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O materialismo eliminativo e as atitudes proposicionais

Paul Churchland

O materialismo eliminativo é a tese segundo a qual a nossa concepção de senso


comum dos fenómenos psicológicos é uma teoria radicalmente falsa. Uma teoria tão
fundamentalmente defeituosa que quer os princípios quer a ontologia dessa teoria
serão eventualmente removidos, e não paulatinamente reduzidos, por uma
neurociência completa. O nosso entendimento mútuo e mesmo a nossa
introspecção poderão então ser reconstituídos no enquadramento conceptual de
uma neurociância completa, uma teoria que podemos esperar venha a ser mais
poderosa do que a psicologia de senso-comum que substituiu e mais
substancialmente integrada na ciência física em geral. O meu propósito neste artigo
é explorar estas projecções, tanto quanto elas se reflectem (1) nos principais
elementos da psicologia de senso comum: as atitudes proposicionais (crenças,
desejos, etc), e (2) na concepção de racionalidade na qual estes elementos figuram.
Este foco representa uma mudança de fortuna do materialismo. Há vinte anos atrás,
as emoções, os qualia e os raw feels eram vistos como os principais obstáculos
para o programa materialista. Com estas barreiras em dissolução, o lugar da
oposição deslocou-se. Agora é o reino do intencional, o reino da atitude
proposicional, que é mais frequentemente tomado como sendo irredutível e
ineliminável, num enquadramento materialista, a favor do que quer que seja. Se isto
é assim, e porquê, é o que tem que ser examinado.
Um tal exame não fará no entanto muito sentido se não se tiver primeiro apreciado
que a rede relevante de conceitos de senso comum constitui de facto uma teoria
empírica, com todas as funções, virtudes, e perigos acarretados por esse estatuto.
Vou por isso começar com um breve esboço desta forma de ver as coisas e um
ensaio sumário do seu rationale. A resistência que tudo isto encontra ainda me
surpreende. Afinal, o senso comum deixou cair muitas teorias. Lembremos a ideia
de que o espaço tem uma direcção preferencial para as coisas caírem; que o peso é
uma característica intrínseca de um corpo; que um objecto móvel livre de forças
prontamente retornará a estar em repouso; que a esfera dos céus roda diariamente,

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e por aí fora. Estes exemplos são claros, talvez, mas as pessoas só parecem
dispostas a conceder um componente teórico no senso comum se (1) a teoria e o
senso comum envolvidos estiverem, de forma segura, localizados na Antiguidade,
(2) a teoria relevante for agora tão claramente falsa que a sua natureza especulativa
é incontornável. De facto, é mais fácil discernir teorias nestas circunstâncias. Mas a
visão retrospectiva é sempre 20/20. Vamos então, por uma vez que seja, aspirar a
alguma visão prospectiva.

I. Por que é que a psicologia de senso comum é uma teoria?

Vermos o nosso enquadramento conceptual de senso comum para os fenómenos


mentais como uma teoria traz uma organização simples e unificadora à maioria dos
tópicos da filosofia da mente, incluindo a explicação e previsão de comportamento,
a semântica dos predicados mentais, a teoria da acção e o problema das outras
mentes, a intencionalidade dos estados mentais, a natureza da introspecção, e o
problema mente-corpo. Qualquer perspectiva que consiga pôr todas estas questões
em conjunto merece uma cuidadosa consideração.
Comecemos com a explicação do comportamento humano (e animal). O facto é que
a pessoa média é capaz de explicar e mesmo prever o comportamento de outras
pessoas com uma facilidade e sucesso notáveis. Tais explicações e previsões
fazem, de forma standard, referência aos desejos, crenças, temores, intenções,
percepções, etc, aos quais os agentes estão presumivelmente sujeitos. Mas
explicações pressupõem leis – pelo menos leis prontas a usar [rough and ready] –
que liguem as condições explicativas com o comportamento explicado. De forma a
confortar-nos, uma rica rede de leis de senso comum pode de facto ser reconstruída
a partir deste comércio quotidiano de explicação e antecipação; os seus princípios
são homilias familiares; e as suas variadas funções são transparentes. Cada um de
nós compreende os outros tão bem como o fazemos porque partilhamos um
domínio tácito de um corpo integrado de contos / histórias acerca das relações
legiformes que se dão entre circunstâncias externas, estados internos e

