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- Que dizes tu, Brearte? Sabes quem é constitutivas desse momento, especialmente
minha mãe e que casta é de fada? aquelas relacionadas à valorização da
(Alexandre Herculano)1 subjetividade e às performances estéticas
engendradas a partir disso. É nesse sentido,
Primeiras palavras: pensando o por meio desse recorte teórico, que
Romantismo pretendemos estudar mais de perto a narrativa
da dama do pé de cabra, levando em
Queremos, com esse texto, pensar a consideração as ambiguidades que permeiam
narrativa de Alexandre Herculano tendo em a sua construção e que também explicam o
vista um movimento estético cultural bastante diálogo entre essa narrativa e as teorizações
amplo, a modernidade – especificamente a em torno do Fantástico – diálogo que vai além
romântica –, sinalizando rupturas de uma aproximação mais esperada entre a
personagem da dama e o Fantástico.
1
Todas as referências à obra “A Dama pé-de-cabra” É bastante complexo falar de um
são de Alexandre Herculano, s/d, conforme consta nas movimento literário tão amplo e diverso como
referências bibliográficas.
parece-nos que Herculano, ao retomar esse embaixo do braço esquerdo, saiu, voando, por
mito, propõe que se revejam o passado uma grande fresta.
português e as suas “glórias”. D. Diogo Lopes, desiludido, decide5 sair à
As histórias – do mito medieval e da caça de mouros e acaba sendo preso. D. Inigo,
narrativa de Herculano – são praticamente a seu filho, ouvindo as sugestões do pajem
mesma, com a diferença de que o texto Brearte, resolve pedir a ajuda de sua mãe, a
original – medieval – menciona uma última dama pé-de-cabra, para salvar o pai. Nessa
exigência da Dama: altura da história, ocorre uma pausa
relativamente longa para que o narrador conte
(...) toda vez que um senhor de Biscaia a verdadeira história da dama. O leitor fica,
estivesse em Vustúrio, todas as entranhas então, sabendo que a explicação para fatos tão
das vacas mortas deveriam ser colocadas estranhos está relacionada a Argimiro o
fora da cidade, sobre um rochedo. Após a Negro, conde muito rico que viveu em
sexta geração da família, a ordem foi
Biscaia “no tempo dos reis godos”. Assim,
desobedecida e a Dama – agora
metamorfoseada em serpente para engolir este homem era casado com uma linda
sua refeição – traveste-se então em um condessa. Quando Argimiro presenciou a
escudeiro para deitar com as mulheres da morte de seu pai, atendendo à vontade deste,
cidade e sugar-lhes o sangue. fez o seguinte juramento: “que nunca mataria
(MACHADO, 2011, pp. 3-4) fera em cama e com cria, fosse urso, javali ou
veado.” (p. 47).
Trata o mito da história de D. Diogo Muito tempo se passou. Antes de sair para
Lopes, um nobre monteiro2 que viveu na guerrear, Argimiro convida muitos homens
região de Biscaia3. Enquanto passeava, pela para uma caçada. Saíram, porém, antes que o
manhã, em um “monte selvoso e agreste”, ele dia amanhecesse e já era quase meio dia e
encontra uma formosa dama que, sentada nenhum animal havia sido abatido. Argimiro,
numa pedra, cantava um lindo cantar. D. envergonhado, entra num vale escuro e triste e
Diogo imediatamente apaixona-se e a pede mata um onagro que estava protegendo sua
em casamento. A mulher faz, no entanto, uma cria. Nesse momento, o conde ouviu uma voz
única exigência para aceitar o pedido: os dois que dizia: “- órfãos ficaram os cachorrinhos
se casariam, desde que ele prometesse do onagro6: mas pelo onagro tu ficarás
esquecer o sinal da cruz; ou seja: pede que D. desonrado.” (p.49). O conde foi para as
Diogo nunca mais se persignasse. Envolvido, guerras de el-rei Vamba e por lá ficou durante
o homem pensa: “- de que servem dois anos. A condessa, no primeiro ano,
benzeduras?” (HERCULANO, s/d, p.37). sentiu muito a ausência de Argimiro:
Mesmo percebendo, depois, “ao examinar
miudamente as formas nuas da airosa dama” No solar do conde Argimiro, um ano
(p.38), que ela tinha os pés como os de uma depois de sua partida, ainda tudo dava
cabra, os dois casam-se e têm dois filhos: D. mostras da mágoa e saudade da condessa:
Inigo Guerra e Dona Sol. as salas estavam forradas de negro; de
negro eram os trajos dela; nos pátios
Em uma noite, quando D. Diogo voltou de
interiores dos pátios crescera a erva, de
montear trazendo um javali grande, algo
muito espantoso aconteceu. A “podenga”, cão 5
Na verdade, D. Diogo Lopes vai confessar-se ao
para a caça de coelhos pertencente a sua abade e este dá-lhe por penitência ir guerrear contra os
mulher, matou o alão4 de D. Diogo Lopes. O mouros por tantos anos quantos vivera em pecado e
conde, meio embriagado, começou a matando tantos deles quantos dias nesses anos tinham
corrido. O narrador satiriza: “na conta não entravam
persignar-se. Sua esposa, gritando, ganhou as sextas-feiras, dia da paixão de Cristo, em que seria
olhos brilhantes, faces negras, uma boca irreverência trosquiar a vil ralé de agarenos, cousa
torcida e cabelos eriçados e, levando D. Sol neste mundo mui indecente e escusada.” (p.46).
