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A “era digital” a que alude o título desse ensaio deve ser compreendida como a
inflexão mais recente de uma mutação decisiva do século XX: a tecnologia de produção
de imagens. A partir dos anos 50, as imagens começaram a ser produzidas em escala
industrial e com difusão planetária. É à articulação dessa possibilidade técnica com a
lógica do capitalismo que se deve a emergência do que Debord chamou de sociedade do
espetáculo. Esse conceito não designa apenas uma mera hegemonia da linguagem
visual, mas uma relação social mediada por imagens, sob a lógica do capital.
Aqui é preciso evocar tanto a luta por reconhecimento hegeliana quanto o
conceito lacaniano de imaginário. Para Hegel, como se sabe, é constitutiva da
experiência humana a luta por obtenção de reconhecimento pelo outro, sem a qual não
acedemos a uma certeza objetiva quanto a nossa própria existência. Lacan demonstrou,
por sua vez, que o registro da formação do eu, bem como de sua sustentação
fundamental, é a imagem.
Acresça-se a esse caldo o esvaziamento do espaço público a partir da década de
70 – com a transformação do capitalismo em capitalismo de consumo e a restauração
do enrijecimento das estruturas políticas do mundo – e a retração, desse modo, do lugar
da experiência subjetiva para o próprio eu (em detrimento das atuações de sentido
coletivo), fenômeno bem estudado por Cristopher Lasch em seu Cultura do narcisismo.
Tudo articulado, temos a emergência do espetáculo como uma mundialmente
onipresente instância de reconhecimento, feita da matéria prima mesma do narcisismo
– a imagem – numa época de retração do espírito público e triunfo da lógica do capital.
Essa equação resulta na expressão precisa cunhada por Elizabeth Badinter, capitalismo
do eu.
É essa a hipótese histórica de fundo que orienta a desconfiança sugerida ao longo
desse ensaio: a de que o culto contemporâneo ao eu, ao princípio da identidade,
configura uma antinomia fundamental relativamente à experiência do amor, que é
constitutivamente, como quer que se a proponha, uma experiência radical da alteridade.
Esse culto ao eu encontra vasto alimento nessa inflexão recente da tecnologia de
produção de imagens que é o espaço digital, com suas novas possibilidades de
socialização, agravando assim a dita antinomia. Porque o espaço digital faz parte de
uma cultura mais abrangente do capitalismo e do narcisismo é que o chamo de “era
digital”, na verdade uma era que começa, como disse, com a articulação entre produção
industrial de imagens e lógica do capital.
Tudo isso, contudo, não é simples ou homogêneo, e nem tampouco o fenômeno
se encontra aqui estudado em maior profundidade. Sobretudo os encaminhamentos
finais do ensaio, não passam de meros tateamentos feitos nesse ponto obscuro que é
bem embaixo da lâmpada ofuscante do contemporâneo. No fim das contas, meu
objetivo foi o de mobilizar informações históricas, perspectivas teóricas e algumas
interpretações críticas suficientes para abrir a questão, de modo a oferecer subsídios
importantes para que ela possa ser melhor pensada.
***
Não foi por acaso, já se observou, que Platão colocou na boca de Aristófanes o
discurso instaurador do mito do amor como unidade perdida. Bufão e difamador de
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Sócrates, o autor de As nuvens, enquanto personagem de O banquete, cumpre a função
de deslegitimar essa perspectiva por ser ele a encampá-la num livro que pretende ter
no discurso de Sócrates o seu apogeu teórico (seguido de uma igualmente pretensa
homenagem ao mestre de Platão; refiro-me ao “barraco” de Alcibíades, uma curiosa
mistura de hagiografia e escândalo, que viria a ser deslida por Lacan1 e mobilizada justo
contra a ideia de Eros segundo Sócrates/Diotima).
A antiguidade greco-romana não poderia ver com bons olhos a ideia do amor
como uma dependência radical, ontológica mesmo, do outro. Não apenas na Grécia
clássica, com seu ideal de medida, inexiste o seu elogio. Também não encontramos
antes personagens nas tragédias que encarnem e encenem propriamente uma relação
amorosa: Fedra se consome numa paixão solitária; Medeia, num ciúme solitário; “Egisto
e Clitemnestra”, como observa Octavio Paz, “são unidos pelo crime, não pelo amor” 2. Já
no período helenístico, nenhuma das vertentes filosóficas prescreve o amor
aristofânico, amor-paixão, como receita em suas economias do melhor-viver. Epicuro
via no amor uma ameaça à serenidade da alma. Tampouco os escritores lhe faziam o
elogio. Menandro, o comediante, referia-se ao amor como uma doença. Plutarco se lhe
referia em termos semelhantes, dizendo que os apaixonados devem ser perdoados,
como se estivesse enfermos. Em suma, é de todo provável que o próprio Platão
concordaria com o juízo proferido por Michel Houellebecq, segundo o qual O banquete
é “o livro maldito entre todos”, por ter legado à humanidade a ideia de uma “incurável
nostalgia”3.
Pois o eros platônico, isto é, aquele de Sócrates/Diotima, como se sabe, nada
tem a ver com isso. Não será ocioso repisar aqui uma das noções mais conhecidas – e
menos afeitas à sensibilidade moderna – da cultura ocidental, pois sua retomada
preparará uma pergunta decisiva para o desenvolvimento da argumentação.
Transcrevamos, assim, um trecho definidor da metáfora da “escada do amor”:
Como se pode ler, nesse percurso ascencional, o outro é apenas um “exemplo da beleza
nesse mundo”, destituído portanto de singularidade, de que o amante se serve para
cumprir sua trajetória rumo à “beleza absoluta”, o céu das ideias platônico, lugar da
verdade. Esse processo ilustra o que Lacan chama de “função metonímica do desejo”,
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isto é, um movimento que se encaminha para algo que está além de todos os objetos,
através desse objetos, “rumo a uma perspectiva sem limite” 5.
