untuoso,
incombustível, de constituição veemente e universal para o melhor, exceto
quando tende para a umidade aquosa e, por isso, penetra o frio procurando
outra via, e se esquiva do fogo. E por causa da umidade untuosa, incom­
bustível e de sua constituição veemente, ele não endurece, mas é totalmente
sublimado.
Coitsilium Conjugii, seu De Massa Solis et Luntr
(1566), in Jean-Jacques Manget,
Bibliotheca Chemica Curiosa, t. II, p. 236.

*
* *
]E/ u sou a Lua, crescente úmida e fria, e tu

és o Sol, quente e úmido (e às vezes seco),


quando nos casarmos, segundo a justiça de
nosso estado, em uma casa feita apenas de
um fogo leve que traz em si o que é pesa­
do, e lá formos senhores de nosso tempo,
como o são uma mulher e um homem de
nascimento nobre: e isso é verdade, assim
como eu o digo. E quando o Sol e eu esti­
vermos unidos, com todo o tempo para nos
dedicarmos no ventre da casa fechada, eu
Uniào real do Sol e da Lua: receberei de ti a alma com tuas carícias se,
Rosarium Philosophorum, ao te aproximares de mim, tu arrancares mi­
Praga, 1578. nha beleza e meu aspecto encantador, e nos
Quando os Opostos Se Unem 457

regozijaremos, e exultaremos com a exaltação do espírito, quando nos


elevarmos na ordem dos antigos, e a lamparina de tua luz se espalhar
em minha lamparina, então uma mistura de vinho e de água doce virá
de ti e de mim, e poderei enfim estancar de meu fluxo o derramamento,
quanto tu tiveres colorido meu negror semelhante à tinta, já que minha
solução e minha coagulação terminaram. Quando tivermos entrado na
casa do amor, meu corpo se coagulará, e estarei em minha vacuidade. O
Sol responde à Lua: Se tu fizeres isso, ó Lua, e não me fizeres nenhuma
violência, meu corpo retornará e em seguida te darei uma força de pene­
tração nova que te tornará potente no combate do fogo de liquefação e
de purgação. Dessas experiências tu sairás sem diminuição nem trevas,
como o estanho e o chumbo, e não combaterás, pois não serás rebelde.
O Rosário dos Filósofos (Rosarium Philosophorum. séc. XIV),
in Jcan-Jacqucs Mangct, Bibliothaa Chanica Curiosa,
t. II. p. II5-II6.

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5?—-

A atividade do Sol e a de Saturno: De Spheera, séc. XV.


458 Filosofar pi:lo Fogo

Saturno/Sol
T?
JL oi com palavras veladas e com sutileza que certamente os sábios
Filósofos se expressaram em seus livros, quando descobriram o co­
nhecimento, a ciência e a experiência relativos à transformação de
dois metais muito enfermos e muito vis em dois outros muito nobres
e muito sutis, e isso principalmente quanto ao metal mais débil: tra­
ta-se com certeza de Saturno, que é transubstanciado e transmutado
em outro muito nobre, pois certamente ele é o mais fraco e o mais
grosseiro entre o conjunto dos planetas de todo o céu; e até mesmo
entre os metais da terra, um mais vil pode ser transubstanciado em
puro Sol, uma vez que nele [os sábios] acolhem Júpiter, que sucede a
Saturno segundo o movimento do céu; e graças a essa possibilidade
assim descoberta, os Filósofos revelaram e expuseram essa arte a to­
dos a quem Deus desejou conceder essa ciência, pois é bem verdade
que Saturno é um Sol em sua mais profunda natureza oculta, e que o
Sol é Saturno em sua natureza exterior manifestada; nesse ponto to­
dos os Filósofos concordam, a respeito do qual só lhes resta inverter
o que está manifesto e o que está oculto, ou colocar no exterior o que
é obscuro no interior do corpo e, ao inverso, desviar para longe de
sua origem o que, de nosso ponto de vista, lhe é exterior, pois para o
interior sem nenhuma dúvida existe um puro e bom Sol em todas as
coisas reconhecidas; e dessa maneira é realizada a transmutação de
Júpiter em Lua, e assim nós vemos a verdade, pois a transmutação
nesses dois corpos, a saber em Sol e em Lua, pode ser efetuada sem
grandes despesas de duas maneiras.
Uma, que é admirável, é realizada graças à absorção de uma
medicina de um gênero único; a outra só é efetuada com a ajuda do
Sol celeste, sem adjunção de qualquer outra medicina que existe no
mundo, a não ser com um módico fermento solar e outro da Lua, que
juntos devem ser misturados e unidos, pois devem repousar em um
vaso* longe dos raios do Sol e da Lua, e isso certamente durante dois
dias e duas noites: o Sol e a Lua serão então estabilizados em forma
de pequenas pedras, e em seguida devem ser expostos a um vento
fraco, de tal forma que uma água seja novamente feita e com a qual
será confeccionada a pedra, sem fogo e sem calor algum: a matéria
é então preparada, e louvado seja Deus Jesus Todo-Poderoso. Com
toda certeza nós devemos louvá-lo, pois Ele nos deu a ciência de
Quando os Opostos Se Unem 459

transmutar e transubstanciar Saturno em Sol: não apenas uma medi­


cina, mas, o que é melhor, somente por si e sem a administração de
qualquer coisa exterior; e dessa operação fala o Filósofo, que diz que
a Pedra é a medicina única à qual nada de estrangeiro é adicionado,
as imundícies estando apenas nela deslocadas e depositadas. Quanto
a mim, eu declaro essa obra em louvor a Deus, e que seja bendito
pela eternidade esse Deus que ocultou essa obra ali, onde lhe agradou
dissimulá-la, pois o que é operado sem dúvida não o é senão graças
ao milagre de Deus.
Arnaud dc Villcncuvc. O caminho Jo caminho
(Semita semita, séc. XI1-XIV), in Jcan-J.icqucs Manget.
Bibliotbeca Chctnica Curiosa, t. 1. p. 706-707.
*
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460 Filosof/xr pelo Fogo

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Bodas alquímicas,
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Fogo dito “de ventre de cavalo Philosophorum praeclara monita.


Ms. séc. XVIIL
18

O Fogo Secreto
dos Sábios

Ncnhum Filósofo jamais revelou abertamente esse Fogo


secreto, c o potente Agente que opera todas as maravilhas
da arte: aquele que não o compreender deve parar aqui e
rogar a Deus que ele o ilumine, pois o conhecimento desse
grande segredo é mais um Dom do Céu do que uma luz
adquirida pela força do raciocínio.
Limojon de Saint-Didier, O Triunfo hermético
(1689), in William Salmon,
Biblioteca dos Filósofos Alíjnitnicos, t. III, p. 299.

O alquimista não é um ‘ladrão de fogo ” como se fosse um Prome­


teu desafiando os deuses. E, no entanto, filosofando “pelo fogo” que ele
acredita contribuir para a regeneração comum de uma matéria ainda
imatura e da humanidade curvada sob o peso do pecado. Por isso, ele
também não é esse sonhador um pouco libidinoso imaginado por Gaston
Bachelard,191 mesmo que ainda seja o desejo, no sentido primeiro do ter­
mo — desiderium, nostalgia do astro -, que motiva sua busca e guia seus
passos. Do Fogo ele conhece, aliás, muito bem os poderes, para ceder
a uma fascinação cujas consequências seriam mortais para ele e sua
Matéria. Instrumento poderoso cujo uso convém dominar e modular, o
fogo aceso sob o atanor se revela o auxiliar desse outro Fogo, alojado no
próprio coração da Matéria filosofal que abriga seu segredo.
Por isso os autores se dedicam em um comum acordo a distin­
guir os fogos necessários para a boa conduta do magistério, aos quais
vários nomes são dados, desse Fogo cuja extrema sutileza coincide

191. Gaston Bachelard, La psychanalyse dufeu, Paris, Gallimard (Idées), 1949.


-462-
O Fogo Secreto dos S/\rios 463

com a de uma “matéria ” da qual o potencial ígneo foi liberado: Uma


matéria-energia, como se diria hoje, pensando tanto no mistério da
vida quanto na intensidade devastadora de uma explosão atómica. Dos
fogos diversos, cuja regulação eles aprenderam, os alquimistas falam
com uma mistura de reconhecimento e medo como a mínima desaten­
ção de sua parte pode transformar em “fogo de geena ” o ardor indis­
pensável a todo cozimento. Talvez a velha palavra francesa - ardcnt,
ardoyer [ardente, arder] - guarde a memória do segredo de ofício que
foi o dos alquimistas, separando o puro do impuro extraindo do próprio
fogo um calor cuja intensidade não contraria mais a suavidade.

*
* *
f ogo que se inflama espontaneamente. - ele é

preparado da seguinte maneira: enxofre ápiro, sal da


montanha, cinza, pedra caída do céu,* pirita, em par­
tes iguais. Esmague em um pilào negro, ao meio-dia.
Misture com suco de amora negra e betume da ilha de
Zante, naturalmente fluido, em partes iguais, até obter
urna consistência pastosa. Adicione com cuidado um
pouco de cal virgem. Triture com precaução, ao meio-
dia. Cuidado com seu rosto, pois a matéria se inflama
subitamente. Coloque-a em uma caixa de cobre, mu­ O Fogo é vantajoso
nida de uma tampa, conserve-a e não a exponha ao para o que é perfeito, e
sol. Se quiser inflamar as armas dos inimigos, à noite, desvantajoso para o que
unte em segredo com esse produto. Ao nascer do sol, é corrompido.
tudo queimará.
Jultus Africanus, m Marcclin Berthclot,
A Química na Idade Média, t. I. p. 95-96.
*
* *
f ogo inventado por Aristóteles quando viajava com o rei Alexandre

pelas regiões tenebrosas, desejando ali produzir em um mês o que o Sol


realiza em um ano, como acontece na esfera do latão.
Cobre vermelho, uma libra; estanho e chumbo, limalha de ferro,
meia libra de cada. Derreta tudo, faça uma lâmina larga e redonda em

♦ (N. T.:) Acrólito (meteorito rochoso)


464 Filosofar pelo Fogo

forma de astrolábio. Unte-a com esse combustível, seque durante dez


dias, e repita 12 vezes a untura. Esse combustível, uma vez aceso, quei­
ma durante um ano inteiro sem parar. Caso se unte mais de 13 vezes, ele
dura mais de um ano. Se você untar com um tecido qualquer e o deixar
secar, depois que uma centelha cai sobre ele, a mistura queimará de
uma maneira contínua e não poderá ser apagada pela água.
Marcus Graccus, Livro dos Fogos, in Marcclin Bcrthelot,
A Química na Idade Média, t. I., p. 105-106.
*
* *

utra preparação que, uma vez acesa, produz um fogo ou ilumina­


ção durável.
Pegue alguns insetos luminosos, quando começarem a voar; incor­
pore-os a uma parte igual de óleo de jasmim árabe; enterre durante 43
dias sob uma camada de esterco de cavalo. Retire a matéria, adicione
um quarto de bílis de tartaruga, um sexto de bílis de doninha, metade de
bílis de furão. Recoloque no esterco, como já foi dito, depois retire. Em
um grande vaso, coloque uma lamparina de madeira, de latão, de ferro
ou de cobre. Abasteça com esse óleo e a acenda, ela fornece um fogo
de longa duração. Esse é o prodígio, a maravilha afirmada por Hermes
e Ptolomeu.
Luz que brilha como a prata em uma casa.
Lagarto verde ou negro; corte-lhe a cauda e seque-a, pois encon­
trará na cauda um líquido semelhante à prata-viva. Unte com esse líqui­
do um pavio e coloque-o em uma lamparina de vidro ou de ferro. Se
ele for aceso, a casa logo terá um aspecto prateado e tudo que estiver na
casa luzirá como prata.
Marcus Graecus, Livro dos Fogos, in Marcclin Bcrthelot,
rl Química na Idade Media, t. I, p. 112 c 114.
*
* *
p
JL-/ preciso que você saiba que a coisa mais importante é o branquea­
mento; depois dele, logo se amarela o mistério realizado.
O branqueamento consiste no ato de queimar; ora, queimar é re-
vivificar pelo fogo, pois tais matérias se queimam e se revivificam por
si mesmas; elas se fecundam a si mesmas e engendram assim o animal
procurado pelos filósofos.
O Fogo Secreto dos Sábios
465

Se branquear, você tingirá facilmente e, se tingir de violeta ou


cinábrio,* será bem-aventurado, ó Dioscoro, pois isso é o que liberta da
pobreza, essa doença incurável.
Zózimo, in Marcclin Bcrthclot,
Coleção dos antigos alquimistas gregos,
t. III. p. 204-205.
*
* *

W fogo é múltiplo e sua qualidade, diversa, e comporta um determi­


nado número de graus. Assim, determinado fogo é quente no primeiro
grau e úmido no segundo, como o fogo do ventre do cavalo, cuja pro­
priedade é de não destruir o óleo, mas de aumentá-lo em razão de sua
umidade, pois os outros fogos destroem por causa de sua secura. Este
nào é comparável a nenhuma outra coisa no mundo, exceto ao fogo
material do corpo do homem saudável. O fogo do sol, com certeza, é
quente nesse mesmo grau, mas é seco. Ele também domina a coisa e.
por tê-la animado, se refaz e se alimenta, como a criança a quem se dá
leite no início [de sua vida]. Com efeito, a criança é sustentada pelo
quente e pelo úmido, assim
como o fogo do ventre de ca­

I
valo aumenta o óleo por causa
da umidade, e também fixa a
pedra nào pedra por seu calor.
Fora desses dois, existe outro
fogo que é quente e seco no
segundo grau, como o fogo do V
forno, depois que se retira o
pào: este opera uma fusão len­ ■ J
ta e nào carboniza, pois nele
nào existe nem chama nem
excesso de calor, este diminui
progressivamente até desapa­ O fogo subterrâneo: Athanase Kircher,
recer; mas, se permanecesse, Mundus subterraneus, Amsterdà, 1682.
ele fixaria o espírito no corpo ou no exterior do corpo. O fogo de cavalo
também não funde nem consome, mas domina e aumenta a umidade. O
forno de fixação comporta igualmente um fogo: este funde e fixa, mas
também nào consome, pois não tem chama e só difere do anterior por­
que um tem um calor extremo e o outro não. O quinto, quente e seco no
terceiro grau, é chamado fogo de chama, ele calcina muito e nào opera
466 Filosofar pelo Fogo

a fusão que permite a preparação do ouro e da prata e dos outros corpos


nesse mesmo grau ou além: esse é o fogo no forno da calcinação. O sexto
é quente e seco no quarto grau, ele funde e fixa fortemente, amolecendo
suavemente os corpos que não desagrega nem dispersa: esse é o fogo
do forno de fusão. No mesmo grau está o fogo dos foles, o sétimo, que
dissipa e dispersa os corpos. O oitavo é o que funde e calcina: é um fogo
de chama porque a operação acontece somente na chama, mas ele não
destrói como faz o fogo de vidro, e esse fogo é como o de carvões e de
chamas, mas somente nele a chama da madeira age assim. Esse também
está no mesmo grau que os precedentes, assim como o fogo de ateliê que
é para todos os mestres: esse é o fogo de prova que faz fundir e consome,
destrói e dispersa o mal, dissolve e retifica o bem, e age quase como um
juiz, separando o justo do injusto.
Vinccnt dc Bcauvais. O Espelho natural (ccrca de 1250).
in Artium et mediana1 doetrina (1571), p. 7-9
(£)<■ Alehiinia et rebus nietalheis ex Speeulo Vicentii).

*
* *

a verdade, temos três fogos, sem os quais a Arte não pode ser per­
feita; e quem trabalhar sem esses fogos, trabalhará inutilmente. O primei­
ro, o fogo da lamparina, é um fogo contínuo, úmido, vaporoso, aéreo. E
é preciso astúcia para encontrá-lo, pois a lamparina deve ser proporcional
aos lugares onde ela está confinada; e, para fazer bem e conduzir correta­
mente esse fogo, é preciso ser muito judicioso, o que um Artista aturdido
jamais poderá fazer, porque, se o fogo da lamparina não é proporcional
geometricamente, e como se deve, uma dessas duas coisas acontecerá:
ou, sendo o calor muito fraco, os sinais, que os Filósofos disseram que
deveriam acontecer em um tempo determinado, não aparecerão de forma
alguma, e um atraso muito longo tomará sua esperança vã, não aconte­
cendo nada do que você pretendia; ou, sendo o calor demasiado forte, as
flores do Ouro se queimarão, e você se arrependerá de lamentavelmente
ter dispensado esforço e trabalho. O segundo fogo é o fogo de cinzas,
sobre as quais se coloca e se encerra o Vaso* selado hermeticamente, ou,
melhor dizendo, esse fogo tem um calor bem suave, que vem do vapor
temperado da lamparina, e que também envolve o Vaso. Esse fogo só é
violento se for demasiado excitado. Ele digere, altera e é tomado de um
corpo diferente da matéria [do fogo]. E único e é até mesmo úmido, e
não é natural, e também tem as outras propriedades que acabo de citar.
O terceiro fogo é o Fogo natural de nossa Agua que também se chama
O Fogo Secreto dos Sábios 467

Fogo contra natureza, porque é uma Agua, e, no entanto, esse Fogo faz do
Ouro um Espírito, o que o fogo comum não poderia fazer. Ele é mineral,
é igual, participa do Enxofre, destrói tudo, congela, dissolve e calcina. É
penetrante, sutil e não queima de forma alguma. E a Fonte de Agua viva,
na qual o Rei e a Rainha se banham. Necessitamos desse Fogo em toda a
obra, no início, no meio e no fim, mas nem sempre precisamos dos outros
fogos, sendo necessário apenas por algum tempo. Quando você ler os
livros dos Filósofos, tenha sempre presente em sua memória esses três
tipos de fogo e os aplique às palavras deles, e com certeza compreenderá
facilmente tudo o que eles dirão sobre o fogo.
O Livro de Artépio (séc. XII?),
in William Salnion, Biblioleea dos Filósofos ALpiimicos
t. II, p. I49-I5I.
*
* *
O que podemos reter dessas palavras, a não ser que uma boa parte
de nosso segredo reside no fogo? Mas esse fogo varia de inúmeras ma­
neiras: um é de fato natural, o outro, inatural; um é elementar e o outro
é contra a natureza. O fogo natural é aquele que provém da influência do
Sol, da Lua e das estrelas, por meio dos quais são engendrados os espí­
ritos das águas ardentes, os vapores essenciais (e os outros potenciais)
dos minerais, e também as virtudes naturais dos seres vivos. O inatural
é um fogo ocasional, como o do calor durante as febres, e é chamado
fogo úmido feito artificialmente pelos Filósofos. Ele é igualmente no­
meado fogo de primeiro grau que, em virtude de uma mesma proporção
de calor, é chamado de Banhos,* fogo de estufa ou de esterco; nesse
fogo é realizada a putrefação de nossa pedra. O fogo elementar é aquele
que fixa, calcina e consome, e que as coisas combustíveis alimentam.
0 fogo contra a natureza dissolve por sua potência, deteriora, aniquila c
destrói a potência dirigente da forma da pedra, pois ele dissolve a pedra
na água de chuva com a destruição da forma (e da figura) específica. Por
outro lado, ele é chamado fogo contra a natureza porque sua operação
é oposta a todas as operações naturais, como afirma Raymond [Lullc].
Com efeito, todas as operações que a natureza compõe, esse fogo as
destrói e as conduz à corrupção, se um fogo de natureza não lhe é acres­
centado. É por isso que, como afirma Raymond, nele residem operações
contrárias. Pois, assim corno o fogo contra a natureza dissolve o espirito
do corpo fixo na água de chuva e comprime o corpo espiritual volátil
na terra congelada e cristalina, assim também, ao contrário, o fogo de
natureza congela o espírito liquefeito do corpo fixo em terra gloriosa.
468 Filosofar pelo Fogo

e dissolve o corpo espiritual volátil por um fogo contra a natureza fixo


(e mortificado) não em água de chuva, mas em água dos Filósofos, e
assim o fixo é convertido em volátil; o úmido, em seco, e o pesado se
torna leve. Mas, no entanto, esse fogo contra a natureza não convém à
operação de nosso Magistério, aquele que lhe convém é esse fogo que
é uma potência natural.
Gcorgc Riplcy, A Medula da Filosofia alquítnica
(Medulla Philosopbiir chemietT, 1576),
in Opera oniuia Cheniiea (1649), p. 135-137.
*
* *

V ocê reconhece o mestre perfeito na medida em que ele conhece o


regime do fogo e seus graus, e a única coisa que poderá ser obstáculo
ao seu desejo é sua ignorância do calor e do fogo. Inúmeros autores
reconhecidos escreveram que a totalidade do Magistério se baseia no
regime do fogo, e é por isso que está escrito em todos os capítulos que
você deve proceder de forma que o calor não opere nem o demasiado
nem o insuficiente; é nisso que muitos dos cozinheiros de Geber se en­
ganaram, ainda que buscando seu saber nos livros.
1. O grau de calor que permite aferventar os porcos e depenar os
gansos convém nessa arte para a decocção; e, para os minerais interme­
diários, esse calor é capaz de cobrir o litargírio de suor.
2. Um calor comparável ao que seca o linho fino é bom para nosso
ar em 30 operações e, para a divisão, você empregará o calor utilizado
pelos cozinheiros para assar a carne.
3. A mesma qualidade de calor, mas com um fogo circular, será
necessária para a separação dos dividendos.
4. Ao contrário, para a circulação dos Elementos, você procurará
um fogo branco; ele sempre permanece igual, a todo instante perpé­
tuo, pois não deve jamais diminuir nem aumentar, ainda que seja contí­
nuo. Estude sabiamente e olhe em volta o que o envolve para que possa
observar esse fogo, no qual não deve haver nenhuma umidade que as
mãos possam tocar ou um olho perceber.
5. Há ainda outro fogo, úmido, mesmo que esse qualificativo pare­
ça introduzir uma contradição. Esse fogo libera depois de certo tempo
as matérias que aderem nas paredes do vaso. Esse mesmo calor efetua
operações muito mais numerosas, depurando muitas vezes a matéria de
suas sujeiras. O Filósofo falará prudentemente desse calor, cujo grau
superior, quando o atinge, causa e engendra uma secura tão uniforme
quanto a do calor seco no primeiro grau.
O Fogo Secreto dos S?\bios 469

O quádruplo globo rege essa obra do fogo Michael Maier,


Ataianta fugiens, Oppenheim, 1618, emblema XVII.

6. Outro fogo é o da dissecação, para as matérias que estão embe­


bidas de umidade.
7. Outra variedade do fogo é o de conservação, porque todas as
coisas são ressecadas por sua operação.
8. Na preparação da Magnésia utilizamos um fogo de difusão, re­
pleto de perigo e ilusão. Não apenas de perigo porque pode danificar a
obra, mas na medida em que ele poderia prejudicar também o mestre
que, tendo sido atingido, seria destruído. Por essa razão, organize-sc de
maneira a respirar saudavelmente: cuidado com sua boca, suas orelhas,
seus olhos e narinas, pois esse fogo é dez vezes mais pernicioso do que
um veneno. Aqueles que não tomaram a tempo essa precaução sofreram
por sua causa muitos danos.
9. Um fogo corrosivo serve nessa arte para separar judiciosamente
os Elementos de natureza semelhante. Em um único instante, se esse
fogo for excessivo, sua obra perece; se for deficiente, em um instante
seu calor se mostrará insuficiente. Quem estiver seguro de alcançar o
grau justo, tornar-se-á um grande mestre em matéria de fogo. É difícil
conhecer sua potência e não há nenhuma prova, a não ser a visão, e por
essa razão muitos erram ao experimentá-lo, cujo calor é conhecido
470 Filosofar pelo Fogo

por despesa e experiência. Quanto à apreciação desse calor, Anaxágoras


disse que ninguém pode na primeira abordagem ser considerado compe­
tente.
10. Outro calor é o da grande cocção para os minerais difíceis
de liquefazer. Esse calor não pode ser muito forte, ainda que seja
continuamente produzido durante muito tempo.
11. Diferente é o calor de calcinação, utilizado para a preparação
e a purificação dos metais impuros, que não os queima nem os dissolve,
eles que, em outro momento, seriam com efeito facilmente destruídos.
12. A 12a espécie de calor é a da sublimação de todos os espíritos
minerais.
13. O calor mais elevado, além de todos os anteriores, é particular­
mente apreciado quando torna próxima a projeção de sua Pedra. Mas,
como a experiência faz parte da arte, não é preciso falar mais, a não ser
que aquele que erra deve recomeçar toda a obra.
Thomas Norton, Ordinal (Crede mihi se» Ordinale, 1477),
m Jcan-Jacqucs Mangct, Bibliotheca Chetniea Curiosa,
t. II, p. 308-309.
*
* *
^I^omo a Salamandra, a Pedra vive no fogo.

No fogo ardente vive soberanamente a Salamandra,


Que nào se importa com suas chamas, Vulcano.
Da mesma forma, não rejeita das chamas o incêndio furioso.
A Pedra também nasceu em um fogo tenaz.
Mas, insensível, apaga o incêndio e sai livre, pois,
Plena de ardor, do mesmo calor ela também se regozija.
No fogo, como alguns dizem, na verdade só a salamandra pode
viver: é um verme rastejante parecido com um lagarto, mas seu movi­
mento é mais lento, sua cabeça maior e sua cor diferente [...].
Mas a Salamandra filosófica é bem diferente da outra, ainda que
a ela seja comparada: ela nasce com efeito no fogo, a outra não. Mas,
se cai no fogo, não é logo consumida, isso em razão de sua abundante
e extrema frieza e umidade, graças às quais pode atravessar livremente
a chama. Uma é quente e seca, a outra é fria e úmida. Toda coisa de
fato evoca, onde quer que ela esteja, a natureza da matriz da mãe, ou
imita seu lugar e sua pátria de origem: assim o fogo produz apenas
quente e seco, ou seja, seu semelhante, e inversamente as úmidas e
O Fogo Secreto dos Sábios 471

frias cavernas rochosas, repletas de


chuva, enviam esse verme úmido e
frio. A Salamandra (filosófica) se
regozija com o fogo em virtude de
sua similitude de natureza; a outra o te •4 ■■■ k
apaga ou rejeita momentaneamente
sua força para longe de si por causa
de sua contrariedade. Alguns rela­
mlHM
tam que um pirausta,192 engendrado
pelo fogo, tenha fugido dos fornos
de cobre de Chipre; mas não existe
ninguém que tenha dado crédito a
esse fato, a não ser de uma maneira
alegórica. Pois, com efeito, o fogo, “Como a salamandra, a Pedra vive no
fogo Michael Maier, Atalanta fugicns,
se ele é mantido, corrompe e destrói
Oppenhein, 1618, emblema XXIX. “
todos os corpos de todos os animais,
assim como transforma a terra em vidro e a madeira resistente em cin­
zas, bem como todas as outras coisas compostas, com poucas exceções
como as substâncias mercuriais que têm o poder ou de permanecerem
intactas, ou de desaparecerem completamente no fogo, sem sofrer ne­
nhuma separação de suas partes.
Pode-se concluir, a partir disso, que a Pedra deve ser conduzida
pela fixação à natureza da Salamandra, isto é, à fixação suprema que
nào se distancia do fogo nem o rejeita, e a Salamandra não pode existir
antes de ter pacientemente aprendido a suportar o fogo, o que requer
necessariamente um lapso de tempo importante.

Michael Maier, Atalantafugitiva


(A talan ta fugiens, 1618), in Tripus aureus,
p. 125-127.
*
* *

Salamandra vive no fogo, e o fogo lhe dá a melhor cor. Reiteração,


gradação e melhoria da Tintura ou da pedra dos Filósofos: ou talvez
devamos compreender Aumento.
Todas as fábulas nos contam
Que a Salamandra provém do fogo
No qual ela encontra alimento e vida
192. Animal fabuloso que deve nascer do fogo.
472 Filosofap pelo Fogo

Conforme à sua natureza:


Ela também mora em uma profunda montanha
Diante da qual queimam inúmeros fogos,
Um mais fraco do que o outro
Onde se banha a Salamandra;
Mais forte é o terceiro, e o mais claro de todos é o quarto:
Dali ela se apressa para seu esconderijo
E. em seu caminho, é presa e crivada de buracos.
De tal forma que morre e dá a vida com o sangue;
Sob todos os pontos de vista, e para seu bem isso acontece,
Pois de seu sangue ela ganha a vida eterna
Tão generosa quanto
o Pelicano será a E de nenhuma morte não poderia então perecer.
Pedra oriunda do Por isso seu sangue é em toda parte a preciosa Medicina,
Fogo: Symbola Nada comparável jamais foi encontrado:
Chiroglifíca, De todos os metais, corpos humanos e animais
séc. ATIII. Esse sangue de fato rejeita os males.
Ali os Sábios obtiveram sua Ciência
Que os guiou até esse dom celeste
Nomeada Pedra dos Filósofos,
A que estão ligadas todas as forças do Universo,
E por pura generosidade nos concedem os filósofos
Para que deles perpetuamente nos recordemos.
Lambsprinck, Tratado da PedraJilosoJal
(Tradatulus de Lípide Philosophico. 1599),
iti Museum Henneticuni, p. 360-361.
*
* *
JEj m definitivo, depois de ter exposto por que durante a preparação de

sua Pedra os Filósofos não queimam os dedos, e por que eles se servem
de um fogo diferente do fogo ordinário, agora mostrarei a diferença,
comparando-os um com o outro.
1. O fogo dos Químicos é conhecido por todos por ser vulgar, ao
passo que nosso Fogo é obtido pela arte e é difícil de descobrir.
2. Seu fogo é elementar; o nosso na realidade é natural e ao mesmo
tempo vivificante e celeste.
3. Seu fogo é ativo-quente e seco, porque eles o preparam a partir
da madeira, do óleo ou dos carvões; o nosso em verdade é quente-seco
e úmido, e mais espiritual do que matéria.
O Fogo Secreto dos Sábios 473

4. Seu fogo não efetua nada caso não tenha ar; o nosso, na verdade,
nào realiza nenhuma operação se, ao contrário, não estiver fechado em
um vaso* particular que é importante fechar para que apenas um míni­
mo de ar ali possa ser introduzido.
5. O fogo dos Químicos não poder ser suficientemente bem dirigi­
do e, se a matéria combustível faltar, ele enfraquece e apaga; o nosso,
na verdade, exerce continuamente sua operação perpétua pela qual, e
ainda que a mão não o socorra, ele é de fato alimentado e, graças a
um vapor espiritual, nossa matéria é por ele irradiada e circularmente
agitada.
6. O fogo dos Químicos é ativo-operativo-quente e seco. Sua pri­
meira qualidade é consumir e destruir todas as coisas nas quais ele age.
Por isso, parece também verdadeiro que, se seu fogo for muito suave —
Banho-Maria* no qual os ovos podem ser cozidos destrói o germe de
qualquer coisa, seus outros fogos muito mais potentes podem mantê-lo
de uma forma mais rápida e forte. Mas, por mais importante que seja
essa contribuição ao nosso fogo, aquele aquece lenta e progressivamen­
te nossa matéria e, por uma irradiação contínua, cozinha-a, conserva,
congela e umedece, alimenta e aumenta em virtude. Em resumo, o fogo
Filosófico difere absolutamente do fogo dos Químicos.
7. O fogo dos Químicos é violento e corrosivo, ali onde o nosso é
suave e generoso, natural, fechado-aéreo-vaporoso, dotado de um movi­
mento circular que envolve a matéria, contínuo, temperado, ao mesmo
tempo nutritivo e vivificante e também celeste. Por isso é muito admi­
rável que esse fogo Filosófico seja semelhante à matéria de sua Pedra,
uma vez que ele foi escolhido pela arte do raro segredo em relação com
a puríssima substância das entranhas da matéria. Esse fogo é, portan­
to, o verdadeiro Banho-Maria, cujo segredo, saber de que maneira ele
deve ser preparado, é tão oculto quanto a própria matéria da Pedra filo­
sofal, uma vez que a ciência de um compreende a inteligência do outro.
Ensinamento relativo à Árvore solar
(Instrwtio de Arbore solari),
in Theatrum Cheniicutn, t. VI, p. 190-191.
*
* *

que é então esse fogo que aperfeiçoa totalmente a obra desde o


começo até o fim? Certamente, os Filósofos o ocultaram. Mas, quanto
a mim, movido por um sentimento de piedade, desejo revelá-lo com a
completa divulgação da obra.
474 Filosofar pelo Fogo

A Pedra dos Filósofos é única, mas é nomeada


«S de várias formas e você encontrará muitas dificul­
dades antes de conseguir conhecê-la. De fato, ela é
aquosa, aérea, ígnea, terrestre, fleumática, colérica
e melancólica; é sulfurosa e semelhante à Prata-
viva; comporta inúmeras superfluidades que são
convertidas em verdadeira essência, com ajuda do
Deus vivo e da intervenção de nosso fogo. Aquele
lOHANNES PON~
tanits PhilfífopJius. que separa alguma coisa do sujeito,* acreditando
ser isso necessário, certamente não compreendeu
Jean Pontanus, filóso­ nada da Filosofia, pois o supérfluo, o imundo, o
fo: Esse fogo sem cha­ informe, o pantanoso, geral mente, toda a substân­
mas. mas não sem luz,
cia do sujeito, é corrigida em um corpo espiritual
é difícil de descobrir.
fixo por meio de nosso fogo. Isso os Sábios jamais
revelaram. Por isso, são poucos os que chegam a essa Arte; a maioria
pensa que o imundo e o supérfluo devem ser separados.
Agora devemos revelar as propriedades de nosso fogo e ver se
ele convém à nossa matéria segundo a maneira de que falei, ou seja,
se ele é transmutado. Como esse fogo não queima a matéria, ele não
separa nada da matéria nem afasta as partes puras das impuras (como
dizem os Filósofos), mas converte a totalidade do sujeito em pureza:
ele não sublima, da maneira pela qual Geber realiza suas sublimações,
e também Arnaud, e todos os outros que dizem que sublimações e des­
tilações podem ser feitas em pouco tempo. Ele é mineral, contínuo, só
se evapora se for muito excitado; participa do Enxofre, não tem outra
origem senão a matéria. Ele rompe, dissolve e congela todas as coisas,
e da mesma forma coagula e calcina; ele é descoberto por meio da arte,
da qual é um resumo, e a despesa a ser feita é bastante módica. Pois esse
fogo é de média ignição, uma vez que com ele, agradável e suave, toda a
obra é realizada, e que ele efetua no mesmo tempo todas as sublimações
exigidas.
Ainda que alguns leiam Geber e todos os outros Filósofos, ainda
que vivam 100 mil anos, eles não o compreenderiam, pois esse fogo só
pode ser descoberto graças a uma única e profunda meditação; e então,
na verdade, essa inteligência poderá ser adquirida nos livros, mas não
antes. O erro dessa arte reside, portanto, na ignorância desse fogo, que
converte a matéria em verdadeira Pedra dos Filósofos.
Portanto, preste atenção em si mesmo, pois, se eu tivesse desco­
berto desde o início, não teria errado 200 vezes em minha prática da
matéria. É por isso que não me espanto se muitos não chegaram à obra,
O Fogo Secreto dos Sábios 475

pois eles erram, erraram e ainda errarão, na medida em que os Filóso­


fos nào anunciaram claramente seu próprio agente, com exceção de um
único, chamado Artépio, mas que parece falar apenas para ele, e, se cu
nào o tivesse lido, e compreendido o que ele dizia, não teria chegado à
realização desse corpo.
Eis qual é essa prática: é preciso que a matéria seja tomada com
toda a diligência possível, que seja esgotada e fisicamente triturada,
depois colocada no fogo, e que seja conhecida a proporção desse fogo,
isso para que ele estimule apenas a matéria; e em um breve espaço
de tempo esse fogo, sem a intervenção das mãos, certamente realizará
toda a obra porque irá putrificar, corromper, gerar e aperfeiçoar, e fará
surgir as três principais cores: o negro, o branco e o vermelho. E pelo
intermédio de nosso fogo a medicina será multiplicada, com a condição
de que ela seja conjunta à matéria crua - não apenas em quantidade,
mas igualmente em virtude. Saiba então com todas as suas forças bus­
car esse fogo, e conseguirá, porque ele realiza toda a obra e é a chave
de todos os Filósofos, que eles jamais revelaram. Mas, se você refletir
bem e profundamente ao que está enunciado anteriormente quanto às
propriedades do fogo, terá seu conhecimento, e não de outra maneira.
Movido pela piedade, escrevi isso, mas não me satisfaria se não disses­
se que o fogo não é transmutado com a matéria, porque ele não saiu da
matéria, como disse antes. Portanto, quis deixar isso claro, e advertir os
prudentes para que não gastem inutilmente seu dinheiro, mas saibam
antes o que eles devem buscar e assim cheguem à verdade da Arte, e
nào de outra forma.
Jcan Poncanus, Carta sobre o Fogo filosófico
(Epistola de Igne Pbilosphúr, 1614'
in Theatrunt Chanicum, t. III, p. 734-735.
*
* *

Pássaro, tão caro aos Sábios, que verso ele poderia dignamente
cantar? Se de cem bocas minha língua proferisse sons, eles não basta­
riam para elogiar esse pássaro cujas cinzas encontram uma vida mais
perfeita e um novo vigor no próprio seio da morte.
É nos confins de Syenes, que em um tempo muito remoto voou
pela primeira vez esse Pássaro, essa magnífica e benéfica Fénix,* cujo
pescoço emplumado de púrpura está envolvido por um colar, e cuja
cabeça é protegida por um esplêndido penacho, coroado por Rubis. O
calor em sua plumagem se mostra extremo, pois em suas profundezas,
476 Filosofar pelo Fogo

na verdade, está oculta uma verme­


lhidão obscura, e o calor derrotou
o frio. Por isso, o sangue enchen­
do suas veias e dominando o corpo
pelo espírito denota melhor o tem­
peramento, e outorga forças. Ele
está coberto ao mesmo tempo pela
O pássaro Fénix renascendo de suas majestade de Febo e pela floração
cinzas: Michael Maier, Jocus severus, de Diana. Não sofre com o calor
Frankfurt, 1517. ardente do Sol nem teme a violên­
cia do calor, pois aos fogos não está
submetido, e também não sucumbe sob as vagas corrosivas da onda
amarga.
Sobre os montes mais altos ele se eleva, em estado de perpétuo
júbilo; nessas alturas, de onde se precipita esse rio [Nilo], cujo escoa­
mento irriga as terras baixas do Egito, que com seu limo fertiliza. O boi
Ápis, que carrega na testa o corno lunar, lhe é consagrado.
Tebas, com suas muralhas transpassadas por cem portas, e por isso
famosa em toda a terra, foi com razão consagrada ao Sol [...]. É ali, de­
pois de consumados dez anos de vida, que, com um voo rápido, a Fénix
vai para se dissolver na morte, contente em deixar a vida, com a certeza
de reencontrar a juventude. Ali se encontra o túmulo verdadeiramente
digno de semelhante Pássaro.
Nem os mausoléus erigidos com um fausto orgulhoso em direção
ao céu pela piedade devida aos seres queridos, nem nenhum outro edi­
fício é desse Pássaro a justa pirâmide fúnebre, nem os túmulos reais
antigos ou modernos, cuja glória atravessa o tempo.
Para ela não existe urna escura que tanto realce os funerais, como
aquela em honra dos Atridas. Quando, com efeito, consumida pelo Sol
e logo renovada pelos anos, a Fénix se deteve sobre os altares ricamente
decorados da cidade de Tebas, ela agita então suas asas e se lança ao
fogo, onde perece. Pela morte não é, no entanto, devorada, mas logo
regenerada, de forma que a Fénix se torna por ela mesma um maravi­
lhoso túmulo.
Michael Maier, Canções intelectuais sobre a ressurreição
da Fénix (Cantilena intellectuales de
Phenice redivivo, 1622), p. 26-32.
*
* *
O Fogo Secreto dos SAbios 477

ossa obra exige duas espécies


de fogo, um interno e o outro ex­
terno. Eles devem se corresponder
de tal forma que o externo supere
o interno. O fogo interno é um li­
cor etcrco, ou um néctar mercurial, :
que vivifica, conserva e alimenta a > * ';X
matéria no vaso,* e que a conduz ao
termo completo de sua perfeição.
Ele só é posto em movimento pelo j r- 1 ' í
.-£?• x .
fogo externo, e se este é lento e frá- g
gil demais; o fogo interno perma-
nece na inação e não produz nada, Da manutenção constante do fogo
como se vê nas sementes que lan­ depende o sucesso do Magistério:
çamos na terra durante o inverno, Aurora consurgcns, séc. XV
elas não podem germinar, porque o
calor externo do Sol não desperta seu calor interno. Mas, se esse fogo
externo é demasiado forte, o vaso se quebra, ou a matéria se queima: é o
que acontece ordinariamente aos grãos que semeamos durante os calo­
res da canícula, ou aos ovos cozidos em um calor violento, ao passo que
eles produzem um frango, se o mantivermos em um calor suave e tem­
perado; isso se deve ao fato de que as ideias e as formas, ou melhor, as
virtudes e os espíritos vitais, que estão cuidadosamente envolvidos no
próprio centro do ovo, desenvolvem-se facilmente com a suave impres­
são do calor que lhes é natural, e perecem ou se dissipam com a mesma
facilidade se são expostos à ação violenta e destrutiva do fogo exterior.
Huginus A Barina,
O Reino de Saturno Mudado em Século de Ouro
(Saturnia Regna in aurea saxula conversa. 1657).
p. 138-140 (ed. de 1780).
*
* *