Alexandre Herculano questiona, obviamente, a
dignidade dos membros da igreja, ironizando, ainda: “o
2
Aquele que caça nos montes, monteador. abade era um velhinho, santo, santo, que não o havia
3
Ver ALAVARCE, 2011. mais.” (p.45).
4 6
Grande cão de fila utilizado na caça. Burro selvagem.
modo que se podia ceifar; as reixas e as trovões, D. Diogo Lopes é salvo. Finaliza o
gelosias das janelas não se haviam narrador:
tornado a abrir; descantes dos servos e
servas, sons de saltérios e harpas tinham D. Diogo pouco tempo viveu: todos os
deixado de soar. (p.51). dias ouvia missa; todas as semanas se
confessava. D. Inigo, porém, nunca mais
Entretanto, no segundo ano, tudo parecia entrou na igreja, nunca mais rezou, e não
mudado e a condessa estava muito feliz. Ela fazia senão ir à serra caçar. Quando tinha
havia sonhado que chegaria ao condado um de partir para as guerras de Leão, viam-no
homem pelo qual ela se apaixonaria. Este subir à montanha armado de todas as
homem era Astrigildo o Alvo, um nobre peças e voltar de lá montado num
gardingo. Este, por sua vez, tinha sonhado o agigantado onagro. (p.73).
mesmo sonho que a condessa por três noites
seguidas: que um onagro o buscaria para levá- A Dama Pé-de-Cabra e a possibilidade de
lo, quase voando, ao encontro daquela revisão de um passado fantástico português
mulher. Assim, “sem saber como, Astrigildo
Ó mar salgado, quanto do teu sal
achou-se junto das barreiras de um solar
São lágrimas de Portugal!
acastelado.” (p.53). O conde Argimiro retorna Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
da guerra sabendo, por alto, o que estava Quantos filhos em vão rezaram!
acontecendo. Esperou, então, a luz da câmara, Quantas noivas ficaram por casar
onde a condessa tinha entrado com Astrigildo, Para que fosses nosso, ó mar!
apagar-se e, com um punhal, assassina os dois (Fernando Pessoa)
amantes. Quando Argimiro ordena que
despenhem de um grande morro o corpo de Culpada e inocente, encantadora, bela e
Astrigildo, percebe a presença de um onagro horripilante, familiar e estranha, a
muito manso e, então, ouve uma voz: “- foi personagem da Dama é construída de modo
nele que veio Astrigildo: será ele que o levará. sempre nebuloso, numa tessitura que se
Por ti ficaram órfãos os filhinhos do onagro, caracteriza por uma espécie de
mas por via do ônagro ficaste, oh conde, “harmonização” de traços opostos; tessitura
desonrado. Foste cru com as pobres feras: que convoca o leitor a pensar o lugar de sua
Deus acaba de vingá-las.” (p.54). Diz o fala – do leitor e também do autor –, a
narrador: perspectiva de seu olhar, sublinhando,
portanto, a relatividade de todo discurso –
As almas da condessa e do gardingo tendência bastante cara ao Romantismo e ao
caíram de chofre no inferno por terem Fantástico. É importante lembrar, retomando
deixado a vida em adultério, que é pecado Guinsburg (1985, p. 14), que o século XVIII
mortal. Desde esse tempo, as duas engendra um intrincado processo de
miseráveis almas têm aparecido a muita mudanças históricas e sociais que vão muito
gente nos desvios da Biscaia; ela vestida
além da proposta do novo ideário estético e
de branco e vermelho, assentada nas
penhas, cantando lindas toadas; ele que favorecem o entendimento, por exemplo,
retouçando aí perto, na figura de um dessa nova percepção do homem,
onagro. (p.55). caracterizada pelo contextual, pelo relativo.