O outro, no eros platônico, é portanto meramente um instrumento, um objeto
de que se serve o érastès, o amante, em seu percurso ascencional. Daí Octavio Paz se
perguntar: “será que é mesmo do amor que trata o discurso de Sócrates/Diotima?” 6. O
ensaísta mexicano compara o amante platônico aos libertinos de Sade, suas imagens
invertidas. Pois tanto em um como nos outros a experiência em jogo é marcada por uma
flagrante assimetria, uma hierarquia, um desequilíbrio constitutivo e fundamental. O
érastès filósofo platônico “sobe” em cima de seus érôménoï, seus “amados”, usa-os
como degraus de uma escada cujo objetivo não é compartilhado. De modo análogo, os
libertinos de Sade se servem dos outros como meros objetos de seu prazer (sabemos
que essa anulação do caráter de sujeito dos outros deixa-os à mercê de uma violência
sem limites):
5
Jacques Lacan. Op. cit., p. 166.
6 Octavio Paz. Op.cit., capítulo 2.
7 Idem.
8 Ibidem.
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sendo sua instância o simbólico, a imaginação, pode até mesmo prescindir do sexo ou
de qualquer efetivação física para se realizar. Finalmente, o amor abrange o erotismo
(não há aquele sem este), mas se diferencia dele precisamente pelo estatuto do outro
em seu interior. Enquanto o erotismo é primeiramente uma experiência individual
(posso desenvolver uma situação erótica com alguém sem que essa pessoa sequer tenha
consciência disso – em sonhos, devaneios ou masturbações, por exemplo), o amor é
constitutiva e necessariamente uma relação, no sentido estrito da palavra, isto é, que
exige a participação ativa do outro. Justamente, para tanto é preciso que esse outro não
seja um mero objeto, e sim um indivíduo livre, cuja liberdade se efetive na relação.
Numa palavra, no amor, o outro é um sujeito.
Minha proposta aqui será retomar marcos fundamentais da história do amor no
Ocidente sob essa perspectiva do outro. Por meio dela será possível compreender a
emergência histórica de diversas concepções do amor, procurar deslindar a trama
complexa entre amor, paixão, erotismo e sexo – e finalmente lançar luz sobre as
transformações recentes dessas experiências no contexto do capitalismo avançado e,
mais especificamente, a partir das possibilidades abertas pelas tecnologias de
comunicação do espaço digital.
***
9Jurandir Freire Costa. Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico. Rio de Janeiro:
Rocco, 1998, p. 13.
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que designa experiências diversas para a cultura grega antiga, ágape é o termo da língua
grega que viria a designar uma experiência da cultura do cristianismo, cultura
profundamente diversa da grega. Aqui não cabe entrar em detalhes, mas é evidente a
diferença entre a fusão aristofânica, a ascenção solitária do amante filosófico platônico
e o amor ao próximo cristão. Nesse último não há fusão, nem solidão, e sim comunhão.
A experiência do amor ao próximo decorre da doutrina cristã – fundamentalmente
diversa da perspectiva das religiões pagãs – segundo a qual o filho de Deus desceu até
os homens. A encarnação como que legitima a humanidade, torna as criaturas iguais
(em relação a Deus) e igualmente dignas de serem amadas, por Deus e uns aos outros:
“amarás a teu próximo como a ti mesmo”. Diferentemente, assim, de religiões pagãs –
o maniqueísmo, por exemplo – para as quais não há mediação possível entre o dia e a
noite, o transcendental e o imanente. Nessas, a matéria é depreciada, logo também os
homens, que não são dignos de amor, e devem procurar uma fusão com a
transcendência, com Deus ou o Ser universal (no caso do budismo).
Desse modo, o mandamento do amor ao próximo, ágape, é uma experiência
afetiva indissociável de uma crença cognitiva. E isso é extensivo, evidentemente, a todas
as experiências afetivas, emocionais que viríamos a abrigar sob o nome de amor. Em
outras palavras, “o amor foi inventado como o fogo, a roda, o casamento, a medicina, o
fabrico do pão, a arte erótica chinesa” 10 etc. “Nenhum de seus contituintes afetivos,
cognitivos ou conativos é fixo por natureza”. A palavra amor tem um estatuto análogo
ao da palavra arte: uma espécie de anacronismo semântico. Assim como a palavra amor,
“arte” reúne, nesse único significante, experiência históricas e culturais radicalmente
diversas, a ponto de ser muito difícil (a meu ver impossível), identificar um mesmo
denominador comum, uma linha, mesmo que tênue, inquebrantável, que ligue as
pinturas rupestres, os mausoléus egípcios, a estatuária clássica, os mosaicos bizantinos,
a perspectiva renascentista, as maçãs de Cezanne, os ready-made de Duchamp, os
desvios situacionistas e as performances de Marina Abramovic. Da mesma forma que,
quando olhamos para uma pintura rupestre e chamamos aquilo de arte estamos
efetivando um anacronismo, isto é, pensando uma prática antiga, cujo sentido só
poderia se revelar a partir da compreensão da cultura em que ela foi produzida, sob
critérios modernos – quando dizemos que o amor é universal “estamos dizendo que
sabemos reconhecer em experiências emocionais passadas semelhanças ou identidades
com experiências amorosas presentes”11. Entretanto, prossegue Jurandir Freire Costa:
***
15
Ibidem.
