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BELEZA AMERICANA

(American Beauty)
A vida, não podemos negar, é habitada por momentos mágicos e belos.
Lembro-me, por exemplo, com grande satisfação, do primeiro disco inédito
dos Beatles que comprei. O dinheiro que sobrou da mesada mais o reforço
de última hora de uns trocados dados pela avó me levaram direto à loja de
discos para buscar o objeto desejado: o bolachão "Abbey Road". Sua
primeira música já tirava o fôlego. Ao final de suas dezessete canções o
felizardo ouvinte se sentia orgulhosamente uma testemunha da história:
havia presenciado o lançamento de um evento musical.

Porém, nem esta doce associação me fez sorrir, foi deslocada por um outro
evento. Neste momento, com "Because" ao fundo, estava paralizado, preso à
poltrona sob o impacto da realidade mediada pela ficção. Esta sensação foi
oposta àquela que tive quando percebi os primeiros acordes de "American
Woman". Um diminuto sorriso quase que autônomo intrometeu-se em um
canto de minha boca, prova de que nossas experiências e lembranças
comandam nossos músculos, acompanhado de uma também diminuta
lágrima, lágrima de felicidade unida a uma violenta sensação de nostalgia.

Estas sensações foram inevitáveis, pois "Beleza Americana" nos faz oscilar
entre pólos da existência que nem precisamos exaustivamente nomear, mas
que podem ser pensados através de duas categorias junguianas que James
Hillman com tanta propriedade estudou: o senex e o puer. Embora a pompa
latina dos termos possa assustar, eles se referem ao conflito arquetípico
entre o velho e o novo. Sobrecarregado por anos de rotina,
condicionamentos sociais, preocupação com os objetos materiais que
acumulamos durante a nossa existência e com aqueles que ainda não
conseguimos adquirir, esquecemos, muitas vezes, do entusiamo de viver.
Ficamos enrigecidos em fórmulas que não são capazes de nos alegrar
verdadeiramente. Senex e puer não mais se estimulam, se anulam.

O filme é comandado por uma retórica póstuma. A história é narrada pelo


personagem morto, que vê tudo do alto, nos convidando a olhar a vida (e a
morte) a partir dessa perspectiva. Os alquimistas chamavam isso
desublimatio (sublimação), que é, de certa forma, o traço marcante de
qualquer expressão artística. Esta retórica pos-mortem me fez recordar de
um outro defunto narrador, o nosso Brás Cubas de Machado de Assis. Não é
apenas a capacidade de narrar a partir de um outro lugar que os une. Ambos
preocuparam-se em como tornar a vida mais agradável, buscando soluções,
transformações e saídas da teia envolvente da rotina, embora o projeto
sonhado por Brás Cubas tenha sido mais radical. Desejou inventar um
emplasto, "um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco,
destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade". Infelizmente, para
nosso eterno desespero, Brás Cubas não apenas foi mal-sucedido em seu
empenho como o próprio desejo do invento foi a causa da sua morte. Fina
ironia machadiana! Esta rápida menção deste grande romance já basta para
meus propósitos, gostaria apenas de recomendar a leitura do capítulo 7,
intitulado "O Delírio". Vamos largar o livro e retornar ao cinema.

"Beleza Americana" retrata um desejo de transformação. Aos 42 anos Lester


Burnham (interpretado por Kevin Spacey) coloca este desejo em movimento,
ou. [e colocado em movimento pelo desejo. Em certo sentido, é bem
sucedido, especialmente se abdicarmos da idéia de longa duração como
parâmetro da felicidade. Isto o filme nos obrigará a refletir. Para entendermos
tudo é preciso que Lester nos conte sua história, isto ele faz, como já disse,
postumamente.

O filme inicia com sua filha se queixando ao namorado: queria ter um pai que
fosse um exemplo, não aquele que ficava excitado quando ela levava uma
colega para casa. O namorado se oferece para matá-lo. Começa então a
narrativa do pai. Confessa direta e francamente: a vida que estava levando
fazia de sua masturbação matinal o melhor momento do dia. É pouco, muito
pouco. Ficava exausto em ver a mulher, não se entendia com a filha
adolescente, se via e era visto por ambas como um perdedor, tinha um
trabalho burocrático e pouco excitante. Além do mais, estava prestes a ser
despedido. Como recuperar a alegria e o prazer de viver, perdidos e
enrigecidos sob o peso da mesmice de sua vida cotidiana?

Foi na apresentação de sua filha Jane no


grupo de coreografia esportiva queele
vislumbrou uma saída. Apaixonou-se
instantaneamente por uma amiga de sua filha.
Angela Hayes fazia o papel da jovem linda,
sedutora e experiente. Queria ser modelo,
pois não suportaria ser uma pessoa comum.
Dava conselhos e orientações, especialmente
a Jane. O desejo que despertou no pai da
amiga foi plenamente aceito e fomentado por
ela. Lester, profundamente abalado pela beleza e jovialidade de Angela,
imaginava-a coberta de pétalas de rosas de cor carmim, mistura explosiva de
delicadeza, sensualidade e desejo. Estamos diante do que Jung descreveu
como a paixão por uma figura de anima juvenil, maneira que uma estrutura
envelhecida encontra para tentar se renovar. O vigor de Angela foi um
receptáculo fácil para o recebimento da projeção desta figura.

Mas Lester não desejou somente uma adolescente, virou literalmente


adolescente. Resolveu seu primeiro
problema, que era o trabalho (ou o dinheiro
que nele ganhava). Ao ser pura e
simplesmente despedido, depois de anos de
dedicação, como se fosse uma mesa
quebrada, não titubeou, chantageou o
executivozinho contratado pelo dono da
empresa para equanimizar custos, ou seja,
ganhar mais e empregar menos. Com
dinheirosuficiente partiu para realizar velhos
sonhos. Comprou um mustang vermelho; foi trabalhar numa lanchonete,
como nos velhos tempos; passou a fazer musculação (Angela gostava de
homens musculosos); voltou a fumar maconha; passou a ouvir as antigas
músicas de sucesso; deu um basta aos jantares monótonos e formais com
sua esposa e filha; até comprou um carrinho de controle remoto, isso
mesmo, um carrinho de brinquedo!
Literalmente, portanto, voltou à adolescência. Gostaria de me deter mais um
pouco nesta questão. Um ponto muito importante na psicologia de Jung e na
leitura efetivada por James Hillman gira em torno do conflito entre o literal e
o metafórico. Como escreveu Jung, "não devemos concretizar nossas
fantasias" (O Eu e o Inconsciente, par. 352), não deixando de acrescentar que
há em todos nós uma propensão para fazer exatamente isso. O movimento
idealizado pela psicologia seria o da compreensão simbólica do que estava
passando em sua alma, buscando evitar a concretização e a projeção dos
conteúdos psíquicos. Hillman, contudo, nos adverte quanto ao risco de
criarmos uma psicologia fundamentalista, ou seja, uma psicologia cega ao
mundo e fixada (literalmente) na realidade psíquica enquanto vivência
interna. Esquecemos que situações concretas causam conflitos e que
situações concretas ajudam a resolver conflitos. A isto podemos acrescentar
o que escreveu Wolfgang Giegerich: ao invés de retirarmos as projeções,
muitas vezes devemos correr atrás dos projéteis. Foi isto o que aconteceu
com Lester. Para renovar seu estilo de vida envelhecido, teve de se perder
numa adolescência tardia, despertarda grandemente por Angela, aquela que,
à princípio, associamos o título do filme, beleza americana. Isso, ela própria
achava de si mesma.

O mesmo não achava o filho do vizinho com sua inseperável filmadora de


mão. Para Ricky Fitts era Jane e não Angela que lhe despertava beleza.
Filmava-a todo tempo. Em nenhum momento Angela atravessou suas lentes.
Era como se estivesse o tempo todo confrontando a artificialidade desta
última com a bela e tímida naturalidade de Jane. Ele a filmava porque
buscava captar com sua câmera a beleza dos acontecimentos, como
demonstra na cena do saco plástico voando ao vento. O que entra pelas
lentes da câmara, independentemente de seu conteúdo, é algo dígno de ser
visto e revisto, algo digno de ser percebido e registrado. A isto podemos
chamar de beleza: merece ser lembrado.

Ricky era filho do Coronel Fitts, ex-mariner. Homem duro, agressivo,


extremamente preocupado com o filho, por temer que pudesse voltar a se
drogar. Exercia sobre ele um controle intenso, com pedidos constantes de
exame de urina para averiguar se continuava com seu vício. Ricky
continuava. A urina que entregava ao pai era de outra pessoa. Naturalmente a
rigidez do pai não era apenas por esse motivo. O clima de quartel que criou
em sua casa, cheio de regras a serem obedecidas por Ricky e por sua mãe,
fazia da vida em comum um verdadeiro estado de sítio. Esta rigidez é fruto de
um estado neurótico de profunda dissociação, que será responsável pelo
desfecho trágico da estória.

É importante falarmos um pouco da mulher de Lester, Carolyn (interpretada


por Annette Bening). Ela encarna outro tipo de beleza americana ou uma
outra forma americana de viver a beleza. Suas rosas, suas roupas, sua casa,
seu prestígio, seus móveis, seu sofá, seus
jantares, seu sucesso, erammaneiras de se
sentir em harmonia com as exigências
sociais. Mas quando começa a perceber as
transformações do marido, se desestrutura e
não sabe direito o que fazer. Acaba se
envolvendo com um corretor bem sucedido
que se achava o máximo. Este envolvimento,
a princípio, lhe faz bem, pois aumenta sua
estima que se encontrava abalada por ela
própria não ser uma corretora de sucesso e pela crise conjugal. Ao ser
flagrada no carro com o amante por Lester, fica profundamente abalada,
sentindo-se culpada e envergonhada. Com a "ajuda" de uma fita cassete de
auto-ajuda, repete o tempo todo: "recuso-me a ser uma vítima". Parte, então,
decidida a matar o marido. Não o matou. Mataram-no antes. Embora tarde
demais, Carolyn e Lester se descobriram gostando um do outro. Se
perderam, mas não tiveram tempo de se acharem. Não tiveram tempo para
um diálogo. Se tivessem tido, ela encontraria Lester já se afastando de sua
beleza americana. Ao ser comunicado pela sedutora Angela que era virgem,
ele percebe a distância que os separa. Afasta-se de sua paixão adolescente.
Provavelmente, a partir desse momento, começaria a aproximar suas
fantasias adolescentes de sua idade atual. Não saberemos nunca.
Contemplando, com olhar carinhoso, um retrato da família, ícone que durante
todo o filme apontava para a verdade mais profunda de todos eles, não
percebe que seu assassino se aproximava inesperadamente. A causa da
morte de Lester? Justamente a incapacidade de confrontar a verdade mais
profunda: Lester foi morto pela dissociação neurótica do Coronel Fitts.

Para entendermos melhor este fato vamos retornar ao começo da estória.


Ricky Fitts, como sabemos, desejava a filha de Lester. Independentemente
desse fato tornou-se seu amigo. Era seu fornecedor de maconha. Por outro
lado, seu pai, o Coronel Fitts, controlava os passos do filho com medo que
se envolvesse novamente com drogas. Desconhecia, assim, que seu filho
não apenas continuava consumindo como também traficava. Certo dia,
observando o vizinho da janela de seu filho, viu Lester e Ricky conversando.
Pelo ângulo de visão pensou que os dois estivessem se relacionando
sexualmente. Não verdade, Ricky estava preparando um cigarro de maconha.
Ao chegar em casa, o pai o esperava. Indagado sobre o que fazia com Lester,
preferiu fingir que era homessexual do que contar que continuava se
envolvendo com drogas. Depois de ter sido espancado pelo pai, gesto que
foi registrado por sua câmera de filmar beleza, foi expulso de casa. Algum
tempo depois, Lester, que estava
fazendo musculação na garagem, é
procurado pelo Coronel Lester.
Profundamente atordoado, tenta
beijar Lester, que recusa dizendo que
não era sua opção. O Coronel Fitts se
afasta chorando, numa mistura de
tranqüilidade (provavelmente por ter
descoberto que se enganara com o
filho) e vergonha, por ter entrando em
contato com um desejo seu tão
escondido. Talvez isto explique sua rigidez. Talvez o homossexualismo fosse
uma maneira de ser mais afetivo com as pessoas, especialmente com os
homens (no começo do filme um casal homossexual foi saudá-los por terem
se mudado, mas foram mal recebidos). De qualquer maneira, não foi capaz de
integrar ou elaborar sua ação. Para restaurar regressivamente sua persona,
deveria eliminar qualquer testemunha do ocorrido, no caso, o único
envolvido, Lester.

Lester é morto com um tiro na nuca, contemplando a foto da família. Com o


barulho do tiro, Jane e Ricky, que estavam no quarto, desceram para ver o
que havia ocorrido. Vêem Lester morto sobre a mesa. Ricky pega sua câmera
e filma, afinal de contas, até a morte tem sua beleza, principalmente se o
morto, mesmo enquanto morto, ainda estampa em seus lábios a felicidade e
a satisfação dos que tentam fazer algo para transformar a própria existência.

Apesar do fim triste e dos desencontros vejo Beleza Americana como um


filme muito positivo, pois o que fica de mais intenso é a busca de uma vida
mais plena, mais significativa, menos robotizada pelas convenções e hábitos
da sociedade. Lester morreu, é verdade, mas de certa maneira, já estava
morto antes. No fundo, aceitou os riscos para poder viver.

Carlos Bernardi
E-mail para o autor
bernardi@rubedo.psc.br

MEMÓRIAS, SONHOS, OMISSÕES1

Sonu Shamdasani

"Esse é um livro muito importante e intensamente original


- penso que terá um enorme sucesso e tornar-se-á um clássico!"

Richard Hull, 19602

Memórias, Sonhos, Reflexões é comumente visto como o trabalho mais


importante de Jung, assim como o mais amplamente conhecido e lido. É
tido como seu testamento final, pois, como observa Gerhard Adler, "Em
nenhum outro lugar o homem Jung revelou-se tão abertamente ou
atestou suas crises de decisão e a existência de sua lei interna"3. Desde a
morte de Jung, ele tem sido a fonte principal sobre sua vida e tem feito
brotar uma pletora de literaturas secundárias. Neste estudo, minha
primeira omissão será a ampla maioria dessa literatura secundária, por
razões que se tornarão mais claras. Espero mostrar que através de um
processo que teve implicações perturbadoras para o entendimento de
Jung e sua correta localização na história intelectual do século
XX, Memórias Sonhos, Reflexões não é, de forma alguma, a autobiografia
de Jung.

A existência de Memórias, Sonhos, Reflexões retardou significativamente


o trabalho erudito sobre Jung. Em seu prefácio para suas memórias
biográficas, que foi umas das primeiras a aparecer, Barbara Hannah
escreveu que " .... os filhos de Jung eram totalmente contrários a
qualquer escrito biográfico sobre seu pai, visto que achavam que tudo o
que era necessário foi dito em seu próprioMemórias, Sonhos,
Reflexões."4 Quando as biografias de Jung vieram a ser escritas, sem
exceção, todas elas basearam-se neste livro, não somente como fonte de
informação, mas, também, como a estrutura narrativa fundamental da
vida de Jung. Assim, Hannah escreve sobre Memórias que ele "...sempre
permanecerá o mais profundo e a fonte mais autêntica e profunda sobre
Jung."5 O entendimento de Jung ficou tão fortemente ligado a esse texto
que é improvável que tal compreensão possa modificar-se sem uma
releitura radical o mesmo.
De início, a significância de uma autobiografia por Jung era imposta por
sua própria da natureza do empreendimento psicológico. Jung sustentou
como um de seus entendimentos centrais a noção de "equação pessoal".
Ele escreve: " ... a crítica filosófica ajudou-me ver que toda psicologia - a
minha inclusive - tinha o caráter de uma confissão
subjetiva."6 Indiferente se alguém concorda com essa noção, ela é crucial
para o entendimento da psicologia de Jung, pois claramente indica como
Jung entendeu sua própria psicologia - e como desejava ser entendido.

À parte de um vislumbre atormentador, num seminário privado em


19257, contudo, Jung não apresentou publicamente sua história de vida.
De seu próprio entendimento da significância da biografia de um teórico,
essa lacuna apresenta, talvez, o maior impedimento para uma
compreensão de seu trabalho. Neste mesmo seminário, ele francamente
provê uma razão para essa lacuna:

Tudo isso é a imagem externa do desenvolvimento de meu livro sobre os tipos. Eu


poderia dizer, perfeitamente bem, que essa é a maneira como o livro se produziu e
colocar um ponto final nisso. Mas há um outro lado, um avançar cometendo erros,
pensamentos impuros, etc., os quais são sempre muito difíceis para um homem
tornar públicos. Ele gostaria de dar a vocês o produto acabado desse seu
pensamento dirigido, e fazer vocês entenderem que foi dessa forma que ele surgiu
em sua mente, livre de fraquezas. A atitude de um homem com função
pensamento, em relação a sua vida intelectual, é bastante comparável a da mulher
em relação a sua vida erótica.

Se você perguntar a uma mulher sobre o homem com quem ela se casou: "Como
isso aconteceu?", ela dirá: "Eu o encontrei e o amei, e isso é tudo." Ela esconderá,
muito cuidadosamente, todas as pequenas mesquinharias, as situações paralelas
em que ela pode estar envolvida e ela apresentará para você, uma situação perfeita
impossível de ser rivalizada. Sobre tudo, ela esconderá os erros eróticos que
cometeu ...

O mesmo acontece a um homem a respeito de seus livros. Ele não quer mencionar
as alianças secretas, os faux pas de sua mente. Isso é o que torna mentirosas a
maioria das autobiografias. Da mesma forma que a sexualidade é, na mulher,
amplamente inconsciente, também é esse lado inferior de seu pensamento,
amplamente inconsciente, no homem. E da mesma forma que uma mulher
estabelece sua força de poder em sua sexualidade, e não abrirá nenhum de seus
segredos do seu lado fraco, assim um homem centra seu poder em seu pensamento
e propõe mantê-lo como uma fachada sólida contra o público, particularmente
contra outros homens. Ele acha que dizer a verdade nesse campo é o equivalente
de entregar as chaves da citadela ao inimigo.8

Nessa afirmação surpreendente, o que Jung vê como a quase


impossibilidade de honestidade, o que "torna mentirosas a maioria das
autobiografias", prova ser a maior contra-indicação para se ingressar
nesse empreendimento. Claramente, Jung não teve a menor intenção de
'entregar as chaves de sua citadela' a seus inimigos. Nos anos seguintes a
esse seminário, Jung consistentemente manteve a mesma posição. Em
1953, Henri Flournoy, o filho do mentor de Jung, o psicólogo suíço
Théodore Flournoy, retransmitiu a Jung a pergunta do Dr. Junod, se ele
havia escrito uma autobiografia ou se pretendia fazê-lo9. Jung replicou:

Eu sempre desconfiei de uma autobiografia porque nunca ninguém pode contar a


verdade. Na medida em que se é verdadeiro, ou acredita ser verídico, isso é uma
ilusão, ou mau gosto.10

Quando chegou Memórias, teria Jung, tardiamente, sucumbido a uma


ilusão, ou a um severo lapso no gosto? Em uma carta a seu amigo vitalício
Gustave Steiner, Jung expressou sua contínua resistência a empreender
uma autobiografia, a despeito de pressão contínua:

Durante os últimos anos foi-me sugerido em diversas ocasiões, fazer algo como
uma autobiografia. Não tenho sido capaz de conceber nada dessa espécie. Conheço
muitas autobiografias, suas auto-decepções e mentiras expedientes; sei muito sobre
a impossibilidade da auto-descrição para entregar-me a uma tentativa a esse
respeito.11

Jung não era menos enfático quanto à possibilidade de uma biografia


sobre sua vida. Em resposta a J. M. Thorburn, quem havia sugerido que
Jung poderia encarregar-se de uma biografia de sua vida, Jung afirma:

... Se eu fosse você, não me importaria com minha biografia. Eu não quero escrever
uma porque, além da falta de motivação, não saberia como fazê-lo. Muito menos
posso ver como alguém poderia desfazer esse monstruoso nó górdio da fatalidade,
estupidez, aspirações e não sei mais o quê! Qualquer um que tentasse tal aventura
deveria analisar-me muito mais do que eu me conheço, se quiser fazer um trabalho
verdadeiro sobre isso.12

Como, então, surgiu Memórias? Inicialmente, surgiu da sugestão de um


editor conceituado, Kurt Wolff. Até então, Jung tinha contrato exclusivo
com a Routledge & Kegan Paul e a Bollingen Foudation. Que um outro
editor planejasse publicar a "autobiografia" de Jung era um golpe ,
embora fosse o que Kurt Wolff se preparasse para executar. Em um
artigo intitulado " Como atrair autores", Wolff escreve:

Cada país no mundo tem estritas leis de tráfico de escravos brancos. Os autores,
por outro lado, são uma espécie desprotegida e devem cuidar de si próprios. Eles
podem ser comprados e vendidos, como meninas no comércio de escravas-brancas
- só que no casos dos autores, isso não é ilegal.13

Para Richard Hull, tradutor de Jung, Kurt Wolff descreveu como:

.... por muitos anos ele tentou persuadir Jung a escrevê-la [uma autobiografia],
como Jung sempre recusou e como, finalmente, ele [Kurt] chegou a feliz idéia de
um "Eckerfrau" para quem Jung poderia ditar de forma aleatória, a Eckerfrau
sendo Aniela Jaffé.14

Numa carta a Herbert Read, Kurt Wolff escreveu que, em última análise,
teria sido Aniela Jaffé quem persuadiu Jung a realizar essa tarefa15.
Devido ao envolvimento com outro editor, o livro não apareceria nos
mesmos canais editoriais como o resto do trabalho de Jung, o que teria
conseqüências significantes para seu resultado.

Em sua introdução para Memórias, Aniela Jaffé escreve:

Nós começamos na primavera de 1957. Foi proposto que esse livro fosse escrito não
como uma "biografia", mas na forma de uma "autobiografia", com o próprio
Jung como narrador. Esse plano determinou a forma do livro e minha primeira
tarefa consistiu, apenas, em fazer perguntas e anotar as respostas de Jung.16

Quando o livro foi publicado, sua significância para a compreensão de


Jung foi apontada claramente por Henri Ellenberger. Ele escreve:

Poucas personalidades do mundo psiquiátrico e psicológico tem sido tão mal


compreendidas como Carl Gustav Jung... É precisamente o interesse nessa
sua Autobiografia que nos permite unificar de modo plausível as imagens
disparatadas, que foram feitas até agora sobre a vida, a personalidade e o trabalho
do fundador da Psicologia Analítica.17

Entretanto, como argumentarei, sua própria plausibilidade não diminuiu


as confusões acerca do trabalho de Jung, mas elevou-as à proporções
imprevisíveis.

De início, muito foi falado sobre as omissões de Jung. Por um lado, Jung
foi muito criticado por não mencionar: seu vitalício caso extra-conjugal,
com Toni Wolff; figuras, tais como Eugen Bleuler e Pierre Janet; e a
controvérsia sobre sua alegada colaboração com os nazistas. Foi
questionado que as omissões de Jung, para o psicólogo que fez da questão
da confissão subjetiva a pedra fundamental de sua psicologia, foram
sinais de má fé e desonestidade intelectual. Desastrosamente essa
acusação continua a ser feita ao movimento junguiano.

Por outro lado, essas mesmas omissões não foram apenas defendidas, mas
lhes foram dadas uma razão profunda. Aniela Jaffé escreve:

Nas memórias de Jung as personalia estão quase que interiamente escassas, para o
desapontamento de muitos leitores ... Essa crítica e a acusação do desinteresse de
Jung para com relacionamentos eram irrelevantes. Seus olhos estavam sempre
voltados para o impessoal, para o arquétipo oculto; o segundo plano, o qual estava
disposto revelar somente na medida em que dizia respeito a sua própria vida. 18
Alguns argumentaram que tais omissões eram justificadas
porque Memórias inaugurou, nada menos, que um novo capítulo na
história da autobiografia e da auto-compreensão ocidental - aquele da
nova forma "interna" da moderna autobiografia psicológica, e
que Memórias é, historicamente, tão significativo como as Confissões de
Santo Agostinho ou as de Rousseau.19

Essa leitura, que pode ser, convenientemente, chamada de canonização de


Jung, foi ressaltada por Kathleen Raineem em sua recensão, "Um homem
enviado", na qual ela afirma simplesmente:

A vida de Jung, mesmo que fragmentadamente revelada, convida a comparações


não com autobiografias profanas, mas com as vidas de Plotino e Swedenborg, as
vidas de santos e sábios, entrelaçadas com milagres.20

Raine não foi a única a fazer comparação com a vida de santos. A mesma
analogia foi feita pelo psicólogo Hans Eysenck, embora com um ponto de
vista caracteristicamente diferente. Em sua recensão, ele escreve:

Acólitos escrevendo hagiografias são raramente afortunados o bastante para ter a


assistência do próprio santo em seus esforços; Aniella Jaffé teve o privilégio da
discussão extensa com Jung ... Isso pode ser considerado como representando o
tipo de imagem que Jung gostaria de dar de si próprio.21

No prólogo de Memórias, Jung escreve: "Fui agora incubido ... de contar


meu mito pessoal [den Mythus meines Lebens]." Assim, o próprio texto
foi tido como um exemplo paradigmático do que um tal mito poderia ser.
Desse modo, não foi somente tomado como um relato definitivo da vida
de Jung, mas, também, como a forma que uma vida psicologicamente
individuada deveria ter. Edward Edinger comenta:

... tal como a descoberta de Jung de sua própria ausência de mito tinha paralelo
com a condição de ausência de mitos da sociedade moderna, então a descoberta de
Jung de seu próprio mito individual provará ser a primeira emergência de nosso
novo mito coletivo... quase todos os episódios importantes da vida de Jung podem
ser vistos como paradigmáticos do novo modo de ser, que é a conseqüência de viver
com um novo mito.22

Em sua introdução ao livro, Aniella Jaffé afirma que sua gênese


determinou sua forma eventual. Portanto, algumas palavras são
necessárias sobre Aniella Jaffé e sobre seu relacionamento com Jung.
Jaffé encontrou Jung pela primeira vez em 1937 e, subseqüentemente,
começou a fazer análise com ele. Vinte anos depois ela tornou-se sua
secretária. Era um trabalho bem adequado a ela, pois havia trabalhado
como secretária independente dos professores Gideon e von
Tsharner.23 Em 1947 ela tornou-se secretária do Instituto Jung em
Zurique.
Em uma entrevista, ela recordou que, depois da morte da esposa, Jung
não se sentia disposto a responder sua correspondência e que ela
respondeu muitas cartas em seu nome, lendo para ele suas respostas, as
quais, às vezes, ele fazia poucas correções.24 Essa afirmação espantosa
não deixa claro, precisamente, quantas cartas de Jung, durante esse
período, foram escritas dessa forma. As últimas cartas de Jung, que
compuseram a maioria do segundo volume de suas cartas selecionadas,
que Aniella Jaffé editou com Gerhard Adler, são comumente tidas como
possuíndo suas mais sábias e mais humanas afirmações. Quantas dessas
foram, na verdade, trabalho de Aniella Jaffé?

Esse acordo mostra o nível inicial de confiança que Jung demonstrou por
Jaffé, permitindo-lhe "escrever em seu nome". Além do mais, isso nos
ajuda a compreender como Memórias foi composto. De início, Jung
confiou em sua habilidade de "assumir seu 'Eu' " e representá-lo para o
mundo externo.