A diversidade no modo de se apreender a
Este é, pois, o mito da dama pé-de-cabra. História parece-nos central, porque
A história tinha sido interrompida na altura desencadeia uma série de mudanças e
em que D. Inigo pretendia pedir a ajuda de rupturas. Se, até o século XVIII, a História é
sua mãe, a dama pé-de-cabra, para salvar D. vista como repetição do passado no presente,
Diogo Lopes, seu pai, do domínio dos agora, a partir desse século, a História é
mouros. Inigo encontra-se com a dama e, encarada também como o desenrolar de
montado no mesmo onagro, vai, como uma eventos diversos no tempo. Isso assegura uma
flecha, buscar o senhor de Biscaia. Em meio a visão muito mais ampla dos escritores que
uma forte chuva nunca vista e a muitos são, acima de tudo, pensadores de seu tempo.
Desse modo, é só a partir do século XVIII e, de-cabra, mito que nem é português7? Estaria
mais especificamente, com o Romantismo, o autor propondo uma reflexão crítica sobre o
que “a noção de cronologia começa a passado português – que nos chega, por vias
instaurar-se realmente na História” “oficiais”, como um passado glorioso?
(GUINSBURG, 1985, p. 18) e, ainda, por Se o ideário romântico prima por
razões mais ou menos óbvias, ganha lugar e relativizar – e se essa nova maneira de pensar
relevo a noção de relatividade, afinal, e de ver é resultado de um movimento
mudança, diferença e ruptura pressupõem o importante de mudança histórica, como
relativo: vimos, – por que deveria este ideário
submeter as suas personagens femininas a um
Engatado no tempo, como se quisesse suposto padrão mais ou menos fixo de beleza
ilustrar a doutrina kantiana sobre o espaço e de comportamento? O que a literatura
e o tempo como formas primeiras do romântica portuguesa – esta situada
conhecimento a priori, o Romantismo, em cronologicamente entre o final do século
sua consciência historicista, tampouco
XVIII e boa parte do século XIX – de fato nos
podia fugir à relativização que Cronos
impõe a tudo quanto toca, deuses e mostra em relação às suas personagens
mortais. (GUINSBURG, 1985, p. 18) femininas? O que essa narrativa de Herculano
nos sugere sobre o passado medieval
Como não poderia deixar de ser, o conceito português? Em que medida esse passado se
de Belo artístico também é revisto. E, se até o relaciona com o século XIX?
século XVIII, esse conceito era fixo, agora, Ainda no mesmo sentido, o que a
como já dissemos, há lugar para a constituição dessa personagem –
diversidade, já que o que se considera Belo, estruturalmente ambígua – dá a ver no âmbito
em arte, é, como tudo mais, relativo. A efetiva literário do século XIX? O que essa presença
percepção do homem como um ser histórico medieval revela quando inserida numa
também só se dá com o Romantismo: ora, é narrativa romântica do século XIX? Essas
justamente aqui que o homem se percebe questões nos remetem a uma reflexão sobre o
também mudando, também inacabado, “em tempo e sobre o anseio romântico pela
devir constante, sem nunca ser mudança nessa narrativa de Herculano.