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comportamento manifesto. Dada a sua natureza e funções, este corpo de histórias
pode de forma apta ser chamado psicologia de senso comum [folk psychology]171.
Esta abordagem implica que a semântica dos termos no nosso vocabulário
mentalista familiar seja compreendida da mesma maneira que a semântica dos
termos teóricos em geral: o significado de qualquer termo teórico é fixado ou
constituído pela rede de leis na qual figura. (Esta posição é muito diferente do
behaviorismo lógico. Nós negamos que as leis relevantes sejam analíticas, e são as
conexões legiformes geralmente que têm peso semântico, não apenas as conexões
com comportamento manifesto. Mas esta visão não dá conta da ainda que pouca
plausibilidade o behaviorismo lógico tinha.
De forma ainda mais importante, o reconhecimento de que a psicologia de senso
comum é uma teoria oferece uma solução simples e decisiva para um velho
problema céptico, o problema das outras mentes. A convicção problemática de que
um outro indivíduo é o sujeito de certos estados mentais não é inferida
dedutivamente do seu comportamento, nem é inferida por analogia indutiva, a partir
da instancia isolada do nosso próprio caso. Antes, essa convicção é uma hipótese
explicativa singular de um tipo perfeitamente simples. A sua função, em conjunção
com as leis de fundo da psicologia de senso comum, é oferecer
explicações/previsões/entendimento do comportamento continuado do indivíduo, e é
credível até ao ponto em que é bem sucedida quanto a isto em relação a hipóteses
concorrentes. Em geral, tais hipóteses são bem sucedidas e por isso a crença que
os outros gozam de estados mentais apoiada pela psicologia de senso comum é
uma crença razoável.
O conhecimento das outras mentes não tem assim nenhuma dependência do
conhecimento da nossa própria mente. Aplicando os princípios da nossa psicologia
do senso comum ao nosso comportamento, um Marciano adscrever-nos-ia o
conjunto familiar de estados mentais, mesmo se a sua própria psicologia for muito
diferente da nossa, Ele não estaria portanto, a ‘generalizar a partir do seu próprio
caso’.

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Da mesma forma, juízos introspectivos acerca do nosso próprio caso revelam não
ter qualquer especial estatuto, ou integridade. Nesta forma de ver as coisas, um
juízo introspectivo é apenas uma instancia de um hábito adquirido de resposta
conceptual aos nossos próprios estados internos, e a integridade de qualquer
resposta particular é sempre contingente à integridade do enquadramento
conceptual adquirido (teoria) no qual a resposta é formulada. Assim sendo, a nossa
certeza introspectiva de que a nossa mente é o lugar de crenças e desejos pode
estar tão mal posicionada como o estava a clássica certeza visual do homem de que
a esfera polvilhada de estrelas dos céus rodava diariamente.
Um outro paradoxo é a intencionalidade dos estados mentais. As “atitudes
proposicionais”, como Russell lhes chamou, formam o núcleo sistemático da
psicologia de senso comum, e o seu carácter singular e propriedades lógicas
anómalas inspiraram alguns a ver aqui um contraste fundamental com qualquer
coisa que fenómenos meramente físicos pudessem possivelmente mostrar. A chave
para esta questão reside de novo na natureza teórica da psicologia do senso
comum. A intencionalidade dos estados mentais emerge aqui não como um mistério
da natureza mas como um traço etsrutural dos conceitos da psicologia de senso
comum. De forma irónica, estes mesmos traços estruturais revelam a afinidade
muito próxima que a psicologia de senso comum tem com teorias nas ciências
físicas. Deixem-me tentar explicar.
Considere-se a ampla variedade do que poderíamos chamar “atitudes numéricas”
que aparecem no enquadramento conceptual da ciência física: ‘....tem uma massa
kg de n’, ‘......tem uma velocidade de n’, ‘.....tem uma temperatura K de n’ , e assim
por diante. Estas expressões são expressões que formam predicados: quando se
substitui um termo singular por um número no lugar de ‘n’, resulta um predicado
determinado. De forma mais interessante, as relações entre as várias “atitudes
numéricas” que resultam são precisamente as relações entre os números contidos
nessas atitudes. De forma ainda mais interessante, o lugar do argumento que
recebe os termos singulares para números está aberto à quantificação. Tudo isto
permite a expressão de generalizações a respeito das relações legiformes que se
sustentam entre as várias atitudes numéricas na natureza. Tais leis envolvem
quantificação sobre números, e explorarm as relações matemáticas que se
sustentam nesse domínio. Assim, por exemplo,