16 Ibidem, capítulo 4.
17 Sobre o fenômeno do amor cortês, sigo principalmente a leitura de Denis de Rougemont em
20
Denis de Rougemont. Op. cit., p.
21 Idem, p.94.
22 Ibidem, p. 94.
23 Ibidem, pp. 48-49, para essa e as próximas.
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amor-paixão, que portanto ele deprecia. E, depois, observar que muitos intérpretes
importantes do amor cortês e da história do amor em geral não ratificam a sua
perspectiva. Octavio Paz, por exemplo, a desconstroi sob diversos aspectos, tanto com
argumentos sociológicos 24, quanto religiosos25 e literários26.
Essa breve – e a um tempo longa – exposição do amor cortês foi necessária para
destacarmos a questão da fusão na experiência da paixão. Se o erotismo designa uma
relação em que o outro se revela um objeto; e se o amor designa uma relação em que
o outro se apresenta como sujeito – na paixão o outro é imaginariamente anulado, os
amantes se fundem no Um imaginário. A paixão é uma supressão do objeto – mas
também do sujeito. Ela é, nos termos de Bataille, um violento ataque, talvez o mais
violento ataque à descontinuidade dos seres humanos:
Daí que, assim como o amor cortês, outro fenômeno precursor do amor
romântico moderno foi a experiência dos místicos cristãos, como São João da Cruz e
Santa Teresa D’Ávila. Esses, em vez de procurarem a fusão com o outro, ser humano e
descontínuo, procuraram a fusão com Deus, com a continuidade por definição. Com
efeito, como observa Bataille, “o que a experiência mística revela é uma ausência de
objeto” que “introduz em nós o sentimento da continuidade” 28. Para o cristianismo, a
unidade com Deus é impossível na terra, mas “essa união impossível, entrevista aqui e
ali em momentos extáticos, era o mote para a criação de um vocabulário em tudo similar
24 “Se lermos os textos, verificaremos que não há ambiguidade: a consumação do amor era a
realização carnal completa. Era uma poesia cavalheiresca, escrita por nobres e endereçada a
damas de sua própria classe. Mas então apareceram poetas profissionais. Muitos deles não
pertenciam à aristocracia e ganhavam suas vidas dos seus poemas, alguns vagando de castelo
em castelo, outros gozando da proteção de um grande senhor ou de uma mulher de linhagem
nobre. A convenção poética que na origem tornara o o senhor em vassalo de sua dama deixou
de ser uma convenção e passou a refleltir a nova realidade social: os poetas eram quase sempre
hierarquicamente inferiores às damas para as quais compunham seus poemas. Era natural que
o idealismo dos poemas se acentuasse.” Op. cit., capítulo 4.
25 “O amor cortês louvava as relações extraconjugais, desde que não fossem inspiradas por mero
desejo sexual e fossem santificadas pelo amor. O crente cátaro condenava o amor, mesmo em
sua forma mais pura, porque ele enlaçava a alma à matéria.” Idem.
26 “Os poetas não o chamavam amor cortês; eles usavam outra expressão: fin’amors, isto é,
amor purificado, refinado. Um amor que não tinha como objetivo o prazer carnal ou a
reprodução.” Ibidem. Paz observa ainda que há um gênero de poemas corteses chamado alba,
que, como o nome sugere, são escritos após a realização sexual.
27 George Bataille. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 19.
28 Idem, p. 22.
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ao do ‘amor infeliz’ no gênero do amor cortês”29 (a infelicidade, note-se, não é portanto
desejo de morte, como quer Rougemont, mas consequência do desejo impossível de
fusão). Que o diga Santa Teresa:
Já não pode, Deus meu, esta vossa serva suportar tantas aflições como as
que lhe vêm de ver-se sem Vós. Se tem que viver, não quer descanso nessa vida
nem se vós o derdes. Quereria já esta alma ver-se livre. Comer mata-a. Dormir a
angustia. Vê que se passa o tempo de sua vida em passá-la em regá-los e que
nada pode regalá-la for a de Vós. Parece que vive contra a sua natureza, uma vez
que já não quereria viver em si, mas em Vós.30
***
Qualquer questão pode ser pensada em qualquer escala. Pode-se tratar do amor,
nossa questão, em um aforismo como em um tratado – com consequências e
possibilidades diferentes, é claro. Aqui, a escala é orientada dessa maneira: é preciso
apresentar o mínimo de história necessária para abrir a questão. A questão, no caso,
são os modos do outro no erotismo, na paixão e no amor. Esses modos do outro me
pareceram um caminho oportuno para se pensar os impasses do amor no mundo
contemporâneo e as práticas com que se tem lhe respondido.
O fenômeno do amor cortês foi seminal para o Ocidente. A valorização da paixão
como a suprema aventura psico-emocional de um sujeito se difundiria história adentro
e chegaria até nós como um dos valores mais fortes da nossa cultura. Entretanto esse
percurso, evidentemente, não é simples nem tampouco linear. Ele se desenvolve numa
linhagem que passa por Dante, Petrarca, os célebres amantes de Verona, Rousseau, o
Werther, a ressurreição wagneriana do Tristão e Isolda, o romantismo em geral, os
romances do século XIX, o cinema hollywoodiano, as telenovelas, as canções populares.
Ele convive ainda com uma contralinhagem, que passa pela gauloiserie (um gênero
literário licencioso contemporâneo aos trovadores da langue d’oc), por Bocaccio, pelo
Don Juan, pelo materialismo blasfemo do século XVIII (Sade, Laclos, os libertinos), por
romancistas como D.H. Lawrence e Henry Miller, desembocando em toda a valorização
contemporânea do sexo, do erotismo, da materialidade, das sensações, do
individualismo etc. Isso para ficar apenas nos limites muito estreitos e simplificados de
nossa escala.