definitivamente" (GUINSBURG, 1985, p. 17) A despeito daquelas narrativas que teceram
e, claro, essa percepção mais aguçada de si as suas heroínas como verdadeiras fadas
relaciona-se intimamente com a ideia de vaporosas e aéreas, completamente
“gênio romântico”. inacessíveis, encontramos, por exemplo, um
A nova perspectiva crítica que se engendra Camilo Castelo Branco extremamente avesso
em toda a Europa a partir do século XVIII é a esse convencionalismo em Coração, Cabeça
marca constitutiva de muitas narrativas do e Estômago. Essa narrativa nos mostra
Romantismo português. A valorização da Silvestre, um personagem que deambula à
relatividade favorece o desenvolvimento de procura do amor: e, em sua fase “Coração”,
um olhar mais perspicaz para o mundo; logo, conhece sete mulheres, apaixona-se por elas e
o ideal romântico de que nada mais é fixo, desilude-se, já que nenhuma delas justificava
pois tudo passará pelo crivo desse novo eu as suas lágrimas – mulheres vulgares,
transgressor e perscrutador, abre espaço interesseiras, oportunistas e experientes
significativo para a mudança, para a revisão, demais para se aproximarem daquele padrão
para, enfim, a possibilidade de novas ideias e “romântico” de beleza feminino. A sétima
“certezas”. mulher, Marcolina, “a única moralmente
É nesse sentido que encaminhamos a nossa correta, tendo se prostituído aos quatorze anos
análise e perguntamos: além da razão mais
aparente – a vinda do matiz gótico para o 7
Segundo Machado: “Na tradição das lendas
Romantismo – por que Alexandre Herculano melusianas, bastante conhecidas nas literaturas
atualiza justamente esse mito da Dama do pé- medievais francesa e alemã, o conto Dama do pé de
cabra apresenta-se como a versão portuguesa fundadora
da família dos Haros.” (MACHADO, 2011, p.1).
(ALAVARCE, 2014, p. 23), morre tomando condição imposta por ela também é bastante
chá, num acesso de tosse: diverso: esquecer o sinal da cruz. E, aqui,
temos a ruptura mais importante da história,
A ambiguidade é, de fato, traço representada, mais uma vez, na construção da
constitutivo dessa narrativa. Marcolina é e Dama: a narrativa, publicada no século XIX,
não é a representação do perfil romântico se passa na Idade Média, momento de plena
feminino da segunda metade do século valorização das ideias religiosas católicas.
XVIII. Tecida ironicamente como mulher
Alexandre Herculano retoma esse passado
romântica, morre tísica, morte anunciada
nas características atribuídas e fixadas histórico e o traz para uma narrativa que pode
para a mulher, em muitos romances – e precisa – ser lida também num sentido
românticos: damas doentes, pálidas, religioso. Entretanto, o tipo de espaço aberto
distantes, aéreas e, no jogo irônico para a vinda dessas questões é o que nos
arquitetado por Camilo, mortas. interessa. Trata-se de um espaço romântico
(ALAVARCE, 2014, p. 226). por excelência, no sentido de abrigar uma
perspectiva crítica em relação aos preceitos
Encontramos, em “A Dama pé-de-cabra”, religiosos. Essa perspectiva aparece diluída
um projeto narrativo que tece a sua Dama, em toda a narrativa e, nesse momento,
desde o início do conto, como ruptura do centraremos nosso olhar na figura da Dama, já
padrão romântico feminino – ruptura esta que que a entendemos como uma espécie de
nos aproxima do Fantástico, como veremos “gatilho” ou estratégia que, a partir de sua
adiante. D. Diogo Lopes a vê pela primeira origem medieval, favorece uma complexa
vez sentada numa pedra cantando um lindo avaliação do século XIX português.
cantar e, imediatamente, apaixona-se. A dama “Demônio” (p.71), “Diabrete” (p. 72),
aparece também em outros momentos da “Coisa do Diabo” (p. 75), “Satanás” (p. 86),
narrativa, ligada à música: ela gosta de música “Mal-aventurada” (p. 87), “Terrível” (p. 87) e
e gosta, sobretudo, de cantar. Isso, num certo tantos outros adjetivos desse mesmo campo
sentido, já lhe confere um caráter poético, semântico são atribuídos à Dama durante toda
místico, pouco convencional e sinalizador de a narrativa – adjetivos que sinalizam um
uma sensualidade bastante singular – afinal, o espaço discursivo católico por excelência.
canto não deixa de revelar o potencial criativo Logo, a tradição religiosa repudia a Dama,
dessa personagem, tecida, pois, sob a égide de especialmente por ser representante de um
uma sensualidade muito genuína e única, em passado pagão, e – ironicamente – é por meio
claro contraste com qualquer arbitrariedade do Abade que o leitor toma conhecimento da
relacionada ao conceito de beleza. história dessa “mulher-demônio”, coisa do
D. Diogo a pede em casamento e a Dama diabo: “Ora a história da formosa dama das
lhe impõe uma condição: se casaria com ele, serras, de verbo ad verbum, como estava na
desde que ele jamais voltasse a se persignar, folha branca do santoral, rezava assim,
ou seja, ele precisava esquecer o sinal da cruz. segundo lembranças do abade.” (p. 75, grifos
O homem, apaixonado, pensa: “de que nossos.)
