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Junguiana

V. 21. p. 41-50

A QUESTÃO DO SENTIDO NO
MUNDO DO ACASO

Ana Lia B. Aiifranc*

A natureza psicoide do arc[uétipo contém bem mais Tendemos então a ignorar o que essas abor
do que pode ser incluído em uma explicação psico dagens têm de novo, de verdadeiramente revo
lógica. Ela aponta para a esfera do imiis mimdits, lucionário e que, inevitavelmente, nos faria rever
do mundo unitário, em direção ao qual o psicólogo nosso paradigma científico, nossa visão de mun
e o tísico atômico estão convergindo a partir de do, bem como nossa inserção no mundo, Esta
caminhos separados. (Jcxc,, 1981a, par. 852). mos muito habituados a olhar o mundo através
Palavras-chaves;
dos parâmetros da física newtoniana e da divisão
física quântica,
Essa frase de Jung tem 50 anos, e de fato há caitesiana entre mente e matéria e tomamos esses
arquétipo
um potencial revolucionário em descobertas tan¬ parâmetros como verdades últimas. Vou rever al psicoide,
to da física quântica quanto da psicologia ana guns princípios básicos aos quais estamos muito sincronicidade,
lítica que aproxima essas duas perspectivas. No sentido.
acostumados:
entanto, esse potencial não pôde ainda ser sufi- * Determinismo materialista: o universo é com-
Key words:
cientemente assimilado pela consciência coletiva. posto de matéria e regido pelas leis de causa quantum physics,
A tendência tem sido, a meu ver, deixar de lado e efeito. Tudo é determinável; se conhecemos psychoid
archetype,
aspectos fundamentais em ambas as abordagens. as forças que atuam e as condições iniciais es
synchronicity,
Lidamos assim somente com as aplicações práti tamos habilitados a conhecer seus efeitos. O
meaning.
cas e evitamos as im]:tlicações decorrentes. nosso conhecimento só é limitado, e\'entual-
A física quântica trouxe impressionantes apli mente, por falta de instrumental adequado.
cações, como o desenvolvimento do microchip, ● Objetividade: como mente e matéria estão
do lase7\ da ressonância magnética, além de separadas, temos como consequência a obje
possibilitar a descoberta do DNA. A psicologia tividade, que é, aliás, um dos pilares de nossa
analítica, por sua vez, com o desenvolvimento pesquisa científica.
de conceitos como os de arquétipos, comple ® Localidade: objetos separados no espaço ou
xos, individuaçào, tem se mostrado riquíssima no tempo são independentes entre si. Ou seja,
em sua aplicação na prática clínica. os objetos podem estar distantes, mas é preci

*P.sicólog;i. .Membro an-.rlisla ria SBP.'\.


so que haja tempo suficiente para que a ener
e-niail: <ana-lia@uol.com.br>. gia possa fluir de um ponto para o outro a fim

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de garantir a comunicação; caso contrário, os Antes da era científica vivemos um período em