Natureza usa o Fogo - e nisso foi logo imitada pela Arte - como
se fosse um instrumento e um martelo no cozimento de sua obra: nas
operações que ambas efetuam, o fogo é, portanto, mestre e magistrado.
É por isso que o conhecimento dos fogos é altamente necessário ao Fi­
lósofo, sem o que ele giraria em vão a roda da natureza, como um novo
íxion, preso a um infrutuoso trabalho.
478 Filosofar pelo Fogo

A palavra fogo é homónima entre os Filósofos e às vezes é, com


efeito, empregada como calor: assim, existem tantos fogos quanto exis­
tem calores. Na geração dos metais e dos vegetais, a Natureza reconhe­
ce um triplo fogo, a saber, celeste, terrestre e enxertado. O primeiro vem
do Sol, como de sua fonte para o seio da terra; ele põe em movimento os
vapores mercuriais e sulfurosos com os quais são criados os metais e a
eles se mistura, ele excita o fogo adormecido plantado nas sementes dos
vegetais e lhe adiciona para a vegetação pequenos fogos semelhantes
a esporas. O segundo está oculto nas entranhas da terra, e por seu im­
pulso e ação os vapores subterrâneos são levados para o alto, por meio
dos poros e de pequenos tubos, e expulsos do centro para a superfície
da terra, e isso tanto para a composição dos metais, ali onde a terra se
torna proeminente, quanto para a produção dos vegetais quando suas
sementes estão devidamente putrificadas, amolecidas e preparadas para
a geração. Quanto ao terceiro, a partir do primeiro (isto é, do fogo solar)
engendrado da fumaça vaporosa dos metais, ele forma concreção com a
única matéria úmida quando é misturado com seu menstruo,* e é retido
nesse calabouço material como se fosse um prisioneiro; é preferível
dizer que ele está ligado da mesma maneira que a forma por seu mis­
to.* Por isso se mantém ali inserido nas sementes dos vegetais até que,
solicitado e agitado pela fina ponta dos raios paternos, ele do interior
coloca a matéria em movimento e a informa, e se torna o escultor e o
intendente do misto inteiro [...].
Os Filósofos observaram um triplo fogo na matéria de sua obra:
natural, inatural e contra a natureza. Eles chamam o fogo natural a esse
espírito celeste ígneo plantado e mantido nas profundezas da matéria, à
qual ele está rigorosamente preso, mas que, em razão da força exigente
do metal, se toma estúpido e inerte até que, excitado pelo artifício filo­
sófico e por um calor externo, seu corpo seja liberado e recubra a facul­
dade de se mover sem entraves; então, desenvolvendo-se, penetrando,
dilatando, congelando, ele enfim informa sua matéria úmida. Por isso, o
fogo de Natureza em qualquer tipo de misto é o princípio do calor e do
movimento. Eles chamam fogo inatural aquele que, vindo de outro lugar
e intervindo do exterior, foi introduzido na matéria por um artifício admi­
rável para aumentar e multiplicar as forças naturais. Enfim, eles chamam
fogo contra a natureza aquele que putrifica o composto e corrompe o
temperamento da natureza. Ele é imperfeito porque, inapto à geração,
não pode ultrapassar os limites da corrupção: esse é o fogo ou calor do
mênstruo. No entanto, é de maneira imprópria que lhe foi atribuído esse
O Fogo Secreto dos Sábios 479

nome de fogo contra a natureza, uma vez que de alguma forma ele é con­
forme à natureza, já que corrompe de tal maneira a matéria, sem deixar
de preservar a forma específica, que o dispõe para a geração.
Todavia, é mais crível que o fogo corruptor, que chamamos contra
a natureza, não seja outro que o fogo enxertado, mas em seu primeiro
grau: a ordem da Natureza exige, com efeito, que a corrupção preceda
a geração. É por isso que o fogo enxertado, que satisfaz a lei da na­
tureza, executa uma e outra, colocando sucessivamente em ação dois
movimentos na matéria: o primeiro, e mais lento, é um movimento de
corrupção suscitado por um calor fraco, a fim de amolecer e preparar os
corpos; o outro, mais vigoroso, é o da geração, excitado por um calor
mais violento, a fim de animar e perfeitamente informar o corpo ele­
mentar já disposto pelo primeiro. Esse duplo movimento é, portanto,
produzido pelo duplo grau de calor desse mesmo fogo, e não se
deve considerar que existam ali duas espécies de fogo; o nome de
fogo contra a natureza devendo ser dado com muito mais razão a um fogo
violento e destruidor [...].
Já que toda a obra consiste na separação e na perfeita preparação
dos quatro Elementos da pedra, consequentemente ela requer tantos
graus de fogos quanto existem nela de elementos, cada um deles sendo
extraído de acordo com o grau de fogo que lhe é apropriado. Esses qua­
tro graus de fogo são chamados fogo de banho, fogo de cinzas, fogo de
carvões e fogo de chamas, o qual é igualmente nomeado fogo de rever­
beração.* Cada um desses graus também possui seus próprios pontos:
ao menos dois e algumas vezes três. Que seja aumentado ou diminuído,
o fogo deve, com efeito, ser conduzido pouco a pouco através desses
pontos, para que a matéria chegue pouco a pouco no interior da Natu­
reza e, por seu próprio movimento, à sua informação e à sua realização,
nada sendo, com efeito, tão estranho à Natureza quanto o que é violen­
I to. Que o Filósofo se proponha então a considerar com que lentidão se
aproxima e se distancia o Sol, que dispensa sua chama e suas lampari­
nas às coisas do Mundo em função das estações, e seu calor segundo a
lei do Universo, a quem ele comunica seu temperamento.
Jean TEspagncc, /Irfano da Filostfa hermética
(Arcanum Hermética’ ^hiilosofiar, 1623), in Jcan-Jacqucs
Manget, Bibliothcca Chcmica Curiosa, t. II. p. 658.
*
* *

i
480 Filosofar pelo Fogo

fogo é, portanto, o princípio de nossa obra na medida em que é,


como já disse, o princípio da natureza, e o fogo, ainda que comum, é
conhecido por poucas pessoas; dele sai essa água sulfurosa mercurial
e salina, que é vegetal no início de nossa obra e úmida pela mesma
razão, e esse fogo de onde ela sai é invisível, já que é um fogo espiri­
tual. Às vezes, os Filósofos falam dele quan­
do se referem à sua via seca e algumas vezes
também pretendem falar sobre o fim da obra
em que todas as coisas são apenas fogo e, por­
tanto, secas, pois o úmido penetrou no seco e
se ocultou, e o seco se manifestou aos nossos
olhos, assim como o úmido o fez durante um
longo tempo. Eis, senhor, como é preciso com­
Sem Fogo nada se preender esses dois princípios e não tomá-los
opera, assim como não ao pé da letra, mas em relação ao fogo que está
há guerreiro sem armas. oculto em nossa obra, não há meio melhor de
começar a trabalhá-lo do que pela via úmida,
isto é, acomodá-la em um vaso para que ela não seja um calor úmido. E
mesmo assim você continua me dizendo que a via úmida é um trabalho
muito mais longo, sujeito a muitos acidentes e exigindo um homem
extremamente esclarecido na teoria, pois teme não conseguir realizar na
prática, em que há muitos passos incertos, a verdadeira separação dos
princípios e a devida purificação de cada um deles, que contêm em si a
ciência da verdadeira sublimação dos Filósofos.
E verdade, senhor, que a operação úmida é mais demorada do
que a seca, mas não a compreendo da mesma maneira, pois você acha que
existem duas vias para chegar a um mesmo objetivo, e não é nada disso,
e não há um só Filósofo que discorde; é bem verdade que existem duas
operações diversas, uma das quais é úmida e a outra, seca. A primeira
exige água e a última, o seco ou o fogo.
CartasJilosóJuas (séc. XVII), ms. n. p.
*
* *

com o mesmo fogo, de que a natureza se serve sob a terra, que a


arte deve trabalhar, e é dessa forma que ela imitará a natureza. Um
fogo vaporoso que, no entanto, não é leve; um fogo que alimenta e não
devora; um fogo natural, mas que a arte deve fazer; seco, mas que faz
O Fogo Secreto dos Sábios 481

chover; úmido, mas que resseca. Uma água que apaga, uma água que
lava os corpos, mas que não molha as mãos.
Eu não me espanto se muitos, e quase todos, erraram por não co­
nhecerem o fogo, pois é como se a eles faltassem os instrumentos ne­
cessários para sua arte; é certo que eles jamais chegariam ao objetivo a
que se propõem, e só fariam algo disforme e imperfeito. Para que então
suas obras sejam perfeitas, ó filhos da arte, sirvam-se desse fogo instru­
mental. pelo qual somente todas as coisas se fazem perfeitas. Esse fogo
está espalhado por toda a natureza, pois sem ele ela nào poderia agir,
e em toda parte onde a virtude vegetativa está conservada, ali também
esse fogo está oculto. Esse fogo sempre se encontra junto ao úmido* ra­
dical das coisas e acompanha continuamente o esperma cru dos corpos.
Mas, ainda que ele esteja assim espalhado em toda a natureza inferior,
e disperso nos elementos, ele nào deixa de ser desconhecido ao mundo, e
suas ações não são o suficientemente consideradas.
É esse fogo que causa a corrupção das coisas, pois é um espírito
muito grosseiro, inimigo do repouso, que só deseja a guerra e a destrui­
ção. Uma coisa que deveria ser muito admirada na natureza é que tudo o
que se encontra exposto ao ar, tudo o que está na água ou sob a terra, se
reduz a nada e retorna em seu primeiro caos. As mais sólidas pedras, as
mais fortes torres, os mais soberbos edifícios, os mais duros mármores,
e todos os metais enfim, com exceção do ouro, reduzem-se a pó depois
de um longo tempo.
0 vulgar ignorante costuma atribuir uma coisa tão surpreendente
ao tempo que devora tudo, e isso vem do fato de que ele ignora o que
está oculto nos elementos, e sobretudo no ar. E uma chama invisível c
insensível que imperceptivelmente consome tudo, e o envolve sob um
profundo silêncio. Esse fogo de que falamos está difuso no ar, porque
sua natureza é toda aérea. Por causa de seu espírito grosseiro ele decom­
põe os mistos* e, ao destruir as obras da natureza, reduz todas as coisas
ao seu primeiro ser por meio da corrupção. É por ele que as coberturas
de chumbo de algumas construções são depois de um longo período
convertidas em uma ferrugem branca, que se assemelha à cerusa arti­
ficial e que, sendo lavada pela água das chuvas, com ela se confunde e
se perde. Mesmo o ferro, pouco a pouco se transforma em escória, uma
parte depois da outra. Os cadáveres dos animais, suas ossadas, os tron­
cos das árvores bem como suas raízes, os mármores, as pedras, os me­
tais, enfim, tudo o que existe na natureza cai pela sucessão do tempo e
é reduzido ao nada, unicamente por essa causa, e por esse fogo secreto.
482 Filosofar pelo Fogo

Esse fogo algumas vezes é chamado Mercúrio pelos filósofos, por um


equívoco dc nome, pois ele é de natureza aérea, e é um vapor muito sutil,
participando do enxofre com o qual contraiu alguma impureza; e dizemos
de boa-fé que aquele que conhece o sujeito* da arte também conhece
que é principalmente ali que reside nosso fogo, todavia envolvido de fe­
zes* e de impurezas, mas ele só se comunica com os verdadeiros sábios,
que sabem constituí-lo e purificá-lo.
Marcantonio Crassclame, A Luz que sai
por si mesma das trevas (1666),
comentários c tradução de Bruno dc Lansac (1687),
niWilliam Salmon, Biblioteca dos Filósofos Alqttímicos,
t. III, p. 490-493.
*
* *

a destilação é preciso que o calor saia muito moderado, senão os


espíritos se elevam de forma demasiado abundante, com precipitação,
e quebram o vaso.*
Por meio dessa operação as duas raízes são exatamente purificadas,
e se tornam uma mesma substância aquosa, inseparável, permanente, e
que, segundo os Filósofos, é suscetível de chama, mas inextinguível ou
incombustível.
Por isso, são inventadas as lamparinas que sempre queimam, sem
consumir óleo. Assim era a que encontramos no túmulo de Túlia, filha
de Cícero, e que ainda permanecia acesa depois de quase 2 mil anos
queimando, quando foi descoberta sob o Pontificado de Paulo III, que
viveu no século XVI da Era Cristã. Também é o caso daquela relatada
na história de Pádua, que foi encontrada ainda queimando com essa
inscrição latina, em volta do vaso de terra, que servia de lamparina em
um túmulo muito antigo:
Plutoni sacrum munus tie attingiteJures
Ignotum est vobis hoc quod orbe latet.
Namque elementa gravi clausit digesta labore.
Vate sub hoc modico Maximus Olibius.
AdsitJcecundo custos sibi copia cornu.
Ne pretium tanti dispereat laticis.193

193. Ladrões, nào toquem no depósito sagrado de Plutão. / Ignorantes que são daquilo que o
vaso dissimula / Em que um duro trabalho encerrou os elementos divididos. / Em poder des­
se modesto poeta jaz Maximus Olybius. / Com sua trompa fecunda, a abundância recom­
pensará seus guardiões. / Para que de semelhante profundeza o bem não seja dispersado.
O Fogo Secreto dos Sábios 483

segredo da lamparina incombustível pode ser extraído dc qual­


quer animal e vegetal, mas especialmente do vinho, porque ele contém
niais das duas raízes que qualquer outro misto.* Essa água destilada e
feita das duas raízes é o úmido radical, no qual o calor natural é fixo
e permanente. Assim, essa água é um alimento muito apropriado para
conservar a vida.
Jcan-Bapristc Le Brcton,
As Chaves da Filosofa espagínca
(1722). p. 88-91.
*
* *
\/<ocê compreendeu que, depois de ter tido esse fogo secreto, ainda
é preciso saber o que é necessário fazer para finalizar a obra; que um ar­
tista não deve ignorar o tempo que as cores devem durar, sua variedade,
e os diferentes graus de fogo necessários para a decomposição e o con-
gelamento do ponto purol Sim, eu lhe digo. Pois bem, ele acrescentou,
comece por descartar os guardas que estão na porta do Palácio trancado
do Rei; faça uma calcinação potencial com os quatro Elementos; não
deixe nada; destrua tudo, Saturno assim o deseja.
Agora olhe esse espelho mágico, onde a natureza se revela: tudo
está então consumido, e os tempos marcados estão realizados.
Philothaume, Explicaçãofísica da Fábula
ou introdução à inteligência dos Filósofos (1724), p. 16.
*
* *
484 Fii.osof/\r pelo Fogo

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O Fogo secreto dos Sábios: Jean-Henri Cobaussen, Lumen novum


phosphoris ascensum, Amsterdã, 1717 (frontispício).
O Fogo Secreto dos Sábios 485

A Flor dos Sábios: Jérôme Reussner, Pandora, Basileia, 1582

J
19

O Céu Alquímico
Busquei, encontrei e limpei mais ainda;
Misturei, deixei amadurecer e descobri a Tintura de Ouro
Que já pode ser nomeada centro do mundo.
Origem de tantas opiniões, escritos c figuras variadas.
Hcnricus Madathanus, in Thtsaurus et
Armatnentartum medico-cbymicuni (1631), p. 475.

Aos olhos dos alquimistas gregos, a tintura só seria autêntica caso


se mostrasse capaz de expulsar do corpo tingido toda “sombra qual­
quer resíduo de um estado anterior que não tivesse sido purificado por
essa operação da qual depende a própria possibilidade da transmuta­
ção. Por isso, entre uma tintura artesanal modificando o aspecto exte­
rior de uma coisa e a tintura alquimica existe a mesma diferença que
entre um dourado superficial embelezando um objeto e a obtenção de
um Ouro filosofal: “Pois a tintura é como um ponto essencial, de cujo
centro saem os raios que se multiplicam em sua operação ” (Aforismos
químicos). Se tingir não é senão transmutar, o acento então não deve
ser dado à mutação de um gênero em outro, mas na qualidade de uma
impregnação: “Tingimos a lama com o Selo real, e nela colocamos a
cor do céu, a qual fortifica a visão daqueles que a olham” (Os sete ca­
pítulos atribuídos a Hermes).
Quando, portanto, os alquimistas falam de seu Céu, não é da abó­
bada celeste ou do mundo supralunar de que se trata, e muito menos do
“Céu do céu ” oposto ao da terra (Santo Agostinho), mas de um verda­
deiro firmamento - o que “mantém firme ” — ao qual pregar o influxo
do Solfilosófico, como diz um deles.194 Esse Céu, sendo “uma essência
superior aos quatro Elementos” (Apocalipse de Hermes), pode então
194. cf. Alquimia, textos traduzidos e apresentados por Bernard Gorceix, Paris, Fayard,
1980, p. 83.
-486-
O Céu Alquímico 487

ser legitimamente nomeado Quinta-Essência. Por outro lado, mas em


acordo com a mesma lógica, a arte das destilações no Ocidente flores­
cente desde o século XIV deu à extração da quintessência praticada
pelos alquimistas - água de vida, espirito de vinho, etc. - um alcance
médico cujos benefícios são em todos os pontos comparáveis aos da
pedra filosofal fcf. cap. 21).
Púrpura, Tintura a frio operando verdadeiramente.

Mantenha a coisa secreta, pois sua tintura é extremamente boa. Pegue a


raiz do pastel-dos-tintureiros,195 a parte exterior da orcaneta em quan­
tidade suficiente, com o mesmo peso da raiz - pois
ela é leve - triture no pilão. Dilua então a orcaneta,
triturando-a junto com a raiz, e ela entregará seu po­
der. Em seguida, pegue a flor com os tintureiros - sc
fora do quermes, melhor ainda; na falta, a flor da ce­
vada. Reaqueça o próprio grão com a metade da raiz
e jogue no pilão. Mergulhe a lã e tinja, sem impreg­
nar, com um ácido, e ela se tornará irreconhecível.
O que nós vemos e
Banho de cores fizemos com a ajuda
A quelidônia é a raiz de uma planta. Em banho da Natureza é c
frio, ela tinge de dourado. Ela é uma matéria muito perfeito Elixir.
preciosa. Use, então, a raiz da romã e obterá o mes­
mo resultado. Com eufórbia seca e fervida você obtém o amarelo. Caso
se misture um pouco de cloreto de cobre, obtém o verde. Assim como
com a flor do cártamo.
Papiro dc Estocolmo, Os Alquimistas gregos.
Paris, Les Bclles Lcttres, 1981, p. 137 e 148.
*
* *

V7 ue espécies produzem a coloração das pedras preciosas e com


que tratamento.
Para o carbúnculo, que brilha à noite e, que é chamado cor [de púr­
pura] marinha, são as bílis dos animais marinhos, peixes ou cetáceos,
por causa de sua propriedade de brilhar durante a noite, e sobretudo por
sua cor mais ou menos glauca. E o que manifestam suas entranhas, suas

195. Planta herbácea com flores amarelas. Cor azul extraída do pastel-dos-tintureiros e
empregada na tinturaria.
488 Filosofar pelo Fogo

escamas e seus ossos fosforescentes. De fato, Maria se expressa assim:


“Se você quer [tingir] de verde, misture a ferrugem do cobre com a bílis
da tartaruga; se quiser obter uma cor mais bonita, é com a bílis da tar­
taruga da índia. Coloque os objetos, e a [tintura] será absoiutamente de
primeira qualidade. Se não tem a bílis de tartaruga, empregue o pulmão
da medusa, e você fará uma tintura ainda mais bela. Quando ela está
completamente desenvolvida, os objetos tingidos emitem um brilho”.
Assim, Ostanes, para as esmeraldas, tomou as bílis dos animais e
a ferrugem do cobre, sem acrescentar a cor marinha. Para o jacinto, ele
tomou a planta do mesmo nome, o negro indiano e a raiz da ísatis. Para
o rubi, a orcaneta e o sangue-de-drago, Maria pegou, por seu lado, a
ferrugem do cobre e as bílis dos animais marinhos. Quanto à pedra que
brilha durante a noite, é a que os sábios em matéria de pedras chamam
jacinto. É por isso que ele continua nos seguintes termos: “Quando a
tintura está completamente desenvolvida, os objetos projetam um brilho
semelhante aos raios do sol”.
Tratados técnicos, in Marcellin Bcrthclot,
Cokfão dos antigos alquimistas gregos, t. III, p. 336-337.
*
* *
jZWaria diz: “Se nosso chumbo é negro, é
porque se tornou assim, pois o chumbo comum
é negro desde o princípio. Ora, como ele é for­
mado? Se você não priva os corpos metálicos de
seu estado e se não reduz os corpos privados
de seu estado ao estado de corpo [metálicos]; se
não faz de duas coisas uma só, nada do que se es­
pera acontece. Se o Todo não é atenuado no fogo,
se o vapor sublimado reduzido em espíritos não
sobe, nada será finalizado” [...].
Nosso filho engendrado, rei Os filósofos dividiram todas as operações
glorioso, tira do jogo sua da pedra em quatro fases: primeira, enegreci-
Tintura filosófica. mento; segunda, branqueamento; terceira, ama-
relamento; e quarta, tintura em violeta. Entre o
enegrecimento, o branqueamento e o amarelamento estão a levigação*
ou maceração e a lavagem das espécies. Ora, é impossível que essas
coisas aconteçam de outra forma, que pelo tratamento operado por
meio do aparelho com garganta196 e da união das partes.

196. cf. nota da presente obra, p. 370.


O Céu Alquímico 489

Pelágio, o filósofo, diz: “Eis o sinal pelo qual se reconhece que o


início da tintura em violeta está acontecendo. E a tintura produzindo-
se no interior que é a verdadeira tintura em violeta, a qual também foi
chamada ios* do ouro. Caso se realize, a tintura acontece; senão ela
nào acontece. Cuide então para que a tintura penetre na profundeza, do
contrário a tintura não acontece".
Zózimo, “Sobre a pedra filosofal’’, tn Marcclin Berthclot,
Colrfão dos antigos alquimistasgregos, t. III, p. 194.

*
* *
CZ-ompreenda então o que diz Ostanes: “Coloque sua mão no interior
da pedra e lhe tire o coração, porque sua alma está em seu coração".
Assim então, por semelhante declínio, essa pedra rejeita tudo o que está
no interior, e o fundo do coração é rejeitado, assim como o espírito, que
é o ios* amarelo, estabelece em princípio como a cor de ouro, pois essas
coisas estão em relação com o que tambcm Demócrito diz: “Trate a pi­
rita até que ela esteja amarela como a cor do ouro e verifique se o metal
se torna sem sombra. Se ele não se tornar sem sombra, não recrimine
o cobre, mas a você mesmo: pois não operou direito. Tratc-a então até
que o cobre, que se tornou amarelo e sem sombra, tinja todo o corpo de
ouro e se torne como a cor do ouro".
É preciso a partir de então considerar e observar se ele se torna
amarelo sem sombra, como a cor do ouro; se não se tornar sem sombra,
não pode tingir de amarelo como a cor do ouro. Com efeito, ele não
é ouro [ou dourado] quanto à sua qualidade, uma vez que são certas
qualidades que o tornam amarelo, pois a palavra qualidade tem como
etimologia a palavra fabricar. O amarelo produz uma tintura, cm razão
de sua qualidade dourada, pois é evidente que as ações exercidas pelas
qualidades são de certa forma incorpóreas. Disso decorre a ação de
dourar, uma vez que, se a cor não possui a qualidade amarela em sua
própria substância, ela não pode nem fazer o ouro nem tingir de ouro.
Mas nosso ouro, que possui a qualidade desejada, pode fazer o ouro e tin­
gir de ouro. Este é o grande mistério [a saber] que a qualidade se torna
ouro e então faz o ouro.
Eis por que a Coroa dos filósofos diz que a qualidade, pela trans­
mutação, realiza o que buscamos. Ele nos persuade e nos convida a
interrogá-lo, dizendo: “Qual é essa qualidade?”. Ele responde. “A qua­
lidade do pó de projeção reside nas qualidades douradas. Se adquire a
qualidade dourada e não se torna ouro, possuindo a cor perfeita, ele não
490 Filosofar pelo Fogo

pode fazer o ouro.” Assim então, como ele diz, verifique se o amarelo se
tornou sem sombra, isto é, [um ser] incorpóreo, um ios* amarelo como
a cor do ouro. O que se deve verificar é se o amarelo se tornou sem
sombra e se parece com a cor do ouro.
Zózimo, “Sobre a virtude c a interpretação”,
in Marcelin Bcrthclot,
Coleção dos antigos alquimistasgregos, t. III, p. 133-134.
*
* *
B Por isso Que Ungir é apenas transformar ao tingir a coisa tingida

na natureza daquilo que tinge, e permanecer nesse estado sem nenhuma


outra transformação; a natureza ensinando a natureza a combater o
fogo, pois a natureza da coisa tingida se harmoniza com a da tintura. Por
exemplo: se você tinge o chumbo, o estanho ou qualquer outro corpo
semelhante com o ouro ou a prata, existe uma harmonia das naturezas,
uma vez que tanto uns quanto outros tiraram sua origem do Mercúrio;
por isso, o maduro pode ser unido ao imaturo, que dessa maneira é
alçado pelo outro à perfeição. Mas, como esses quatro espíritos são de
uma natureza diferente da dos metais, como já foi suficientemente dito,
eu pergunto: se devem tingir, eles devem converter ou ser convertidos?

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Transmutação dos metais pelo Mercúrio dos Filósofos:


Speculum veritatis, séc. XVII.
O Céu Alquí.uico 491

Se devem ser convertidos, então não se trata de tintura, como evidencia


a definição. Se devem converter, eles o fazem tingindo em sua própria
natureza, que é terrestre e, portanto, estranha à natureza metálica; por
isso, ao tingir, eles não podem confeccionar o metal, pois está prova­
do que ao tingir eles convertem em sua própria natureza todo ser que
engendra gerando seu semelhante. Mas como essa espécie de tintura
engendra quatro espíritos, a terra produzirá então seu semelhante, que é
terrestre como ela. Despreze assim, como outras tantas vias estrangei­
ras, essa tintura e qualquer outra, que não é descoberta na propriedade
da natureza, pois nelas só há esgotamento das coisas, desperdício de
tempo e de trabalho, uma vez que todas as outras coisas são metais
aparentes e que não existem real mente, elaborados pelo intermédio dos
metais menores ou similares. Portanto, é insensato buscar em uma coisa
o que não existe.
Richard, o Inglês, A Correção dos insensatos
(Corrediofatuorum, séc. XII),
in Aurífera Artis quatn Chanian vceant, t. I, p. 598-599.
*
* *
iWuitas coisas estão certamente expostas no
meu livro Roseira* para obter o conhecimento da
obra, e iniciar os ignorantes no ensino da verdade.
E, uma vez que nele nada de supérfluo é avançado,
nào quero apresentar um resumo. Considere, por­
tanto, o vermelho completo, e o vermelho diminuí­
do em sua vermelhidão, e toda vermelhidão do fixo
e do volátil, do morto e do vivo, dos minerais, ve­ AvthorRosa>
getais e animais: pegue o vivo vivificante, o morto rú Afino ris .
mortificante, o branco branqueador (albificante), o Transmutação dos
vermelho rubificante e o imperfeito aperfeiçoador. metais pelo Mercúrio
E isso de tal forma que a brancura do corpo per­ dos Filósofos:
feito seja aumentada, a tal ponto que ela tinja em Speculum veritatis,
brancura, e o mesmo em relação ao vermelho. Mas séc. XVII.
anote e considere de que qualidade são os corpos, e o que pode lhes ser
acrescentado em sua liquefação, e com eles preservar e resistir ao exame-
nem todo ázimo nem todo vermelho tingem os corpos em sol e em lua
A tintura do corpo deve ser tal que sua própria liquefação possa ser mis­
turada ao corpo liquefeito e penetrá-lo, de forma que ela refaça o corpo
com ele. A tintura deve, portanto, ser uma substância corpórea para
492 Filosofar pelo Fogo

o beneficio dos minerais, vegetais e animais medíocres. A verdadeira


tintura da brancura é, portanto, o enxofre muito branco extraído da Lua
verdadeira, e a mais perfeita tintura da vermelhidão é o enxofre: verme­
lho muito vermelho, extraído do Sol verdadeiro. Um é, portanto, pos­
sível, assim como o outro. O que todo artista prudente e discreto sabe.
A Pequena Roseira (Rosariutn rninor),
in Alchernitr Doctrina, t. I, p. 607-608.

*
* *
T< . A f d •
JL-/ u vi escorrer o Aço como se fosse uma onda viva
Enquanto brilhando pelo excessivo calor
à bola de enxofre ele estava oposto:
Vi dessa mescla um açafrão composto,
De que um peso colocado na água se dilata de tal forma,
Que tinge mil pesos na cor escarlate:
Cor que da água clara não se vê desunir
E nem com o tempo menos vermelho se tornar.
Se o Enxofre e o Marte da imperfeita tintura
Une-se tão forte à água que não é de sua natureza,
Seria coisa impossível ao nosso ouro exaltado,
E feito mais que perfeito quase em infinitude,
Espalhar sua cor nos corpos metálicos
Para torná-los para sempre templos de suas relíquias,
Uma vez que o paciente é semelhante à prata?
Em seu corpo de boa vontade a alma se aloja [...]
O fim universal da verdadeira Alquimia
E retirar dos metais uma impura cadmia,*
Que, ao infectá-la, sua pura substância impede
De chegar ao topo onde a natureza tende:
Depois acrescentar ao socorrer sua natureza aflita
Ao Enxofre muito perfeito sua semente purgada:
Pois o mais precioso é para o mais vil metal,
Em semente primeira e em nascimento igual [...].
Vemos esse milagre em outro vulgar
Que o simples rústico costuma fazer;
Quando industrioso em um balde de leite mistura
Alguns grãos de coalho, ou de um queijo velho,
Que o calor reúne, e faz tudo dispersar
Nesse leite, que logo em queijo vai se tornar:
O Céu Alquímico 493

O que era coalho, e ainda esse queijo,


Senão um leite talhado; nem mais nem menos que o ouro
Um Mercúrio espesso, e cristalizado por natureza,
Com um Enxofre esparso que lhe serve de coalho? [...]
A tintura do Sábio é fixa, e permanente;
Que dissolvida e recozida infinitamente aumenta
Em potência e em número, com o mesmo leite,
E o mesmo coalho de que o queijo é feito.
Que verdadeira tintura, e que permanência
Tu queres encontrar no corpo que a chama tem potência
De reduzir em carvões, ou de enviar ao vento?
Porém, mais do que cortês quero de estimar mais sábio,
E te fazer um profeta entre tais heréticos,
Arrancando-te do lamaçal dos labores sofísticos.
Clovis Hcstcau de Nuiscmcnt.
Poema jHosójico da verdade da Física mineral (1621),
p. 32-33, 36. 39.
*
* *
Paracelso fala nos seguintes termos sobre a maneira de operar a fer­
mentação: uma libra dessa matéria deve ser projetada antes sobre mil
libras de Sol líquido. E somente então terá sido preparada a Medicina
capaz de transmutar a umidade leprosa dos metais. Assim é a fermen­
tação, que na verdade não é nada além do que a primeira projeção cor-
pórea. Mas, caso se adicione a essa Medicina uma solução de enxofre
vermelho com uma luminosidade de rubi (como ensina a quarta pran­
cha do Livro do Mercúrio ressuscitado)'91 a fim de conjugar à Pedra es­
piritual um fermento de mesma natureza, ela seria então dotada de uma
força de penetração muito maior e se tornaria fundível, como declara
Paracelso em sua Aurora, onde ele diz expressamente que o astro, ou
óleo do Sol, deve ser adicionado a essa Pedra.
É por isso que, quanto a mim, ordeno que se acrescente uma parte
de fermento vermelho a três partes dessa Pedra, para que seja efetuada
sua verdadeira fermentação. A Tintura física e alquímica é assim reali­
zada, cuja virtude Paracelso tem em grande consideração.
A Tintura dos Médicos é, portanto, a Medicina universal, consu­
mindo todas as doenças a exemplo de um fogo invisível, e isso não

197. Tratado de Samuel Norton, Frankfurt, 1630.


494 Filosofar pelo Fogo

importando a maneira como é nomeada. Sua dosagem é extremamente


fraca, mas sua operação é muito potente. Graças a ela foram de fato tra­
tadas e curadas por mim lepra, infecção venérea, hidropisia, epilepsia,
cólica, gota, e outras doenças semelhantes. O lúpus198 também, o cân­
cer, o “noli me tangere”as fístulas e todo tipo de doenças internas,
com mais eficácia do que se poderia acreditar.
Em sua composição, o Mercúrio dissolvido e fixo torna-se corpo;
o sangue do Leão vermelho, Espírito; o Fermento, Alma. Na trindade é
assim realizada a unidade da Medicina nomeada Tintura física e alquí-
mica, que nenhum autor até agora expôs e descreveu integralmente em
uma única obra; e eu juro a esse respeito só tê-lo feito para que a com­
posição dessa Medicina divina não caia em um esquecimento eterno.
Samuel Norton, O Catoliciio dos Médicos ou
A Maneira de confeccionar a Tinturafísica e alqutmica
(Catholicon Pbysicoruni seu Modus confciendi
Tincturam pbystcatn et alcbyniicatn, 1630), p. 9.

*
* *

inda que o doutor saiba o que é a tintura, no entanto o simples e o


ignorante não o sabem, eles, que muitas vezes têm mais talento e inte­
ligência do que o doutor, sem ter tanta arte. E por isso que escrevo para
eles, que buscam, ainda que eu pense que nem o doutor nem o alquimis­
ta têm a base da tintura, a menos que ele tenha se regenerado do espíri­
to. Pois é esse que procura através de tudo, quer seja sábio ou ignorante.
Diante de Deus, o doutor não é mais evoluído do que o camponês.
A tintura é uma coisa que separa e retira do impuro o que é claro
e puro. Ela carrega com ela a vida de todos os espíritos ou de todas
as essências em seu mais alto grau. Sim, ela é a razão do brilho e do
esplendor, ela é uma causa que faz com que todas as criaturas vejam
e vivam. Mas sua forma não é de uma única espécie: ela não está nos
animais como no homem, e também é diferente nas pedras, nos metais
e nas plantas. Ainda que esteja verdadeiramente em todas as coisas, ela é,
no entanto, fraca em algumas e em outras quase impotente.
Mas, se procurarmos o que ela é em sua essência e em prioridade,
e como ela é engendrada, realmente encontraremos uma substância pre­
ciosa e nobre em sua geração, pois ela deriva da potência e da fonte da
divindade, que está representada em todas as coisas. E por isso que ela é
198. Doença de pele.
199. “Não me toque”: úlcera cutânea.
O Céu Alquímico 495

tão secreta e tão oculta, e nenhuma base afetiva, [ nijfu fliic


falsa ou ímpia em seus conhecimentos poderá
encontrá-la nem conhecê-la, e ainda que esteja <<>• .-i. i lí..
lá, no entanto nenhuma alma ligeira c falsa lhe é
digna. É por isso que ela lhe permanece oculta,
e Deus governa tudo em todos, sem que a cria­
tura o sinta e se aperceba. Essa criatura cessa de
ser e não sabe como isso lhe acontece: ela vive
c não sabe no quê, perece e não sabe como, e a
sombra e a figura da tintura permanecem eterna­
mente. Pois ela nasceu da eterna vontade, mas o
espírito lhe foi dado pelofiai, segundo a espécie
de cada criatura. Ela também foi implantada e in­
corporada no início da criação nos diamantes, nas
Jacoh Boehme, Dreitaches
pedras e nos metais, de acordo com cada espécie.
Leben, Amsterdâ, 1682
Jacob Boehme, Dw três Prin­ (frontispício).
cípios da csscncia divina,
XII, p. 25-31 (DcTribus Princtpiis, 1619),
Paris, Éditions daujourdhui, 1985, t. 1, p. 199-201
(reimpresso da edição de 1842).
*
* *
D izer que a tintura universal opera a transmutação dos metais é
uma expressão imprópria; seria melhor dizer que ela amadurece os cor­
pos imperfeitos e os exalta, porque todos os metais são análogos entre
si, e só diferem uns dos outros em um único grau, mais ou menos dis­
tante: podemos lhes comunicar esse grau por meio da Arte; a razão e
a experiência são duas coisas necessárias para adquirir esses tesouros
incomparáveis.
Essa tintura universal se extrai dos primeiros princípios universais
de tudo o que existe no mundo pelas influências dos astros, que, por sua
disposição, causam a vegetação, a vida e a morte.
Todas as coisas sublunares estão expostas a semelhantes vicissitu­
des; os astros nos apresentam remédios para curar todos os males que
eles nos causam.
A tintura universal brilhará pelo tempo que a harmonia estabeleci­
da entre os astros subsistir, e nada jamais poderá alterar essa tintura, a
não ser uma mudança geral.
1

496 Filosofar pelo Fogo

||La. ‘1

tí!
O
A multiplicação: Johann Daniel Mylius, Philosophia
reformata, Frankfurt, 1522.

