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OSBORNE, Haroldo. A crítica do juízo de Kant. In: ______.

Estética e teoria da arte. São Paulo: Cultriz, 1968. p.155-177.

A CRÍTICA DO JUÍZO DE KANT

A Crítica do Juízo (1790) de Kant, que veio à luz


no mesmo ano dos Essays de Alison, é um dos livros mais notá­
veis da história da Filosofia. Segundo Hegel, “Kant proferiu
nele a primeira palavra racional sobre Estética”. Por outro
lado, E. F. Carritt não foi o único a pensar que “há poucas
idéias originais na estética de Kant”. Ambos os juízos talvez
estejam certos. Ao elaborar o seu sistema de estética filosófica,
Kant se valeu muitíssimo das idéias e doutrinas críticas de ou­
tros, inclusive as que prevaleciam entre os estetas ingleses do
século XVIII. Deu expressão filosófica a algumas das princi­
pais noções do movimento romântico — os conceitos da ori­
ginalidade e do gênio, por exemplo, e a fenomenologia da expe­
riência estética. Foi graças à reformulação das idéias menos sis­
tematicamente discutidas pelos estetas inglêses que a sua obra
se situa na origem de muita coisa que interessa preclpuamente à
Estética de hoje. A contribuição pessoal de Kant consiste sobre­
tudo em expressar logicamente as atitudes que prevaleciam e
modelá-las num sistema coerente. Ao fazê-lo, revelou singular
acuidade no sublinhar as questões cuja importância persistiu até
o século XX.
O feito de Kant foi tanto mais surpreendente quanto êle
possuía escassa experiência direta de apreciação das artes e de­
monstrou pouco talento para isso. A sua vida transcorreu numa
cidadezinha atrasada da Prússia Oriental, perto da cidade de
Kõnigsberg. Ao que tudo indica, êle era impermeável a quase
todas as formas de beleza, emocionalmente árido e sensualmen-

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te obtuso. Não tinha gosto pela música e, tirante algumas obras julgamento estético torna-se, muitas vezes, mais tortuosa do que
literárias, as supremas consecuções artísticas do mundo foram precisaria ter sido mercê do seu constante desejo de imprimir-lhe
para êle um livro fechado. Em poesia, tirou os seus exemplos essa tendência teológica e metafísica.
dos versos medíocres de Frederico, o Grande, e dos Poemas
Morais (1755) de Withof. Estilisticamente, o próprio Kant Êsse plano metafísico exerceu demorada e, como agora se
não era tão bem dotado quanto o foram, por exemplo, Platão, nos afigura, perniciosa influência sobre o desenvolvimento sub-
Hobbes e Hume. O fato de ser ainda a Crítica do Juízo a mais seqüente do idealismo estético alemão. Utilizando-se da idéia
importante obra isolada da estética moderna, é um tributo ao geral de que a fruição da beleza proporciona um elo especulati­
vigor do pensamento que nela se contém: encerra maior bom vo entre o conhecimento científico e as nossas sugestões de uma
senso — assim como alguma insensatez — do que tudo o que se região supersensual de realidade suprema, e interpretando essa
tem escrito sobre o assunto desde Platão. O que mais assombra idéia de acordo com os anseios metafísicos exaltados, porém mal
é a apreensão da fenomenologia essencial da experiência esté­ definidos, do romantismo, os idealistas elevaram a beleza a um
tica demonstrada por uma pessoa cuja própria experiência esté­ plano sobrenatural. Em nosso comércio com as coisas belas, cui­
tica era limitada. No volume intitulado Immanuél Kant, 1724- davam êles, o incognoscível absoluto, que transcende o mundo
-1804, disse Kuno Franck: “Que êle tenha chegado às suas fenomênico das aparências e não pode ser apreendido pela ra­
idéias sem qualquer experiência estética pessoal, num ambiente zão teórica, torna-se concreto e é apreendido sensualmente. Na
falto de influências artísticas, desajudado de qualquer espécie história da arte o espírito cósmico é progressivamente encarnado.
de experimentação psicológica, exclusivamente pelo raciocínio Na arte, o infinito penetra o finito, o transcendental e o inex­
abstrato, é, com efeito, prova notável do seu gênio especulati­ primível se oferecem à apreensão dos sentidos. Tanto os filó­
vo”. Teria sido mais correto descobrir o gênio de Kant na apre­ sofos quanto os artistas, disse Schelling, penetram a essência do
ensão intuitiva da importância e do sentido lógico das idéias universo e rompem as barreiras que separam o real do ideal:
correntes em seu tempo do que apresentá-lo como criador de mas só o artista apresenta o absoluto concretamente, ^visivel­
idéias especulativas no terreno da Estética. Foi êle, não obstan­ mente, à percepção. A arte é análoga ao poder criaáof da na­
te, o espírito mais vigoroso a escrever sobre Estética nos tem­ tureza, é “o espírito da natureza que só nos fala através de
pos modernos. símbolos”. Mas o símbolo, aduziu Solger, “é a existência da
Kant apresenta o seu sistema de estética filosófica no con­ própria idéia. É realmente o que significa. É a idéia em sua rea­
texto do seu sistema metafísico geral, que elaborara na Crítica lidade imediata”. *‘A arte“, disse Frederick Schlegel, “é a apa­
da Razão Pura (1781) e na Crítica da Razão Prática (1786). rência visível do reino de Deus sobre a terra”. Essa astronáuti­
Trouxe a teoria da beleza, isto é, a teoria do julgamento estético, ca semipoética, semimetafísica, culminou nas grandiosas fanta­
para o âmbito da teoria geral do “julgamento teleológico”, com sias de Hegel, que descreveu o processo gradativo pelo qual o
o que acreditava haver transposto o “abismo imensurável” esca­ espírito cósmico, o absoluto, se encarna num ser sensual através
vado em suas obras anteriores entre o mundo sensível das apa­ da história da consecução artística do homem, até o dia em que a
rências e o mundo supersensível das realidades supremas a que arte, transcendendo a si mesma, satisfeita a necessidade espiri­
nós, como sêres morais, pertencemos; entre o conceito da natu­ tual que a originou — como o próprio Kant deu a ^ntender —
reza, que é o reino da lei e da ciência, o conceito da liberdade, dará lugar à religião, a qual, por sua vez, preenchida a sua fina­
que é o reino dos princípios ou “fins” racionais voluntariamente lidade, dará lugar à filosofia do idealismo.
admitidos. No julgamento teleológico, em que êle classifica o A tendência atual da Filosofia é evitar essas redundâncias
julgamento estético, cria ter encontrado o elo entre as esferas metafísicas e na exposição que se segue tentaremos apresentar a
da ciência natural e da moral. A exposição que faz acêrca do estética de Kant sem as características mais especulativas, que

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o idealismo guardou para si, mas que hoje têm reduzida im­ é muito diferente de ter consciência dessa representação com uma
portância. sensação acompanhante de prazer. Aqui a representação se refe­
re inteiramente ao tema e, o que é mais, ao sentimento de vida
Nas seções iniciais da Crítica do Juízo Estético, primeira do tema — sob o nome do sentimento de prazer ou desprazer —
parte da Crítica do Juízo, Kant se apodera da discriminação re­ e isto constitui a base de uma faculdade completamente separada
volucionária, feita por Shaftsbury, de uma atitude espedficamen- de discriminação e estimação, que nada contribui para o conhe­
te “estética” em face do mundo e deita-a num molde lógico. cimento.