servem as benzeduras?” (HERCULANO, s/d, Ficamos conhecendo, então, a história da
p. 37). Salienta-se aqui o contraste entre o Dama que, como vimos, se casa com D.
amor romântico por excelência – à primeira Diogo e que, em uma noite, quando seu
vista, incondicional – e o amor que a Dama esposo, assustado, faz o sinal da cruz, sai
oferece a D. Diogo, possível apenas mediante voando por uma grande fresta, gritando, olhos
um acordo; o que, de certo modo, desnuda os brilhantes, faces negras, boca retorcida e
convencionalismos do casamento, afinal de cabelos eriçados:
contas, não havia os dotes e os casamentos “A La fé que nunca tal vi! Virgem
arranjados? Os acordos não nortearam, quase bendita! Aqui anda cousa de Belzebu!” –
sempre, os matrimônios? E dizendo e fazendo BENZIA-SE E
A singularidade desse acordo é que ele é PERSIGNAVA-SE. “Ui! - gritou sua
“proposto” pela Dama e explicitado por ela, mulher como se a houveram queimado. O
que comanda a situação; além disso, o teor da barão olhou para ela: viu-a com os olhos
brilhantes, a face negra, a boca torcida e jurar, no leito de morte do pai, que jamais
os cabelos eriçados. E ia se alevantando, faria isso. Vale lembrar também D. Diogo
alevantando ao ar, com a pobre Dona Sol que, por ter se casado com a Dama, perde a
sobraçada debaixo do braço esquerdo: o mulher e a filha, e é excomungado pelo
direito estendia-o por cima da mesa para abade:
seu filho, D. Inigo de Biscaia. E aquele
braço crescia, alongando-se para o
“Então estou eu excomungado?” “Dos pés
mesquinho, que de medo, não ousava
até a cabeça; por dentro e por fora; que
bulir nem falar. E a mão da dama era preta
não há que dizer mais nada.” E meu pai,
e luzidia [...] e as unhas tinham-se-lhe
pela primeira vez na sua vida, chorava
estendido bem meio palmo e recurvado
pelas barbas abaixo. O bom do abade
em garras. “Jesus santo nome de Deus!” -
amimou-o como a uma criança [...] E deu-
bradou D. Diogo, a quem o terror
lhe como penitência ir guerrear os perros
dissipara as fumaças do vinho. E,
sarracenos por tantos anos quantos vivera
travando de seu filho com a esquerda, fez
em pecado, matando tantos deles quantos
no ar com a direita, uma e outra vez, o
dias nesses anos tinham corrido. Na conta
sinal da cruz. (p. 72-3, grifos do autor)
não entravam as sextas-feiras, dia da
Paixão de Cristo, em que seria
Esse trecho é fundamental, porque, a partir irreverência trosquiar a vil ralé de
dele, muito se revela dessa narrativa, mas agarenos, cousa neste mundo mui
nada se resolve – o que contribui para a indecente e escusada. (p. 75, grifos
criação de um espaço discursivo tipicamente nossos)
Fantástico, na medida em que acolhe e
alimenta a hesitação: A sequência absurda de punições nos
remete mais uma vez ao universo do
O Fantástico ocorre nesta incerteza; ao Fantástico, agora como previsto por Paes:
escolher uma ou outra resposta, deixa-se o
Fantástico para se entrar num gênero É no mundo da realidade e da
vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O normalidade que vai ocorrer de repente
Fantástico é a hesitação experimentada um fato inteiramente oposto às leis do real
por um ser que só conhece as leis naturais, e às convenções do normal. Esse fato
face a um acontecimento aparentemente absurdo, que põe o mundo de cabeça pra
sobrenatural. (TODOROV, 2004, p. 31) baixo, numa “súbita inversão de 180
graus”, é o fantástico, fonte de espanto,
Logo, os personagens que, até então, quando não de horror. (PAES, 1985, p.