! "43!
(1) (x) (f) (m)[((x tem uma massa de m) & (x sofre uma força net de f) % (x
acelera a f/m)]
Considere-se agora a ampla variedade de atitudes proposicionais: ‘....acredita que
p’, ‘......deseja que p’, ‘.....teme que p’, ‘....está feliz que p’, etc. Estas expressões
também são formadores de predicados. Quando se substitui por uma proposição o
termo singular no lugar de ‘p’, resulta um predicado determinado, por exemplo,
‘.....acredita que Tom é alto’. (Frases não funcionam geralmente como termos
singulares, mas é dificil fugir à ideia de que quando uma frase ocorre no lugar de ‘p’,
está a funcionar como um termo singular. Sobre isto direi mais abaixo)
De forma mais interessante, as relações entre as atitudes proposicionais resultantes
são caracteristicamente as relações que se sustentam entre as proposições
‘contidas’ nelas, relações tais como acarretamento, equivalência, inconsistência
mútua. De forma ainda mais interessante, o lugar de argumento que toma os termos
singulares para proposições está aberto a quantificação. Tudo isto permite a
expressão de generalizações a respeito das relações legiformes que se sustentam
entre as atitudes proposicionais.Tais leis envolvem quantificação sobre proposições,
e exploram várias relações sustentandose nesse domonio. Assim, por exemplo,

(2) (x) (p) [(x teme que p)%(x deseja que ~p)]
(3) (x) (p) ) [(x espera que p) & (x descobre que p)) %(x está satisfeito que p)]
(4) (x) (p) (q) [(x acredita que p) & (x acredita que (se p então q)))
%(exceptuando confusão, distracção, etc, x acredita que q)]
(5) (x) (p) (q) [(x deseja que p) & (x acredita que (se p então q)) &(x é capaz de
fazer acontecer q)] %(exceptuando desejos em conflito ou estratégias preferidas, x
faz com que q)]

Não apenas a psicologia de senso comum é uma teoria, mas ela é tão obviamente
uma teoria que devemos pensar que é um mistério só na segunda metade do século
XX os filósofos terem percebido tal coisa. Os traços estruturais da psicologia de
senso comum são um perfeito paralelo dos da física matemática; a única diferença
reside mo respectivo domínio de entidades abstractas que cada uma explora. –
números no caso da física, proposições no caso da psicologia.

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Finalmente, apercebermo-nos de que a psicologia de senso comum é uma teoria
lança uma nova luz sobre o problema mente-corpo. A questão torna-se uma
questão de saber como a ontologia de uma particular teoria (a psicologia de senso
comum) está ou não está relacionada com a ontologia de outra teoria (neurociência
completa); e as posições filosóficas maiores acerca do problema mente-corpo
emergem como diferentes antecipações daquilo que investigação futura revelará
acerca do estatuto interteórico e integridade da psicologia de senso comum.