Onde os sucessores ingleses de Shaftesbury se interessaram pela
descrição psicológica da “atitude estética” e das diferenças psico­ Kant tem aqui em mente a teoria de Alexander Gottlieb Baum-
lógicas entre ela e as atitudes de atenção que adotamos na vida garten (1714-62), criador do têrmo “estética”, segundo a qual
prática, Kant se ocupou das bases dos juízos, diferençando a base os juízos sobre a beleza pertenciam à província de uma “cognição
lógica dos juízos estéticos da base dos juízos que fazemos acêrca inferior”, mediada pelos sentidos, que completa a cognição “clara
das outras espécies de prazer que as coisas nos oferecem, e da e distinta” mediada pelo intelecto. Kant nega que a nossa apre­
base dos juízos tocantes à utilidade e dos juízos tocantes à bonda­ ensão da beleza seja cognição. Os juízos sobre a beleza não
de (não só a bondade moral, mas também a perfeição intrínse­ pertencem à classe dos juízos cognitivos e não diferem apenas no
ca). Extremou também a experiência estética, como modo de grau de clareza. Não se referem à nossa cognição de um objeto,
percepção direta, de todas as formas de pensamento conceptual. senão aos nossos sentimentos de satisfação ou insatisfação na
Mostrou, mais claramente do que nunca, que não se pode provar percepção do objeto. São, portanto, por definição, juízos subje­
que uma coisa é bela sob a alegação de que ela pertence a certa tivos. Definem-se como a classe de juízos relacionados com a
classe de coisas ou tem determinadas características definíveis. nossa insatisfação na percepção das coisas.
A maneira de versar o assunto, utilizada por Kant, de um modo Dessa premissa deriva êle o seu repúdio do intelectualismo,
geral, foi a que hoje denominaríamos “fenomenológica” e não que prevalecera na crítica e no ensino da arte na Renascença e
psicológiqg.. Êle tornou explícito e preciso o que estivera implí­ perdurara no neoclassicismo e no academicismé do século XVII.
cito ou ‘roSaí parcialmente vislumbrado nos escritos dos seus pre­ “É absolutamente impossível”, sustenta, encontrar “princípios do
decessores.. Até êsse momento da história do pensamento oci­ gosto” do gênero dêste: “qualquer objeto que possua tais e
dental, as obras de arte e a beleza natural sempre haviam sido tais propriedades é belo”. É impossível encontrar regras teóricas
apreciadas pelo prazer que proporcionam, pela sua influência para a construção de belos objetos. E é impossível porque,
moral ou por seus efeitos educativos ou melhorativos, por sua quando julgo que um objeto se inclui em certo princípio geral ou
utilidade prática ou, intelectualmente, porque incorporavam prin­ se conforma com esta ou aquela regra, estou fazendo um juízo
cípios aprovados ou se conformavam a certas regras. Rejeitando intelectual e não um juízo sobre o meu sentimento por êle/ e
todas essas bases de julgamento e mostrando que os juízos esté­ de um juízo intelectual dessa ordem não posso “inferir que êle é
ticos têm base diferente e formam uma classe independente, belo”. “Pois é preciso que eu sinta prazer imediatamente na
Kant abriu novas clareiras e firmou as bases da estética como representação do objeto (isto é, em minha concepção dêle), e
ramo distinto da Filosofia. não posso ser levado a êsse prazer persuadido por provas”. Os
Kant principiou definindo os “juízos sobre o gosto” como críticos, diz êle, “são incapazes de olhar para a força das demons­
juízos que se referem aos sentimentos do observador pelos obje­ trações”, para o motivo determinante do seu julgamento, “mas
tos percebidos e não por quaisquer características percebidas no apenas para o reflexo do tema sobre o próprio estado dêle, de
objeto. prazer ou desprazer, de modo a excluir preceitos e regras”.
Apreendermos um edifício regular e apropriado com as nossas fa­ Kant concorda em que são possíveis generalizações empíricas
culdades cognitivas, seja claro ou confuso o modo de representação, como as que desempenharam tão grande parte nas aspirações dos
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autores inglêses em torno da espécie de coisas que a maioria dos Não estaremos fazendo um juízo acêrca do sentimento que nos
homens, na maioria das ocasiões, de fato, achou belas. Podemos inspira a sua percepção e, portanto, o nosso juízo não é estético.