Nada é mais absurdo do que o raciocínio daqueles que negam a


existência de um único remédio para curar todas as doenças que provêm
de um sangue corrompido e viciado; recoloque esse fluido em seu esta­
do natural, e o corpo no qual ele circula estará curado.
Somente a tintura universal pode então restabelecer o corpo huma­
no, no qual ela age como um óleo muito puro em uma lamparina; a tintu­
ra universal queima enquanto tiver um alimento, e quando esse alimento,
ou, melhor dizendo, quando os humores heterogéneos faltarem, a lampa­
rina, o óleo ou o fogo universal se apagam no corpo humano, sem atingir
as partes saudáveis sobre as quais ele pode cair: ele mantém o fogo vital,
e conserva os espíritos em volta do coração, onde ele espalha uma virtude
balsâmica, que se distribui em seguida em toda a massa do sangue, que
se renova inteiramente, e cada membro do corpo recebe uma nova força
para retomar as funções que as doenças e a idade tinham interrompido.
Sabinc Stuart de Chcvalier,
Discurso Jilosófico sobre os três Princípios
(1781), t. II. p. 28-30.
*
* *
O Céu Alquímico 497

multiplicação é apenas o aumento do corpo e de sua virtude, dan­


do-lhe uma nova cocção e consequentemente reiterando todas as ope­
rações precedentes.
Assim, para multiplicar o elixir é preciso dissolvê-lo em uma água
crua para recrudescê-lo;* é preciso ainda separar suas raízes, destilá-las
e sublimar, para lhes dar mais sutileza e penetração.
A multiplicação ainda acontece sempre mais prontamente quan­
do é repetida com frequência, pois os espíritos ígneos que finalizam
e aperfeiçoam a obra são aumentados pela adição do volátil, tanto em
quantidade quanto em virtude.
A prática da multiplicação consiste em dissolver o elixir em sua
água mercurial pela putrefação, em purificar por destilações e subli­
mações leves, em fazer a união, em digerir levemente até a sicidade e
brancura, e em continuar a cocção ate a vermelhidão do rubi.
Assim, o elixir adquire mil vezes mais virtudes do que tinha, e o
mesmo acontece a cada repetição, até o infinito.
E da mesma forma, o elixir animal vermelho e fixo deve ser dis­
solvido por seu espírito animal, e o espírito animal que deve dissolvê-lo
não é outro senão a flor do sal dissolvido na água límpida pela putrc-
fação.
O suporte que faz subsistir a forma não é senão a umidade radi­
cal;* e o instrumento que a forma emprega para produzir suas ações não
é outro senão o calor natural.
E com isso se conclui que a excelência da forma depende da umi­
dade radical, e que a excelência de suas ações depende do calor natural.
Consequentemente, a excelência tanto da forma quanto de suas ações
se transforma pelas alterações do úmido radical e de seu calor natural.
O úmido radical, e consequentemente o calor natural, recebe mu­
danças pelos diferentes magnetismos das partes elementares, tanto in­
ternas quanto externas, quando pela potência de sua ação elas acabam
perturbando a harmonia que conserva a natureza do misto.*
As impressões diversas dos elementos externos perturbam com
suas intempéries o temperamento do úmido radical e destroem suas
ações; as partes elementares internas se tornam discordantes, caso algu­
ma delas acabe prevalecendo sobre as outras. Qualquer um dos magne­
tismos elementares prevalece sobre os outros, assim que a quintessência
ou espírito magnético do misto escapa pela ação das causas externas.
O combate dos magnetismos elementares, ou das qualidades inter­
nas do úmido radical, continua até que chegue uma nova quintessência,
498 Filosofar pelo Fogo

ou que um novo espírito resulte desse movimento, que reduza todas as


partes discordantes a um magnetismo uniforme, e produza um novo
misto.
Pois as partes de composição diferente em qualidades elementares
não se harmonizam entre si senão por meio da quintessência que as sub­
mete a um magnetismo comum, e constitui o caráter presente do misto
pelo tempo que ela pode ali se conservar.
A quintessência, o magnetismo específico, o elo, a semente dos
elementos, a composição dos elementos puros, são expressões sinóni­
mas de uma mesma coisa, de uma mesma matéria ou sujeito,* no qual
reside a forma; é uma essência material na qual o espírito celeste é
encerrado e operado. Quanto mais esse elo é puro, tanto mais a forma
é livre e vigorosa e consequentemente suas ações, mais fortes.
Jean-Baptistc Lc Brcton,
As Chaves da Filosofia espagírica
(1722), p. 388-396.
*
* *
1E/ le não era menos cuidadoso na preparação do ouro e da prata vul­
gares para torná-los filosóficos, isto é, para torná-los próprios para ser
facilmente reduzidos em mercúrio derretido, e eis o modo como ele
operava: fazia fundir o ouro e a prata, e, estando derretidos, projeta­
va sobre o ouro um pouco de pó avermelhado, e sobre a prata um pó
branco; os metais vegetavam no meio do fogo em forma de arbustos,
particularmente quando, estando prestes a se coagular pela diminuição
do fogo, quando este era completamente retirado, eles pouco a pouco
se congelavam: o que ele então colocava ali me parecia uma substância
mercurial. Mas a prata se elevava bem mais alto que o ouro, o qual pro­
duzia em sua superfície apenas uma espécie de espuma com uma cor
entre o verde e o negro. Os metais nesse estado eram quebradiços, mas
conservavam sempre sua cor de ouro ou de prata, de acordo com o que
eram.
Dessa maneira, os metais, de vulgares eram tornados filosóficos,
e de mortos tornavam-se vivos, uma vez que vegetavam, e seus corpos,
estando assim mais abertos, ofereciam uma entrada mais fácil ao mer­
cúrio filosófico, para reduzi-los em sua própria natureza de mercúrio
derretido e volátil.
Ele chamava isso recrudescer* os corpos, isto é, rebaixá-los em
sua extrema fixidez.
O CêU ALQUÍMICO 499

Ele lançava esses metais assim preparados e recrudescidos em fa­


relos grosseiros e em seguida os colocava em seu mercúrio filosófico
fluido; e tudo era posto para digerir no calor da areia e em três ou quatro
dias se reduzia à Prata-viva, escorrendo com a mesma facilidade que
um grande pedaço de gelo se dissolve na água morna.
Crossct de la Haumerie
(pseudónimo de François-Marie-Pompce Colonna),
Os Segredos mais ocultos da Filosofa dos Antigos (1722), p. 32-34.
*
* *

x^oloquei, portanto, de acordo com sua ordem, o crisol [cadinho]


com essa quantidade de mercúrio, em um velho forno que se encon­
trava nesse quarto: em seguida, ele me deu o peso de um pouco mais
de meio grão de pó vermelho, assim como os Filósofos o descreviam,
e me fez envolvê-lo em um pedaço de cera proporcional à quantidade
de pó. Quando julgou que o mercúrio estava quente, fez-mc jogar essa
pequena bola dentro. Enfim, depois de duas horas de bom fogo, retirei o
crisol, no qual em vez da prata-viva se encontrava a mesma quantidade
de ouro, ou quase, o qual resistia a todas as provas feitas ao ouro mais
puro; e, calculando o peso do pó e o do mercúrio, julguei que um grão
pesado desse pó deveria transmutar cerca de 4 mil em ouro. Também
observei que nessa fixação da viva-prata, e em todas as outras que tínha­
mos feito desde então, o mercúrio jamais fez esse barulho ou detonação
que o Fidalgo guianense, quero dizer Zachaire, e alguns outros Filóso­
fos disseram que fazia ao se fixar; mas, assim que o pó a ele se mistura,
ele permanece muito confortavelmente no fogo e como se estivesse em
seu elemento.
Crossct dc la Haumerie
(pseudónimo dc François-Marie-Pompce Colonna).
Os Segredos mais ocultos da Filosofia dos Antigos (1722). p. 9-10
*
* *

Céu/quintessência
1E/ is a preparação dessa água divina: pegue os ovos da serpente do car­
valho, que no mês de agosto mora nas montanhas do Olimpo, do Líbano
ou de Taurus. Pegue esses ovos frescos, coloque uma libra deles em um

L
500 Filosofar pelo Fogo

vaso de vidro. Adicione a água divina bem quente, faça subir quatro
vezes até a região celeste, até que o óleo destilado se torne de cor púr­
pura. Pegue: 13 onças de amianto, nove onças de
sangue de conchinhas [de púrpura], cinco onças
de ovos de falcão com asas de ouro. Esses ovos
são encontrados perto dos cedros do Líbano, na
montanha. Esmague tudo em um pilão de pedra,

_____ ^oy-/I ou seja, o amianto, a conchinha e os ovos, até


que tudo esteja bem homogéneo. Junte a primei­
ra composição à segunda e deixe descansar por
AvCTOR. FROCES/, três dias. Depois de realizar a operação, coloque
Jus ItTuicturílPhilof em um [vaso] de vidro todas as matérias esma­
gadas e mergulhe o vaso na água do mar durante
Autor do Tratamento da um dia e uma noite. [Então] a água divina estará
Tintura Filosófica: O Rei
completamente preparada.
vem do Fogo coroado
com um diadema solar Essa água divina ressuscita os mortos e
em Ouro. faz morrer os vivos, ilumina as coisas escuras
e escurece as coisas claras, apodera-se da água
do mar e faz o fogo desaparecer. Algumas gotas pequenas dessa
água dão ao chumbo o aspecto do ouro, com a ajuda do Deus invisível
todo-poderoso, que pratica a sabedoria e a potência, e que ordena que
do não ser todas as coisas sejam conduzidas ao ser, que elas nasçam e
sejam dotadas de forma. É somente a ele que é preciso atribuir a força,
ao Deus único, universal e verdadeiro.
Ostanes, "Sobre a Arte sagrada”,
in Marcelin Berthelot,
Coleção dos antigos alquimistas gregos, t. III, p. 251.

*
* *
c aiba então, meu caro Filho, que o ignorante não pode penetrar
no segredo da Arte, porque não tem o conhecimento do verdadeiro
corpo. Conheça então, meu Filho, as naturezas, o puro e o impuro,
pois nenhuma coisa pode dar o que ela não tem. E como as coisas se
fazem e não podem se fazer senão de acordo com sua natureza, sirva-
se então do mais perfeito e do mais próximo membro que encontrar,
e isso lhe bastará; deixe, portanto, o misto* e tome seu simples, pois
ele é sua Quintessência. Considere que nós temos dois corpos de uma
grande perfeição, cheios de Prata-viva. Retire então deles sua Prata-
viva e obterá a Medicina, que chamamos Quintessência, que tem uma
O Céu Alquímico
501

potência permanente e sempre vitoriosa. É uma luz viva, que ilumina


toda Alma que a percebe uma vez. Ela é o nó e o vínculo de todos os
Elementos, que ela contém em si, assim como é o espírito que alimenta
e vivifica todas as coisas, e por meio do qual a Natureza age no Univer­
so. Ela é a força, o início, o meio e o fim da obra. Para dizer tudo em
poucas palavras, saiba, meu Filho, que a Quintessência e a coisa oculta
de nossa Pedra não são senão nossa Alma viscosa, celeste e gloriosa,
que retiramos por nosso Magistério de sua mina, que apenas a engen­
dra, e que não está em nosso poder fazer essa Água por nenhuma Arte,
somente a Natureza pode engendrá-la. E essa Água é o Vinagre muito
ácido que faz do corpo do Ouro um puro Espírito. E eu lhe digo, meu
Filho, para não levar em consideração as outras coisas, porque elas são
vãs, mas apenas essa Água, que queima, branqueia, dissolve e congela.
É ela enfim que putrifica e que faz germinar. É por isso que eu o advirto
que toda a sua intenção deve estar no cozimento de sua Água, e que
você não deve de forma alguma se impacientar com o tempo neces­
sário, caso contrário, você não extrairá nenhum fruto de seu trabalho.
Cozinhe então suavemente essa Agua, até que ela transforme uma falsa
cor em uma cor perfeita, e cuide desde o início para não queimar suas
flores, ou de se apressar demais para chegar mais prontamente ao final
a que você se propõe. Feche muito bem seu Vaso, para que aquilo que
nele foi colocado não saia, e dessa maneira você poderá obter sucesso
em seu trabalho. E observe que dissolver, calcinar, tingir, branquear, re­
frescar, banhar, lavar, coagular, embeber, cozinhar, fixar, triturar, resse­
car e destilar são uma mesma coisa, e que todas essas palavras querem
dizer apenas cozinhar a Natureza até que ela seja perfeita.
O Livro de Sinésio, in William Salmon.
Biblioteca dos Filósofos Alqnímicos, t. II, p. 178-180.
*
* *
_/Was em relação ao que está ordenado aos homens de morrer uma
vez (como diz nosso verdadeiro Filósofo São Paulo, na Epístola aos
Hebreus, no nono capítulo), seria algo fantástico trabalhar nesta vida
mortal, para buscar uma coisa que possa fazer com que nosso corpo
que é mortal seja imortal [...]. Claro, temos inelutavelmente no texto da
Sagrada Escritura que Deus prefixou e ordenou a cada um seu prazo de
vida, do qual não podemos por engenho humano nem estudo escapar
nem abandonar. Como diz Jó: os dias do homem são breves, o número
de seus meses está diante de Ti. Tu ordenaste teus termos, que não
502 Filosofar pelo Fogo

serào de forma alguma ultrapassados. Portanto, é inútil e vão bus­


car ajuda para prolongar o termo de nossa vida. Então só nos resta
buscar algo que possa proteger e conservar nosso corpo da putrefação,
até o termo ordenado por Deus para nossa vida, e mantê-lo em saúde e
curá-lo quando estiver doente, restaurá-lo se estiver debilitado e quase
morto, até que a morte preordenada, segundo o termo citado, venha.
Todavia, evitar totalmente e escapar da morte para além do prazo orde­
nado e predito está tanto em nosso poder quanto se esquivar do raio, de
uma queda súbita ou de uma violência ou impetuosidade que fazemos
a nós mesmos. Agora falta dizer que vigiávamos e considerávamos a
morte, que pode nos acontecer antes do prazo pelas doenças, corrup­
ções do corpo, e por falta de virtude [...].
Às coisas mencionadas, respondemos fielmente que é preciso bus­
car uma coisa que seja da mesma natureza das quatro qualidades que
compõem nosso corpo, como é o Céu* em relação aos quatro Elemen­
tos. Ora, os Filósofos chamaram o Céu, a Quinta-Essência, em relação
aos quatro Elementos, pois o Céu em si é incorruptível e imutável, não
recebendo em si mutações ou impressões estrangeiras, a menos que
seja pelo comando de Deus; da mesma forma, a coisa que buscamos,
em comparação e em relação às quatro qualidades de nosso corpo, é a
Quinta-Essência, em si incorruptível, se ela permanecesse eternamente,
e não é quente, nem seca com o fogo, nem úmida nem fria com a água,
nem quente nem úmida com o ar, nem fria nem seca com a terra, mas
é a Quinta-Essência, que vale às coisas contrárias, assim como o Céu
incorruptível: pois, quando é necessário, ele propaga a chuva úmida,
algumas vezes quente, outras fria, e outras vezes seca. Assim é a raiz
de vida da Quinta-Essência, a qual o altíssimo Deus criou na natureza,
para que ela possa ajudar nas necessidades do corpo, até o último prazo
que Deus constituiu para nossa vida. Eu disse que Deus todo-poderoso
criou a Quinta-Essência, que atraímos do corpo da natureza criado por
Deus pelo artifício humano. E a nomearei por três nomes, os quais lhe
foram impostos pelos Filósofos. Eles a chamam Água ardente, Alma e
Espírito do vinho,* e Água de Vida.
Jcan dc Rupescissa, A Virtude e Propriedade da
Quinta Essência de todas as coisas
(séc. XIV, trad. fr. 1549), p. 10-14.
*
* *
O Céu Alquímico 503

Tentes é preciso saber de que nature­


za é a Quinta-Essência, elemento sim­
ples obtido a partir de qualquer coisa ou
matéria, e cujo conhecimento revelará
mais facilmente o resto, pois, segundo o
testemunho de Marcus Cícero, toda coi­
sa cuja doutrina é exposta deve provir
de uma definição, para que se compre­
enda a respeito do que se deve discorrer.
Saibam então que a Quinta-Essência é o
quinto Ser de toda coisa que tem forma e
aparência, e a alma muito sutil, extraída
de seu corpo bem como de uma matéria
mais grosseira, e da superfluidade dos
O segredo da Tintura Filosófica:
quatro elementos, por uma destilação úl­
Leonhard Thurneisser,
tima e muito sutil, que mais adiante mos­
Quinta-Essência,
traremos como deve ser feita. No mais, Leipzig, 1574.
não devemos nos espantar que essa arte tenha sido desconhecida dos
homens por tanto tempo, pois muitos dos antigos Filósofos trabalharam
assim nesse assunto, a fim de manter por essa arte a vida dos homens,
sustentá-los e prolongar sua duração. Mas, ainda que eles tenham se es­
forçado em retardar a morte e o termo estabelecido pela Natureza, eles,
no entanto, não prolongaram - o que é fácil prometer aos homens des­
providos de razão - a própria vida para além do fim instituído por Deus;
o que fez Paulo dizer que a todos é dado o dever de um dia morrer,
pois assim como é estranho à Natureza conservar perpetuamente a vida
por determinado medicamento corruptível, assim também a Natureza
é capaz de conservá-la em qualquer idade, graças a um medicamento
incorruptível e próximo dela; ora, para que isso seja feito da melhor
maneira possível, o melhor antídoto é a Quinta Essência, que não é feita
de nenhuma coisa elementar, mas é a alma de alguma maneira separada
de seu corpo, de forma que nela não permaneça nenhuma qualidade
fria ou quente, úmida ou seca que os quatro elementos e todos os outros
mistos* possuem em si. De onde se conclui, principalmente, que esse
quinto Ser está tão próximo da natureza incorruptível que qualquer coi­
sa que lhe é misturada seja de alguma forma considerada como sendo
incorruptível. Ela, com efeito, confere e restitui todas as forças, livran­
do o homem dos excrementos dos elementos, e ela é o espírito de vida,
uma vez que digere todas as coisas indigestas, corta todas as qualidades
504 Filosof/Xr pelo Fogo

supérfluas, preserva as carnes da corrupção, conforta as coisas elemen-


tadas, restaura a primeira juventude, vivifica o espírito, endurece o
mole e amolece o duro, rarefaz o espesso e espessa o frágil, engorda
o magro e emagrece o gordo, refresca o quente e inflama o frio, resse­
ca o úmido e umidifica o seco e, em toda constituição, evoca o elemento
oposto: portanto, ela faz desaparecer os incómodos devidos às coisas
supérfluas, e restaura o calor natural de forma que nada mais conve­
niente para a sustentação da vida pôde ser descoberto pelos mais emi­
nentes Filósofos. Na verdade, é possível que essa Quinta-Essência adote
de certa maneira a constituição da coisa que lhe foi acrescentada, pois
ela atrai para si e absorve a constituição de qualquer coisa que lhe foi
adicionada; todavia, é apenas para ela e por ela mesma que ela existe,
e não detém em si absolutamente nenhuma das quatro qualidades, nem
mesmo o ar.
Saiba, portanto, à maneira de quarto e último ponto, que essa
Quinta-Essência não tem nada do elemento terrestre, frio e seco, pois
ela cura as doenças melancólicas que são frias e secas. Concluindo,
você vê então que ela não é nem quente nem fria, nem úmida nem
seca, sendo coisa de natureza temperada que supera em excelência to­
dos os outros elementos presentes sob o céu. Por isso, ela tempera o
corpo daquele a quem foi administrada, e não abandona em nenhum
caso sua temperança, ao se apropriar de certa qualidade ou constitui­
ção. Também não se deve concluir que, sendo de natureza quente, ela
seja a medicina das doenças frias nem que cure as doenças quentes,
uma vez que é de natureza fria. Com efeito, duas coisas contrárias não
podem coexistir em um único corpo, já que uma delas é expulsa pelo
seu contrário. Vemos, portanto, que não devemos classificá-la nem de
quente ou fria nem de seca ou úmida: por isso ela cura as tuberculoses,
que são quentes e secas, e as hidropisias, que são úmidas e frias, mas
todas essas quatro qualidades lhes são integralmente retiradas depois de
terem sido corrompidas. E, ainda que não seja um elemento, ela é, con­
tudo, coisa temperada, tendo ela mesma se purificado por meio desses
elementos, e extraída de suas imundícies, que são causa mais potente
da corrupção. Ela é, portanto, separada de suas fezes,* assim como o
corpo muito grosseiro o é de sua matéria, como de uma alma muito
sutil pela ciência das destilações. Ora, ainda que a Quinta-Essência seja
o termo comum designando aquilo que, de todas as coisas que têm for­
ma e aparência, deve ser extraído pela própria coisa, e ainda que seja
permitido relacionar principalmente seu uso ao vinho, são, no entanto,
numerosas todas as outras matérias de onde essa Quinta-Essência pode
O Céu Alquímico 505

ser atraída e extraída: de todos os metais, de todos os frutos, da carne,


dos ovos, das raízes, das plantas e de muitas outras coisas ainda, como
mostraremos mais adiante. Mas o quinto Ser supera, no entanto, em
excelência, todas as outras coisas, por causa de sua grande sutileza, por
isso ele foi chamado por um grande número de Filósofos o Céu* dos
Filósofos, pois, assim como o próprio Céu se comporta em relação aos
quatro elementos, assim se comporta o céu dos Filósofos (quero dizer
a Quinta-Essência) em relação às quatro qualidades do corpo humano,
que é composto desses mesmos elementos.
Alguns a nomeiam também Água ardente, porque o fogo a conso­
me se ela é conduzida à perfeição e última destilação, não deixando en­
tão no vaso* nenhuma umidade supérflua: que será demonstrado mais
adiante, quando falaremos sobre o seu modo de conhecimento. Outros,
com razão, a chamam a Alma do vinho, pois, assim como a própria alma
é mais nobre que seu corpo, assim essa Quinta-Essência, extraída pela
destilação, é mais nobre que o vinho de onde ela é extraída. Também é
chamada por outros de Espírito de vida, pois preserva a vida humana da
corrupção, como podemos constatar quando ela é administrada aos que
sofrem uma síncope.
Philippc Ulstadc. O Céu dos Filósofos
(Calttm Philosophorum, 1525),
p. 13-20 (cd. latina de 1557).
*
* *
|S e você ouviu o que lhe revelei antes, extraído dos grandes segredos,

quando lhe disse que em toda coisa a Quinta-essência permanece pura


e sem corrupção: também seria muito importante se eu lhe declarasse o
meio de extraí-la do sangue humano, da carne de todas as espécies de
animais, dos ovos, e de todas as coisas semelhantes. Portanto, já que em
nós o sangue humano é a mais perfeita obra da Natureza, na medida em
que ele mostra como aumentar a juventude despendida, é certo que a
Natureza aperfeiçoa tanto a Quinta-essência, que de repente, sem gran­
de aparato, ela transmuta o sangue das veias em pura carne. Por essa
razão, é muito importante poder ter essa Quinta-essência, tão propícia
e conveniente à Natureza, pois ela é uma virtude admirável de nosso
i Céu* estrelado, e também faz coisas milagrosas para manter e conser­
var a natureza, como demonstrarei mais adiante. Pegue nas barbearias
o sangue de todos os homens, sanguíneos e coléricos, o qual terá sido
retirado de pessoas que têm o hábito de beber um vinho bom. Deixe
506 Filosofar pelo Fogo

esse sangue repousar, retire a água e deixe-o secar. Depois moa com
a décima parte de sal comum, preparado pelos Médicos dos homens,
coloque tudo em um frasco de vidro e feche e sele diligentemente.
Depois o coloque no ventre de um cavalo preparado como explicado
anteriormente, e mexa o excremento uma ou duas vezes durante a
semana, para que o fogo seja mais forte, e dcixe-o apodrecer até que
tenha se convertido inteiramente em água. Essa água aparecerá em 30
ou 40 dias, algumas vezes mais, outras vezes menos. Coloque então
essa água em um alambique e ponha para destilar em bom fogo, deixe
subir tudo o que puder subir. E jogue o que subiu várias vezes sobre
as fezes* terrestres, misture sobre o mármore, e depois o destile e
refaça essa operação várias vezes. E quando tiver a nobre água desse
sangue bem reiterada e ratificada, e quiser atrair sua Quinta-essência,
coloque-a em um vaso* circular, e a faça passar por várias destila­
ções, até que esteja reduzida, tenha o odor e o aroma da Agua ardente
citada antes. E essa é a Quinta-essência divina e mais milagrosa do
que se pode imaginar. •
Jean dc Rupcscissa, A Virtude e Propriedade da
Quinta-Essência de todas as coisas
(séc. XIV, trad. fr. 1549), p. 34-36.

*
* *
P egue um vinho que não seja muito caro, nem muito gordo, nem

espesso, mas que seja nobre, delicioso, saboroso e


aromático, o melhor que puder encontrar, destile-o
pela serpentina ou tubo o número de vezes neces­
sário para fazer a melhor Água ardente que você
p puder: não por breve destilação, mas gota a gota,

o três, ou sete, ou dez vezes destilada. E essa Água é


a água ardente que os Filósofos e Médicos de nosso
tempo não conseguiram realizar. Ela é a matriz da
I AvthordiQvb Quinta-essência, e nesse livro pretendemos, sobretu­
I tu Ejfcntia, Vtní . do, tratar do que ela é feita. Porque, depois que tiver
Autor de Sobre a atraído a nobre Água ardente, você mandará fazer no
Quintesscncia do forno dos vidreiros um destilatório chamado Circu­
Vinho: Apoio toca a lar, que deve ser da seguinte maneira: mande fazer
lira, Diana carrega um vaso* com a forma de um Querubim, que é a fi­
rosas brancas, Saturno, gura de Deus, e que tenha seis asas, como se fossem
unia vestimenta negra. seis braços se fechando sobre si mesmos, e em cima
uma cabeça redonda, sem nenhum receptáculo, com
O Céu Alquímico 507

um bico no meio, virado para baixo. E coloque dentro desse vaso a


Água ardente, fazendo um fogo embaixo, para que, pelas ascensões e
descensões contínuas, essa Água, pelas asas braquiais, possa tanto su­
bir quanto descer dia e noite, que ela possa subir até acima do vaso, e
pela vontade de Deus celestialmente convertida na Quinta-essência que
nós buscamos. É preciso observar que a melhor Água ardente que você
poderá fazer pela operação comum, só conseguirá fazê-la se ela não
estiver misturada aos quatro Elementos materialmente. Para isso, é bem
divino e espiritualmente necessário dizer que, pelas contínuas ascen­
sões e descensões, a Quinta-essência que procuramos deve ser separada
da composição corruptível dos quatro Elementos. E isso se faz pela
subida e descida, pois o mais sutil, glorificado e separado da corrupção
dos quatro Elementos permanece no alto, e não é apenas por uma única
ascensão, mas por várias, até mil vezes, e, além do mais, pela contí­
nua ascensão e descensão, ela atinge uma altura tão grande, e vem tão
gloriosa e tão fortemente composta, que é quase incorruptível, assim
como o Céu,* e é da natureza do Céu. Por isso nós a chamamos Quinta-
essência. Pois ela é para nosso corpo o mesmo que o Céu é cm relação
a tudo no Mundo, de tal maneira que o artifício quase pode seguir a
Natureza, assim como qualquer coisa semelhante e muito próxima [...].
O altíssimo Deus não apenas criou uma Quinta-essência na Água
ardente, mas também colocou, em quase todas as coisas, certa Água per­
durável, maravilhosa e celeste. Eu lhe rogo para que abra seu espírito e
entendimento, para que conheça a verdade. Pois as coisas corruptíveis se­
riam incontinênti destruídas e abatidas, se por uma boa organização elas
não fossem conservadas continuamente por meio dessa Quinta-essência.
Jcan de Rupescissa, A Virtude e Propriedade da
Quinta Essência de todas as coisas
(séc. XIV. rrad. fr. 1549), p. 23-25 c 29.

*
* *

e quiséssemos entregar a razão pela qual lhe foi dado o nome de


Quinta-Essência, sou da opinião que a causa é a seguinte: como os
Elementos são em número de quatro, e que eles foram adicionados e
misturados a qualquer parte do misto, e que com eles as qualidades
se tornaram manifestas, uma única virtude específica está na realida­
de ligada à forma e à parte mais sutil, se a virtude do misto foi quase
totalmente separada das partes mais grosseiras, ou se revela inerente
a esse composto, que abunda com efeito de todas as impurezas dos
Elementos. De fato, ela parece se distanciar tanto dos Elementos
508 Filosofar pelo Fogo

abandonados, que de alguma forma surge como o Quinto Elemento,


ainda que, no entanto, ela contenha em si todos os Elementos (como já
dissemos). Portanto, ela é assim chamada não por ser uma verdadeira
Quinta-Essência, mas em razão de sua virtude, e por comparação. Para
que produzíssemos sua definição, digamos que haverá uma Quinta-
essência de cada alimento, e que a força do remédio celeste pode ser
no mais alto grau purgada dos Elementos pela arte alquímica, para a
conservação dos homens e o prolongamento da vida humana. Operando
o regulamento das doenças perniciosas, ela é chamada éter, espírito,
alma, mercúrio, vegetal, chave dos Filósofos e Céu, pelo qual o influxo
celeste age de fato em nós; e assim ela é comumente possuída por causa
de nosso corpo, assim como o céu o é em razão do mundo inteiro, de
tal forma que a arte pode imitar a Natureza. Enquanto outros ocultam
a denominação de sua propriedade, de sua substância e de sua forma
específica, nós a nomeamos de força celeste e faculdade única.
Karl Witcstcin, Debatefilosófico a respeito da
Quinta-Essência dos alquimistas (Disceptatto Philosophica de
Quinta Chyinicorum Essentia (1583), p. 59-60.
*
* *
jl^T ós dissemos anteriormente que o Céu* é o quinto Elemento: não
que se deva concluir pela existência de cinco Elementos, já que eles são
no máximo quatro, entre os quais a mais pura substância foi separada
por Deus de maneira sobrenatural e conduzida à união no Céu, enquan­
to, produzida pela união dos Elementos, a mais grosseira substância per­
manece embaixo, depositada nas quatro partes que constituem o mundo
inferior elementar, ali, onde a outra parte constitui o mundo etéreo. De
maneira similar, nossa quinta essência metafísica é extraída, graças a um
Magistério sobrenatural, pela separação dos Elementos mais grosseiros
das coisas. Ora, essa separação não é aquela estimada pelo maior núme­
ro daqueles que, distanciando-se da verdade, acreditam erroneamente
que dos quatro elementos um poderia ser isolado e assim liberado dos
outros. Pois, se isso se mostrasse possível, a máquina do mundo seria,
com efeito, facilmente destruída, mas, para que isso não aconteça, o Al­
tíssimo guardião de todas as coisas deu mostra de previdência, e quis
que essas quatro partes fossem assim conservadas sob o jugo da união,
a fim de que seja permitido e possível distinguir uma da outra quanto à
qualidade, e que cada uma retenha, no entanto, em si a essência de todas
as outras. Essa união nos aparece mais manifestamente no Céu, onde
O Céu Alquímico 509

não é visível nenhuma distinção das partes, e que encerrou sob a tutela
de um vínculo mútuo a unidade das coisas inferiores com as superiores:
as quais, todavia, são apenas a única natureza. Dupla é, portanto, a sepa­
ração, a saber: uma que concerne aos Elementos, para que os mais puros
sejam separados dos mais grosseiros; sendo a outra as qualidades ele­
mentares: separação acontecendo depois aos olhos do vulgar, mas que
na realidade é primeiramente metafísica.
A natureza opera, contudo, apenas pela mistura que comporta duas
operações: a alteração e a animação. Das coisas particulares falaremos
mais amplamente em seguida; agora falaremos da separação do puro e
do impuro. Isso se efetua por si mesmo em alguns corpos, como o vi­
nho, e em outros por um intermediário, como nos grãos e nas sementes.
Ainda que em todos os corpos produzidos peia natureza esteja oculta
uma quinta-essência, todavia em nenhum deles ela pode ser obtida
em uma quantidade tão abundante quanto no vinho, nem de nenhuma
outra coisa tão facilmente separada. É por isso que os Filósofos lhe dão
preferência, em razão da facilidade com a qual ela pode ser isolada
pela separação, e não porque essa quintessência seria cm si melhor ou

A destilação: Philipp Ulstad, Ccelum


Philosophorum, Estrasburgo, 1527.
510 Filosofar pelo Fogo

mais recomendável que aquela extraída de qualquer outro corpo. Pois


essa virtude celeste é igualmente repartida entre todos e universal, e só é
diferente em razão da variedade dos sujeitos* e do tempo mais ou menos
longo durante o qual esteve em cada um deles: liberada, ela retorna à sua
unidade. Este é, com efeito, um dos mais secretos arcanos da natureza,
por meio do qual os Filósofos chegam às mais altas realidades.
Gcrard Dorn, Da Operação sobrenatural
(De Artijieio supernaturali), in Clavis totius
Philosophia- ehymistieir, 1567, p. 286-288.
cf. também Theatruni Cbeniicuin, t. I, p. 283.

*
* *

Alquimia revela e exalta os ornamentos e paramentos dos corpos,


pois ela discerne e reconhece neles o que é de uma ordem mais elevada

■?= J J,
À V?

—'p.M.i

a»*'

fSI nr.f

A arte de encontrar sua via no labirinto hermético: Goosen Van


Vreeswijk, De Groene Leeuw, Amsterdã, 1674.

e perfeita. Por isso, ela revela que, com essas perfeições e paramentos
corporais, devem ser necessariamente dadas as graças venusianas das
formas de onde devem por sua vez jorrar em abundância e de todas as
partes, de maneira realmente justa e boa, as ações honestas.
É igualmente verdade que a Alquimia ensina a conhecer a natureza
universal e mostra o caminho das virtudes e energias próprias às coisas
O Céu Alquímico 511

singulares, até que o próprio centro de toda natureza seja descoberto e


tornado manifesto. E quem quer que tenha desse centro um correto co­
nhecimento, também conhece muito bem e com certeza quais são seus li­
mites periféricos; e, uma vez que os limites de todas as coisas, que a partir
desse centro se estendem até a superfície, foram exatamente descobertos
e determinados, toda a natureza aparece como um globo e uma massa
esférica, cujo centro é a matéria primeira e última, de onde são extraídas
todas as coisas e para onde elas retornam por si mesmas. Nesse centro,
com efeito, estão ocultas as virtudes de tudo o que na superfície aparente
se manifesta abertamente, pois nessa superfície se produzem todos os
movimentos e processos de geração, graças aos quais essas virtualidades
se tornam enfim visíveis; e para esse centro elas retornam em verdade
como um primeiro Caos, e ali repousam, até que o Arqueu* da natureza
as leve novamente para a superfície exterior onde, recobertas por uma
nova vestimenta, elas se apresentam ao olhar e à luz. Quem ignora o cen­
tro da natureza também ignora seu limite ou superfície, e suas produções;
certamente ele percebe as gerações variadas dos seres, contempla os di­
versos nascimentos e destruições, de acordo com a vontade dos animais
brutos, assim como as cascas e epidermes exteriores, mas na realidade
não percebe nem delimita o núcleo e a essência das coisas; muito pelo ao
contrário, mistificado pelos corpos e revestimentos cambiantes, ele retém
e aprisiona toda a sua informação por trás de suas tenebrosas e obscuras
defesas. Mas a verdadeira ciência e completa informação jamais encon­
tram na superfície um lugar estável e firme, mas descobrem esse ponto
fixo no centro: na própria superfície moram, com efeito, a morte e a mu­
tação permanentes, ao passo que apenas no centro perduram a vida e o
repouso eternos e imutáveis dos seres e das coisas. É por isso que nos
é necessário ter conhecimento desse centro, se quisermos que também
nos sejam conhecidos todos os movimentos que dali extraem sua origem.
Somente a Alquimia, entre todas as artes, é aquela que, por meio
de suas operações, que são como os muitos dos fios de Ariadne,* indica
a via para que saíssemos desse labirinto* infernal que é o corpo, e que
presos no centro de todas as coisas vencêssemos o Minotauro, isto é,
que suplantássemos o pecado, graças a esse estimulante, e dirigíssemos
nossos passos para espaços etéreos repletos de delícias, a saber, o Céu.
Mas antes de desfrutar do Céu nós seguimos Ariadne, isto é, o engenho
humano e o trabalho atento; e confiamos sua responsabilidade a Baco,*
isto é, ao homem disponível às preocupações que o estudo e o trabalho
dão: a vida humana é, com efeito, extremamente relaxada e imbecil, e
não exala nenhuma virilidade, se não tiver como auxiliar e companheiro
512 Filosofar pelo Fogo

o estudo industrioso e um trabalho perseverante, descritos e representa­


dos sob o nome de Ariadne.
E que a Alquimia extravasa em habilidade, em acuidade na apti­
dão, em diligência extrema e em trabalho industrioso tanto quanto dedi­
cado. Por isso, ela nos é de uma ajuda muito certa para que, conduzidos
e acompanhados por ela, penetrássemos as vias impraticáveis da na­
tureza, olhássemos no interior das obras labirínticas de Dédalo, e para
que sejamos capazes de fazer retornar a ordem e nos evadirmos para os
espaços superiores e, tornados por eles mais prudentes e mais sábios,
refletir sobre o que são a verdadeira sabedoria e a verdadeira prudên­
cia. Assim, a Alquimia também designa os costumes probos da alma
quando, pela graça do exemplo, a própria vida de um homem nos dá
matéria para filosofar e que, de sua anatomia interna e muito profunda,
ela recolhe o fruto da imortalidade, e nos indica a beatitude futura da
vida, se seguirmos suas leis e normas, e a miséria eterna, se abraçarmos
seus vícios [...].
É tudo isso que a Alquimia ensina, mostrando que todas as coisas
tendem para o centro que lhes é próprio, a fim de encontrar nele sua
perfeição suprema e última. Mas, comportando-se como ímpio, o ho­
mem perdido e mau não entende nada disso nem quer compreendê-lo,
sendo o único ser de toda a Criação que neglicencia e desdenha seu
centro de perfeição. Porém, em seu trabalho e em seu castigo, também
foram instituídos os Infernos, comparáveis prisões onde os homens de
má vida expiam pela eternidade, por meio de penas e trabalhos, seu es­
quecimento daquilo que era seu bem inato e natural, com o único fim de
seguir o mal e o pior; e, no entanto, ninguém quer isso, e tem até mesmo
horror e foge como o faria de uma besta feroz e perniciosa ou da peste.
Se, portanto, a Alquimia ensina a buscar hábitos mais honestos,
ela institui assim a correta conduta da vida humana e torna seus discí­
pulos prudentes e sábios, e isso a partir do conhecimento que podemos
adquirir dessa ciência e do fim para o qual nós nascemos e que devemos
alcançar, para que, enfim, divinamente inspirados, repousássemos com
Deus no eterno e entrássemos em posse do bem supremo, cujo uso mos­
tra e requer a plenitude de uma virtude honesta e correta e a compreen­
são da razão absoluta da infelicidade da vida humana.
Pierre-Jcan Fabre, O Alquimista cristão
(Alchymista christianus, 1632), p. 159-166.
*
* *
O Céu Alquímico 513

(Segundo um testemunho unânime dos Filósofos, os componentes do

elixir são em número de três, a saber: a alma, o corpo e o espírito. A


alma não é nada além do que o fermento ou a forma do Elixir. O corpo
é sua massa ou a matéria, já que os dois foram extraídos apenas dos
metais: a forma do Sol e da Lua, é evidente, assim como a matéria de
Saturno, Júpiter, Vénus e Marte. A terceira parte da Pedra é, portanto, o
espírito, que, quando se torna a sede e o veículo da alma, integra-o ao
corpo, aproxima e une esses dois extremos pelo vínculo indissolúvel de
um engajamento recíproco, e se esse mediador vier a faltar, a alma não
pode, em nenhum caso, empreender sozinha aliar-se ao corpo. Esse es­
pírito não é nada além de certo licor que enfraquece a forma e a matéria
da Pedra, e as reduz assim a uma natureza espiritual. Semelhante espíri­
to às vezes foi chamado pelos Filósofos de Céu,* Mercúrio fugitivo,
Mênstruo, Azoto,* Quinta Essência, e designado sob uma quantidade
de outros nomes.
RobertusTaul.id.inus (scc. XVI). ín
Johann Michaclis Fausrus, Pandora (1706), p. 885-866.