Em sua introdução a Memórias, Aniella Jaffé afirma, "Jung leu todo o


manuscrito desse livro e aprovou-o."25 Portanto, é geralmente aceito que
Jung foi o derradeiro responsável por quaisquer omissões no texto.
Entretanto, de início, havia rumores de outra ordem de omissões. Essa
pergunta foi feita a Jaffé numa entrevista com Suzanne Wagner, ocorrida
em 1977:

Wagner: Ouvi que existiram partes de sua autobiografia que não foram permitidas
de serem publicadas - idéias sobre reincarnação, por exemplo.

Jaffé: Não, nós publicamos tudo que julguei que poderia ser publicado. O que
cortei foram partes do capítulo que ele escreveu sobre a África. Era, simplesmente,
muito longo. Tomaria o livro inteiro. Mas, discuti isso com ele e ele ficou muito
satisfeito.26

A única omissão significante no texto pareceria ser um grande relato das


viagens de Jung à África, o que poderia ser um continente perdido da
obra de Jung, que, conseqüentemente, nunca emergiu. Seja como for, o
que é crucial aqui é sua afirmação de que Jung aprovou as mudanças que
foram feitas.

Numa conversa, em 1988, com Michael Fordham, que foi a instigação de


minha pesquisa, ele falou de suas impressões a partir de um esboço inicial
de Memórias que ele havia lido. Declarou que os capítulos do esboço eram
muito diferentes e "mais exasperados" que os da versão publicada. Eu,
subseqüentemente, localizei um editorial datilografado em Countway
Library of Medecine , em Harvard; e não só encontrei capítulos inteiros
que não foram publicados - como um relato das viagens de Jung a
Londres e Paris, e um capítulo sobre William James - mas, também,
correções significativas em quase todas as páginas.27 Contactei, então,
Aniella Jaffé sobre meu projeto de pesquisa. Ela informou-me que nem
todo o material, sobre o qual o livro foi baseado, entrou no texto
publicado e que ela planejou usar alguns materiais posteriormente, mas
que a permissão foi negada pelos herdeiros de Jung.28 Ela informou-me
que as trasncrições das entrevistas estavam na Library of Congress, a
qual eu consultei subseqüentemente.29

Irei, primeiramente, lidar com traços principais dos textos. Embora o


manuscrito de Countway seja reconhecido como uma versão extensa do
texto publicado, o mesmo não se aplica às transcrições não-publicadas. A
própria Jaffé lida com a diferença entre os textos publicados e as
entrevistas reais. Alguns sustentaram que como ela era a secretária de
Jung, sua tarefa na compilação de Memórias, simplesmente, teria sido a
de anotar o relato de Jung. Essa afirmação a enfureceu, levando-a a a
revelar seu papel ativo no trabalho. Em uma carta, Jaffé relatou que seria
completamente ridículo afirmar, como muitos o fizeram, que Jung
meramente havia ditado para ela. Ela observou que Jung falava de
maneira semelhante à associação livre freudiana, sendo que tal modo de
falar não poderia ser publicado. Ela disse ter tido um trabalho imenso em
desembaraçar essas associações em uma narrativa coerente. Portanto, a
visão de que o texto foi simplesmente ditado representou um grande
elogio a seu trabalho.30

Essa afirmação revela sua parte ativa no texto; sugere que a estrutura
narrativa total do livro que foi tomada, não somente, como a quinta
essência da vida de Jung, mas como o exemplo do novo mito de
individuação que este último representou, foi amplamente uma
construção dela. Os próprios textos datilografados dão uma impressão
completamente diferente. Eles, freqüentemente, começam com Jaffé
fazendo perguntas específicas e Jung associando livremente em resposta,
não seguindo nenhum padrão cronológico. Em uma passagem do original
datilografado de Countway que foi omitido, Jung disse que as repetições
freqüentes no texto eram um aspecto de seu modo de pensamento
circular. Ele descreveu seu método como um novo modo de
peripatética.31 Isso sugere que em termos da estrutura narrativa, pelo
menos, algo de importância central para o auto-conhecimento de Jung
caíram no vazio.

Na versão publicada, a escassez de qualquer menção sobre as figuras da


vida de Jung é tomada, por alguns, como a marca de sua individuação ou
auto-realização e, por outros, como um sintoma de seu afastamento
quase-autístico do mundo, ou de um grau extremo de narcisismo.
Entretanto, nas páginas datilografas das entrevistas, há muitas passagens
de figuras, as mais variadas possíveis, como Adolf Hitler, Billy Graham,
Eugen Bleuler e Sabina Spielrein, para não mencionar uma longa
passagem sobre a misteriosa e sugestiva semelhança entre as irmãs de
Jung e a de Goethe. Primeiramente, tomarei uma dessas omissões como
um exemplo.

Muitos esperaram, com a respiração suspensa, sobre o caso extra-


conjugal vitalício de Jung com Toni Wolff; sim, as transcrições
continham material sobre esse caso. Laurens van der Post justifica sua
omissão dessa forma:

Ela [Toni Wolff] não é mencionada em Memórias de Jung e compreende-se a


omissão, em grande parte, porque o livro é um registro somente da quinta-
essência. As relações pessoais de Jung não são, deliberadamente, parte disso.32

Van der Post provê o seguinte relato do papel de Toni Wolff em sua vida:

Ela era a única pessoa capaz de entender, a partir de sua própria experiência e
transfiguração, o que Jung estava tomando sobre si. Nesse mundo do inconsciente,
o qual ele penetrou como homem, ela sempre suportou como mulher. Graças à
direção de Jung, ela re-emergiu, como uma personalidade ampliada e
reintegrada.33

Nesse sentido, ela desempenhou o papel de Beatriz na Vita Nuova de


Dante, que era o mito de Jung. Nas transcrições das entrevistas de Jaffé
com Jung, ele disse que no começo de sua [Wolff] análise, Toni Wolff
tinha fantasias incrivelmente selvagens e cósmicas, mas, porque ele estava
tão preocupado com suas próprias fantasias, era incapaz de cuidar delas.

Jung disse que encarou o problema do que fazer com Toni Wolff,
somente após o término de sua [Wolff] análise, apesar de se sentir
envolvido com ela. Um ano mais tarde, ele sonhou que estavam juntos nos
Alpes, num vale de rochas, onde ele ouviu elfos cantando numa
montanha, na qual ela desapareceu, o que o deixou temeroso. Depois
disso, ele entrou em contato com ela novamente, pois sabia que seria
inevitável e porque se sentia em perigo de vida. Em uma ocasião
posterior, enquanto nadava, ele sentiu cãibra; prometeu, então, que se
isso cedesse e ele sobrevivesse, sucumbiria ao relacionamento - no qual,
somente então, ele embarcou. Ele disse que infectou-a com sua
experiência, que era medonha e terrível; ela foi tragada pela mesma e
permaneceu igualmente impotente. Ele disse que tornou-se seu centro e
através de sua compreensão interna, ela encontrou seu centro (dela).
Contudo, ela necessitava muito que ele desempenhasse esse papel, o que
significou que ele não poderia ser ele mesmo e, então, ela se perdeu. Ele se
sentiu como se estivesse sendo rasgado e freqüentemente tinha que se
esforçar muito para manter-se coeso.
Nesse exemplo, pode-se, talvez, entender a omissão por razões de decoro,
mas isso não diz respeito, de forma alguma, às omissões seguintes. Para
contextualizá-las, colocarei algumas diferenças críticas entre a versão
publicada e o manuscrito de Countway. Em Memórias, a única seção que
foi nomeada individualmente foi sobre Freud, deixando a impressão de
que as duas figuras mais importantes da vida de Jung foram Freud e
Deus, o que deixou comentadores disputando qual das duas vinha
primeiro. Essa impressão é reforçada nas edições americanas e inglesas,
onde os apêndices sobre Théodore Flournoy e Heinrich Zimmer, que
apareciam na edição alemã, estão ausentes.34 Isso reforça a leitura
freudocêntrica sobre Jung, que até hoje tem sido a principal maneira
como Jung e o desenvolvimento da Psicologia Analítica foram
compreendidos.

O manuscrito de Countway apresenta uma organização radicalmente


diferente. Essa versão mostra vários arranjos de capítulos que alteram
consideravelmente a estrutura da narrativa. A seção seguinte ao capítulo
sobre Freud chama-se "Memórias. Flournoy - James - Keyserling -
Crichton Miller - Zimmer." Esse título está, então, riscado à mão e
mudado para "Théodore Flournoy e William James."35 Somente essas
variações no arranjo já mostram a contingência do arranjo em Memórias.
Além disso, nesse arranjo, os tributos a Flournoy e James se seguem
diretamente à seção sobre Freud.

No capítulo sobre Freud em Memórias, Jung diagnostica Freud como


sofrendo de uma neurose séria e afirma que seus seguidores não
compreenderam o significado da neurose de seu fundador. Para Jung, as
afirmações universais feitas pela psicologia de Freud são inválidas devido
a sua neurose. O capítulo que imediatamente se segue, apresenta o
heróico "Confronto com o inconsciente" de Jung e suas descobertas dos
arquétipos e, através da descoberta de seu próprio mito, um meio para "o
homem moderno encontrar sua alma". Memórias, promove o mito da
descida heróica e da auto-geração de Jung, depois dele ter se libertado
dos grilhões da psicologia freudiana (fundando uma psicologia enjeitada,
sem antecedentes, sem um modelo primeiro a ser seguido, somente "anti-
exemplos").

O manuscrito datilografado de Countway apresenta uma versão muito


diferente. Nas seções sobre Flournoy e James, que sucedem ao capítulo
sobre Freud, o problema de como poder-se-ia fundar uma psicologia não-
neurótica, na qual Jung atesta que Freud sucumbiu, já parece tendo sido
respondida afirmativamente antes de Freud, por Flournoy e James. Além
disso, Jung mostra a positividade da relação com mentor, através da qual
nenhuma quebra foi necessária. Jung credita sua significância em sua
ajuda a formular suas críticas a Freud e fornecer pressupostos
metodológicos para sua formulação de uma psicologia pós-freudiana.36

No capítulo sobre James, Jung fornece um relato sobre seu contato e


tenta demonstrar seu débito intelectual para com James. Jung recorda
que encontrou James em 1909 e lhe fêz uma visita no ano seguinte. Disse
que James foi uma das mais extraordinárias pessoas que ele conheceu.
Ele o achou aristocrático, a imagem de um cavalheiro, embora sem
ostentação e atrativos. Ele conversou com Jung sem se mostrar superior;
Jung achou que eles travaram uma relação excelente. Ele sentiu que era
apenas com Flournoy e James que poderia falar tão facilmente, que ele
reverenciava a memória de James e que era um modelo para ele. Achou-
os ambos receptivos e cuidadosos com suas dúvidas e dificuldades, o que
ele nunca encontrou novamente. Ele prezava a abertura e visão de James,
a qual era, particularmente, marcante em sua pesquisa psíquica, que
discutiram em detalhes, da mesma forma que suas sessões com a médium
Sra. Piper. Ele viu o significado de longo alcance das pesquisas psíquicas
como meio de acesso à psicologia do inconsciente. Jung disse que tinha
sido muito influenciado pelo trabalho de James sobre a psicologia da
religião, que também tornou-se para ele um modelo, em particular, pelo
modo como conseguia aceitar e deixar intacta a religião, sem forçá-las
num preconceito teórico.

Essas duas omissões dizem respeito, em larga escala, à supressões de


várias figuras críticas na vida de Jung. A terceira omissão consiste,
simplesmente, em um pequeno detalhe, ainda que suas implicações para a
compreensão da gênese do pensamento de Jung seja, talvez, não menos
significativo. Numa passagem em Memórias que atraiu muita atenção,
Jung descreve sua experiência de ouvir a voz de uma paciente falando
com ele, informando-o que suas atividades eram, de fato, arte e a qual ele
batizou, famosamente, como a voz da anima. Depois da publicação
de Uma Secreta Simetria de Aldo Carotenuto, presume-se, geralmente,
que essa paciente não era outra senão Sabina Spielrein.

O argumento mais extenso sobre isso ocorre em Um Método Muito


Perigoso, de John Kerr, onde forma uma parte crucial da tese de que as
mais importantes influências intelectual e emocional sobre Jung foram
Freud e Spielrein. Kerr afirma: "A primeira menção da 'anima' a
ocorrer nos escritos de Jung veio em seu volume Tipos Psicológicos, de
1920."37 (Entretanto, como notificado anteriormente pelos editores das
obras completas, Jung já tratou da anima em "A Estrutura do
Inconsciente"38, de 1916 e Tipos Psicológicos foi publicado realmente em
1921). Kerr afirma que Jung "imortalizou" Spielrein sob o nome de
anima, argumentando que os dois indícios, dados por Jung, sobre a
identidade da mulher - que ele se correspondia com ela e que rompeu
coma mesma entre 1918-19, apontam a Spielrein. Entretanto nas
transcrições, onde ele realmente chama Spielrein pelo nome, Jung
simplesmente insinua que perdeu contato com ela quando ela foi para a
Rússia. Kerr afirma que: "Talvez a maior pista ... seja o debate sobre
ciência versus arte."39 Entretanto, para fazer com que essa última pista
aponte para Spielrein, Kerr afirma, sem nenhum suporte textual, que a
voz teria dito realmente, "Não é ciência. É poesia."40 A suposição de
Kerr que a voz era de Spielrein leva-o a "corrigir" o registro histórico de
forma a apoiar sua reivindicação, formando um argumento circular.
Kerr também afirma que a pedra talhada por Jung, em Bollingen, de um
urso rolando uma bola, representa Spielrein e conclui que "a 'anima' de
Jung, 'aquela que deve ser obedecida', acabou sua carreira como uma
freudiana"41, daí substancializando sua leitura freudocêntrica da gênese
da psicologia de Jung. Entretanto, há razões para afirmar que a pedra
talhada não representa Spielrein. Roger Payne diz que "Franz [Jung]
disse que o urso freqüentemente discutido, que 'põe a bola para rolar' em
seu entalhe de Bollingen era realmente Emma [Jung]."42

Nas transcrições, Jung acrescenta um pequeno, mas, decisivo detalhe -


que a mulher em questão era holandesa. A única holandesa no círculo de
Jung à essa época era Maria Moltzer.43 A proximidade de sua relação
com Jung foi confirmada por Freud. Em 23 de dezembro de 1912, em
resposta à carta de Jung de 18 de dezembro, na qual afirma ter sido
analisado, e portanto não seria neurótico, diferente de Freud que não o
foi,44 Freud escreveu a Ferenczi: "O mestre quem o analisou somente
poderia ser Fräulein Moltzer e ele está tão tolo quanto orgulhoso, quanto
ao trabalho de uma mulher com quem está tendo um caso."45 A
afirmação de Freud é comprovada por Jolande Jacobi, que afirma em
uma entrevista: "Ouvi de outras pessoas que, antes dele encontrar Toni
Wolff, ele teve um caso de amor lá, em Burgholzli, com uma jovem - qual
era seu nome? Moltzer."46 Em uma carta não publicada de 1º de agosto
de 1918, Moltzer escreveu a Fanny Bowditch Katz, que foi sua paciente,

Sim, eu renunciei ao Clube. Eu não poderia mais viver naquela atmosfera. Estou
feliz por ter feito isso. Acho, que daqui a algum tempo, quando realmente tornar-
se algo, o Clube sentir-se-á agradecido por eu ter feito isso. Minha renúncia teve
efeitos silenciosos. Silenciosos, pois parece que, isso pertence ao meu caminho, eu
não terei reconhecimento ou apreciação abertamente pelo que fiz para o
desenvolvimento do movimento analítico como um todo. Eu sempre trabalhei no
escuro e sozinha. Esse é o meu destino e assim deve ser esperado.47

Jung, em seguida, fez um agradecimento a ela, embutido em uma nota de


rodapé, nos Tipos Psicológicos, onde afirma: "O crédito por ter
descoberto a existência desse tipo [o intuitivo] pertence a Srta. M.
Moltzer."48 Dado que Jung via a si próprio como sendo desse tipo, tal
confirmação está dada. Tomadas em conjunto, eu poderia supor que a
voz ter sido de Moltzer é, significativamente, mais forte do que ter sido de
Spielrein.

No presente momento, não fica claro quem foi o responsável por essa
omissão específica.49 Entretanto, pode-se contrapor que se Jung aprovou
as mudanças, como Jaffé nos leva a acreditar, essas questões não seriam
de grande importância. Um esclarecimento crucial da atitude de Jung
para com o texto foi emitido num memorandum não publicado, escrito
por Richard Hull, intitulado "Uma lembrança de Eventos precedentes à
Publicação da Autobiografia de Jung, como vistas por R. F. C. Hull".
Hull narra que, em fevereiro de 1960, Jaffé informou-o que Jung
desejava vê-lo até o final do mês. Hull escreve:

O velho homem apareceu ... disse que queria conversar e falou solidamente por
mais de uma hora sobre a autobiografia. Eu concluí que havia controvérsias sobre
a "autenticidade" do texto. (Até esse momento, não o tinha vista ainda) Ele
afirmou, com a maior ênfase, que tinha dito o que queria dizer em sua própria
maneira - um pouco rude e cru algumas vezes - e que ele não queria que seu
trabalho fosse tantifiziert ("titiazado" ou "velhificado" [N.T.: os termos em inglês
são: 'auntified' e 'oldmaidified' que parecem significar uma modificação tal qual
fosse feita por uma tia ou por uma velha dama] na feliz expressão de Jack). "Você
verá o que quero dizer quando apanhar o texto", ele disse. Falou extensamente
sobre a prática de "ghost-writing" pelo editores americanos. Inferi que o
"Tantifierung" poderia ser feito por Kurt. Em seguida, perguntei a Jung se
poderia ter a autorização de "des-velhificar" o texto entregue, a mim, por Kurt.
"Em todo caso", ele disse, "os canhões entrarão em ação", apontando-se a si
próprio. Achei tudo isso um tanto complicado, porque Kurt tinha dito
anteriormente que, especialmente nos três primeiros capítulos, o impacto
encontrava-se precisamente no tom altamente pessoal e falado de maneira não-
ortodóxica, que deveria ser preservado a todo custo.50

Hull, então, leu o texto e começou a rever a tradução. Ele recorda:

Tornou-se claro que as alterações eram todas de um tipo que abrandavam e


"velhificavam" o texto original escrito por Jung. Como algumas passagens
excluídas pareciam-me extremamente importantes para uma compreensão
adequada da narrativa subseqüente, restaurei-as da versão de Winston, junto com
um número de referências críticas a família de Jung e alguns comentários que não
poderiam chocar a ninguém, exceto à burguesia suíça, incluindo um uso altamente
dramático da palavra "merda". Suspeitei que a "tia" foi encontrada não no Hotel
Esplanade em Locarno, mas perto da casa em Kusnacht, e que era Aniela Jaffé.51

Parece que antes de que Jung, o "canhão", pudesse entrar em ação, ele
morreu. Depois de sua morte, Hull associou-se diretamente a Jaffé. Com
referência à exclusão proposta, ele escreve:

Poderia chamar de exclusão - e escolhi minha palavra cuidadosamente - censura,


uma coisa que Jung teria desgostado e detestado... Quatro vezes você disse não ser
capaz de ser objetiva. Em um caso de vital importância, cara sra. Jaffé, é seu dever
recuperar sua objetividade: foi em suas mãos e de ninguém mais que Jung confiou
a responsabilidade pela versão final de seu testemunho de vida... Você imagina que
se a Pantheon fosse obrigada a lançar uma edição expurgada, toda essa evidência
explosiva iria acabar inutilmente? ... Todos meus argumentos enfraquecem e
diminuem em comparação a um pensamento dominante: por que o velho homem
se deu ao trabalho de vir me ver e falar tão ardentemente sobre o livro, e por que
ele o confiou às suas mãos? Devo deixá-la encontrar a resposta.52

Entretanto, o próprio Hull foi reticente o quanto ele estaria disposto em


"des-tititizar" o texto. Em uma seção, Jung diagnosticou sua mãe como
histérica. Isso foi omitido. Em uma carta a Gerald Gross, Hull escreve:

Aniela escreveu que a Sra. Niehus insitiria em sua remoção. E esta era a condição
da Sra. N. para a confiança final de Aniela ... Sentiu que seria um disparate
antagonizá-la para lutar pela palavra "histérica"; para ser franco, não estou
disposto a arriscar minhas relações com ela, em prol de um futuro trabalho, por
sua causa. Sugeri, por isso, a palavra "nervosa" como um compromisso, e Aniela,
gratamente, aceitou-a. Ao mesmo tempo assinalei, novamente, que essa pequena
censura familiar provavelmente apareceria no final...53

O significado dessas mudanças é que elas dizem respeito ao manuscrito


de seções de Memórias que Jung realmente escreveu - e que foram a base
de um caminho sem fim de psicobiografias.

A questão final é aquela de relacionar o livro como uma autobiografia de


Jung. Hull esclarece o significado dessa questão:

... Há toda diferença do mundo entre um livro chamado "A Autobiografia de C. G.


Jung" e um livro de memórias de Jung, editado por Aniela Jaffé (de quem poucos
ouviram falar). Um é automaticamente bestseller, o outro não.54

Como poder-se-ia esperar, a editora inglesa de Jung, a Routledge,


claramente quis publicar o livro. Em uma carta de 18 de dezembro de
1959, Cecil Franklin escreveu para Jung:

Creio que a história desse livro é que ele começou como um trabalho de Aniela
Jaffé, que ela poderia ter escrito com sua ajuda próxima; mas ele cresceu para
além disso e tornou-se, de fato, sua autobiografia ... Examinamos nosso acordo de
1947 e achamos que se isso é sua autobiografia ... os direitos de publicação seriam
nossos ... Nós aguardamos para quando possamos publicar sua autobiografia... Iria
preocupar-nos muito e poderia abalar nossa reputação sermos considerados os
editores somente de seus livros estritamente técnicos...55

Entretanto, Jung nunca viu o livro como sua autobiografia. Em 5 de abril


de 1960, escreveu para Walter Niehus-Jung, seu genro e testamenteiro
literário:
Quero agradecê-lo por seus esforços em nome de minha então chamada
"Autobiografia" e confirmar uma vez mais que não considero esse livro como meu
empreendimento, mas expressamente como um livro que Frau A. Jaffé escreveu...
O livro poderia ser publicado com seu nome e não com o meu, uma vez que ele não
representa uma autobiografia composta por mim.56

Em 25 de maio de 1960, Herbert Read escreveu a John Barret sobre o


livro:

Agora parece que ele terá um título como:

Aniela Jaffé

"Reminiscências, Sonhos, Pensamentos"

Com contribuição de C. G. Jung.57

Seguindo essas negociações, uma resolução da Comitê Editorial das


Obras Completas de Jung foi redigida, permitindo que o livro fosse
publicado fora dos contratos exclusivos com a Bollingen Foundation e a
Routledge & Kegan Paul. Ela contém a seguinte afirmação:

C. G. Jung sempre afirmou que não considerava esse livro como um


empreendimento próprio, mas expressamente como um livro escrito pela Sra.
Jaffé. Os capítulos escritos por Jung eram para ser considerados como sua
contribuição ao trabalho da sra. Jaffé. O livro seria publicado em nome da sra.
Jaffé e não no nome de C. G. Jung, por que ele não representava uma
autobiografia composta por C. G. Jung (carta de C. G. Jung a Walter Niehus
datada de 5 de abril de 1960).

Em uma conversa realizada em 26 de agosto entre Prof. C. G. Jung, sr. John


Barret, srta. Vaun Gillmor, sr. Herbert Read, sr e sra. W. Niehus-Jung e sra.
Aniela Jaffé, C. G. Jung confirmou novamente que ele considerava estritamente
esse livro como um empreendimento da sra. A. Jaffé, ao qual ele somente deu
algumas contribuições... O Comitê Editorial decide pelo presente formalmente que
não aprovará qualquer decisão do Subcomitê Executivo que gostaria de adicionar
o livro da sra. A. Jaffé às Obras Completas.58

Daí, parece que era precondição para a realização contratual do livro que
o mesmo aparecesse como uma biografia de Jung, feita por Aniela Jaffé e
não como a autobiografia de Jung. Em julho de 1960, Kurt Wolff
demitiu-se da Pantheon, a qual foi comprada imediatamente pela
Random House. Em 6 de junho de 1961 Jung morreu. No ano seguinte,
extratos de Memórias apareceram em Die Weltwoche e na Atlantic
Monthly. O primeiro extrato em Die Weltwoche era intitulado
simplesmente "A autobiografia de C. G. Jung". O livro mesmo apareceu
em 1962, em alemão e inglês. Em outubro desse ano, Kurt Wolff morreu
num acidente de carro. Uma edição francesa apareceu em 1966
intitulada, Minha Vida: Memórias, Sonho e Pensamentos.59

O que era, realmente, uma biografia extraordinária, foi lida,


erroneamente, como uma autobiografia. Desafortunadamente, parece que
quando ativeram-se ao significado da confissão da "equação pessoal" de
Jung, seus esforços estavam em parte direcionados para determinar a
forma que ela deveria ter, quais memórias e sonhos omitir - modelando
Jung em seus próprios gostos, fazendo-o o portador de seus "mitos
pessoais". Agora poderia ser o tempo de des-titiazar?

1 Agradeço a Michael Whan por esse título.

2 Richard Hull para John Barret, 4 de maio de 1960, Bollingen Archive,


Library of Congress. A carta de Hull foi citada com a permissão da sra.
Birte-Lena Hull.

3Gerhard Adler, "The Memoirs of C. G. Jung", The Listener, 18 de julho


de 1963, 85.

4 Barbara Hannah, Jung: His Life and Work, A Biographical


Memoir (London: Michael Joseph, 1976), 7.

5 Ibid., 8.

6 Jung, "Freud and Jung: Contrasts", CW 4, 336.

7 Jung, Analytical Psychology: Notes of the Seminar gives im 1925,


CW volume suplementar.

8 Ibid., 32-3

9 Henri Flournoy para Jung, 8 de fevereiro de 1953, Jung Archives, E. T.


H., Zürich.

10 Jung para Henri Flournoy, C. G. Jung Letters, vol.2: 1951-61, ed.


Gerhard Adler e Aniela Jaffé (London: Routledge & Kegan Paul, 1976),
106, tradução modificada. Em uma nota dedicada a uma coleção de seus
trabalhos não publicados por Jürg Fierz, Jung simplesmente escreveu:
"Eu próprio tenho aversão por autobiografia". 21 de dezembro de
1945, C. G. Jung Letters, vol. 1: 1906-50 (London: Routledge &Kegan
Paul, 1973, 404.
11 Jung para Gustave Steiner, 30 de dezembro de 1957, C. G. Jung
Letters, vol. 2, 406, tradução modificada

12 Jung para J. M. Thorburn, 6 de fevereiro de 1952, C. G. Jung Letters,


vol. 2: 1951-61, 38-39.

13 Kurt Wolff, "On Luring Away Authors, or How Authors and


Publishers Part Company", Kurt Wolff: A Portrait in Essays and Letters,
ed. M. Ermarth (Chicago, University of Chicago Press, 1991), 21.

14 Richard Hull, "A record of events precending the publication of


Jung's auto-biography, as seen by R. F. C. Hull", 27 de julho de 1960,
Bollingen Archive, Library of Congress. Citado com permissão da sra.
Birte-Lena Hull. Em sua introdução para Memórias, Aniela Jaffé afirma
que foi Jolande Jacobi quem sugeriu esse papel para ela. A analogia
Eckermann-Goethe não estava perdida em Jung; em uma carta para
Kurt Wolff, ele escreveu, "Que Deus me ajude, quando li Conversações
de Eckermann até Goethe pareceu-me um empertigado peru" Jung para
Kurt Wolff, 1º de fevereiro de 1958, C. G. Jung Letters, vol. 2, 453.