Seguindo o critério de parar apenas em determinados marcos decisivos, é
relevante mencionar Rousseau. Talvez seja em sua obra que se encontre o ponto de
articulação mais acabado entre os traços do amor cortês e o que viria a ser o amor
romântico tal como o conhecemos. Basicamente, Rousseau promove a conciliação entre
algumas características até então dispersas e inconciliáveis. Como vimos, para o
platonismo o amor era o caminho para o Bem supremo – mas tanto o sexo, considerado
em si mesmo, era depreciado, quanto o eram os sentimentos intensos, desmedidos e
ambivalentes. Para o cristianismo, o amor, pelo casamento, se harmonizava com o
interesse social (garantindo a ordem e a reprodução dos seres), mas o sexo era apenas
tolerado com um mal menor, e a paixão era preterida à serenidade, fidelidade e duração
***
31 Jurandir Freire Costa. Op. cit., pp. 68-69 para essa e as próximas.
32 Denis de Rougemont. Op. cit., p. 295.
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instituição Igreja Católica. Ora, desprotegido do juramento, o casamento na época
moderna se expõe a tentações, riscos, infelicidades, aporias e rupturas.
Por isso essa antinomia básica permanece irredutível desde a sua formação, na
era moderna. É ela, como nota Rougemont, que está sem dúvida na origem da invenção
da figura do happy end, essa espécie de operação recalcante do entretenimento: o casal
que, vencidos os obstáculos, internos ou externos, típicos do momento do encontro e
da paixão, enfim se une e estabiliza sua união, é envolto por um coração e desaparece
num beijo, a que se seguem a palavra fim e os créditos do filme. Em outras palavras, a
narrativa termina no momento em que a relação amorosa, propriamente, iria começar.
É preciso que o filme acabe antes que a antinomia paixão x casamento se forme. Como
a muitas de nossas antinomias psíquicas, o recalque dá alívio imediato a essa grande
antinomia cultural. Mas todo recalcado retorna – atrás das telas.
Quanto às outras antinomias da série acima, podemos considerar que elas se
formaram progressivamente, à medida em que a vida contemporânea foi adquirindo
certos traços culturais dominantes. Assim, a inflexão do capitalismo em capitalismo de
consumo favorece a lógica do desejo – que é a da substituição, da série infinita – e não
a da monogamia (que é a lógica do “bem”, por assim dizer, “de uso durável”). A “era do
sentimento” (os leitores dos romances do século XIX sabem exatamente do que estou
falando) deu lugar a uma “era das sensações”: a interioridade psicológica e sentimental,
com sua densidade característica, foi se transformando num mundo cada vez mais
materialista, que valoriza o efêmero, a leveza, o descompromisso, o gozo. A experiência
radical da alteridade exigida pela relação amorosa, esse ponto talvez seja o mais
descompassado: se, por um lado, o século XX, com todas as suas conquistas de igualdade
de direitos (no campo dos gêneros, principalmente), tornou a relação amorosa muito
mais próxima de se realizar como uma relação entre iguais, isto é, desierarquizada, por
outro lado parece ser também um consenso que o egoísmo foi se estabelecendo como
a regra do laço social. Ora, essa convivência entre uma exigência profunda de aceitação
da alteridade e uma intensificação do narcisismo, da identidade e do individualismo não
tem como ser pacífica. Finalmente, se por um lado vivemos a “era da infância”, em que
os filhos são valorizados como o maior bem emocional que um sujeito pode ter, por
outro a cultura afirma igualmente o valor da “liberdade”, entendida como mobilidade,
indeterminação, descompromisso.
Como se trata de valores culturais contraditórios, ninguém está, em alguma
medida (a variar de acordo com características subjetivas, sociais, religiosas, econômicas
etc.), imune a essas tensões. São elas o pano de fundo a partir do qual se exercem as
práticas sexuais, eróticas e amorosas no espaço digital.
***
Desde pelo menos as duas últimas décadas, surgiram no espaço digital inúmeros
sites e apps que têm o objetivo de propiciar matchs entre pessoas que, em geral, não se
conhecem fisicamente. Esses sites e apps podem ter o objetivo estrito de propiciar
relações duráveis, compromissadas, casamentos, ou encontros de natureza mais
efêmera, meramente sexual. Entre os primeiros, um dos maiores do mundo é o
eharmony.
Fundado em 2000 por um psicólogo americano que atuava como conselheiro de
casais, o eharmony, sediado em Los Angeles, atua em 150 países, declara ter hoje mais
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de 33 milhões de membros e afirma que, por meio de seu site, mais de quinhentas
pessoas se casam todos os dias, apenas no Estados Unidos. O “diferencial” da empresa
está no algoritmo desenvolvido por ela, baseado na crença, por seu psicólogo fundador,
de que a identificação de características pessoais permite associar os indivíduos, por um
princípio de compatibilidade, e produzir relacionamentos mais satisfatórios e bem-
sucedidos. Numa palavra, o princípio orientador do site é o de que “opostos atraem,
depois atacam” (“opposites attract, then attack”). Tentemos pensar o que o sucesso
desse site – e de outros análogos – pode revelar enquanto sintoma social, bem como
pensar sua pertinência teórica e suas possibilidades e limitações práticas.