*
* *
Terra e Céu em perfeito equilíbrio: Marx Ernst, Depois dc mim o sono, 1958.
O Céu Alquíaaico 515

Johann Daniel Mylius, Anatomia Auri, Frankfurt. 1528.


20

Uma Realeza Metálica:


o Ouro Filosofal
Digo que a Natureza sempre teve como objetivo
e sc esforça sem cessar para chegar à perfeição, ao Ouro.
Roger Bacon, O Espelho da Alquimia (séc. XIII),
in Jean-Jacques Manget, Btbliotheca Chanica Curiosa, 1.1, p. 613.

O parentesco é estreito entre esses três frutos da busca filosofal,


que são o Ouro, a Pedra e a Medicina universal. Fermento do qual nas­
ce pela projeção a Pedra, o Ouro tornado “potável” não é senão esse
Elixir de vida tão procurado por suas virtudes medicinais. Muitas vezes
comparado a Jasão, que partiu com os Argonautas para a conquista do
Velo de ouro, o alquimista só pode esperar descobrir seu equivalente
graças à Corrente de Ouro de Hermes (Aurea catena) religando Céu
e Terra, corpo e espirito, visível e invisível. Consciente de ter de des­
confiar das seduções do ouro vulgar, que fariam dele um novo Midas,
o Adepto não o era menos dos danos causados por uma multiplicação
irresponsável do ouro, fiador dos valores morais e sociais.
Símbolo de uma raridade reconquistada à precariedade e triviali­
dade ordinárias, o Ouro “se mantém entre os corpos como o sol entre
as estrelas ” (Pseudo-Avicena). Se ele também simboliza junto com o
Leão - animal e signo zodiacal - é porque uma mesma “virtude solar ”
lhes dá seu brilho e os faz Reis, cuja potência só tem como igual a
equanimidade. No Ouro, com efeito, acalmaram-se os conflitos, equi­
libraram-se os contrários, abraçaram-se os inimigos de ontem. Encar­
nação de uma fixidez resplandecente, o Ouro filosofal é em todas as
coisas esse pontofixo e virgem, esse grão minúsculo, mas incorruptível,

-516-
r

Uma Realeza Metálica-, o Ouro Filosofal 517

capaz de converter, em toda parte onde ele reina, a doença em saúde e


a potência em virtude.

* *
35 m sua altura, o ouro é quente e úmido: é um ouro aéreo, sanguíneo,

da cor do açafrão, suave, aromático, masculino. Em sua profundidade,


ele é frio e seco: é um chumbo e uma prata negra, terrosa, melancólica,
ácida, fétida, feminina. De um lado, ele é frio e úmido. isto é, estanho e
prata-viva, que tem a natureza de uma água fleumática. branca, apática
e sem sabor, feminina; do outro, ele é quente e seco, isto é, ferro c bron­
ze, ígneo, colérico, vermelho, amargo, agudo,
masculino. Esta é, na verdade, a harmonia re­
cíproca de todos os corpos e, vendo isso, os
Filósofos avaliaram que um pode ser transfor­
mado em outro, e a ação confirmou sua avalia­
ção. Eles, com efeito, converteram a prata em “-LI
ouro, ou inversamente, e da mesma forma em
relação às outras coisas submetidas à geração
e à corrupção. Por isso, não quero que você se
O Ouro é produzido a
espante se o Sol se torna em certa medida cor­ partir do Enxofre e da
póreo, e reina sozinho como mestre, de forma Prata-\'iva em pouco
que nenhum dos outros corpos se alie a ele: o tempo nofogo.
equilíbrio de sua natureza, a pureza e a nobreza
de sua substância o mereceram, e por essa razão ele obtém a preemi­
nência sobre todos os corpos. Também nào quero que você se espante
se a prata-viva é agora colocada entre os corpos, e entre os espíritos nas
coisas superiores, pois a convertibilidade de sua natureza exige que ela
agora se associe tanto com os corpos quanto com os espíritos. Ela, com
efeito, normalmente se associa com os espíritos, em razão de sua pro­
pensão a fugir do fogo antes que esta seja corrigida, e porque no exame
ela glorifica os corpos quando foi corrigida; ela se associa também de
direito com eles, porque todos os corpos podem ser convertidos nela, e
ela pode ser reduzida neles; ou ainda porque, com a ajuda do Enxofre
que com ela governa, todos os corpos provêm dessa origem como isso
é manifesto na geração de todos os metais.
O ouro é engendrado a partir da Prata-viva clara, misturada ao
Enxofre vermelho claro, e ele é endurecido durante um longo tempo no
coração da terra, por um calor temperado. E porque o ouro foi durante
muito tempo cozido em temperatura moderada e sua natureza tornou-se
1

518 Filosoi:/\r pelo Fogo

clara, suas partes adquirem pouco a pouco uma coesão, até que ele se
torne sólido e pesado, e por isso não se putrifica na terra nem é facil­
mente consumido pelo fogo.
Pscudo-Aristótelcs, Do Magistério perfeito
(De perfeeto Magistério), in Jcan-Jncqucs Manget,
Bibliotheea Chemica Curiosa, t. 1, p. 642.
*
* *

Ouro é o Corpo mais perfeito que existe, o Soberano das pedras,


o Rei e o chefe de todos os outros corpos. Nem a terra o corrompe,
nem as coisas escaldantes o consomem, nem o fogo o diminui, mas, ao
contrário bonifica-o, pois no fogo o Ouro é impregnado de certa um ida­
de, nem a água consegue alterá-lo. Sua constituição é temperada e sua
natureza equilibrada em calor, frieza, umidade e
secura; e nele não encontramos nem superfluida­
de nem falta de qualquer tipo de natureza. Ele de
fato foi criado da substância muito sutil e clara da
13 iw1 í x Prata-viva e do pouco abundante enxofre puro e
limpo, fixado no vermelho e tingindo com brilho a
própria substância da Prata-viva.
O Ouro é considerado o corpo e o fermento
do Elixir ao branco e ao vermelho. Por essa ra­
Avicenna Arabs zão, somente com ele é melhorado, aperfeiçoado
Phdofophús
ou realizado, e nenhum outro: da mesma forma,
Avicena, filósofo árabe: a massa não pode fermentar por meio de nenhum
A Águia voadora no ar
outro fermento que não o seu. O Ouro é um corpo
e o Sapo avançando
sobre a Terra são o inalterado, perdurando pelos séculos e séculos, e
Magistério. é por isso que os Filósofos lhe deram sua prefe­
rência e o enalteceram: sobre o Ouro, de fato, afir­
maram que ele se mantém entre os corpos como o Sol entre as estrelas.
Pois o Sol faz crescer em sua luz e em seu brilho todos os vegetais e leva
à maturidade todos os frutos. E por isso que Hermes afirma que não há
verdadeira tintura sem a pedra ao vermelho.
O Ouro ocupa o primeiro lugar entre todos os corpos quanto à no­
breza, porque é o mais temperado em razão da mistura e depuração do
enxofre e do Mercúrio: ele tem muito da virtude do enxofre, e pouco de
sua substância; ao contrário, ele tem muito da substância do Mercúrio,
e pouco de sua virtude. Essa é a razão pela qual se torna pesado pelo
Mercúrio, ao passo que a virtude do enxofre o torna muito vermelho. E
Uma Realeza AAetálica: o Ouro Filosofal 519

por causa da forte ligação do Mercúrio e do enxofre em sua cal. ele não
é tão úmido e untuoso ao tato quanto os outros corpos, por isso ele
não deixa marcas negras como os outros metais quando c usado em um
pergaminho. Mas, se lhe acrescentamos a prata ou outro metal, então
ele deixará marcas negras, porque a untuosidade do corpo que lhe foi
adicionado tende para a superfície c o faz branquear c se uinidificar: c
porque algumas de suas partes se espalham cm abundância em direção
ao centro e, por ser mais pesado, por causa de sua Prata-viva.
Pscudo-Aviccna, Pe.jitenc Tratade $d>re a
(‘íracMultis de Alrhfmia), m |can-|acqucs M.ingct.
Bibliotheea Chettuea Curicsa, /. I. p. 627.
*
* *

ilho dos Filósofos, existem sete corpos ou metais, entre os quais o


Ouro ocupa o primeiro lugar; por ser mais perfeito de todos, ele c cha­
mado seu Rei e seu chefe.
A Terra não poderia corrompê-lo, as coisas escaldantes não o des­
troem, a Agua não o altera nem o muda, porque sua constituição é tem­
perada e ele é composto igual mente de calor, de frieza, de secura e de
umidade, e nele não há nada de supérfluo.
E por isso que os Filósofos o preferiram a todos os outros, e o
estimaram muito, garantindo-nos que o Ouro, por seu esplendor, era em
relação aos outros metais o que o Sol era para os astros por sua luz, que
nele é bem mais brilhante do que nos outros.
Assim como é o Sol que, pela vontade de Deus, faz nascer e cres­
cer todos os vegetais, e que produz e amadurece todos os frutos da
Terra, da mesma forma o Ouro também contém todos os metais em
perfeição. E ele que os vivifica, pois é o fermento do Elixir, c sem ele o
Elixir não pode ser realizado.
Pois, assim como a massa não poderia ser fermentada sem levedu­
ra, da mesma maneira quando você tiver sublimado o corpo, que o tiver
limpado, que tiver retirado das fezes* o negror que as torna desagradá­
veis, para juntar e unir esse corpo e essas fezes, coloque neles fermento
e da Terra faça a Água, até que o Elixir se tome fermento, como a massa
se torna levedura, pelo fermento que a ela misturamos.
Se você considerar e examinar bem a coisa, verá que o fermento
que se deve adicionar à obra só deve ser tomado de alguma coisa que
seja de sua própria natureza. Pois você não vê que a levedura só é
tomada da massa que foifermentada?
520 Filosofar pelo Fogo

E observe que o fermento branqueia a composição: ele impede


que ela se queime; retém a Tintura, e a torna fixa e permanente; ele re­
gozija os corpos; une-os e os faz entrantes e penetrantes.
E essa é a Chave dos Filósofos, e o objetivo em que se terminam
todas as operações feitas durante a Obra. É por meio dessa Ciência que
os corpos se tornam mais perfeitos do que eram, e que com a ajuda de
Deus a obra é realizada, assim como é pelo desprezo e pela incorreta
opinião que temos desse fermento que a obra é arruinada, e que não
acontece.
Pois aquilo que é a levedura para a massa, o coalho para o leite,
em relação ao queijo que com ele se faz, e o que é o almíscar para os
perfumes, a cor do Ouro o é certamente para a Tintura vermelha, e sua
natureza não é uma suavidade.
É por isso que com ele fazemos a seda, isto é, o Elixir, e com ele
fizemos a pintura com a qual escrevemos, e tingimos a lama do Selo
real, e nela colocamos a cor do Céu,* a qual fortifica a visão daqueles
que a olham.
O Ouro é, portanto, a Pedra muito preciosa, que não tem manchas,
e que é temperada. E nem o Fogo, nem a Água, nem a Terra poderiam
corromper esse Fermento, o qual, por sua composição temperada, reti­
fica e coloca todos os corpos imperfeitos em uma adequação e tempe­
ratura moderada e igual, transmutando-os em Ouro. E esse fermento é
amarelo, ou é verdadeiro alaranjado.
O Ouro dos Sábios, sendo cozido e bem digerido, por meio da
Água ígnea, ou do chumbo, e, por sua composição temperada e igual, é
o fermento do Elixir. Como, ao contrário, o que não é temperado é feito
por uma composição desigual.
No mais, a primeira obra se faz com o vegetal e a segunda, com o
animal, de que temos um exemplo (no ovo da galinha, do qual se forma
o frango), dos Elementos que ali se veem visivelmente. E nossa Terra é
Ouro, do qual fazemos a seda, que é o fermento do Elixir.
Os Sete Capítulos atribuídos a Hermes,
iti William Salmon, Biblioteca dos Filósofos Alquímicos,
c. I, p. 58-65.
*
* *

epois que tiver visto que sua matéria suportará a análise de fusão
e que desejar separar de seu metal, caso exista ali ainda alguma imun-
Uma Realeza Metálica: o Ouro Filosofal 521

dície, ou se quiser separar qualquer outro metal misturado ao Ouro ou


à Prata, você fará da seguinte maneira: pegue uma boa quantidade de
cinzas de vinhas, ou de ossos de animais queimados e pulverizados, e os
peneire enquanto houver o pó; ou então pegue cinzas comuns e peneire
e filtre, mas prefira as cinzas dos ossos ou das vinhas* às outras; e, quan­
do elas estiverem bem filtradas, regue-as com água doce, até que as cin­
zas fiquem de alguma maneira úmidas, e coloque-as em qualquer vaso*
de terra que seja feito à maneira de um crisol [cadinho] ou de uma tigela,
e coloque dentro do vaso o tanto de cinzas que puder, até que ele esteja
cheio; depois, amasse com um pilão, até que elas fiquem homogéneas
e duras como pedra, então faça um buraco no meio, que não seja muito
profundo, e deixe secar ao Sol ou em fogo brando; quando ela estiver
bem seca, coloque no forno e faça um fogo lento, até que ela esteja bem
cozida e que fique vermelha.
Aumente então o fogo, coloque dentro chumbo que não contenha
nenhum estanho e o esquente tão forte, até que ele fique claro sem fazer
ranhuras, e cuide para não adicionar nada para finalizar completamente,
caso o chumbo não se torne claro; pois você arruinaria sua análise e não
poderia saber exatamente a quantidade de seu Ouro ou Prata, e teria um
prejuízo, e tudo por causa do estanho, caso haja.
E saiba que cada onça de chumbo comporta 1/8 de cobre ou de
outro metal, como ferro e aço. E quando seu chumbo escorrer sobre
a cinza, coloque o que você quiser afinar, e então o chumbo o beberá
e também o escurecerá. Portanto, reforce seu fogo e assopre delicada­
mente enquanto mexe, então verá os fios escorrerem por cima da cinza.
Mantenha então o fogo brando, até que observe surgir apenas uma forte
claridade branca, e que não ferva mais, e que seja claro como o Sol; e,
quando deixar de girar e se tornar escura, é o sinal de pouco chumbo;
coloque então imediatamente por cima um pouco de chumbo até que
ele gire, e continue o fogo até que o mesmo sinal apareça; jogue então
água por cima e deixe esfriar, e pegue a Prata ou o Ouro que encontrar
em sua cinza, e o derreta em um crisol [cadinho] de terra e assopre por
cima, depois o jogue em um lingote quente que tenha gordura ou cera
espalhada.
Nicolas Grosparmay
O Tesouro dos tesouros (1449). ms. n. p.
*
* *
522 Filosofar pelo Fogo

ois este axioma é correto:


Quando a coisa que está no centro de um sujeito* em potência
vem como ação, ela se espalha então na circunferência, oculta-se no
centro em potência.
De forma que o ouro colocado em ação se torna o único fermen­
to da virtude solar, existindo
volátil e espiritual nas coisas
radicais dos metais, vegetais
e animais. O que nossos su­
postos médicos não deveriam
ignorar; além do mais, nossos
destiladores de tintura deve­
riam considerar que o ouro
em seu exterior é bem citrino,
mas em seu interior é extrema­
mente vermelho. Por isso ele
Um Rei homenageando o Enxofre dos mesmo não é apenas tinto, mas
Filósofos: Speculum veritatis, séc. XVII. dá uma tintura abundante aos
outros, e é um princípio e uma
fonte do Enxofre perfeito. E carrega em sua fronte o calor seco modera­
do, e oculta em seu profundo o fogo da mesma Natureza. E por isso que
ele tem em si a semente masculina, e um esplendor amigável e atraen­
te, sendo cortejado por todo mundo. Ele imita a Natureza de seu pai
celeste, do qual é o Sol dos Químicos, porém mais legitimamente dos
verdadeiros Filósofos. E, assim como o Sol do grande Mundo, estando
no signo de Leão, lança sobre nosso Meridiano suas flechas cruéis, da
mesma forma, estando o ouro desencorporado pelo artifício até em sua
cor mais elevada, a saber, obscuramente sanguínea, é em sua própria
casa chamado o Leão aterrorizado, e comumente chamado Leão ver­
melho, comparando-se ao Leão da África quanto ao seu exterior, mas
em sua operação e virtude, mais propriamente ao coração do homem.
Ele simpatiza com o Elixir oculto dos vegetais [...], mas principalmen­
te com o Astro* do vinho. Ele não se comunica senão com o Mercú­
rio sete vezes mortificado pelos banhos vitriolados da Hungria, com
o qual depois, como diz a alegórica fonte do Trevisan, ele se mistura
inseparavelmente. Enfim, esse metal arrebata-pessoas (como o nomeia
apropriadamente nosso Poeta) faz seu arsenal e suas munições, para a
guerra contra o duque Mercúrio, de orpimenta (ouro-pigmento),* de
sandáraca, de enxofre fixo, precipitado fixo, cinábrio,* antimônio,* etc.
Uma Realeza Metálica: o Ouro Filosofal 523

Deixaremos ainda as dissecções desses espíritos incorporados aos nos­


sos fazedores de cinzas, e retornaremos à geração mais exata de nosso
Rei subterrâneo.
Hcnri dc Linthaut, Comentário sobre O Trsourc
dos tesoures, dc Cbristojk de Gamon (1610\ p. 24-26.
*
* *

O uem ousara me negar que no ouro precioso


Esses Deuses não tenham alojado o que eles têm de melhor?
E que muito corretamente a voz dos Filósofos
Nomeou simplesmente o Ouro, o tecido dos tecidos
Com o qual o sábio constrói seu secreto edifício;
Pois do Ouro a semente está apenas no Ouro?
Semente preciosa; espírito incomparável;
Em quem a Natureza imprime um efeito admirável;
Depois que o corpo morto pela arte é reduzido
Aos princípios fecundos dos quais ele primeiro nasceu.
Se toda a Natureza no Sol está difusa;
Se toda a Natureza ele tem no Ouro infusa;
0 Ouro poderá então ser um remédio a todos os males,
Curando a Natureza em todos os animais;
Se for reduzido a tal consistência
Que ele possa se unir à humana substância.
Ele expulsará do coração todo contágio;
Impedirá o sangue de putrefação;
Aumentará o bálsamo e o humor radical;
Manterá o calor em temperatura igual;
Consumirá do corpo a superfluidade;
Purgará do cérebro a fria umidade;
Reacenderá dos sentidos o vigor paralisado;
E em breve nos fará viver uma vida perfeita [...]
Miserável impotente que vive pior que um Inferno,
Que te serve esse metal em um cofre de ferro,
Ou que seu rico lustre em teus móveis brilha,
Se amaldiçoas tua vida em um leito escarlate?
Desejarias então esse corpo reduzir;
Pelo espírito tirar a alma e a mundificar;*
Depois no doce calor da arte fácil, e possível,
Fazer dessa mistura um sal fixo e fusível?
524 Filosofar pelo Fogo

Tu terias esse espírito que vai o Ouro animando;


Dos imperfeitos metais o perfeito alimento;
Tu terias o Ouro reduzido à essência primeira,
Que jamais retorna em massa grosseira.
Mas tu és fascinado por tal encantamento,
Que se alguém oferecesse esse santo medicamento,
E que teu médico te proibisse o uso;
Tu sofrerias antes a Plutônica raiva
Que te mantém para sempre em um leito preso,
Do que ver ao te curar teu médico chateado.
Clovis Hcstcau dc Nuiscmcnt,
Poema filosófco da Verdade da Física natural
(1621), p. 23-24, 27.
*
* *
_/V^Las eis, como o ouro, que é de uma substância essencial muito
nobre, fala de si mesmo: “Sou, ele diz, o Senhor de todos os senhores, o
Rei de todos os reis, o Príncipe de todos os príncipes, pois supero todos
em virtude, poder e perfeição. Eu os venço e não sou vencido nem su­
perado por ninguém; mas eles estão sujeitos à minha pessoa e à minha
essência, ainda mais que meu reino é apoiado, é sólido e confirmado
por uma potência e por uma honra desmedida e invisível. Por mim são
fortificados e justificados todos os me­
tais, minerais, animais e vegetais, todas as
plantas e árvores, assim como os homens.
Pois dou a cada um que me reconhece em
meu natural verde, azul, vermelho, e tudo
o que ele deseja de mim decorre de mim,
assim como os quatro mais nobres rios
capitais, Pison, Gihon, Hideckel e Eufra-
tes; e a mais nobre substância de mercúrio
procede de mim na forma da água mais
cristalina, transparente e clara, e a mais
nobre substância do enxofre, e a mais su­
til ou penetrante por sua grande atividade,
e o mais claro sal cristalino, o mais belo e
o mais astral e proveniente do verdadeiro
A Realeza solar do Enxofre vivo: sal vitriólico; todas essas matérias pene­
Hermaphroditisches Sonn und tram e passam através das montanhas e
Mondskind, 1752.
Uma Realeza Metálica: o Ouro Filosofal 525

sempre tendem para o alto nas pedreiras dos minerais e ali escorrem
generosamente com fertilidade.
“Eu elevo em grau, e sozinho enobreço a prata. Sou eu que, com
toda justiça, dou luz e claridade à Lua. Todos esses magos naturalistas
e sábios escritores falam de minha virtude e propriedade vermelha,
eles discorrem sobre isso em toda parte, desde o Oriente até o Poente.
E eu sou Senhor de todas as roupagens e cores celestes clarificadas. Sou eu
quem orna o firmamento, que dá o temperamento do ar, e o arco-íris é
revestido por mim segundo a vontade de Deus, meu Senhor. Eu dou e ele­
vo todas as nobres pedrarias ou pedras preciosas em toda a terra, tudo
o que nela cresce, todas as criaturas e enfim todas as coisas. E tudo o
que não posso atravessar, transpassar ou penetrar interiormente em meu
movimento, eu o reparto e separo para realizá-lo na pedra luminosa da
natureza por meio de minha amiga e amante, a Lua.”
Basile Valentin, O Último Testamento (séc. XV’?).
reedição da tradução francesa de 1645.
Paris, Éditions Retz. 1977, p. 201-202.

*
* *
P rimeiramente, calcine o Sol, à maneira dos ourives por meio do

mercúrio, permita que o mercúrio parta em fumaça, entào o triture


bem forte sobre a pedra, depois o coloque por dois dias no forno de
reverberação,* e aparecerão flores bastante sutis, pegue-as e, estando
reverberadas, calcine-as pelo tempo necessário para que o todo tenha
se tornado flores.
Pegue então, com essas flores de ouro, o vinagre destilado de um
bom vinho, coloque-as em um copo, deixe-as apodrecer por 14 dias,
depois jogue o vinagre colorido, coloque mais um pouco de vinagre e
mexa bem; depois, permita que ele descanse, troque mais uma vez o
vinagre por outro: continue essa operação até que não reste mais nada
no fundo e que tudo esteja dissolvido no vinagre. Depois, despeje em
um grande copo o vinagre colorido para que ele se evapore, o ouro
permanecerá no fundo em forma de óleo negro como piche; pegue-o
e coloque-o em seu vinho retificado, para que ele se dissolva em um
vaso* circulatório, deixe-o repousar sobre um fogo bem suave por 12
semanas, dessa maneira todos os espíritos do vinho se coagularão e
fixarão e se tornarão pó com o Sol; pegue-os e deixe-os dissolver: eles
se dissolverão em óleo bastante claro como o ouro, isso se chama ouro
potável, o qual você saberá usar; a retificação do vinho está assim fei­
ta; dissolva no vinho duas onças de cânfora, o mesmo tanto de açúcar
526 Filosof/xr pelo Fogo

cru, anteriormente bem ressecado, uma onça de noz-moscada, macis,


Zedoária, gengibre; coloque o vinho com essas coisas em um vaso de
retificação e deixe por dez Dias inteiros, retifique o vinho com essas
coisas, os vasos bem fechados, para que nada ou bem pouco se espalhe,
depois retire; prepare o ouro com esse vinho.
Jcan Licbaut, Quatro Livros dos Segredos
de Medicina, e da Filosofia ahpiíinica
(1623), p. 283-285.
*
* *
_D oze pontos ainda restariam para analisar [anatomizar] no Ouro, e
para tomar um exemplo eu digo: primeiramente que o Ouro é o círculo
mais perfeito traçado pela natureza. Em segundo, que na circularidade
do Ouro está a quadratura das quatro qualidades, que chegaram assim
a uma justa repartição. Em terceiro, que no círculo do Ouro - a figura
por assim dizer mais resistente da natureza — se encontram abundan-
temente estocadas algumas riquezas que não aparecem a qualquer um
fortuitamente, e não são apreciadas senão pelos mais circunspectos. Em
quarto, que o Ouro, considerado uma espécie de Sol terrestre, é o Cen­
tro de todas as ações humanas, bem como dos planetas celestes. Em
quinto, que as causas particulares, pelas quais o Ouro é a medida das
coisas mensuráveis e o preço das coisas apreciáveis, estão contidas em
suas propriedades internas e em seus acidentes externos: cor, pureza,
brilho, difusão, peso e inocuidade. Em sexto, que a situação privilegia­
da do Ouro depende de sua corrupção, imunidade e quase perpetuidade
contra todos os danos ocasionados pelos elementos, de forma que ele é
tido como a imagem corpórea da eternidade. Em sétimo, que todo esse
mundo é como um livro aberto, que ensina aos homens razoáveis em
seu gênero que Deus é e como ele é, o caráter transitório dessa vida e
que uma felicidade eterna deve ser almejada; e é por isso que o Ouro,
recusando-se a ser somente uma página de escrita, necessita de Helébo-
ro. Em oitavo, que a excelência do Ouro é obtida das virtudes medici­
nais nele ocultas, em virtude das quais ele é principalmente apropriado
para o reconforto do coração humano. Em nono, por que razão o Ouro,
no entanto indigesto ao estômago, traz alívio pela fabricação dos espíri­
tos vitais; porque frio ao tato e para manipular, ele lhe fornece um supe­
rabundante calor e, contrariamente ao que pretendem seus adversários,
infunde-lhe sua virtude medicinal. Em décimo, quanto à equanimidade
do Ouro, como ela age nas vísceras desregradas do corpo humano e
corrige seu desequilíbrio. Em 1 lg, que o Ouro revelado a partir de sua
Uma Realeza MetAlica: o Ouro Filosofal 527

OillíiL «wiHil
ÍMB
sa«?W'”
“O fogo gosta de se inflamar, o ouro [gosta] de transformar em
ouro”: Michael Maier, Atalanta fugiens, Oppenheim, 1618.

casca oferece um núcleo de ordem medicinal, sem o qual toda sua con­
figuração é quase totalmente ineficaz. Em 12ô, que devem ser enviados
a Anticira200 até que ali sejam purgados pela essência de Heléboro que
é ali extraída (assim como alguns relatam) aqueles que, movidos por
uma ignorância própria da alma, reneguem as virtudes medicinais do
Ouro ou, seduzidos pelo dinheiro de qualquer outro mal informado,
não louvem ou deem graças a Deus por todas essas maravilhas (que ele
quis fazer prevalecer no mundo por causa de sua providência singular),
e por outros educados e tornados sábios, espalhem para seu proveito a
animosidade e para sua notoriedade a mentira.
Johann Daniel Mvlins, Anatomia do Ouro
(Anatomia Auri, 1628). Epístola dedicatória, n. p.
*
* *

200. A cidade grega de Anticira era célebre na Antiguidade pela extração de Heléboro,
que ali era praticada. A raiz dessa planta, no entanto tóxica, deveria curar da loucura ou ser
utilizada como depurativo (cf. artigo Antídoto do Glossário).
528 Filosofar pelo Fogo

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jíiitf frtUlfyt ___ / <r ■ / - j fu pop- J

Salonion Trismonin, O Velo de ouro ou a Flor


dos tesouros, Paris, 1613, (frontispício).

C^uem quer que deseje conquistar esse Velo de Ouro,201 deve saber

que nosso pó aurífico, que nomeamos nossa Pedra, é apenas o Ouro co­
zido e digerido até o grau supremo de pureza e de fixidez sutil ao qual
podem conduzi-lo a Natureza e a habilidade do ano; é por isso que o
Ouro assim tornado essência - e que chamamos nosso Ouro, uma vez
que ele nào é mais o do vulgar - é a última perfeição atingida pela Natu­
reza e pelo ano. A esse respeito, eu poderia citar todos os Filósofos, mas
não preciso de testemunhas, sendo eu mesmo um Adepto e escrevendo
de modo mais claro que qualquer outro antes [...]. O Ouro é, portanto, o
verdadeiro, o único princípio cuja purificação deve ser operada. Nosso
Ouro, e do qual fazemos a experiência por causa de nossa obra, é, no
entanto, duplo. Um, alçado à maturidade, é o Latão* amarelo fixo, cujo

201. cf. artigo Jasão do Glossário.


Uma Realeza Metálica: o Ouro Filosofal 529

coração ou centro é de fogo puro. É por isso que seu corpo se defende
no Fogo, onde ele acolhe sua depuração, de forma que não cede em
nada à tirania deste último ou não sofre com ela. Esse Ouro representa
em nossa obra o papel de macho, por isso ele é unido ao nosso ouro
branco mais cru, desempenhando o papel de semente feminina, na qual
ele deposita seu esperma, um contraindo com o outro uma aliança in­
dissolúvel, da qual é concebido nosso Hermafrodita,* tendo a potência
de um e do outro sexo. O ouro corpóreo está, portanto, morto, antes de
se ter unido à sua noiva, com a qual o Enxofre coagulante, que no ouro
é extrovertido, torna-se introvertido. Assim, a altura está oculta e a pro­
fundidade, manifestada. Assim, o fixo acontece por um tempo volátil, a
fim de possuir em seguida um estado mais nobre que aquele que tinha
herdado, e no qual ele obterá uma potente fixidez. Parece claramente,
portanto, que todo o segredo consiste no Mercúrio, do qual o Filósofo
diz: No Mercúrio se encontra tudo o que os Sábios buscam. E Gebcr diz
a esse respeito: Louvado seja o Altíssimo, que criou nosso Mercúrio e
lhe deu uma natureza que supera todas as coisas. Dc fato, se ele não o
fosse, os alquimistas se enalteceriam como bem entendessem, mas sua
obra seria vã. Por isso, é evidente que esse Mercúrio não é o do vulgar,
mas aquele dos Sábios; porque todo Mercúrio vulgar é macho, isto é,
corpóreo, especificado e mortal, ao passo que nosso é espiritual, femi­
nino, vivente e vivificante.
Eyrcnéc Philalcthc, A Entrada aberta ao Palácio fechado do Rei
(Introitus apertus ad occlusum Regis Palatmm, 1645),
in Jean-Jacques Manget, Bibliotheca cheinica
curiosa, t. II, p. 661-662.
*
* *

^Jeria outro Mercúrio, e outro Ouro, dos quais Hermes ouviu falar;
um Mercúrio úmido e quente, e sempre constante no fogo. Um Ouro
que é todo fogo e todo vida. Tal diferença não seria capaz de fazer
facilmente distinguir estes daqueles do vulgar, que são corpos mortos
privados de espirito, ao passo que os nossos são espíritos corpóreos
sempre vivos?
Ouvimos falar entre os Filósofos apenas do Ouro vivo, do Ouro
filosófico; mas, longe de querer nos explicar o que é, parece que eles
assumem a tarefa de escondê-lo e de envolvê-lo em sombras. Contudo,
como é nisso principalmente que consiste o verdadeiro fundamento da
530 Filosofar pelo Fogo

doutrina, e até mesmo da prática, acreditei não


poder fazer melhor do que dizer agora alguma
coisa a respeito.
Não é sem razão que os Filósofos lhe
deram o nome de Ouro, pois ele é realmente
Ouro em essência e em substância; mas bem
mais perfeito e mais acabado que o do vulgar.
É um Ouro que é todo enxofre, ou melhor, é
o verdadeiro enxofre do Ouro. Um Ouro que
é todo fogo, ou melhor, o verdadeiro fogo do
Ouro, que não se engendra senão nas caver­
nas e nas minas filosóficas. Um Ouro que não
pode ser alterado nem superado por nenhum
elemento, uma vez que ele mesmo é o senhor
dos elementos. Um Ouro bastante fixo, e so­
Elevação real do Ouro
oriundo da conjunção dos
mente nele consiste a fixidez. Um Ouro muito
opostos: Basile Valentin,
puro, pois ele é a própria pureza. Um Ouro
Azoto ou o meio de fazer o todo-poderoso, pois sem ele tudo enfraquece.
Ouro oculto dos Filósofos, Ouro balsâmico, que preserva todos os corpos
Paris, 1624. da podridão. Ouro animal, a alma dos Elemen­
tos e de toda a natureza inferior. Ouro vegetal,
o princípio de toda vegetação. Ouro mineral, pois é sulfuroso, mercurial
e salino. Ouro etéreo, pois é da própria natureza dos céus, e é um verda­
deiro céu* terrestre, oculto por outro céu. Enfim, é um Ouro solar, pois
é o filho legítimo do sol, e o verdadeiro sol da natureza. E ele, cujo vigor
fortifica os Elementos, cujo calor anima os espíritos e cujo movimento
move toda a natureza. De sua influência nascem todas as virtudes das
coisas, pois ele é a influência da luz, uma porção dos céus, o sol inferior
e a luz da natureza, sem a qual a própria ciência é cega; sem seu calor,
a razão é imbecil; sem seus raios, a imaginação está morta; sem suas
influências, o espírito é estéril; e, sem sua luz, o entendimento permane­
ce nas trevas perpétuas. É então muito a propósito que os Filósofos lhe
deram o nome de Ouro vivo, uma vez que, como já disse, ele é a própria
vida do Ouro, e de sua própria substância.
Marcantonio Crasselane, A Litz cpie sai
por si mesma das trevas (1666),
comentários c tradução dc Bruno dc Lansac (1687),
in Willian Salmom. Biblioteca dosfilósofos
alíjHÍmicos, t. III, p. 441-443.
Uma Realeza Metálica: o Ouro Filosofal 531

]E/xistem no atanor* três globos; o primeiro

é muito grande e inteiro; o do meio é fura­


do em sua parte superior, para que o vapor da
UBffl 1 J 1
1 / ■? ,
água possa escapar; o terceiro é de madeira de
carvalho, e é nele que acontece a putrefação
por meio do fogo de vapores. Deve haver nes­
se terceiro globo uma quantidade suficiente AvthorSplen
•Wrts folis vh tlí>fyrhi£ i
de água; e, se ela evapora, é preciso colocar
uma nova que esteja quente. Essa putrefação Autor do Esplendor
termina em 40 ou 45 dias, e é então que apa­ do Sol Filosófico: Das
sementes do Sol e da
rece ordinariamente o negror que foi nomeado Lua nasce aquele que
Cabeça de corvo. Quando a putrefação aca­ milhares buscam e que
bou, retire o globo de madeira, porque a água é raramente descoberto.
não é mais necessária para o restante da obra.
Coloque então o vaso* no globo furado e o encha com cinzas. Seu
fogo deve ser suave, e de forma que a mão possa suportá-lo sem
nenhuma dor; e em 50 dias você verá aparecer as cores conhecidas
sob o nome da cauda do pavão, e no final só restará a cor verde.
Retire então o vaso e coloque-o no primeiro globo, que é maior,
e que deve estar cheio de areia, para poder recobrir facilmente o
vaso que contém a matéria e que deve estar bem fechado. Abra o
Atanor, aumente o fogo até que a mão não possa suportar a dor, ao
final de 50 dias a matéria estará branca. Continue com o mesmo
grau de fogo até que ela amarele, o que acontecerá em 30 dias, ou
no mais tardar em 50. Coloque enfim o vaso no fundo do forno e
aplique o fogo do quarto grau, até que o pó pareça vermelho: você
perceberá no meio desse pó um grão de uma vermelhidão mais
brilhante e da grossura de uma ervilha, que você guardará cuida­
dosamente, pois é a semente do ouro. Você retirará o pó vermelho
que está em volta, porque ele não serve para nada nessa obra.
Quanto ao próprio grão, eis o uso que fará dele.
Esse grão precioso é o ouro dos Filósofos, pese-o com exatidão
e coloque-o exatamente com dez partes do mênstruo*em um pequeno
matraz,* cujos dois terços devem permanecer vazios. Sele hermeti­
camente e coloque antes o vaso no primeiro globo, que é de madeira.
Opere de acordo com os diferentes graus de fogo, e durante o nú­
mero de dias de que acabamos de falar, até que o pó adquira enfim
532 Filosof/xr pelo Fogo

uma vermelhidão brilhante; depois disso, você experimentará, usan­


do uma lâmina de prata aquecida no fogo, sobre a qual você colocará
uma parte bem pequena; é preciso que ele flua como a cera sem fazer
fumaça; mas, se ainda fizer fumaça, coloque-o na areia, onde ele se
fixará posteriormente, e se revestirá da qualidade do fogo.
Huginus A. Barma, O reino de Saturno
transformado em Século de Ouro
(Saturnia Regna in aurea sircula conversa, 1657),
p. 182-187 (cd. dc 1780).
Uma Realeza Metálica: o Ouro Filosofal 533

As proporções secretas da Pedra: Michael Maier, Atalanta fugiens, Oppenheim,


1618, emblema XXL
21

Uma Soberania Benéfica:


a Pedra dos Sábios

Faça um círculo do macho c da fêmea, extraia dele um


quadrado e, do quadrado, um triângulo; faça um círculo
c você terás a Pedra dos Filósofos.
O Rosário dos Filósofos (séc. XIV), in Jcan-Jacques Mangct,
Bibliotbfca Cbetnica Curiosa,
t. II, p. 97-98.

Símbolo de uma constante estabilidade, a Pedra dos Sábios não


desfruta, no imaginário ocidental, de um prestígio comparável ao do
ouro, cujo '‘brilho mítico ” (Ernst Jiinger) atormenta muitas memórias.
Sua busca tornou-se até mesmo sintoma de uma loucura, que suposta-
mente foi a dos antigos alquimistas. Muitas concordâncias históricas e
simbólicas permitem, no entanto, associar seu trabalho ao dos constru­
tores e outros maçons que, de uma pedra no caminho, souberam fazer
uma pedra angular, sem deixar de considerar a matéria como a melhor
das pedras de toque, sobre a qual exercer sua arte. E porque o espírito
de alquimia também cultiva o paradoxo — a Pedra também é a não pe­
dra! —, autorizando o eterno retorno dos signos aparentes com os quais
se alimenta essa Arte.
Mudança verbal em primeiro lugar, se pensarmos na variedade de
nomes de que a Pedra foi dotada. Simbólica também, uma vez que se
pode afirmar sobre a Pedra que “a totalidade dos bens do Universo está
nela ”, como dizia Daniel Stolcius sobre o Mercúrio (Viridarium chymi-
cum/ Diversamente colorida, segundo asfases da Obra (branca, verme­
lha, citrino), a Pedra, no entanto, só se une, só se enriquece, nasce dela
mesma, como ainda se diz na índia sobre o Linga de Shiva, que emerge

-534-
Uma Soberania Benéfica: a Pedra dos Sábios 535

espontaneamente de um monte rochoso. Apresentando-se sob a forma de


"um corpo cristalino, diáfano, vermelho em massa ” (Fulcanelli), a Pedra
filosofal tem poder de fazer aumentar e multiplicar tudo o que ela toca.
Assimilada por Cari Gustav Jung a uma quaternidade (cruz, mandala),
ela só acontece quando respondemos ao seu chamado: "Transmutem pe­
dras mortas em pedrasfilosofais vivas!” (Gérard Dom).
*
* *

Nomes da pedra filosofal coletados por Guglielmo Gratarolo

tiro, Sol, estanho dos Filósofos, corpo da magnésia, corpo puro,


mundo, fermento, Elixir, macho, prata-viva fixa, enxofre incombus­
tível, enxofre vermelho fixo, filho cor de rubi, homem kibrik, vitriol
verde, almagra,* latào, terra vermelha, etc. A água que é destilada
por eles é chamada pelos Filósofos cauda do Dragão, alma, vento,
ar, vida, casa brilhante, luz do meio-dia, lei­
te de virgem, sal amoníaco, sal nitro, vento do
ventre, fumaça branca, água de enxofre verme­
lho, oliva, galo, Tártaro, água de açafrão, bron­
ze calcinado, composição branca, água fétida,
imundície do morto, sangue, prata-viva, cucúr-
bita com seu alambique, vaso dos Filósofos, i
homem de altura elevada, ventre do homem em .1®
seu meio; mas no final ela é nomeada pé, pé ou
wl
A Pedra é antes um velho
pés, ou ainda aquele em que, ou esses pés nos
branco, depois um jovem
quais nossa terra é calcinada, assada, congelada, rapaz vermelho e
destilada e tornada sutil: sombra do Sol, corpo depois uma criança
morto, coroa vitoriosa, nuvem, espuma do mar, cor de sangue.
magnésia negra, Dragão que devora sua própria
cauda, restos do ventre, terra encontrada no esterco, a podridão, no es­
terco de cavalo ou em um fogo suave, Enxofre e Mercúrio, dois nomes
e uma única essência, nome em um nome, pedra, corpo, espírito e alma.
Ela é nomeada terra, ar, fogo, todas as coisas, porque contém em
si os quatro Elementos.