15 Kurt Wolff para Herbert Read, 27 de outubro de 1959, Bollingen


Archive, Library of Congress.

16 C. G. Jung, Memories, Dreams, Reflections (London: Flamingo, 1983),


7.

17 Henri Ellenberger, "La Psychologie de Carl Gustav Jung: à propos de


son autobiographie", L'Union Médicale du Canada, vol. 93, agosto de
1964, 993, tradução minha.

18 Aniela Jaffé, From the Life and Work of C. G. Jung (Einsiedeln:


Daimon 1989), 133.

19 O primeiro a fazer essas analogias foi Arthur Calder-Marshall em seu


estudo, "Jung: the Saint of Psychology", Time and Tide, 11-17 de julho de
1963, em que ele afirma: Esse volume ... está destinado a ser um clássico
como Confessions de Rousseau". 24.

20 Kathleen Raine, "A Sent Man", The Listener, 22 de agosto de 1962,


284.

21 Hans Eysenck, "Patriarch of the Psyche", The Spectador, 19 de julho


1963, 86.

22 Edward Edinger, The Creation of Counsciousness: Jung's Myth for


Modern Man (Toronto: Inner City Books, 1984), 12-13.
23 Aniela Jaffé, "Interview with Gene Nameche", Jung Oral History
Archive, Countway Library of Medecine, Harvard Medical Library,
Boston, 11.

24 Ibid.

25 Jung, Memories, Dreams, Reflections, 9.

26 Suzanne Wagner, "Remembering Jung: Through the Eyes of Aniela


Jaffé", Psychological Perspectives, vol. 26, 1992, 109.

27 Dr. Richard Wolff, a quem gostaria de agradecer por facilitar minha


pesquisa, informou-me que um dos editores, envolvidos na publicação,
vendeu-o a um livreiro. Foi, então, comprado pelo Dr. James Cheatham e
doado a Harvard Medical Library em maio de 1979. Possuía correções
feitas por várias mãos, algumas das quais foram identificadas por Alan
Elms: Gerald Gross, Aniela Jaffé (através de Richard Winston), Richard
Hull, Wolfgang Sauerlander, Richard Winston, junto com notas
rotuladas "CGJ", mas não pela caligrafia de Jung.

28 Aniela Jaffé para o autor, carta datada de janeiro de 1991. Todas as


afirmações de suas cartas e dos manuscritos, esboços e transcrições foram
dados em paráfrase, pois a permissão para citá-las não foi concedida pelo
testamentário literário de Jaffé.

29 As transcrições, junto a alguma correspondência sobre seu destino,


foram restringidas oficialmente até 1993. Agradeço a William McGuire e
a Princenton University Press por me permitirem consultá-las durante a
Páscoa de 1991.

30 Aniela Jaffé para William McGuire, 1981, Bollingen Archive, Library


of Congress

31 Countway ms., 1.

32 Laurens van der Post, Jung and the Story of Our Time (London:
Penguin, 1976), 172.

33 Ibd., 176.

34 Tributo de Jung a Flournoy foi publicado em inglês em Theodore


Flournoy, From India to the Planet Mars: A Case of Multiple Personality
with Imaginary Languages, ed. Sonu Shamdasani (Princenton: Princenton
UP, 1994). O tributo de Jung para Flournoy e Zimmer também foi
publicado na edição francesa de Memórias.
35 Countway ms., 197.

36 Quanto à relação de Jung com William James ver Eugene Taylor,


"William James and Jung", Spring, 1980. Quanto a uma crítica
complementar da leitura freudocêntrica de Jung, ver seu "Jung in His
Intellectual Setting: The Swedenborgian Connection", Studia
Swedenborgiana, vol. 7, 1991.

37 John Kerr, A Most Dangerous Method: The Story of Jung, Freud and
Sabina Spielrein (New York: Knopf, 1993), 503. É curioso que Kerr não
se deteve na história do caso de Spielrein, apesar do fato de já ser de
domínio público desde 1992 em "Sabina Spielrein: Jung Patietin am
Burghoelzli" de Bernard Minder (dissertação de doutorado, University of
Bern, 1992). Agradeço a Hans Israëls por alertar-me para isso e fornecer-
me uma cópia. Desnecessário dizer que esse material, junto à
correspondência entre Bleuler, Jung e a família de Spielrein, que Minder
recuperou, ocasionou uma completa reavaliação do relacionamento de
Jung-Spielrein. O rascunho da carta de referência de Jung para Freud
sobre Spielrein em 1905 que Minder recuperou (Jung an Freud 1905: Ein
Bericht über Sabina Spielrein, Gesnarus, vol. 50, 1993), confirma a
recosntrução de Peter Swales em "What Jung Didn't Say", Harvest:
Journal for Junguian Studies, vol. 38.

38 CW 7, 295,n. 21

39 Op. Cit., 506.

40 Cit., 507.

41 Ibid.

42 Roger Payne, "A Visit to 228 Seestrasse", Harvest, vol. 39, 1993, 137

43 William McGuire forneceu as seguintes informações biográficas sobre


Moltzer: "Mary ou Maria Moltzer (1874 - 1944), filha de um destilador
holandês, tornou-se enfermeira como um protesto contra o abuso do
álcool. Fez análise didática com Jung e depois de 1913 continuou como
psicóloga analítica". The Freud/Jung Letters, ed. William McGuire
(London: Hogarth/Routledge, 1974), 351-2. Para o papel de Moltzer como
assistente de Jung, ver Eugene Taylor, "C. G. Jung and the Boston
Psychopathologists, 1902-12", Voices, vol. 21, 1985.

44 Ibid., 535
45 The Correspondence of Sigmund Freud and Sándor Ferenczi, eds. E.
Brabant, E. Falzeder & P. Giampiere-Deutsch, vol, 1, 1908-14
(Cambridge: Harvard UP, 1993), 446.

46 Jolande Jacobi, entrevista com Gene Nameche, Jung Oral History


Archive, box 3, 110, Countway Library of Medecine, Harvard Medical
Library, Boston.

47 Maria Moltzer para Fanny Bowditch Katz, 1º de agosto de 1918,


Countway Library of Medecine, Harvard Medical Library, Boston,
citada com permissão

48 CW 6, 454.

49 Esse tema foi excelentemente explorado em Alan Elms, "The


Auntification of Jung", em One Life at a Time: Explorations in
Psychobiography (forthcoming, Oxford UP), que complementa a
discussão aqui.

50 Hull, "A record of events", 1-2.

51 Ibid., 2.

52 Richard Hull para Aniela Jaffé, 9 de setembro de 1961, Bollingen


Archive, Library of Congress.

53 Richard Hull para Gerald Gross, Bollingen Archive, Library of


Congress.

54 Hull, "A record of events", 4.

55 Cecil Franklin para C. G. Jung, 19 de dezembro de 1959, Bollingen


Archive, Library of Congress.

56 Jung para Walther Niehus-Jung, 5 de abril de 1960, C. G. Jung Letters,


vol. 2, 550, tradução modificada.

57 Herbert Read para John Barrett, 25 de maio de 1960, Bollingen


Archive, Library of Congress.

58 "Resolution of Editorial Commitee for 'The Collected Works' of Prof.


C. G. Jung", Bollingen Archive, Library of Congress, assinada por Jung
em 29 de novembro de 1960 e por John Barrett em 13 de dezembro de
1960.
59 "Die Autobiographie von C. G. Jung" Die Weltwoche, 31 de agosto de
1962. O título alemão difere do inglês: Erinnernungen, Träume, Gedanken
von C. G. Jung, aufgezeichnet und herausgegeben von [recolhida e
editada por] Aniela Jaffé (Olten: Walter Verlag, 1988). Outros ítens na
edição alemã que desapareceram nas edições inglesas foram uma carta de
Jung a um "jovem estudante", o posfácio de seu Livro Vermelho, e
"Detalhes sobre a Família de C. G. Jung" por Aniela Jaffé. O último ítem
foi publicado em inglês na Spring 1984. Há muitas discrepâncias entre a
edição alemã e a inglesa, notadamente numerosas passagens da primeira
que desapareceram na edição inglesa. Algumas, mas não quer dizer
todas, foram publicadas em inglês por Shoji Muramoto, "Completing the
Memories: The Passages Omitted or Transposed in The English and
Japanese Versions of Jung's Autobiography", Spring, 1987. Entretanto,
uma vez que o texto foi traduzido para o inglês como foi compilado, não é
possível considerar uma ou outra como a versão original. A edição
francesa era Ma vie. Souvenirs, rêves, pensées, recueilles et publiés par
[recolhidos e publicados por] Aniela Jaffé (Paris: Gallimard, 1966),
traduit par [traduzido por] Roland Cahen et Yves Le Lay. Detalhes sobre
Kurt Wolff vieram de William McGuire, Bollingen: An Adventure in
Collecting the Past (Princeton: Princeton UP, 1982), 273-4. Agradeço a
Charles Boer por chamar minha atenção para isso.

Sonu Shamdasani vive em Londres e é o editor de From India to the


Planet Mars, de Théodore Flournoy (Princeton University Press, 1994) e
co-editor de Speculations after Freud: Psychoanalysis, Philosophy,
Culture (Routledge).

Tradução: Marta Chagas

SOBRE AS CATEGORIAS UNIVERSAIS

Relevantes aspectos observados na Igreja Universal do Reino de


Deus1:

Paulo Bonfatti2
Até algum tempo atrás, a maioria do meio acadêmico acreditava que, com o avançar das
ciências, das tecnologias e do conhecimento, seria uma tendência natural do ser humano
um afastamento ou uma libertação paulatina das religiões. Contudo, o que se tem observado,
na contra-mão de uma maior racionalidade muitas vezes religiosamente idealizada por este
meio, é que as expressões e vivências religiosas estão cada vez mais presentes no cotidiano
das pessoas. Causa certo espanto que ainda neste final de milênio, como que as religiões que
pareciam estar nos seus últimos suspiros, estão se ejactando numa profusão de novas
expressões, rearticulações, denominações e matizes.
Sem muito esforço, podemos observar como esta realidade tem se demonstrado cada vez
mais evidente no campo religioso brasileiro, após uma aparente hegemonia católica. Dentro
das muitas mudanças que vem ocorrendo neste campo, a que talvez venha chamando mais
atenção dos estudiosos e da mídia, seria o surgimento das novas denominações de origem
protestante - as igrejas evangélicas. Assim sendo, em um tempo historicamente curto, o Brasil
que sustentava um título de maior país católico do mundo ganha um outro, o de segundo maior
país protestante, ficando apenas atrás dos Estados Unidos.

Dentro deste contexto, as mudanças que vem ocorrendo no campo religioso brasileiro tem sido
tão rápidas que podemos nos lembrar que até há alguns anos atrás, o revelar-se evangélico
era se expor a ser visto como alguém um tanto alienígena, distante da sociedade, ou seja, algo
bastante pejorativo. Os crentes, como eram todos confundidos e chamados, estavam quase
sempre sendo associados aos estereótipos de homens vestidos de terno, com uma Bíblia
debaixo do braço, e de mulheres com saias abaixo do joelho e cabelos compridos. Eram vistos
sempre distantes e arredios ao mundo e às outras pessoas de fora de suas igrejas.

Com o tempo esta visão veio se modificando pois, ser evangélico hoje tem tido uma conotação
bem diferente. Atualmente, não há mais a discrição ou timidez em revelar-se, ao contrário, os
evangélicos não têm se apresentado nada discretos ou tímidos e vêm crescendo e se
assumindo a cada dia e cada vez mais.

Tempos atrás, as denominações evangélicas especificamente pentecostais, que estão no


momento em maior evidência ainda no cenário brasileiro, tinham seus membros vistos
como coitados manipulados, pobres e ignorantes. Hoje já começam a ser vistos de forma
diferente: são tidos como argutos, concorrentes e empreendedores não só no mercado
religioso como também no mercado financeiro (FRESTON, 1994:143). Além disso, crescem a
olhos vistos o número de templos e de denominações. Seus membros já não se escondem
mais, seus templos estão por todas as partes, em lugares destacados, onde outrora eram
antigos e amplos cinemas e casas de espetáculos ou então são simplesmente construídos em
pouquíssimo tempo. Eles estão nas ruas, realizando passeatas e anunciando Jesus Cristo, em
diversos locais públicos ou em ginásios e estádios lotados.

Mesmo assim, se evitarmos ou tentarmos ignorar sua presença eles reaparecem em nossas
casas em programas de rádios ou de Tv's. Estão no dia-a-dia do cenário brasileiro e em
atividades não necessariamente religiosas, competindo com êxito neste mundo externo. Estão
na cultura, na política3, nas favelas, na mídia, no mundo virtual da internet com páginas
pessoais e institucionais, nas empresas, nos presídios, nos bairros centrais, nos distantes e
nos marginalizados.

Ora, o movimento evangélico, e diferenciadamente sua vertente pentecostal, já vem há muitos


anos crescendo às sombras da sociedade e do meio acadêmico brasileiros (FRESTON,
1994:67). Lamentavelmente, foi tratado de início por muitos e ainda o é, por alguns, com um
certo preconceito ou menosprezo. Felizmente, esta postura vem se revertendo entre os
especialistas, que já vêm tratando este fenômeno com uma atenção merecida.

Para se ter idéia da importância do fenômeno do crescimento dos evangélicos, segundo a


pesquisa Novo Nascimento4, estima-se que cem mil pessoas por ano se tornam evangélicas na
região metropolitana do Rio de Janeiro. Anteriormente, o Censo Institucional Evangélico na
Região do Rio de Janeiro (CIN-1992)5, mostrou o crescimento destas igrejas, cuja maioria era
pentecostal, revelando um dado marcante: a média de uma igreja sendo aberta por dia útil.

Esta maioria evangélica pentecostal, com traços semelhantes à Renovação Carismática


Católica (ORO, 1996:117), revive a passagem bíblica de Atos 2,1-13 e têm como referência
central o evento de pentecostes, em que os Apóstolos receberam, com a descida do Espírito
Santo, os dons de falar em línguas estranhas, os do exorcismo e os da cura. São exatamente
estes dons que geralmente são experienciados dentro das igrejas pentecostais por seus
membros.
Dentro deste contexto de efervescência evangélica pentecostal, sem sombra de dúvidas se
destaca a Igreja Universal do Reino de Deus - a IURD. Ela tem sido na atualidade, entre muitas
igrejas surgidas, a expoente máxima de um tipo de pentecostalismo que se distingue do tipo já
vigente no Brasil. Por isso, justamente para fazer distinção desta nova forma de
pentecostalismo, o termo pentecostal não tem sido o que os autores vêm utilizando por ser
considerado genérico demais. Porém, longe de um consenso, há uma tensão entre os
estudiosos na tentativa de tipologizar o pentecostalismo brasileiro. Há grande diversificação
quanto à maneira de considerar esta questão, principalmente, no que diz respeito a
estas novas igrejas evangélicas pentecostais e também no que as diferenciaria das demais. As
novas igrejas, como a IURD, têm sido classificadas pelos pesquisadores de pequenas
seitas,cura divina, pentecostais autônomas, igrejas da terceira onda, neopentecostais e pós-
pentecostais. Adotaremos aqui a classificação de neopentecostal por entendermos ser a que
melhor contempla este movimento pentecostal6.

Neste contexto, tem sido impossível falar de neopentecostalismo no Brasil sem falar na IURD,
pois os pesquisadores não conseguem deixar de se espantar com o seu rápido crescimento,
que surgiu a partir de uma sala de uma ex-funerária no bairro da Abolição, na cidade do Rio de
Janeiro, no ano de 1977.

Não se sabe ao certo o seu número de fiéis e nem de templos, principalmente devido ao fato
de se multiplicarem a cada dia. Segundo Ricardo Mariano (MARIANO, 1996:125), o número de
templos da IURD passa de dois mil, o de países com seu trabalho missionário ultrapassa o
número de cinqüenta7 e o de fiéis alcança três milhões 8.

Para aumentar o número de fiéis, a IURD investe pesadamente na disputa por territórios do
campo religioso brasileiro. Em sua concepção, entende que não há territórios cativos ou
demarcados e com isso, vem conseguindo se indispor com grandes e tradicionais instituições
brasileiras, formadoras de opinião, como a Igreja Católica e a Rede Globo.

A indisposição com a Igreja Católica provém de motivos que variam do famoso episódio
do chute da santa9 por um Bispo num programa de TV da IURD até a nítida preocupação com
a perda de fiéis para esta e outras igrejas evangélicas (ORO, 1996:92-119) (SANCHIS,
1994:34-63) (ANTONIAZZI,1994:17-23). Já com a Rede Globo, vem da preocupação desta de
se ver ameaçada e de ter que disputar a sua audiência com a TV Record, de propriedade da
IURD. Como se não bastasse, a IURD vem se confrontando com a Associação Evangélica
Brasileira (AEvB), que aponta na sua forma de atuação "elementos radicalmente contrários à fé
evangélica e ao melhor da herança bíblica da igreja protestante e pentecostal". Além disso, a
AEvB diz que existem "imensas e irreconciliáveis diferenças entre as práticas da maioria dos
evangélicos e a IURD"10.

Como se não bastasse todas estas indisposições, a IURD e/ou o Bispo11 Macedo, seu líder
forte e carismático (aspecto comum nas igrejas neopentecostais), foram alvos de diversas
acusações e aberturas de processos criminais ligados aos seguintes crimes: estelionato,
curandeirismo, charlatanismo, vilipêndio ao culto religioso, incitação ao crime, sonegação fiscal,
crime contra o sistema financeiro, remessa ilegal de ouro para o exterior e apropriação indébita
(BARROS, 1995:32-33) (OLIVA, 1995:154-157) (JUNGBLUT, 1992:46). Macedo já chegou até
a ficar preso por doze dias após um decreto de sua prisão preventiva. Contudo, de forma
inversa ao que a lógica do senso comum esperava, nada disso afetou ou afeta profundamente
a IURD. Ao contrário, ela continua crescendo a passos largos e confirmando uma outra lógica,
a lógica do Bispo Macedo, que diz que a IURD é como uma "igreja omelete", que "quanto mais
batem nela mais ela cresce".

A IURD cresce, instiga, assusta e não comporta análises unilaterais. Atualmente, é a maior
igreja neopentecostal do Brasil e não se encontra nenhum paralelo histórico de qualquer outra
denominação protestante brasileira (MARIANO, 1995:41). Seu estigma tem se mostrado tão
forte que, hoje, quando se conversa com leigos sobre evangélicos, pentecostalismo ou
neopentecostalismo, sempre se tende a associá-los à IURD, que virou quase que uma marca
registrada. O seu pouco tempo de existência não impediu sua crescente visibilidade,
representando um papel que já faz parte do cenário brasileiro. Assim sendo, é difícil nunca ter
se ouvido falar nela, tenha sido contraou a favor.

Muito mais significativo do que isso é o fato de muitas pessoas estarem buscando e
construindo um sentido para suas vidas em seus cultos e na sua forma de ver o mundo. Ou
seja, a IURD cresce porque uma multidão vem encontrando dentro dela algo que não tem
encontrado em outros lugares. Não se pode esconder ou apoiar-se em discursos prontos e em
análises que partem sempre de referenciais monolíticos, porque o fenômeno é completamente
novo. Dificilmente uma igreja evangélica chegou a um lugar de destaque como esse... Mídia?
Pode ser que sim, mas seria só isso? Quantos formadores de opinião já estiveram e estão na
mídia, utilizando-se dela de forma similar e não conseguiram o que a IURD tem conseguido?
Querendo ou não, a IURD ajuda a construir um sentido que vem norteando profundamente as
pessoas que a procuram.

Ao tentarmos compreender este fenômeno IURD, temos que perceber que estamos lidando
com uma outra lógica que não obedece e nem permite raciocínios simplistas: Igreja Católica,
Rede Globo, envolvimento com a justiça... nada disso parece abalar de maneira profunda
o galopante crescimento desta igreja. Ao contrário, seus templos estão cada vez mais cheios e
são cada vez mais numerosos. Os antagonismos que provoca, o cerco a que muitas vezes é
submetida, parece sugerir um decréscimo de sua popularidade. Mas o que se verifica, vai de
sentido contrário a isso.

Muitos pesquisadores têm se dedicado na busca desta outra lógica quase que imperceptível da
IURD. Acreditamos que uma das abordagens que talvez nos ajudaria a desvendar esta outra
lógica seria justamente, a tentativa de compreender a IURD de dentro, a partir de seus próprios
valores, concepções ou categorias.

Dentro desta perspectiva, ao buscarmos compreender o fenômeno IURD não tivemos a


intenção em estabelecer juízos de valores, principalmente porque se trata de uma abordagem
científica. Para a frustração de alguns, não tivemos a preocupação de julgar a probidade ou
não de seus líderes, apontar manipulações e explorações dos fiéis, perceber possíveis jogadas
de marketing de um empreendimento pentecostal ou desvelar as verdadeiras
intencionalidades de seus fundadores dentro de uma perspectiva de uma religião de
mercado12. Ao fazermos esta opção não judicativa, é-nos claro que a fizemos não porque estas
abordagens não devam ser levadas em consideração. Mas sim, que elas nos
pareceram facetas limitadas de um fenômeno chamado IURD que nos sugere ser bem mais
amplo - não que tenhamos aqui a pretensão de abarcar tal fenômeno com esta nossa
abordagem.

Assim sendo, nem "contra" e nem "a favor" desta igreja, interessou-nos saber em que mundo o
seu fiel está. Como ele vive neste mundo? E como ele vê este mundo? Qual é a experiência da
criação de sentido que ele13 vivencia dentro de sua igreja. De antemão, podemos lembrar
apesar de óbvio que, para ele, os casos de manipulação, as intencionalidades, a improbidade e
as más intenções dos líderes simplesmente não existem e são inconcebíveis, pelo menos
assim o serão enquanto ele estiver dentro da igreja.

Ora, para tentar nos aproximar também desta experiência do fiel da IURD, temos que ter bem
claro que se está lidando, mais uma vez, com uma outra lógica. E também aqui, para
compreendermos melhor esta experiência do fiel, necessitamos nos distanciar mais uma vez
de uma perspectiva excessivamente externa e crítica, que visa detectar
as contradições e manipulações nas estratégias dos dirigentes da IURD e
a passividade e credulidade de seus membros.

O referencial epistemológico que nos orientou enormemente na busca destas outras lógicas,
foram as ferramentas da antropologia e da psicologia. Contudo, o enfoque que dividiremos aqui
com o leitor será quase que exclusivamente o antropológico e bem menos o psicológico. O que
pretendemos aqui, é levar o leitor até o mundo da IURD apontando suas concepções, idéias,
visões e experiências de sua membresia que vem crescendo a cada dia.
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Nesta perspectiva, observamos que quando começamos a entrar paulatinamente


nesta lógica e no universo da IURD e a percebê-los mais de perto, vem à tona a existência de
três aspectos - aspectos que aparecem sempre presentes e interligados na experiência
religiosa dos fiéis dentro da IURD. São eles a conversão, o exorcismo e a cura14. Quando
lidamos e observamos a propaganda, os rituais, os testemunhos formais ou informais dos
membros e a fala dos pastores vemos sempre, inevitavelmente, a presença destes três
elementos.

Exorcismo, conversão e cura estão presentes no dia-a-dia, perpassando todos os níveis


de discursos e práticas com uma grande fluidez, demonstrando como que estão amplamente
incorporados nas vivências de seus membros, obreiros e pastores. Estes elementos balizam
todas as falas ou vivências de cada um dos membros da IURD e tudo que ocorre dentro dela,
mesmo que os fiéis não se dêem conta desta força reguladora de uma forma clara: o que se
curou ou não se curou, o que não se acreditava e começou a se acreditar... as desgraças, os
malefícios feitos pelos demônios, doenças que surgiram... as entregas a Deus... curas que
ocorreram com a expulsão do demônio, o processo de aceitação e não aceitação de Jesus, a
entrada na igreja, a saída de outras vidas perdidas, de outras religiões. Enfim, todas essas
manifestações adquirem nexo, inteligibilidade, sentido quando estruturadas sob a direção
desta tríade que as organiza dentro da chave interpretativa de conversão, exorcismo e cura.

Esta proposta de criarmos o conceito de uma tríade a partir destes elementos, surgiu pela
constante presença e articulação dos mesmos em todas as experiências dos fiéis na IURD.
Pensamos em algo que tivesse um sentido de unidade mas que, ao mesmo tempo, tivesse
seus elementos distintos. Exorcismo, conversão e cura estão presentes em tudo dando não só
um sentido totalizante para o fiel e suas experiências, como também uma coerência para as
mesmas. O que nos remete a uma outra e fundamental experiência psicológica quando nos
remetemos ao aspecto da vivência religiosa, ou seja, a experiência da totalidade, de algo
absoluto, pleno de sentido. Uma experiência que dá àquele que a vivencia uma coerência que
extrapola dados lógicos ou objetivos e concilia aspectos aparentemente inconciliáveis
numa dimensão totalizante.

Ora, nesta igreja o conceito de doença adquire um sentido mais amplo: são problemas físicos,
desemprego, problemas familiares, drogadições, problemas mentais ou emocionais,
pobreza...(isso mesmo, o fiel tem que se curar da pobreza!) e todos estes elementos são,
segundo a concepção desta igreja, contrárias ao plano que Deus reservou para o seu fiel pois,
afinal de contas, Deus não quer que seus filhos sofram. Se são contrários ao Seu plano divino,
são artimanhas únicas e exclusivas do demônio e de seus sequazes ou seja, passíveis de
serem exorcisadas, isto é, curadas pela IURD, representante de Deus.

Mas não basta apenas o exorcismo em si, este também está associado principal e
basicamente a uma entrega a Jesus, mas não a um "Jesus na cruz, morto e sofrendo" e sim a
um "Jesus Cristo vivo", num lugar onde de fato "Jesus Cristo é o Senhor!" ou seja, na IURD.
Esta entrega a Jesus se dá através de uma conversão à proposta simbólica religiosa da
Universal. Se as doenças adquirem uma conotação diferente do senso comum, sem dúvida
alguma, e não poderia ser diferente, o tratamento e a cura também são experienciados de
forma distinta deste mesmo senso comum.

Como observamos que todos os movimentos da IURD ocorrem dentro desta lógica triádica,
vimos que até mesmo os resultados onde aparentemente contribuiriam para uma quebra de
suas concepções, acabam reforçando seu próprio esquema simbólico. Casos por exemplo
onde não se obtém uma cura dentro desta dimensão triádica, são explicados e aceitos pela
lógica da falta de fé, pela ausência de uma verdadeira entrega à Jesus ou à igreja - não
se converteu de fato.

Um fenômeno interessante e muito comum entre os neopentecostais, que também deparamos


na IURD, foi a existência de uma população flutuante de outras igrejas neopentecostais bem
como de pessoas ditas atéias ou de outras denominações afro-brasileiras, católicas e espíritas.
Estas pessoas procuram a IURD numa dimensão bem utilitarista ou até mesmo desesperadora
em que "só a Universal pode resolver". Ao mesmo tempo, esta dimensão de exclusividade
salvífica reforça uma supremacia no campo religioso onde a IURD adquire a marca de uma
"igreja forte" (BIRMAN, 1996:104). As pessoas vão nesta igreja buscando uma cura de uma
doença bem específica: um emprego, o marido alcóolatra, o sofrimento da alma, um problema
de saúde. Assim que estas pessoas obtém alguma cura (ou não), elas param de freqüentar a
IURD.