objetos são independentes uns dos outros. que a cosmovisão era religiosa; a questão do sen
● Reducionismo: os sistemas complexos de tido estava então associada a Deus e a seus de
vem ser reduzidos às suas partes elementares. sígnios. Agora, o indivíduo encontra-se só em um
Essa é a maneira que temos de apreender e mundo sem sentido. A razão e o conhecimento
pesquisar os fenômenos. científico passaram a ocupar o lugar de Deus, e a
Seguindo a perspectiva reducionista e materia matéria, o lugar do espírito (Aufranc, 2004).
lista da ciência, nossa visão de mundo pode ser No início do século XX, no entanto, esses
exemplificada na seguinte pirâmide (Rosenblum e parâmetros foram profundamente questionados
Kuttner, 2006, p. 36): pela física quântica, de um lado, e pela psicologia
analítica, de outro.
PSICOLOGIA Niels Bohr, um dos grandes físicos quânticos
e o responsável, junto com Werner Heinsenberg
BIOLOGIA
e Max Born, pelo conjunto de princípios da físi
QUÍMICA ca quântica conhecido por Interpretação de Co-
penhagen, dizia: “Aquele que não se choca com
FÍSICA
a teoria quântica é porque não a compreendeu”
(Bohr apud Morgan, 2000, p. 110).
Dessa maneira, devemos buscar explicações Vamos repassar rapidamente alguns princípios
para os fenômenos psíquicos na biologia, no fun básicos da física quântica.
cionamento cerebral. O fenômeno biológico, por ● Princípio da Incerteza de Heisenberg: não
sua vez, pode ser visto como essencialmente quí podemos medir com precisão ao mesmo tem
mico. Estudamos então os neurotransmissores e, po a velocidade imomentum ou quantidade de
em última instância, a química pode ser reduzida movimento) e a posição de um objeto quânti-
à física. Ou seja, em última instância o ser huma co. Por exemplo, podemos descobrir onde um
no também passa a ser visto como uma máquina. elétron está, mas quanto mais precisamente
A metáfora atual, aliás, é a do computador. medirmos sua posição, mais incertos estaremos
Toda essa perspectiva científica que nos levou quanto à sua velocidade. E, vice-versa, quanto
a uma visão do mundo como sendo uma máqui mais precisa for a medição de sua velocidade,
na, como o mecanismo de um relógio, teve início mais incertos estaremos quanto à sua posição.
no século XVII. Lord Kelvin, matemático e físico O interessante dessa situação é que se trata de
do final do século XIX, estava tão satisfeito com uma impossibilidade ontológica, não se deve à
os resultados da pesquisa científica que acredi falta de instrumental adequado.
tava que os mistérios da natureza já haviam sido ● Princípio de complementaridade de Bohr:
desvendados, ficando apenas pequenos detalhes qualquer objeto quântico, seja um fóton, um
a serem esclarecidos. Embora isso não tenha se elétron ou um átomo, é onda e partícula. Onda
mostrado verdadeiro, os novos parâmetros cientí e partícula são duas maneiras complementa
ficos permitiram um enorme desenvolvimento do res, embora mutuamente excludentes, de um
conhecimento e da tecnologia. objeto quântico se apresentar a um observa
Mas a questão do sentido não cabe no reducio dor. Ou seja, em vez de determinismo, temos
nismo causai. O sentido está associado à procura incerteza, complementaridade.
de totalidades, o que demanda uma visão mais Outro princípio:
ampla. A questão do livre-arbítrio também não se ● Não existe realidade objetiva independen
coloca, visto que somos determinados, seja gene te da interferência da consciência. Qualquer
ticamente, seja pelas condições ambientais. objeto quântico encontra-se em um estado in-

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definido que consiste apenas de probabilida de superposição e registraria ambas as situações