dizer “todas as rosas são belas” sintetizando o fato empírico de
Feita a demonstração, Kant passou imediatamente à qualificação,
que nós e todas as outras pessoas sempre encontramos prazer no
distinguindo duas espécies de beleza (§ 16): a beleza livre
espetáculo das rosas. Mas essas generalizações empíricas são
(pulchritudo vaga), que independe de qualquer conceito de per­
apenas empíricas. Não podemos derivar delas normas nem pa­
feição ou uso, e a beleza dependente (pulchritudo adhaerens),
drões de gosto. Do fato de todos os homens acharem belo o
atribuída a coisas que se classificam num conceito dêsses. Só os
espetáculo das rosas não podemos inferir que todos os homens
juízos relacionados com a primeira espécie de beleza se conside­
devem julgar belas as rosas, ou que um homem erra quando não
as julga tais. ram estéticos “puros”. A beleza pura ou independente pertence
apenas, acredita êle, a coisas que julgamos sem qualquer concei­
Neste ponto, Kant revelou um erro lógico, implícito em to de perfeição ou utilidade, como certas formas naturais e artes
grande parte do pensamento dos escritores inglêses quando espe­ não representativas (dá como exemplos os arabescos e desenhos
ravam, pelo descobrimento de uniformidades empíricas entre as de papéis de parede), a música não vocal, etc. A distinção o
reais flutuações do gosto dos homens, chegar a normas objetivas conduz à conclusão, tão incompatível com os hábitos modernos
ou a padrões de correção do gosto. Reiterou, enfático, que a de apreciação, de que muitos pássaros (o papagaio, o beija-flor,
única base do juízo estético é o prazer imediato proporcionado a ave do paraíso) e certo número de crustáceos podem ser julga­
pela percepção do objeto. “Portanto”, ajuntou, “não existe ne­ dos belezas “independentes” ou “puras” porque nos agradam
nhuma base de prova que possa coagir o juízo sobre o gosto de sem qualquer idéia de um tipo de perfeição a que se conformem
quem quer que seja”. E, por essa razão, o próprio Kant não se (chama a essa idéia “intencionalidade interna”), ao passo que a
interessou sobremodo pelo destino do estudo empírico ou socio­ beleza de um homem, de um cavalo ou de um edifício é mera­
lógico do gosto, que preocupara os autores inglêses. Rechaçou, mente “dependente”, porque pressupõe um conceito do gênero
por princípio, todqs os princípios objetivos, ou padrões do gosto, de coisa que deve ser ou do uso a que deve servir. Hogarth já
sustentando que a base única e definitiva do juízo estético é a fizera idêntica distinção em função dos dois significados da afir­
experiência estética direta da pessoa em contato com o objeto. mativa “isto é belo”: pode implicar perfeição no seu gênero o/
“Não pode haver nenhuma regra objetiva do gosto”, diz êle, pela adequabilidade ao seu propósito, e pode referir-se ao prazer que
qual o que é belo se possa definir através de conceitos. Pois nos ministram a forma e a aparência. Como a maioria das pes­
todo juízo oriundo dessa fonte é estético, isto é, tem por base soas do seu tempo, Kant não viu que mesmo onde temos um
determinante o sentimento do sujeito e não um conceito qualquer conceito de tipo perfeito ou uma idéia de uso, podemos sentir
do objeto”. Além disso: “É perder tempo procurar um princí­ prazer estético na aparência de uma coisa independentemente da
pio do gosto que ministre um critério universal do belo através relação com êsse conceito; podemos apreciar uma pintura repre­
de conceitos definidos”. sentativa pelo que ela é em si mesma e não pela exatidão ou pelo
Por motivos semelhantes, Kant repeliu o ponto de vista sentido com que apresenta os objetos retratados e a “perfeição”
sustentado por alguns filósofos (notadamente por Thomas Reid) dêsses objetos em seu gênero.
de que uma coisa se reputa bela por perfeita em seu gênero. A Kant expressa suscintamente a distinção entre o juízo esté­
noção de perfeição, asseverava Kant, supõe um conceito anterior tico e o juízo teórico por meio da seguinte definição: “Belo é o
do gênero de coisa que ela deveria ser, da espécie de proprieda­ que agrada independentemente de um conceito”. Entretanto, a
des que uma coisa assim deveria ter. Se julgarmos que determb sua atitude para com o que hoje denominaríamos “beleza inte­
nada coisa é perfeita estaremos julgando, intelectualmente, que lectual” era curiosa. Sentimos prazer intelectual no reconheci­
ela se conforma, em elevado grau, com êsse conceito anterior. mento de alguma coisa (seja qual fôr a sua aparência) é perfeita
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e economicamente adequada à sua função, ou no reconhecimento objeto, fonte do prazer. Os juízos sobre a utilidade são tratados
de que é um consumado exemplo do seu gênero (por exemplo, como uma subdivisão dos juízos acêrca do “bem”. Ao dizermos
o caso citado por De Quincey de uma “bela úlcera”) ou na apre­ que uma coisa é útil, estamos dizendo que é boa para alguma
ensão (independente da aparência) da intrincada e bem sucedida coisa, agrada como meio para outra coisa. O bom-em-si-mesmo,
in ter adaptação das partes de um organismo. O prazer que nos por seu simples conceito, é algo louvado pela razão como coisa
proporcionam essas coisas, sem dúvida, é muito semelhante ao cuja existência deve ser querida. “Mas querer alguma coisa e
nosso deleite com uma demonstração matemática elegante, cor­ ter satisfação em sua existência, isto é, ter interêsse por ela, é o
reta e econômica, ou com um problema de xadrez. Hoje se en­ mesmo”. Por isso, afiança Kant, os juízos sobre a beleza se
tende que a expressão “beleza intelectual” é apropositada a êsses diferenciam pelo seu caráter de desinterêsse dos juízos baseados
casos. Kant reconhece o prazer intelectual que sentimos numa no prazer sensual, na utilidade ou na bondade.
elegante demonstração matemática, por exemplo. Mas reluta
Os estetas inglêses haviam tentado caracterizar a atitude
em utilizar a expressão “beleza intelectual” porque, se o fizer,
desinteressada da atenção contrastando-a com o “interêsse” por
estará negando ao deleite do intelecto a sua superioridade sobre
uma coisa no sentido de um desejo ativo ou latente de possuir,
o dos sentidos (“Analítica do julgamento teleológico”, § I).
usar ou manipular essa coisa. Posição semelhante assumiu o
Kant não se emancipara de todo dos valores da filosofia raciona-
predecessor alemão de Kant, Mendelssohn, ao dizer: “Parece
lista em que se exercitara. Nem compreendia que podemos fazer ser marca particular do belo o fato de ser contemplado com sere­
juízos estéticos acêrca de objetos utilitários e acêrca das coisas a na satisfação, de agradar, embora não esteja em nosso poder e
cujo respeito possuímos um conceito de tipo. A diferença resi­ embora estejamos muito longe do desejo de utilizá-lo”. Kant
de, e Shaftesbury o viu melhor do que êle, mais na atitude do adiantou-se aos seus predecessores e imprimiu um feitio metafí­
espírito do que na classe dos objetos. sico à doutrina quando excluiu da atitude estética não só as con­
A fim de diferenciar os juízos sobre a beleza dos juízos siderações de vantagem e desvantagem, desejo de posse e uso,
morais, dos juízos sobre a utilidade e dos juízos baseados no mas também qualquer interêsse pela existência de uma coisa.