O teórico da identidade de forma optimista espera que a psicologia de senso comum


seja suavemente reduzida à neurociência completa, e a sua ontologia preservada
por meio de identidades transteóricas. O dualista espera que ela prove ser
irredutível à neurociência completa, em virtude de ser uma descrição não
redundante de um domínio autónomo e não físico de fenómenos naturais. O
funcionalista também espera que ela venha a mostrar ser irredutível, mas com os
fundamentos muito diferentes de a economia interna caracterizada pela psicologia
de senso comum não ser, em última análise, um aeconomia governada por leis de
estados naturais, mas sim uma organização abstracta de estados funcionais, uma
organização instanciável numa variedade de substractos materiais bastante
diferentes. Ela é por isso irredutível aos princípios peculiares a cada um deles.
Finalmente, o materialista eliminativo também é pessimista acerca das perspectivas
de redução, mas a sua razão é que a psicologia de senso comum é um relato
radicalmente inadequado das actividades internas, demasiado confuso e demasiado
defeituoso para sobreviver através de redução teórica. Segundo esta forma de ver,
ela será simplesmente deslocada por uma melhor teoria dessas actividades.
Qual destes fados é o real destino da psicologia de senso comum, vamos já tentar
adivinhar. Por agora, o ponto a manter em mente, é que vamos explorar o fado de
uma teoria, uma teoria sistemática, corrigível, especulativa.

II Por que é que a psicologia de senso comum pode (realmente) ser falsa

Dado o facto de a psicologia de senso comum ser uma teoria empírica, é pelo
menos uma possibilidade abstracta a de que os seus princípio sejam radicalmente
falsos e a sua ontologia uma ilusão. No entanto, com a excepção do materialismo
eliminativo, nenhuma das posições mais improtantes leva esta possibilidade a sério.

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Nenhuma delas duvida da integridade básica ou verdade da psicologia de senso
comum (daqui em diante PSC) e todas elas antecipam um futuro no qual leis e
categorias seriam conservadas. Este conservadorismo não deixa de ter algum
fundamento. Afinal, a PSC tem um sucesso explicativo de previsão considerável. E
que melhor fundamento poderia haver para a confiança na integridade das suas
categorias?
De facto, que melhor fundamento? Mesmo assim, a presunção a favor da PSC é
espúria, nascida de inocência e visão reduzida. Um exame mais fundo revela uma
imagem diferente. Primeiro, temos que lidar não apenas com os sucessos da PSC,
mas com as suas falhas explicativas, e com a sua extensão e seriedade. Em
segundo lugar, temos que considerar a história de longo prazo da PSC, o seu
crescimento, fertilidade, e actuais promessas de desenvolvimento futuro. E terceiro,
temos que considerar que tipos de teorias é provável que sejam verdadeiras da
etiologia do nosso comportamento, dado o que aprendemos sobre nós próprios na
história recente. I.e., temos que avaliar a PSC quanto á sua coerência e
continuidade com teorias férteis e bem estabelecidas em domínios adjacentes e
justapostos – com a teoria evolucionista, biologia e neurociência, por exemplo –
porque coerência activa com o resto daquilo que presumimos saber é talvez a
medida final de qualquer hipótese.
Um inventário sério deste tipo revela uma situação muito problemática, uma
situação que evocaria cepticismo aberto na caso de qualquer teoria menos familiar e
menos querida. Deixem-me esboçar alguns detalhes relevantes. Quando centramos
a nossa atenção não no que a PSC explica mas naquilo que ela não explica e nem
sequer aborda, descobrimos que há aí muita coisa. Como exemplos de fenómenos
mentais centrais e importantes que permanecem largamente ou totalmente
misteriosos dentro do enquadramento da PSC, considere-se a natureza e Dinâmica
da doença mental, a faculdade da imaginação criativa, ou o fundamento da
diferença de inteligência entre indivíduos. Considere-se a nossa total ignorância da
natureza e funções psicológicas do sono, esse curioso estado em que um terço da
nossa vida se passa. Reflicta-se sobre a habilidade comum de apanhar uma bola
lançada em pleno ar, ou acertar num carro em movimento com uma bola de neve.
Considere-se a construção interna de uma imagem 3D a partir de diferenças subtis
no arranjo 2D de estimulações nas retinas. Considere-se a rica variedade de ilusões
perceptivas, visuais ou outras. Considere-se o milagre da memória, com a sua