des até que uma observação seja feita. Antes como existindo simultaneamente. Essa chamada
da medição, ou seja, da observação, o objeto “cadeia de von Neumann” poderia continuar in
encontra-se em uma superposição de todos definidamente. Von Neumann, portanto, demons
seus estados possíveis, que Erwin Schrõdinger trou que nenhum sistema físico, obedecendo ãs
descreveu como a equação de onda. Quando leis da física quântica, poderia fazer o colapso de
é feita a medição, observa-se o objeto em ape função de onda de um estado de superposição
nas um estado possível, nunca em uma mistu produzindo um estado particular. No entanto, ao
ra deles. A isso se dá o nome de colapso de olhamos para um contador Geiger, sempre ve-
função de onda. Ao ser observado, o objeto remos um resultado particular, nunca uma su
deixa de estar em uma superposição de todos perposição de estados. Von Neumann concluiu
os estados possíveis, uns mais prováveis do que somente um observador consciente, fazendo
que outros, e define-se por um único estado. algo que a física não abrange, é capaz de pro
Antes da observação, um átomo é uma fun mover o colapso de função de onda (Rosenblum
ção de onda, ou seja, apenas probabilidade. e Kuttner, 2006).
Aqui é preciso fazer uma diferenciação muito Dois anos depois, Erwin Schrõdinger, um
importante: quando tratamos da probabilidade grande físico quântico que estava muito intrigado
quântica falamos da probabilidade de encon com as consequências da física quântica, criou a
trarmos um objeto em alguma região, e não chamada metáfora do gato. Trata-se de um ex
da probabilidade de ele estar naquela região. perimento mental em que um gato imaginário é
Isso significa que o objeto não estava lá antes colocado em uma caixa selada. Dentro da caixa
de ser observado. Átomos e moléculas não são há um emissor radioativo que tem 50% de chance
reais, apenas potencialidades. de um decaimento radioativo a cada hora; isso
John von Neumann, em Fundamentos mate ocorrendo, irá acionar um mecanismo que, por
máticos da mecânica quântica, de 1932, mostra sua vez, irá liberar veneno o qual, consequen
que a teoria quântica torna inevitável o encontro temente, deverá matar o gato. Existe, portanto,
da física com a consciência. Segundo esse autor, depois de uma hora, 50% de probabilidade de o
poderiamos tomar um aparelho de medida - um gato estar vivo e 50% de probabilidade de ele es
contador Geiger, por exemplo - e imaginar que tar morto. Pela teoria quântica todas as probabili
o aparelho se encontra em uma caixa, isolado do dades são reais até que seja feita uma observação.
resto do mundo, mas em contato com um sistema Assim, depois de uma hora, sem que ninguém
quântico, como um átomo. O contador deveria, tenha observado, o gato deve estar vivo e morto.
então, estar programado para disparar um alarme Não se trata de um gato doente ou zumbi, mas
quando o átomo aparecesse no topo da cabca e de um gato que está igualmente vivo e morto. Só
não dispará-lo caso o átomo aparecesse na base quando alguém abre a caixa para ver o que acon
da caixa. Von Neumann demonstrou que, uma tece é que se dá o colapso da função de onda, e
vez que o contador é um sistema físico gover o gato estará vivo ou morto.
nado pela mecânica quântica, ele entraria no es Levada às últimas consequências, a teoria
tado de superposição de onda com o átomo e quântica parece absurda, uma vez que nega a
simultaneamente disparado e não disparado. Se existência de um mundo fisicamente real. A ob-
um segundo aparelho de medida, um dispositi- servaçao cria a realidade.
vo eletrônico, por exemplo, entrasse em conta Embora a equação de onda de Schrõdinger se
to com o contador Geiger para verificar o que aplique à escala atômica, a teoria quântica está na
está acontecendo com este e registrar quando o base de toda a ciência natural, da química à cos-
contador dispara, ele também se uniria ao estado mologia, governando o comportamento de tudo.