mantinham uma convivência familiar nos 185)
moldes tradicionais, mostram-se de outras
formas: ela, como uma figura assustadora, Observando essa conversa entre D. Diogo
cujo corpo diabólico, completamente e o Abade percebe-se, já, um fato
deformado, sequer lembrava a sedutora inteiramente oposto “às convenções do
donzela à beira do lago; ele, amedrontado, normal”, afinal de contas, D. Diogo, ao unir-
revela o seu apego a todo um passado cristão, se à Dama, vive de acordo com o modelo
que havia negado ao se casar com a Dama. familiar cristão e, mesmo assim, é
Nesse sentido, D. Diogo também se mostra excomungado pelo Abade. A maior inversão,
uma figura “mal resolvida”, já que com a no entanto, vem na fala do Abade, quando
mesma facilidade com que abre mão das impõe a D. Diogo matar tantos mouros
práticas comuns ao catolicismo, ele as invoca quantos anos tivesse vivido com a Dama, para
quando se depara com um evento insólito. que sua alma fosse salva. A inversão se
A Dama pé-de-cabra é, como vimos, a intensifica muito mais se compararmos essa
“alma penada” da condessa. Condessa que foi condição que o abade impõe a D. Diogo à
levada a trair, cumprindo, com Astrigildo, condição imposta pela Dama a ele no começo
uma espécie de profecia divina segundo a da narrativa – esquecer o sinal da cruz.
qual seu marido, o conde Argimiro, precisava Perguntamo-nos: esquecer o sinal da cruz
padecer por ter matado fera com cria – após causa mais estranhamento que matar centenas
de mouros? Isso não nos insere numa “fonte rezem por mim um Pater e um Ave. Se não
de espanto, quando não de horror”? Para o lhe aproveitar, seja por mim. Amém.” (p. 93)
contexto medieval, não. Afinal, basta Encontramos nessas passagens e em muitas
recordarmos o movimento de conquista das outras da narrativa um eu que se sabe
Cruzadas, em que toda violência católica era transgressor e, mesmo assim, ironiza os
permitida e incentivada. E o século XIX: convencionalismos religiosos.
como se coloca ou posiciona diante dessa O olhar lançado à Dama também é
“súbita inversão de 180 graus”? Parece-nos, a hesitante. A tradição religiosa destitui, às
partir do texto de Herculano, que a proposta é claras, a Dama. Existe, porém, um enredo e
justamente esta: a de uma reflexão acerca um narrador que a acolhem de uma maneira
dessas intervenções tão irracionais, mais generosa: como heroína da história.
naturalizadas pelo discurso e pelas práticas Quando D. Diogo, ao encontrá-la pela
católicas. primeira vez, lhe pergunta: “Quem sois vós,
Por meio desse projeto literário, vemos senhora tão gentil?” (p. 70), a Dama lhe
uma proposta de reflexão sobre o passado responde: “Sou de tão alta linhagem como tu;
medieval “glorioso” do povo português. Há, porque venho do sêmel dos reis, como tu,
na narrativa de Herculano, uma sugestão senhor de Biscaia.” (p. 70).
muito forte de que esse passado – fantástico Se “Era, por certo, o demônio que entrou
por excelência – precisa ser repensado no em casa de D. Diogo Lopes” (p. 71), e se
século XIX. Passado fantástico porque abriga “Aqui anda cousa de Belzebu!” (p. 72-3), a
uma série de atrocidades legitimadas por uma Dama é, ao mesmo tempo, também referida
religião que se propõe a salvar as almas, a como “fada”: “porque não ides à serra
pregar o amor. Garrett, contemporâneo a procurar vossa mãe? Segundo ouço contar aos
Herculano, compartilha do mesmo sentimento velhos, ela é grande fada.” (p. 74, grifos
– o de que esse passado fantástico “glorioso” nossos) Inigo Guerra segue o conselho do
deve permanecer na Idade Média e, caso pajem Brearte e vai procurar a mãe: “E,
venha para o século XIX, num movimento seguido de um mastim seu predileto, a pé e
natural da História, que venha desnudado de com uma ascuma na mão, foi-se através das
sua glória: brenhas, por uma vereda que dizia para os
píncaros tristes e ermos onde era tradição que
De repente, em dois anos, a oligarquia a linda dama tinha aparecido a seu pai.” (p.