prazer dos sentidos, Kant se vale do conceito, formulado por Para alcançarmos uma experiência estética pura, diz êle, “é pre­
Shaftesbury, do prazer desinteressado. Ao parecer de Kant, os ciso que não estejamos de maneira alguma predispostos em favor
juízos estéticos devem ser estremes de interêsse. “Todos preci­ da existência real da coisa, senão que preservemos completa
samos concordar em que um juízo sobre a beleza a que se mistu­ indiferença nesse sentido a fim de representarmos o papel de juiz
re o menor laivo de interêsse é muito parcial e não é um juízo em assunto de gosto”. Em certo sentido isto é exato, porém
puro acêrca do gosto”. No fim do primeiro momento da sua não tem valor algum. Quando avistamos formoso castelo, do
analítica do Belo, êle define o belo da seguinte maneira: “O ponto de vista estético é-nos indiferente que o castelo exista ou
gosto é a faculdade de julgar um objeto ou um modo de repre­ seja uma alucinação, contanto que persista a bela aparência. Mas
sentação por uma satisfação ou insatisfação inteiramente inde­ poderia dizer-se o mesmo do interêsse prático: enquanto perma­
pendentes do interêsse. Ao objeto dessa satisfação chama-se necerem todas as conseqüências para a sensação aprazível, não se
belo”. À semelhança de Hutcheson, Burke e o resto, Kant pre­ nos dá que as coisas que as ocasionam realmente existam (seja o
sume que o “interêsse” implica ou envolve o desejo. Define-o que fôr que isto signifique). Por outro lado, temos interêsse pela
como o interêsse pela existência de uma coisa. Sustenta, a se­ existência de coisas belas independentemente de as possuirmos
guir, que o prazer sensual, assim como o prazer proporcionado ou não. O ponto foi bem exposto por Leibniz na Lettre à Ni-
por um objeto útil ou moralmente desejável, porém em contraste coise (1698):
com a satisfação desinteressada que é o nosso critério para atri­ Aquele que sente prazer na contemplação de um belo quadro e
buirmos beleza a uma coisa, se relaciona com a existência do que sofreria sc o visse estragado, ainda que o quadro pertença

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a outrem, ama-o, por assim dizer, com amor desinteressado; mas Mas Shaftesbury já observara que, embora o prazer estético que
êste não é absolutamente o caso daquele que pensa tão-só em sinto em alguma coisa seja, em si mesmo, desinteressado, a minha
ganhar dinheiro vendendo-o ou granjear aplausos por exibi-lo, pouco
lhe importando que o quadro se estrague ou não depois que deixou experiência de prazer estético numa coisa pode despertar em mim
de pertencer-lhe. o desejo de experiências estéticas semelhantes em contato com
aquela coisa ou com outras capazes de interessar-me de maneira
semelhante.
Essa posição de Kant tornou mais aguda uma dificuldade
que ele herdou da escola inglesa, a saber, a dificuldade de discri­ O ponto importante — e trata-se de um ponto importantís­
minar entre o prazer desinteressado da apreciação estética e os simo — é que o conceito de “desinterêsse” não pode, como o
prazeres “interessados,, dos sentidos, por estarem êstes últimos presumia a escola inglêsa do “sentido interno”, demarcar uma
ligados ao desejo. Diz Kant: “O prazer que associamos à re­ classe particular de objetos ou experiências como relevantes para
presentação da existência real de um objeto chama-se interesse. a experiência estética. Podemos assumir uma atitude de atenção
Tal prazer, por conseguinte, supõe sempre uma referência à desinteressada em relação a qualquer experiência — a um cheiro,
faculdade do desejo..Shaftesbury, Hutcheson, Burke e os de­ a um gosto, assim como a um som ou a uma vista. Podemos até,
mais haviam associado o prazer sensual ao desejo. Trata-se de com algum esforço, atentar objetivamente para a qualidade sen­
um ponto de vista que remonta a Platão e era comumente ado­ sual de uma dor de dentes e esquecer parcialmente o que tem de
tado na Idade-Média. Provou-se, contudo, a impossibilidade de desagradável. Até quando satisfazemos à fome podemos ter mão
confirmá-lo. Por êle se viu Kant na posição extraordinariamente em nós mesmos e atentar, desinteressadamente, para a qualidade
difícil de ploclamar que, por essa razão, o prazer que sentimos à do gosto do que estamos comendo. Foi por essa razão que
vista de uma rosa é estético porque desinteressado e livre do alguns filósofos modernos puseram de lado a distinção feita por
desejo, mas o prazer que sentimos ao aspirar o perfume de uma Kant entre os prazeres sensuais e os prazeres estéticos. Por
rosa é sensual e não estético.í1) Parece tão certo quanto o que exemplo, num ensaio intitulado “Que é o que torna estética
mais o seja que o prazer que nos proporciona o sabor de um bom uma situação?” J. O. Urmson toma o prazer sensual em geral
vinho, um perfume ou o toque do jade não se deve à satisfação como paradigma da experiência estética e diz, espedficamente:
de um desejo anterior. Podemos, com efeito, experimentar um “Se avalio estèticamente uma rosa, as bases mais òbviamente
desejo geral de prazeres sensuais refinados; mas podemos tam­ relevantes serão o modo por que ela recende; as mesmas bases
bém experimentar um desejo anterior de experiência de beleza, e podem ser causa de uma aversão estética”. E faz o seguinte
certas pessoas se sentem mal quando lhes falta a beleza. Kant, pronunciamento de ordem geral: “Se examinamos, pois, alguns
na verdade, só afirma espedficamente que um juízo acêrca da casos muito simples de avaliação estética, a mim se me afigura
aprazibilidade de alguma coisa no tocante à sensação expressa um que as bases dadas são, com freqüência, o aspecto do objeto exa­
interesse (isto é, não é desinteressado) porque, “pela sensação, minado (forma e côr), os sons que produz, os cheiros, os gostos
o objeto excita um desejo de objetos daquela espécie; conse- ou as impressões táteis que proporciona”. Isto parece ir dema­
qüentemente, a satisfação pressupõe não o mero juízo a seu res­ siado longe. Precisamos distinguir o ponto de vista de que a
peito, senão a relação de sua existência com o meu estado, na postura “desinteressada” de atenção é parte necessária da atitude
medida em que isto é afetado por um objeto em tais condições”. estética da presunção de que ela é tudo o que precisamos para
a consciência estética.
Os que aceitaram a satisfação ou o prazer como base do juízo
(1) O caráter estético da experiência visual e auditiva, porém não
da sensação olfativa ou gustativa, baseia-se na capacidade de organização estético raras vêzes se têm contentado com um hedonismo gene­
formal da primeira, e não numa espécie diferente de relação com o desejo ralizado, mas procuraram algum princípio de relevância por meio
anterior. do qual pudessem discriminar os prazeres que são um critério
estético dos que o não são. Isto se aplica particularmente aos lumam, vindas das partes situadas abaixo do cérebro”. (*) O
escritores que se interessaram mais pela teoria da arte do que filósofo francês Guyau sustentou que as sensações gustativas,
pela beleza natural. Como disse a Professora Ruth Saw, “o teste táteis e olfativas podem ser estéticas (Les problèmes de Vesthé-
supremo do que deve ser considerado obra de arte há de ser um tique contemporaine, 1884). Nos tempos modernos, Ossowski
acordo sensato sobre a espécie de coisas que os críticos e estetas considera estéticos os prazeres da vista, da audição e do olfato,
julgaram dignas de atenção” (“Que é uma obra de arte?” Philo- mas rejeita o paladar e o tato. Representando as suposições
sophy, vol. xxxvi, n.° 136, 1961). As obras de arte se restrin­ costumeiras que se fazem na estética experimental, o Professor
gem, por comum acordo, aos sentidos da vista e da audição; mas Valentine diz que a cor de um papel liso de parede e o som de
a razão dessa restrição não se encontra nem no princípio do “pra­ um sino podem adequadamente chamar-se belos, mas que o pala­
zer” nem no da “atenção desinteressada”. dar de uma bala de açúcar queimado pode não o ser, embora
Dugald Stewart, cujos Pbilosophical Essays foram publica­ proporcione intenso prazer. (Introdução a The Experimental
dos em 1810, contentava-se em confiar nos acidentes de uso lin- Psychology of Beauty, 1962.)