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Todos os objetos grandes, sejam cadeiras ou rém, de comunicação, portanto a lei da teoria da
galáxias, são feitos de uma coleção de átomos. relatividade especial, que diz que nada pode ser
Assim, se um átomo não observado não tem mais rápido do que a velocidade da luz, mantém-
realidade física, o mundo real também seria cria se; mas a segunda lei não se mantém, os objetos
do pela observação. são interdependentes mesmo à distância (Radin,
Saímos da objetividade para a não existência 2006). Em vez de localidade, temos então não
da realidade objetiva independente da interferên localidade.
cia da consciência. Por último:
Vejamos outro princípio. ● Propriedade de totalidade de Pauli: o fenô
● Não localidade: no nível quântico, os obje meno quântico tem uma nova propriedade de
tos não existem independentemente uns dos totalidade, de forma que não pode ser decom
outros; trata-se de uma verdadeira teia de in- posto em fenômenos parciais sem que com
terconexões, como foi desenvolvida pelo teo isso o fenômeno como um todo se transforme
rema de John Bell em 1964 e posteriormente de uma maneira essencial. Em vez de reducio-
demonstrada pelo experimento de Alain As- nismo, temos totalidade.
pect em 1982, na França, e pelos experimentos Os princípios científicos ficariam assim modifi
de Nicholas Gisin em 2004, na Suíça. cados a partir da física quântica:
Einstein, que se preocupava com as implica
ções das teorias científicas e não apenas com suas
Determinismo versus Incerteza, complementaridade
implicações práticas, chamou a isso de spool^ ac-
tion atdistance, a fantasmagórica ação à distância, Objetividade versus Não existência da realidade
objetiva independente da
e junto com Podolsky e Rosen criou um experi interferência da consciência
mento mental, conhecido como EPR, em que de
Localidade versus Não localidade, interconexão
monstrava que a não localidade não poderia estar
correta. Pelo experimento mental, dois elétrons Reducionismo versus Totalidade
seriam emitidos a partir de um mesmo átomo e
desviados em direções opostas a muitas milhas
de distância um do outro, então um deles seria A pirâmide reducionista que vimos poderia ser
observado. Pela teoria quântica, os spins (uma substituída por um círculo:
espécie de rotação) dos elétrons emitidos a partir
de uma mesma fonte devem ser complementares, Psicologia Biologia
(consciência)
ou seja, opostos. A direção do spin é aleatória e
só será definida a partir da observação. Assim, ao
observarmos um dos elétrons, um spin se defini
da e automaticamente o outro se definida pelo Física Química
spin oposto. A observação de um faria com que
instantaneamente houvesse o colapso de função As implicações da física quântica parecem as
de onda do outro. Ficaria então demonstrado que sombrosas! Mas a física quântica descreve o mun
a não localidade seria inviável visto que estaria do atômico e subatômico, ou seja, o mundo mi-
violando duas leis da teoria da relatividade espe- crofísico, e o mundo ao qual nossa consciência
ciai: a de que nada pode ser mais rápido do que está habituada é o mundo macrofísico, tão bem
a velocidade da luz e a da independência dos descrito pela física newtoniana. Como é impos
objetos espacialmente distantes. sível fazer experimentos com objetos grandes,
No entanto, os experimentos de Aspect e Gisin então, para todos os propósitos práticos, não há
confirmaram o teorema de Bell. Não se trata, po¬ razão para nos preocuparmos com a realidade