Alain Badiou começa seu livro Elogio do amor contando que ficara impressionado
com uma publicidade de um site de encontros francês, chamado Meetic. Os slogans de
sua campanha publicitária eram frases como essas: “Obtenha o amor sem o acaso”,
“Pode-se amar sem se apaixonar” [On peut être amoureux sans tomber amoureux],
“Você pode amar sem sofrer” etc. Essas frases convergem para o que Badiou chama de
“concepção securitária do amor” 33. Como se pode perceber, trata-se de uma estratégia
semelhante àquela dos casamentos arranjados em sociedades pré-modernas, só que ela
não é proposta “em nome da ordem familial por pais déspotas, e sim em nome de uma
segurança pessoal, por um arranjo prévio que evita todo acaso, todo encontro, e
finalmente toda a poesia existencial, em nome da categoria fundamental da ausência
de riscos”34.
É preciso portanto primeiramente compreender de que risco se trata, o que
esses cibercasamentos arranjados querem evitar; em seguida, procurar entender
porque essa estratégia subjetiva tem conquistado tantos adeptos; e, finalmente, fazer a
sua crítica, isto é, apresentar as suas possibilidades e limitações.
Comecemos por essa frase: “Obtenha o amor sem o acaso”. Eis um slogan um
tanto enigmático; por que, afinal, o acaso seria indesejável no encontro amoroso?
Badiou, nesse pequeno livro, estabelece quase que uma brevíssima teoria do amor,
descrevendo sua estrutura e dinâmica. Para ele, uma relação amorosa se desenvolve
em etapas distintas. A primeira delas é o encontro, a que ele atribui o estatuto de
acontecimento, isto é, de algo que emerge de forma insuspeitada, com força de
desestabilização. Estamos aqui diante do momento inaugural da paixão. Já vimos que a
paixão é tradicionalmente compreendida como um estado de fusão. Mas é preciso tanto
entender o que significa essa metáfora, quanto identificar um movimento simultâneo
porém de sentido inverso, no interior desse mesmo estado.
Aqui devemos chamar Freud em nosso socorro. O sentimento de fusão, no
estado passional, é um fenômeno imaginário. Ele é uma espécie de locupletação
psíquica, em termos de economia libidinal e narcísica. Da perspectiva da economia
libidinal, estar apaixonado significa investir uma enorme massa de energia libidinal (a
paixão é uma alteração drástica na distribuição da libido) num único objeto. Ser
correspondido significa, por sua vez, receber de volta todo esse investimento. Assim, se,
num primeiro momento, ocorre “um empobrecimento do ego em relação à libido em
favor do objeto amoroso”35, em seguida possuir o objeto amado enriquece-o mais uma
vez. A recompensa sendo proporcional ao investimento (daí, portanto, um primeiro e
33
Alain Badiou. Éloge de l’amour. Paris: Flammarion, 2009, p. 14. (Tradução minha.)
34 Idem, p. 15.
35 Sigmund Freud. “Sobre o narcisismo: uma introdução”. Em: Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud, volume XIV. São Paulo: Imago, 2006, p. 95.
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óbvio risco da paixão: o de empobrecer radicalmente seu ego, sem a garantia de
recuperar o investimento).
Além disso, e de maneira mais singular (pois a recompensa do investimento
libidinal pode ser encontrada de outras maneiras, com outros objetos), a paixão
correspondida representa um estado intenso de felicidade narcisista. Entendamos. Para
Freud, há dois paradigmas de escolha objetal amorosa: ou bem se ama a mãe, ou se ama
a si mesmo. No primeiro caso, chamado por ele de escolha objetal de ligação, o sujeito
buscará o objeto que reproduza as condições do narcisismo primário da criança que ele
foi, ou seja, vai eleger como objeto de amor alguém em quem ele identifique os traços
essenciais do cuidado materno (ou paterno; em suma, parental). No segundo caso, o
sujeito buscará o objeto em quem ele identifique traços fundamentais de seu eu ideal.
O eu ideal é a imagem de si que o sujeito gostaria de ter, gostaria de que os outros
tivessem, e se esforça para atingir. Diferentemente do que se pode pensar a princípio,
a vida moral não é puro altruísmo; ela oferece gratificações no interior do próprio
sistema psíquico. Em outras palavras: toda vez que o eu age à altura do eu ideal, ele
encontra uma satisfação narcísica (e a recíproca é verdadeira: toda vez que age em
desacordo com o eu ideal, se dá uma ferida narcísica).
Segundo esse paradigma, a paixão correspondida é uma tremenda dopamina
narcísica. Na escolha objetal de ligação, o sujeito reencontra a satisfação de seu
narcisismo primário, sendo amado por alguém que o trata como sua mãe: um amor sem
arestas, todo feito de cuidados, e onde o desejo do outro é extremamente previsível.
Na escolha objetal narcisista, ao apaixonar-se o sujeito dá ao objeto amado uma
perigosíssima procuração, que confere a esse último o direito de proferir a verdade
sobre sua autoimagem. Se o sujeito vê no outro o seu próprio eu ideal, isso significa que,
sendo a paixão correspondida, estará confirmando o eu ideal do sujeito apaixonado. É
como ser amado intensamente pelo seu próprio eu ideal. Ou seja, é tornar-se, sem
sombra de dúvida, o seu ideal. Nesse estado, portanto, desaparece a décalage habitual
entre o eu e o eu ideal, que produz sofrimento. Eu e eu ideal estão perfeitamente
alinhados. É isso o sentimento de fusão – e é por isso que a paixão tem uma tendência
a sair do mundo, a permanecer nesse circuito fechado de investimento libidinal, em que
a realidade exterior, com seus objetos hostis, não pode ameaçar a plenitude da
gratificação psíquica.