! "4*!
capacidade de recuperação relâmpago do que é relevante. Sobre estes e muitos
outros fenómenos mentais, a PSC lança uma luz negligenciável.
Um mistério que se impõe particularmente é o da natureza do processo de
aprendizagem, especialmente tanto quanto este envolve mudança conceptual de
larga escala, e especialmente quando aparece em forma pré-linguística ou
inteiramente não linguística (como em bebés e animais), que é de longe a mais
comum na natureza. A PSC depara-se com dificuldades especiais, uma vez que a
sua concepção da aprendizagem com manipulação e armazenamento de atitudes
proposicionais founders sobre o facto de que como formular, manipular e armazenar
um tecido rico de atitudes proposicionais é em si algo que é aprendido, e é apenas
uma entre muitas perícias cognitivas adquiridas. A PSC aparecer-nos-ia assim
constitutivamente incapaz de sequer se dirigir a este mistério tão básico.
Falhanços a tão larga escala não mostram ainda que a PSC é uma teoria falsa,
mas movem essa perspectiva para o leque das reais possibilidades, e mostram
decisivamente que a PSC é no máximo uma teoria altamente superficial, um
vislumbre parcial e não penetrante sobre uma realidade mais profunda e complexa.
Tendo chegado a esta opinião, podemos ser perdoados por explorar a possibilidade
de que a PSC ofereça um esboço enganador da nossa cinemática e Dinâmica
internas, um esboço cujo sucesso é devido mais à aplicação selectiva e
interpretação forçada da nossa parte do que a insight genuíno por parte da PSC.
Um olhar sobre a história da PSC faz pouco para afastar tais medos, uma vez
erguidos. A história é uma história de recuos, infertilidade e decadência. O
presumido domínio da PSC costumava ser muito maior do que é agora. Em culturas
primitivas, o comportamento da maioria dos elementos da natureza era
compreendido em termos intencionais. O vento podia conhecer fúria/ raiva, a lua
ciúmes, o rio generosidade, o mar fúria, e assim por diante. Estas não eram
metáforas. Eram feitos sacrifícios e augúrios aceites para placar ou adivinhar as
mutáveis paixões dos deuses. Apesar da sua esterilidade, esta abordagem animista
à natureza dominou a nossa história, e foi apenas nos últimos 2000 ou 3000 anos
que restringimos a aplicação literal da PSC aos animais mais elevados.
Mesmo neste domínio preferido, no entanto, quer o conteúdo quer o sucesso da
PSC não avançaram significativamente em dois ou três mil anos. A PSC os gregos
é essencialmente a PSC que usamos hoje, e nós somos apenas
negligenciavelmente melhores a explicar o comportamento humano do que era

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Sófocles. Este é um período muito longo de estagnação e infertilidade para qualquer
teoria demonstrar, especialmente quando se depara com enormes listas de
anomalias e mistérios no seu domínio explicativo. Talvez teorias perfeitas não
tenham necessidade de evoluir. Ma a PSC é profundamente imperfeita. O seu
falhanço a desenvolver o seus recursos e a estender o âmbito do seu sucesso é por
isso escuramente curioso, e temos obrigação de inquirir acerca da integridade das
suas categorias básicas. Para usar os termos de Imre Lakatos, a PSC é um
programa de investigação estagnado ou degenerescente, e tem sido isso mesmo
desde há milénios.
Sucesso em explicações até à data presente não é evidentemente a única
dimensão em que uma teoria pode mostrar ser virtuosa ou promissora. Uma teoria
com problemas ou estagnada pode merecer paciência ou solicitude por outras
razões; por exemplo por ser a única teoria ou abordagem teórica que se adequa
bem a outras teorias sobre assuntos adjacentes, ou a única que promete reduzir-se
ou ser explicada por alguma teoria de fundo cujo domínio abarca o domínio da
teoria em causa. Em suma, pode obter crédito por oferecer uma promessa de
integração teórica, Como é que a PSC se situa nesta dimensão?
É talvez precisamente aqui que a FPC está pior posicionada. Se nós abordarmos o
homo sapiens da perspectiva da história natural e das ciências físicas, podemos
contar uma história coerente da sua constituição, desenvolvimento, e capacidades
comportamentais que envolva desde a física de partículas à teoria atómica e
molecular, química orgânica, teoria evolucionista, biologia, fisiologia e neurociência
materialista. Essa história, embora ainda radicalmente incompleta, é extremamente
poderosa, tendo melhor desempenho do que a PSC em muitos pontos mesmo no
seu próprio domínio. E ela é deliberadamente e auto conscientemente coerente com
o resto da imagem do mundo em desenvolvimento. Em suma, a maior síntese
téorica da história da raça humana está actualmente nas nossas mãos, e partes
dessa história já nos dão descrições e explicações muito boas do inout sensorial
humano, actividade neuronal e controle motor.
Mas a PSC não é parte dessa síntese em crescimento. As suas categorais
intencionais estão em magnífico isolamento, sem perpsectivas visíveis de redução a
um corpo mais amplo. Uma redução bem sucedida não pode ser excluída, na minha
opinião, mas a impotência explicativa e a longa estagnação inspiram muito pouca fé
em que as suas categorias venham a encontrar-se claramente reflectidas no