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das coisas grandes, pois elas obedecem às leis da arquétipos como centros neuropsíquicos que
física clássica. Para todo propósito prático, luas, têm a capacidade de iniciar, controlar e mediar
cadeiras e gatos são reais. Dessa maneira, faze os comportamentos característicos comuns e as
mos um recorte, ocupamo-nos apenas com as experiências típicas de todos os seres humanos.
aplicações práticas da física quântica e ignoramos Jung (1981c) desenvolveu a noção de arquétipo
as implicações decorrentes. desde 1912, quando fala em imagens primordiais. Quando tratamos
A questão do sentido na física quântica parece Em 1919, conceituou o arquétipo como sendo da probabilidade
mais grave; o processo básico da natureza gera a autopercepção do instinto (Jung, 1981d). Esse quântica falamos
da probabilidade
probabilidades ou tendências. Qualquer espe conceito foi sendo seguidamente elaborado até
de encontrarmos
rança de sentido é inviável pela entrada do puro atingir sua forma final, em 1947. O arcjuétipo pas um objeto
acaso. Dessa maneira, o que traria um potencial sa a ser compreendido como um fator de organi em alguma
revolucionário pode ser deixado de lado, o que, região, e não da
zação bipolar, psíquico e físico, que se expressa
probabilidade de
aliás, tem de fato muitas vezes ocorrido. por meio de símbolos (Jung, 1981e). É preciso
ele esfar naquela
Eisntein, que não se conformava com essa compreender os símbolos como a expressão de região.
questão do puro acaso e que se preocupava com algo totalmente novo para a consciência e, por
as implicações das teorias científicas, em caita tanto, com um grande potencial transformador.
a Born disse que Deus não joga dados (Born, Não entramos em contato com os arquétipos,
1971). mas sim com suas manifestações simbólicas. Os
Jung (1981b, par. 1187), referindo-se a Eins- arquétipos, por meio dos símbolos, expressam-se
tein, escreveu: na polaridade psíquica bem como na polarida
de biológica. O símbolo pode manifestar-se na
[...] ,se Deus não jogasse dados Ele não teria es polaridade psíquica do indivídtio por imagens
colha a não .ser criar (do ponto de rásta humano) oníricas, fantasias, projeções, transferências ou
uma máquina sem .sentido [...] O sentido não nem sintomas psíquicos. No coletivo, a expressão sim
da causalidade mas da liberdade, isto é. da acaii- bólica dá-se nos mitos, nas lendas, nas religiões
salidade. ou na arte. A polaridade biológica, por sua vez,
tem como veículo simbólico as vivências corpo
Poderiamos dizer que Ein.stein, de outro lado, rais ou os sintomas físicos. No arquétipo está,
tinha razão. Não se trata de acaso, mas do sentido portanto, o potencial para o desenvolvimento
contido no acaso. À física quântica falta a noção psíquico e físico. O arquétipo implica potenciali
do arquetípico, do sentido. dades psíquicas e físicas que poderão ser atuali
Ao mesmo tempo em que se davam as desco zadas desde que haja condições condizentes, por
bertas da física quântica, Jung, pela obser\-ação isso podemos dizer que na perspectiva arquetípi-
clínica, foi descobrindo e conceituando a exis ca o desequilílario químico cerebral e a patologia
tência do inconsciente coletivo. A consciência psíquica não podem ser vistos nem como causa
passa a ser compreendida então como o produto nem como efeito um do outro, mas sim como
de.sse inconsciente, cuja existência nos precede e diferentes manifestações de um todo que engloba
é comum a toda a htimanidade. O inconsciente a psique e a matéria. Por essa razão, temos obser
coletivo, ao contrário do pessoal, não deve sua vado que muitos estados patológicos respondem
existência à experiência individual, não é uma melhor qtiando tratados concomitantemente por
aquisição pessoal. A consciência vai desenvolver- medicação e psicoterapia.
-se a partir do inconsciente que é coletivo e co- Jung chamou a essência irrepresentável do ar
muni à espécie humana. quétipo de psicoide, uma vez que vai além da
O conceito de arcjuétipo é inerente ao de in esfera da psique e forma a ponte para a matéria
conscdente coletivo. Podemos compreender os em geral.

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Bem, até aqui já temos um referencial novo e mento de material arquetípico. Seu propósito era
criativo. Podemos trabalhar com os símbolos em o de vir a ter acesso a esse material sem correr o
suas diferentes vertentes, podemos abordar os so risco de influenciá-lo O^ng, 19810. De fato, Jung
nhos, as projeções, as fantasias, a transferência, (1981g) veio posteriormente a trabalhar, a partir
fazer amplificações simbólicas; podemos olhar os de 400 sonhos de Pauli, em sua obra Psicologia
símbolos não apenas em seus aspectos redutivos, e alquimia. Mas, talvez mais importante do que
ou seja, referidos à história pessoal do paciente, isso, foi o fato de, dois anos depois desse encon
mas também nos prospectivos, isto é, para onde tro, Jung e Pauli iniciarem uma correspondência
esses símbolos apontam, posto que temos um re riquíssima, que durou 26 anos e culminou na pu
ferencial arquetípico. blicação conjunta, em 1952, de A Interpretação
No entanto, quando chegamos à questão da da natureza e da psique, que contém o artigo de
natureza psicoide do arquétipo, muitos de nós, Pauli - “A influência das idéias arquetípicas nas
junguianos, tendemos a não considerar esse con teorias científicas de Kepler” - e o de Jung - “Sin
ceito, uma vez que ele não é facilmente assimilá cronicidade, um princípio de conexão acausal”.
vel pela nossa consciência. Foi Pauli o grande incentivador de Jung para tra
Jung usa o termo unus mundus, do alquimis- balhar com a questão da sincronicidade e, por
ta Gerardus Dorneus, para descrever a existência tanto, assumir a tarefa de se aventurar em um
de uma realidade potencial unitária subjacente à campo revolucionário e de difícil assimilação.
dualidade psique e matéria. Nessa realidade po Este é o esquema descrito por Jung com auxí
tencial unitária encontram-se as pré-condições lio de Pauli Qung, 1981h, par. 963):
arquetípicas que vão determinar o fenômeno em
pírico, seja ele físico ou psíquico. Os arquétipos energia
indestrutível
são, portanto, fatores mediadores dessa poten
cialidade unitária. Ao operarem na esfera psíqui
ca, são organizadores de imagens; na esfera da
conexão
matéria dão origem aos princípios ordenadores conexão
inconstante
constante
de padrões da matéria e da energia. A natureza através da
através
do efeito contingência,
psicoide do arquétipo está na origem da psique do significado,
causalidade
e da matéria e, portanto, na origem da estrutura sincronicidade