güístico para extremar algumas categorias de prazer, que admi­ Essas limitações impostas por psicólogos e teóricos perma­
tia serem estéticas, de outras que o não são, e nisso foi imitado neceram totalmente arbitrárias, não se justificando nem pelo
pela maioria dos escritores que se lhe seguiram: grau ou intensidade do prazer nem pelo princípio da atenção de­
A palavra beleza... sempre denota, com efeito, alguma coisa que sinteressada. O bom senso, entrementes, restringiu, com muita
dá não só prazer à mente, senão certa espécie requintada de prazer, coerência, o campo da beleza artística à sensação visual e auditiva,
distante dos hábitos mais grosseiros que temos em comum com juntamente com certas construções intelectuais não sensórias,
os animais; mas não é universalmente aplicável em todos os casos
era que se experimentam êsses prazeres requintados, limitando-se como as obras literárias. Uma base possível dessa discriminação
com exclusividade aos que formam os objetos apropriados do gosto seria o fato de que algumas qualidades das sensações visuais
intelectual. Referimo-nos às belas côres, às belas peças de música; (extensão espacial, matiz, sombra) e das sensações auditivas
falamos também da beleza da virtude; da beleza da composição (duração, volume, diapasão, mas não o timbre) constituem um
poética; da beleza do estilo em prosa; da beleza de um teorema ma­
temático; da beleza de um descobrimento filosófico. Por outro lado, contínuo capaz de organizar-se em construções complexas, que
não aludimos a belos gostos nem a belos cheiros; nem aplicamos mostram propriedades “de campo” emergentes, ao passo que os
o epíteto à suavidade, à maciez ou ao calor agradáveis de objetos gostos, cheiros e sensações táteis não formam um contínuo e não
tangíveis, considerados tão-sòmente em relação ao nosso sentido podem organizar-se. Kant não faz expllcitamente essa distinção.
do tato. Ainda menos consentâneo com o uso comum da linguagem
seria mencionar a beleza da origem nobre, a beleza de uma grande
Mas ela se ajustaria, à sua afirmativa de que os objetos estéticos
fortuna, ou a beleza de um vasto renome. só se adaptam às faculdades de apreensão desde que essas com­
plexas construções com qualidades de campo interativas sejam
William James (Principies of Psychology, vol. II, p. 468) capazes de evocar, sustentar e satisfazer uma prolongada e inten­
achava que a “emoção estética”, pura e simples, o prazer que sa contemplação.
nos proporciona certas linhas e massas, e .certas combinações de Kant é muito positivo ao excluir qualquer elemento de pra­
côres e sons, é uma experiência absolutamente sensacional, uma zer sensual (que êle denomina “encanto”) ou atração emocional,
sensação ótica ou auditiva primária, que não se deve à repercus­ da experiência estética. “Será bárbaro ainda o gosto”, diz êle,
são retrospectiva de outras sensações despertadas consecutiva­ “que precisa acrescentar um elemento de encanto e emoção para
mente alhures”. Sustentava que os sentimentos estéticos, jun­ poder experimentar satisfação, e o será ainda mais se adotar êsses
tamente com os sentimentos morais e intelectuais, são “formas
genuinamente cerebrais de prazer e desprazer” e que “não
(1) Por êsse têrmo êle quis referir-se, aparentemente, aos impulsos
tomam nada emprestado a quaisquer reverberações que se avo­ fisiológicos e aos desejos de um modo geral.
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elementos como medida da sua aprovação”. Admite apenas que para a experiência estética de uma execução. Certas escolas mo­
êles sejam utilizados a fim de atrair a atenção para o objeto se o dernas de pintura, nomeadamente o cubismo, evitaram acinte o
gosto de um homem ainda fôr rude e imaturo. O juízo estético fascínio sensual da bela côr, da tessitura pigmentária e da linha
puro não os toma em consideração. Isso o leva a negar valor caligráfica. Entretanto, onde são usadas, elas parecem fazer par­
estético a um belo tom em música e às belezas da cor na pintu­ te integrante da experiência estética total e a nítida segregação
ra: simples encantos sensuais, não pertinentes à beleza. preconizada por Kant não corresponde, pelo modo, à experiên­
cia geral dos mais versados na apreciação das artes.
Na pintura, na escultura e, de fato, em todas as artes formativas,
na arquitetura e na horticultura na medida em que são belas-artes, A tentativa de Kant de excluir totalmente da esfera estática
o essencial é o desenho. Não se trata aqui do que satisfaz sensa­ a nossa apreensão do bem, sob a alegação de que ela está associa­
cionalmente, mas apenas do que agrada pela forma, que é o da ao interêsse, ao propósito e ao desejo, foi também contestada.
pré-requisito fundamental do gôsto. As cores que dão brilho ao O seu argumento é que tanto ao reconhecermos alguma coisa
desenho fazem parte do encanto. Podem, sem dúvida, à sua ma­
neira, avivar o objeto para a sensação, mas não podem, realmente, como boa instrumentalmente (isto é, útil) quanto ao reconhecer­
torná-lo digno de ser contemplado. [... ] O encanto das côres mos como boa intrlsecamente (isto é, boa por si mesma) a razão
ou os tons agradáveis dos instrumentos podem ser acrescentados: nos impele a procurarmos trazê-la à existência ou mantê-la em
mas o desenho nas primeiras e a composição nos últimos constituem existência. À diferença de Kant, porém, filósofos desde Shaf-
o verdadeiro objeto do puro juízo do gôsto. Dizer que a pureza tesbury a Charles Pierce viram o reconhecimento de que alguma
das côres e dos tons, ou a sua variedade e contraste, parecem con­
correr para a beleza não é implicar, de maneira alguma, que, por
coisa é boa por si mesma (v. g., o conhecimento por amor ao
serem agradáveis por si mesmos, êles proporcionam uma adição conhecimento, a experiência religiosa, o desenvolvimento máximo
ao prazer na forma, uma adição de nível igual ao do prazer. O dos talentos e da personalidade do homem, a cultivação da expe­
verdadeiro significado, todavia, é que êles tornam essa forma riência estética) como um ato de compreensão clara, conducente
mais clara, definida e completamente intuível e, além disso, esti­ a um juízo de valor intrínseco, intimamente ligado a um juízo
mulam a representação pelo seu encanto, na medida em que excitam estético. A razoabilidade do nosso interêsse pela existência do
e sustentam a atenção dirigida ao próprio objeto.