Por outro lado, e ao mesmo tempo, a completude imaginária pode conviver com
uma disjunção radical, produzida pelas diferenças subjetivas dos dois indivíduos
apaixonados. Cada sujeito é uma totalidade muito mais complexa do que os traços
eleitos pelo amante como o espelho de seu eu ideal. Assim, à fusão imaginária pode
corresponder uma dificuldade extrema de alinhar, numa vida em comum – isto é, numa
relação – todo o conjunto de gostos, hábitos, valores, idiossincrasias, sintomas,
preferências sexuais etc., um conjunto que abrange desde aspectos conscientes e
superficiais (logo mais passíveis de serem voluntariamente modificados) a outros
insconscientes e frutos de identificações primitivas (dificimente modificáveis).
Compreendemos então o slogan “Obtenha o amor sem o acaso”. É o acaso quem
torna o encontro uma roleta imponderável no que concerne a todo o campo das
características do outro que ultrapassam aquelas que, inconscientemente, foram objeto
da escolha amorosa. E daí, consequentemente, o sucesso de um site como o eharmony:
trata-se de garantir, via algoritmo, que a relação não produza um choque de alteridade,
difícil demais de lidar. A operação, entretanto, apresenta uma importante lacuna e uma
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ainda mais importante perda potencial, uma perda de natureza existencial. Quanto à
primeira, refiro-me a que o questionário enviado aos candidatos a um encontro no
eharmony – que serve de base para os cálculos do algoritmo – só pode contemplar, por
definição, o campo dos valores, preferências e características conscientes. Toda a lógica
do insconsciente passa batida por ele, e ela é decisiva tanto da perspectiva do sujeito
(do amante) quanto do objeto (do amado). Ou seja, o candidato que responde às
perguntas nunca poderá senão dar uma ideia superficial de si; seus sintomas,
ambiguidades, fantasias, tudo isso escapará a si mesmo, e logo ao outro que o poderá
escolher. Da mesma maneira, o que nos faz escolhar um objeto amoroso tem uma
dimensão que geralmente não identificamos, ou só o conseguimos fazer
retrospectivamente. Em suma, o algoritmo não sabe calcular o insconsciente, de modo
que muitas variáveis importantes ficam fora da equação final. Por isso Badiou comenta
que, a seus ouvidos, as promessas do casamento securitário soam como aquela
promessa do exército americano de uma “guerra sem mortes”36. O eharmony não é a
panaceia universal do cibercasamento arranjado (diga-se ainda de passagem que os
casamentos tradicionais tinham sobre sua versão digital a vantagem de contarem com
uma ordem social que funcionava como um suporte do Outro).
Benéfico relativamente à atenuação do choque de alteridade numa eventual
relação amorosa, o algoritmo implica, tendencialmente (só não digo constitutivamente
porque a ausência da lógica do insconsciente pode fazer aparecer essa dimensão de
forma inesperada), o que podemos chamar de uma perda existencial. Refiro-me,
justamente, ao choque de alteridade. O encontro com um outro radicalmente diferente,
com um outro que se revela muito maior e mais complexo do que a dimensão de
espelhamento de nossa escolha objetal (narcísica ou “de ligação), esse encontro pode
produzir um enriquecimento e uma transformação inigualáveis de nossa subjetividade.
Pois pode acabar por demonstrar que entre nosso eu ideal – na sua versão encarnada
pelo outro – e nosso eu efetivo há uma diferença abissal. Estar então à altura do outro,
isto é, à altura de si, de seu eu ideal, pode ser uma aventura imensamente sofrida – e
imensamente engrandecedora.
O que Badiou chama de “ameaça securitária” 37 ao amor responde, portanto, a
esses dois problemas: o risco da disjunção (o choque de alteridade) produzida por um
encontro regido pelo acaso e entregue à lógica do insconsciente; e o risco da paixão não-
correspondida (“Você pode amar sem se apaixonar”), e até mesmo o risco da paixão
correspondida. Pois se, em um caso, o ego perde totalmente o seu investimento
libidinal, ficando miserável até que seja capaz de retirar esse investimento (é o trabalho
do luto), no outro a recompensa geral não é capaz de evitar inesperadas derrubadas das
ações, que são experimentadas como feridas narcísicas, embora breves, exasperantes.
Tudo somado, o mundo da paixão é um mundo em que o eu se encontra
radicalmente desprotegido, à mercê do outro, de quem sua sorte passa a depender
como em quase nenhuma outra experiência psíquica. Ora, se há um lugar comum nas
mais diversas teorias sociais das últimas décadas, desde os anos 1970/80 – e que a
realidade cultural não cessa de comprovar – é que vivemos numa época narcisista.
Como observa Jurandir Freire Costa, “é certamente plausível descrever a economia
psíquica dos sujeitos modernos como sendo narcísica”38. Da cultura do narcisismo, de
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Lasch, ao capitalismo do eu, de Badinter; das evasões de privacidade das
subcelebridades ao fenômeno dos paus-de-selfie – eis uma interpretação dificilmente
questionável. Não há como conciliar sem tensões o valor romântico ainda vigente do
amor com uma cultura cada vez mais devotada ao culto do eu. No caso desses sites de
encontro amoroso, o saldo é uma solução de compromisso: o sucesso do eharmony e
seu algoritmo se revela uma tentativa de conciliação entre o valor do amor e a segurança
identitária: uma experiência de alteridade protegida por guardrails identitários. Aqui, é
a paixão, com seus traços arriscados de dependência do outro, que é sacrificada. Mas o
amor, digo, a relação amorosa, compreendida como uma construção que não se
confunde com a fusão passional, também é uma forma profunda de desafio ao culto do
eu. Outras práticas contemporâneas no espaço digital respondem a esse desafio
recusando-o veementemente.