básica do universo (Aufranc, 2006).


Diriamos que quando os arquétipos operam
simultaneamente em ambas as esferas, a da psi contínuo
espaço-tempo
que e a da matéria, dão origem ao fenômeno da
sincronicidade. Aqui entramos em uma área de
licada. Jung evitou tratar desse assunto durante Aqui é interessante observar que o princípio
muito tempo. Refere-se pela primeira vez à sin da sincronicidade é colocado como complemen
cronicidade em 1929, na introdução ao Segredo tar ao da causalidade, e não como princípios ex-
daflor de ouro, e em 1930 em seu In memoriam cludentes.
a Richard Wilhelm. Em seu sentido mais restrito, a sincronicidade
Em 1930, Wolfgang Pauli, Prêmio Nobel da Fí seria a coincidência de um estado psíquico subje
sica, procurou Jung para análise. Jung ficou im tivo com um evento externo objetivo, trazendo à
pressionado com o material arquetípico que o jo consciência uma vivência significativa. Muitos de
vem cientista referia em seus sonhos e optou por nós devem conhecer o exemplo clássico da pa
reencaminhá-lo a uma colega, Erna Rosembaum, ciente de Jung que era extremamente racional e
então uma analista iniciante, com pouco conheci¬ praticamente inacessível ao tratamento analítico.

