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ARGUMENTO

AULA 3 conteria elementos profundos da realidade inter-


na, pessoais e impessoais. Os impessoais se ma-
A Jornada do Herói
nifestariam em forma de arquétipos e modelos,
O cinema, de forma geral, faz uso de modelos expressados em mitos e símbolos recorrentes em
e estruturas padronizadas na construção de suas todas as tradições culturais, tais como os arquéti-
histórias. Mesmo quando são dotados de grandes pos da mãe, do velho sábio, da criança, do herói
peculiaridades e individualidades, as personagens etc. Uma vez evocados, eles gerariam no público
possuem certas características que as tornam fa- uma rápida e profunda identificação por serem
cilmente identificáveis pelo público, de forma imagens primordiais e coletivas, heranças pre-
positiva ou negativa. Um dos modelos mais re- sentes no interior do psiquismo de todos. Como
correntes é o do herói, que já foi objeto de vários exemplo, ao analisar a raça ariana, Jung encon-
estudos. trou o modelo arquetípico do deus da guerra e
Um autor de argumentos ou roteiros deve es- da violência na Alemanha; a figura do deus a ser
tar sempre preparado para quebrar paradigmas e adorado esteve presente em todos os tempos.
questionar fórmulas. Esse é o caso do herói e de Jung descreve o herói como um ser quase hu-
suas jornadas, que não são essenciais para a exis- mano que simboliza as ideias, moldes e forças da
tência de um texto para o cinema e que, quando alma. É do herói as maiores aspirações, que por
adotados, podem ser moldados de acordo com ele serão compreendidas e realizadas. Também é
as necessidades dramatúrgicas. O importante é dele a maior capacidade de procurar, criar e su-
identificar o poder desse modelo, a construção do portar as recorrentes transformações: ele pode re-
herói e a sua capacidade de transformar a si pró- sistir, mas também sustentar as pressões opostas.
prio e ao mundo em sua volta. Uma vez prepa- Ele se lança em uma jornada — a que Adorno
rado para compreender esse mecanismo, o autor chama de “ingenuidade épica” —, dotado de al-
deve se sentir livre para adotá-lo ou não. gumas qualidades, mas deve buscar a autossupe-
ração, adquirindo novas, transformando a si e ao
Carl Gustav Jung mundo à sua volta. Devido a seu apelo coletivo, o
Grande parte da dramaturgia adora um herói: arquétipo do herói rapidamente encontrou gran-
eles são temas de peças desde a Grécia Antiga, de projeção, podendo ser observado na dramatur-
passando para a atualidade nos quadrinhos, nas gia, uma das maiores fontes do cinema.
telenovelas e nos filmes. Para o psicólogo sueco
Joseph Campbell
Carl Gustav Jung, o poder do mito do herói resi-
de no fato de ser um modelo arquetípico: ele faz Baseado nesse estudo do arquétipo de Jung,
parte do inconsciente coletivo e, por isso, provoca o antropólogo Joseph Campbell, em O Poder do
grande efeito quando identificado. Isso porque os Mito e O Herói de Mil Faces, analisou diversos he-
arquétipos não são conscientes e nem frutos de róis mitológicos e suas buscas, concluindo que es-
experiências individuais: eles vêm à tona através sas narrativas seguem uma estrutura comum nas
de sonhos e acabam por povoar os mitos, se ma- suas jornadas. Nesses estudos, ele chamou de mo-
nifestando através de imagens. nomito — termo retirado de “Finnegan’s Wake”,
Além do inconsciente pessoal, Jung percebeu de James Joyce — a estrutura cíclica recorrente a
uma herança psicológica comum a todas as pes- todos os mitos, heróis ou grupos, contada e re-
soas, independente da época ou da região em que contada diversas vezes; notou um eixo comum
vivem: o inconsciente coletivo. Esse inconsciente a todas essas narrativas, uma trajetória a que ele
chamou de “jornada do herói mitológico”. Des- o aconselhamento para a adoção da trajetória do