! "*)!
enquadramento da neurociência. Pelo contrario, lembramo-nos de como a alquimia
deve ter parecido quando a química elementar estava a tomar forma, como a
cosmologia aristotélica deve ter parecido enquanto a Mecânica clássica estava a ser
articulada, ou como a concepção vitalista da vida deve ter parecido quando a
química orgânica avançava.
Ao esboçar um sumario justo da situação, devemos fazer um particular esforço para
abstrair do facto de que a PSC é uma parte central do nosso actual lebenswelt, e
serve como principal veículo do nosso comercio interpessoal. Pois estes factos dão
à PSC uma inércia conceptual que vai muito para alem das suas virtudes puramente
teóricas. Ao restringirmo-nos a esta última dimensão, o que devemos dizer é que a
PSC sofre falhanços a uma escala épica, que tem estado estagnada pelo menos há
vinte e cinco séculos, e que as suas categorias parecem (pelo menos até agora)
ser incomensuráveis com ou ortogonais às categorias da ciência física de
background cuja pretensão de longo prazo de xplicar o comportamento humano
parece inegável. Qualquer teoria susceptível desta descrição deve ser vista como
uma candidata séria à eliminação.
Claro que neste estádio das coisas não podemos insistir em nenhuma conclusão
mais forte. Nem é minha preocupação fazê-lo. Estamos aqui a explorar uma
possibilidade, e os factos não pedem nem mais nem menos do que quer ela seja
levada a sério. O traço distintivo do materialista eliminativo é que ele leva essa
possibilidade mesmo muito a sério.

III Argumentos contra a eliminação

Este é o rationale básico do materialismo eliminativo: a PSC é uma teoria, e muito


provavelmente uma teoria falsa; vamos pois tentar ultrapassá-la.
O rationale é simples e claro, mas muitas pessoas consideram-no pouco
convincente. Será objectado que a PSC não é, estrittametne falando, uma teoria
empírica; que ela não é falsa, ou pelo menos não é refutável por considerações
empíricas, e que não deve ou não pode ser ultrapassada à maneira de uma teoria
empírica defunta. No que se segue examinaremos estas objecções à medida que
elas fluem da posição mais popular e mais bem fundada das posições em
concorrência na filosofia da mente: o funcionalismo.