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Em uma consulta, ela contava sobre um sonho fala-nos da equivalência dos processos psíquicos
em que alguém lhe dava uma joia de ouro em e físicos em uma ordem geral acausal. Os arqué
forma de escaravelho. Nesse momento,Jung, que tipos seriam os mediadores dessa ordem. Portan
estava sentado de costas para a janela, ouviu algo to, a natureza psicoide dos arquétipos estende-se
tocando o vidro. Tratava-se de um escaravelho além de uma base neurofisiológica para padrões
de brilho dourado que estranhamente batia no dinâmicos gerais da matéria e energia.
vidro na tentativa de entrar na sala escura. Jung O fascinante de uma vivência de sincronici-
abriu então a janela, pegou o inseto no voo e dade está no fato de ela ser um evento único e
entregou-o a sua paciente dizendo: “aqui está o individual e, ao mesmo tempo, a manifestação de
seu escaravelho” (Jung,1981í, par. 982). Evidente uma ordem universal (Peat, 1988). Daí advir, na
mente, essa experiência foi extremamente signi experiência da sincronicidade, a vivência do nu-
ficativa, e a análise pôde fluir e se aprofundar a minoso (Otto, 1992), a vivência do sagrado.
partir daí. A experiência da sincronicidade permite-nos
Pauli preferia o termo correspondência signi a vivência de um sentido mais amplo, a percep
ficativa a sincronicidade, uma vez que a ênfase ção de que somos parte integrante de uma ordem
deve ser dada à questão do sentido, visto que mais ampla, a vivência paradoxal da unicidade e
esse fenômeno pode ocorrer no mesmo tempo do cósmico. A partir de nossa visão determinista
e espaço, como é o exemplo clássico do esca materialista, o indivíduo encontra-se só em um
ravelho. Mas pode ocorrer também em espaços mundo sem sentido. É o arquetípico que traz a
diferentes, como na telepatia, ou em tempos dife evidência de uma ordem geral cósmica que inclui
rentes, como na precognição e na clarividência. a psique e a matéria e que nos permite a vivência
As sincronicidades obrigam-nos a considerar numinosa.
fenômenos rejeitados pela ciência vigente, como Jung costumava contar uma história que Ri-
é o caso das percepções extrassensoriais. Esta chard Wilhelm, sinólogo que trouxe para o oci
mos acostumados a ignorar esses fenômenos e dente o / Ching, havia vivenciado na China. Em
a considerá-los crendices sem sentido, visto que um povoado chinês, não chovia havia muito tem
não cabem em nosso paradigma científico. No po. Não suportando mais a seca, os moradores
entanto, existem sim pesquisas sérias nessa área, locais resolveram trazer, de uma outra província,
e os físicos têm se mostrado bem mais corajosos um fazedor de chuva. Este, quando chegou, pe
do que nós, analistas, para se envolverem nesse diu que o deixassem só, e por três dias ficou fe
campo (Radin, 1997; Targ e Puthoff, 2005; Tart, chado em uma cabana, recebendo apenas água e
PuTHOFF e Targ, 2002).
comida. No quarto dia choveu; na verdade, nevou
O fato de os arquétipos funcionarem nas es- em abundância, o que não seria normal naquela
feras psíquica e física, dando origem a conexões época do ano. Wilhelm foi então conversar com
acausais, é de difícil assimilação dentro de nossos o fazedor de chuva e perguntou a ele como fize
parâmetros tradicionais baseados em localidade e ra para fazer nevar. O velhinho respondeu que
causalidade. É interessante notar que as conexões de nenhuma maneira havia produzido a neve,
acausais, não locais, surgiram de forma indepen que não era responsável por ela. Então Wilhelm
dente na pesquisa do fenômeno quântico. A física perguntou-lhe o que havia feito nos últimos três
precisou incorporar o elemento subjetivo do ob dias, ao que ele disse: “Ah isso eu posso respon
servador em sua pesquisa, até então supostamen der. Eu venho de outro lugar, onde as coisas es
te objetiva, enquanto a psicologia, ao estudar a tão em ordem. Ao chegar percebi que as coisas
natureza subjetiva da psique, chegou à realidade aqui estavam fora de ordem, fora do TAO, e ao
objetiva dos arquétipos (Card, 199D- chegar aqui, eu também fiquei fora da ordem na
A sincronicidade, no seu sentido mais amplo. tural das coisas, uma vez que estou em um lugar