Somos levados a crer que mesmo entre os flutuantes, a tríade proposta de exorcismo
conversão e cura esteja presente. Pensamos, contudo, que se o flutuante flutua, é porque não
há de fato uma conversão, mas uma re-conversão, um re-conhecimento de um universo
simbólico pré-existente via sincretismo religioso que a IURD trabalha e re-elabora em seu corpo
simbólico, fazendo com que o flutuante orbite em torno da IURD sem grande estranheza,
propiciando assim uma cura. Aliás, o que temos observado quase sempre, do ponto de vista
simbólico, é que a inserção na IURD não ocorre com grandes traumas ou
passagens (MOREIRA, 1996:4).

Assim, podemos observar claramente que uma característica da IURD é que ela é
eminentemente sincrética e nunca seria o que é sem esta característica marcante.
Ela absorve inúmeras vertentes da religiosidade e do sincretismo brasileiros numa espécie
de efeito esponja de expressões religiosas que granjearam alguma popularidade no campo
religioso brasileiro, coadunando aspectos pré-modernos e modernos que compõem o
nosso ethosidentitário (SANCHIS, 1994:51) (SANCHIS,1997;110).

Se tudo isso é intencional ou não, é difícil sabê-lo e também de pouco valerá para o mundo
experiencial do fiel. O fato é que a IURD não inventa quase nenhuma novidade, mas um dos
méritos de seu sucesso talvez, possa ser atribuído a esta genial e bem articulada colcha de
retalhos que forma a sua identidade. Sim, uma colcha de retalhos extremamente encaixada
com aquilo que Bittencourt chamou de matriz religiosa brasileira15. Uma matriz que se
apresenta com aspectos de catolicismo ibérico e magia européia vindas com a colonização;
religiões e magias africanas e indígenas; espiritismo e até mesmo um catolicismo romanizado
(BITTENCOURT,1994:24).

Dentro desta perspectiva da existência de um efeito esponja, é interessante observar como que
a IURD tem assimilado elementos de outras culturas quando realiza o seu trabalho missionário
em outros países. Lá, o demônio por exemplo adquire novos contornos ou nomes se
adaptando de acordo com o imaginário da simbologia religiosa local (MOREIRA, 1998:3-4).
Neste andar camaleônico, a IURD tem conseguido caminhar com um trabalho missionário em
diversos outros países. Contudo, notamos que ela tem obtido maior aceitação justamente nos
países de elementos culturais e históricos semelhantes ao nosso, como os africanos e os
latinos.

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Além das características observadas acima, percebemos a existência de outros elementos


basilares no mundo iurdiano que se encaixam e se inter-relacionam com a vivência da tríade
proposta. Por estarem dentro da IURD, são eles também articulados dentro de uma dimensão
sincrética e ligados a matriz religiosa brasileira. Desta forma, detectamos e estabelecemos
quatro grandes pilares, mais uma vez não necessariamente genuínos à IURD, mas articulados
de uma forma específica e particular por ela, que fazem parte daquilo que podemos chamar
de universo universal. Seriam eles: o simbolismo de dinheiro, a guerra santa, a realidade do
mal e as doenças divinas.

O simbolismo do dinheiro:

Talvez um dos aspectos que mais chamam a atenção logo de início a um observador da IURD,
é a forma com que o dinheiro é utilizado e, provavelmente, é o elemento que mais é discutido e
questionado pelas pessoas de fora e pela mídia. De antemão, é sempre bom lembrar que os
fiéis desta igreja não concebem em hipótese alguma, que estariam sendo manipulados por
seus dirigentes na exploração de dinheiro - e dentro de nossa abordagem, nem é nosso
objetivo tentar provar se esta afirmação é verdadeira ou falsa.

A grande dificuldade que se tem para compreender a inserção do dinheiro na IURD, é que ele
adquire funções e qualidades completamente diferentes para quem a freqüenta. Alguns autores
(FERNANDES, 1983:53) (VOGEL, 1987:13) já apontaram para o fato de o dinheiro possuir um
significado muito maior e bem diferenciado quando inserido num ritual. Nestas situações,
o valor monetário do dinheiro passa a ser um valor que não é levado tanto em consideração
ou, então, é até esquecido. E é dentro desta perspectiva que devemos trabalhar para tentar
compreender o seu significado dentro da IURD.

Uma das formas de se circular o dinheiro na IURD seria através da obrigação do dízimo. Nesta
obrigação há uma justificativa e referendamento bíblico16 para tal prática, que não é só
presente nesta igreja. Contudo, justamente por ser uma prescrição divina, o fato de não estar
em dia com o seu dízimo representa pesadamente para o fiel o ato de roubar de Deus, já que o
dízimo é a parte reservada a Ele . Além disso, ser dizimista adquire uma conotação identitária
que distingue o membro do não-membro, demonstrando claramente um sinal de pertença à
igreja. Dentro desta perspectiva, somente o dizimista poderá pleitear de fato uma vida
abençoada por Deus.

Numa outra categoria de circulação de dinheiro, encontram-se as ofertas que não abstém em
momento algum o fiel do seu dever para com o dízimo, ao contrário, é algo que vai além deste.
Na oferta, o dinheiro adquire a conotação de canal de comunicação,
de intermediação e barganha com o sagrado, numa forma direta com Deus.

As ofertas são utilizadas especificamente nas correntes, que são dias específicos da semana
dedicados a objetivos também específicos: Segundas-feiras, corrente da prosperidade ou dos
empresários; terças-feiras, curas divinasou da saúde; quartas, louvor ou dos filhos de Deus;
quintas, problemas familiares ou da família; sextas, libertação que é basicamente
manifestações dos demônios e suas expulsões; sábados, louvor e agradecimento;
domingos,louvor. Todas as correntes ocorrem nos horários mais variados que começam das
seis e vão até às vinte e uma horas17.

O fiel que começa a fazer sua corrente, sabe que ela não pode ser quebrada e que durará um
período determinado de tempo, durante várias semanas. Nas correntes, o fiel tem que ir
naquele dia estabelecido da semana de acordo com seu objetivo. Assim sendo, não se dá
uma oferta na segunda-feira se você está querendo resolver alguma questão de ordem familiar.

Na nossa opinião, o aspecto simbólico mais contundente da oferta está no fato dela implicar
no risco do fiel. Quanto maior a oferta em dinheiro, maior será o risco de sobrevivência de
quem a dá, se o fiel se arrisca é porque ele tem fé em Deus. Se tem fé n'Ele a ponto de arriscar
sua própria sobrevivência, Ele não irá lhe decepcionar. Estabelece-se assim um pacto
coercitivo direto com Deus, em que Ele não poderá ficar impassível diante de uma fé
demonstrada desta forma tão evidenciada.

No ato da oferta, Deus se transforma em credor do ofertante e terá que honrar seu
compromisso com seu filho. Porém, se houver dúvida ou apego do membro nesta hora, o que
pode ser ardilosidade do demônio, Deus não o abençoará porque não se está firme na sua fé -
o que fecha mais uma vez uma coerência simbólica. Certa vez um pastor disse em
uma reunião da igreja: "Fé é fácil de falar que tem... todo mundo fala que tem fé! Quero ver
você provar que tem. Não basta ter fé, tem que ser louco! Se você não tiver fé, não adianta
nem tentar que vai perder tudo, depois não venha falar que eu não avisei. O que sempre dizem
não 'é dando que se recebe'?"

Rompe-se aqui com a passiva tradição popular da promessa, em que esta é cumprida se
a graça for alcançada através da intermediação dos santos. Na oferta, ao mesmo tempo que
o contrato com Deus é direto, sua prática se aproxima dos trabalhos dos cultos afro-brasileiros
realizados para as entidades de seu panteão, onde já se estabelece um objetivo a ser atingido
de uma forma mais incisiva a partir de uma magia coercitiva.

Além destes aspectos, dentro da IURD, ofertar e dar o dízimo possuem conotações
exorcísticas. Se você demonstra a sua fé através das ofertas e dá a parte que cabe a Deus
através do dízimo, mais dificilmente será tentado pelo demônio. É comum nos rituais
exorcísticos da IURD, os demônios manifestados e dominados pelos pastores recolherem de
um forma humilhante as ofertas e os dízimos dos fiéis.

Na IURD, o dinheiro é visto, além destas conotações simbólicas acima, como algo não sujo. Ao
contrário, é manipulado pelos fiéis como algo que dá prazer e que é bem vindo pois,
sofrimento, pobreza e doença não fazem parte dos planos de Deus e sim dos do Demônio.
Assim, a Teologia da Prosperidade é amplamente pregada nesta igreja, rompe-se com a idéia
de que de que sofrimento e pobreza são caminhos para redenção. O paraíso é o aqui e
agora e se não está sendo, é porque alguma coisa está errada! Não há muito uma
preocupação escatológica e a idéia é tomar posse ( GOMES, 1994:232) de tudo que Deus
reservou para os seus filhos neste mundo e não em outro lugar distante da realidade do fiel.
Nesta perspectiva, os filhos de Deus estão destinados a serem prósperos, saudáveis, felizes e
vitoriosos em todos os seus empreendimentos terrenos.

A questão mais interessante, que reforça esta lógica teológica e simbólica da IURD, é o fato de
realmente muitos conseguirem se reestruturar econômicamente, adquirindo um maior conforto
e tranqüilidade financeira nunca experienciados outrora.

A guerra santa

Apesar da conotação em que o foco de todo o processo de libertação do fiel é diante e


relacionado diretamente com um Deus vivo, ou através de seu filho, nas entrelinhas podemos
perceber que extra IURD nulla salus. Nas concepções desta igreja, estamos em plena era do
demonismo, em que o demônio e seus representantes estão ocupando todos os lugares do
mundo e somente ela poderá verdadeiramente combatê-lo e salvar as pessoas.

Rompendo com o ensimesmamento tradicional evangélico e com as tradições históricas em


que as camadas mais pobres são cordatas e submissas, a IURD usa uma lógica aguerrida em
que se o demônio está no mundo, vamos tomar este mundo para libertá-lo. Se o demônio
possui uma rede de Tv, vamos ter também; se possui jornais e rádios, vamos adquirir também;
se aquele prédio era um cinema de filmes pornográficos, vamos transformá-lo em um templo
que honre a Deus... é uma lógica que serve para entrar no mundo, nas gráficas, bancos ou
empresas. Aliás, um dos aspectos que distingue os membros da IURD é que eles refutam os
tradicionais e estereotipados usos e costumes de aparente santidade, que eram tidos como
sinais de conversão e pertencimento ao pentecostalismo. (MARIANO, 1996:125). Com
pouquíssimas exigências em comparação às outras igrejas evangélicas, os membros da IURD
não se destacam muito com seus costumes e hábitos do resto da população não evangélica.

Se estamos em plena era do demonismo, estabelece-se uma política de uma guerra


santa plena, em que todos os fiéis são vistos e vivem como guerreiros do Senhor. O tempo
todo e em tudo que se faz, este aspecto bélico religioso em relação ao mundo está presente.

Qualquer proposta ecumênica é vista como diabólica e as religiões católicas, afro-brasileiras e


kardecista são tidas como enganadoras e representantes religiosas máximas do demônio. Ao
mesmo tempo, a IURD se coloca como a única escolhida e capacitada de enfrentar estas
religiões demoníacas e é reconhecida, mais uma vez, como uma igreja forte entre todas as
evangélicas: "Todo evangélico sabe que tá na Bíblia que não devemos fazer idolatria, mas
ninguém fazia nada... até que o pastor da igreja chutou aquele ídolo que chamam de
Aparecida, todo mundo queria fazer isso mas não tinha coragem" disse-nos um membro da
IURD.
O aspecto que entendemos como interessante nesta relação de enfrentamento é que a IURD,
ao mesmo tempo que combate estas religiões, reafirma-as como importantes porque são
demoníacas. Afirmando o lado demoníaco destas religiões, reafirma-se ao mesmo tempo a
necessidade da existência da própria IURD, como única combatente capaz das mesmas.

Além disso, ao mesmo tempo que combate, ela absorve elementos e concepções das inimigas,
mais uma vez numa dimensão sincrética. Curiosamente na IURD, como nos rituais das
religiões afro-brasileiras, utiliza-se o sal grosso, a arruda, o fechamento de corpo bem como a
invocação das entidades para que se manifestem, contudo aqui para o objetivo é o exorcismo.
São muitas as melodias tradicionais católicas cujas letras são modificadas e cantadas nas
reuniões da IURD (BONFATTI, 1996:5), Paul Freston (FRESTON, 1994:138) já observou
também como que o ritual das correntes se assemelha com a prática das novenas católicas. O
uso da famosa água fluidificadanas religiões kardecistas também está presente dentro dos
rituais e programas de televisão da IURD.

Mais uma vez, observamos elementos simbólicos que contribuem numa inserção nesta
igreja sem grandes passagens simbólicas, traumas ou disrupções. Não existe
uma inauguração de um novo sistema simbólico mas sim, umre-arranjo e uma re-
significação de elementos já re-conhecidos pelos fiéis dentro do campo religioso brasileiro. O
que nos remete novamente a uma vivência de sensação de totalidade e não uma construção,
mas de re-construçãode sentido muito grande.

A realidade do mal:

A questão do mal nunca foi algo muito bem trabalhado na nossa cultura e estamos vindo
lidando com ela de uma forma quase que exclusivamente racional não muito satisfatória. Pois,
o mal, ainda é e sempre foi, algo que intriga e incomoda o homem. Desde a ascenção do
cristianismo, com a teologia cristã, o ocidente vem tentando lidar com esta dimensão sem muito
sucesso (KOLAKOWISKI, 1985:11).

Dentro deste contexto, apesar de todos os esforços, temos trabalhado nos últimos séculos com
a visão árida de que o mal não existe, sendo que o que existiria seria a ausência do bem18.
Contudo, partindo desta perspectiva, parece que ainda não conseguimos avançar em direção a
um conforto ou alívio razoáveis diante deste grande "enigma" (RICOER, 1988:26). Um enigma
que a teologia e a filosofia consideram "um desafio sem igual" (idem:21) pois a "visão
estritamente moral do mal" deixam o homem "sem resposta" (idem:34).

Distante desta dimensão extremamente racional e longíngua da realidade de nosso povo, a


IURD se aproxima da nossa cultura, mais uma vez ligando-se a matriz religiosa brasileira de
uma forma sincrética, trazendo o mal e o demônio para o cotidiano de seus rituais e
concepções. Ela rompe radicalmente com estes artifícios teológicos e filosóficos que lidam com
o mal. Aliás, tudo que é racional ou intelectual não é muito bem aceito por esta igreja, já que a
única dimensão verdadeira é a bíblica e a única verdade é Jesus Cristo19.

Sim, o mal é uma realidade viva e atuante na vida das pessoas através de seu criador, o
demônio. O que justifica mais uma vez a necessidade da IURD como única combatente
possível contra este grande inimigo da obra de Deus. Ela não só o reconhece como também o
exorciza, convertendo e curando as pessoas. A figura do demônio está tão presente nesta
igreja que sem ele a IURD não poderia ser o que é.

Geralmente associado às religiões afro-brasileiras, o demônio e seus representantes


se alojam em qualquer lugar possível. Ele se instala no corpo das pessoas causando doenças,
nas carteiras de trabalho impedindo que seu portador obtenha emprego, na cama de casal
levando marido e mulher a brigarem ou terem dificuldades sexuais. Pode entrar na vida das
pessoas através de hereditariedade, isto é, se o pai ou a mãe já participaram de algum ritual de
magia; se alguém em casa freqüentou ou freqüenta terreiros; por trabalhos de magia realizados
contra a pessoa; por ingestão de bebida ou comidas enfeitiçadas 20.
Para este demônio tão presente, atuante e devastador a IURD oferece uma tecnologia
exorcística para lidar com o mesmo. Esta tecnologia é exercida através de dois tipos de
exorcismos estabelecidos por nós: o sem incorporação e o de incorporação. Esta diferenciação
estabelecida foi necessária diante da constatação de que muitos membros não tinham aquela
clássica manifestação de entidades quando baixam, tão comuns nos cultos mediúnicos afro-
brasileiros, considerados na IURD como manifestações demoníacas.

Já que o demônio é real e está no mundo, tentando se alojar em tudo e de diversas forma, a
IURD oferece um grande arsenal simbólico exorcístico para ele: é o shampoo, o óleo santo, a
rosa ungida, a lâmpada que deve ser acesa em algum cômodo da casa, a chave, a espada
plástica, o retalho do manto sagrado, a foto do marido ou do filho problemático. Além disso, o
demônio é tão real que pode-se facilmente entrar em contato com o ele através de sua dor de
cabeça, da sua falta de emprego, com o marido alcóolatra ou com o seu problema de saúde...
o demônio se manifesta numa multiplicidade de modos e por isso, pode ser percebido e
exorcisado de diversas maneiras na IURD.

Em relação ao exorcismo de incorporação, seria o contato e manifestação direta do demônio


através de possuídos de forma semelhante as entidades do panteão afro-brasileiro. Contudo,
observamos a busca intencional das manifestações das entidades para um exorcismo direto,
característica que marca a IURD como, mais uma vez, uma igreja forte que não tem medo de
invocar e enfrentar os demônios. Este tipo de exorcismos são experiências sempre realizadas
dentro dos templos e, na grande maioria das vezes, dentro de seus rituais. Os passos que são
percorridos dentro destes rituais são invariavelmente os mesmos: a invocação e provocação
das entidades demoníacas, sua manifestação, resistência e deboche da entidade, o controle da
mesma, a revelação de seu nome, de como entrou na vida do possuído, dos males causados,
e finalmente a humilhação e a derrota com a expulsão do demônio.

Um dado interessante é que quando a entidade se manifesta o possuído perde sua consciência
e ela grita, baba, rosna, se debate e revela aspectos íntimos do possuído que em outras
circunstâncias não ocorreriam. Porém, julgamos também de grande importância dentro destes
rituais, o fato destas experiências exorcísticas serem entendidas não só como experiências do
possuído, mas, também, de uma assistência que não incorpora estas entidades mas que
participa como expectador atuante deste ritual. Já que os demônios que são expulsos na frente
da assistência, fazem parte da mesma legião daqueles que atrapalham a vida dos
espectadores.

As doenças divinas e a terapêutica universal

Todos os discursos e práticas observadas dentro da IURD e por seus membros levaram-nos a
perceber a presença constante de dois reinos.

Um, que é o nosso mundo onde habitamos, vivemos e sofremos com nossas mazelas e
misérias como as doenças, os conflitos e as felicidades humanas - poderíamos chamá-lo
de mundo material.

O outro, que seria mais real ou verdadeiro que aquele que podemos ver e tocar, seria o mundo
espiritual. Este segundo, é considerado o lugar
onde tudo verdadeiramente acontece influenciando direta e profundamente o primeiro em que
vivemos, já que este é visto apenas como o campo de batalha de uma guerra espiritual. Nas
concepções iurdianas todos os eventos que ocorrem neste nosso mundo são conseqüências e
reflexos deste outro mundo, oespiritual. (AZEVEDO, 1996:4).

O demônio, que habita o mundo espiritual com outras entidades, está o tempo todo procurando
se manifestar interferindo no nosso mundo material. Neste nosso mundo, tudo que podemos
ver ou conceber como doenças é considerado pela IURD como manifestação desta entidade
maléfica no nosso corpo ou na nossa psique. Ele não é somente o causador como também dá
os seus sinais de possessão através do nervosismo, dor de cabeça, insônia, medo, desmaios,
todos os tipos de vício, nas doenças que os médicos não descobrem as causas, visões de
vultos, audição de barulhos e vozes, depressão, desejos de suicídio e problemas de ordem
psíquica ou mental.

Nas categorias universais, todas as doenças são divinas - isto é, espirituais, não
humanas ou transpessoais - e causadas pelo demônio via indireta ou direta. Sendo assim,
todas são passíveis de serem tratadas através dos procedimentos exorcísticos da igreja.
Muitos testemunhos de fiéis falam de curas de doenças físicas como câncer, Aids, problemas
de pele, dores, úlceras... alguns aparentemente de ordem psicossomática e de difícil
observação, já que seria necessário uma formação médica para um acompanhamento mais
profundo e adequado. Contudo, como psicólogo que somos, chamaram nossa atenção outros
fenômenos de curas observados e relatados por alguns membros da IURD.

Assim, do ponto de vista psicológico e não mais do antropológico, lidamos com estes
interessantes fenômenos que denominamos não de curas como os membros da IURD o fazem,
mas de suspensão. O termo cura, além de ser algo bastante discutível e complexo na
psicologia, implicaria também em observações de longos períodos, testagens e
acompanhamentos constantes - o que tornaria praticamente impossível qualquer conotação
conclusiva do ponto de vista científico. Porém, mesmo levando em consideração estes
fenômenos como suspensão, não podemos nos furtar de perceber a singularidade dos
mesmos.

Assim, o que vimos e acompanhamos diversas vezes na IURD, foram justamente relatos
de suspensão de fenômenos como alucinações, delírios, uso e dependência de diversas
drogas como álcool, maconha e cocaína;recuperação da capacidade laborativa,
de socialização, do restabelecimento de laços familiares, afetivos e, principalmente, de
um reencontro de sentido da vida dentro de uma dimensão transcendente. São biografias que
encontram, de uma certa forma, um espaço dentro da IURD para serem elaboradas, contadas
e recontadas. Neste refazer-se, cada um que dá o seu testemunho, reconstrói sua vida e ajuda
a reconstruir a vida de quem o ouve. Revivendo se reelabora a biografia, escutando se
reencontra sua história, vendo o sentido que o outro consegue dar às suas mazelas vê-se a
possibilidade de reorientar a própria vida. O que se observou na maioria das vezes é que a
IURD vem fornecendo instrumental para esta reelaboração e criação de sentido, sem se
desfazer das experiências vividas pelos fiéis anteriormente, mas, sim, redimensionando-as.

Quando iniciada a escuta dos depoimentos de alguns membros da IURD ouvimos a descrição
de suas trajetórias sempre conturbadas e sofridas de vida, antes de chegarem à igreja,
deparamos com um interessante fenômeno. Pois, na tentativa de se resguardar de um
certo preconceito intelectual de profissional da psicologia, notou-se que a IURD consegue
oferecer, de certa forma, uma terapêutica para seus membros que contribuiu com
algumresultado positivo em suas vidas.

Contudo, notamos que ao propor refletirmos sobre uma terapêutica oferecida pela IURD, a
partir de um referencial psicológico, deparamos com algo bastante complexo, ao qual esta
proposta relaciona-se e, em decorrência desta complexidade, encontra limitações. Afinal de
contas, sempre que se propuser analisar qualquer fenômeno, a partir do ponto de vista da
psicologia, estaremos lidando com inúmeras facetas, por vezes explícitas ou não,
principalmente quando a esta se alia um outro fenômeno, também complexo, que é o religioso.
Fica claro então, sem dúvida, que esta intenção e este campo de atuação se complexifica
ainda mais numa miríade de possibilidades, o que remete a perceber que a possibilidade de
não se ver todas as facetas é quase que inevitável.

Consoante a isso, não podemos deixar de se perceber e concordar também quando a


psicologia aponta que existem elementos alienantes e infantilizantes na experiência religiosa.
Uma vez que esta acaba sendo usada como alienação ou como anestesia de elementos
conflitivos da personalidade.

Levando estas questões em conta, o que não podemos deixar de perceber, nas observações e
entrevistas, é que existem certos aspectos dentro dos rituais, concepções e visões de mundo
da IURD que proporcionam situaçõesterapêuticas para quem a procura. Compreendemos que
estes aspectos terapêuticos, e não psicoterapêuticos21, tenham ou favoreçam a uma
certa eficácia no que se refere às curas percebidas e narradas dentro desta igreja.
Evidentemente, esta eficácia não contempla a todos, porém a IURD vem crescendo e este tem
sido o aspecto mais alardeado por ela como sua grande oferta.

Assim, apesar de termos conhecimento das estratégias de marketing utilizadas pela IURD
(CAMPOS, 1997: 221-236) na oferta de seus produtos e que esta busca de uma eficácia no
meio religioso reflita, também, uma ineficácia diante de um sistema de saúde falido para uma
grande maioria empobrecida (BITTENCOURT, 1994:25), compreendemos que seja limitado
afirmar que a busca ou alguma eficácia da IURD esteja ligada apenas a questões sócio-
econômicas ou à marketing. Além disso, levamos em conta, também, uma
certa manipulação por parte dos pastores no discurso dos fiéis, que são por
vezes estereotipados (CORTEN, 1997:284), que sempre falam da existência de uma
eficaz terapêutica universal. Mesmo com todos estes aspectos, é inevitável que não se leve
também em conta o sentido e as reconstruções de vida que os membros da IURD
experienciam.

Somos levados a pensar que, além destas questões, existam também aspectos que a
psicologia possa auxiliar para uma maior compreensão de alguns fenômenos, ditos de cura,
que ocorrem dentro da IURD. Entendemos que esta igreja consegue, intencionalmente ou não,
estabelecer um espaço terapêutico, de escuta, aceitação e elaboração de diversos aspectos da
psique de seus membros; o que de certa forma ajudaria a compreender estes fenômenos
de suspensão.

Assim sendo, além de explicada enquanto fenômeno de marketing, manipulação de elementos


do sincretismo religioso brasileiro e exploração dos fiéis, propomos que o fenômeno IURD
esteja também associado aos elementos psicológicos de seus rituais, de suas concepções
religiosas e na sua oferta de sentido psicológico que ela possibilita aos seus membros.

Apontamos e desenvolvemos quais aspectos seriam estes, que contribuem para a formação de
uma terapêutica universal, como eles atuam, se interagem e são articulados na IURD em um
outro trabalho (BONFATTI, 1998:100-156). Elencar e explicar aqui estes aspectos, em forma
de artigo, não seria viável pela complexidade do tema.

O fato é que a IURD, mais uma vez, intencionalmente ou não, consegue dar sentido para o
sofrimento de seus fiéis e por mais estranho e duvidoso que tudo isso possa parecer, afirma
Mariza Soares,

existem [situações] em que a pessoa se converte e realmente sua vida melhora, começa a
trabalhar, pára de beber, etc. Esses casos, sempre que contados, provocam uma reação
estranha nas pessoas. Muitos falam dos crentes com uma certa inveja, até. No fundo, eles têm
consciência de que a vida das pessoas melhora, só que não conseguem explicar por que [...]
(SOARES, 1990:101)
Cecília Mariz, também já observou uma certa eficácia das igrejas pentecostais na recuperação,
principalmente de homens, de quadros de alcoolismo. Segundo ela, "as declarações de
pentecostais ex-alcoólatras apontam para elementos destas igrejas, religiosidade e
espiritualidade, que facilitam a superação do alcoolismo." (MARIZ, 1994b:204).