♦ N.T.: Termo hermético que significa o enxofre filosófico. (N. T.)


536 Filosofar pelo Fogo

Ela é nomeada animal, ou homem, porque possui uma alma, um


corpo e um espírito, e, no entanto, os Filósofos não a estimaram ser uma
coisa animada, mas uma pedra.
Ela é nomeada água de enxofre, água do mundo, escarro da Lua,
sombra do Sol, covil, alume, elefante, suco branco, olhos de peixe,
Beya [Rainha], enxofre vivo, água ácida, leite, vinagre animado, lágri­
ma, água aglutinadora, urina, unguento solúvel, pai admirável, pai dos
minerais, árvore frutífera, fonte viva, escravo fugitivo, cinza da terra,
veneno, vinagre muito ácido, goma* branca, água eterna, mulher e fê­
mea, coisa de preço vil, azoto, mênstruo, latão, entranhas, natureza,
azoe,* água, matéria-prima, princípio do mundo [...].
A Pedra também é nomeada caos, dragão, serpente, sapo, leão ver­
de, quinta-essência, nossa pedra, Lunar, coisa muito vil, negro mais
negro do que o negro, leite de virgem, úmido radical, umidade untuosa,
licor seminal, sal amoníaco, nosso enxofre, nafta, alma, basilisco, ví­
bora, fonte de prosperidade, sangue, esperma metálico, cabelos, coisa
dupla, urina, água venenosa, água dos sábios, água mineral, sabão dos
Sábios, vinagre dos Filósofos, nossa prata-viva, matéria primordial, an-
timônio,* mênstruo fecundante, chumbo dos Filósofos, Sol, Mercúrio,
nosso ouro, Lua, germe, nossa moeda, duenec, sal, alume de Espanha,
tinta, orvalho da graça celeste, espírito fecundante, bórax [borato de
sódio], Mercúrio corpóreo, vinho, água seca, água metálica, ovo, ido­
so, água permanente, pássaro de Hermes, pequeno mundo, matéria ao
Branco, água de vida, pigmento de ouro, cinábrio, e por outros nomes
quase infinitos ao desejo.202
In Alchaniir, qttatn vocant a rtisque
nutallicír doctrina (1572), p. 265-266.
*
* *
JzJ sse é o mistério incomunicado, que nenhum dos profetas ousou di­

vulgar pela palavra, mas eles o revelaram apenas aos iniciados. Eles o
chamaram a pedra encéfalo em seus escritos simbólicos, a pedra não
pedra, a coisa desconhecida que é conhecida de todos, a coisa despreza­
da que é muito preciosa, a coisa dada e não dada de Deus. Para mim, eu
* N.T.: Mercúrio dos alquimistas.
** N.T.: Vitriol verde.
202. Dom Antoine-Joseph Pernéty esclarece a esse respeito: “Mas todos esses nomes nâo
lhe foram dados pela mesma razão; os autores nessas diferentes denominações só levaram
em conta a maneira de considerá-la, ora em relação à sua cor, ora às suas qualidades.’’: As
Fábulas egípcias e gregas reveladas e reduzidas ao mesmo principio (1758), t. 1, p. 189.
Uma Soberania BenEfica: /\ Pedra nos Sábios 537

a saudarei com o nome dc [pedra] não dada c dada por Deus: é a única,
em nossa obra, que domina a matéria. Esta é a preparação que possui a
potência, o mistério mitríaco.
O espírito do fogo se une com a pedra e se torna um espírito dc
gênero único. Ora, eu lhes explicarei as obras da pedra. Misturada com
o comaris,* ela produz as pérolas, e é nesse momento que a chamamos
crisólita. O espírito opera todas as coisas pela potência do pó seco. E
vou explicar a palavra comaris, coisa que ninguém ousou divulgar, mas
aqueles [os antigos] a transmitiram às pessoas inteligentes. Ela detém
a potência feminina, aquela que se deve preferir, pois o branqueamento
tornou-se objeto de veneração para todo profeta [...].
Stéphanus diz: Pegue [o metal composto] dos quatro Elementos,
adicione o arsénico* mais elevado e o mais baixo, o rugoso e o ruivo,
o macho e a fêmea, em peso igual, a fim de uni-los entre si. Pois, assim
como o pássaro choca seus ovos e os conduz a termo no calor, da mes­
ma maneira você chocará e levará a termo sua obra, depois dc tê-la leva­
do para fora, regado com as águas divinas, exposto ao sol c nos lugares
quentes; depois de fazê-la cozinhar em um fogo lento, e depositando-a
em um leite virginal. Preste atenção à fumaça. Mergulhe o produto no
Hades,* mexa com cuidado, até que a preparação tenha adquirido con­
sistência e não possa escapar do fogo. Então, pegue [uma parte] e, quan­
do a alma e o espírito se unificarem [com o corpo] e formarem apenas
um único ser, projete sobre o corpo metálico da prata e você terá o ouro,
que nem os tesouros dos reis continham.
Eis o mistério dos filósofos, aquele que nossos pais juraram não
revelar nem publicar.
Zózimo. “Sobre a cal”, in Mareei in Berthelot,
Coleção dos antigos alquimistas gregos, r. III. p. 122-123.
*
* *

Sábio disse: “O que o estudante precisa em


primeiro lugar é conhecer a pedra, objeto das as­
pirações dos Antigos”. Aqueles que defenderam o
segredo na ponta da espada e se abstiveram de lhe
dar um nome, ou pelo menos de lhe dar o nome
sob o qual a multidão o conhece; eles o dissimula­
ram sob o véu dos enigmas, de forma que ela esca­
pou aos espíritos penetrantes, que as inteligências A Pedra muito necessária
para essa obra vem da
mais vivas não puderam compreendê-la e que os Matéria animada.
538 Filosofar pelo Fogo

corações e as almas desesperaram de conhecer sua descrição. Apenas


aqueles a quem Deus abriu o entendimento a compreenderam e pude­
ram conhecê-la.
Entre os epítetos que lhe foram aplicados, encontramos: a água
corrente, a água eterna, o fogo ardente, o fogo que espessa, a terra
morta, a pedra dura, a pedra tenra, o fugitivo, o fixo, o generoso, o rá­
pido, aquele que coloca em fuga, aquele que luta contra o fogo, aquele
que mata pelo fogo, aquele que foi morto injustamente, aquele que foi
tomado pela violência, o objeto precioso, o objeto sem valor, a glória
dominante, a infâmia aviltada.
Como ela é cara a quem a conhece! Como é gloriosa para quem a
pratica! Como é vil para quem a ignora! Como é infinita para quem não
a conhece! Todo dia, em todos os lugares, ouvimos gritar: “Ó tropa de
buscadores, peguem-me, matem-me, então, depois de me terem mata­
do, queimem-me, pois eu reviverei depois de tudo isso e enriquecerei
aquele que me tiver matado e queimado! Se ele me aproxima do fogo,
então estou viva, eu o suportarei toda a noite, ainda que ele me subli­
masse de uma maneira completa e me acorrentasse de uma maneira
absoluta. Ó maravilha! Como, estando viva, posso suportar o mal? Eu o
suportarei até que seja abreviada por um veneno que me matará e então
não saberei mais o que o fogo teria feito com meu corpo”.
Essa é a maneira de ser a cada manhã e a cada noite. E então!
Tropa de buscadores, o que pensam dessa proposição que vocês emi­
tem: a expressão formulada pela palavra é a única verdadeira, ao passo
que aquela marcada pela atitude é falsa. Ora, um grande número de
filósofos relatou que a atitude indica melhor a verdade que a expressão
pela palavra. Essa pedra os interpela e vocês não a compreendem; ela
os chama e vocês não lhe respondem. O maravilha! Que surdez obstrui
suas orelhas! Que êxtase sufoca seus corações! Vocês não veem que
ela combate o fogo, que nada lhe é mais hostil do que o fogo. Quando
a colocamos no fogo, ela produz um estalido semelhante ao da água
congelada, que se desagrega pela ação do frio da neve.
Saibam, ó buscadores, que é uma água muito branca aquela que
encontramos escondida na terra da índia; uma água negra, que se en­
contra escondida no país de Chadjer; uma água vermelha brilhante que
se encontra escondida na Andaluzia. E um líquido que se inflama ao
contato da madeira em um fogo violento; é um fogo que se acende nas
pedras nas regiões da Pérsia; é uma árvore que cresce nos picos das
montanhas; é um jovem homem nascido no Egito; é um príncipe saí­
do da Andaluzia, que quer o tormento dos buscadores. Ele matou seus
Uma Soberania Benéfica: z\ Pedra dos Sarios 539

chefes e fez de alguns deles os perseguidores dos príncipes. Os erudi­


tos sào impotentes para combatê-lo. Não vejo contra eles outra arma,
senão a resignação; outro cavalo, senão a ciência; outro escudo, senão
a inteligência. Se o buscador se encontra frente a frente com essas três
armas e o mata, ele retornará vivo depois de sua morte, perderá todo
poder contra ele e dará ao buscador a mais alta potência, de forma que
este chegará ao objetivo de seus desejos. Esses esclarecimentos devem
lhe bastar.
O Livro de Ostanes, in Mareei in Berthelot,
A química na Idade Média, t. I. p. 116-11 7.
*
* *

Irmão, que Deus gratificará, agora você precisa pegar a pedra


honrada ou preciosa de que falam os Sábios, que eles glorificaram,
oculta e selada. Coloque-a na cucúrbita* com seu alambique e separe
suas naturezas, isto é, os quatro Elementos: terra, água, ar c fogo, que
são o corpo e a alma, o espírito e a tintura. E quando tiver separado a
água da terra, e o ar do fogo, conserve cada um deles à parte e recolha
o que desce para o fundo do vaso,* ou seja, as fezes;* e lave-as com um
fogo quente, até que seja retirado o negror e que não haja mais espes­
sura. Branqueie sua matéria com uma boa albificação,* e faça com que
suas umidades supérfluas partam; ela será então convertida em uma cal
branca, em que não haverá mais nenhuma obscuridade tenebrosa, nem
imundícies, nem contrariedades. Depois disso, retorne às primeiras na­
turezas que dela se elevaram e purifique-as também da imundície, do
negror e da contrariedade; e reitere essas operações um bom número de
vezes, até que elas sejam subtilizadas, purificadas e atenuadas. E, quan­
do tiver efetuado isso, você reconhecerá que Deus já lhe foi misericor­
dioso. E saiba, Irmão, que esse é o serviço prestado à única pedra, alem
desse ponto Garib não entra, isto é, outros elementos além dela. Com
ela operam os Sábios, e dela sai a medicina com a qual pode alcançar a
cura e a perfeição. Não lhe misture outra coisa qualquer, nem em uma
nem na totalidade de suas partes. E podemos encontrar essa pedra cm
qualquer tempo e em qualquer lugar, e perto de qualquer homem, cuja
descoberta não assusta aquele que busca, onde quer que ele a encontre.
É uma pedra vil, negra e malcheirosa, de baixo preço e de certo peso,
que também chamamos a Origem do mundo, porque ela começa a nas­
cer à maneira das coisas germinantes. Essa é a revelação e a aparição
para aquele que a procura.
540 Filosofar pelo Fogo

Pegue-a então e trabalhe-a, como diz o Filósofo em seu livro,


quando sobre ela fala da seguinte maneira: Pegue a pedra não pedra,
ou que não é pedra, nem da natureza da pedra. E essa é a pedra da
qual são engendrados os minerais no cume das montanhas, e o Filósofo
usou montanhas para dizer animal. Por isso ele diz: Filho, vá até as
montanhas da índia e em suas cavernas, e receba delas as pedras hon­
radas, que se liquefazem quando elas lhe são misturadas.203 E essa água
é certamente aquela que é tirada das cavernas dessas montanhas. Estas
são, Filho, as pedras que não são pedras, mas que nomeamos assim, em
razão da similitude que elas têm entre si. E saiba que as raízes de suas
minas estão no céu, e suas cabeças na terra, e, quando são arrancadas
de seus lugares, sobrevém um grande clamor, que nós ouviremos. Ca­
minhe com elas, Filho, pois elas desaparecem logo.
Calid. Livro dos Segredos de Alquimia
(Liber Secretorum Alchemiir, séc. XI?),
in Aurífera Artis quam Chenúan vocant, t. I, p. 358-359.
*
* *
JEf ssa é a Pedra em que tropeçaram todos os que empreenderam pro­
curá-la, e morreu de dor e de tristeza a maioria daqueles que se desvia­
ram para o caminho dos demónios e abandonaram o da prudência. Esse
Enxofre oculto com o qual todas as coisas são
douradas e decoradas é a sombra do Sol e a
prata-viva coagulada, coagulando todo líquido e
convertendo-o em sua própria natureza.
Ela é o que voa com os seres voadores
e repousa com aqueles que estão em repouso,
convertendo a ela e dominando tudo o que se
encontra perto de seu vigor. Ela é o Ouro dos
Filósofos, porque transforma em Ouro tudo
Á visão a Pedra é diáfana,
o que lhe é adicionado. Ela é a Pedra nascida
translúcida e de
dentro, reduzindo a pó seu irmão uterino, e pri­
unia transparência
admirável e estelar.
vado de misericórdia. Procurada por muitos, ela
na realidade é encontrada por poucos. É o que os
Antigos chamaram Quinta-Essência. É o Sal Armoníaco e o vinagre dos
Filósofos, e o bronze, e os corpos, e a terra que chamamos Matéria dos
Elementos, à qual são ligadas todas as coisas chamadas elementadas,

203. cf. Texto citado p. 440-441.


I

Uma Soberani/x Benéfica: a Pedra dos Sábios 541

que possuem os quatro elementos. Ela é a árvore de ouro, e aquele que


comer seus frutos não terá mais fome. É a Pedra inestimável, pela qual
e a partir da qual advêm todas as coisas de alto preço. Ela é alimentada e
engendrada pelo fogo, e no fogo se regozija. É o que recebe qualquer
nome e se assemelha a qualquer coisa neste mundo. Por isso é nomeada
pelos Filósofos “pequeno mundo”, pois o homem é nomeado da mesma
maneira microcosmo, na medida em que descobre em si a similitude e a
participação de todas as coisas; assim, esse Enxofre é nomeado peque­
no mundo. Ele é a perfeição e o arcano dos Filósofos, que só é encontra­
do por aquele que o conhece e o recebe. Esse é o segundo Enxofre que
está unido ao primeiro Enxofre, dos quais provém um terceiro Enxofre,
a respeito do qual se diz que o Enxofre é contido pelos Enxofres: esse
é o Enxofre a respeito do qual as autoridades argumentam de maneira
mais tensa. Ele é também uma água sulfurosa, ou prata-viva extraída a
partir do Enxofre convenientemente preparado. Esta é uma água viva,
que é com razão chamada Leite de virgem, água pura, celeste e gloriosa
e pássaro voador, que é substancialmente a mesma coisa que o Enxofre
já citado. Sendo o enxofre vulgar diferente dos outros, a solução da
questão e dos argumentos está inconcluída.
Perrus Bonus, A preciosa Pérola nova
(Pretiosa Margaríta novella, 1330), in Jean-Jacques Manget,
Bibliotheca Cbanica Curiosa, r. II, p. 64.
*
* *

Pedra dos Filósofos não é nada mais do que o Ouro muito perfeito,
isto é, conduzido a tal grau de perfeição que ele possa aperfeiçoar todos
os corpos imperfeitos. O Ouro é, portanto, essa Pedra, mas não o vulgar,
pois ele está morto, e o nosso está vivo. É aquele que é preciso pegar,
mas saiba qual é esse Ouro vivo. Quando os frutos estão maduros, eles
carregam a semente, pela qual podem ser multiplicados até o infinito;
assim, o Ouro é um fruto que nunca adquiriu essa maturidade nas minas
e, consequentemente, é chamado morto, pois sua semente é a coisa que
pode fazê-lo viver e vegetar como os dois outros reinos. Mas podemos
imaginá-lo como essa semente que nele já existe potencialmente, pois
ele é criado para multiplicar, assim como esses dois irmãos; do contrá­
rio, ele poderia ser chamado o impotente da natureza. Ele realmente
tem essa semente imaginada, que a Natureza tratou por todos os meios
de lhe fazer efetuar, mas suas forças não foram suficientemente grandes
e exigem o auxílio do Artista. É por isso que está dito: Ajude-me e eu
542 Filosofar pf.lo Fogo

o ajudarei. Considere então bastante certo que o


Ouro é o começo de nossa Grande Obra. Mas não
no estado em que se encontra, porque ele é duro,
sólido e muito unido cm todas as suas partes, mas
é necessário rompê-lo e depois deixar a Natureza
operar. Por isso está dito que é preciso reduzi-lo
na sua primeira matéria, que não é senão prata-
Essa Pedra está abaixo,
viva, da qual esse Ouro foi primeiramente criado
acima, em frente e em e engendrado; mas, para reduzi-lo a essa primeira
volta de ti. matéria, também é necessário uma ajuda e uma
coisa líquida, logo que o açafrão lança sua tintura.
Pois que coisa pode tornar líquido um corpo, que por si é duro e seco, a
não ser uma matéria líquida, quando vemos que o lodo é feito de Água
e de Terra? Portanto, é preciso uma água morna, na qual o corpo se con­
verterá e, em vez de espesso, ele se manterá lamacento e lodoso. E isso
se faz por duas razões, a primeira para limpar esse corpo e purgá-lo de
algumas impurezas que por natureza permaneceram nele, e só pode ser
limpo lhe retirando sua dureza, ainda mais que, no estado em que está,
nem mesmo quando está fundido, nada pode ser separado, pois ele está
tão bem unido, que uma parte sempre segue a outra. Mas quando está
amolecido pela solução da coisa que ele deseja, as evacuações se fazem
por si sós, e as impurezas se separam das coisas puras.
Os Filósofos tiveram de dissimular toda essa redução, referindo-se
a ela apenas de forma velada, ou seja, converter os Elementos um no
outro, o que os ignorantes explicam por um sentido incorreto, enten­
dendo separá-los. Essa separação, portanto, é a conversão deles, que é
chamada sublimação, calcinação e dissolução, e esses nomes não lhes
são dados senão para colocar os ignorantes no mau caminho.
Nicolas Valois, Os Cinco Livros ou a Chave
do Segredo dos segredos (1465), ms. n. p.

*
* *
JEf ssa pedra, da qual é feita essa obra, tem em si três cores. Ela é com
efeito branca e vermelha, de um vermelho muito vermelho; e citrino,
do mais belo citrino: celeste, vigoroso, denso. Nessa pedra estão quatro
Elementos: aquoso, aéreo, ígneo e terrestre. No oculto dessa pedra es­
tão calor e secura e, em seu manifesto, frieza e umidade; convém então
ocultar o manifesto, e fazer o que está oculto se manifestar, pois o que
está no oculto, a saber, calor e secura, é um óleo, e esse óleo é seco; essa
Ua\a Soberania Benéfica: a Pedra dos Sarios 543

secura, e somente ela, tinge, porque nada alem do álcali tinge. O que
está no manifesto frio e úmido é uma fumaça aquosa altcrante; convém,
portanto, que essa umidade e frieza sejam a esposa do calor e secura,
para que ela não fuja sob o efeito do fogo, pois no seio dessa frieza c
umidade está uma partícula quente e seca; convém, portanto, que o frio
e o úmido recebam o quente e o seco que estavam no oculto, c que eles
façam uma única substância. Essa frieza e umidade é, com efeito, uma
fumaça corruptora e aquosa, a propósito da qual se diz que a umidade,
aquosa e adustível,* corrompe os corpos e tinge em negror. Convém,
portanto, destruir essas enfermidades no fogo e por meio dos graus do
fogo. Esse é o Livro das Três palavras, livro da preciosa Pedra, que é
o corpo aéreo e volátil, frio e úmido, aquoso e adustível, em que cstào
calor, secura, frieza e umidade: uma virtude está no oculto, outra está
no manifesto. Isso para que o que está no oculto se torne manifesto, e o
que está manifesto se torne oculto pela potência de Deus, tanto o calor
quanto a secura. Os Filósofos persas dizem, com efeito, que a frieza e a
umidade aquosa e adustíveis não gostam do calor e da secura, pois o ca­
lor e a secura destroem o frio e o úmido aquoso e adustível pela virtude
divina. E então, esse espírito é transformado em um corpo muito nobre,
e não foge do fogo, e escorre como um óleo que é tintura viva e multi­
plicativa, que pondera, colore, ilumina, fortifica, muito bela, penetrante,
protetora e perpétua, e por isso é um Sol precioso.
Livro das três Palavras (Líber trium lerborunt),
in Aurífera Artis tjuam Chaniani wcant, t. I. p. 377-378.
*
* *
I^m um campo violeta escuro, um homem vermelho de púrpura, se­

gurando o pé de um Leão vermelho de laca, que tem asas, e parece


encantar e levar o homem.
Esse campo violeta e escuro representa que a Pedra obteve, pela
completa decocção, as belas roupagens inteiramente laranja e verme­
lha, que ela pedia a São Pedro, que com elas estava vestido, e que sua
completa e perfeita digestão (significada pela cor alaranjada absoluta)
lhe faz abandonar sua velha roupa alaranjada. A cor vermelha de laca
desse Leão voador, semelhante a esse puro e claro escarlate, do grão do
verdadeiro vermelho romã, demonstra que agora ela está realizada em
toda retidão e igualdade. Que ela é como um Leão, devorando toda a
Natureza pura metálica e transformando-a em sua verdadeira substân­
cia em verdadeiro e puro Ouro mais fino do que o das melhores minas.
544 Filosofar pelo Fogo

Fjgur.es d’Arrahaa< Jujf

Nicolas Flamel, Livro das Figuras hieroglíficas, séc. XIV.

Por isso, agora ela leva o homem para fora desse vale de misérias,
isto é, para longe dos incómodos da pobreza e da enfermidade e, com
suas asas, levanta-o gloriosamente para fora das estagnadas águas do
Egito (que são os pensamentos ordinários dos Mortais) e, fazendo-o
desprezar a vida e a riqueza presentes, faz com que ele medite noite e
dia em Deus e em seus Santos, deseje o Céu* Agravado, e beba as doces
nascentes das fontes da esperança eterna.
Louvado seja Deus eternamente, que nos deu a graça de ver essa
bela e toda perfeita cor de púrpura, essa bela cor da papoula campestre
do rochedo, essa cor de Tiro, cintilante e flamejante, que é incapaz de
mudança e de alteração sobre a qual o próprio Céu, e seu zodíaco, não
pode mais ter domínio nem potência, cujo brilho flamejante e ofuscante
parece de alguma forma comunicar ao homem algo de supraceleste,
Uma Soberania Benéfica: a Pedra dos SAbios 545

fazendo-o (quando ele a contempla e conhece) espantar, tremer e estre­


mecer ao mesmo tempo.
Ó, Senhor, dê-nos a graça que dela possuímos, para bem usar no
aumento da fé, em proveito da alma, e crescimento da glória desse no­
bre reino. Assim seja.
O Livro de Nicolas Flamel, contendo a explicação das
figuras hicroglíficas que cie mandou colocar no cemitério
dos Saints-Innocents cm
Paris (scc. XIV), in William Salmon.
Biblioteca dos Filósofos Alíjuitnicos, t. I, p. 259-260.
*
* *

k^erto necromante, chamado Illardus, que vivia na província de Ca-


talínia, fez as seguintes perguntas ao Diabo:

P. Você acha que é possível fabricar a Pedra filosofal, convertendo


pelo fogo os metais imperfeitos em Sol e em Lua?
R. No ouro reside a essência de todos os metais, múltiplos com
suas terras quanto à cor. Da terra do ouro é confeccionada a Pedra,
segundo sua essência que, por sua natureza, retira toda imundície e,
projetada sobre as coisas imperfeitas, fixa-as definitivamente.
P. De que natureza é essa essência?
R. É a alma mediante natural, que permite que uma forma seja
convertida em outra forma.
P. Como age a alma mediante natural?
R. Nenhum anjo ou homem pode de nenhuma forma vê-la ou com­
preendê-la intuitiva mente, graças à acuidade de seu intelecto; portanto,
isso é próprio de Deus, que reserva esse privilégio à sua majestade.
P. O homem pode confeccionar essa Pedra?
R. Uma vez que toda coisa criada por Deus é dotada de um caráter
próprio, é possível ao homem agir sobre ele, mas, por mais difícil que
seja confeccionar a Pedra, isso é possível.
P. A alma mediante natural tem um corpo?
R. A cor do ouro é o corpo da alma mediante natural.
P. Como a cor pode ser separada do ouro?
R. A alma mediante natural divide e reúne os dois simultaneamen­
te, graças à sua cor e umidade.
P. A cor do ouro é branca ou negra, ou de qualquer espécie?
546 Filosofar pelo Fogo

R. Ela parece branca à visão humana, mas seu espírito é azul-


escuro.
P. Como, e de que elementos, a cor provém?
R. A natureza a fabrica a partir de uma terra e de uma água puras.
P. Todos os metais têm cor?
R. Não apenas nos metais, mas também em todos os elementos a
cor está oculta.
P. Qual é a potência da Pedra?
R. A Pedra pode livrar todos os corpos metálicos de sua lepra, de
tal forma que eles sejam eternos, até a revelação última. Ela cura os
corpos humanos de qualquer doença, até sua morte natural.
P. O que é a alma humana, e qual sua natureza?
R. É um fogo vivo de vida celeste, e ele tem em si a alma mediante
natural, que é chamada Deus, criador de todas as coisas existentes no
mundo.
P. Virgílio possuiu a Pedra?
R. Não apenas ele mesmo realizou a Pedra, mas muitos Filósofos
que escreveram a seu respeito em inúmeros lugares sob nomes obscuros
e por meio de múltiplas operações.
P. Como e por que ela é chamada “Pedra”?
R. Eu lhe digo que Pedra é seu nome, e a liberdade não me deixou
lhe revelar mais a seu respeito.
P. Em quanto tempo a Pedra pode ser realizada?
R. Doze meses são necessários, a partir do primeiro dia da emprei­
tada. Em 30 dias a terra é engendrada a partir de Saturno, ou então a
natureza da terra faz Saturno crescer. Em cem dias a Prata-viva cresce
na água. Em 60 dias completos o ar se elevou de Júpiter. Durante os ou­
tros dias do ano, cresce o fogo a partir do Sol. No meio do ano, a alma
mediante natural desce do céu até essa terra e mortifica as potências
superiores e inferiores. Imagem da múltipla vitória em razão da consu­
mação da guerra no coração do ventre dessas potências, até que o fogo
o indicasse para sempre. Mais não posso dizer.
Livro da Arte alíjnimtca de um autor incerto
(Líber de Arte chemica ineerti aulhoris), in Attriferir
Artis (]nam Chemian vocant, t. I, p. 670-673.
*
* *

Pedra procurada pelos Filósofos é um espírito invisível e impal­


pável; é uma tintura e um espírito tingidor que outro espírito, visível e
Uma Soberania Benéfica: a Pedra dos Sábios 547

impalpável, dissimulou nas vísceras mais profundas. Assim, de comum


acordo, os Filósofos em nossa intenção deixaram esse espírito inexpli-
cado, sob uma roupagem enigmática. Essa Pedra é o quinto Elemento
abstraído dos quatro outros. Ela é o elo entre os Elementos, o agente
mediador e a corrente* tornada ouro, graças à harmonia dos Elemen­
tos, e que o Enxofre e o Mercúrio aglomeraram no seio da terra em um
corpo metálico. E porque semelhante elo. permanecendo na terra que
o torna invisível, não pode ser possuído, os Filósofos o procuraram cm
um corpo mais perfeito. Portanto, eles se esforçaram cm adquirir essa
natureza generativa, suscetível de dar origem aos metais, para limpá-
la e torná-la 100 mil vezes mais potente do que ela jamais foi em sua
própria natureza. E eles se habituaram a designá-la por um nome mais
secreto, como fogo vivo, fogo de natureza ou alma central natural. As­
sim como os médicos dividem o homem em corpo, espírito e alma, os
Filósofos da mesma forma dividiram sua pedra nessas mesmas partes:
ora o espírito é a vida da alma, ora a alma é a vida do espírito, essas
duas vidas estando assim em oposição à do corpo. O núcleo do espírito
é, portanto, também o da alma e do corpo; assim a carruagem etérea, o
veículo da alma, dissemina a virtude anímica através de todo o corpo.
Você pode, portanto, compreender que, quando os Filósofos extraem a
Pedra do corpo, os quatro Elementos desse corpo são constituídos de
espírito e de alma. A água também é espírito, bem como o ar, e o fogo
central igualmente, sobre o qual eu falarei, mas a terra não é um: dize­
mos que ela é um corpo, porque é o receptáculo dos outros Elementos,
sua matéria e sua sede.
Marsílio Ficino, Livro da Arte alquímica
(Liber de Arte ehetniea, séc. XVI),
in Jean-Jacques Manger, Biblictheea Chcniica Curiosa,
t. II. p. 177.
*
* *

estudo é, segundo os Filósofos, a investigação atenta do verda­


deiro e do necessário. O verdadeiro é aquilo a que nada é estranho e
a que nada faz falta e, sobretudo, aquilo que pode se mostrar menos
prejudicial. O necessário é tudo aquilo de que não podemos passar
sem. É por isso que a verdade é a virtude suprema, o castelo inexpug­
nável, habitado por bem poucos amigos, e sitiado por inúmeros inimi­
gos, hoje visitado por quase todos, mas permanecendo uma garantia
intransponível para aqueles que o possuem. Nessa cidadela está contido
Filosofar pelo Fogo

o verdadeiro e indubitável tesouro, que é para os


Filósofos sua Pedra e que, não sendo nem roída
pelos vermes nem transpassada pelos enraiveci­
dos, permanece eternamente para todos os outros
delinquentes um lugar de ruína, para muitos, e
uma via de salvação, para os outros.
Essa é uma coisa muito vil aos olhos do
vulgar, desprezada e odiada pela maioria e, para
A sujeira da Pedra faz com os Filósofos, muito mais do que uma coisa ao
que os homens a desprezem, mesmo tempo amável e detestável, e infinita­
em vez de colocá-la de lado. mente mais preciosa do que todas as pedras e o
ouro obrizon:* é a amante de todas as coisas e,
no entanto, a inimiga de quase todas; aquela sobre quem podemos em
todos os lugares perguntar, mas por bem poucos e até mesmo por nin­
guém descoberta, clamando pelas ruas, dirigindo-se a todos: “Venham
a mim, todos os que me procuram, e eu os conduzirei pelo caminho
correto”. Eis essa preciosa coisa, tão exaltada por todos os verdadeiros
Filósofos, aquela que domina todas as coisas e não é vencida por nenhu­
ma delas, corpo e coração penetrando toda coisa dura e sólida, enrije­
cendo toda coisa mole e consolidando a resistência de todo corpo duro.
Na frente de todos nós ela vem, e não a vemos vociferando e clamando
em alta voz: “Eu sou a via da verdade, caminhem através de mim, pois
não existe nenhum outro trajeto para a vida”; e não queremos ouvi-la
nem percebemos o odor suave que ela espalha. Em suntuosos banque­
tes, ela a cada dia se oferece a nós generosamente, em uma atmosfera
de suavidade, e não a saboreamos. Com doçura ela nos atrai para a
salvação, mas, resistindo-lhe, nós nos recusamos a sentir essa atração.
Por isso, fomos moldados à imagem das pedras: tendo olhos, mas não
vendo; tendo ouvidos, mas não escutando; narinas, mas não sentindo;
providos de bocas e de línguas, mas não falando nem saboreando; mãos
e pés, mas incapazes de andar ou de realizar. O, gênero humano, tão
miserável, que não tem mais potência do que as pedras, sendo-lhes ao
contrário inferior, uma vez que não estão dispostos a dar essa razão
última de suas operações! Transformem-se, ela nos diz, transmutem-
se de pedras mortas em pedras filosofais vivas. Eu sou a verdadeira
medicina, corrigindo e transmutando qualquer coisa perecível nisso,
que foi antes a corrupção e até mesmo para melhor, e naquilo, que não
está nisso e que deve necessariamente estar. Eis-me aqui fazendo tre­
mer tanto de dia quanto de noite as portas de sua consciência, e vocês
não me acolhem? Em paz eu, contudo, espero, e sem irritação me re­
tiro para longe de vocês, suportando pacientemente suas injúrias, pois
Uma Soberania Benéfica: a Pedra dos Sábios 549

aspiro a conduzi-los pela paciência à qual eu os exorto. Venham, por­


tanto, e venham novamente com mais frequência, vocês que buscam a
sabedoria, e aprendam a adquirir sem gastos - e não pelo ouro e pela
prata, e menos ainda pelos trabalhos apropriados - o que lhes é ofere­
cido a mais. Voz sonora, dotada e generosa aos ouvidos dos Filósofos! O
fonte inesgotável das realidades divinas, para aqueles que têm sede de
verdade e de justiça! O que mais vocês procuram, mortais ansiosos?
Porque, infelizes, perturbam suas almas com tormentos infinitos? Eu
lhes pergunto: que demência lhes cega? Enquanto em vocês, c não
fora de vocês, está tudo o que se obstinam a procurar fora de vocês, c
não em vocês.
Gcrard Dorn, Chave de toda a Filosofia aL]iamiea
(Clavis totius Philosophia ehymistieír, 1567),
in Theatrum Chnnicunt, t. I, p. 238-239.
*
* *
T1 revas surgirão na superfície do abismo, e a escuridão tornará ma­
nifesta a presença de Saturno e do Antimônio* dos Sábios; isso é o que
os Alquimistas nomeiam Nigredo e cabeça do Corvo, e todas as cores
que existem no mundo se tornarão visíveis no momento da conjunção,
assim como o arco-íris, mensageiro de Deus, e a cauda do pavão: mis­
térios relativos à irisação mencionada pelo Antigo e pelo Novo Testa­
mento.
Enfim, quando se tiverem sucedido as cores acinzentadas, branco
e citrino, você verá a PEDRA FILOSOFAL, nosso REI e SENHOR dos
dominadores, sair de seu sepulcro vítreo, levantar-se de seu leito e de
seu trono e avançar sobre o palco mundano em seu corpo glorificado,
isto é, REGENERADO e mais que PERFEITO: este é o cabochão bri­
lhante, muito radiante de esplendor, cujas partes muito sutis e muito
depuradas pela paz e pela concórdia da mistura foram inseparavelmente
unidas e reduzidas à UNIDADE: equânime e diáfana como o cristal,
compacta e muito densa, muito facilmente fusível no fogo como a resi­
na, fluida como a cera e mais fugidia ainda do que prata-viva, mas sem
emitir fumaça, transpassando e penetrando os corpos sólidos e compac­
tos, como o óleo atravessa o papel; solúvel e misturável a todo líquido
suscetível de amolecê-la, resfriável como o vidro, da cor do açafrão,
uma vez reduzida em pó, mas vermelha como o rubi, se sua massa
permanece íntegra (essa vermelhidão é a ASSINATURA da perfeita
fixação e da fixa perfeição); colorindo e tingindo continuamente nas
atribulações de todas as experiências e até mesmo durante os ataques
550 Filosofar pelo Fogo

do enxofre devorante e das águas corrosivas, e sob sua muito violenta


perseguição do fogo; fixa, sempre estável e incombustível e, a exemplo
da Salamandra, PERMANENTE e julgando justamente todas as coi­
sas - pois ela é à sua maneira TUDO EM TUDO - e clamando: Eis, eu
renovarei todas as coisas.
Hcinrich Khunrath,
A njiteatro da Sabedoria eterna
(Amphitheatrmn Sapientiir a’terna-, 1602), p. 202-203.
*
* *

sse capítulo contém a arte inteira e a revela aos Sábios que co­
nhecem o Leão químico. Com efeito, uma vez que se sabe o que é o
corpo de nosso Leão, ou Pedra dos Filósofos, todo o resto não passa
de assunto de mulheres e brincadeira de criança: precisamos cozinhar
pelo tempo necessário e ter a paciência e o tempo, até que a obra tão
desejada esteja terminada. Se a Pedra é a quintessência do Céu e de
todos os Elementos, ela não pode ter outro corpo, nem colocar outra
vestimenta, senão o corpo e a vestimenta do sal. Com efeito, enquan­
to ele se cozinha no centro da Terra, esse espírito não pode endossar
por esse cozimento nenhuma outra vestimenta além do sal. Nesse sal
contemplamos, com efeito, todos os Elementos: nós vemos o fogo, por
causa de seu calor e do brilho que ele manifesta; vemos o ar, por causa de
sua porosidade e de sua brancura; vemos a água, por causa de sua diafa-
neidade e de sua umidade; vemos a terra, por causa de sua corporeidade
e de sua massa compacta; vemos o Céu, por causa das características e
propriedades notáveis do Sol, da Lua e de todas as estrelas, de forma
que todas as causas que produzem o próprio Sal estão encerradas e nele
percebidas. O que mais desejaríamos em um sujeito tão excepcional,
que chamamos Pedra dos Filósofos, e que, no entanto, não é uma pedra
e não tem a natureza da pedra?
Picrrc-Jean Fabrc, Manuscrito dirigido a Frederico
(Manuscriptuni ad Fredericutn, 1690), in Jcan-Jacqucs Manget,
Bibhotheca Cheniica Curiosa, 1.1, p. 293.

*
* *

pedrinha é um sujeito* nobre, que a Natureza elevou a uma fixi­


dez maior do que o ouro; por isso, ela é a base e o começo da constância
de todas as pedras preciosas. Ela é uma água muito pura, uma água de
Uma Sorerania Benéfica: a Pedra dos Sários 551

X-:'—

Hennes-Mercúrio unindo o Rei e seu Filho: Lambsprinck,


De Lapide philosophico, séc. XVI.

constância e de permanência; ela se funde no fogo mais forte, como o


óleo, sem se consumir, e a Natureza a impeliu em seu mais alto período:
pois a Natureza não vai além da fixidez da pedra e do vidro; ela antes
retrocede; e, da mesma forma, a Arte não pode ir mais longe do que a
vitrificação; em seguida, o sujeito vitrificado retrocede à sua primeira
matéria.
Tenha a pedrinha em forte consideração, se quiser fixar alguma
coisa prontamente; pois nela, e nos graus que a ela pertencem, assim
como no cristal, que é uma pedrinha transparente, consiste o ponto es­
sencial de toda constância. Também pode ser visto no crescimento de
todos os minerais, cuja matriz é pedrosa; mas é necessário empregá-la
com arte, porque ela opera de forma diferente, de acordo com as diver­
sas preparações. Quando é reduzida em óleo, ela opera de outra maneira
que em seu estado natural, e opera ainda diferentemente quando é redu­
zida em um vidro de difícil ou de fácil fusão.
Aquele que entende bem os graus da Natureza, avança e retroce­
de de acordo com sua vontade; ela torna o fixo volátil, e o volátil fixo,
como faz a própria Natureza: mas em muito menos tempo, pois, ali
552 Filosofar pf.lo Fogo

onde a Natureza emprega mil anos, o Artista pode empregar apenas mil
dias, e ainda menos.
A Natureza revelada ou Teoria da Natureza (1772),
tradução do Aurea Catena Honieri, dc Anton Joscph
Kirchwcgcr (1723), 1.1, p. 364-365.