que reconhecemos ser intrinsecamente bom talvez não difira
essencialmente da razoabilidade do nosso interêsse por causar ou
Como a maioria dos autores do seu tempo, Kant tinha a
manter a existência de coisas que julgamos belas. Na exposição
cor na conta de mero acessório e auxiliar ativador da pintura e de Kant há uma confusão, também encontrada na maioria dos
não compreendeu que ela, por si mesma, pode ser um elemento escritos modernos sobre Estética, entre a tentativa de discriminar
do material visual organizado em forma pictórica. Compreendeu
a experiência estética de outros modos de experiência por meio
ainda menos que a forma musical (como na música de composi­
de características notáveis, e o julgamento axiológico de que a
tores do gênero de Boulez e Martinú) pode consistir na organi­
cultivação e o gôzo da experiência estética é uma das coisas que,
zação de timbres ou incluí-los. Sem embargo disso, toca no que em nosso entender, possuem valor intrínseco fundamental.
ainda é um problema não resolvido de apreciação e crítica. Ava­
liamos uma composição musical como alguma coisa em si mesma, Como já ficou dito, Kant inicia a sua discussão afirmando
independentemente da sua execução. Um membro do público de a subjetividade dos juízos estéticos: êstes não se referem a
um concerto, que se demasia na insistência sobre as belezas do quaisquer propriedades do objeto por meio das quais se pode ave­
“tom” vocal ou instrumental, pode não ter apreendido a música. riguar se são verdadeiros ou falsos, senão ao sentimento-resposta
Não obstante, parte considerável do adestramento a que se sub­ do sujeito ao apreender o objeto. No Segundo Momento, se bem
metem os executantes musicais é dedicada à produção de um bom aceite a subjetividade dos juízos estéticos, Kant se opõe à doutri­
som e pouca gente seria capaz de afirmar que o prazer que nos na relativista, que, de ordinário, se supõe decorrente da posição
dá um belo tom, instrumental ou vocal, é totalmente irrelevante subjetiva, a saber, a doutrina de que a beleza das coisas depende

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das preferências e aversões individuais, varia de uma pessoa para generalizações segundo as quais todo e qualquer objeto de arte
outra, de sorte que, ao dizermos que uma coisa é bela, a nossa ou todo e qualquer objeto natural, que possua esta e aquela qua­
declaração não será completa se não dissermos para quem é bela. lidades, ou esta e aquela combinação de qualidades, será belo.
Kant, ao contrário, sustenta que todo juízo sobre beleza de uma Não podem ser provados nem sustentados pela inferência lógica,
coisa contém uma implícita pretensão à validade universal e exige nem verificados pelo pêso da prova empírica. São expressões de
o assentimento de todos os homens. Essa pretensão à validade uma intuição direta e imediata. Sem embargo disso, não ratifi­
universal não tem qualquer relação com a uniformidade empírica cam reações privadas e individuais, mas carregam a pretensão
do gosto: “não é que toda a gente concordará com o nosso juí­ implícita de serem corretos ou incorretos igualmente para todos
zo, senão que toda a gente deve concordar com ele”. Divergi­ os homens. Quase todos, embora nem todos, os filósofos moder­
mos em nossas simpatias e antipatias individuais (conquanto nos reputaram essa análise fenomenológica penetrante e substan­
existam algumas uniformidades empíricas de gosto), em nossos cialmente correta.
desejos e aversões, nas coisas que nos ministram prazer sensual,
“Em todos os juízos por meio dos quais classificamos de
e aceitamos tais diferenças com equanimidade. “Para um, a côr
bela alguma coisa não toleramos que alguém sustente opinião
da violeta é suave e encantadora, para outro é desbotada e morta.
diversa e, ao assumirmos essa posição, não baseamos o nosso
Um homem gosta do tom dos instrumentos de sopro, outro do
juízo em conceitos, mas apenas em nossos sentimentos. Basea-
tom dos instrumentos de corda. Brigar por causa disso com a
mo-lo, portanto, no sentimento, não como sentimento privado,
idéia de condenar como incorreto o juízo alheio quando discrepa mas como senso comum”. No intuito de encontrar uma saída
do nosso... seria sandice”. Mas os juízos sobre a beleza car­
da aparente anomalia de um juízo subjetivo que, não obstante,
regam consigo uma pretensão à correção e, ao formularmos um pretende ser universalmente correto ou incorreto, Kant voltou
juízo dessa natureza afirmamos implicitamente que, a ser correto a recorrer ao princípio do desinterêsse. Afirma que todos os
o juízo, quem quer que deixe de aceitá-lo estará equivocado. sentimentos aliados ao interêsse e ao desejo são privados e indi­
Dir-se-ia que estivéssemos afirmando a existência de certa pro­
viduais, variando de homem para homem. Mas o prazer desin­
priedade no objeto, embora, de fato, não o afirmemos.
teressado, onde não existe elemento de desejo ou de inclinação
Seria ridículo [diz Kant] se alguém, que se envaidecesse do seu privada, pode ser atribuído a um “senso comum”. Por “senso
bom gôsto, pensasse em justificar-se dizendo: “Êste objeto... é comum” ou, como também lhe chama, “senso público” (sensus
belo para mim”. Pois se apenas agrada a êle, não deve chamar-lhe communis) Kant subentende um “sentido interno” que não se
belo. [... ] O homem não julga apenas por si mesmo, mas por transmite apenas através dos órgãos externos dos sentidos, mas
todos os homens e, em seguida, fala. da beleza como se se
tratasse de uma propriedade das coisas. [... ] Não é como se
através do sentimento. Cria êle que êsse senso comum é uma
êle contasse com o assentimento dos outros em relação ao seu presunção necessária da comunicabilidade do conhecimento ordi­
juízo do gôsto, pela simples razão de havê-los encontrado con­ nário pela percepção do mundo comum; consequentemente, não
cordes em outras ocasiões, mas exige dêles êsse assentimento. Cen­ deve surprender-nos que, na esfera estética, “a comunicabilidade
sura-os por julgarem de maneira diversa e nega que tenham gôsto. universal de um sentimento pressuponha um senso comum”.