Quer queiramos ou não, a IURD consegue, de uma forma própria, responder as questões que
são fundamentais para o ser humano. Como outros grupos religiosos que conseguiram ganhar
universalidade, a IURD, combinando aspectos pré-modernos, modernos, pós-modernos,
sincréticos e afinados com a matriz religiosa brasileira de uma forma peculiar, tem conseguido,
numa linguagem religiosa, restabelecer aquilo que Jung apontou psicologicamente em seus
pacientes como falta:

não houve um só [paciente] cujo problema mais profundo não fosse o da atitude religiosa.
Aliás, todos estavam doentes, em última análise, por terem perdido aquilo que as religiões
vivas ofereciam em todos os tempos, a seus adeptos, e nenhum se curou realmente, sem ter
readquirido uma atitude religiosa própria, o que evidentemente, nada tinha a ver com a questão
de confissão [credo religioso] ou com a pertença a uma determinada igreja. (JUNG,1983:509)
Jung, desta forma, não só evidencia a importância da dimensão religiosa como função
psíquica (SILVEIRA, 1984:141-153), mas, também, como expressão da psique. Dentro do
pensamento junguiano, compreendemos que a IURD, tal qual foi descrita, vem oferecendo a
muitos indivíduos a possibilidade e os meios para esta experiência psicológica. Aí estaria,
também, nesta nossa reflexão, a razão de seu sucesso e crescimento.

É bem verdade que a IURD e o movimento neopentecostal brasileiro são bem mais complexos
do que pretendemos apontar aqui. Tentamos elencar categorias estabelecidas por nós como
a tríade de conversão-exorcismo-cura, o simbolismo do dinheiro, a guerra santa, a realidade do
mal, as doenças divinas e a terapêutica universal numa tentativa de compartilhar com o leitor
nossos limitados mapeamentos de um território tão amplo. Esperamos, nesta tentativa, que o
leitor tenha plena consciência que um mapa nos dá apenas uma visão superficial e que o
território quando percorrido, é bem mais rico.

Contudo, acreditamos, se tivermos sido claros, que tenhamos conseguido pelo menos atingir o
objetivo de levar o leitor a ter alguma visão, mesmo que limitada, do mundo
iurdiano. Esperamos, talvez pretensiosamente, que o leitor benévolo tenha começado a se
familiarizar com as categorias e com as experiências dos fiéis que se norteiam e se nutrem
deste mundo, bem como com os elementos simbólicos que estão, inexoravelmente, cada vez
mais presentes no nosso dia-a-dia e no campo religioso brasileiro.

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1A maioria dos dados contidos neste artigo estão baseados nas pesquisas realizadas durante
a elaboração da tese de mestrado defendida por nós na UFJF, entitulada "Xô satanás! Uma
análise psico-antropológica da Igreja Universal do Reino de Deus". Esta tese será publicada
pela Editora Paulinas no primeiro semestre de 2000 com o título A Expressão Popular do
sagrado: Uma análise psico-antropológica da Igreja Universal do Reino de Deus. Agradecemos
à CAPES pelo apoio financeiro concedido na realização desta dissertação.

2 Psicólogo clínico e escolar de orientação junguiana, especialista e mestre em Ciência da


Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, professor de Psicologia da Religião no
ITASA/JF.
3De 1995/99 a bancada evangélica no Congresso Nacional (deputados mais Senadores)
acumulou o número de trinta e dois representantes, vinte a mais que o período de 1983/87.
Somente a bancada da Igreja Universal do Reino de Deus cresceu 133% nas eleições de 1998,
pulando de 6 para 14 deputados na câmara federal. Além disso, conseguiu eleger também 6
deputados estaduais no Rio de Janeiro e 4 em São Paulo.

4 Novo Nascimento - Os Evangélicos em Casa, na Igreja e na Política. Relatório de Pesquisa,


ISER, Rio de Janeiro, maio de 1996. Há também uma recente versão em livro (FERNANDES,
1998) deste relatório com artigos e comentários de pesquisadores da área.

5Censo Institucional Evangélico da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. CIN, Núcleo de


Pesquisas, ISER, 1992.

6 Ver respectivamente: Brandão (1980), Mendonça (1989), Centro Ecumênico de


Documentação e Informação o CEDI (1991) feita por Bittencourt Filho; Freston (1994) que
divide as igrejas pentecostais em três ondas a partir da história de implantação no Brasil; já
Mariano (1995 e 1997) que além de apontar equívocos, limitações e ambigüidades,
principalmente nos três primeiros autores, também propõe, como Freston, uma tripla
classificação em que coloca a IURD como neopentecostal e finalmente, Siepierski (1997)

7 Um pastor falou numa reunião no dia 28/01/98 que a IURD está em sessenta e dois países.

8 Os dados são confusos: Mariano não cita a fonte de seus dados e nem diz se estes números
são só no Brasil ou no Mundo todo. Segundo estimativa da "Rede World Media' - "Folha de São
Paulo", de 12/12/93. Suplemento "Guia do Poder", p.c-8 seriam cinco milhões de fiéis em todo
o mundo - citado por Monica Barros (BARROS, 1995:31). Numa edição da revista Veja de
02/07/97, afirma que a IURD possuiria trezentos e vinte e um mil fiéis e dois mil e quinhentos
templos, mas também não cita sua fonte e nem diz se é no mundo todo ou só no Brasil. Paul
Freston acha plausível "algo em torno de um milhão de membros em mil igrejas servidas por
2700 pastores" (FRESTON, 1994:136). Pessoalmente, acreditamos que estes números sejam
bem maiores.

9Há alguns anos atrás num programa da IURD na Tv Record de propriedade da Universal, o
Bispo Von Helde chutou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil
muito cultuada pelos católicos (que são considerados idólatras por isso), no dia de
comemoração de sua data religiosa. Este episódio deflagrou uma série de críticas e revoltas à
IURD: o que a Rede Globo (Tv preocupada com a concorrência) explorou intensamente. A
IURD tentou não entrar num confronto direto e numa tentativa de abafar a situação de
comoção nacional, o Bispo Macedo transferiu Von Helde para uma missão na África

10 Este pronunciamento procurou distinguir as igrejas evangélicas da IURD especialmente no


que tange: a doação de dinheiro para alcançar bênçãos; ao seu método de se levantar fundos;
à aceitação de entidades dos cultos "afro-ameríndios" tal qual estes as concebem; "uso de
elementos mágicos dos cultos e das superstições populares do Brasil" como "sal grosso", "rosa
ungida", "água fluidificada", "fitas e pulseiras especiais", "ramo de arruda" e "uma quantidade
enorme de apetrechos". Além de diretores, conselheiros e secretários da AEvB assinam
também o pronunciamento cerca de 40 pastores, reverendos e bispos de diversas
denominações evangélicas. Parece que a IURD está tendo atritos também em outros países
com suas respectivas igrejas evangélicas. Pablo Semán observa que também houve um
"encontro nacional de pastores pentecostais" na Argentina, em que este "decidiu determinar o
caráter da IURD para estabelecer as distâncias. Chamaram a IURD de igreja 'Isopentecostal'.
Isto é, uma igreja que parece pentecostal mas não é." (SEMÁN, 1998:3)

11Edir Macedo fez parte da Igreja de Nova Vida na adolescência, cujo fundador era o
canadense Robert McAlister. A Nova Vida influenciou muitas igrejas da "terceira onda", como a
IURD. McAlister rompeu com a Assembléia de Deus em 1960 e procurou trabalhar numa
dimensão menos legalista, investindo na mídia e organizando-se de uma forma centralizada e
personalista. A Nova Vida foi a primeira igreja pentecostal que adotou o episcopado no Brasil
(FRESTON, 1994:133). Acreditamos que essa possa ser a origem do título Bispo de Edir
Macedo.

12Wilson Gomes aponta que existem cinco "teses equivocadas" sobre as novas seitas
populares, termo que ele mesmo considera preconceituoso e infeliz. Estas teses estão
presentes no senso comum bem como nos meios acadêmicos. O que podemos observar é
que, de certa forma, elas estão direta ou indiretamente ligadas às teorias que explicam o
fenômeno neopentecostal através das intenções duvidosas de suas igrejas, (por exemplo:
exercício de poder e exploração econômica) das quais a IURD é uma das expoentes.
Destacamos aqui, as três últimas: Terceira tese: "As seitas são empresas da cura divina cuja
única preocupação é com o dinheiro dos fiéis." Quarta tese: "As pessoas freqüentam as seitas
porque estão interessadas em milagres." Quinta tese: "As seitas alienam os fiéis dos seus
problemas concretos de miséria e de dor." (GOMES, 1994:254-268)

13 Parece difícil afirmar, genericamente, que esta experiência de criação de sentido esteja
presente de forma constante para todos: Bispos, Pastores e Obreiros da IURD. Ao mesmo
tempo, acreditamos que é difícil também afirmar que a cúpula e o círculo de confiança esteja
vinculado a igreja exclusivamente através de estratégias empresariais. Observamos que as
intencionalidades dos dirigentes podem ser até empresariais mas com experiências de vivência
de sentido, mesmo que em graus diferenciados. Além disso, pelo caminho difícil de ascensão
interna na IURD (o chegar sempre perdido e no "fundo do poço", a entrada na igreja, a
necessidade de constância e fidelidade, participação, trabalho intenso e a quase que
abdicação total da vida pessoal dos obreiros, auxiliares de pastores, pastores e bispos)
notamos também que no momento de entrada na IURD, enquanto simples fiéis, esta
experiência tenha acontecido, no mesmo nível de qualquer membro.

14Outros autores vêm como característica da IURD, uma outra "tríade" ou o "trinômio" cura-
exorcismo-prosperidade (VALLE & SARTI, 1994:10) (BITTENCOURT, 1994:24). Em relação ao
aspecto da prosperidade, este será explicitado mais adiante.

15 São "traços marcantes, convergências e condutas padronizadas, que nos fazem inferir a
presença efetiva de um substrato religioso-cultural. (...) uma complexa interação de conceitos e
idéias religiosas que se amalgamaram num processo multissecular e, em decorrência, de onde
nasce a mentalidade religiosa da média dos brasileiros, independentemente de situação de
classe na qual se encontrem. Vale dizer que essa mentalidade expande sua base social por
meio de processos incontroláveis, para, num determinado momento histórico, incorporar-se ao
inconsciente e ao consciente coletivos." (BITTENCOURT, 1992:49) Outros autores propuseram
abordagens semelhantes a este conceito de Bittencourt: Carlos Rodrigues Brandão fala de
"uma grande matriz simbólica de uso comum, sobre a qual cada grupo religioso faz seu próprio
recorte e combina seu repertório de crenças" (BRANDÃO, 1978:53-92). Rubem César
Fernandes também diz de "elementos básicos" e comuns da religião popular no Brasil
(FERNANDES, 1983:135). André Droogers, por sua vez, propõe uma "religiosidade mínima
brasileira" (DROOGERS, 1987:65)

16A título de ilustração: Lucas 6, 38; Malaquias 3, 9-11; Mateus 22, 21; Segunda carta de Paulo
aos Coríntios 9, 7.

17Muitas outras atividades estão também presentes no dia-a-dia dos fiéis como
"concentrações", "vigílias de oração"e "grupos jovens". Podemos também passar por vezes, de
madrugada, que lá estão reunidos em enorme número, em alguma atividade, proposta pelos
pastores na igreja e aceita facilmente pelos fiéis.

18Em outro trabalho (BONFATTI, 1992) já observamos o quanto esta visão exclusivamente
racional sobre o mal é limitada e, por vezes, prejudicial para o ser humano do ponto de vista
psicológico.

19Aspecto interessante sobre isso, é o relato de um casal que ao entrar na IURD queimou uma
biblioteca com milhares de livros e hoje só possuem praticamente a Bíblia em casa. A dúvida,
alimentada pelo conhecimento intelectual, é obra do demônio já que, quem tem fé não possui
dúvida.

20Quanto a este último aspecto, lembramo-nos de uma observação de um ritual exorcístico


coletivo na IURD onde dezenas de pessoas vomitaram, literalmente, os demônios que
causavam problemas estomacais ou digestivos.

21 Utilizamos aqui intencional e diferenciadamente, os termos terapêutico e psicoterapêutico,


apesar de se interrelacionarem e se confundirem. Trabalhamos com o
termo psicoterapêutico ligado a um enfoque da Psicologia comociência, com aspectos formais
de racionalidade e com todas as possibilidades e limitações que este conceito venha nos
trazer. Além disso, relacionamos o termo psicoterapêutico com uma formação oficial e pessoal
do profissional em que este se baseie em dois requisitos básicos de atuação: uma teoria e
princípios éticos.

Para enviar e-mail para o autor:


Paulo Bonfatti
bonfatti@artnet.com.br

A FUNÇÃO RIZOMÁTICA DA LITERATURA EM

TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO DO DISCURSO

Verônica Cavalcante Bernardi


mestre em psicologia - UFRJ
doutoranda em literatura -UFF

O movimento da globalização aponta a forte necessidade do organismo capitalista de criar um


centro, funcionando como unidade principal, que suporta as raízes secundárias. A proliferação
destas raízes acessórias dão a falsa impressão de uma diferenciação, contudo, são apenas
cópias decalcadas da matriz principal. Esta falsidade alteritária despercebida é o ideal
globalizante, pois não há sequer percepção de que a diferença é ela mesma um "desvio" pré-
estabelecido.

A unidade busca se manter inteira, sem fissuras, sem vazios e, portanto, estagnada, uma vez
que é o vazio que permite o movimento desejante. A globalização do capital que se apresenta
como uma grande movimentação finaceira de mercados, transações políticas e econômicas
sem fronteiras/barreiras paralizantes, visa a fabricação do mesmo, de uma unidade de
funcionamento que não é democrática, mas déspota, onde um regime de signos impõe um
único discurso, através da fala do núcleo globalizante. Aos globalizados restará a mudez, a
perambulação, a sobrevivência.

As ligações são sempre hierárquicas, orientadas a partir de um nível superior para um inferior,
a comunicação é previamente direcionada, havendo uma regulação na passagem de
informação. Há, assim, um vínculo de filiação a um discurso, não apenas anterior, mas
"superior".

As relações imaginárias se organizam em torno dessa matriz, veicula-se um ideal que se busca
através da aquisição dos signos propostos pelo discurso "superior" globalizante.

De que maneira é possível aos países globalizados sair da condição de decalque do centro de
comando? Os conflitos, guerras, que se observam no mundo, muitas vezes são movimentos de
resistência de regimes de signos econômicos, religiosos, étnicos, etc, que são
descaracterizados pela mídia ou sufocados pelo armamento do exército assegurador do
mecanismo globalizante de signos. A violência que vemos atualmente em nossas cidades, por
exemplo, constitui-se como uma saída sintomática para a imposição massacrante sob a qual
vive grande número de pessoas. Mas o que se perdeu foi a característica da revolta, dessa
forma, o propósito de tanta violência não é mais assegurar o lugar de sujeito, de cidadão. A
violência é um recurso que também foi esvaziado pelo capital, a violência non sense que agora
é regida pela necessidade de adquirir os signos do capital, promovidos pela publicidade.
Objetos-fetiches asseguradores do consumo de imagens.
Em plena cultura do individualismo, da independência pessoal e da liberdade (como valores
dominantes), vive-se uma espécie de mais-alienação, de rendição absoluta ao brilho, não
exatamente dos objetos, mas da imagem dos objetos. (KEHL, 1999, p. 83)
A função da literatura é de expressar o irrepresentável no discurso do capital — o afeto. A
função rizomática está para um movimento que rompe as barreiras do discurso "superior"
inventando um espaço de expressão das intensidades de uma cultura habitada por sujeitos
desejantes em relação. A literatura, a arte em geral e a psicanálise são discursos margeadores
que se comprometem com um movimento de suplementar o discurso do capital. Não
confrontando-o, mas penetrando fissuras e promovendo infiltrações desconstrutoras.

A fim de pensar o movimento aterrador da globalização e o lugar da literatura, este ensaio


aborda a globalização e a hegemonia do discurso imposto como progresso e igualdade para os
sujeitos humanos, a centralização ideológica do discurso, a anulação da diferença e a
manutenção do poder. Trata a seguir da função dos discursos margeadores: a literatura
como instituição designada para romper com o discurso instituído, a literatura como expressão
do arquivo social. E conclui apontando a função rizomática da literatura como linha de fuga
diante da negação da diferença.

A Globalização do Discurso:

O discurso da globalização expressa um regime de signos no qual há um plano de organização


estruturado, a partir de um centro, que irradia para todos os lugares existentes o que ali
prevalece, regulando todo o organismo. Dessa forma, a globalização é um máquina política
que propaga seus interesses através da neutralização da diferença discursiva. No âmago desta
proposta está a regulação do organismo-mundo, por intermédio da anulação do desejo,
portanto, da singularidade e das relações de alteridade. Para que se fixem idealizações
narcísicas propostas pelo discurso globalizado, normatiza-se um modelo capitalista de
existência para o sujeito. Neste modelo está inscrito demandas e necessidades para manter o
gozo perverso do centro irradiador do capital.

O discurso psicanalítico propõe que para o sujeito se expressar no contexto social é preciso
que algo regule esta atuação. É necessário interditos e autorizações que possibilitem as
relações entre os sujeitos no mundo e a lei é a instituição que marca os limites a que o sujeito
deve se submeter para associar-se com o outro, seu semelhante. Freud delineou duas
instâncias psíquicas que regulariam as demandas pulsionais de satisfação e de gozo do sujeito
com o outro: o supereu, que rege os interditos; e o ideal de eu, que negocia o permitido e o
possível, viabilizando a construção do desejo. O supereu define limites impondo proibições e o
ideal do eu autoriza formas de lidar com estas interdições ditadas pela cultura, funcionando
como um inventor, que tece linhas de fuga para não ser detido pelas leis do supereu, embora
esteja submetido a elas.

Contudo, para que esta regulação do ideal do eu possa operar, o sujeito precisa relativizar a
onipotência regida pela estrutura narcísica ( denominada por Freud de eu ideal) que direciona a
libido para seu próprio eu. O sujeito regido por esta instância crê que pode impôr seus ideais e
suas leis e que não precisa se submeter a nada que lhe seja exterior, diferente do ideal do eu
que reconhece a lei e inventa percursos no âmbito do próprio código para satisfazer suas
demandas pulsionais. O sujeito narcísico, não submisso a nenhuma lei, crê que pode submeter
os outros, não os reconhecendo em suas singularidades e diferenças, acreditando cegamente
que se encontra no centro do mundo depredando-o de acordo com sua crença narcísica de
poder.
O sujeito se autoriza, por si, a tirar o que quiser do outro, recorrendo mesmo a violência se
necessário, ele é um predador. O outro é um objeto para seu gozo, por isso descartável,
substituível, comprável, reduzido à dimensão de um pedaço de carne. Nele, se deposita
projetivamente tudo o que o sujeito narcísico não quer reconhecer em si. O outro é assim um
mero fetiche1que serve para o sujeito narcísico gozar. Assim regulado pela economia fetichista
o indivíduo não é perpassado pela diferença, e portanto não tem como reconhecer a
singularidade e o desejo em si e no outro.

Enquanto que o registro do supereu e do ideal do eu marcam um psiquismo atravessado pela


alteridade, por algo que lhe é externo, sejam as interdições e os ideais a serem buscados; o
registro do eu ideal remete ao indivíduo como seu próprio peso e sua própria medida. Sendo
ele mesmo seu próprio ideal, não há atravessamento pela alteridade, pelo externo, pela lei, não
há relação de troca, mas de depredação do outro.

A questão do psíquico pode parecer fora do âmbito social, contudo, não se pode pensar a
circulação econômica no espaço social, sem ponderar o engajamento do sujeito neste lugar.
Dessa forma, a economia das pulsões pode ser concebida como o correlato, no psiquismo, da
economia política, que regula o espaço social, na medida em que é a partir das relações de
troca dos objetos e da satisfação dos desejos que se pode considerar a questão maior da
economia sócio-política. (BIRMAN,1999)

Tudo isto implica no fato de que o direcionamento libidinal do sujeito (alteritário ou narcísico)
está ligado a circulação de bens e valores do espaço social.
Se considerarmos a economia política dos bens e dos valores, no campo social, como
correlato, para o sujeito, da economia do gozo e do prazer, fica evidente, pois, que são as
formas de existência das normas e dos dispositivos de poder no espaço social que agenciam
as formas de ser da subjetividade. (...)
A oscilação do sujeito entre os pólos narcísico e alteritário de seu psiquismo, assim como sua
fixação em um deles, está na estrita dependência de que formas organizadas do poder social
permitam ou não a satisfação de suas demandas pulsionais. (BIRMAN,1999, p. 283)
A situação do sujeito no âmbito da globalização, como agrupamento da economia política em
um centro organizador da subjetividade mundial, é a de submissão ao núcleo despótico
depredador de sua singularidade, pois as relações alteritárias são violentamente cerceadas
pela unicidade das normas e dispositivos de poder do capital. As subjetividades são
conduzidas para o pólo narcísico do psiquismo, uma vez que todo o resto do espaço social
mundial reduz-se a um mero fetiche para o núcleo de comando do movimento de globalização.

Trata-se do que os americanos denominam como cultura do narcisismo, onde cada ser reflete
a cultura dominante perversa, anulando as relações de reciprocidade. A diferença de valores
de uma determinada cultura é apontada como inferioridade. O diferente é inferior, o único valor
que circula é aquele que favorece o discurso capitalista central. Mas para que este discurso
reine dominante ele precisa depredar aqueles países periféricos e sua tradição cultural e sua
singularidade, atuando como predador do imaginário cultural destas sociedades.

Assim, a globalização tem necessidades que para serem satisfeitas precisam recorrer a
polarizações hierárquicas que se traduzem em desigualdades sociais tanto nos países pobres
como nos países ricos. Requer a modernização que se expressa em uma organização
econômica e política (mercado livre) que se baseia nos valores impostos pela própria
globalização. Aquilo que de alguma forma escapa aos fundamentos idealizados da
globalização, seja o massacre dos países pobres, seja anulação da diversidade cultural, é
entendido como uma disfunção, como uma incapacidade daquele que não consegue se
adaptar as demandas do organismo-total.

Esta disfunção é o sintoma de uma nova colonização, a partir de uma estratégia capitalista que
precisa esmagar a maior parte da humanidade para garantir a opulência de uma minoria.
Para assegurar o nível de conforto de 20% da humanidade, é necessário hoje desviar as
produções de cereais do mundo pobre, derrubar suas florestas, destruir seus modos de vida
tradicionais, deportar os camponeses expropriados ou arruinados para as favelas da América
Latina, para os bairros fechados do sul da Ásia, para os arredores de Manila, para as favelas
de Dacar; é preciso organizar um mercado de matérias-primas baseado na rapina que lança na
extrema miséria bilhões de seres humanos. Com efeito, bem abaixo da escala social, um em
cada seis habitantes do nosso planeta tem apenas um dólar por dia para sobreviver!
(PARAIRE, 1999, p. 465)
Embora a ideologia dominante alardeie os méritos da globalização, muitas são as doenças e
fragilidades que o capitalismo não pode sobrepor. Mesmo que se proponha utopicamente a
partilha da riqueza mundial, o que de fato ocorre é que apesar da modernização tecnológica e
mercadológica crescente, este regime só se assegura ao manter um terço da humanidade em
condições de vida semelhantes àquelas do povo europeu da idade média.

Segundo Paraire, uma fase de recolonização precedeu a globalização. Este prelúdio, como ele
define, se estenderia de 1945 à 1990, onde instituições como o Banco Mundial, o Fundo
Monetário Internacional e o Gatt/OMC, aos quais vem somar-se o AMI(conjunto de acordos de
liberalização do comércio mundial) atuando conjuntamente com o G7, adiquiriram um estatuto
estrutural, principalmente, com a queda do bloco soviético e da passagem da China ao regime
do capital.

Esta estrutura-institucional foi tornando-se "uma espécie de centro de reflexões, de encontros e


de decisões funcionando em benefício do capitalismo dominante". (Ibidem, p 466 - o grifo é
meu) Segundo o autor acima citado, a estratégia deste núcleo estrutural foi evolutiva,
distinguindo-se em quatro grandes fases: num primeiro momento, o objetivo central era gerar a
dependência técnica e financeira dos países pobres através de uma ajuda ao desenvolvimento,
o que se traduz por uma vasta concentração urbana e industrialização das zonas rurais; uma
segunda fase, entre 1968 à 1982, orientou-se para o endividamento desses países a quem se
ofertou uma ajuda; a terceira fase dirigiu a corrosão das bases de sustentação da União
Soviética e a quarta fase, designada pelo termo — a reconquista — implicou o reajuste
estrutural, ou seja a submissão das países ajustados.
O FMI, o Banco Mundial e o Gatt, oficialmente associados desde 1988, puseram o mundo
pobre de joelhos. (...)
Em 1998, as 200 maiores empresas internacionais controlavam 80% da produção mundial
agrícola e industrial, bem como70% dos serviços e das trocas comerciais do planeta, portanto
mais de dois terços dos 25 trilhões de dólares que representam o produto mundial bruto (há
cem anos, não chegava a um trilhão de dólares). (Ibidem, p. 468)
Assim, a ideologia neoliberal de reconquista da totalidade do mercado mundial abole as leis
trabalhistas duramente conquistadas (mesmo nos países ricos), impõe a servidão dos
trabalhadores em sub-empregos, uma vez que os maiores lucros não são mais vinculados ao
trabalho, mas aos mercados de especulação.

Submete o ser humano a maior violência que se pode impôr ao ser: impedí-lo de ser sujeito do
seu desejo. A violência imediata, brutal é menos ameaçadora do que aquela que se oculta e se
arrasta no tempo e no espaço, não deixando um lugar ausente para o ser mover-se, ela
preenche todas as lacunas com seu regime de signos, lenta e progressivamente.

Assim, o mundo da mercadoria, e tudo o mais que ele implica, buscou invadir todos os
espaços: países não inseridos na demanda capitalista e setores dos países ocidentais, de
primeiro escalão, antes fora de seu alcançe, como a educação, a saúde, a informação,
passaram a ser regidos pelas leis da rentabilidade do mercado. Dessa maneira, torna-se fácil
perceber que não há necessidade de um exército armado para organizar a tomada desses
países antes alheios ao capital, nem para assegurar a invasão dos setores públicos, mas sim
de um sistema publicitário que "alicia os espíritos pelo seu matraquear incessante e mata com
mais ferocidade do que um bombardeio". (FRÉMION, 1999, p. 517)

A própria cultura está submetida ao mundo comercial. O espaço de criação está sendo
globalizado, há um bloco de atitudes e pensamentos que se deve aceitar como próprio e, na
verdade, não há espaço para se perceber isso, pois tudo se organiza em torno de uma política
da livre iniciativa. A conquista colonial agora não se faz mais com armas, mas com demandas:
criam-se demandas, antes desnecessárias àquela cultura, que passa então a necessitar de um
produto cuja existência ignorava; criam-se valores em torno de um produto, que pode ser
desde uma peça de roupa até um jogador de futebol, e este torna-se um objeto-fetiche,
tamponador da falta , do espaço necessário para que a diferença permita a mobilidade do
desejo. O gozo do capital, em seu ritmo perverso impõe o confinamento do desejo, porque não
admite a diferença, tudo é coberto pela lógica mercantil e financeira.

Frémion citando Toscani demonstra:


A publicidade cobre agora cada esquina de rua, cada praça histórica, cada jardim, pontos de
ônibus, o metrô, os aeroportos, as estações de trem, os jornais, os cafés, as farmácias, as
tabacarias, os isqueiros, as listas telefônicas, interrompe os filmes na televisão, invade as
rádios, as revistas, as praias, os esportes, as roupas, e até as marcas nas solas dos nossos
sapatos, todo nosso universo, todo o planeta! (...) É o Big Brother sempre sorridente! Acho
aterrador que todo este imenso espaço de expressão, de exposição e de afixação, o maior
museu vivo de arte moderna, cem mil vezes maior que Beaubourg e o Museu de Arte
Contemporânea de Nova York juntos, estes painéis gigantescos, estes slogans pintados, estas
centenas de milhares de páginas de jornais impressas, estas centenas de horas de televisão,
de mensagens radiofônicas, se mantenham reservados a esta imagética paradisíaca imbecil,
irreal e enganadora...(Ibidem, pp. 517, 518)

O discurso do capital globalizado por meios publicitários é a expressão do centro narcísico que
tem a si próprio como ideal, negando a singularidade das culturas diferentes. Através da mídia
seduzem os países do 3º mundo a se oferecerem como objeto de puro gozo para o centro
dominador.