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Refiro-me ao processo de conquistas de direitos durante o século XX, sobretudo a partir
dos anos 1960, e notadamente no campo dos gêneros, que tornou o outro dotado de
uma alteridade muito mais efetiva. Trocando em miúdos – e para ficar apenas no
exemplo da relação de poder tradicionalmente mais assimétrica, a heterossexual – era
mais fácil para um homem lidar com uma mulher cujos papeis de gênero eram bem
definidos e esvaziavam sua liberdade efetiva, e com ela seu potencial de alteridade.
Hoje, nesse começo de século XXI, o outro é radicalmente outro, dotado de desejos,
idiossincrasias, fantasias, valores etc. que se afirmam em pé de igualdade hierárquica
no interior de uma relação. Em suma, no momento histórico em que as subjetividades
são atravessadas por um culto ao eu, o outro se apresenta como uma alteridade radical.
A conta não fecha.
Daí, talvez, certas recusas veementes à intimidade, ou seja, a qualquer vislumbre
de relação amorosa. É o que vemos em Shame. O filme é a anatomia de um sintoma
contemporâneo (como em Freud, o estudo do exagero serve para elucidar a
normalidade). A experiência da sexualidade de seu protagonista é destituída de toda
subjetividade, de toda interioridade. O sexo está por toda parte: em outdoors, na
televisão, em sites de pornografia, no ambiente de trabalho. A moral culpada por gozar
de apenas algumas décadas atrás (até as primeiras do século XX) deu lugar a um
imperativo permanente de gozo que se culpa por não gozar. O interdito, que inflava a
fantasia, deu lugar a uma permissividade que a esvazia (como diria o anjo pornográfico:
"Toda nudez será castigada"). A alteridade é recusada, e até o objeto é reduzido à sua
objetificação máxima. Nesse contexto, o que ameaça é a intimidade. A única mulher que
denuncia ao protagonista seu sintoma é aquela que, se aproximando de sua intimidade,
o faz broxar. Ele broxa, portanto, não por falta de envolvimento subjetivo, mas pelo
insuportável de sua aparição. É salvo por uma prostituta: o sexo pago, desobrigado de
subjetividade, recoloca-o em campo familiar.
Entretanto, como sustenta Lacan, o sexo é meramente narcísico. Ao gozar, o
sujeito reencontra o seu próprio eu. É esse o vazio constitutivo da experiência sexual.
Ele advém do envio repetido do sujeito à sua própria identidade. E daí também a sua
tendência à repetição sucessiva: como se fosse mobilizado pela esperança de encontrar
alguma alteridade, algo que transcendesse o seu eu. Esse vazio subjetivo da mera
experiência sexual, suspeito, acaba reenviando os sujeitos à possibilidade do amor.
***
42Linda Cundy (Org.). Love in the age of the internet: attachment in the digital era. London:
Karnac Books, Kindle edition, capítulo 1 (tradução minha).
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Uma primeira resposta, um pouco deceptiva, é a de que o espaço digital
potencializará a tendência já contida nas diferentes subjetividades. Ou seja, os sujeitos
que, segundo a attachment theory43, têm um perfil de “relacionamentos seguros” – isto
é, desejam a ligação, se entregam ao outro e procuram a mesma entrega etc. –, se
servirão do espaço digital para intensificar essa tendência. Já aqueles designados com
um perfil de “relacionamentos inseguros” – que se incomodam com a excessiva
intimidade, que afirmam uma maior autonomia na relação etc. – o utilizarão segundo
esse fim. O primeiro, portanto, “se apoiará na tecnologia para se sentir mais
proximamente conectado todo o tempo, enquanto que o último se sente tranquilizado
pela distância que a tecnologia propicia”44. Assim, um serviço de encontros online do
Reino Unido alega que atualmente “uma em quatro relações começam online” 45,
enquanto um artigo publicado no New York Daily News afirma que “um terço dos casais
americanos se conhece online” (converge para o mesmo sentido o fenômeno dos sites
de encontros amorosos, como já vimos). Por outro lado, “todos os dias existem
aparentemente 68 milhões de buscas por pornografia na internet e mais de quatro
milhões de sites pornográficos, que são parte de uma imensa indústria cujos lucros
superaram aqueles de Hollywood e da indústria da música” 46.
Essas quantificações por si sós não nos permitem chegar a conclusões quanto a
tendências de recusa ao amor em nome de experiências mais protegidas da alteridade,
com seus riscos e dificuldades (e grandes recompensas). Mas talvez seja possível
sustentar que, tendo como pano de fundo uma cultura narcísica – e sendo parte
fundamental dela – o espaço digital concorre sobretudo para aprofundá-la, e logo
testemunha práticas cada vez mais avessas à experiência da diferença. Basicamente, o
espaço digital oferece possibilidades nunca vistas no sentido de propiciar uma vida rica
para os que querem permanecer no registro da sua identidade. Tomemos o caso da
pornografia, por exemplo. A pornografia digital não é apenas uma mera extensão e
expansão da pornografia “real”. “Acessibilidade, anonimato e baixo custo [affordability]
são os seus maiores motores. Online e se sentindo invisíveis, as pessoas não precisam
verbalizar seus desejos para outros que poderiam julgar suas escolhas ou
preferências.”47 Isto é, o meio altera a experiência; no caso, cria condições que tendem
a estimulá-la. Com efeito, alguns psicoterapeutas trazem relatos de pacientes cuja vida
sexual é exclusivamente feita de pornografia online. Muitos deles só se excitam
sexualmente com imagens, não com pessoas reais. Aqui, não são apenas a intimidade e
a relação amorosa que são recusadas, mas mesmo a forma mais elementar de
alteridade, o contato direto com o outro, que obriga a reconhecê-lo como um sujeito
livre, no exercício de seu desejo.