*
* *

fj obre a pedra dos filósofos e sobre a pedra filosofal.


Duas pedras, começo e fim da obra filosófica, desconcertam tanto os
amantes dessa pedra que eles não sabem mais qual das duas é a boa;
eles se fazem mil ideias. Para não enganá-los em suas buscas e ao mes­
mo tempo lhes tornar fácil o meio de alcançá-la, dir-lhes-ei que tanto
uma quanto a outra são necessárias e que não podemos dispensá-las.
A primeira, que é a pedra dos filósofos, traça-nos o caminho para
chegar à pedra filosofal, e elas não se separam de forma alguma; ela
é o princípio da obra de alquimia, como a outra é
seu fim.
Acrescentarei ainda, para esclarecer o que es­
crevi anteriormente e para ajudar os amantes que
trabalham na ciência hermética, que a pedra dos fi­
lósofos é tão necessária para fazer a pedra filosofal
que não podemos dispensá-la e não podemos subs-
tituí-la por outra coisa.
Ainda que desprezada
Portanto, é preciso que o filósofo que traba­
pelos animais e pelos
lha faça como o chaveiro, que é obrigado a fazer
homens, a Pedra é,
ao mesmo tempo uma chave para abrir a fechadu­
contudo, amada pelos
ra que ele deve abrir - da mesma forma, o filósofo
Sábios.
que trabalha deve imitar o chaveiro. Ele deve come-
çar fazendo uma chave para abrir a fechadura hermética; e essa chave
essencial, que não é senào a pedra dos filósofos da primeira ordem,
quando estiver bem feita, lhe servirá e lhe permitirá visitar todos os
gabinetes interiores (ocultos aos iniciantes e amadores da alquimia), e
lhe oferecerá o meio de abrir e de fechar à vontade, ou de se representar
a parte mais secreta da filosofia: e então ele conseguirá muito mais fa­
cilmente fazer a pedra filosofal, que é o que ele pretende.
Portanto, é preciso, eu repito, que ele faça como o chaveiro: que co­
mece sua obra alquímica por essa chave, que, ainda que não seja feita de
nenhum metal (mas da união e confusão, ou mistura das quatro qualidades
dos elementos metálicos), se toma indispensável para obter o sucesso.
Uma Soberania Benéfica: a Pedra dos Sábios 553

É verdade que é muito difícil encontrar essa chave essencial, e


que somente os verdadeiros adeptos a reconhecem c a encontram muito
mais facilmente, quando desejam dela se servir, do que aqueles que
são os amadores: ainda que estes muitas vezes passem toda a sua vida
a buscá-la, por meio de uma leitura contínua dos livros herméticos.
Qualquer outra pessoa, ainda que possua grandes conhecimentos, sem­
pre se enganará: tanto a natureza se ocultou em seus gabinetes.
Reflita sobre o que eu disse antes, e jamais empregue princípios e
matérias de um reino estrangeiro àquele que você deseja elevar c impul­
sionar à sua perfeição.
Françots Cambrícl,
Cmw de Filosofia bermàh a
(1843), p. 82-84.
*
* *

igamos, antes, que o termo pedra filosofa! significa, segundo a


língua sagrada, pedra que traz o sinal do sol. Ora, esse sinal solar é ca-
racterizado pela coloração vermelha, a qual pode variar de intensidade
[...]. O que sobretudo importa é reter que a pedra filosofal se oferece a
nós sob a forma de um corpo cristalino, diáfano, vermelho em massa,
amarelo depois da pulverização, e que é denso e muito fusível, ainda
que fixo em qualquer temperatura, e cujas qualidades próprias o tornam
incisivo, ardente, penetrante, irredutível, não calcinável. Acrescentemos
que ele é solúvel no vidro em fusão, mas se volatiliza instantaneamente,
quando o projetamos sobre um metal fundido.
Fukancllt. As MoradasJibscfais
(1964), r. I, p. 177 c 182.
554 Filosofar pelo Fogo

;;í'”

Quadratura alquiniica do Circulo: Johann Daniel Mylius,


Philosophia reformata, Frankfurt, 1622.
Uma Soberania Benéfica: a Pedra dos Sábios 555

|
£

Hermes e Hipócrates: Oswald Croll, Kõniglicher


Chymischer und Artzneyischer Palast, Nurenibergue, 1684.
r

Uma Caridade Proeífica:


a Medicina Universal

Para dissipar essas nuvens de calúnia e dc mentira,


c preciso que o Medico alquímico
brilhe com o Sol de Justiça pelo amor que ele dará a Deus,
a esse bom Senhor, Criador do céu e da terra.
David de Planis Campy, Buquê composto
com as mais belasfores alquímicas (1629), p. 452.

Apogeu da aventura alquímica, a confecção da panaceia (remédio


universal) responde ao mais antigo sonho da humanidade, humilhada
pelo envelhecimento e despossuída pela morte de sua aspiração à imor­
talidade. Arbitrar sobre a possibilidade de tal preparação significa de­
terminar se é ou não plausível a própria ideia de transmutação. O que,
ao contrário, se revela é a existência de uma medicina muito antiga,
cujo principal pilar foi a alquimia; uma medicina profundamente uni-
cista — holística, como se diria hoje - cujo fundamento foi ardentemente
defendido pelo grande Paracelso, que guerreava contra a incompetên­
cia dos boticários e médicos de seu tempo, muito antes que Samuel
Hahnemann e RudolfSteiner reabilitassem a alquimia, por intermédio
da homeopatia e da antroposofia.
Alquímica, essa medicina o é por sua confiança na Natureza e,
mais ainda, na graça divina: “Em todas as grandes obras de Deus em
que há o mal, também há o remédio; onde há o veneno, há a virtude ”
(Oswald Crollius). Ainda é necessário descobrir os arcanos secretos
da Natureza, e é isso que incumbe ao médico-alquimista. Medicina
unicista, portanto, em que a doença não é aos seus olhos nada além
“de uma afecção, pela qual está travado o funcionamento do espírito
-556-
Uma Caridade Prolífica: a Medicina Universal 557

de vida ” (Martin Ruland). Por isso, toda intervenção médica visa de


fato à autocura; o próprio doente expulsa o que travava a livre circu­
lação desse "espírito ” que rege o tratamento da maioria das doenças.
Ridicularizada pela alopatia, essa visão tão penetrante quanto com­
passiva encontra atualmente ainda um correspondente em certas práti­
cas médicas vindas da Ásia, onde entra em jogo uma alquimia.
*
* *
Podemos comparar o elixir a um povo de homens fortes e unidos,

cujas opiniões, palavras e desejos são idênticos; que têm as mesmas


características e as mesmas naturezas; que podem dizer tanto em se­
gredo quanto em público as mesmas coisas; que arrancaram de seus
peitos a injustiça e de seu coração, a lerdeza e a traição; que têm
como única preocupação bem aconselhar tanto uns quanto outros;
que, quando fizeram prisioneiro um de seus ini­
migos, lhe devolvem o bem com o bem, o mal
com o mal. Assim eles são feitos, e este é seu
caráter costumeiro, e lhes é impossível mudar.
Esses homens fortes encontram um povo de ho­
mens fracos, pérfidos, hostis uns com os outros
e que buscam enganar-se mutuamente. A preo­
cupação de cada um deles é fazer perecer seu vi­
zinho, sem se inquietar se isso também causará a Essa medicina superior a
perda de todos, de forma que ele poderia perecer todas as outras e a todas
com eles. Eles também são feitos de tal manei­ as riquezas do mundo
ra, que não poderiam mudar sua maneira de ser. deve ser buscada na
i
Ora, os homens unidos vencerão certamente os cidadela.
homens divididos, irão subjugá-los e fazê-los
prisioneiros. Da mesma forma e axibir, cujas forças estão unidas sem
se contrariar, conseguirá domar as naturezas divididas e as obrigará
a transformar sua natureza para tomar a sua. Se ele é colocado em
presença de um corpo fraco, que o fogo desagregou e diminuiu, e
que esse corpo fraco tenha naturezas divididas e hostis umas com as
outras, e contrárias, cada uma dessas naturezas se dedicará a transfor­
mar o elixir em uma natureza idêntica à sua, e isso sem o auxílio de
suas vizinhas; por isso ela não terá nenhuma força. Ao contrário, uma
pequena quantidade de elixir terá uma grande ação sobre uma massa
considerável dessas naturezas e as assimilará à sua própria natureza.
558 Filosofar pelo Fogo

Se o elixir é vermelho, ele tingirá o objeto em ouro; se ele é branco,


ele o tingirá em prata.
Djâber bem Hayyân, O Livro da Misericórdia, in
Mareei ín Bcrthclot, A Alquimia na Idade Média,
r. I, p. 188-189.
*
* *
]E/ preciso, portanto, saber que são em número de quatro os espíritos
dos metais: Mercúrio, Enxofre, Orpimenta (Ouro-pigmento),* ou Ar­
sénico,* e o Sal* armoníaco. Esses quatro espíritos tingem os metais
em branco e em vermelho, isto é, em Sol e em Lua: contudo, não por
eles mesmos, mas com a condição de que sejam antes preparados para
isso com a ajuda de diversas medicinas, e que não fujam do fogo; pois,
se permaneceram no fogo, eles realizam obras maravilhosas: de Marte
ou Júpiter eles, com efeito, fazem a Lua, e de Vénus ou Saturno, o Sol.
Para ser breve, eu diria que todos os metais são transubstanciados em
Sol e em Lua que, em todas as obras, estão acoplados em toda coisa na­
tural. Com exceção do fogo, que não pode ser extraído do aço alquími­
co; e o ouro realizado pela Alquimia não regozija o coração do homem
nem cura a lepra, e provoca o inchaço de uma ferida feita por ele; o que
o ouro natural não faz. Pois em todas as outras operações: malhação,
observação, ele conserva eternamente sua cor. Desses quatro espíritos
pode advir a tintura, nomeada Elixir em língua árabe, e fermento em
língua latina.
Elixir é de fato uma palavra árabe, que em latim significa fermen­
to'. porque, assim como o pão fermenta e cresce graças a um bom fer­
mento, assim também as massas metálicas são transubstanciadas por
esses quatro espíritos em branco e em vermelho pelo Mercúrio, que é a
fonte e a origem de todos os metais.
Alberto, o Grande, Da Alquimia (De Alchemia, séc. XIII),
in Alchemia! Doctrina, c. I, p. 627-628.
*
* *

multiplicação é o aumento da boa qualidade, a exaltação da cor


e o acúmulo artificial de uma quantidade infinita. E a razão pela qual
nossa medicina deve ser multiplicada ao infinito, pois essa medicina
é como o fogo na madeira e o almíscar nos bons perfumes: ela en-
Uma Caridade Prolífica: a Medicina Universal

tão aumenta com mais intensidade, quanto mais


tiver sido isolada. Por isso, é preciso conservar
constantemente uma parte depois que ela tiver
lhe gratificado três vezes com seus benefícios,
da mesma forma que alguém que detém um fogo
foi enriquecido por ele.
Essa medicina poderá ser multiplicada de
duas maneiras. Em primeiro lugar, pela solução
e pela coagulação reiterada: essa é a multiplica­ SCALA PHILO5O.
ykaru pkxhfcpkúa^ ■
ção de sua virtualidade em qualidade, em bon­
dade. Em segundo, pela fermentação: essa é a A Escala dos Filósofos:
multiplicação em quantidade. Mas você realiza Pegue o Mercúrio puro
mais rapidamente o aumento pela fermentação, e estável para obter o
de forma que as coisas dissolvidas só operam grande Magistério
bem se forem previamente fixadas em seu fer­ oculto da Pedra.
mento. Nossa medicina é por isso, assim como
as coisas espirituais, mais perfeitamente multiplicada pela solução e
pela exaltação; e, depois da primeira dissolução, exaltação e coagula­
ção, uma parte em cem cai durante a primeira projeção, na segunda em
mil, e assim poderemos mais tarde, ao exaltar continuamente. multipli­
car até o infinito: esse é o precioso Dom de Deus.
Portanto, é preciso concluir que operamos mais abundantemente
em uma medicina muito fermentada e dissolvida, uma vez que somen­
te o fermento, e por ter se tomado muito sutil, permite à fermentação
multiplicar ao infinito essa medicina: pois ele reduz a si qualquer opos­
to, traz de qualquer maneira para si a cor e o sabor naturais. Por isso,
apercebendo-se que essa matéria não fugia, depois de se ter tornado
fugaz por meio das coisas também fugidias, os Filósofos reiteraram en­
tão essa operação em um corpo semelhante, mas fixo, e lhe colocaram
esse fermento, pelo qual ele pode fugir menos, em razão de sua proxi­
midade de natureza e conveniência recíproca: a alma integrando com
efeito mais rapidamente seu corpo do que se tivesse sido enviada em
um corpo estrangeiro. E por isso que você trabalhará em vão; se não
aprender a deslocá-la para outro corpo, nenhuma comunicação se efe­
tua então entre a luz e as trevas. E, portanto, ao se dirigir para um corpo
semelhante àqueles de onde foram extraídos, que os corpos retornaram
à vida e foram preparados, pois dessa maneira foram mudados em uma
tintura tingidora e dotada do poder infinito de tingir. Não pense então
que o que tinge e foge é a verdadeira tintura dos Filósofos, uma vez que
os enxofres só tingem e fixam se forem conjugados a uma Prata-viva da
560 Filosofar pelo Fogo

mesma natureza deles. Convém, portanto, misturar a própria Prata-viva


a uma outra do mesmo gênero, mais branca, e a outra ainda, vermelha,
que não fuja da tintura. É por isso que recomendamos misturar à Prata-
viva, como já foi dito, até que se torne apenas uma água pura.
Guido de Moncanor, A Escala dos Filósofos
(Scala Philosophorum, 1593) in Jcan-Jacqucs Mangct,
Bibliothcca Chctnica Curiosa, t. II. p. 146.

*
* *
J^etomemos agora o terceiro funda mento,204 sobre o qual repousa a arte
médica, a saber, a alquimia. Se o médico a ela não se aplica com dedicação
e não adquire uma grande experiência, então toda a sua arte permanece vã.
A natureza é de fato tão sutil e tão penetrante em suas operações que não
se pode, sem uma grande habilidade, dela tirar proveito. Pois ela não revela
nada que esteja perfeitamente finalizado, e cabe ao homem finalizar seus
desejos; essa realização leva o nome de alquimia [...].
Por isso, um médico que deseja se instruir deve saber o que é a
calcinação e o que é a sublimação. E para isso ele não deve se contentar
com uma abordagem superficial, mas aprender também a conhecer em
profundidade as transformações interiores das coisas; o que é muito mais
importante, pois da arte e da maneira de preparar essas coisas depende
que se obtenha o amadurecimento que a Natureza não lhes deu. O médico
deve praticar sua arte, a fim de se substituir ao tempo, pois aqui ele é ao
mesmo tempo o verão, o outono e o Astro* no qual ele deve tudo realizar.
O fogo é a terra, o homem é o organizador, as coisas dormem no seio das
sementes. E, ainda que consideremos todas as coisas no mundo como se
fossem simples ou se tivessem tornado, elas são, no entanto, muito diver­
sas quanto ao seu objetivo. Diferentes igualmente em sua função última,
ainda que, mediante esse processo (alquímico), todos os arcanos nasçam
no fogo; e que além do fogo seja sua terra e também seu sol, e que a terra
e o firmamento não sejam senão uma única coisa nessa segunda criação.
Os arcanos ali fermentam, ali se transformam [...].
Vocês acham que eu encontro indevidamente um apoio na arte da
alquimia, que me traz a prova de que a verdade lhes é e lhes era desco­
nhecida, como me ensina a experiência? Seria necessário que essa arte
não fosse boa, capaz de colocar todas as coisas à prova e revelá-las?
Será necessário que seja injusto esse fundamento da arte médica que
prova, mostra e confirma o saber do médico? Vocês acreditam que possa

204. Os outros fundamentos são a filosofia, a astronomia e a probidade.


Uma Caridade Prolífica: a Medicina Universal 561

lhes ser sábio o médico que se refere ao que


escreveram Serapião, Mesua, Rasis, Plínio,
Dioscórides ou Macer, a respeito das virtu­
des da verbena, quando dizem que ela é boa
por isso e por aquilo, uma vez que você não
—fl
pode fazer sua experiência para que isso seja
reconhecido? Por que você acha que isso é
um julgamento? Sei bem que se você é um
juiz mais rigoroso do estado das coisas, que
sabe provar sua verdade interior. Mas você
não pode fazer isso sem a alquimia [...].
O conhecimento da alquimia tem pre­
sentemente um significado tão grande para a
arte médica, na medida em que ela é a origem Paracelso (1493-1541): "Que não
dos benefícios ocultos no coração das coisas, pertença a outro aquele que pode
e que não são conhecidos por ninguém, se a ser ele mesnio ”.
alquimia não os revela e não os mostra. Por
isso, você é como alguém que no inverno vê uma árvore e não sabe nem
conhece o que ela guarda, até que o verão não lhe revele sucessivamente:
primeiramente os brotos, em seguida as flores, depois os frutos e, enfim, o
que se encontra no interior. Assim, repousam agora as virtudes das coisas
ocultas ao homem, que não as conhecerá a não ser que se aproprie delas
por meio do alquimista, como o faz por meio do verão.
Paracelso, Líber Paragranum (1530),
in Sãnitliche Wír/te, t. I, p. 381, 386, 389, 390.
*
* *

Pedra filosofal é a Medicina católica ou universal? Aqueles que o


afirmam se dedicam essencialmente a defender a universalidade dessa
medicina com os seguintes argumentos:
1. A doença é propriamente falando de natureza tripla, pois oriun­
da de uma tripla causa. É por isso que certa medicina geral, composta
de três princípios, pode manifestar sua eficácia no tratamento.
2. São em número de dois os princípios que sustentam nosso cor­
po e conservam a vida: o calor nativo e a umidade radical* (substância
do quente inato) que, reunidos e difundidos pelo espírito, se espalham
em todo o corpo. Ora, uma única medicina pode fornecer a restauração
desses dois princípios.
3. No homem, a doença não é nada além de uma afecção, pela qual
está entravado o funcionamento do espírito de vida. Por isso, a medicina
562 Filosofar pelo Fogo

capaz de sustentar esse espírito fornecerá em abundância a vitalidade e


a alma a todos os outros componentes.
4. A medicina universal pode tratar e curar todas as doenças; de
um lado, em razão de sua similitude com o calor interno, de outro, por­
que ela é incorruptível, e contrária a todas as doenças.
5. Foi unanimemente reconhecido que a cura só pode ser obtida
pela natureza, única capaz de suplantar o mal. Por isso, deve ser protegi­
do o princípio de onde procede semelhante potência, e rejeitadas todas
as outras coisas. Em consequência, nenhuma espécie de medicamento
deve ser administrada para fins curativos, com exceção dessa medicina
católica que, revigorando o calor interno, lhe permite se insurgir contra
a entidade nociva, vencê-la e expulsá-la.
Martin Ruland, Exercícios de Alquimia oit Problemas químicos
(Progymnasta Alcbcmiir sive Problcmata cbymica, 1607),
p. I59-I6I.
*
* *
JE/ sse mistério também é uma medicina extraordinária, que não ape­
nas preserva o vigor nativo do corpo humano e restitui a saúde daquele
que foi prejudicado, mas, purificando os metais imperfeitos, fixando-os
e lhes administrando por grau a cor, os conduz em um breve lapso de
tempo ao fim supremo, ao qual os destinou a natureza: por isso é cha­
mada Medicina universal.
Não se sabe com exatidão qual foi, entre os Filósofos, o primeiro
autor desse mistério tão notável: alguns pretendem que seu inventor te­
nha sido o primeiro ser criado, nosso Adão, que supostamente deteve,
antes da Queda, o conhecimento pleno e completo das coisas naturais;
outros entregam o prémio a Tubalcaim, inventor e Doutor em matéria de
coisas metálicas; e alguns - entre os quais nos colocamos, abandonando
as opiniões dos outros -atribuem o mérito a Hermes Trismegisto.*
Duas razões nos motivam a acreditar nisso: se nosso Hermes obteve
seu conhecimento desse mistério de outros, mais antigos, que certamente
viveram antes do Dilúvio, pelo menos é necessário que essa arte tenha
sido consignada nos escritos, ou tenha sido transmitida da boca daqueles
mesmos que estiveram na Arca com Noé. A razão pela qual nenhum es­
crito menciona essa Medicina é que, sem dúvida, a inundação submergiu
tudo. E não pode nos impressionar essa ficção mencionada nos escritos
de Josefo, segundo a qual as artes transcritas por Hermes nas colunas
situadas no Vale de Hebron tenham sido inventadas depois do Dilúvio.
De fato, não é nem um pouco crível que os Filósofos desse tempo tenham
Uma Caridade Prolífica: z\ Medicina Universal 563

assim publicamente prostituído os segredos de


uma arte tão admirada, de tal forma que qual­
quer um possa obtê-la, ainda que os homens
desse tempo não tivessem sido mais escrupulo­
sos do que aqueles que em nosso século atacam
a alma e a vida. Que essa arte não tenha podido
ser transmitida pela boca dos filhos de Noé, pa­
rece em verdade suficientemente provado, uma
vez que nenhum texto sagrado relata que Noé
e seus filhos tenham obtido essa Medicina dos
metais. A outra razão é a própria confissão de
Hermes, proclamando em um pequeno tratado:
“Apenas de Deus, e da única inspiração divina,
eu detenho o segredo”. Isso nos fará não ape­
nas conhecer com certeza que ele foi o inventor,
mas nos confirmará igualmente que se trata bem O Elixir ao branco: Johann
de um Dom de Deus. Mas esse mistério foi até Daniel MyUius, Anatomia
nosso século tido em tão alta estima que, mo­ Auri sivc Tyrocinium
tivados pela cupidez do único saber, todos os mcdico-chymicum,
mais notáveis e célebres Filósofos consagraram Frankfurt, 1628.
toda a sua atenção à sua busca, e acabaram por
duvidar de que a totalidade das coisas de que podiam dispor nesse mundo
ali estava disposta pelo amor de Deus. Essa na verdade é a razão pela qual
eles, quanto mais consideração tiveram por ele, tanto mais se dedicaram a
ocultá-lo dos indignos, de forma que seus livros pareciam escritos muito
mais para confirmar nossa opinião do que para nos ensinar a causa. No
entanto, esses Filósofos não determinaram com precisão que nome lhe
era mais apropriado: por causa de sua excelência e de sua raridade, c por­
que ele é concedido por Deus, alguns o chamaram Pandora ou Universal,
e soberano Dom de Deus; outros, levando principalmente cm conta sua
forma de pedra congelada, o nomearam Pedra filosofal, para difcrcnciá-lo
das outras gemas e pedras; enfim, outros ainda o designaram sob o nome
de tintura, porque ela difunde para fora de si, durante a projeção, a mais
rica e abundante cor; mas, sob qualquer nome que se invoque, ela terá
para nós função de Medicina universal.
Johanncs Khcnanus.
O Sol íaindo Jo pcfo.
(1615;, livro 11. p. 4-5.
*
* *
564 Filosofar pelo Fogo

Muito especialistas e muito sábios na matéria, os Antigos admiti­

ram e proclamaram, com uma inesgotável admiração e sagacidade, que a


Medicina universal é um Bálsamo, um enxofre e um óleo vital que irriga
todas as funções do corpo, tal um néctar vivificante; que reúne e une
assim, com um laço maravilhoso, o corpo mortal e a alma imortal, não
que ela não possa se separar dele, uma vez o elo rompido, e voar depois
que tenha decorrido o tempo previsto. Essa Medicina universal, vida das
coisas naturais, é igualmente: o Arquétipo da luz celeste; o primeiro e
excelente Princípio; a Quintessência e a Tintura do microcosmo; a Uni­
versalidade dos Médicos; o Bálsamo perpétuo; a preservação contra a
velhice; o Fogo invisível e ardente no tratamento das doenças; a Alma de
todas as criaturas; a conservação das quatro qualidades do corpo humano;
a corrente e o cordão do Universo; a efusão e a impressão dos Elementos,
do firmamento e dos planetas; o influxo de todo o Céu; o teatro de todos
os segredos da luz natural; o espelho dos mistérios divinos; o tesouro e
o milagre da natureza universal; o sujeito* e o instrumento de todas as
virtudes naturais e sobrenaturais; o filho do Sol e da Lua; o habitáculo de
todas as formas metálicas, minerais e vegetais, criadas por Deus sob o
globo da Lua; o Espírito de vida penetrando todos os outros espíritos, mas
em todos os pontos semelhante ao de nosso corpo e fazendo apenas um
com ele; o elo do corpo e da alma; o centro de todo o Universo; e a obra,
oculta sob o hábito da Virgem filosófica.
Johann Daniel Mylius,
Anatomia do Ouro (Anatomia Auri, 1628), p. 1-2.

*
* *
-/\^Ledicina dada por Deus para proteger a Vida dos homens em
condição de viver por muito tempo, para resistir à lepra, tendo em si
uma infinidade de maravilhosas virtudes ocultas. Pegue três dracmas205
de sol puro reduzido em pó sutil, uma dracma do melhor Bálsamo, da
melhor mirra, aloé hepática, duas dracmas de incenso e de láudano
não falsificado, cinco dracmas de cânfora; amasse tudo com óleo de
maçãs de mandrágora e Bálsamo misturados. Tome uma dracma, ou
dracma e meia dessa medicina todos os meses, beba depois um copo cheio
de vinho ardente misturado com água de buglossa e flores de rosmarino:
misture e destile em um alambique. Essa medicina é real e magnífica, so-

205. Peso grego que era de quatro gramas e 36 centigramas.


Uma Caridade Prolífica: a Medicin/\ Universal 565

bre a qual os louvores são infinitos e que não devem ser de forma alguma
comunicadas aos indignos. Ela é comparável ao ouro potável, e também
muito mais preciosa do que o ouro potável, se o ouro fosse reduzido em
água sem corrosivos e misturado com as coisas citadas: se alguém desejar
conservar sua juventude por muito tempo e não pode ter essa medicina,
que use todos os dias mirobálanos206 caramelizados com sua calda.
Jcan Liebaut, Quatro Livros dos Segredos de
Medicina e da Filosojia alquimica (1628), p. 290.
*
* *
Preparação do Unicórnio mineral

Pegue o Vitriol natural verde-vivo, conhecido apenas pelos Filósofos


ou, na falta, os cristais de Vitriol de Vénus perfeitamente limpos, purifica­
dos pela sublimação e isentos de todas as sujeiras terrestres. Introduza-os
em uma retorta de boa qualidade e bem protegida, e continue firmemente a
obra de acordo com o grau desejado, até que apareça um óleo avermelhado.
Conserve-o bem, e mais tarde lhe ensinarei como usá-lo. Em seguida, uma
vez que o caput mortuum está no fundo do alambique, espalhe por cima o
mênstruo* apropriado e deposite tudo em um lugar fresco: depois disso se
formam cristais com a mesma natureza e o odor do Vitriol. Calcine o ca­
put mortuum uma segunda vez e, como indicado anterionnente, continue
até que em breve se produzam novamente cristais, geralmente do mesmo
gênero, mas pouco úteis para esse mistério. Reitere por muito tempo ainda
todo esse mesmo trabalho, até que não apareça mais nenhum odor de Vi­
triol. Calcine então de maneira bem forte, mas filosófica, o caput mortuunu
e extraia um belo sal com gosto agradável, que você conservará da mesma
maneira, na esperança de que um ensinamento venha logo em seguida: e.
durante esse tempo, lembre-se das palavras que são suas:
Você visitará o interior da terra e, tendo-a retificado, encontrará a
Pedra oculta, a verdadeira Medicina.
[...] Essa é a Medicina universal, e um Tesouro de tal qualidade
poderá cuidar de quase todas as doenças, não importando o nome com
que elas surjam, em todas as criaturas e em cada uma em particular.
Um, dois, vários grãos desse Arcano, empregados na proporção da
qualidade ou da constituição do paciente, penetrando lodo o corpo, a
206. Frutos secos de diversas espécies de árvores vindas da índia c utilizados como remé­
dios. Deve-se observar que, tanto no Oriente como no Ocidente, o Mirobálano é dado, nos
textos de inspiração alquimica, como remédio universal (Panaceia).
566 Filosofar pelo Fogo

exemplo de uma fumaça, afastando os humores


malignos e instalando melhor conformidade de
natureza. Eles renovam a criatura por completo e
a regeneram, deixando-a praticamente nova; eles a
conservam assim em bom estado de funciona­
mento, abstração feita das doenças acidentais,
até a velhice e o termo da vida, determinado por
Deus altíssimo. Pois
Contra o poder da morte não há nenhum
remédio nos jardins.
Por isso essa ilustre medicina, fermentada
como se deve com o ouro mais puro dos Filósofos,
purga os metais imundos de sua lepra inata e os
molda pela virtude benéfica de um ouro puro e
fixo. Por esse inefável e imenso benefício, e pela
5. Quinti. Os admiráveis comunicação de tal maná de dons e de sabedoria,
segredos da medicina
louvor e glória ao Deus criador supremo, que está
alquímica, Veneza, 1711.
nos Céus.
Adrianus A Mynsichc,
Tesouro e armamento méíiico-alqttimico
(Thcsaurus et A rmamentarium medico-ehymictim, 1631), p. 2-4.

*
* *
c empre achei que a medicina ordinária, da forma como é cotidiana-
mente exercida, não era a verdadeira; e que ela, visto sua inutilidade
e o pouco de efeito que faz surgir de suas promessas, não era senão a
sombra daquela em que um abismo infinito de razões abunda em um
maravilhoso Tesouro de milagrosas experiências. Esse pensamento,
ainda que limitado à medicina, estende-se, no entanto, para além dela,
pois é certo que, tomando-a pelo devido viés, poderíamos especificá-la
em todas as outras ciências, as quais estão contidas na medicina. E por
isso que o Sábio, ao falar da Medicina, fala da Enciclopédia perfeita.
Quem não teólogo, e astrólogo, pode ser Médico e Mago; e todos os
que se dizem médicos sem esse conhecimento se fazem conhecer por
suas obras de falsos médicos; os quais impondo à Natureza, oferecem
apenas a levedura da Morte àqueles que recebem de suas mãos o vene­
no, em vez da Medicina [...].
Essa verdadeira Medicina, portanto, é aquela de cujo conheci­
mento esses grandes e inimitáveis Médicos e Filósofos antigos, como
r
Uma Caridade Prolífica: a Medicin/k Universal 567

Ostanes, Hermes, Salomão, Pitágoras, Platão, Demócrito, Hipócrates,


Sénior, Rasis, Geber, Saturno, Artépio, Arnauld de Villeneuve, Lulle,
Guillaume Parisien, Isaac Hollandais, Ripley, Paracelso e, em nossa
época, Sendivogius, distinguiram-se. Estes, como já disse, foram muito
bem-sucedidos; e, na perfeita inteligência de posse que tinham dela,
curaram todo tipo de doenças (nullus est morbus contra quem non sit
inventa Medicina)2™ exceto a da morte.
E por que não, uma vez que a Medicina é da criação de Deus?
Assim como nos ensina O Eclesiástico, nos seguintes termos: O Sobe­
rano criou a Medicina da Terra, e o homem prudente nào a desprezou.
Pois toda Medicina é dom de Deus, diz ele no mesmo capítulo. E por
isso que podemos dizer que a Medicina est gratia data a Deo, cujus
fundamentam non sunt academici libri sed invisibilis misericórdia Dei
et donum2w Tanto que, sendo um ato de misericórdia de Deus, ela pode
ser chamada sem blasfêmia Deusa da saúde dos homens.
Portanto, fora daqui a medicina charlatã, escamoteadora e teatral!
Longe, longe dessa filha do Céu, a medicina que limita todo o seu saber e
indústria à lavagem da cloaca humana, e à copiosa evacuação do Tesouro
da vida. Expulsamos e censuramos como pecado, o de que alguns al-
químicos reivindicam o conhecimento. Esses insignificantes em alquimia
não possuem nada menos (ao ouvi-los mencionar ou de viva voz ou por
seus escritos) do que o grande Elixir dos Filósofos; e todavia, pesando-os
na balança de Critolaus, a única coisa abundante que neles encontramos
é a temeridade, a inépcia e a ignorância. E agradou a Deus que o mal
fosse feito só para eles, e que sua maldita medicina enviou vários da vida
para a morte, e do leito para o túmulo, e de um pequeno mal suportável à
raiva e ao desespero de jamais poder adquirir sua saúde.
David dc Pianis Campy,
Tratado da verdadeira, única, grande e universal
Medicina dos Antigos, dita dos recentes, Ouro potável
(1633). Prefácio n.p.
*
* *

V ocês sabem que o médico é comparado a um bom piloto, o qual con­


duz seu navio e o maneja como deseja, e, apesar dos ventos, impede-o por

207. Nào há nenhuma doença contra a qual nào tenha sido inventado um remédio (uma
“medicina”).
208. A Medicina é uma graça dada por Deus, cujos livros sábios nào sào o fundamento, mas
essa misericórdia invisível e esse dom de Deus.
t

568 Filosofar pelo Fogo

sua vigilância de naufragar; por sua experiência, desvia-o dos recifes e


dos rochedos que poderiam quebrá-lo, e das terras, bancos de areia e
outros encontros que poderiam dividi-lo. O corpo do homem é um bar­
co de terra, mas, como diz Galeano, um milagre de lama que flutuaria
ao sabor dos Elementos, se o médico que é seu piloto e o condutor, por
sua ciência e seu raciocínio, não lhe servisse de guia, de farol e de luz.
É sua experiência que faz desviar o corpo do homem das doenças, que
são os recifes e outros encontros, aos quais está sujeito, já que é com­
posto desses Elementos que lhe servem como ventos próprios a fazê-lo
navegar e durar até que esteja podre, uma vez que assim está decidido
há muito tempo e confirmado por este decreto verdadeiro e sagrado:
Omnes sicut vestimentum veterescent.2™
De forma que o médico bom piloto, o ministro da Natureza, deve
considerar a qualidade de cada corpo misturado, que pode ser e servir
às partes, ou de alimentos, ou de medicamentos, ou de veneno; como
também o temperamento das partes do corpo do homem para conhecer
de quantos graus eles estão distantes da regra e da lei da Justiça ou da
Organização da mistura original dos Elementos; como também esco­
lher alimentos ou medicamentos para reduzir o excesso da dominação
dos Elementos ou aumentar a diminuição do grau da mistura original;
o que deve desejar um excelente condutor ou erudito médico para dosar
a quantidade suficiente do alimento ou do medicamento, a fim de res­
tabelecer as desordens das doenças por meio dos remédios contrários,
para impedir os venenos, e não se assemelha aos maus pilotos que, por
ignorância e sem ter nenhuma experiência da costa, deixam perecer seu
barco por falta de julgamento, de ciência e de conduta.
A Ciência do Chumbo sagrado dos Sábios
ou do Antimônio, por Jean Charcier
(1651), p. 50-51.
*
* *

Filosofia e toda a Medicina concordam que nossa vida é composta


de dois princípios opostos, ou seja, o úmido, comumente nomeado úmi-
do Radical,* e o calor, chamado calor natural, de forma que eles devem
ser proporcionados entre si; isto é, que a potência de um não ultrapasse
desmedidamente a do outro, o excesso ou a falta de um dos dois sendo
o que causa as doenças, e que enfim ocasiona a morte. De onde se deduz