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desordenado. Então eu precisei esperar três dias minado; forjamos constantemente nosso destino,
para voltar ao TAO, aí naturalmente a chuva veio" bem como o destino da humanidade, a partir da
(Sabini, 2002, p. 211). É muito difícil para nós, que conscientização das probabilidades arquetípicas
nos baseamos em princípios de causalidade e lo (Aufr,\nc, 2006, p. 10).
calidade, compreender uma história como essa, a Os arquétipos representam probabilidades. No
Em seu sentido não ser que pensássemos em uma causa mágica. inconsciente coletivo existem “n" arquétipos, n
mais restrito, a A no\'a perspectiva à qual não estamos habi possibilidades. Com o desenvolvimento da cons
sincronicidade
tuados é a de que fazemos parte de uma rede ciência constelam-se algumas probabilidades e,
seria a
coincidência dinâmica interligada. Na realidade potencial ar- num sistema de feedback, algumas vão se atuali
de um estado quetípica ou na potencialidade quântica essa zando na realidade consciente, enquanto outras
psíquico interligação aparece mais claramente. As dimen vão se formando no inconsciente. Dessa forma,
subjetivo com um
sões de tempo e espaço que nos separam e que o destino vai se forjando, uma mudança na cons
evento externo
fazem parte da realidade consciente não existem ciência altera o encaminhamento das probabilida
objetivo, trazendo
à consciência nesse mundo potencial. O processo quântico é des consteladas no inconsciente.
uma vivência surpreendentemente semelhante ao processo de As condições sociais, políticas, econômicas e
significativa. sincronicidade. Ambos são acausais. isto é, vio religiosas afetam o inconsciente coletivo (Jung,
lam o princípio da causa local, e ambos mani 1981j). As grandes transformações históricas não
festam estruturas holísticas em um domínio que podem ser atribuídas somente a causas externas.
vai além da diferença entre o físico e o psíquico A nova realidade está sendo preparada como po
CStapp, 2004). Poderiamos dizer que a experiência tencial no inconsciente. Uma mudança na cons
da sincronicidade é a experiência humana da in- ciência altera o encaminhamento das probabilida
terconexão quântica. des consteladas no inconsciente.
Estamos perante um campo ainda muito novo Citando novamente H. Stapp (2004, p.l51):
do conhecimento humano, um campo a ser ex
plorado. Como di.sse um grande físico da atuali Cada mudança no estado do universo, embora in
dade. Henry Staap Í2004, p. 183): duzida pela ação de um operador localizado, pro
duz uma mudança global nas tendências para o
[...] se os processos quânticos e os sincronísticos próximo evento a ,ser atualizado.
são de fato essencialmente o mesmo processo,
então uma janela empírica pode ter se alierto no Ou seja, uma escolha aparentemente isolada
proces.so que tem sido pensado pelos teóricos significa, na realidade, uma mudança global.
quânticos como jazendo além do alcance do co Saímos, portanto, de uma visão de mundo em
nhecimento científico. que o individuo está só em um mundo sem sen
tido, onde a questão do livre-arbítrio nao se co
A conscientização do material simbólico ar- loca, posto que somos determinados, para uma
quetípico traz para o indivíduo a po.ssibilidade visão de mundo significativa, em que fazemos
●ji io
de oplai'. recoloca a qiiesUio do livre-aiÍTÍtrio e partc integnintc de um todo , em que o pro|
de, portanto, alterar a(|iiilo fjtie se constela c()mo proce.s.so fundamental da natureza nos coloca a
prolialriliclade. com o oLi-
(juestão da resjion.salãlidade ética |iara
Não podemos pensar em um destino predeter- tro e para com o rodo.
Recebidn em: 6/7/2009.
Revisão: 16/7/2009.

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SINOPSE ABSTRACT

O artigo enfoca a confluência dos princípios The article focuses on the confluence of the
fundamentais que norteiam a física quântica e a fundamental principais underlying quantum
psicologia analítica. Destaca a questão de estar physics and analytical psychology. It addresses
mos habituados a lidar com as aplicações práticas the issue of being able to deal with the practical
decorrentes de ambas as abordagens e a dificul applications ensuing from both approaches while
dade de integrarmos suas implicações no que finding difficulty in integrating their implications
concerne à nossa visão de mundo. Compreende as regards our Vision of the world. Positing the
a experiência da sincronicidade como sendo a experience of synchronicity as the human expe-
experiência humana da interconexão quântica e rience of quantum interconnectedness, it elabo-
elabora a questão do sentido envolvida nessa vi rates on the question of meaning involved in this
vência., a percepção de fazermos parte integrante experience, the aw'arene,ss of being an integral
de uma ordem mais ampla, a vivência paradoxal part of a larger order, the paradoxical experience
da unicidade e do cósmico. of uniqueness and the cosmic.

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Junguiana

REFERENCIAS

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