Cuidava êle que os homens só apreciam as coisas belas como
O argumento de Kant é fenomenológico. Chama a atenção sêres sociais e que a comunicabilidade do sentimento, que é o
para certos elementos do nosso conceito de beleza, essenciais à nosso critério de beleza, como critério da não subjetividade do
linguagem que usamos, e nos mostra que êles pertencem à essên­ nosso juízo, é também uma pressuposição necessária da nossa
cia do conceito. Os juízos estéticos são singulares. Afirmam a capacidade de apreciar a beleza. Ao chegar a uma decisão do
beleza dês te ou daquele objeto particular como objeto único e senso comum, o homem precisa “destacar-se das condições pes­
não como membro de uma classe. Não assumem a forma de soais subjetivas do seu juízo” e julgar do ponto de vista univer­

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sal. Kant sumaria essa idéia difícil da seguinte maneira: "O juízos estéticos, senão que o que êle denomina “faculdade do
juízo do gôsto, portanto, depende da nossa pressuposição da exis­ juízo estético” é idêntica em todos os homens no mesmo sentido
tência de um senso comum. (Mas este não deve ser interpreta­ em que, no seu tempo, se sustentava que a razão é idêntica em
todos os homens, em tôda a parte.
do como se significasse algum sentido externo, senão o efeito
decorrente da livre atividade dos nossos poderes de cognição.) A posição de Kant torna-se, porventura, mais compreensível
Só na pressuposição, repito, da existência do senso comum, à luz da sua maneira de encarar a teleologia. Não nos entende­
somos capazes de formular um juízo do gosto”. Em outro lugar remos aqui, sobre êsse aspecto dificílimo da sua filosofia trans­
cendental. Em resumo, êle sustenta que o fato e a possibilidade
diz êle: “Podemos até definir o gôsto como a faculdade de cal­
do nosso conhecimento da natureza, ou pelo menos da natureza
cular o que faz o nosso sentimento numa representação determi­
orgânica, nos impele a considerá-la adaptada aos nossos podêres
nada, universalmente comunicável, sem a mediação de um con­
de compreensão (que êle denomina “intencionalidade subjeti­
ceito”. Essa idéia do senso comum é análoga à noção de Hume va”). “Temos”, diz, “fundados em princípios transcendtais,
de uma disposição universal e natural de sentimento, comum à boa base para presumir uma intencionalidade subjetiva na nature­
natureza humana. Para o argumento de Kant, o elemento im­ za, em suas leis particulares, no que concerne à sua compreensi-
portante é que o senso comum, ou sentimento desinteressado, bilidade pelo juízo humano”. As coisas podem adaptar-se aos
pelo qual julgamos a beleza, não varia de homem para homem, nossos podêres de cognição, em forma de compreensão teórica,
como o prazer sensual ou o desejo mas, em princípio, é uniforme raciocínio, construção de sistemas científicos, ou em forma de
e invariável. No fim do Quarto Momento, portanto, êle define apreensão imediata, através da percepção sensual ou da intuição
o belo como “aquilo que, sem nenhum conceito, é conhecido intelectual. Quando percebemos que uma coisa se adapta parti­
como objeto de satisfação necessária”. cularmente bem aos nossos podêres de consciência perceptiva,
Kant partilhava com Shaftesbury e a escola do “sentido independente de qualquer raciocínio a respeito dela ou de qual­
interno” da noção de que a nossa apreciação da beleza é uma quer análise intelectual, fruímos uma experiência estética e cha­
espécie de intuição imediata, análoga, nesse sentido, à percepção mamos bela a essa coisa.
sensual, e que, não obstante, depende de um sentimento de satis­ Em parte alguma expõe Kant com muita lucidez êsse ponto
fação. A sua asserção de que ela depende de um “senso co­ de vista, mas volta reiteradas vêzes a êle, afirmando sempre que
mum”, que não varia de uma pessoa para outra, não era tão o que denominamos beleza num objeto é a qualidade de adapta­
monstruosa quanto poderia parecer, à primeira vista, aos que bilidade à mentalidade humana, que o torna capaz de expandir
estudaram o vórtice de juízos estéticos conflitantes e evanescen- e favorecer os nossos podêres de cognição direta não conceptual.
tes, de manifestações do gôsto entrechocantes e flutuantes, posto Pode-se sugerir uma distante analogia com a imparcialidade me­
a nu pela história e pela crítica da arte. Kant não aludia aos juí­ dieval ou com a propriedade estética fundamental da “perspicui-
zos empíricos, mas à natureza lógica do juízo estético. Pressumi- dade” segundo o Professor Findlay. Na primeira seção da Críti­
mos que a razão e a percepção sensual também são faculdades ca do Juízo Teleológico diz êle que muitos produtos da natureza
comuns e que os seus pronunciamentos são corretos ou incor­ “como se tivessem sido especialmente planejados para o nosso
retos independentemente do desejo ou da inclinação individuais, julgamento”, têm uma forma conformável a êle; “através da sua
e continuamos a presumi-lo a despeito dos fatos patentes de que multiplicidade e unidade servem, ao mesmo tempo, para fortale­
as pessoas, diferentemente dotadas, sempre discordaram e, pro­ cer e sustentar os podôres mentais que entram em ação”. A
vavelmente, sempre discordarão no que concerne a inúmeras êles, portanto, damos o nome de formas belas. Na Introdução
questões da razão e das propriedades sensuais do mundo externo. (§ VIII), afirma que um objeto pode ser representado como
Kant não proclama nenhuma uniformidade empírica entre os dotado de intencionalidade subjetiva porque a sua forma, na apre-

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ensao, está em harmonia com as faculdades cognitivas. Isto, ou contemplação, embora êsse prazer seja o nosso critério para jul­
seja, a adaptabilidade das coisas à apreensão humana, denomina­ gá-lo belo. Se o juízo fosse feito acêrca do prazer sentido, a
mos beleza natural, em contraste com a intencionalidade objetiva pretensão à comunicabilidade universal da experiência (ou da
ou organização teleológica. “As primeiras, nós as julgamos pelo validade universal do juízo) seria “autocontraditória”; pois o
gosto (estèticamente, por meio do sentimento de prazer), as prazer “só tem validade privada” e “nada é capaz de ser univer­
últimas, pelo entendimento e pela razão (logicamente, de acordo salmente comunicado senão a cognição e a representação, na
com conceitos)”. A “harmonia” de um objeto com as nossas medida em que ela pertence à cognição”. O prazer que experi­
faculdades cognitivas, a sua adaptabilidade à apreensão direta e mentamos é o prazer “na harmonia das faculdades cognitivas”.