Impera o colonialismo onde apenas o discurso do colonizador pode ser propagado pela rede de
comunicações. Se a lei é a forma simbólica do sujeito ser ultrapassado por algo externo que
regula o psiquismo a que todos estão subordinados, a lei do capital subordina a partir de um
centro despótico todos os outros, mas isenta o núcleo a submeter-se ao que propõe como lei.
A publicidade é a forma do discurso do capital seduzir o sujeito anulando seu desejo, na
medida em que não admite outro ideal senão aquele proposto por seu esquema centralizador.
Enquanto o sujeito é capturado pela linguagem, pela lei simbólica, para se confrontar com seu
outro, o sujeito capturado pela publicidade é inserido no discurso narcísico que impossibilita o
relacionamento com seu próximo.

Os desejos mobilizados pela regulação do supereu e do ideal do eu, são inviabilizados no


registro do eu ideal. Não há desejo, há simulações gozosas. Passamos a precisar cada vez
mais de mais coisas que nem sequer imaginaríamos precisar, porque o mecanismo da
economia globalizante necessita de impôr suas demandas, para satisfazer suas necessidades,
mesmo que para isso tenha que submeter todo o resto ao estatuto de objeto fetiche para seu
gozo perverso.

A Função Rizomática da Literatura:

A globalização, enunciada como oportunidade para as expressões singulares, pretensamente,


se oferece como um plano democrático, cujo objetivo seria derrubar fronteiras e, portanto,
romper barreiras burocráticas e geográficas, percorrendo os quatro cantos do mundo a fim de
permitir igualdade de oportunidades a todos os habitantes do globo. Este mecanismo político
se apresentaria, portanto, como um movimento rizomático que não se restringiria por razões
nacionalistas e assim, regimes de signos não cristalizados se deslocariam de diversos lugares
do mundo e se intercruzariam transversalmente sem que se estabelecesse uma hierarquia
discursiva.

Contudo, o mecanismo da globalização não engendra o múltiplo, a multiplicidade discursiva,


mas sim uma totalização que paradoxalmente se inscreve através da dicotomia hierárquica:
países portadores do discurso e suas instituições, e pertencendo ao mesmo bloco, mas em
condições de inferioridade, países submetidos. O que viabiliza ao núcleo central, formado pelos
países globalizantes, a apropriação do discurso que estende aos seus países globalizados, a
partir do regime de signos impostos pela via do capital, cujas leis se expressam pela fala da
publicidade.
Diante desta globalização hierárquica e fascista, a literatura e a arte de forma geral, precisam
resguardar seu locus político democrático. Estes discursos têm uma função rizomática por
estaremnão-todo submetidos a lei do capital, lei esta que não viabiliza a inscrição do sujeito do
desejo, mas antes o anula. Esta função democrática dos discursos margeadores implica a
pulverização dos grandes centros que são substituidos por formações de linhas que se cruzam
ocasionalmente e em qualquer parte. Assim, toda tentativa de centro vai sendo quebrada, pois
nesse movimento as linhas se tocam e até fazem um ponto, mas um ponto local no tempo e no
espaço, forjando pólos de subjetivação que não têm a rigidez da formalização central.

O movimento rizomático liga-se a idéia do inconsciente atemporal freudiano e à


indestrutibilidade do desejo e, portanto, à produção criativa do texto literário. Associa-se ao
caráter parricida da escrita que necessita da orfandade para lançar-se no mundo sem uma
significância cristalizada na herança paterna. Embora limitado pela regulação do supereu e o
contexto do autor, o ideal do eu inventa um devir significante em cada apropriação feita por um
leitor e seu contexto. O parricídio é, dessa forma, um deslocamento do eu ideal e portanto, do
estabelecimento narcísico do significado, para o ideal do eu, como agenciamento criativo,
implicando uma fuga, um deslizamento, uma indestrutibilidade, ou seja, a função rizomática do
texto literário.

Esta função estabelece uma correspondência com a concepção do agenciamento pulsional


sempre como um ato de criação. O sujeito posicionado entre a pressão contínua da força
pulsional e a insuficiência do sistema simbólico para mitigá-la, "inventa" caminhos possíveis
para que as forças pulsionais encontrem percursos de satisfação no universo psíquico e no
campo da alteridade, conformando um estilo de existência. (BIRMAN, 1995) O texto literário
pode se entendido dessa maneira, como outro que oferece possibilidades de satisfação/efeito
de sublimação, constituindo-se como um chamado ao sujeito para inscrever seu desejo num
circuito pulsional. Assim, cada leitura de um sujeito/leitor é uma produção de um texto, ou seja
é uma desconstrução de significados e efetuação de novas significâncias, é uma apropriação
desejante, plástica, não cristalizada que impossibilita a rigidez da exatidão.

Contudo, os discursos margeadores do movimento globalizante, como a literatura e a


psicanálise, apontam que a falta de rigidez e exatidão que operam no domínio do
argumentativo e do retórico não implicam um relativismo irracional, mas o relativo que permite
a coexistência das diferenças. Portanto, a literatura não exprime signos convencionais e
abstratos que garantem a univocidade, mas "signos que possuem história e emergem do
remotíssimo passado, guardando vestígios de mitos arcaicos, ressonâncias de hinos a deuses
antigos, ecos de espantos primitivos ou descobertas aterradoras, crenças, temores, emoções,
alumbramentos, diante da vida ou da morte, do prazer ou da dor, do conhecido e do
desconhecido. Linguagem que tem raízes múltiplas, alimentadas pelo húmus da
equivocidade."(MOTTA PESSANHA, 1991, p. 10)

O saber psicanalítico inaugurado por Freud, denunciou o fechamento do sentido imposto pela
ciência positivista, que aspirava a certeza e a exatidão. Mas, o discurso científico, ao que
parece, não é mais exatamente o contraponto dos discursos retóricos, pois o estilo pode ser
reconhecido mesmo no discurso da ciência, por exemplo, o estilo euclediano, o estilo
cartesiano, em relação a construção do objeto matemático. Atualmente, o discurso hegemônico
dominante recorre mais a argumentação e a retórica, num jogo de sedução petrificante do
sentido, do que ao discurso científico como garantia de verdade. O discurso publicitário faz uso
do fechamento do sentido num modelo de verdade cultuado como único. Se o propósito
positivista era encontrar a verdade, o publicitário é de fabricar a verdade e cultuá-la, anulando o
desejo singular. O discurso publicitário, assim como a lógica formal e a racionalidade, visa
desfazer a angústia de um desconhecido incognoscível.

Costa Lima (1991) aponta o "controle do imaginário" por parte do pensamento europeu, com a
intenção de domesticar a diferença cultural, encontrado no relatos de viagem dos séculos XVI e
XVII. O autor demonstra que nestes textos, o sujeito é concebido como um "Eu unitário" a partir
da denegação dadiferença cultural, excluindo o estranho, o não familiar (o unheimlich
freudiano), para que o sujeito configure-se em uma unidade e não se confronte com a
alteridade.
Atualmente, este "Eu unitário" figura ainda a partir da denegação cultural alteritária, fato que se
expressa pela concepção econômica capitalista de um mercado único. A diferença cultural,
advinda da relação do sujeito com seu contexto, configurando seu estilo de existência é
degradada como inferior àquela proposta pelos meios publicitários capitalistas. O único modo
de vida satisfatório é aquele proposto pelo centro promovedor da estabilização de uma
significância, o que escapa é entendido como estranho que, contudo, é familiar.

A psicanálise e a literatura, considerando a polissemia da linguagem, usam a interpretação


como uma prática da dúvida que se opõe a estabilidade do sentido. A superdeterminação, na
psicanálise, vinculada ao conceito de inconsciente atemporal, implica o rompimento com a
causalidade linear. Assim, a origem fica desde sempre barrada e causa e conseqüência, não
se equacionam num ritmo linear, o sentido é sempre evanescente e pontual. No texto literário,
por sua vez, comparece a alteridade, o Outro, linhas onde se inserem a cultura e a história e
que, ao mesmo tempo as constituem. Isto implica que o texto é sempre plural e que sua
significância é pontual, junto à conjuntura do contexto, não havendo a palavra totalizante,
conclusiva, impossibilitando uma representação única das diversidades de leitura.
Nesta argumentação, a própria história deixa de ser um processo conclusivo e totalizante para
ser feita por "decontinuidades", possibilitando ao sistema literário e cultural aparecer em suas
múltiplas temporalidades. O texto aparece, assim, como "absorção de" e "réplica a" um outro
texto, como uma leitura do corpo literário anterior (Kristeva); aponta para a "translingüística"
que parte do dialogismo da linguagem e compreende as relações intertextuais e a latência de
múltiplos significados a ser descoberta nas leituras (...)
fazendo um jogo sutil entre a expectativa, a antecipação do sentido, e a "surpresa" da produção
de um outro texto na descobeta do sujeito como função entre o Eu do autor e o Outro da
leitura. (...) sujeito da experiência, para sempre submetido ao contexto sociocultural onde
aparece e à multiplicidade dos "jogos de linguagem" (Wittgenstein) (BRAZIL,1992, pp. 46,47)
O texto literário absorve e é absorvido em um contexto histórico, revelando o imaginário social
e ao mesmo tempo constituindo-o, não se trata da construção de uma identidade nacional, mas
da tradução de estados intensivos de uma cultura. O texto que passa, excedendo as barreiras
do tempo e do espaço é aquele que afeta o leitor, em uma escrita que diz mais do que está
escrito. São intensidades que passam metamorfoseadas em palavras, a literatura promove
essa estranha/familiar função da linguagem: a expressividade erótica. O leitor sente dor, sente
prazer, angústia, é afetado, é convocado a produzir um sentido, que será quebrado,
multiplicado por quantas leituras forem feitas desta letra.
Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado,
territorializado, organizado, significado, atribuido, etc.; mas compreeende também linhas de
desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas
segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas
linhas não param de se remeter uma às outras. É por isto que não se pode contar com um
dualismo ou uma dicotomia, nem mesmo sob a forma rudimentar do bom e do
mau.(DELEUZE/GUATTARI,1995, p. 18)
Concluindo:

A partir da constituição de um discurso único pela via do capital, a hegemonia de um regime de


signo impõe a neutralização da diferença e da multiplicidade que se expressa nas diversas
culturas com suas tradições nacionais. O rompimento dessas fronteiras não se opera como
igualdade de direitos para os diversos cidadãos do mundo, mas como resignação e
aceitamento do regime de signos imposto.

Atuando nas fissuras deste bloco discursivo, a literatura, segundo Derrida, guarda o espaço da
democracia, pois apesar de atuar dentro de um contexto lingüístico anterior a ela própria e de
estar inserida no mundo onde um código de leis rege uma estrutura discursiva, ela opera
desconstruindo este regime que também a submete.

A literatura por sua possibilidadede dizer tudo, qualquer coisa, expressa o imaginário social, as
fantasias que compõem o discurso do Outro. A literatura é, assim, a sombra2 da publicidade.
Enquanto esta, "pública" o que o regime de signos quer impor como verdade para uma dada
cultura, aquela exprime as "verdades" afetivas de uma cultura, expressando-se através de
signos que lhe são anteriores, mas para impor-lhes uma linha de fuga, uma vez que não se
submete totalmente a lei do capital.
Como a arte de forma geral, a literatura expressa aquilo que os fatos históricos, a ciência, o
discurso dominante buscam explicar e conter em números estatísticos. A literatura é a
manifestação erótica, ela é afetamento, o que ela diz de uma cultura, de um lugar social, é
aquilo que escapa ao registro numérico, escapa a lei econômica do capital, pois pertence a
economia libidinal das pulsões como efeito de sublimação. É o que excede, o que o
suplementa este regime, que quer se impor como único, como bloco monolítico.

O discurso literário é a expressão do não-todo, do singular que, inserido no mundo globalizado,


tece cadeias significantes que são verdadeiras linhas de fuga, que resguardam o movimento
erótico humano. A função rizomática da literatura está na característica parricida de seu texto,
no gesto orfão de se lançar ao mundo levando sua escrita erótica para qualquer leitor-amante.
Ela se oferece como objeto do desejo aquele que lhe lançar um olhar libidinoso, pois está
sempre em fuga da interpretação cristalizadora, da atribuição apriorística de sentido, do
estabelecimento de um signo que a decifre.

A literatura é a manifestação de um afetamento pelo mundo, pois ela é do mundo e não,


etérea, ela é mundana, imanente, corriqueira, erótica. É o estranho-familiar, pois no âmago de
sua representação discursiva há a paixão do irrepresentável, em algum lugar naquelas linhas,
na remissão significante, passa o erotismo que designa aquele texto como literário.

Assim o livro se lança na aventura amorosa do desconhecido a cada novo leitor que o toma
nas mãos, cada leitor é assim um novo autor, que remete sua leitura/texto a um novo leitor,
numa interminável e intercambiante linha de fuga, numa cadeia significante geradora de
sentidos que não se fixam, senão para gerar uma nova inquietação significante. Lançando-se
sempre no desconhecido da alteridade, o texto-orfão é a expressão do desamparo humano na
sua busca, permanente e interminável, de sentido, de paternidade/logos.

Em sua fluidez, a literatura rompe fronteiras geográficas e cronológicas, mas este globalizar
não é um movimento de conquista territorial, é um movimento rizomático que se espalha, de
uma maneira transversal, sem um ritmo compassado ou direcionado, mas com um ritmo
poético que chega a lugares e tempos nem sequer imaginados. Não há domínio sobre o
afeto,não se pode registrar qual será seu caminho e que consequências terá, não há predição
sobre o devir.

O contraponto da globalização do capital que se impõe como unicidade é o movimento


rizomático de globalização proposto pela literatura, que se espalha levando as intensidades
singulares de uma cultura para outra formando novas intensidades que se relacionarão com
outras em uma inscrição e fuga permanente.

Assim, a literatura tem a função ética de exceder esta submissão ao código imposto e a função
estética de causar estranhamento, de espantar, de afetar e quebrar o encantamento da oferta
máxima do capital: a oferta de sentido único para todos, de normatização do desejo, de
antecipação da demanda e de cristalização do mundo, impossibilitando as diferenças culturais,
as expressões singulares do sujeito de cada povo, de criar o imaginário social e de compô-lo
avesso à pobreza de enredos onde só há um tipo de relação possível:

globalizante
__________

globalizado
1 O fetiche tem como função impedir o reconhecimento da diferença sexual que, para a
psicanálise, é a matriz psíquica do reconhecimento da diferença em si, racial, étnica, política,
religiosa, etc.

2Em 1945, Jung definiu sombra como: a coisa que uma pessoa não tem o desejo de ser"(C W
16, parág. 470) Ampliando este conceito para as manifestações discursivas, a literatura é, por
assim dizer, aquilo que a publicidade não consegue desenvolver em si mesma.

BIBLIOGRAFIA:

BERNARDIi, V. C. O conceito de feminilidade. In:__________ O emergir da feminilidade pela


via das mulheres machadianas (uma abordagem psicanalítica). Dissertação de Mestrado-
UFRJ. Rio de Janeiro, 1999.

Birman, J. O mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

BIRMAN, J.Sujeito e Estilo em Psicanálise. Sobre o indeterminismo da pulsão no discurso


freudiano. In:Moura, A. H. org. AS Pulsões. São Paulo: Escuta, 1995.

________ Barbárie, cidadania e desejo. In:França, M. I. org. Desejo, barbárie e cidadania.


Petrópolis: Vozes,1995.

________ Psicanálise, ciência e cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1994.

BRAZIL V. B. Dois ensaios entre psicanálise e literatura. Rio de janeiro: Imago, 1992.

DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mill platôs - capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora
34, 1995. v.1

FRÉMION, Y. Um anúncio vale mil bombas...Os crimes publicitários na guerra moderna. In:
Perrault, G. org. O livro negro do capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999.

FREUD, S. O ego e o id. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1976. v.14

JUNG, C. G. O movimento circular e o centro. 6ª ed. In:__________& Wilhelm, R. O segredo


da flor de ouro.Petrópolis: Vozes, 1990. Kelh, M. R. O fetichismo. In: Sader, E. org. 7 pecados
do capital. Rio de Janeiro: Record, 1999.

LACAN, J. O seminário. Livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982.

PARAIRE, P. Os mortos-vivos da globalização. In: Perrault, G. org. O livro negro do


capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999.

PESSANHA, J. M. M. A vermelha flor azul. In: Brazil V. B. Dois ensaios entre psicanálise e
literatura. Rio de janeiro: Imago, 1992.

Contato com a autora:


verobernardi@rubedo.psc.br

A POESIA DE ADÉLIA PRADO E A PSICANÁLISE:


A ENCARNAÇÃO DO REAL
Cristiana Facchinetti

Qual a relação entre psicanálise e literatura? Duas vias podem ser abordadas: uma vez que a
cultura encontra-se como tema de estudo da psicanálise, seus produtos, incluindo neles a
literatura, devem ter lugar em sua pesquisa. Este parece ser o caminho tomado por Freud, que
utilizou personagens e obras para "vislumbrar a vida imaginária dos homens". 1

No entanto, Freud acaba por apontar outro viés que nos encaminha para um mais além do
imaginário: o fenômeno literário passa a ser também pesquisado sob o ponto de vista de um
inapreensível para a ciência2, denominado por ele como prazer preliminar.

A partir da trilha iniciada por Freud, Lacan se volta de maneira sistemática para a literatura,
propondo uma concepção para esta que se distancia de um tratamento de sujeito dado às
personagens.

"A Carta Roubada"3 é um texto que permite-nos verificar tal reflexão. Nele, as personagens são
elos de uma cadeia simbólica que se alteram e deslocam-se sob a influência da carta (a letra)
como significante. A partir de tal formulação, as entrelinhas do texto surgem como inscrição no
discurso e nos seus possíveis efeitos de sentido. A literatura é aí pensada como aquilo que
resulta da sublimação e do desejo que se sustenta na cadeia significante.

Entretanto, e é aí que a questão nos interessa particularmente, só haveria sublimação no


contexto do que Lacan vai chamar de boa neurose. Assim, se a sublimação supõe um saber
capaz de produzir a obra, tal saber implica, por outro lado, levar a escrita até os limites
máximos de si mesma, ao mesmo tempo em que a mantém presa a um laço social, isso é,
produzindo um discurso que possa ter sentido.

Trata-se, portanto, de uma inscrição do real no simbólico, inscrição essa sempre parcial,
inacabada, mas que deixa apresentar o real na sua dimensão de presentificação primeira no
psiquismo. Tal dimensão aponta para uma tensão entre o saber e aquilo que não é passível de
se acessar pela via do conhecimento.

Um poeta em carne

A poesia de Adélia Prado está justamente compreendida naquilo que aponta para o impossível:
o real. Tal modo associa-se ao corpo erógeno, à carnalidade do desejo, que se apresenta
como uma obra onde o campo da afetação e o da intensidade pulsional comparecem com sua
força, onde pode irromper o novo em sua brutalidade carnal e surpreendente.

É neste nicho que se abre, no esburacar-se das sedas, que se produz a obra de Adélia Prado.
Longe de dissipar seu pulsar erótico e erógeno num eterno mirar de seu próprio umbigo, ou de
controlar e acorrentar o mundo que o cerca, o poeta põe-se defronte ao mundo e é por ele
atravessado.

O poeta recusa a condição de gauche / coxo na vida. Sua delimitação crucial é muito mais sua
condição de poeta e o fato de que tal condição particular lhe abre uma porta, um a-mais para
uma nova possibilidade: a de ser desdobrável.

Tal sina dirige a poesia retroativa e paradoxalmente para a (re)inauguração do sujeito,


constituído e constituinte da carne mesma: não é preciso esquivar-se do mundo e de suas
impressões uma vez que a Coisa falta. Ao invés disso, trata-se de desejar e de comungar
sensorialmente com seus objetos. Tal comunhão, vale dizer, se faz através das "sensibilidades
sem governo" 4.
Comungar com o mundo e com seus objetos é, antes de tudo, admitir-se elo de uma cadeia
onde o que realmente importa é o desdobramento sensível dos corpos. E diante de tal
insuficiência, ao poeta não é dado prescindir da poesia.

Ao contrário, justamente de suas faltas é que se instala a avidez do poeta. Dos seus limites e
finitude mantém-se uma força que o põe em processo de criar um imaterial que, para sua
perplexidade, está sempre em fase de advir. Assim, é a ausência de conhecimento e saber que
o impelem na construção sempre nova de uma memória, de traços mnêmicos moventes,
constitutivos e criadores do presente do poema.

Na ausência do mundo organizado do simbólico, a vocação poética que lhe é possível diante
de sua intensidade é a da exaltação da carne: a carne incorruptível. É justamente a poesia que
permite à carne manter-se atada ao mundo e mesmo ressuscitar - "A poesia me salvará".

Mas se a poesia salva, isto não significa que através dela possa-se tapar o furo que nos leva
ao desamparo. Estando atingido pela brutalidade das coisas, ao poeta não é dado proteger-se:
o que seu deus lhe concede é não descansar e ser por tudo ferido de morte. Mas vale apontar
que tal dor reflete-se em dádiva, em alegria de viver, em gozo do corpo e da alma.

De fato, sua poesia mística, ao invés de colocar-se no lugar da crítica e do abandono do


mundo, ou mesmo de propor a salvação ou solução deste, aponta muito mais para a dispersão
no corpo.

Podemos dizer que o fundamento da poética adeliana é a adesão ao sensível, num ato carnal
com aquilo que poderá tornar-se significante, mas que vem ao nosso encontro como percepção
imagética que se marca na ausência de um nome e que passa a ter sentido ao ser nomeado.

A poesia atinge seu ápice quando consegue ser a mais pura manifestação do sensível uma vez
que, de tudo o que pretendem explicar, analisar ou traduzir, "as palavras só contam o que se
sabe"5. Deste modo, aquele que acha que diz está apenas repetindo. Na verdade,

a palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,


foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infreqüentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.6

Em Adélia Prado, a descontinuidade detectada por Foucault a partir do século XVII entre
palavra e coisa, parece dissolvida . Aqui, a palavra é tratada ora como a Coisa -

Quem entender a linguagem entende Deus


cujo Filho é o Verbo. Morre quem entender.7

Ora como coisas do mundo, onde o que importa é a sonoridade de que dispõem, a estrutura
que criam, muito mais do que seu significado8. Os fragmentos das conversas dispersas, estes
também são poesia. A palavra mistura-se aos objetos do mundo, ela própria é objeto. O ato de
escrever e fazer poesia estão então próximos à música que se desdobra nos ouvidos

Se quiser, ponho agora a ária na quarta corda,


para me sentir clemente apaziguada 9

A fala, nesta obra, comparece concretamente fazendo parte da vida. O mundo que a linguagem
evoca existe como a própria linguagem, do mesmo modo que corpo e alma não suportam
divisão. Mais uma vez, a fratura sujeito-objeto na perspectiva da linguagem e da dissolução
mística parece elidida.
O eu-poeta e o mundo estão sempre prestes a nascer, morrer e ressuscitar, seu corpo traz
sempre uma ferida aberta para todas as materialidades que, como corpo estranho, marcam-
nos de modo novo.

Em Adélia, o sujeito está sempre advindo, sendo aquilo que não pára de se inscrever no
mundo por ele mesmo criado: um sujeito nada pragmático, útil, mítico, ideológico ou neo-
liberal, mas uma eterna possibilidade de criação de um novo sujeito e de um novo mundo que
inaugure uma singularidade capaz de parir novos reinos: afinal, se dor não é amargura, pode
ser a travessia para um novo começo.

3- O poeta, o psicanalista

Como se a própria estrutura do fenômeno literário - e sua característica de criação de um novo


significante que não tapa a verdade do impossível - já não bastasse para justificar o interesse
da teoria psicanalítica pela literatura, há um outro eixo de fundamental importância para o tripé
psicanalítico e que a poesia de Adélia parece fazer florescer particularmente: a clínica.

De fato, Lacan liga a escrita poética à interpretação psicanalítica quando nos diz que o analista
deveria ser poeta ou poata. Torna-se imprescindível aproximarmo-nos ainda mais da escritura,
de modo a nos avizinharmos do que Lacan pretende ao fazer tal afirmação.

A poesia, que é efeito de sentido, é também efeito de furo. Ela não se situa, portanto, no
terreno do significado, se fechando num todo possível, mas parte para os limites do impossível.
O sentido no discurso analítico tampouco é simplesmente o significado de um discurso. Ele é
efeito de sentido, como na poesia.

Sendo assim, a poesia e a análise existem por permitirem interpretação. Do mesmo modo que
o escritor lapida o excesso de modo a produzir o novo em sua poesia, o setting deve ser
fecundo e produzir um novo significante que seja fecundo também - é o efeito de furo - e dar
um sentido - é o efeito de sentido. Consistência efetiva do real e do imaginário, portanto.

Quando tratamos aqui de um significante novo, partimos do pressuposto de que este seja um
significante necessariamente inventado, que se distingue em sua singularidade e diferença
daquele dado ao sujeito ao advir.

Apenas deste modo a produção do sujeito pode não ser da ordem da repetição, rememoração
e elaboração, mas da ordem da fecundidade da invenção. Ao parir este significante novo, o
sujeito se engendra como sujeito da diferença e pode dar vazão às intensidades. Esta é sua
fecundidade:

"(...) Quero comer o mundo e ficar grávida, virar giganta com o nome de Frederica, pra
se cutucar na minha barriga e eu fredericar coisas e filhos com a cor amarela e roxa,
fredericar frutas, água fresca, as pernas abertas, parindo. Por dentro faço mel como
colméias, põe tua língua no meu favo hexágono."10

Quando Lacan une a escrita poética à interpretação analítica, quer sublinhar que a escrita não
é aquilo através do qual a ressonância do corpo - a poesia - se exprime, se explica ou significa.
O que importa nela é muito mais o seu aspecto essencialmente sonoro, seu aspecto de objeto
concreto que se vê, a palavra como pedra bruta, a consistência do corpo como real.

Outro aspecto da poesia, inseparável da produção do novo, é o fato de ter efeito de sentido,
consistência do imaginário. A poesia faz com que o significado e/ou o mundo possam surgir,
criando uma realidade.

O efeito de sentido não é imaginário no sentido da ilusão, do engodo, mas aponta para o
registro do imaginário em sua consistência, ou seja, o real. É o ato de dar um nome, que se
nomeie alguma Coisa (das Ding), que faz surgir a dimensão das coisas( die Sachen), as quais
extraem seu fundamento do real.

Escrever é pôr na página, até criar a obra, a relação do escrito com a corporeidade e também
com o Outro; é transformar o imaterial e a relação não-recíproca numa relação de pura
diferença, mas que ainda assim traga a marca de um encontro possível. Afinal, entre a
escritura e a obra há uma ruptura violenta, a passagem do mundo onde tudo tem sentido para
onde nada tem sentido ainda, mas para tudo o que tem sentido remonta como em direção a
sua origem.11

É neste processo que o sujeito advém como efeito de subjetividade ligado ao gozo absoluto.
Esse sujeito é corpo. Cada uma das marcas pela qual passou o desejo foi delimitando-o. Um
corpo, diz Lacan, isso se goza12 por corporizá-lo num sistema de sentido e de furo.