eclesiástica levantou a cabeça. Pode-se 83, grifos nossos) Inigo a encontra e, nesse
dizer deles o que em mui diverso sentido momento da narrativa, também deparamos
dizia o eloquente panegirista dos com uma representação muito positiva e até
primitivos cristãos: São de ontem e já
delicada da Dama:
invadem tudo, o palácio, a Cúria, o
conselho do príncipe e as assembleias da
Olhou: linda mulher estava ali assentada
nação. Já pretendem com uma exigência,
e, com gesto amoroso e sorriso de anjo,
já dispõem com uma arrogância! (...)
para ele se inclinava. “Minha mãe! Minha
Não há medo, repito, que ela volte; mas
mãe! – bradou Inigo Guerra, alevantando-
há certeza que tenta voltar: e essa
se: e lá consigo dizia: - Vade retro! Santo
tentativa só por si, e só em si é uma
Hermenegildo me valha!” E, como
revolução terrível. (Prefácio de O Arco de
molhara a cabeça, sentiu que os cabelos se
Sant’Ana, s/d, p. 25-26)
lhe iam alçando de arrepiados. “Filho, na
boca palavras doces: no coração palavras
A atuação irônica do narrador, em “A danadas. Mas que importa, se és meu
Dama pé-de-cabra”, legitima essa leitura em filho? Dize o que queres de mim, que será
muitos momentos da narrativa, como neste: tudo feito a teu talante e vontade. (p. 84,
“[...] o quebrar juramento, ainda que seja a grifos nossos)
cães descridos, dizem ser feio pecado.”
(HERCULANO, s/d, p. 88) e neste outro, que A Dama é, portanto, quem salva D. Diogo
corresponde ao final da narrativa: “Mas a da morte, fazendo uso de todos os seus
misericórdia de Deus é grande. À cautela poderes sobrenaturais, movimentando toda a
sua energia para acalmar o filho D. Inigo e XIX não vem para resolver a questão. Como
trazer de volta o pai: criatura ambígua, como anjo-diabo, a Dama
do pé-de-cabra contribui para problematizar o
“Cativo está de mouros há anos meu pai Catolicismo, evidenciando a urgência de se
D. Diogo Lopes – disse por fim repensar a rigidez inerente ao ideário cristão,
titubeando. – Quisera me ensinásseis, anacrônico por excelência, na medida em que
senhora, o modo como hei de salvá-lo.” se aproxima tanto do medieval em pleno
“Seu mal, tão bem como tu, eu sei. Se
século XIX.
pudesse, ter-lhe-ia acorrido, sem que
viesses recorrê-lo: mas o velho tirano do Em termos literários, Herculano se utiliza
céu quer que ele pene tantos anos quantos de uma estratégia narrativa muito sofisticada.
viveu com a ... com a que sandeus Em seu projeto, a mulher romântica, com
chamam Dama pé-de-Cabra.” “Não todos os seus traços, só é possível como
blasfemais contra Deus, minha mãe, que é criatura fantástica. Se, por um lado, esse
enorme culpa” – interrompeu o mancebo, padrão romântico feminino de beleza e de
cada vez mais horrorizado. “Culpa!? Não comportamento prevê damas castas,
há para mim inocência nem culpa” – submissas e belas, por outro, há, também, no
replicou a Dama, rindo às gargalhadas. (p. Romantismo, a valorização do diverso, do
85, grifos meus) relativo e, por que não, de um elemento de
hesitação resultante dessas novas
Constituída desse modo, portanto, a Dama possibilidades. Desse modo, pensar na
acaba por revelar-se como estratégia narrativa obediência a um padrão estabelecido e, ao
peculiar, na medida em que é por meio dela, mesmo tempo, valorizar a transgressão desse
como vimos, que também nos chega a ruptura mesmo padrão – como modo de legitimação
com a arbitrariedade religiosa medieval, afinal do eu – se constitui como uma ambivalência
de contas, a sua liberdade se choca com os fundadora da estética romântica –
mandos e desmandos católicos: “Culpa!? Não ambivalência completamente idealizada. O
há para mim inocência nem culpa” – replicou autor de “A dama pé-de-cabra” concretiza,
a Dama, rindo às gargalhadas. (p. 85). O pois, esse ideal de ambiguidade numa criatura
próprio riso transgressor sinaliza a construção fantástica, tornando possível uma
de uma personagem autônoma, não submissa aproximação entre as discussões em torno do
ao ideário cristão. ideário romântico e as teorizações sobre o
Fantástico.
Considerações finais