não pela razão analítica ou classificadora, é uma questão para O efeito de que nos tornamos conscientes na experiência estética
ser decidida pelo juízo estético, guiado pelo prazer que experi­ favorável é a “mútua harmonia subjetiva dos nossos podêres
mentamos na apreensão dêsses objetos bem adaptados. “Pois o cognitivos”, a atividade mais intensa dêsses podêres (que Kant
juízo do gosto consiste precisamente em chamar-se bela a uma denomina “imaginação” e “compreensão”) quando estimulados
coisa unicamente no que respeita à qualidade por que ela se à livre atividade e “animados por mútuo assentimento”. O
adapta ao nosso modo de aceitá-la”. (Analítica do Sublime, objeto belo, fonte do prazer, é o objeto que se adapta aos nossos
§ 32.) podêres cognitivos, que lhes faculta uma atividade livre e sem
Kant excluiu da esfera estética não só a “intencionalidade restrições e os estimula ao máximo. A adaptabilidade a tais
interna” (a qualidade de ser um perfeito exemplo do seu tipo), podêres não varia de indivíduo para indivíduo e, assim, logica­
mas também a “intencionalidade externa” (adequação a um mente, o juízo estético reivindica corretamente a validade uni­
propósito, utilidade). Apresenta a idéia da “intencionalidade versal, conquanto seja subjetivo no sentido de basear-se na adap­
sem intenção” em sua afirmativa de que a beleza é a adaptabili­ tabilidade de um objeto da atenção a faculdades humanas e con­
dade de uma coisa às nossas faculdades cognitivas. O juízo esté­ quanto o critério pelo qual formulamos o juízo seja o prazer indi­
tico não é um juízo acerca dessa adaptabilidade, mas expressa o vidual privado, experimentado na plena estimulação e na plena
prazer “desinteressado” especial que experimentamos ao con­ sustentação das nossas faculdades cognitivas.
centrarmos a nossa atenção na apreensão de um objeto que Uma das partes mais abstrusas da Crítica é a teoria da “livre
assim se adapte. e desimpedida atividade recíproca da imaginação e do entendi­
Kant discute a situação lógica do prazer estético numa das mento”, que, afirmava Kant, caracteriza a atividade estética.
seções mais obscuras (§ 9), mas uma seção que ele mesmo diz Parece provável que essa parte da sua teoria estivesse estreita­
ser “a chave da Crítica do gosto” e “digna de toda a atenção”. mente vinculada às suas noções de gênio e ao caráter da vitalida­
Com típica gravidade germânica, intitula-a: “Investigação da de, que êle afirmava ser um elemento essencial da grande arte,
questão de se saber se no juízo do gosto o sentimento de prazer muito embora não consiga deixar claro o que quer dizer. Talvez
precede ou acompanha o julgamento do objeto”. Apesar dessa se aproxime um pouco mais da clareza na seção 49 e na observa­
estranha maneira de apresentar o problema (mais preocupado, ção I da seção 37, em que classifica as idéias de “representações
sem dúvida, com a precedência lógica do que com a sequência atribuídas a um objeto de acordo com certo princípio (subjetivo
temporal), a seção parece fundamental para a sua doutrina esté­ ou objetivo), na medida em que elas nunca podem torna-se uma
tica. Ao que tudo indica, Kant pretende dizer mais ou menos cognição dêle”. Distingue duas classes de idéias, as racionais e
isto: quando temos contato com qualquer objeto na experiên­ as estéticas. As idéias ou conceitos racionais (que denomina
cia estética (isto é, quando assumimos, diante dêle, a desinte­ também “idéias intelectuais”) são atribuídas a conceitos trans­
ressada postura estética da atenção) e o julgamos belo, não esta­ cendentais, aos quais a experiência jamais poderá adequar-se ple­
mos fazendo um juízo acêrca do prazer que sentimos em sua namente (os exemplos dados incluem sêres invisíveis, o reino dos
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bem-aventurados, o inferno, a eternidade, a criação, etc.). Elas acerca dos estímulos que satisfazem a essas faculdades e lhes
“forcejam por chegar a alguma coisa, que jaz além dos confins propiciam plena atividade (isto é, acêrca das coisas belas) são
da experiência”. Pelo livre uso da imaginação, o poeta e o artis­ juízos tocantes à adaptabilidade de objetos à cognição humana e,
ta procuram “representá-las”, encontrar uma expressão concreta portanto, independentes das variações e diferenças individuais,
mais adequada e completa do que pode realizar a natureza expe­ mas que pretendem ser geralmente válidos para todos os homens.
rimentada. As idéias estéticas são “representações da imagina­ Essa teoria é a mais importante antecipação do moderno ponto
ção”, que “provocam muitos pensamentos mas sem que nenhum de vista estético formulada por qualquer filósofo antes do
pensamento definido, isto é, conceito, possa adequar-se a elas, e século XX.
a cujo plano, conseqüentemente, a linguagem nunca poderá
erguer-se, como não pode torná-las completamente inteligíveis”.
Kant talvez expresse aqui um ponto de vista popular no seu tem­
po e cabalmente exposto por Archibald Alison, a saber, que uma
coisa bela (particularmente quando se trata da beleza natural)
é aquela que põe em movimento uma cadeia de pensamentos e
fantasias sob o impulso de um sentido emocional, de misteriosa
importância e significação quase reveladora, que nunca se poderá
encapsular integralmente em conceitos práticos. Há sempre o
sentimento de algo que escapa, o sentido de alguma coisa que
ainda precisa ser apreendida, uma revelação e uma luz fora do
nosso alcance. Essa maneira de encarar a atividade estética se
encontrava talvez no âmago da concepção romântica do nosso
comércio com a arte e a beleza. Uma concepção que, embora
pouco apreciada hoje em dia, não podemos pôr de lado pre­
maturamente.

sumário. A apreciação, sustenta Kant, é a apreensão dire­


ta, mas não conceptual. Concentramos nossa atenção num
objeto, tornamo-nos cada vez mais conscientes dele, mas sem o
analisar ou classificar teoricamente, sem pensar a respeito dêle.
Contemplamo-lo na atitude de atenção desinteressada. Quando
assim contemplamos uma coisa bela, os poderes de percepção são
ativados e sua atividade é mais do que usualmente intensa e
harmoniosa; o objeto é tal que lhes faculta a máxima amplitu­
de e os satisfaz e sustenta. O sinal de que isto está tecendo é
o prazer que sentimos nesse total e desimpedido exercício das
nossas faculdades. E Kant prossegue dizendo que, como as nos­
sas faculdades de apreensão ou percepção dos objetos, em princí­
pio, não variam de pessoa para pessoa (se bem, é claro, empiri­
camente sejamos todos diferentemente dotados), os nossos juízos

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