De que ordem então é a consistência do corpo? Convém observarmos que sensação e


percepção aparecem como modos do ser-corpo. Sensação quanto à palavra, percepção
quanto à oração e, finalmente, imaginação quanto à relação entre duas orações e a pausa. O
corpo – isso se goza ao produzir a imagem. Se o poeta, cujas palavras fazem imagem,
encanta, é através do gozo consigo mesmo que ele comunica. O que não impede que o gozo
na imagem - e o gozo do Outro em geral - possa ser o gozo mortífero por excelência - há
sempre a contramão do narcisismo exacerbado e da pulsão de morte.

O sujeito separado não é mais o corpo do significante puro, mas é verbo, é fala. O corpo se
esvazia e recebe nele o não-significante. É aí na fala que se produz o gozo puro constitutivo do
inconsciente - ele ex-siste no corpo. O corpo do sujeito onde se ligam o não-significante e o
significante é símbolo. A poesia reencontra "alíngua" materna, mas através do discurso.

"O meu saber da língua é folclórico


Muitos me argüirão deste pecado"
(...)
'belo vale, por que belo vale'
este som de leite e veludo.
Quis dizer nêspera e não disse."13

BIBLIOGRAFIA

BLANCHOT, M., L'Espace litteréraire, Paris, Gallimard, col. Idées,1955.

FREUD, S., Der Wahn und die Träume in W. Jensens Gradiva, SFS, Frankfurt, S. Fischer, vol.
10, 1906-7, pgs.9-86.

FREUD, S., Der Dichter und das Phantasieren, SFS, Frankfurt, S. Fischer, vol. 10, 1908.

LACAN, J., Seminário sobre a Carta Roubada, Escritos, São Paulo, Perspectiva, 1966, pgs.17-
68.

LACAN, J., O Seminário, Livro XIX, Ou Pire...(1971-72)

LACAN, J., O Seminário, Livro XX, Mais, Ainda, Rio de Janeiro, Zahar, 1985.

PRADO, A., O Coração disparado, Rio de Janeiro, Salamandra, 1984,p.78

PRADO,A., Bagagem, Rio de Janeiro, Guanabara, 1986.


PRADO,A., Poesia Reunida, São Paulo, Siciliano, 1991

1FREUD, S., Der Wahn und die Träume in W. Jensens Gradiva, SFS, Frankfurt, S. Fischer, vol.
10, 1906-7, pgs.9-86.

2 FREUD, S., Der Dichter und das Phantasieren, SFS, Frankfurt, S. Fischer, vol. 10

3LACAN, J., Seminário sobre a Carta Roubada, Escritos, São Paulo, Perspectiva, 1966,
pgs.17-68.

4 PRADO,A .,Grande Desejo, Bagagem, p. 20

5 PRADO, A.,"Os Acontecimentos e os dizeres" Poesia Reunida.

6 PRADO, A., Poesia Reunida. p.22

7 PRADO, A., Poesia Reunida. p.22

8Ave, ávido./ Ave, fome incansável e boca enorme,/come./ Da parte do Altíssimo te concedo/
que não descansarás e tudo te ferirá de morte:/ o lixo, a catedral e a forma das mãos./ Ave,
cheio de dor. IN: PRADO, A., Anunciação do Poeta, Poesia Reunida, p.75.

9 PRADO, A., Poesia Reunida. p 57

10 PRADO, A.,Solte os cachorros, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979, p.83

11 BLANCHOT, M., L'Espace litteréraire, p.260.

12 LACAN, J., O Seminário, Livro XX, Mais, Ainda, p. 35

13 PRADO, A., O Coração Disparado, Rio de Janeiro, Salamandra, 1984,p.78

Ccontato com a autora:


cristianafac@rionet.com.br

MINHA ALMA É UM TINTEIRO SECO


Lyslei de Souza Nascimento1
Para Wander Melo Miranda

Todos os anos, os devotos italianos de San Gennaro vão a Nápoles e participam do rito que
envolve a fantástica liquefação do sangue do mártir exposto em duas âmbulas. A fé, simulação
cega de certezas de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem, é o
poderoso vetor que faz o sangue coagulado dissolver-se.

O santo, decapitado na perseguição perpetrada por Diocleciano, teve suas relíquias


conduzidas à Catedral de Nápoles pelo Rei Fernando da Espanha, em 1495. A cerimônia do
milagre de San Gennaro é aberta a um sem número de peregrinos que podem ver exposto o
sangue e, também, segundo a tradição, a liquefação e a ebulição do precioso líquido. Se o
sangue não se liqüefaz, é mau presságio.
As ampolas ou âmbulas são relicários religiosos, objetos de encerramento que gozam do júbilo
do oculto, do misterioso e do sagrado. Também possuem, esses continentes, a propriedade de
manter segredos que esperam para serem revelados. Segundo Danielle Régnier-Bohler2, os
relicários são guardiões de uma quintessência e de uma memória narrativa, além de se
constituírem como metáforas de uma perenidade desejada pelo fiel.

As âmbulas podem ser vistas como as copas da carta de tarô, o crisol dos alquimistas ou o
tinteiro do narrador-escritor em O castelo dos destinos cruzados, de Italo Calvino.3

O relicário de Calvino escapa, no entanto, ao sagrado e ao ritual que as âmbulas de San


Gennaro e as relíquias ostentam. O Cálice Bento, o Santo Graal e outros signos que circulam
na tradição religiosa e literária vêm envoltos em construções imaginárias do sagrado, daquilo
que foi separado para a veneração. O papel do fiel é, portanto, crer, sem sombra de dúvida, no
Santo Graal que, às vezes, pode ser, não só o cálice que contém o sangue de Cristo, como
também o livro que contém a chave para a vida eterna. O Santo Graal, como descreve a lenda
medieval, é um vaso de esmeraldas usado por Jesus na última ceia e com o qual José de
Arimatéia teria recolhido o sangue de Cristo quando este teve o seu coração transpassado pela
lança de um centurião. A lenda aparece a partir do século XII, nos romances de cavalaria
como Perceval ou Le Conte du Graal, 1182, de Chretién de Troyes.

Ambas as representações dessa tradição, o cálice e o livro, veiculam a idéia de uma vida
eterna e sem males e partem da premissa metafísica da fé.

Em Calvino, no entanto, a alma é um tinteiro seco. O cálice e o tinteiro se identificam à medida


que alojam a tinta/sangue da escrita. O relicário de Calvino está seco. No fundo dessa copa -
depositária infinita de referências literárias e pictóricas - descansa a tinta/sangue. Enquanto o
texto que se apoia na fé, ilusão de quem crê, busca incessantemente o milagre - da liquefação
do sangue de San Gennaro para a boa sorte ou o Santo Graal, para a vida eterna -, o texto de
Calvino apoia-se na leveza poética que a ciência pode alcançar na literatura.

A leveza atua sobre a tinta seca dos múltiplos textos cruzados que compõem o resíduo no
fundo do tinteiro e impelem o narrador-escritor a liqüefazer os textos que, às vezes, teimam em
se apresentar sob o peso da tradição. O que faz a tinta de Calvino escorrer e criar novos e
inusitados rastros sobre o papel é a busca alquímica de quem intenta, pela literatura, o
conhecimento das coisas, retirando, no entanto, todo o peso da linguagem, fazendo dela e com
ela a leveza do viver. A pena, o cálamo, a esferográfica de Calvino parecem indicar sempre
uma encruzilhada de múltiplos caminhos que seguem o fio negro de tinta sobre o papel: o
caminho das paixões - uma via de fato, agressiva, de cortes nítidos – e o caminho do não-
saber, que requer reflexão e um lento aprendizado.

No tinteiro seco de Calvino, subjaz a multiplicidade das referências e inferências que a


memória do leitor pode fazer. São imagens de borrões e de rasuras no pergaminho do escritor.
O cálice/tinteiro religioso transborda, outros cálices estão vertiginosamente cheios e ainda se
continua a beber no copo alheio, mas o tinteiro de Calvino está seco. Sua escrita tem, nessa
representação, um subsolo que pertence a certas categorias da renda4. Calvino acaba por
filigranar e socavar, através de evocações mnemônicas, os textos que estão precariamente
sedimentados na tinta com que escreve. Em estado de dicionário estão todas as leituras e
imagens - memórias infinitas, impossíveis de seguir, de rastros e rasuras - que constituem esse
palimpsesto.

As imagens de transbordamento e de sede insaciável contrapõem-se à imagem austera e


elegante do tinteiro seco. A tinta seca, longe de ser um empecilho à escrita, apresenta-se, em
Calvino, como uma soma das multiplicidades textuais que compõem a escrita. Os livros se
respondem, combatem-se, completam-se reciprocamente e é no contexto cultural em que
esses textos são produzidos que cada operação do escritor ganha sentido. Esse trabalho
fabulatório está para o compor e o recompor, o reduzir pouco a pouco o tom da matéria verbal
grandiloqüente até chegar no nível de um balbucio de sonâmbulo.5
A primeira imagem evocada, cálice/relicário, é da sacralidade da escritura com sua solenidade
que se quer transcendente para o homem. A segunda, tinteiro/tinta, é sobretudo uma
desconfiança no fazer dos homens e na auto-construção do seu destino. O texto, por essa via,
perde a aura e se apresenta como artefato e matéria literária.

A tinta seca no tinteiro elegante está para o exercício da memória do escritor e do leitor;
parceria indispensável nesse empreendimento. Tudo o que se aprendeu de cor, o que se
recitou mentalmente, o que se fundou num repertório de textos é continuamente revolvido pela
pena do escritor. O texto disperso na memória volta a se apresentar fluido na reescrita, sem
vibração nostálgica, mas sempre como um texto que é lido/escrito pela primeira vez e que pode
ser considerado como um arquivo dos materiais acumulados pouco a pouco, ao longo de
estratificações sucessivas de interpretações iconológicas, de humores temperamentais, de
intenções ideológicas, de escolhas estilísticas.6
A espessura que a tinta seca pode evocar liga-se ao peso do existir dentro da tradição. O
resíduo da tinta apresenta-se como um repertório iconográfico de textos que, em Calvino,
aparecem sobrepostos, em palimpsestos que subjazem na memória. A suspensão da
capacidade da tinta de escrever, sua concretude, pode, ao apresentar-se, paradoxalmente,
como uma espécie de resíduo alquímico em que a pena do escritor explora confins negros do
pensável, materiais narráveis, possibilidades discursivas.

O milagre da pena do escritor consiste, assim, em liqüefazer a tinta seca e reescrever com
leveza os textos sedimentados na memória ou extrair dos resíduos das narrativas tinta para
novas histórias. Do caos primitivo da tinta seca, escoam possibilidades de matizes e nuanças
de outros textos que anelam pela travessia do leitor.

Copas, vasos, relicários, âmbulas, crisóis e tinteiros são todos depositários da tinta/sangue
com que se escreve a ficção. A intervenção da pena do escritor, de sua esferográfica, no
entanto, dissolve o peso da escrita que se quer, como afirma Calvino, leve como as densas
colchas de asas de borboletas; as pegadas de cascos alados que são mais leves que as patas
dos insetos; um polvilhar dourado sobre as folhas, como deixam cair certas libélulas. Esses
rastros servem, porém, como guia no emaranhado de possibilidades narrativas. 7

A tinta residual e condensada no fundo do tinteiro lembra a nigredo, da alquimia. Mircea Eliade
em Ferreiros e Alquimistas8, associa à cor negra a redução de substâncias à matéria prima, à
massa confusa. A tinta seca de Calvino, vista como essa massa residual informe,
corresponderia ao Caos, pensado na Alquimia. Uma das máximas dos alquimistas aconselha:
"Não efetue qualquer operação antes que tudo tenha sido reduzido à Água". Semelhantemente,
em Calvino, o texto só pode ser gerado se a condensação da tinta - resíduos de tantos textos -
for diluída para se obter a leukosis, a albedo: ressurreição da nigredo – da tinta negra – em
uma outra narrativa.

Tal qual o alquimista, o escritor deve obter a dissolução dessas substâncias textuais para que
haja possibilidade de engendrar novas e inesperadas tramas. Para o escritor-alquimista, o
conhecimento do mundo é a dissolução de sua compacidade9, a prima matéria, a massa
confusa, o abyssus. De uma certa forma, uma volta a um estado primordial em que a divina
tintura pode fluir, sem perder de vista que
dessa esfera árida partem todos os discursos e poemas e todas as viagens através de florestas
batalhas tesouros banquetes alcovas nos trazem de volta para cá: o centro de um horizonte
vazio.10
No Castelo dos destinos cruzados, o centro do horizonte vazio parece ser, ironicamente, o
lugar de onde e para onde convergem todas as narrativas. A redução do resíduo à tinta
liqüefeita é que fundamenta essas novas narrativas. O fenômeno da regressão - a volta da
matéria em sua forma líquida, portanto, narrável, sujeita à escrita - pode ser relacionado,
também, ao nascimento e à morte. Morte iniciática tal como se depreende da nigredo, da
putrefactio, da dissolutio. Para a alquimia, toda morte é, antes de tudo, uma reintegração na
Noite cósmica, no Caos pré-cosmológico, enfim, um retorno à fase seminal da existência. Logo,
a criação (uma nova escritura), como aparecimento de Formas, é efeito de uma morte
iniciatória e a ressurreição corresponderia ao redimensionamento da materia prima - onde se
contempla o Todo e se decidem as Escolhas - em uma nova materia. Para Calvino, toda
narrativa é percorrida pela sensação da morte em que parecem debater-se, ansiosamente,
personagens reais e fictícios que se agarram nos liames da vida.11

A carta da morte no Tarô, assim, pode ser lida em sua ambigüidade como portadora de raízes
adubadas de cadáveres mal curtidos e de ossos depenados que, entre sepultamentos e
exumações, possibilitam a reescrita. A transformação alquímica, como recomenda o Liber
Platonis Quartorum, deve ocorrer num occipício como vaso, uma vez que o crânio é o
receptáculo do pensamento e do intelecto (os capitis... vas mansionis cogitationis et intellectus;
citado por Jung em Psychologie und Alchemie, p. 363). O alquimista em seu laboratório diante
do crisol se assemelha ao escritor em seu escritório diante do tinteiro e ao São Jerônimo dos
quadros citados por Calvino. O simbolismo mineralógico, os rituais metalúrgicos, as magias do
fogo e as crenças na transmutação dos metais em ouro aproximam-se do trabalho do escritor
com as palavras.

A descida aos Infernos - a morte iniciatória - e a experiência que transforma a tinta seca em
tinta líquida se traduzem através do simbolismo saturnino, da melancolia, da contemplação de
crânios.
A figura de Cronos-Saturno simboliza o Grande Destruidor que é o Tempo, e portanto não só a
morte (= putrefactio) como também novo nascimento. Saturno, símbolo do Tempo, é muitas
vezes representado com uma balança na mão. (...) Não se deveria esquecer nesse "domínio
da Balança" (que os torna oniscientes e clarividentes), nessa familiaridade com a obra do
Tempo (a putrefactio, a Morte que destrói omne genus et formam), nessa "sabedoria reservada
apenas àqueles que anteciparam durante a vida a experiência da morte, a explicação da
célebre "melancolia saturnina" dos magos e alquimistas? 12
Calvino, na proposta das lições americanas sobre a exatidão, evoca Maat, a deusa da balança.
A precisão é explicada pelo escritor como um projeto de obra bem definido e calculado, como a
evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis e como uma linguagem que seja a
mais precisa possível como um léxico que traduziria as nuanças do pensamento e da
imaginação. Essa preocupação com aponta para o trabalho diligente do escritor-alquimista e
sua tendência à introspecção própria aos melancólicos. Segundo Calvino:
Os antigos nos ensinam que o temperamento saturnino é próprio dos artistas, dos poetas, dos
pensadores, e essa caracterização me parece correta. É certo que a literatura jamais teria
existido se uma boa parte dos seres humanos não fosse inclinada a uma forte introversão, a
um descontentamento com o mundo tal como ele é, a um esquecer-se das horas e dos dias
fixando o olhar sobre a imobilidade das palavras mudas. Meu caráter apresenta sem dúvida os
traços tradicionais da categoria a que pertenço: sempre permaneci um saturnino, por mais
diversas que fossem as máscaras que procurasse usar. Minha veneração por Mercúrio talvez
não passe de uma aspiração, um querer ser: sou um saturnino que sonha ser mercurial, e tudo
o que escrevo se ressente dessas duas influências.13
O escritor-alquimista efetua, com o crisol/tinteiro, o engendramento de uma narrativa que traz
inscrito o traço daquele que a concebeu e de quantos textos o escritor/leitor percorreu em sua
vida. Tanto mais, diz Calvino, que Balança é o seu signo zodiacal. Contrapondo Mercúrio (as
trocas, o comércio, a destreza) e Saturno (a melancolia, a solidão, a contemplação), Calvino
opera os dois pratos da Libra e tal qual o trabalho quase obsessivo e maníaco do alquimista-
escritor, a narrativa ressurge como mosaicos construídos pelo desfiar/fiar de tradições e textos
que constituem o tecido narrativo. Assim,
todas aquelas copas não passam de tinteiros secos à espera de que da negrura da tinta
venham à tona os demônios as potências do ínfero os papões os hinos à morte as flores do
mal os corações na treva, ou bem que paire aí o anjo melancólico que destila os humores da
alma e extravasa extratos de graça e epifanias.14

1 UFMG.

2 RÉGNIER-BOHLER, Danielle. Ficções. In: ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges. História da


vida privada: da Europa feudal à Renascença, p. 334 - 335. (Histoire de la vie privée, vol. 2: De
l'Europe féodale à Renaissance).
3CALVINO, Italo. O castelo dos destinos cruzados. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993. (Il castello dei destini incrociati).

4 CALVINO, 1993, p. 131.

5 CALVINO, 1993, p. 155.

6 CALVINO, 1993, p. 156.

7 CALVINO, Italo. Op. Cit., p. 48.

8 ELIADE, Mircea. Ferreiros e alquimistas. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 118 - 130.

9 CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso, 1991, p.21.
(Lezioni americane: Sei proposte per il prossimo millennio).

10 CALVINO, 1993, p.58.

11 CALVINO, 1991, p. 46.

12 ELIADE, 1979, p. 124.

13 CALVINO, 1991, p. 64-65.

14 CALVINO, 1993, p. 128.

Para entrar em contato com a autora


lyslei@brhs.com.br

PSICOLOGIA DA RELIGIÃO

Aline Rocha Bieites de Araújo


As manifestações religiosas e simbólicas que cercavam Carl Gustav Jung, filho de um pastor
protestante, sempre lhe chamaram a atenção. Foi através de uma observação cuidadosa e
atenta da análise destas representações na mente humana que ele pôde reconhecer como
conteúdos arquetípicos da alma as manifestações coletivas que embasam as mais diversas
religiões.

Agnóstico pela metafísica e gnóstico pela experiência, Jung via a religiosidade como uma
função natural e inerente à psique. Chegava a considerá-la, como aponta Silveira (1994), um
instinto, um fenômeno genuíno. A religião era vista mais como uma atitude da mente do que
qualquer credo, sendo este uma forma codificada da experiência religiosa original.

"Encaro a religião como uma atitude do espírito humano, atitude que de acordo com o emprego
originário do termo: "religio", poderíamos qualificar a modo de uma consideração e observação
cuidadosas de certos fatores dinâmicos concebidos como "potências": espíritos, demônios,
deuses, leis, idéias, ideais, ou qualquer outra denominação dada pelo homem a tais fatores;
dentro de seu mundo próprio a experiência ter-lhe-ia mostrado suficientemente poderosos,
perigosos ou mesmo úteis, para merecerem respeitosa consideração, ou suficientemente
grandes, belos e racionais, para serem piedosamente adorados e amados." (Jung, 1995, p.10)
O próprio Jung menciona a importância da religiosidade para o ser humano, ao afirmar
(Jung apud.Silveira, 1994):
"Entre todos os meus doentes na segunda metade da vida, isto é, tendo mais de 35 anos, não
houve um só cujo problema mais profundo não fosse constituído pela questão de sua atitude
religiosa. Todos, em última instância, estavam doentes por ter perdido aquilo que uma religião
viva sempre deu em todos os tempos a seus adeptos, e nenhum curou-se realmente sem
recobrar a atitude religiosa que lhe fosse própria. Isto, é claro, não depende absolutamente de
adesão a um credo particular ou de tornar-se membro de uma igreja." (pp. 153-154)

Jung considerava todas as religiões válidas, visto que todas recolhem e conservam imagens
simbólicas advindas do inconsciente, elaborando-as em seus dogmas e, assim, realizando
conexões com as estruturas básicas da vida psíquica. "As organizações ou sistemas são
símbolos que capacitam o homem a estabelecer uma posição espiritual que se contrapõe à
natureza instintiva original, uma atitude cultural em face da mera instintividade. Esta tem sido a
função de todas as religiões." (Jung, 1997, p. 57)

Jung entendia o termo como religio e religare, ou seja, tornar a ligar. E via a religião
exatamente com a função de ligar o consciente a fatores inconscientes importantes. Para Jung,
a libido que constrói imagens religiosas, representa o laço que nos liga à nossa origem. Para
designar a vivência do contato com tais fatores e a forte emoção descrita pelos que a
vivenciam, Jung apropriou-se do termo criado por R. Otto: numinoso. Via, então, a religião
como uma observação conscienciosa e acurada do "numinoso", ou seja, um efeito dinâmico ou
existência que domina o ser humano; é independente de sua vontade.

"O termo "religião" nele se subdivide finalmente em duas acepções profundamente diferentes,
sem por isso ser irreconciliáveis. De um lado, uma confissão que toma sua origem numa
profissão de fé determinada(..) e, de outro lado, uma experiência ou uma série de experiências
primordiais, nas quais o homem entra em relação com um sagrado que provoca nele o
sentimento do numinoso. No primeiro caso a religião se apresenta como um sistema de
representações fixas, um conjunto de símbolos nos quais as significações culturais se
sobrepõem às correspondências psíquicas naturais e geralmente as oculta. Ela supõe o
fenômeno da crença e o prolonga com um corpo de dogmas; sem impedir a possibilidade de
uma relação direta entre o crente e seu deus, ela não a encoraja e se apresenta, por meio de
seus ritos e suas liturgias, como mediadora necessária graças à qual o homem encontra o
divino.
A segunda definição de religião, no sentido da experiência religiosa anterior a qualquer
especificação confessional, com a própria aprovação de Jung, constitui um domínio eletivo
para sua psicologia." (Tardan-Masquelier, 1994, pp.134-135)
Para o gnosticismo1, há uma divisão do indivíduo em corpo, alma e espírito, o que permite
classificar os homens em hyléticos2, psíquicos e pneumatológicos3. Desta forma, Jung
acreditava que a grande função da religião era evitar dissociações neuróticas da psique, o que
se consegue através do autoconhecimento, do embate entre o Ego e o Self, entre a realidade
física e a psíquica. Ele pontuava que a causa de inúmeras neuroses está principalmente no
fato de as necessidades religiosas da alma não serem mais levadas a sério, "devido à paixão
infantil do entendimento racional. (...) o que importa já não são os dogmas e credos, mas sim
toda uma atitude religiosa, que tem uma função psíquica de incalculável alcance." (Jung, 1999,
p. 44) Ou seja, é importante para o homem desenvolver uma atitude religiosa, independente do
credo ou do dogma.

Devo ressaltar que Jung utilizava os termos "Deus" ou "divindades" no contexto simbólico,
como explica: "Ambos se encontram como tais muito além do alcance humano. Revelam-se a
nós como imagens psíquicas, isto é, como símbolos." (Jung, 2000, p. 296). E as pessoas
realizam os ritos porque "No rito estão próximas de Deus; são até mesmo divinas." (Jung,
1998, p.273)

Visto que o termo símbolo pode ser assumido de diversas maneiras, abro aqui um espaço para
definir a acepção que faço do mesmo. "O mecanismo psicológico que transforma a energia é o
símbolo, (...) um meio inestimável que nos dá a possibilidade de utilizar o mero fluxo instintivo
do processo energético para uma produção efetiva de trabalho" (Jung, 1997, pp. 44- 45).
O simbolismo é expressivo; é um modo de dizer algo impossível de ser dito diretamente. Como
o que é simbolizado é, geralmente, um objeto de valor, as atitudes das pessoas perante seus
símbolos raramente são neutras; são sempre carregadas afetivamente. Isso ocorre porque há
uma tendência a se transferir o valor do que é simbolizado para o símbolo.

O termo símbolo pode ser usado para qualquer ato, objeto, acontecimento, relação ou
qualidade que sirva de vínculo à uma concepção. Trazido pela imaginação, cada um é
simbolizado e traduzido. Todo os símbolos são formulações passíveis de noções, de
abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, em incorporações concretas de
atitudes, crenças, julgamentos ou idéias.

"Sob a forma abstrata, os símbolos são idéias religiosas; sob a forma de ação, são ritos ou
cerimônias. São manifestações e expressões do excedente da libido. Constituem, ao mesmo
tempo, degraus que levam a novas atividades que, especificamente, devemos chamar
culturais, para distingui-las das funções instintivas que seguem seu curso regular, de acordo
com as leis da natureza." (Jung, 1997, pp. 45-46).
Jung afirmava que um símbolo religioso pertence à linguagem das religiões. São símbolos
envoltos em dogmas e rituais fortemente organizados. Designam conteúdos dogmáticos e
fenômenos religiosos. As principais figuras simbólicas de uma religião constituem sempre a
expressão da atitude moral e espiritual específica que lhe são inerentes. A percepção de uma
figura religiosa pelos sentidos, apoia a transferência da libido para o símbolo.

No caso dos primitivos, a formação de uma religião ou a formação dos símbolos é de seu
interesse e tão importante quanto a satisfação dos instintos. O caminho para um posterior
desenvolvimento e fuga do estado de redução é a formação de uma religião de caráter
individual. As idéias mais primitivas referentes a uma potência mágica que pode ser
considerada ao mesmo tempo como força objetiva e estado subjetivo de intensidade
demonstram como os inícios da formação dos símbolos se acham intimamente ligados ao
conceito de energia.

O símbolo reativa a imaginação, através da "função teofânica", da imaginação simbólica, que


se dá por uma experiência simbólica vivida no numinoso. Pitta & Mello citam Durand, que
define símbolo como "uma representação que faz aparecer um sentido secreto, ...a epifania de
um mistério" (1995, p.105).

Os símbolos possuem as características culturais de arquétipos universais e são, cada um,


produtos únicos da experiência de grupos específicos com suas sensibilidades próprias. Como
fenômeno, importa na religião que a consideremos em si mesma, naquilo que contém de
irredutível e original. Para que seja possível tal apreensão é que necessitamos dos símbolos.

A imaginação simbólica está na base de diversas vertentes do sócio-cultural, inclusive da


religião (Pitta & Mello, 1995, p.106), visto que a utilização e apreensão das formas simbólicas
são acontecimentos sociais como quaisquer outros.

Geertz afirma que os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o "ethos" de um povo "o
tom, o caráter, e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticos e sua
visão de mundo; o quadro que fazem do que são as coisas na sua simples atualidade, suas
idéias mais simples sobre ordem" (1989, p. 104).