209. Todos se revestem da velhice como vestimenta.


Uma Caridade Prolífica: a Medicina Universal 569

que os jovens, tendo muito úmido e calor, têm também muita vida, c
que os idosos, por serem muito resfriados, c muito ressecados morrem
incontinênti.
Faz parte de nossa vida, assim como de uma lamparina que se apa­
ga logo que o fogo ou o óleo lhe faltem, mas que também se mantém,
na medida em que reparamos aquilo que se dissipa. E como a lamparma
nào pode queimar senão à medida que lhe fornecemos o que ela conMi­
me, da mesma maneira não podemos viver se não nos restabelecemos
pelos alimentos e pela atração que fazemos do Ar (...].
Ora, uma vez que os Médicos estão de acordo conosco, que o calor
natural e o úmido radical são os princípios da vida, é preciso então que
confessem que, para prolongar nossos dias, é absolutamente necessário
restabelecer nosso princípio de vida. E eles não ignoram que ixav;
princípio de vida não pode ser conservado nem restabelecido por coisas
grosseiras e dessemelhantes ao nosso temperamento, mas sim por puras
substâncias que lhe são absolutamente conformes, c por alimentos de
semelhante natureza, rejeitando para sua alimentação, e para sua con­
servação, tudo o que lhe é estrangeiro.
É por isso que aquele que certamente quer conservar a vida, uma
longa sequência de anos com uma vigorosa saúde, não pode encontrar
meio mais garantido do que conservar bem seus Princípios. Mas é pre­
ciso saber que os Princípios da vida só se podem conservar e restabe­
lecer pelas mesmas causas com que são produzidos; isto é. por puras
substâncias espirituais e formais que lhes são absolutamente conformes
e de semelhante natureza [...]. Essa pura substância vital é conhecida
pelos verdadeiros Filósofos como o único alimento Celeste, e a natural
carne do Princípio de vida, essa substância vital, ou humor de vida,
os Sábios sabem (pela indústria secreta de sua arte divina) conjugar e
unir fisicamente à pura substância material do corpo Astral do ouro. E
dessas duas puras substâncias formais e materiais incorruptíveis, eles
compõem filosoficamente o grande Ouro potável [...].
Portanto, que aquele que pretender adquirir a secreta ciência da
oculta composição do grande Ouro potável dos Sábios trabalhe para
descobrir o segredo escondido do engenhoso artifício dos Filósofos,
de que eles se servem para fazer a misteriosa conjunção das formas
e das matérias, sem a qual é praticamente impossível poder chegar à
perfeição desse grande Ouro potável. Mas por ela realizamos em sua
mais alta perfeição esse soberano remédio que é o chef-d oeuvre [obra-
prima] da arte, e da natureza. E por essa filosófica conjunção das subs­
tâncias FORMAIS com as MATERIAIS que se faz o grande e sagrado
570 Filosofar pelo Fogo

casamento do Céu e da Terra. Pois por essa conjunção do Sol Celeste


com o Sol Terrestre o Céu se une à terra, e a Terra se une ao Céu, somen­
te pela virtude divina, sem nenhum TRABALHO MANUAL. E por essa
união do espírito de vida, ou fogo Celeste, com o vivo radical do Ouro
se realiza em sua mais alta perfeição o grande Ouro potável dos Sábios.
O grande Ouro potável dos antigos
Filósofos, por François Du Soucy, 1653,
p. 45-47, 51-55, 201-203.
*
* *
1E/ uma infelicidade que só se possa deplorar que a verdade seja obri­
gada a ceder à mentira, os sábios aos ignorantes e a modéstia à presun­
ção; se isso durar muito, os sublimes pensamentos de nossos ancestrais
gloriosos serão doravante considerados como fábulas, e os espíritos ti­
ranizados por essas opiniões, intimidados por essas potências, e preocu­
pados com seus falsos sentimentos, encontrar-se-ão sem meio de buscar
a verdade, e em uma injusta obrigação de se entreter com erros e de se
alimentar com falsidades [...].
É um crime sufocar as luzes que o Céu nos oferece, e cometê-lo
por temor das perseguições de nossos audaciosos censores; é uma co­
vardia indigna de perdão. O que se pode temer ao publicar as lições que
aprendemos na escola do Céu? O que pode apreender aquele que fala
em favor da verdade? [...].
É o que eu desejo fazer, empreendendo de forma muito clara a
defesa do Pó de Simpatia, e fazendo-o parecer muito inocente e natural
contra seus sentimentos, que o declara mágico e supersticioso.
Na realidade, ele é um suave efeito da magia divina, quero dizer
dessa sapiência, que revelou a Salomão, e manifesta todos os dias aos
verdadeiros mágicos os dons, as faculdades e a virtude de cada coisa,
a potência das causas e o poder de toda a natureza: essa maravilha lhes
foi ensinada pelo próprio Deus, e dela nos fizemos participantes, não
para criticá-la e condenar, desconhecendo um dom tão precioso,
mas para louvar o herdeiro consolado pelo auxílio da virtude [...].
Ainda que o Pó simpático tivesse sido ensinado pelo Diabo, nem
tendo pacto, nem explícito, nem tácito em seu uso, ele não seria nem vão
nem supersticioso, mas inocente e natural: para conhecê-lo claramente,
não é preciso conhecer senão sua verdadeira composição, e como usá-lo.
Pega-se o vitriol* romano, ou seja, universal e católico, e até mes­
mo o comum, que levando o nome, e uma das características desse uni-
Uma Caridade Prolífica: a Medicina Universal 571

versai, está mais próximo de sua natureza, e recebeu dc suas virtudes


mais do que os outros corpos dessa baixa região. Ele é exposto ao sol
durante a canícula, e é observado amorosamente, e regado com essa
fonte de luz; ele se altera suavemente, resseca-se e se reduz em pó,
calcina-se e se embranquece; e eis todo o artifício e o mistério de nosso
Pó maravilhoso, o qual deve ser usado da seguinte maneira.
Molhe um pano no sangue ou pus do ferido: coloque um pouco
desse pó sobre esse sangue e o guarde em um lugar temperado, e isso
deve ser reiterado nos cinco ou seis dias seguintes, algumas vezes mais,
algumas vezes menos, e então as partes divididas se reúnem, a ferida se
fecha e o ferido se encontra bem, ainda que esteja distante mil léguas do
pano onde está aplicado o Pó.
E se prestarmos bem atenção, não podemos observar em tudo
isso nenhuma espécie de superstição; não vemos nenhuma circuns­
tância viciosa, nada de vãs cerimónias, nada de palavras inúteis, nada de
convenção, nada de sinais da cruz fora de propósito, nada de posturas
ridículas, e outros trejeitos semelhantes, que são ordinariamente usados
pelos mágicos, profanos e reprovados em seus encantamentos.
Autor anónimo,
O Pó dc Simpatia justificado
(1658), p. 6-25.
*
* *

ra, para que ninguém se espante ou não julgue


absurdo que eu escreva que meu Ouro potável dá te
uma natureza de ouro às ervas nascentes, acho
conveniente confirmá-lo por meio de verdadei­
ras histórias. Dizem, nas Crónicas da Hungria
e da Transilvânia, que a terra dessas regiões
tem, em toda parte nas montanhas, uma natu­
reza de ouro, da qual os mineradores extraíram
uma grande quantidade durante mais de mil ,zO
anos, e esse ouro foi fundido e transformado Tf
em moedas; ali muitas vezes foram encon­
tradas vinhas, das quais não apenas as folhas,
mas também as uvas, eram como se tivessem
'"'SS
sido douradas. E isso não é de forma alguma um
conto da Carochinha, mas uma coisa muito verda­ Ervas utilizadas pela
deira, relatada por várias pessoas que permanecem medicina alquimica.
r
572 Filosofar pelo Fogo

nesse país. Há mais de seis anos morando na Francônia, aconteceu que


uma vinha,* em cujas raízes eu tinha colocado ouro reduzido em seu
primeiro ser, deu sementes douradas [...]. Ultimamente, um fidalgo da
Hungria me garantiu que, perto de Cremnis, cidade das montanhas da
Hungria, um aldeão encontrou um pedaço de ouro corpóreo mais longo
do que um amieiro, que tinha nascido de uma pedra e estava ao redor
dela. E esse fidalgo me deu um pedaço por curiosidade. Mesmo que
essas histórias não fossem verdadeiras, como elas o são, no entanto, o
que eu atribuí ao meu Ouro potável é a pura verdade.
Quando toco essas folhas e essas uvas douradas, a única razão que
posso dar é que nessas regiões a terra está impregnada de vapores de
ouro ou do primeiro ser do ouro, que ainda não endureceu e coagulou,
e que essa chuva de ouro, misturando-se com a chuva, insinua-se e
penetra nas raízes da vinha, e então sobe nos galhos e nas uvas, onde se
torna visível.
O mesmo acontece com meu Ouro potável, que é semelhante a
algum ouro espiritual, se é dissolvido pela água comum de chuva e a ela
misturado, como a areia onde se semeiam os vegetais se é umidificado
com esse licor, ele é atraído pelos vegetais, que extraem seu alimento da
areia, e, ao ser atraído, ele os torna participantes da natureza do ouro; o
que se vê por experiência.
Johann Rudolf Glauber
Tratado da Medicina universal
ou o verdadeiro Ouro potável
(trad. fr. 1659), p. 25-27.
*
* *
Q uanto à geração dos insetos, que são produzidos na terra, é preciso
lembrar que, no orvalho e na gordura na salinidade do mar, existe um Sal
admirável ou nitro* suave, de que não apenas as abelhas e os insetos,
que são os produtores do ar, são engendrados e alimentados, e com o
qual elas fazem e compõem seu mel e sua cera; mas ainda que as serpentes
deles são feitas e alimentadas; pois a umidade da Lua, que extrai esse Sal
das pedras, e o Sol, quando o calcina, o extrai do centro dos rochedos e, ao
passar por uma nova resolução em corrupção, faz a vida de uma infinidade
de répteis pela operação do Sol, como já foi dito.
Enquanto esse Sal passa em sua resolução, ele embebe os poros
das pedras, e, sendo trazido para fora pela sublimação, por meio do Sol,
ele se produz em sua superfície em uma admirável suavidade: o que
facilmente pode ser visto nas antigas construções, nos velhos casebres
Uma Cari pape Prolífica: a Medicina Universal 573

e porões, ou mesmo nos estercos, na urina dos animais, que


passam nesse Sal suave, por diversas filtrações e depura­
ções da terra, pela qual ele é separado dos outros sais.
Eis esse Sal, com o qual as águias renovam sua
plumagem; os cervos, seus chifres; os répteis, seus des­
pojos; e de onde cada coisa extrai a virtude que ela tem
de renovar o homem.
Quem conhece então as montanhas c os roche­
dos, onde se encontra esse admirável Sal. com o qual
os bodes, as águias, os cervos e os dragões se man­
têm durante tão longos anos, pode compor um remédio
admirável para prolongar a vida, cuja composição eu
apresento aqui ao público. WUl

Que consiste primeiramente na preparação do Sal


volátil das víboras, do sangue de bode morto, do Sal vo­
látil extraído da cabeça e dos cornos do cervo, encontra-
dos nessas regiões, que é misturado com esse nitro suave. (. *
encontrado nesses rochedos, e com o Sal volátil da bistorta.
j
O'.
tormentilha, contraervas, pérolas, corais, e com um terço de alcaçuz em
pó, xarope de Alchermes Q. S.
Também se faz um vinho de víboras admirável, privando-as da
cabeça, de sua cauda e de sua pele, depois de tê-las bem chicoteado;
então elas são colocadas nesse bom Espírito de vinho, em que foi co­
locada a quarta parte do bom espírito do Sal, com o qual se faz uma
infusão até que elas se dissolvam e passem toda a substância do vinho,
do qual é preciso pôr uma colher em um copo de um bom vinho para
várias vezes.
E para fazer o mel de víboras, elas são picadas e colocadas em
infusão no mel; ou são simplesmente colocadas no pó, ou no Sal volátil.
É um remédio admirável para os venenos, a sarna, a lepra, a varíola e
uma infinidade de outras doenças.
Quanto ao coração e ao fígado das víboras, cies sào preparados
com a cinza dos sapos e do escorpião com certo pó constelado com
o Mercúrio, do qual não é permitido falar mais; é suficiente para os
eruditos.
Nicolas de Locques.
O$ RuJinwntcs <1j Ftlc.cehJ «.jíumI
(I665\j\ 178-181.
*
* *
r i

574 Filosofar pelo Fogo

calor natural c um espírito universal encerrado no úmido radical,


isto é, na pedra branca ou vermelha, pois na alma, ou seja, no Espírito
universal que dissolveu a metade do sujeito, estão contidas todas as
virtudes espirituais; c no corpo, isto é, na outra metade da pedra branca
ou vermelha, estão contidas as virtudes corpóreas. Assim, aquele que
conhece o céu e a terra do homem, ou Sujeito* filosófico, ou seja, a
alma e o corpo, possui um conhecimento universal. O úmido radical
reduz o espírito particular em seu ponto natural, quando ele não está
livre em suas funções pelo universal que ele contém em si mesmo, pois
o semelhante é curado pelo semelhante.
No geral, a medicina universal, que é o verdadeiro ouro potável ou
Espírito universal, ou medicina de todas as coisas, é um remédio cor­
reto para todas as doenças. Pois, como todas as doenças que nascem no
homem não têm tantos humores quanto excrementos e superfluidades
do sangue, elas devem ser curadas por nosso ouro potável, por causa
da simpatia natural que ele tem com nosso úmido radical; e então é o
Azoto* filosófico que cura todas as doenças, tendo a faculdade de curar
qualquer tipo de enfermidade.
O úmido radical* é o Céu* dos Filósofos colocando ali a natureza
em suas próprias forças; é o céu terrestre proveniente do céu celeste,
pois o que é segundo sua natureza é conservado por seu semelhante. É
a erva desconhecida que dá a vida; é o palácio celeste, é esse óleo do
sol medicinal.
Existe no corpo humano, também chamado Sujeito filosófico, uma
substância de natureza celeste que muitos ignoram; ela não necessita de
nenhuma medicina, pois é medicina de si mesma, que, sendo pressiona­
da pela corrupção do corpo, é libertada não pelo seu contrário, mas por
seu semelhante, e isso pela paz, ao expulsar seus contrários.
A essência de nosso ouro extraída por um veículo é o Céu dos
Filósofos, no qual, assim como no céu, todas as estrelas estão reunidas,
e ela faz no corpo humano o que o Sol faz no mundo.
Nessa essência não resta nada, apenas a tintura do ouro filosófico,
que deixa a terra no fundo do vaso,* ainda que mais branca do que a
neve.
De resto, esse Elixir da vida é de tal virtude que, por seu odor, as
almas moribundas são detidas; assim, para encontrá-lo, não se deve de
forma alguma se deter nos elementos externos nem universalíssimos,
mas nos internos e na natureza dos corpos, nos quais se encontra o espí­
rito interno que é todo o fundamento da vida e da Medicina.
Uma Caridade Prolífica: r\ Medicina Universal 575

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Prancha do Manuscrito Voynich, séc. AT-A77.
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576 Filosofar pelo Fogo

O corpo não se alimenta pelo corpo, mas pela vida comum que é
o fogo vital e Espírito universal, como de um alimento. E por isso que o
homem não é alimentado pelo beber nem pelo comer, mas sim por esse
fogo vital, que nele está oculto e que se une facilmente ao natural, por
causa da homogeneidade que ele tem com o fogo vital do fogo, uma vez
que não são senão uma mesma coisa.
O Cavaleiro desconhecido, A natureza a descoberto (1669),
in Eugène Canselict, Três Antigos Tratados da Alquimia,
Paris, J. J. Pauvert, 1975, p. 22-25.

*
* *
IE/ ssa medicina tem outras virtudes ainda mais inacreditáveis. Quan­
do está no Elixir branco, ela tem tanto de simpatia com as Damas, sobre
a qual você falava há pouco, que ela pode renovar e tornar seus corpos
tão robustos e vigorosos como eram em sua juventude. De forma que
elas não pareçam ter mais do que 19 anos e tenham um rosto cheio
como a lua aos seus 14.
Para isso, prepara-se antes um banho com várias ervas odoríficas, com
as quais elas devem se esfregar bem para retirar a sujeira. Em seguida, elas
entram em um segundo banho sem ervas, mas no qual foram dissolvidos
três grãos de Elixir branco com um quartilho de espírito de vinho. Elas per­
manecem um quarto de hora nesse banho, depois disso, sem se enxugar,
prepara-se uma grande fogueira para secar esse precioso licor. Então elas se
sentem interiormente tão fortes e seus corpos se tomaram tão brancos que
elas não poderiam se imaginar sem ter experimentado isso.
Nosso bom pai Hermes continua concordando com essa operação,
mas ele também deseja que, ao mesmo tempo, se tome durante sete dias
consecutivos, interiormente, esse Elixir, e acrescenta a isso que, se uma
Dama faz a mesma coisa todos os anos, ela viverá isenta de todas as
doenças às quais estão sujeitas as outras mulheres.
O Parnaso sitiado ou a guerra declarada entre
os Filósofos antigos e modernos,
Atribuído ao Senhor F. A. D. M.
(1697), p. 28-29.
*
* *
Uma Caridade Prolífica: a Medicin/k Universal 577

E u sei que um Príncipe da Alemanha se mantinha em um estado de

juventude, ainda que fosse idoso, pelo uso de um licor, ou elixir extraí­
do de um cervo inteiro. Também sabemos que o cervo pode viver vários
séculos e que, consequentemente, podemos extrair dele princípios de
vida de uma duração mais longa.
Para isso, cortamos inteiramente o corpo de um cervo; depois de
ter separado os excrementos, quebramos os ossos: tudo foi colocado em
digestão, depois destilado em banho-maria* em um alambique de pro­
porção a poder contê-lo; o licor sendo destilado, separamos o muco e os
espíritos salinos, por meio das digestões e das coobações* reiteradas; a
matéria restante, que passou pelo alambique por meio de vários tubos,
dá um óleo amarelo e outro negro, que no final é bem malcheiroso. A
cabeça morta,210 que permaneceu, foi calcinada: dela se extrai um sal
volátil e um fixo; dela separamos uma terra, que foi purificada e serviu
para depurar os óleos e para eliminar seu mau cheiro; muitas elabora­
ções foram feitas com cada uma dessas substâncias, até que elas fossem
reduzidas ao estado elementar, sem nenhuma mistura de matérias ex-
cremenciais; nesse momento, fazemos a junção de todos os princípios;
e disso resulta um elixir ou licor muito suave, muito penetrante, e dc
uma virtude singular para prolongar a vida.
Eis, em resumo, a descrição da Medicina universal do reino animal.
Revelações cabalísticas de uma Medicina universal
extraída do Vinho, pelo Senhor Gosset
(1735). p. 19-21.
*
* *

Natureza é mais virtuosa, sábia e hábil do que todas as medicinas


e médicos do mundo; seus princípios, fundados na virtude divina coo­
perante, são corretos e verdadeiros; seus caminhos são retos e simples,
para operar à sua conservação. Se ela não é impedida, e se seus efeitos
são soberanos e maravilhosos, se a deixamos ou facilitamos sua liber­
dade por seu princípio radical. Não é necessário ser Filósofo para racio­
cinar assim, todo homem de bom senso concluirá essa verdade, que lhe
servirá de chave para abrir todas as portas da Natureza, e conhecer até
em seu interior os arcanos* mais misteriosos.

210. Caput mortuum: cf. artigo Fezes, do Glossário.


578 Filosofar pelo Fogo

A grande arte é, portanto, ajudar a Natureza a reparar, por sua


competência secreta, o vício pelo qual ela peca, expulsando e banindo
sem esforço e sem violência, de seu domínio, os humores impuros e
terrestres que perturbam e pervertem seu ofício e seus trabalhos, e que
o espírito de malignidade e de corrupção ali introduziu; mas isso deve
ser feito sem expulsá-la do sujeito* em que ela estadia, e que ela
sempre tem a intenção e a incumbência de manter em bom estado, e
até mesmo de impulsionar à perfeição de sua Iliastre[...].* O único
meio de fazer agir a competência secreta da Natureza, para a con­
servação de sua própria obra, é reter e conservar em seu governo o
pouco de forças vitais que lhe restam, para concorrer com as novas de
sua esfera, e análogas, que demos lhe reintroduzir, à sua separação;
e para impedir as potências da malignidade terrestre de prejudicar e
de ofender o trabalho salutar, ou para deter sua desordem: cada um
sempre encontrará o meio próximo, sem que ele jamais falte [...].
Mas que o mundo seja uma vez enfim convencido de que nossa
Medicina hermética difere em todos os pontos e sob todos os aspec­
tos de todos esses remédios contra a natureza: ela é um princípio
vivo, animado, motor, animante, espiritualizando e vivificando; logo
que ela é introduzida no corpo, ali ela espalha toda a sua amigável
analogia, e, por sua elasticidade circular e sua energia motriz, ela se
porta em toda sua capacidade para ali distribuir seu Bálsamo salutar:
ela excita e acumula em si o movimento vital e as funções naturais; ela
nem tem necessidade de lhes auxiliar e concorre para agir e operar
sempre de maneira eficaz ao mesmo efeito de vida e de saúde; seu
ofício principal também é o de restabelecer no sujeito o que as po­
ções, as bebidas, os purgantes e as sangrias dissiparam de útil e de
necessário para a conservação do corpo, e de expulsar dele tudo o
que eles trouxeram de ofensivo, pecaminoso, alterante, impeditivo e
proibitivo; é o espírito mais puro da natureza, o sangue mais perfeito
dos quatro Elementos em homogeneidade incorruptível; um compos­
to espiritual e vivo, uma potência motora e interna das coisas natu­
rais; uma virtude celeste que opera maravilhosa e radicalmente a vida
e a saúde dos indivíduos; uma verdadeira Quintessência solar e lunar,
o Bálsamo radical de todo ser, a origem de toda Vida, e a Medicina
universal de todos os corpos.
A Verdade do Ifyo hermético
(1753), p. 27-29, 55-56.
Uma Gxridade Prolífica: a Medicina Universal 579

Arcano da Filosofia hermética: Athanasius Kircher, (Edipus /Egyptiacus, 1654


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Jean Duvet, Alegoria aos monstros (“Veneno e contra-veneno'), gravura séc. XV.
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582 Filosofar pelo Fogo

Hermes-Mercúrio: incrustação de marfim no gabinete siciliano,


séc. XVIII (Foto E B.).
1

Glossário
Principais dicionários especializados consultados: Martin Ruland,
Lexicon Alchemice (1612); William Salmon, Dictionnaire hermétique
(1695); Guglielmo Johnson, Lexicon Chymicum (in Jean-Jacques Man-
get, Bibliotheca Chemica Curiosa, 1702); Dom Antoine-Joseph Per-
néty, Dictionnaire mytho-hermétique (1758). Também foram utlizadas
as obras de Marcelin Berthelot: Les Origines de l’Alchimie (1885),
Collection des anciens alchimistes grecs (1888, 3 voL), Introduction à
1’étude de la Chimie des Anciens et du Moyen Âge (1889), La Chimie au
Moyen Âge (1893), bem como Psychologie et Alchimie, de Cari Gustav
Jung (trad. francesa de 1970).
As palavras objeto de um artigo do glossário estão assinaladas por
um asterisco no texto da obra.
Adustão: Do latim adustio, ação de queimar. Podemos nos surpreender
que nenhum dos autores de dicionários herméticos tenha levantado esse
termo, no entanto muito presente nos tratados e geralmente relacionado
à ação do Enxofre, que no estado impuro é chamado “escaldante”, em
oposição ao Enxofre puro e “vivo” (ou ainda vermelho), que transmite
sem consumação seu calor e sua luz regeneradores.
Águia: Por esse pássaro consagrado a Júpiter, cujo reino vem depois do
de Saturno (Obra ao Negro) no desenrolamento da obra filosófica, os
alquimistas designam em geral o estado de extrema volatilidade de sua
matéria depois de sua sublimação: “Por águias se entende a substância
volátil”, está dito em O Livro de Sénior. Mas, quando a Águia consegue
devorar o Leão, trata-se então do poder dissolvente do volátil sobre o
fixo: o que simboliza aos olhos dos Adeptos a fábula de Prometeu preso
ao seu rochedo, o fígado devorado por uma águia.

-583-
584 Filosofar pelo Fogo

Alcaeste: Muito se questionou sobre a identidade exata desse licor men­


cionado por Paracelso (Grande e pequeno Circulado), Johann Rudolf
Glauber (Sal admirável) e principalmente Jean-Baptiste van Helmont
em seu tratado Das febres (1648). Pois se trata bem de um dissolvente
universal poderoso, às vezes assimilado ao Alkali (Alkali est?)\ ele di­
fere, no entanto, do Mercúrio dos Filósofos “na medida em que este se
une inseparavelmente ao que ele dissolve, e o outro dele se separa sem
diminuição” (Dom Pernéty).
Almagra: Termo de etimologia incerta, geralmente dado como equiva­
lente do cobre, do Latão, e até mesmo da própria matéria da Pedra ou
Terra vermelha.
Aludel (ou Alutel): É o “vaso de sublimação” (Ruland), isto é, o “vaso
exigido para a Grande Obra” (Dom Pernéty), que deve obrigatoriamen­
te ser de vidro (ou substância análoga não porosa), e jamais de metal,
por meio do qual poderiam passar os “espíritos” que correspondem
aos diferentes estados e componentes da matéria em transformação, cf.
também artigo Vaso.
Andrógino: Figura mítica da unidade original já presente em Platão (O
Banquete) e determinante no processo de transmutação, já que as “Bo-
das químicas” (Rei/Rainha, Enxofre/Mercúrio, fixo/volátil) atestam a
conjunção perfeita realizada durante a putrefação. Indiferentemente no­
meado Hermafrodita ou Rebis (Coisa dupla), o Andrógino, onipresente
na iconografia hermética, é, portanto, necessário ao sucesso da Grande
Obra, cuja autossuficiência e fecundidade ele já expressa, mas ainda
não encarna sua realização última: Ouro, Pedra, Elixir.
Antídoto (Alexipharmakon): E o verdadeiro remédio (teríaca) prepa­
rado de maneira “filosófica”, a partir do veneno, cuja característica
venenosa terá sido transmutada pela Arte hermética em instrumento
de cura: esse é o simbolismo da serpente devorando sua própria cauda
(Ouroboros) e se regenerando ao absorver o veneno que deveria tê-la
matado. Mas é também a lógica colocada em ação pela homeopatia
(Samuel Hahnemann 1775-1843), nesse sentido herdeira da medicina
espagírica, paracelsista e alquímica.
Antimônio: Sem dúvida é apenas um dos múltiplos nomes do Mercúrio
filosófico, da Água permanente, da “Matéria dos Sábios”. Ele é assim
nomeado “porque limpa, purifica e lava o ouro filosófico, como o an­
timônio comum purifica o ouro vulgar” (Dom Pernéty). Promovido a
Glossário 585

antídoto universal e de grande Arcano pelo pseudo-Basile Valcntin (séc.


XV) em seu Carruagem Triunfal do Antimônio (publicado em 1604).
Arcano: Do latim arcanum, secreto, mistério. Esse termo é muitas vezes
associado ao próprio Magistério alquímico, cujo segredo não poderia
ser de maneira irrefletida revelado aos ímpios. Porém, mais exatamente,
esse termo também designa em medicina hermética (ou espagírica), tal
qual praticada por Paracelso (1493-1541) em particular, “a virtude de
cada coisa, que é mil vezes mais potente do que a própria coisa” (Ru-
land); virtude que, uma vez extraída de cada corpo e purificada, permite
a preparação de remédios apropriados (arcano específico).
Ariadne (ou Ariane): Personagem da mitologia grega (filha de Minos e
de Pasífae), conhecida por ter ajudado Teseu a sair do labirinto onde ele
matou o Minotauro, graças ao famoso novelo, do qual ela lhe confiou
o “fio” misericordioso. A presença de Ariadne nos textos alquímicos.
portanto, só se explica se admitirmos a analogia, tornada frequente no
século XVIII, entre a busca da Grande Obra e a aventura de Teseu (cf
artigo Labirinto). O “fio de Ariadne” pode igualmente simbolizar a
continuidade da transmissão iniciática de Mestre (Adepto) ao discípulo,
de que a maioria dos tratados testemunha.
Arqueu: Formado pelos Filósofos Alquímicos a partir da palavra grega
archè, início, princípio, esse termo designa o agente, ou o Espírito uni­
versal onipresente: “Aquilo que coloca toda a Natureza em movimento;
dispõe os germes e as sementes de todos os seres sublunares a produzir
e a multiplicar suas espécies” (Dom Pernéty). Às vezes assimilado ao
próprio calor da Terra, ele é então nomeado Vulcanus. Maestro invisível
da Criação, ele também é seu médico quando a Arte alquímica pretende
aperfeiçoar e curar a Natureza de sua imaturidade primeira.
Arsénico: “Em termos de Química hermética, ora é o mercúrio dos Sá­
bios, ora é a matéria da qual é extraído, e ora é a matéria em putrefação”
(Dom Pernéty). Nesse último caso, o estado corrosivo e malcheiroso
da matéria decomposta justifica que se fale a seu respeito de veneno
violento, à imagem do arsénico ordinário; ao passo que uma etimologia
ambígua (arsenikon, macho) pode igualmente sugerir de que “virilida­
de” esse temível veneno é dotado.
Asem: Essa palavra designava na origem, entre os egípcios e os gregos
antigos, uma liga natural ou artificial de ouro e de prata (Électrum)
imitando mais particularmente um ou outro metal segundo a dosagem
efetuada. Mareei in Berthelot por sua vez viu na existência de tal liga a
586 Filosofar pelo Fogo

origem de muitas confusões ulteriores, na medida em que estabelecia “a


transição do ouro e da prata entre eles e com os outros metais e parecia
fornecer a prova da transmutação recíproca de todas essas substâncias,
metais simples e ligas”.
Assinaturas: A teoria das Assinaturas, assim como formulada por
Paracelso, Oswald Crollius (Tratado das Assinaturas, 1610) e Jacob
Boehme (Da Assinatura das coisas, 1621), pertence muito mais à magia
natural do que à alquimia propriamente dita. A decifração dessas Assi­
naturas - ou seja, dos sinais distintos que permitem reconhecer a marca
do Criador nas coisas naturais e relacionar suas mútuas analogias - só é
possível subtendida pela visão das “Correspondências” entre Natureza
e Espíritos, visível e invisível, supondo ela mesma a existência da fa­
mosa “cadeia de ouro” entre o céu e a Terra (Aurea Catena). Contudo,
essa é realmente a “visão do mundo” no seio da qual opera a alquimia.
Astro (ou Astruiri)'. Termo sobretudo usado desde Paracelso (Gestirn,
em alemão), e designando o principio ígneo capaz de fazer crescer e
multiplicar as sementes das coisas. Pouco diferente nesse sentido da
virtude ou do Arqueu. O Astrum supõe, no entanto, para ser operativo,
que a semente de cada coisa tenha sido excitada pelo calor celeste; e,
portanto, que o microcosmo (pequeno mundo) tenha sido colocado em
estreita correspondência com o macrocosmo (grande mundo), princi­
palmente graças ao “Fogo secreto” da Arte.
Atanor: “Essa palavra atanor é tirada do árabe, e significa uma torre
na qual se coloca carvão para manter um fogo contínuo em um forno
que é acoplado; ela também vem da palavra grega athanatos, imortal”
(Salmon). No atanor estão, portanto, reunidas as características de um
forno capaz de reduzir sem violência a “matéria” depositada no ovo fi­
losófico, repousando em um leito de areia; e as de uma intemporalidade
favorável à sobrevivência do “corpo” assim regenerado. As mais céle­
bres descrições de tais fornos se devem ao Pseudo-Geber (O Resumo da
perfeição do Magistério, séc. XIV), a Arnaud de Villeneuve, Johannes
de Rupescissa, Nicolas Flamel (séc. XIV) e Johann Rudolf Glauber (Os
Novos Fornos Filosóficos, 1648).
Aurea Catena: A ideia de que uma “Corrente de ouro” possa ligar Céu
e Terra já estava presente em Homero (Ilíada) e Platão (Timeu), antes de
se tornar um dos postulados maiores do hermetismo greco-alexandrino
(Tábua de Esmeralda)', a alquimia, por sua vez, encontra nessa “Magia
natural” o fundamento de sua prática: “A essa corrente que a reúne a
GlossArio 587

máquina do mundo está completamente presa; o semelhante sempre


agrada o semelhante” (Michael Maier, Atalantefugitive, 1618). É, por­
tanto, toda a teoria das “Correspondências” entre Elementos, reinos e
espécies, que está incluída nessa ligação primeira do Céu e da Terra. É
sob esse título (A Corrente de Ouro de Homero) que apareceu em ale­
mão a obra de Anton Joseph Kirchweger (1723), mais tarde traduzido
em francês com o título A Natureza revelada (1772).
Azoto: Um dos múltiplos nomes do Mercúrio filosófico; a tônica dessa
vez sendo colocada no fato de que nessa famosa “matéria” se encontram
e se unem o inicio e o fim da obra filosófica, assim como nessa simples
palavra o Alef e o Tau dos hebreus, o Alfa e o Ômega dos gregos, o A e
o Z dos latinos (David de Planis Campy). Assim, o Azoto evidenciaria a
força unificadora própria ao Mercúrio, sua autossuficiência também, e
sua virtude “mundificante” (purificadora).
Baco: Filho de Júpiter e de Sêmele (filha de Cadmo), nascido das cin­
zas de sua mãe, como Esculápio. Se a lenda o associa a Dionísio grego,
mas também às divindades solares como Adónis, Apoio, Osíris, o elo
analógico que permite integrá-lo à simbologia da Grande Obra parece
mais fraco: “Também não é inútil aprender que, se precisarmos do cesto
de Cibele, de Ceres ou de Baco, é apenas por que ele encerra o corpo
misterioso que é o embrião de nossa Pedra” (Fulcanelli, As Moradas
filosofais, 1965).
Banho-maria (ou marinho): “Ele se faz em um caldeirão ou outro vaso,
o qual é de ordinário uma cucúrbita ou pote de vidro, de terra ou de co­
bre, onde se coloca alguma coisa para destilar ou para digerir. Chama-
se Banho Marinho, porque o vaso que ali se coloca banha como em
um mar. Alguns o chamam Banho-Maria, querendo dizer que ele foi
inventado por Maria, a Profetisa; mas provavelmente a palavra Maria
foi corrompida e tomada por Marinho" (William Salmon).
Basilisco: Espécie de lagarto ou de serpente, ao qual os Antigos e os
alquimistas atribuíam o poder de matar apenas com seu olhar aqueles
sobre quem ele o fixava: “da mesma forma, o pó de projeção, feito da
pedra ao branco, ou ao vermelho, e projetado sobre o mercúrio ou os
outros metais, mata-os, por assim dizer, fixando-os, e os muda em prata
ou em ouro” (Dom Pernéty). Mas, se esse pó fosse assim dotado do
poder de matar e depois de regenerar, o olhar do basilisco supostamente
seria portador de uma “infecção” pestilenta, assimilada por Paracelso à
da imaginação feminina: “A lua é o basilisco do céu”.
588 Filosofar pelo Fogo

Cabala (ou Kabbala): Noção de origem hebraica (kabbalah, tradição)


cujo elo com a Arte hermética permanece relativamente vago, mesmo
que o sincretismo esotérico-religioso conhecido no século XVI sob o
nome de “cabala cristã” (Johannes Reuchlin, Guillaume Postei, Jean
Pic de la Mirandole) continue vendo na Alquimia a operadora humana
da inspiração divina: “A Arte cabalística é a ciência muito secreta trans­
mitida pela graça divina, ao mesmo tempo que a ciência de Moisés; foi
ela que nos revelou a doutrina de Deus relativa ao Messias, que esta­
belece amizade com os anjos que a cultivam, traz o conhecimento das
coisas naturais, e ilumina com uma luz divina o espírito entregue às im­
pressões tenebrosas” (Martin Ruland). Nesse sentido, a Arte alquímica
pode, com efeito, ser chamada “cabalística” (cf. Stefan Michelspacher,
Cabala ou Espelho da Arte e da Natureza, 1616).
Cadmia: Termo de uso bastante incerto, uma vez que designa tanto “um
produto natural como a pedra da qual se extrai o cobre” (cadmie native),
e um produto artificial: “espécie de fumaça dos metais, levantada nos
fornos de cobre pela ação da chama e do fole” (Mareei in Berthelot). Os
alquimistas nomearam assim Cadmia ao mesmo tempo a matéria de sua
Pedra e algumas partes heterogéneas da ordem das escorias.
Cadmo: Partiu sob ordem de seu pai, Agenor, em busca de sua irmã
Europa, raptada por Zeus. Cadmo foi muitas vezes considerado pelos
herméticos como um de seus heróis (cf. O Grande Olimpo, de Vicot,
ms. séc. XVI), e o homónimo de sua Cadmia (cf. essa palavra). Chegou
à fonte de Castalia, de onde deveria trazer a água lustral; ali ele encontra
o Dragão/serpente com a língua tripla, que ele combate e aniquila, pren­
dendo-o contra um carvalho, depois de o monstro ter devorado muitos
de seus companheiros. Semeados por Cadmo em um campo fértil, os
dentes do Dragão deram origem a uma tropa de “homens semeados”
com armas, que se entremataram, mas dos quais alguns se colocaram ao
serviço de Cadmo, que mais tarde deveria fundar Tebas e se casar com
Harmonia. Nessa fábula, Fulcanelli diz reconhecer “o combate singular
dos corpos químicos, cuja combinação oferece o dissolvente secreto e o
vaso do composto” (O Mistério das catedrais).
Caduceu: Duas serpentes entrelaçadas em um bastão, considerado
entre os gregos como a insígnia dos mensageiros (kêrukeiori), e mais
exatamente de Hermes-Mercúrio, que o recebeu de Apoio em troca de
uma lira de sua fabricação. Igualmente considerado como o emblema
de Esculápio, deus da medicina, o caduceu simboliza então o equilíbrio
das forças naturais e a saúde. Figuração corrente do Mercúrio duplo
Glossário 589

ou filosófico, o bastão de ouro (em geral coroado por um par de asas,


por uma coroa ou um lírio) encarna aos olhos dos alquimistas a união
pacificada das “naturezas" até então opostas (Enxofre/Mercúrio, fixo/
volátil).
Céu alquímico: Toda a Arte alquímica consistindo em casar Céu e Ter­
ra, o “Céu alquímico" (ou filosófico) designa uma realidade finalmente
pouco diferente da Quinta-Essência ou da Pedra dos Sábios, “pois o
Céu em si é incorruptível e imutável" (Philippc Ulstade). No entanto,
por meio dessa noção, a atenção é principalmente atraída para certo
“firmamento" visível, cuja qualidade não é ser o oposto da Terra, mas
o que “mantêm firme" os quatro Elementos colocados em rotação pela
Arte. O Céu também é “o espírito corpóreo etéreo, livre de toda corrup­
ção, e atravessando de um lado ao outro a máquina do mundo" (Heinrich
Khunrath, Anfiteatro da Sabedoria eterna, 1602).
Cinábrio: Do latim cinnabar. Às vezes confundido com o Mínio vul­
gar, por causa de sua cor vermelha, o cinábrio designa de fato o Mercú­
rio sublimado, purificado, fixado no vermelho: é então outro nome para
o Enxofre vivo, incombustível. Além da narrativa lendária de Plínio
(Hist. Nat. 33,7), que associa cinábrio e sangue de dragão, é de se notar
que a tradição taoista e alquímica chinesa vê no cinábrio o equivalente
ao Elixir da imortalidade ocidental.
Claudianos: Termo bastante raro e próprio aos alquimistas gregos, que
designa “uma liga de cobre e de chumbo, contendo provavelmente zin­
co" (Marcelin Berthelot).
Coobação: Significa reiterar a destilação de um mesmo licor, deitando-
o sobre a matéria restante no vaso. “Essa operação se faz para abrir os
corpos e volatizar os espíritos; e o coobar dos Filósofos se faz por si
mesmo, pela natureza, sem trabalho das mãos" (William Salmon).
Comaris: Termo de uso bastante incerto entre os alquimistas gregos,
geralmente dado como equivalente de Arsénico (cf. essa palavra).
Corrente de ouro: cf. Áurea Catena.
Cucúrbita: Outro nome do Forno filosófico: portanto, mesmas obser­
vações para Aludel e Vaso.
Dealbação (ou Albificação): E o branqueamento que consiste em “co­
zinhar a matéria até que ela tenha perdido seu negror, c que tenha se
tornado branca como a neve. E também chamada loção ou lavagem;
e é nesse sentido que os Filósofos dizem: “Lave o latão até que tenha
590 Filosofar pelo Fogo

lhe tirado toda a sua escuridão” (Dom Pernéty). A essa operação são
associados os símbolos da brancura (Albedo)’. Lua, Virgem, Cisne, leite,
terra branca folhada, rosa branca...
Demogorgon: Considerado pelos Antigos como o Gênio da Terra, esse
personagem aparece ocasionalmente nos tratados para designar o Fogo
ou o Espírito adormecido nas profundezas de uma “terra” destinada a
se tornar, graças à intervenção da Arte, a dos Sábios: “Essa raiz e mina
está encerrada no antigo seio do velho Demogorgon, progenitor uni­
versal, que os antigos Poetas engenhosamente pintaram vestido de uma
capa verde, envolto em uma ferrugem, coberta de obscuras trevas, e ali­
mentando qualquer espécie de animais” (Clovis .Hesteau de Nuisement,
Tratado do verdadeiro Sal secreto dos Filósofos, 1612).
Dragão: Representação simbólica e proteiforme do Mercúrio sob seu
aspecto devorador, o Dragão está, como a serpente, intimamente asso­
ciado às diversas fases da operação alquímica: em forma de Ouroboros,
mordendo sua própria cauda, é “a imagem do mundo” (Olimpiodoro,
séc. V) e simboliza a unidade da matéria, ao mesmo tempo em que a
circularidade do processo de transmutação. Provido de asas, ele se torna
a expressão da volatilidade mercurial e, privado de asas, da fixidez do
Enxofre: “O Dragão é o Enxofre, que é extraído dos corpos pelo Ma­
gistério” (Seala Philosophorum). Às vezes guardião de um tesouro aná­
logo ao das Hespérides (pomo de ouro), ele então vela cuidadosamente
sobre o segredo de sua preservação e destrói com seu sopro pestilento
quem quer que se aproxime imprudentemente.
Espagíria: Etimologicamente, a espagíria (de spao, dividir, dilacerar)
é a ciência “que ensina a dividir os corpos, a reduzi-los e a separar
seus princípios [...]. Seu objeto é, portanto, a alteração, a purificação e
até mesmo a perfeição dos corpos, isto é, sua geração e sua medicina
(Dom Pernéty). Assim compreendida, a espagíria não é nada diferente
da alquimia. Todavia, os alquimistas insistiram em distinguir sua Arte
daquela dos espagiristas (sopradores, lacrimistas) que, usando meios
violentos e contra a natureza, produziam uma imitação da verdadeira
Filosofia, e mereciam assim, bem como seus homólogos antigos, des­
prezados por Platão, o nome de sofistas.
Etiópia: Enquanto que a “Terra negra” do Egito é reconhecida como a
origem — simbólica mais que geográfica - da Arte alquímica, a escuri­
dão da terra da Etiópia é em geral associada ao Nigredo, como no Velo
de Ouro de Salomon Trismonin (1612), em que vemos “um homem
Glossário 591