Há um ponto em que as novas tecnologias digitais são particularmente perigosas
ao amor: refiro-me aos cuidados parentais com bebês e crianças pequenas. Os
smartphones permitem que, por exemplo, uma mãe realize tarefas com seu bebê
fazendo outras coisas ao mesmo tempo. Assim, há mães que amamentam enviando
43 A attachment theory (teoria do apego), fundada pelo psiquiatra e psicanalista John Bolwby, é
a teoria que descreve certos aspectos a curto e longo-termo de relacionamentos entre
humanos e entre outros primatas.
44
Linda Cundy. Op. cit., capítulo 1.
45 Idem para essa e a próxima.
46 Ibidem, capítulo 2.
47 Ibidem.
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mensagens pelo whats’app, pais que dão almoço aos filhos checando o inbox do
facebook, em suma, todo um conjunto de atividades que é realizado de forma a reduzir
as tarefas à sua dimensão instrumental, alienando-as da atenção, da troca psíquica, do
afeto. Essas práticas, aparentemente inofensivas – e progressivamente habituais –
podem ser muito nocivas a bebês e crianças pequenas ainda no início de seu
desenvolvimento psíquico e emocional. Tanto da perspectiva lacaniana quanto da
winnicottiana, o desenvolvimento dos bebês está ligado à sua interação com o outro
cuidador. Para Winnicott, “a experiência de ser carregado com segurança e manipulado
com prazer leva a que o bebê tenha um corpo, que venha a habitar sua própria pele”48.
O desempenho atencioso dos aspectos ligados à fase do holding são essenciais para que
ocorra a integração entre o psíquico e o corporal pelo bebê. Em termos lacanianos, se o
que forma a autoimagem do eu é o olhar do outro, um olhar disperso, cindido, tende a
produzir no bebê uma autoimagem igualmente dispersa, com efeitos danosos a seu
desenvolvimento.
O uso de gadgets eletrônicos por cuidadores na primeira infância tem ainda uma
outra dimensão grave. Cristoph Türcke tem mostrado como o que a psiquiatria chama
de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) deve ser considerado
menos como uma patologia, uma anormalidade, do que apenas a manifestação em um
grau mais intenso de uma transformação da percepção humana que atinge a todos nós,
em alguma medida. Essa transformação decorre da sobrecarga de estímulos sensoriais
cada vez mais excitantes, que fragmentam nossa percepção e vão tornando cada vez
mais difícil o desenvolvimento das capacidades de elaboração, sedimentação psíquica,
concentração, espera. Nosso cotidiano foi dominado por esses estímulos, sobretudo
visuais, que apagaram as fronteiras entre o espaço profissional e o doméstico, o trabalho
e o lazer. Toda a vida contemporânea transcorre sob um bombardeio de estímulos
sensoriais vindos de múltiplas telas, de todos os tamanhos. É essa a cultura do TDAH.
Todos estamos expostos a ela, mas os bebês e crianças, uma vez que ainda não
desenvolveram suas capacidades de elaboração, sedimentação, concentração, espera e
até mesmo imaginação, são os mais prejudicados. São eles os candidatos favoritos a
manifestações intensas de TDAH. É preciso compreender que, se eles manifestam
incapacidade crônica de atenção, “a atenção que eles não são capazes de dar foi antes
retirada deles mesmos”49. Prossegue Türcke:
[...] não se sabe qual será o efeito na criança de mães que telefonam
durante a amamentação ou de pais que checam e-mails constantemente
enquanto brincam com seus filhos. [...] Muitas vezes, crianças com TDAH não
têm lesões manifestas nem sofrem de falta de cuidado ou ausência excessiva dos
pais – no entanto, eles devem ter sofrido algum tipo de privação vital, caso
contrário não haveria agitação motora contínua, uma busca constante por algo
que ainda não adotou a forma de um objeto perdido. Só mais tarde, quando os
envolvidos coletivamente passam a rodear máquinas de imagem como insetos
ao redor da luz, fica evidente de onde vem a agitação. Muito antes de
conseguirem perceber máquinas de imagem como objetos, a tela como coisa,
48 Ibidem, capítulo 1.
49 Christoph Türcke. “Cultura do déficit de atenção”. Em: Revista Serrote, número 19, 2015.
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eles vivenciaram o poder de seu brilho em absorver a atenção: como privação. E
é preciso repetir essa privação para ultrapassá-la. Ela abranda o desejo dessas
crianças retrocedendo ao ponto em que ela se originou. E, assim, essas crianças
procuram tranquilidade nas máquinas, as mesmas que foram os agitadores
cintilantes de sua tenra infância.50
50 Idem.
51
Linda Cundy. Op. cit., capítulo 1.
52 https://www.theguardian.com/world/2013/oct/20/young-people-japan-stopped-having-sex
53 Idem.
54 Ibidem.
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sexo casual, o afastamento radical da interação com o outro, por meio de pornografia
online – ou o mero desinteresse até pelo sexo.
É aqui que o desenvolvimento avançado do espaço digital assume o
protagonismo. Muitos jovens japoneses têm se afastado de qualquer tipo de contato,
mesmo social, com o outro. Esse comportamento se manifesta da forma mais radical
nos hikikomoris, adolescentes que se tornam eremitas em seus próprios quartos, de
onde não saem, às vezes por anos, não tendo contato direto nem mesmo com seus pais
(que lhes passam comida pela porta). Nessa espécie de ciber-retiro, os jovens ficam
jogando em seus computadores e se relacionando com outros cibereremitas em chats
online.
Talvez seja possível dizer que o tipo sociológico do hikikomori é como certas
patologias para Freud, ou o TDAH para Türcke: apenas a maneira mais intensa de traços
que existem em toda a cultura.
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