de a década de 1950 quando surgiu, o monomi- herói de Campbell, a fim de atrair o público devi-
to influenciou e ainda influencia diversas obras, do ao apelo deste arquétipo. Mais tarde, esse pe-
principalmente as cinematográficas: George Lu- queno guia de sete páginas se transformou em A
cas, por exemplo, construiu o roteiro de Star Wars Jornada do Escritor: Estrutura Mítica para Roteiris-
inteiramente sobre esse conceito. tas. Nele, o autor identifica a presença constante
Na jornada, o herói passa por diversas peripé- dos seguintes personagens:
cias a fim de melhorar a si e ao mundo a seu redor,
em etapas bem claras: · Protagonista;
· Antagonista;
1. Partida, separação · Par do(a) protagonista;
• Mundo cotidiano; · Amigo(s) do protagonista;
• Chamado à aventura; · Lacaio ou ajudante(s) do antagonista;
• Recusa do chamado; · Mascote(s);
• Ajuda sobrenatural; · Autoridade moral;
• Travessia do primeiro limiar; · Personagem coletivo.
• “Barriga da baleia”.
2. Descida, iniciação, penetração Além disso, Vogler estruturou em doze as eta-
• Estrada de provas; pas a serem seguidas pelo herói:
• Encontro com a deusa; 1. Mundo comum: o mundo normal do herói,
• A mulher como tentação; onde, por omissão ou ação, se encontra se-
• Sintonia com o pai; guro; tem qualidades e defeitos;
• Apoteose; 2. O chamado da aventura: algo chama o he-
• A grande conquista.
rói, um desafio para sair do seu conforto, do
3. Retorno
mundo comum e se lançar em uma aventu-
• Recusa do chamado;
ra. Normalmente, algum defeito de caráter,
• Voo mágico;
como medo, o fará recuar;
• Resgate de dentro;
3. Reticência do herói ou recusa do chamado:
• Travessia do limiar;
mesmo que não completamente satisfeito
• Senhor de dois mundos;
com o seu mundo, o herói não se joga na
• Liberdade de viver.
aventura logo de cara, provocando no pú-
blico a insegurança sobre o que virá a seguir.
Cristopher Vogler 4. Encontro com o mentor: o herói encontra
Outro destaque na área de cinema deve ser um mentor, que pode já ter passado por
dado a Cristopher Vogler, um roteirista de essa aventura, que o faz aceitar o chamado,
Hollywood que retrabalhou O Herói de Mil Faces orientando-o e preparando-o para as tarefas
e o transformou em um guia com doze passos a que virão;
serem seguidos pelo herói nos filmes. Seguindo a 5. Travessia do primeiro limiar: finalmente, o
linha de Campbell, Vogler escreveu um texto co- herói, por vontade ou necessidade, sai do
nhecido pelo nome de Memorando Vogler, primei- seu mundo comum;
ramente escrito como um guia a ser seguido pelos 6. Testes, aliados e inimigos: para melhorar o
escritores de Hollywood para tentar melhorar as mundo, adquirir novas qualidades e retor-
bilheterias da Disney, em franca queda na épo- nar ao seu universo, o herói deve passar por
ca. O guia começava com a enumeração de erros testes, que o transformarão. Para tal, ele fará
que não podiam ser cometidos em roteiros e com amigos e enfrentará inimigos.
7. Aproximação da caverna oculta: o herói 11. Ressureição do herói: quando tudo pare-
chega a um lugar desconhecido depois de cia resolvido, o herói enfrenta novamente a
vencer provas; morte, mas dessa vez ele está novo, trans-
8. Provação suprema: a maior de todas as pro- formado;
vações, o ápice que poderá levá-lo à vida ou 12. Regresso com o elixir: o herói volta para casa
à morte; com algo que ajudará o mundo à sua volta.
9. Recompensa: depois de enfrentar a morte, o
Em síntese, a jornada do herói é um assun-
herói recebe uma recompensa pessoal, está
to já há muitos séculos presentes no imaginário
transformado, recebeu novas qualidades;
popular, que, após ser devidamente estruturado,
10. O caminho de volta: a jornada de volta para
auxiliou muitos roteiristas na elaboração de suas
o mundo comum;
histórias.

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