bem negro, com os membros desconjuntados, reconfortante ao olhar


e bastante assustador de se ver” (o mesmo que dizer um Mouro) fazer
o papel de carrasco. A Etiópia foi aliás conhecida na Antiguidade por
suas minas de ouro.
Fénix: “Pássaro consagrado ao Sol. Os egípcios fingiam que esse pás­
saro era vermelho, que era único no mundo, e que a cada cem anos
ele vinha para a cidade do Sol (Tebas), onde fabricava para si mes­
mo um túmulo de ervas aromáticas, e ali colocava fogo, e renascia de
suas cinzas. A Fénix é apenas o Enxofre vermelho dos Filósofos” (Dom
Pernéty). Martin Ruland insiste na identidade entre esse pássaro e a
Quinta-Essência ígnea, ou a Pedra filosofal muito famosa. Acrescen­
temos que não existe símbolo mais eloquente do processo de morte e
regeneração próprio à operação alquímica, mas também a todo renasci­
mento espiritual.
Fezes: Derivado do baixo latim foeces, esse termo muito usado significa
sujeira, borra, impureza, lodo, lixo, excremento, isto é, as partes mais
grosseiras da matéria, destinadas a permanecer no fundo do vaso de
transmutação e a constituir o Caput mortuum: resíduo não transformá-
vel que os alquimistas distinguem cuidadosamente da cinza viva, na
qual, ao contrário, reside o “Diadema do Rei”.
Goma: “É o Mercúrio filosofal, e algumas vezes o trabalho da Pedra
hermética, quando ela chegou ao negro, e que ela engrossa como cola
derretida” (Salmon). Mas a expressão “Goma dos Sábios” também
pode designar a matéria ao Branco ou ao vermelho.
Hades: Estadia dos mortos na mitologia grega, e às vezes dado nos
textos alquímicos como equivalente do estado tenebroso de putrefação
(Nigredo) em que a decomposição do corpo caminha junto com a an­
gústia da alma (melancolia).
Hermafrodita: Filho de Mercúrio e de Vénus que, tendo se banhado na
fonte para onde o tinha atraído a ninfa Salmacis a fim de se unir a ele,
obtém por sua vez dos deuses que aqueles que ali se banhassem “parti­
cipem de um e do outro sexo” (Dom Pernéty). A analogia é, portanto,
clara entre a propriedade dessa fonte e a da Água mercurial capaz de unir
as “naturezas”: “O mar é o elemento hermafrodita” (Zózimo). Todavia,
os textos não distinguem em nada o Andrógino (figura da unidade bem-
aventurada) do Hermafrodita, em que subsiste certa monstruosidade; am­
bos representando igualmente o Rebis hermético (Coisa dupla).
592 Filosofar pelo Fogo

los, losis: Do grego ios, vírus: “los significa mais particularmente a


ferrugem ou óxido dos metais, bem como o veneno da serpente [...],
a ponta da flecha, símbolo da quintessência, o extrato dotado de pro­
priedades específicas, a própria propriedade específica; enfim, o prin­
cípio das colorações metálicas, da coloração amarela em particular”
(Marcelin Berthelot). Observamos sem dificuldade que a noção de losis
pode assim recobrir a totalidade das operações e o “mistério perfeito”
do Magistério: oxidação, dissolução, ativação da virulência (virtude),
purificação, coloração. Enfim, o los é a expressão da ambiguidade pró­
pria ao Mercúrio filosófico, que ao mesmo tempo mata e vivifica.
Jasão: Nenhuma narrativa mítica inspirou mais os herméticos do que
a de Jasão (cujo nome significaria “arte de curar”), que partiu com
seus companheiros para a conquista do Velo de Ouro: “na língua dos
Adeptos, chama-se Velo de Ouro a matéria preparada para a obra, assim
como o resultado final” (Fulcanelli). Fonte de inspiração para inúme­
ros autores antigos (Jacques Gohory, História de Jasão, 1563; Salomon
Trismonin, O Velo de Ouro, 1612) ou modernos (Eugène Canseliet, Al­
quimia, 1964), essa aventura reúne de fato os principais ingredientes
simbólicos próprios para a operação alquímica: navegação perigosa
para a Colchide no navio Argo; sacrifício do carneiro Crisómalo, cujo
Velo, suspenso em um carvalho, era guardado por um Dragão/serpente,
que Jasão adormeceu graças a uma bebida preparada por Medeia, e
cujos dentes ele semeou depois, no “campo de Marte”, antes de se apro­
priar do precioso troféu (Pedra filosofal). Para outros, o Velo de Ouro
seria apenas o pergaminho sobre o qual teria sido escrito o segredo da
fabricação do Ouro (crisopeia).
Labirinto; O caráter incerto da busca alquímica, repleta de perigos e
dificuldades, e a obscuridade de sua linguagem por várias razões “her­
méticas” por si sós justificariam a assimilação da conduta do magisté­
rio a um percurso labiríntico, confundindo as referências e não dando
importância a quem quer que perdesse no caminho a visão da Unidade
da matéria e não solicitasse a assistência dos Mestres que o precederam
nessa via (Fio de Ariadne). Nesse sentido, o labirinto é a representação
mais fiel de uma circularidade comparável ao corpo da serpente Ouro-
boros, mas continuamente desviada de seu centro e esfacelada, como
deixa entender a descrição do “labirinto de Salomão”, citada por Mar­
celin Berthelot: “Por suas evoluções esféricas, circulares, ela se enrola
sutilmente em cordões compostos; assim como a serpente perniciosa,
Glossário 593

em seus movimentos sinuosos, sobe e desliza, de uma maneira ora ma­


nifesta, ora secreta” (Coleção dos antigos alquimistas gregos).
Latão: Atribuído a Nicolas Flamel, essa formulação é frequentemente
retomada nos tratados: “Embranquecei o Latão e rasgai vossos livros,
para que vossos corações não sejam corrompidos”. Designando, por­
tanto, principalmente o estado da matéria consecutivo à putrefação, esse
termo é associado às inúmeras lavagens que, livrando-a definitivamente
de sua lepra, prepara seu branqueamento (albificação). O trabalho sobre
a matéria, não sendo separado daquele que o alquimista efetua sobre si
mesmo, esse branqueamento pode a partir de então também simbolizar
a inocência reencontrada em seu coração.
Levigação: redução de um corpo duro e sólido em pó impalpável. Às
vezes também obtido pela maceração.
Licorne |Unicórnio|: Esse animal fabuloso, símbolo dc força, saúde,
pureza, encarna na iconografia alquímica o Espírito de Vida (Mercu-
rius), às vezes explicitamente reconhecido pela manifestação do Es­
pírito Santo. Todavia, o licorne é apenas uma das representações do
unicórnio., de que os outros animais também podem ser portadores (es­
caravelho, peixe, rinoceronte), ao passo que o Vitriol filosófico às ve­
zes é nomeado “unicórnio mineral”. O unicórnio parece, portanto, um
“símbolo unificador” (Cari Gustav Jung), aliando a força masculina do
corno e a receptividade feminina da taça.
Língua (dos pássaros ou de cavalo): Eugène Canseliet insiste, com razão,
na diferença entre cabale (do latim cabalhts, cavalo) e kabbale (do he­
breu kabalah, tradição). A “cabala fonética” praticada pelos alquimistas
(nesse sentido Argonautas) é igual mente nomeada “Língua dos Pássa­
ros” (ou dos deuses), ou ainda “Ciência Alegre”: “E ela que ensina o
mistério das coisas e revela as verdades mais ocultas” (Fulcanelli). Di­
ferentemente de uma simples pesquisa etimológica, essa língua fundada
em jogos de palavras, homofonias e anagramas procura fazer jorrar a
luz do Espírito depositada sobre a superfície espessa das palavras e das
coisas desde a Criação. Ela é, nesse sentido, no plano verbal, o equiva­
lente do trabalho de “decantação” operado pela alquimia na matéria.
Magnésia: Dada pelos alquimistas gregos como equivalente do molib-
dochalque e às vezes da cadmia (cf. essas duas palavras), o “corpo da
magnésia” parece ter constituído o Todo que suscita a exclamação de
Estefanus (séc. VII): “Ó metal da magnésia, por ti existe a obra mis­
teriosa”. Em contrapartida é difícil, e até mesmo impossível, encontrar
r

594 Filosofar pelo Fogo

nesse corpo uma correspondência química precisa: pirita? Pedra de


imã? Súlfur de antimônio? A magnésia (de natureza feminina) é ge­
ralmente dada nos textos posteriores como o imã dos Sábios, em que
domina o elemento masculino (do latim magnes, imã).
Matraz: Outro nome do vaso de vidro no qual é colocada a Matéria
filosófica.
Menstruo: Nome masculino muitas vezes dado ao Mercúrio dos Sábios
como princípio feminino solvente antes de ser regenerador. Nesse senti­
do, a Agua mercurial “age como o mênstruo que contém a semente das
coisas, e as leva para a terra se insinuando nos poros” (Dom Pernéty).
Misto (s): Termo platónico e aristotélico conservado pelos alquimistas
para designar todos os corpos compostos existentes no mundo subiu-
nar; os “mistos” sendo necessariamente contaminados de impureza e
de ameaças de morte em razão de seu próprio caráter composto. A vi­
são alquímica do inacabamento da Natureza, própria à teoria hermética,
muitas vezes a esse respeito vai ao encontro, nos tratados ocidentais, da
doutrina cristã da Queda.
Molibdochalque: “Aliança formada pelos quatro Elementos cuja pre­
paração precedia a transmutação” (Marcelin Berthelot). cf. artigo Mag­
nésia.
Mundificar: Do verbo latino mundifico, limpar, purificar. A mundifica-
ção consiste em livrar a matéria de suas sujeiras com efeito “imundas”,
separando as partes sutis e puras das partes pesadas e grosseiras, como
ensina a Tábua da Esmeralda’, e isso até que apareça “uma cor celeste,
branca, brilhante da matéria, e semelhante à da mais bela prata” (Dom
Pernéty). Uma analogia se impõe, portanto, entre essa operação de lim­
peza - mundus significa puro, limpo, brilhante - e a passagem manifes­
ta da matéria ao estado de “pequeno mundo”, doravante à imagem do
grande.
Nitro: Não confundir com o natro (Nitrum), isto é, o carbonato de só­
dio, e o nitro ou salitre, ao qual muitas vezes fazem referência os al­
quimistas (Serpente de Terra, Cérbero, Sal infernal) e que, extraído dos
rochedos e muralhas, produzirá, após destilação e cristalização de sua
água mãe, certo pó utilizado na pirotecnia (fogo grego), mas também
em medicina (purgação do sangue).
Obrizon: Qualificativo dado ao ouro puro ou calcinado e a partir de
então revestido de uma cor marrom.
GlossArio 595

Orpimenta (ouro-pigmento): Do latim Auri pigmentum, cor ou pig­


mento de ouro. Ao que parece, esse termo designava primeiramente a
tintura de ouro, antes que os alquimistas façam dele o equivalente do
Enxofre dos Filósofos oculto em seu Mercúrio; significa dizer a semen­
te masculina e ativa, e às vezes até mesmo o Enxofre filosófico perfeito,
qualificado pelo Cosmopolita como “o mais nobre princípio”.
Peixe: Às vezes é sob o aspecto de um peixe redondo e gelatinoso que
é descrita a matéria mercurial, suporte e agente de todas as transforma­
ções. Lambsprinck (Tratado da Pedra filosofal, 1599) por sua vez faz
referência a dois peixes, que na realidade sào apenas um, dos quais,
além do mais, é extraído o Mar dos sábios, no qual eles nadam! Enfim,
as bolhas que surgem na superfície da matéria, durante o cozimento,
muitas vezes são comparadas aos olhos de peixe, ou a esses pequenos
peixes (Echeneis, Rêmora), que supostamente atraem os navios como
imãs.
Pelicano: Nome dado em razão de sua forma a determinada retorta
(vaso) de destilação, cujo bico emboca novamente em seu ventre. Mas
é também e, sobretudo, o símbolo da virtude sacrificial da “matéria”
alquímica capaz, à imagem desse pássaro frequentemente associado
ao Cristo, de alimentar seus filhos com seu próprio sangue. A presen­
ça desse animal na iconografia alquímica reforça, portanto, o paralelo
existente no Ocidente entre a busca da Pedra filosofal e a Paixão de
Cristo (Lapis-Christus).
Recrudescimento: Do latim bárbaro reincrudare, voltar a ser cru. Na
prática, o recrudescimento alquímico é sinónimo de redução, uma vez
que se trata de cozinhar e amolecer os corpos até fazê-los retornar à
sua matéria original. Recrudescer consiste, portanto, em “fazer voltar o
úmido e despertar o oculto” (Salmon).
Regime: Termo frequentemente usado nos tratados, pois designa a
conduta moderada e a regulação temperada do trabalho filosófico; isto
é, a arte de governar o fogo natural, e ainda mais secreto, que não é
fundamentalmente diferente do ardor inerente à Água mercurial quan­
do ela foi conjugada ao Enxofre vivo que dela foi extraído. Por isso a
noção de “regime” de fato encerra o conjunto das operações muitas
vezes descritas apenas pela palavra “cozimento”, e conduzidas no res­
peito dos ritmos “sazonais” próprios ao trabalho filosófico: “O primeiro
é o inverno frio e úmido; o segundo é a primavera quente e úmida e flo­
rescente; o terceiro é o verão, quente, seco e vermelho. O quarto, o das
596 Filosofar pelo Fogo

colheitas fria e seca, que é o tempo de coletar os frutos” (Pretiosissimum


Donum Dei, séc. XV).
Régulo: Termo genérico que exprime “a massa que permanece no fun­
do do crisol [cadinho], quando ali foi fundido algum pedaço mineral ou
metálico extraído de uma mina” (Dom Peméty). Salmon esclarece: “Ele
é assim chamado Régulo ou Reizinho, como o primogénito nascido do
sangue real metálico, que é verdadeiramente filho, mas não homem per­
feito”. De todos os régulos, o do Antimônio é o mais conhecido.
Reverberação: Ação do fogo (dito fogo de revérbero) circulando e retor­
nando de cima para baixo sobre a matéria, como o faz a chama em um
forno de pão. A reverberação é dita fechada quando não existe nenhum
orifício por onde possa sair a chama; e aberta quando uma saída é feita
na metade do forno.
Rosa, roseira: Os alquimistas permanecem bastante discretos sobre as
razões que os levaram a ver na rosa um dos símbolos privilegiados de sua
obra ao Branco e ao Vermelho. Portanto, contentar-nos-emos em observar
o lugar eminente ocupado no Jardim alquímico pela roseira, portadora de
rosas brancas e vermelhas, simbolizando as duas últimas etapas da pre­
paração da Pedra. Vários tratados têm o título Rosarium Philosophorum:
Roseraie, Rosário ou roseira dos Filósofos', esse último termo acentuando
a impregnação cristã já sensível no próprio símbolo, usualmente associa­
do ao sacrifício do Cristo, portador da coroa de espinhos, tanto quanto à
natureza virginal de Maria.
Sal Harmoníaco: “Matéria que atingiu a cor branca; assim chamada por­
que a harmonia começa a se estabelecer entre os princípios da obra, que
durante a putrefação era um caos repleto de confusão” (Dom Peméty).
Aliás, seria pelo Sal Harmoníaco (do nome da esposa de Cadmo, Harmo­
nia) que a Arte alquímica às vezes deveria ser chamada Arte de música.
Satúrnia: Geralmente dita “vegetal”, ou “vegetável”, é a matéria da Pe­
dra, marcada pelo selo de Saturno, pelo fato de conter no estado de latên-
cia os germes destinados a crescer e multiplicar sob a ação da Arte.
Selo de Hermes: Operação que consiste em fechar o gargalo do vaso
de vidro, onde a matéria será cozinhada, seja unindo e soldando as duas
beiradas previamente aquecidas, seja obturando o orifício com uma rolha
de vidro cuidadosamente protegida - é isso que se chama “betumar” o
vaso seja, enfim, adaptando sobre o gargalo do vaso outro vaso menor
e de cabeça para baixo. Qualquer que seja a técnica utilizada, todos os
textos insistem na importância capital de semelhante operação, impedindo
Glossário 597

que a matéria vaporizada e sublimada escape e arruine assim a obra. Sob


outro ponto de vista, mais secreto, é a misteriosa “matéria" que tem ela
mesma seu próprio “selo", privando os olhares indiscretos de penetrar
suas operações.
Sujeito dos Sábios: Essa expressão em si banal só merece a atenção,
na medida em que o “sujeito" assim designado, ou seja, a “matéria" da
Pedra, é ao mesmo tempo o autor de suas próprias transformações e de
sua autocura, e o “objeto" sobre e com o qual trabalha o Artista-operador,
demasiado envolvido, contudo, nessas operações, para que se possa falar
de objetividade, no sentido científico e moderno do termo.
Tetrassemo: Relacionado com as quatro patas da serpente-dragão Ouro-
boros nos textos alquímicos gregos, esse termo também pode designar os
quatro outros metais imperfeitos (cobre, chumbo, estanho, ferro), cons­
tituindo os ingredientes impuros que deverão ser transmutados. Mas o
tetrassemo também pode representar os quatro Elementos, cuja rotação
dará novamente à matéria uma unidade comparável à do corpo enrolado
do animal sagrado.
Trismegisto (Hermes): Do grego Trísniegistos, três vezes grande: “Ele
é chamado Trismegisto sendo considerado de acordo com a tríade o que é
feito e o que faz" (Zózimo). No entanto, várias foram as explicações
propostas para essa tríade própria ao Hermes greco-alexandrino, e não
ao seu homólogo latino (Mercúrio) ou mesmo egípcio (Thoth), ao qual
o Trismegisto é, no entanto, assimilado. Para se ater aos escritos alquí­
micos, reteremos que Hermes foi assim nomeado “porque foi grande
Filósofo, grande Sacerdote e grande Rei” (Dom Pernéty), detendo nis­
so as três partes da Sabedoria às quais alude a Tábua de Esmeralda, e
por essa razão reinando sobre o triplo reino (mineral, vegetal, animal).
Quanto à alquimia, ela se dá como tarefa imitar a natureza “três vezes fe­
liz" celebrada pelo pseudo-Demócrito, ao aprender a conhecer e transmu-
tar os três Princípios (Mercúrio, Sal e Enxofre), constitutivos de todas as
coisas. Aliás, a Tríade hermética também foi assimilada à Trindade cristã.
Úmido radical: Dando esse termo como equivalente do Mercúrio dos Fi­
lósofos, os alquimistas insistem em geral sobre seu caráter viscoso ou ig-
neo: a de uma água “que não molha as mãos", sendo aparentada à gordura
da Terra e ao Fogo. Que semelhante umidade (e humor) seja qualificada
como “radical" (radix, raiz), indica que ela é considerada como a origem,
a base, a semente de todas as coisas, dissimulada pelas gorduras, cuja
Arte alquímica se dedicar a extrairá para despertar suas virtualidades.
598 Filosofar pelo Fogo

Desse caos, esclarece Martin Ruland, “todas as coisas naturais recebem


desenvolvimento, alimento, aumento e animação”.
Vaso: Em virtude de um procedimento retórico frequentemente emprega­
do pelos alquimistas, pois responde, no plano verbal, a um procedimento
de escavação da “matéria” em vias de transformação, o Vaso também
pode designar o forno (no sentido corrente do termo) ou atanor alquí-
mico, o vaso de vidro (matraz, aludel) no qual é depositado o composto,
que a própria matéria (Água de Hermes), desde então nomeada Vaso de
natureza, forno secreto: “Esse vaso é o vaso de Hermes, que os filósofos
ocultaram, e que os ignorantes não poderiam compreender, pois é a me­
dida do fogo filosófico” {Diálogo de Maria e de Aros).
Vindima, vinha, vinho: Hermes às vezes foi chamado pelos alquimistas
“o vindimadeiro”, e a Arte de alquimia assimilada àquela de “esmagar a
uva”, tanto em razão do modo de extração do Elixir e de sua cor vermelha
rubi, quanto da estação em que colher o precioso néctar (o outono), cujo
declínio aparente coincide, no entanto, com a exaltação do fruto glorioso
da Obra, nisso comparável à uva.
Vitriol: Muitas vezes considerado como Chave do processo de transmu­
tação alquímica, o Vitriol é a esse respeito às vezes qualificado como
“romano” ou católico, isto é, universal, e assimilado ao Leão verde e à
Esmeralda dos Sábios. A tradição hermética deseja, sobretudo, que seu
nome possa ser assim reconstituído a partir das iniciais de cada um
dos nomes latinos citados: Visita Interiora Terrae Rectíficando Invenies
Occultum Lapidem (Visita o interior da Terra; retificando, tu encontrarás
a Pedra oculta). Se o Vitriol é uma das expressões da “matéria mercurial,
esse termo designa mais particularmente o trabalho de purificação, inte-
riorização e reconstrução próprias à busca da Pedra. Trata-se, portanto,
aqui, de uma “senha” aos efeitos removedores.
Glossário
599

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Michael Maier, Symbola aureee mensa? duodecim nationum, Frankiurt. 1517 frontispíciot.
1

Índice Onomástico

Africanus, Julius, 463


Agostinho, santo, 28. 150, 277, 358. 486
Alberto, o Grande, 30, 105, 107, 298, 392, 393, 558
Albricus, 303
Alexandre, 46, 110, 140, 188,201,231,358,384, 385,386,446,463
Alleau. René, 17, 50, 52, 102
Aniane, Maurice, 28
Argonautas. 44, 516, 593
Ariadne, 337. 373, 407, 437, 511,512, 585, 592
Arisleus, 110, 197, 218, 245, 249, 250, 251
Aristóteles (Pseudo-), 9, 18, 19, 20, 25, 42, 86, 89, 107, 140, 149, 151, 230, 231,
268, 272, 273, 274, 296, 297, 322, 386, 443, 463, 518
Aros, 90, 335. 336, 598
Artaud, Antonin, 50
Artépio, 21, 177, 350, 373, 467, 475, 567
Artus, Rei, 217, 232
Atwood, Mary Anne, 29
Augurei, Jean Aurelle, 91, 130, 158, 178, 342
Avicena, 6, 15, 86, 105, 138, 279, 308, 311, 312, 347, 356, 401, 418, 434, 516,
518,519
Avicena (Pseudo-), 6, 15, 86, 105, 138, 279, 308, 311, 312, 347, 356, 401, 418,
434,516,518,519

B
Baader, Franz von, 29, 30
Bachelard, Gaston, 10, 23, 462
Bacon, Roger, 108, 152, 153, 275, 322, 398, 516
-600-
Índice Onomástico 601

Balzac, Honoré de. 46


BastdorfT, Heirinch von, 337, 407, 437
Baudelaire, 13
Beauvais, 104, 105,466
Bernus, 15
Berthclot, Marcellin, 10, 12, 17, 18, 22, 24, 36, 53, 56, 65, 68, 69, 84. 89. 173. 203,
216, 220, 247, 248, 296, 309, 321, 348, 369, 370, 411, 424. 425. 441. 463,
464, 465, 488, 489, 490, 500, 537, 539, 558, 583, 585, 588, 589, 592. 594
Biès, Jean, 60
Blake, William, 9, 244
Boehme, Jacob, 11, 27, 29, 33, 147, 420, 495, 586
Bonardel, Françoise, 3, 17, 34, 39, 50, 57
Bonneíòy, Yves, 36
Bonus, Petrus, 15, 30, 92, 101, 110,213,403,541
Braun, Lucien, 11
Breton, André, 10, 41,483, 498
Brion, Mareei, 45
Burckhardt, Tilus, 14
Butor, Michel, 41

Cadmo, 587, 588, 596


Calid, 18, 204, 205, 326, 339, 350, 351, 374, 375, 391. 540
Cambriel, François, 292, 553
Canseliet, Eugène, 10, 13, 23, 52, 101, 132, 365, 576. 592. 593
Castrensis, Robertus, 14, 103, 213
Chartier, Jean, 568
Chevalier, Claude, 125, 202, 243, 284, 423, 496
Cícero, Marcus, 87, 482, 503
Coelho, Paulo, 55
Coenders van Helpen, Barent, 164, 166, 186, 303. 361
Comarius, 68, 89, 267, 416, 425
Corbin, Henry, 42
Crasselame, Marcantonio, 95, 165. 316, 412, 482
Crollius, Oswald, 27, 39, 197, 281.455, 556, 586
Crosset de la Haumerie, 331,499
Cyliani, 255

Demócrito (Pseudo-), 19, 21, 42, 86. 89, 172. 173, 175, 197, 266. 285, 296. 432,
489, 567, 597
Dorn, Gérard, 30, 42, 58, 63, 76, 86, 355, 510, 535. 549
Dumas, Alexandre (Pai), 46
602 Filosofar pelo Fogo

E
Eckarthauscn, Karl von, 29
Egito, egípcios, 5, 14, 16, 17, 20, 82, 83, 84, 85, 87, 88, 89, 92, 95, 102, 135, 137,
173, 204, 267, 369, 476, 538, 544, 590
Eliade, Mircea, 13, 35
Empédocles, 19
Eneias, 240
Espagnet, Jean d’, 77, 162, 211,219, 242, 434, 447, 479
Etiópia, etíopes, 267, 433, 590, 591
Evola, Julius, 35, 52

F
Fabre, Pierre-Jean, 12, 120, 192, 201, 291, 314, 422, 512,550
Faivre, Antoine, 44
Faustus, Johann Michaelis, 445, 513
Ferguson, John, 38
Festugière, André-Jean, 36, 41
Ficino, Marcílio, 547
Flamel, Nicolas, 24, 40, 219, 273, 325, 326, 423, 544, 545, 586, 593
Fulcanelli, 12,32,40, 89, 101,308, 332, 364, 365,438, 535, 553,587,588, 592, 593

G
Gagnon, Claude, 24
Ganzenmúller, Wilhem, 20
Garcia Font, Juan, 15
Geber (Pseudo-), 30, 86,92, 114, 120, 197, 205,206,213,217,310,313, 322, 324,
342, 394, 396, 430, 468, 474, 529, 567, 586
Glauber, Johann Rudolf, 279, 330, 572, 584, 586
Gohory, Jacques, 592
Gorceix, Bernard, 33, 58, 486
Gosset (Sieur), 242, 577
Graecus, Marcus, 464
Grasseus, Johannès, 253
Gratarolo, Guglielmo, 7, 49, 52, 535
Greverus, Jodocus, 115
Grosparmy, Nicolas, 31, 111, 333
Guénon, René, 23, 35

Hades, 27, 67, 68, 172, 425, 537, 591


Hahnemann, Samuel, 556, 584
Halleux, Robert, 37, 38, 42
Índice Onomástico 603

Harmonia, 48. 159. 588. 596


H. de Linthaut. 125
Heidegger. Martin. 9
Helmont. Jean-Baptiste van, 306. 307, 584
Heráclito, 9, 19, 179.454
Hércules. 241, 242. 243. 254. 344. 374
Hcrmes-Mercúrio, 17, 57. 96. 294. 551. 582. 588
Hermes Trismegisto. 5, 15. 16. 17. 65. 66. 76, 77, 82. 86. 92, 96. 97, 100, 101. 118.
163, 164, 197, 229, 248, 562
Hortulano. 69. 70, 78, 342
Houang-Po. 44
Huginus A Barma, 278, 294, 328, 477, 532
Husson. Bernard. 33
Huysmans, Karl Joris, 13

I
ísis, 16, 18, 82, 83, 84, 95,441

J
Jâbir Ibn Hayyân, 18
Jâmblico, 42
Jasào, 44, 240, 241,516, 528, 592
Jesus Cristo, 135, 136, 195, 202, 398
Johnson, Ben, 12, 583
Jung, Cari Gustav, 22, 23, 27, 29, 30, 35, 39, 55, 58. 245. 246. 440. 535, 583. 593
Júpiter, 97, 113, 140, 142, 145, 164, 242,263, 298. 302. 371,442, 447, 458. 513.
546, 558, 583, 587

K
Khunrath, Heinrich, 21, 550, 589
Kirchweger, Anton Joseph (Áurea Catena Honieri), 80, 140, 552. 587

L
Lacinius, Janus, 213
Lactâncio, 359
Lambsprinck, 47, 224, 225, 258, 446. 448. 450. 451.472, 551, 595
Lansac, Bruno de, 49, 95, 165, 316, 412, 482, 530
Lavoisier, Laurent de. 22, 23
Le Breton, Jean-Baptiste, 483, 498
Lenglet-Dufresnoy, Nicolas, 45, 46, 47, 88, 121
Le Pelletier, Jean, 307
Libavius, 184
604 Filosofar pelo Fogo

Libois, Éticnne. 98
Licbaut, Jean. 526. 565
Limojon dc Saint-Didier, 13, 146, 188, 201,384, 462
Lindsay, Jack, 16
Linthau, Henri dc, 131
Lin-Tsi. 44
Lullc (Pseudo-). Raymond, 92, 109, 116, 290. 325, 357, 360, 372, 429, 449, 467,
567

M
Madathanus, Henricus, 486
Maier. Michael, 8, 17, 43, 47, 53, 72, 82, 92, 100, 116, 117, 143, 170, 219, 260,
277, 307, 311, 335, 339, 365, 387, 388, 392, 408, 432, 433. 434, 447, 451,
452, 469, 471,476, 527. 533, 587. 599
Manget, Jcan-Jacques, 15, 18. 49, 52, 66. 67, 71, 74, 76, 77, 108, 109, 110, 133,
153, 155,162, 183, 195, 211, 212,220,221,228, 230,253,261,266,
268, 276, 282, 287, 288, 300, 302,306, 322, 334, 336, 343, 347, 349,
355, 357,359, 372, 397, 403, 405, 415, 417, 428, 431, 434, 435, 440,
446. 447,449, 456, 457, 459. 470, 479, 516, 518, 519, 529, 534, 541,
547, 550, 560, 583
Maria (a Judia, a Profetisa), 4, 30, 34, 89, 148, 203, 254, 307, 335, 336, 349, 443,
473, 488. 587, 596, 598
Marte, 113, 140, 142, 262, 263, 285, 298, 371,448, 492, 513, 558, 592
Marteau. Robert. 13
Medeia. 242, 592
Merlim, alegoria de, 226, 228
Michclspacher. Stefan, 588
Montanor, Guido de, 336, 560
Morienus (ou Morien), (cf. Calid) 14, 103, 204, 213, 326
Mui ler. Philippe, 389
Mylius, Johann Daniel. 14, 61, 76, 249, 271, 378. 389, 398, 399, 402, 425, 427,
439, 496.515. 527, 554, 564
Mynsicht, Adrianus, 566

N
Nasr. Seyyed Hossein, 25, 172
Nerval, Gérard de, 46
Netuno, 208, 2\8, 257, 258, 259, 262
Norton, Samuel, 443, 493, 494, 556, 584
Norton, Thomas, 18, 53, 212, 276, 470
Nuisement, Clovis Hesteau de, 77, 135, 187, 210, 357, 419, 493, 524, 590
Índice Onomástico 605

O
Olimpiodoro, 10, 18, 44, 89, 137, 147, 424, 590
Osíris, 16, 81,82. 116, 137, 415, 424. 587
Ostancs. 67, 89, 488, 489, 500. 539, 567
Ouroboros, serpente, 44, 135, 219. 584, 590, 592, 597

p
Pandora, 242, 243, 395, 445, 485, 513, 563
Panikkar, Raiinon, 59, 192
Pantheus, Giovanni Agostino, 159
Paracelso, Théophraste de Hohenheim, dito. 11, 19, 30, 39, 101, 118, 182. 209.
217, 280, 285, 306, 344, 493, 556, 561, 567, 584. 585, 586. 587
Paulo, Sào, 4, 88, 178, 196, 209, 219, 235, 275, 281,308, 341,369. 391,432,447,
501,543,561
Pelágio, Monge, 89, 489
Pcrnéty, Antoine-Joseph (Dom), 32, 83, 123, 309, 364, 536, 583, 584, 585, 587,
590, 591,594, 596, 597
Philalèthe, Eyrénée, 94, 162, 302, 327, 343, 381,415, 435, 529
Philothaume, 12, 96, 483
Pitágoras, 86, 89, 92, 110, 111, 197, 203, 248, 249, 285, 326, 426, 567
Planis Campy, David de, 19, 50, 118, 239, 316, 361,401, 556. 567, 587
Platão, 11, 19, 20, 25, 32, 38, 80, 86, 89, 92, 110, 135, 197, 266, 285, 300. 342,
567, 584, 586, 590
Plínio, 561,589
Plutarco, 16, 87
Poisson, Albert, 285
Pontanus, Jean, 474, 475
Potier, Michael, 185
Prometeu, 242, 462, 583

Quíron, Centauro, 241

Reisch, Gregor, 46
Rhazès (ou Razi), 15
Rhenanus. Johannes, 563
Richard 1’Anglais, 150, 176
Rilke, Rainer Maria, 34, 43, 148
606 Filosofar pf.lo Fogo

Riplcy. Gcorgc, 141, 142, 144, 238. 243, 252, 266, 302, 311, 312, 352, 368, 382,
405,431,433,468, 567
Rouillac, Philippe, 445
Ruland. Martin, 557, 562, 583, 584. 585. 588, 591, 598
Rupcscissa, Jean de, 25, 193, 194, 287, 502, 506, 507, 586

s
Salmon. William, 13, 49, 52, 53, 70, 73, 78, 87, 90, 92, 128, 133, 144, 165, 177,
188, 192. 195, 201,204, 205, 206, 212, 222, 241,251, 257, 266, 269, 273,
299, 310, 316, 319, 324, 325, 326, 335, 336, 339, 350, 351,353, 354, 358,
368, 373, 375, 384, 394, 396, 409, 412, 426, 430, 445, 462, 467, 482, 501,
520. 545, 583. 586, 587, 589. 591, 595, 596
Salomão, Rei, 86. 90, 93, 181, 187, 211,318, 341,413, 433, 567, 570, 592
Santideva, 28, 29
Saturno, deus e planeta, 6, 18,47,97, 113, 127, 140, 141, 145, 154, 213, 214, 218,
226, 227, 239, 259. 263, 278. 280, 294, 295, 298, 302, 328, 335, 336, 337,
365, 371,414, 416, 417, 418. 419, 420, 421,422, 423, 448, 457, 458, 459,
477. 483, 506, 513, 532, 546, 549, 558, 567, 583, 596
Schippergcs, Heinrich. 21
Schmieder, Karl Christoph, 37
Schopenhauer, Arthur, 51
Scot, Michael, 10, 150, 152
Scott. Waltcr, 13
Siebmacher, Johann Ambrosius, 16, 357
Silento, Petrus de, 445
Silcsius, Angelus, 28
Sinésio. 70, 89, 294. 347, 370, 389, 501
Sloterdijk, Peter, 56
Steiner, Rudolf, 556
Stéphanus de Alexandria, 175, 370, 441
Stolcius, Daniel. 61, 82, 99, 245, 534
Stuart de Chevalier, Sabine, 125, 202, 284, 423, 496
Swedenborg. Emmanuel, 33

Tauladanus, Robertus, 513


Teseu, 44, 241,585
Tesson, Jacques le, 208, 312
Thuillier, Pierre, 58
Tol, Jacques, 305, 344
Tomás de Aquino (pseudo-), 274, 275, 341
Trévisan, Bernard le, 90, 257, 301,430
Trismonin, Salomon, 44, 127, 157, 318, 342, 380,405,418,428,429, 528, 590, 592
Índice Onomástico
607

u
Ulstadc. Philipp, 505, 589

Valentin. Basile. 31, 34. 37. 53. 74. 132. 144. 145, 217. 219. 221, 222, 293. 301,
347, 353. 354, 363, 364, 408, 417, 418, 429, 446, 449, 453. 525. 530, 585
Valois, Nicolas, 122, 126, 542
Ventura, Laurent. 214
Vénus, deusa e planeta, 113, 141, 142, 154, 228, 240, 262, 263, 298. 302, 310,
312, 332, 354, 365, 371, 513, 558, 565, 591
Vigcnère, Blaise de, 277, 290
Villeneuve, Arnaud de, 92, 300, 334, 364, 377, 395, 459, 567, 586
Villiers de 1’Isle Adam, 13
Vulcano, 53, 92, 159, 207, 208, 240, 262, 263, 265, 353, 422, 454, 470

w
Waite, Arthur Edward, 37
Weil, Simone, 22, 28, 57
Welling, Georg Von, 21

Ygé, 52
Yourcenar, 55, 415

z
Zachaire, Denis, 91, 92, 195, 499
Zadith, Sénior, 15, 229, 230
Zetzner, Lazarus, 49, 52
Zohar, 277
Zózimo, 10, 12, 17, 22, 56, 58, 69, 84, 89, 245, 247, 309, 321, 348, 465, 489,
490, 537, 591,597
i
i

Em memória de Pierre Feuga, graças a


quem a reedição desta antologia viu o dia.
próprias luzes, e su.i eventual
serenidade, de outras fontes

de claridade.
“Os textos aqui aprescntaclos
mostrarão bem qual
importância os alquimistas
conferiam à apreciação
dos fogos em função do
estado da matéria em via de
transformação e, mais ainda,
à descoberta do famoso Fogo
Secreto dos Sábios, sobre o
qual tudo leva a pensar que
não era outra coisa além
da não menos misteriosa
Matéria, tão integralmente
livre de suas impurezas e tão
perfeitamente em harmonia
com o Fogo”, ressalta.
"Uma coletânea de textos
acompanhados de comentários
aguçados que permitem ao
leigo penetrar os arcanos da
sabedoria". (Natalhie Clerc,
Science etAvenir)

"■;í'
MADRAF ir
Alquiinia/Filosofia

Filosofar
pelo Fogo
O que é a alquimia, objeto de tantas especulações e fantasias? Uma
arte do fogo que, unindo céu e terra, corpo e espírito, por meio de uma
sucessão de dissoluções c de coagulações (solve et coagulei), realiza o desejo
secreto da natureza, guia infalível na via que conduz à realização da
Grande Obra. Caminhando durante séculos ao lado do cristianismo,
cujos símbolos ela muitas vezes integrou ao seu próprio imaginário, a
Arte de Hermes acabou se singularizando pela atenção dada ao mistério
da vida e por sua vontade de traçar uma via “média” entre religião e
filosofia.
Nada poderia então substituir uma confrontação direta com os textos,
já traduzidos ou ainda inéditos, para tirar da sombra onde foi relegada
pela ciência moderna uma tradição velha de dois milénios e que merece
ser redescoberta, tanto em razão da importância de seu corpus quanto
de suas riquezas simbólica e espiritual. Dos alquimistas gregos aos
pintores e poetas surrealistas, o persistente interesse dedicado à alquimia
tradicional depõe a favor dessa busca de imortalidade inscrita no mais
profundo do coração e do espírito humanos.
Sendo a característica de uma tradição transmitir fielmente tanto O
conteúdo quanto o espírito de um saber ancestral, esta antologia
reúne-o essencial dos textos canónicos, apresentados em uma ordem
cronológica - algumas dezenas de tratados segundo Eugène Canseliet
-, acompanhados de uma iconografia em que se mesclam imagens
^tradicionais e criações modernas ou contemporâneas, livremente
inspiradas pela alquimia.

ISBN 978-85-370-0757-0

MADRAS*
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