O ethos torna-se intelectualmente razoável por representar um tipo de vida idealmente


adaptado ao estado de coisas atual que a visão de mundo descreve enquanto torna-se
emocionalmente convincente por ser apresentada como a imagem de um estado verdadeiro.
Isso gera dois efeitos que envolvem moral e estética: objetivam preferências retratando-as
como condições de vida impostas e invocam sentimentos vividos profundamente como provas
experimentais da verdade. Os símbolos religiosos unificam um estilo de vida particular e uma
metafísica específica.

O homem depende grandemente dos símbolos e dos sistemas simbólicos, a ponto de torná-los
decisivos para sua viabilidade como criatura. Qualquer indício de que não somos capazes de
enfrentar um ou outro aspecto da experiência provoca em nós grande ansiedade, pois o
homem não sabe enfrentar o caos.

Geertz cita James, para quem acreditamos em tudo e acreditaríamos mais, se pudéssemos. O
que menos somos capazes de tolerar são ameaças a nossos poderes de concepção, a
qualquer idéias de que nossa capacidade de criar, apreender e utilizar os símbolos possa
falhar, pois assim estaríamos perdidos (1989, p. 113).

Antes de discorrer sobre a visão junguiana sobre a religião, devo esclarecer também um pouco
da teoria do autor sobre a psique; sua estrutura e funcionamento. Assim, ficará de mais fácil
compreensão ao leitor não especializado os termos e mecanismos aqui referidos.

Para Jung, a psique seria formada por vários sistema distintos, interatuantes, sendo os
principais o Ego, o Self (ou Si-mesmo), o inconsciente pessoal e seus complexos, o
inconsciente coletivo e seus arquétipos (entre outros a persona, a anima, o animus e a
sombra). Além destes sistemas interdependentes, existiriam ainda as atitudes de introversão e
extroversão e as funções de pensamento, sentimento, sensação e intuição.

A psique seria um sistema de energias parcialmente fechado, onde a energia de fontes


externas deveria ser acrescentada ao sistema. Os estímulos ambientais também produziriam
mudanças na distribuição da energia interna do sistema. O fato da dinâmica da personalidade
estar sujeita a influências e modificações de fontes externas significa que a personalidade não
é capaz de atingir um perfeito estado de estabilização, o qual só seria possível se ela fosse um
sistema completamente fechado, sendo, portanto, um estado ideal.

Jung acreditava que, quanto mais profundas fossem as camadas da psique, mais perderiam
sua originalidade individual. "Quanto mais profundas, mais coletivas se tornam, e acabam por
universalizar-se e extinguir-se na materialidade do corpo, isto é, nos corpos químicos. O
carbono do corpo humano é simplesmente carbono; no mais profundo de si mesma, a psique é
o universo." (Jung, 1975 - p.355).

Segundo Jung, "nossa consciência não se cria a si mesma, mas emana de profundezas
desconhecidas. Na infância, desperta gradualmente e, ao longo da vida, desperta cada manhã,
saindo das profundezas do sono, de um estado de inconsciência. É como uma criança
nascendo diariamente do seio materno". (ibid. p.353). As profundezas mencionadas por ele
residiriam em cada ser e suas dimensões seriam incalculáveis: o inconsciente. Logo, seriam
dois os níveis de estruturas psíquicas que formam o psiquismo: o consciente e o inconsciente.

Para Jung, a consciência seria um fenômeno intermitente, produto da percepção e orientação


no mundo externo, surgindo quando se percebe que se "é". Ela cobriria o inconsciente e dele
brotaria. Ele afirmava que, teoricamente, seria impossível fixar limites para a consciência, visto
que ela poderia estender-se indefinidamente, mas, empiricamente, ela encontraria seus limites
quando atinge o desconhecido. Desconhecido este que se dividiria em dois grupos: os
exteriores e os interiores, que seriam o objeto da experiência imediata. Aos últimos chamou
inconsciente.
Jung foi o primeiro a estabelecer que consciente e inconsciente existiriam em um profundo
estado de interdependência recíproca, sendo impossível o bem-estar de um sem o bem-estar
do outro. Ao diminuir ou danificar a conexão entre esses dois estados, o homem adoeceria e
sua vida ficaria despojada de significação. "Se o fluxo entre um estado e outro for interrompido
por muito tempo, o espírito e a vida humana na Terra serão remergulhados no caos e na velha
noite". (1993, p.15). Assim, para ele, a consciência não seria simplesmente um estado de
espírito intelectual e racional ou da mente, nem dependeria somente da capacidade do homem
para a articulação. Ele concluiu que a consciência não seria apenas um processo racional e
que o homem estaria errado ao acreditar que ela e os poderes da razão fossem a mesma
coisa.

A consciência seria, então, o sonho permanente e mais profundo do inconsciente, que luta
sempre por lograr uma consciência cada vez maior, chamada por Jung de "percepção". Essa
"percepção" incluiria toda a sorte de formas não-racionais de conhecimento e percepção,
bastante preciosas por serem as pontes no meio da inesgotável riqueza do significado ainda
não compreendido do inconsciente coletivo, que estaria sempre disposto a expandir a
consciência do homem para as necessidades que se apresentassem. Ou seja, a consciência
se renovaria e ampliaria conforme a vida assim o exigisse, através de suas linhas (não-
racionais) de comunicação com o inconsciente coletivo.

Jung acreditava que os processos inconscientes compensadores do eu consciente continham


todos os elementos que a psique necessita para se auto-regular como um todo. Para ele,
porém, o inconsciente encerraria possibilidades inacessíveis ao consciente, já que nele se
encontrariam os conteúdos subliminais de tudo que foi esquecido ou passou despercebido,
além de tudo o que depositou-se em suas estruturas arquetípicas durante milênios.

Jung concebia o inconsciente como que constituído de duas camadas: uma pessoal e outra
coletiva. O inconsciente pessoal se constituiria por conteúdos individuais mais ou menos
únicos, que não se repetiriam, e seriam formados pelas camadas mais superficiais do
inconsciente, que abarcaria as lembranças perdidas, reprimidas, as percepções e impressões
subliminais e os conteúdos que ainda não amadureceram para a consciência. Mello &
Figueiredo (ms. 1995 - p. 10) citam Humbert, segundo o qual,

"o inconsciente pessoal é feito de inconsciente coletivo: resulta do encontro das informações
que conduzem o vir-a-ser humano, com as circunstâncias, as particularidades, as escolhas, as
hereditariedades, os ambientes, as tradições, enfim, todo o contexto físico e psíquico, social e
individual da existência".

Resumidamente falando, o inconsciente pessoal seria formado, então, por aquisições que
resultariam da interação do indivíduo com o ambiente, do que é reprimido e do que é
percebido, pensado ou sentido.

A segunda camada do Inconsciente, o coletivo, incluiria estruturas universais que aparecem


regularmente4. Lá se encontrariam os instintos, complexos e arquétipos. Ele nos revelaria as
conexões do indivíduo com o todo. Segundo Jung descreve, "os conteúdos do inconsciente
coletivo constituem como que uma condição onipresente, imutável, idêntica a si própria em
toda parte." (1975, p. 355). O inconsciente coletivo seria, então, de natureza distinta,
abrangendo em si todos os conteúdos da experiência psíquica humana, sendo, também,
neutro, pois seus conteúdos só receberiam determinação de valor depois da confrontação com
o consciente. Assim, também, o inconsciente seria objetivo em comparação ao consciente, que
seria sempre subjetivo. Ou seja, o inconsciente sempre "diz" claramente, mesmo que através
de símbolos, tudo o que deseja "dizer"; é direto. Já o consciente abriga em si valores aos quais
"permitiu" acesso do inconsciente, aos quais já determinou um valor e um significado; tudo nele
é muito "particular", muito "pessoal", muito do próprio indivíduo.

Arquétipos seriam um padrão hereditário e característico da espécie, que organiza o


desenvolvimento psicológico através dos símbolos, sendo atualizados de acordo com as
condições internas e externas do indivíduo. Seriam inobserváveis. Derivariam das matrizes
arquetípicas, podendo assumir diversas formas e gerar as imagens arquetípicas. Estas, por
sua vez, seriam imagens e/ou vivências formadas a partir de fatores e motivos denominados
arquétipos, tornando possível sua observação. Arquétipos, ou imagens primordiais, seriam
auto-retratos dos instintos. Temas e figuras que pertenceriam a fatores estruturais do
inconsciente humano. Seriam predisposições herdadas que responderiam a certos aspectos do
mundo. Suas manifestações repousariam sobre condicionamentos instintivos e nada teriam a
ver com a consciência.

Segundo Silveira (1994, p.79), Jung considerava os arquétipos "possibilidades herdadas para
representar imagens similares, são formas instintivas de imaginar. Matrizes arcaicas onde
configurações análogas ou semelhantes tomam forma. Jung compara o arquétipo ao sistema
axial dos cristais, que determina a estrutura cristalina na solução saturada, sem possuir,
contudo, existência própria". Eles não teriam conteúdo determinado; seriam determinados, em
grau limitado, em sua forma. Não seria possível provar sua existência, a não ser que eles se
manifestassem de maneira concreta.

Segundo Jacobi (p. 60), "o inconsciente coletivo, matriz parapessoal da soma acumulada em
milhões de anos de condições psíquicas básicas, tem uma amplitude e profundidade
incomensuráveis; é o equivalente interno da criação, desde o primeiro dia do seu ser e estar,
um cosmo interno tão infinito quanto o externo"

Jung introduziu um novo conceito: o arquétipo sombra como um dos conteúdos do inconsciente
pessoal. Para ele, a sombra seria uma parte inferior da personalidade, o somatório de todos os
elementos psíquicos pessoais e coletivos, das propriedades ocultas e desfavoráveis, das
funções mal desenvolvidas e dos conteúdos do inconsciente pessoal. Os seus elementos
seriam incompatíveis com a forma de vida escolhida, por isso uniriam-se ao inconsciente
formando uma personalidade parcial e relativamente autônoma, que possuiria tendências
opostas às do consciente. Ela representaria o oposto do que seria o Ego, e, pelo seu
desconhecimento pelo Ego, seria vivida geralmente como perigosa. Segundo Jung, "a sombra
é todo o inconsciente". (Mello & Figueiredo, ms. 1995, p.8)

Haveria uma medida para todos os indivíduos absorverem sua própria sombra: não se poderia
absorvê-la completamente, nem ignorá-la. Segundo Jung (1975, p. 359),

"enquanto elemento do inconsciente pessoal, a sombra procede do eu; enquanto arquétipo do


"eterno antagonista", procede do inconsciente coletivo. (...) Negligenciar e recalcar a sombra ou
identificar o eu com ela pode determinar dissociações perigosas. Como ela é próxima do
mundo dos instintos, é indispensável levá-la continuamente em consideração."
Ele afirma, também, que a sombra não possuiria somente tendências moralmente
repreensíveis; possuiria, ainda, instintos normais, boas qualidades, reações apropriadas,
impulsos criadores e percepções realistas, e que, no sonho, ela freqüentemente possuiria o
mesmo sexo que o sonhador. Coloca, ainda, que a sombra representaria os potenciais não
vividos ainda, que muitas vezes não têm força para expressão ou são incompatíveis com a
auto-imagem do indivíduo.

O conceito de persona também está inserido dentro da concepção junguiana de personalidade.


O termo persona designava a máscara usada pelos atores no teatro antigo. Jung apoderou-se
do termo para designar "a máscara", a maneira que usamos para nos mostrar na comunicação
com o mundo; o modo que nós e os outros pensam que somos - o que parecemos ou
desejamos ser. Ela seria uma zona intermediária entre a consciência do eu e os objetos do
mundo; uma ponte com o mesmo. Os moldes da persona seriam retirados da psique coletiva.

A persona seria, em parte, um sistema de defesa. Mas existiria o risco de o Ego consciente
identificar-se com ela devido à sua grande valorização. Quando isso acontecesse, o indivíduo
seria fundido com ela, se reduzindo a uma "impermeável casca de revestimento" (Silveira,
1994, p.94), não passando, por dentro, de um farrapo que seria facilmente destruído por seu
inconsciente. Quanto mais aderida à pele do ator, mais dolorosa seria a operação psicológica
para despir a persona. Ao retirar a máscara, a face que apareceria seria estranha para nós e
nela se refletiria nosso lado escuro e desconhecido: a sombra.

Anima e animus seriam a personificação da natureza feminina do inconsciente do homem e da


natureza masculina do inconsciente da mulher. Sua função seria estabelecer uma relação entre
a consciência individual e o inconsciente coletivo. Essa bissexualidade psíquica refletiria um
fator biológico: o número de genes do sexo oposto presente em cada indivíduo parece produzir
um caráter correspondente no mesmo, sendo que, devido à sua inferioridade, permaneceria
inconsciente. O homem traria em si uma imagem de mulher e a mulher traria em si uma
imagem de homem. Tais imagens seriam projetadas inconscientemente no ser amado e
constituiriam a principal razão da atração passional e seu contrário. A atração pelo sexo
oposto, pelo reflexo da própria anima ouanimus projetada no outro, seria responsável pelo
contato com nossos próprios conteúdos inconscientes. Através desse contato é que seria
possível nos tornamos conscientes dos mesmos, trazendo para o consciente características
importantes e caminhando rumo à individuação. Visto que seriam essenciais na construção da
estrutura psíquica de todo homem e toda mulher, a anima e oanimus seriam considerados
arquétipos.

O arquétipo Self seria o centro regulador e unificador da psique total (consciente e


inconsciente). Ele seria simbolicamente expresso pela imagem de Deus presente em toda a
história da humanidade. Para Jung, seria ele quem produziria o sonho e o enviaria ao Ego.

Silveira postula que o Self, por vezes, corresponderia ao superego da psicologia freudiana.
"Quando a renúncia aos desejos egoístas ocorre por temor da opinião pública e dos códigos,
conforme acontece ordinariamente, isso significa que o Self permanece inconsciente e, nesta
condição, projeta-se no exterior, identificando-se à consciência moral coletiva. Neste caso, Self
e superego coincidem." (ibid. p.75). Às vezes, também, a renúncia às exigências egoístas não
seria motivada pela pressão da moral coletiva, mas pelas leis internas inerentes ao Self,
quando este se tornasse perceptível como fator psíquico determinante. Neste caso, o Self
deixaria de coincidir com o superego.

Para Jung, o Ego tenderia a ser o centro do consciente; um complexo composto por um
conjunto de representações e afetos formado por uma percepção geral de nossa existência,
nosso corpo e nossa memória. Ele seria o responsável pelas decisões.

Durante o desenvolvimento do homem, ocorreria simultaneamente um desenvolvimento de


suas potencialidades impulsionado por forças inconscientes, sendo que o homem seria capaz
de se conscientizar desse desenvolvimento e influenciá-lo. Assim, no "confronto do
inconsciente com o consciente, no conflito como na colaboração entre ambos é que os
diversos componentes da personalidade amadurecem e unem-se numa síntese, na realização
de um indivíduo específico e inteiro". (Silveira, 1994 p. 91) Essa confrontação foi chamada de
processo de individuação. Seria esse processo que permitiria que a personalidade se
completasse, quando consciente e inconsciente se ordenariam em torno do Self - o centro da
personalidade total.
Jung sempre viu o inconsciente em constante trabalho, revolvendo conteúdos, agrupando-os e
reagrupando-os, sofrendo mudanças e provocando-as, influenciando o Ego e sendo
influenciado por ele. Os seus conteúdos seriam suscetíveis de metamorfoses, o que se poderia
acompanhar através dos sonhos (nos casos individuais) e nas transformações dos símbolos
religiosos na vida social (coletiva). Foi através do estudo das evoluções individuais e coletivas
e da simbologia alquimista que Jung chegou ao conceito tido como básico em sua psicologia: o
processo de individuação (realização de Si-mesmo, individualidade e unidade).

No âmago da psique se encontraria o arquétipo de Deus (arquétipo do Self ou do Si-


mesmo). O confronto com o numinoso poderia ser forte a ponto de causar a desintegração do
Ego. E seria como defesa a essa situação que o homem realizaria os rituais. Estes serviriam de
anteparo entre o divino e o humano; entre a imagem de Deus presente no inconsciente e o
Ego. Jung acreditava que as religiões e seus rituais serviam como forma de proteção ao Ego
no confronto com o inconsciente, sendo que a união entre os opostos consciente e
inconsciente seria promovida pelos símbolos religiosos, que impediriam o aniquilamento do
Ego.

O inconsciente coletivo seria uma área na qual estariam presentes possibilidades herdadas da
experiência passada da humanidade. Tais imagens seriam gravadas pela repetição de reações
subjetivas, vividas e revividas pela humanidade e constituiriam a matriz dos símbolos que se
expressam nos sonhos, nos mitos, nos contos de fadas e nas obras individuais. Deve-se
ressaltar que tais imagens primordiais herdadas seriam as formas mais antigas e universais da
imaginação humana.

O conceito de inconsciente coletivo permitiu que Jung tentasse resolver duas questões que
considerava relevantes: a) explicar a semelhança entre conteúdos simbólicos individuais e
temas místicos recorrentes ao longo da história da humanidade, pois "indubitavelmente, todo o
simbolismo arcaico usualmente encontrado nas fantasias e sonhos representa fatores
coletivos" (1994, p.132); b) integrar a História como um elemento formador da psique individual.

"À semelhança de Deus, o inconsciente tem dois aspectos: um é bom, favorável e benfazejo, o
outro é mau, malévolo e nefasto. O inconsciente é a fonte imediata de nossas experiências
religiosas. A natureza psíquica de toda experiência não significa que as realidades
transcendentais sejam também psíquicas. A física não considera que a realidade
transcendental, representada por seu modelo psíquico, também seja psíquica. Ela chama isso
de matéria; da mesma forma a psicologia não atribui sua própria natureza psíquica às suas
imagens ou arquétipos. Ela os denomina "psicóides" e está convencida de que representam
realidades transcendentais. Ela conhece inclusive a "fé simples" como uma espécie
de convicção inevitável. Podemos procurá-la em toda parte, mas ela só vem ao nosso encontro
quando quer, pois é um Dom do Espírito Santo. Só existe um único espírito divino: uma
presença imediata, muitas vezes aterradora e de forma nenhuma sujeita ao nosso arbítrio. (...)
Uma experiência desse tipo é sempre numinosa porque une todos os aspectos da totalidade."
(Jung, 2000, p.262)

Silveira postula que todas as religiões originem-se de encontros com os fatores do


inconsciente, venham eles por sonhos, visões ou êxtases e apresentem-se como deuses,
demônios ou espíritos. Afirma, ainda, que Jung reconhecia todos os deuses como possíveis,
desde que tenham sido atuantes no psiquismo humano. Isto apesar de as afirmações religiosas
não poderem ser universalmente comprováveis. Segundo Jung, ainda, todos os psicólogos que
estudem os fenômenos religiosos devem abster-se de considerar como verdadeiro somente o
que apresentar-se como um dado físico, visto não ser este seu único critério de veracidade.
Há, além, verdades psíquicas que não podem ser recusadas, mesmo sendo de difícil
explicação. Todas as religiões vêm do mesmo solo: o inconsciente. Não há "revelação", nem
deus, nem transcendente; há somente arquétipos, recém-brotados do "mesmo solo materno
em que, outrora, se formaram, sem exceção, todos os sistemas filosófico-religiosos." (Jung,
1999, p.77)
É o contato com os "mistérios" de cada religião que fala diretamente – simbolicamente – com o
nosso inconsciente, satisfazendo nossa religiosidade.

"Esses mistérios sempre foram a expressão de uma condição psicológica fundamental. A


pessoa externa suas condições psicológicas fundamentais e mais importantes neste rito, nesta
magia, ou qualquer nome que possa ter. E o rito é o desempenho cultual desses fatos
psicológicos básicos. Isto explica por que não se deveria mudar nada no rito. Um rito deve ser
realizado segundo a tradição e, se houver nele qualquer mudança que seja, incorre-se em erro.
Não se deve permitir que a razão nele interfira. (...) Não estamos psicologicamente
desenvolvidos o suficiente para entender a verdade, a verdade extraordinária dos ritos e dos
dogmas. Por isso esses dogmas nunca deveriam ser submetidos a qualquer tipo de crítica."
(Jung, 1998, p. 270)

É possível à psique descobrir em si uma completude perfeita, através de seu sistema de auto-
regulação. Mesmo quando gerado por um sagrado exterior, o numinoso, interior ao homem,
gera um processo interno de comunhão do fundo originário externo com o Self. Assim, tudo o
que alimenta as atitudes religiosas de cada comunidade nada é além de uma supraestrutura,
um nível de consciência ou de inconsciente pessoal. Ou seja, não se referem à totalidade da
alma, não permitindo, assim, de fato a sua realização. Desta forma, pela análise do numinoso,

"(...) todas as religiões se encontram enquanto possuem uma função psicológica numa dada
sociedade e cultura, e enquanto, por conseguinte, emanam da natureza. Seus simbolismos aí
aparecem numa dimensão nova: eles traduzem não acontecimentos cósmicos, mas
acontecimentos psíquicos. De imanente ao cosmo, o divino torna-se imanente à psique
humana". (Louis Beirnaert, 1954; In: Tardan-Masquelier, 1994 , p. 141.)
Como função psíquica, a religiosidade poderia ser desenvolvida, cultivada ou aprofundada,
como também poderia ser negligenciada, deturpada ou reprimida. Visto que toda função
psíquica busca uma forma de expressão, um caminho para dar vazão à sua carga energética,
poderia encontrar meios diversos para fazê-lo. Desta forma, antigos deuses teriam sido
substituídos por outras formas reverenciadas. Esta teoria junguiana ajuda a explicar o fato de
Comte ter desenvolvido a Religião da Humanidade e de Teixeira Mendes, Miguel Lemos e
tantos outros terem sentido tanta necessidade de reverenciar religiosamente algum ser ou
alguma forma, em substituição ao Catolicismo aprendido na infância e abandonado por
convicções teóricas – como já nos indicaram Azzi (1980) e Torres (1957). Tardan-Masquelier
(1994) reforça tais afirmações ao propor que a função religiosa:

"se enraíza portanto na potência escondida dos arquétipos: a experiência religiosa é em


primeiro lugar experiência do inconsciente coletivo, "revelação natural", que faz o homo
religious pressentir a presença de um supraconsciente transpessoal. Recolocando o indivíduo
no curso vital de uma tradição que participou na constituição de seu substrato psíquico, ela lhe
restitui sua pertença espiritual e o faz descobrir as origens profundas de suas representações.
Jung porém não sente de modo algum a necessidade de, para perceber a irredutibilidade do
fato religioso, apelar para a crença numa entidade divina vivida como transcendência. A
experiência religiosa lhe parece absoluta, não pela referência a um deus, seja ele qual for, mas
pelo fato de que ela implica a totalidade da alma e por colocar em jogo uma temporalidade
arquetípica cuja existência individual é somente um fragmento." (pp. 136-137)
Silveira (1994) cita William James, autor do primeiro trabalho sobre o fenômeno religioso a
partir de um ponto de vista psicológico, creditando-lhe a observação de que os cientistas,
mesmo priorizando os fatos objetivos, não perdiam o sentimento religioso. A própria
importância que davam a tais fatos era em si só quase religiosa e seu temperamento científico,
devoto. Cultos de personalidades são manifestações da função religiosa. A adoração de
atores, cantores, políticos, jogadores, também.

Jung (1998), também menciona o autor e alguns de seus conceitos, acrescentando que:

"uma atitude religiosa também pode representar o sentimento; além disso, a devoção religiosa
(acrítica) seja à idéias de Deus ou à idéia da matéria pode existir, embora esta atitude possa
ser chamada de 'religiosa' apenas quando é absoluta. Assim, o empírico pode ser religioso." (p.
45)
Praticar uma verdadeira religião seria, a partir de uma ou de diversas experiências imediatas
que possibilitam a intuição do Self, alcançar uma plenitude que submete-se conscientemente
às realidades inconscientes. Mesmo se escolhermos um tipo acabado de símbolo religioso,
podemos constatar que os símbolos da divindade correspondem sempre aos do Self, o que
pode-se traduzir como uma expressão da idéia e da presença de Deus manifestando a
totalidade psíquica através de experiências psicológicas (Tardan-Masquelier, 1994).

"não há contradição entre o ponto de vista psicológico e a visão do crente, nem qualquer
intromissão da ciência no campo da metafísica ou da teologia. Todavia, o que pertence à
ordem da fé, a crença num Deus, pode também ser vivido como a experienciação de uma
instância psíquica que transcende a consciência. Essa interpretação segunda desvela um dos
sentidos da prática religiosa: unificação pelo compromisso simbólico, pois, "sem a experiência
vivida dos contrários, não seria possível ter a experiência da totalidade e, por isso mesmo,
acesso interior às figuras sagradas."5 Ela decodifica, no aprofundamento progressivo, a obra do
processo de individuação que se realiza por meio da auto-regulação da psique, pois a
inclinação natural autônoma da alma é o impulso para a totalidade." (id., p. 140)
Segundo Wilges e Colombo (1983), Jung acreditava que o homem jamais seria capaz de livrar-
se do "problema Deus", por ser, nas profundezas de sua psique, religioso, teísta, crístico, tendo
em seu ser mais profundo um dinamismo que o impeliria para Deus. Ateísta seria aquele que
não permitisse que este dinamismo fizesse sua irrupção no consciente. Deve-se ressaltar,
porém, que, para Jung, a única coisa que se pode dizer sobre Deus em psicologia é que há
uma imagem arquetípica de divindade. (Jung, 1995)

Desta forma, seria papel de um terapeuta auxiliar o paciente em sua reconstituição de uma
"religião" verdadeira, ou seja, "de uma atitude reverente e atenta em relação ao fator
"numinoso" íntimo que é o Si-mesmo." (Tardan-Masquelier, 1994, p.138)

"As variedades de experiências do divino levam a comparações psicológicas que, por sua vez,
podem levantar protestos dos teólogos quanto à autenticidade ou distorção de certas imagens.
Às vezes a experiência não existe, ou então é uma abstração conceitual, ou ainda o divino é
deslocado para imagens e experiências que via de regra não são consideradas sagradas. Com
freqüência, e isto tem interesse psicológico considerável, o grau de perturbação psicológica de
uma pessoa é o fator determinador da distorção ou deslocação (sic.) correspondente da
imagem de Deus. Consequentemente, a experiência e também a imagem de Deus aparecem
ao psicólogo como continuando a revelar-se dentro e através da alma, sem nenhuma limitação,
e para além dos confinamentos de qualquer dogma. Tais imagens e experiências são
representações coletivas compartilhadas pela mente de todos nós na sociedade em que
vivemos." (Hillman, 1984, pp.39-40)

Mas, de acordo com tais conclusões, como seria uma religião que se diz não-teológica? Teria
sido realmente possível a Augusto Comte abstrair-se de toda e qualquer teologia na criação de
sua religião? Faria isso alguma diferença, ou seria uma questão simplesmente de
nomenclatura? Como terá sido ele capaz de lidar com o seu Self, com o seu eu religioso?
Provavelmente a resposta a essa questão responde também à forma como Miguel Lemos pôde
sentir-se confortado por esta mesma religião.

1Ecletismo que visa conciliar todas as religiões por meio da gnose, que por sua vez é um
conhecimento esotérico da divindade. (cf. Ferreira, 1993)

2 Referente à teoria da hylé: substrato das coisas materiais.

3Referente à pneumatologia: tratado dos espíritos; seres intermediários que formam a ligação
entre Deus e o Homem. (id.)
4Estruturas que aparecem com frequência em diferentes épocas e civilizações, nem sempre
com alguma ligação comprovada.

5 Jung, 1970, Psychologie et Alchimie, p. 28.

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