! "*"!
Uma antipatia pelo materialismo eliminativo surge de duas correntes distintas no
seio do funcionalismo. A primeira diz respeito ao carácter normativo da PSC, ou
pelo menos desse núcleo central da PSC que trata das atitudes proposicionais. A
PSC, alguns dirão, é uma caracterização de um ideal, ou pelo menos louvável modo
de actividade interna. Ela esboça não apenas o que é ter e processar crenças e
desejos, mas também (e inevitavelmente) o que é ser racional na sua
administração. O ideal disposto pela PSC pode ser imperfeitamente alcançado por
humanos empíricos, mas isto não põe em causa a PSC como caracterização
normativa. Nem têm tais falhanços que pôr seriamente em causa a PSC mesmo
como caracterização descritiva, pois permanece verdadeiro que as nossas
actividades podem ser de forma útil e apurada compreendidas como racionais,
excepto nos ocasionais lapsos devidos a ruído, interferência ou outra falha, cujos
defeitos a investigação empírica poderá eventualmente deslindar. Assim sendo,
embora a neurociência possa aumentá-la de forma útil, a PSC não tem necessidade
premente de ser substituída, nem poderia ser substituída enquanto caracterização
normativa, por qualquer teoria descritiva de mecanismos neuronais, uma vez que a
racionalidade é definida sobre atitudes proposicionais tais como crenças e desejos.
Assim, a PSC está aqui para ficar.
Daniel Dennett defendeu uma posição de acordo com estas linhas. E a forma de ver
descrita também dá voz a um tema dos dualistas de propriedades, Karl Popper e
Joseph Margolis citam ambos a natureza normativa da actividade mental e
linguística como um impedimento à sua penetração ou eliminação por qualquer
teoria descritiva /materialista. Espero deflaccionar o atractivo de tais teses mais
abaixo.
A segunda corrente diz respeito à natureza abstracta da PSC. A tese central do
funcionalismo é que os princípios da PSC caracterizam os nossos estados internos
de uma forma que não faz referencia à sua natureza intrínseca ou constituição
física. Antes, eles são caracterizados em termos da rede de relações causais que
têm uns com os outros, e a circunstâncias sensoriais e comportamento manifesto.
Dada a sua especificação abstracta, essa economia interna pode por isso ser
realizada numa variedade de sistemas físicos nomicamente heterogéneos. Todos
podem diferir, mesmo radicalmente, na sua constituição física, e no entanto, num
outro nível, todos partilharão a mesma natureza. Esta forma de ver as coisas, diz
Fodor, ‘é compatível com pretensões muito fortes acerca da ineliminabilidade da

! "*.!
linguagem mental das teorias do comportamento’172 Dad a possibildiade real de
instanciações múltiplas em substratos físicos heterogénos, não podemos eliminar a
carcaterização funcional a favor de qualquer teoria peculiar a um desses
substractos. Isso impedir-nos-ia de descrever a organização (abstracta) que
qualquer instanciação partilha com todas as outras. Uma caracterização funcional
dos nossos estados internos está pois aqui para ficar.
Este segundo tema, como o primeiro, atribui um carácter fracamente estipulativo à
PSC, como se o ónus recaísse sobre os sistemas empíricos para fielmente
instanciar a organização que a PSC especifica, em vez de o ónus recair sobre a
PSC de descrever fielmente as actividades internas de uma classe naturalmente
distinta de sistemas empíricos. Esta impressão é acentuada pelos exemplos
standard usados para ilustrar as teses do funcionalismo – ratoeiras, aparelhos de
válvulas (valve lifters?), calculadoras aritméticas, computadores, robôs, e por aí fora.
Estes são artefactos concebidos para se encaixarem num formulário preconcebido.
Em tais casos uma falha de adequação entre o sistema físico e a caracterização
formal relevante impugna apenas o primeiro, não o segundo. A caracterização
funcional é assim removida da critica empírica de uma forma que é muito pouco
comum em teorias empíricas. Um funcionalista proeminente – Hilary Putnam –
argumentou mesmo que a PSC não é de todo uma teoria corrigível173.
Simplesmente, se a PSC for vista nestes moldes, como regularmente é o caso, a
questão da sua integridade empírica muito improvavelmente se colocará, quanto
mais uma resposta crítica.
Embora justo para com alguns funcionalistas, o que acabou de ser dito não é justo
para com Fodor. Na sua forma de ver as coisas, a finalidade da psicologia é
encontrar a melhor caracterização funcional de nós próprios, e saber qual é essa
caracterização permanece uma questão empírica. Da mesma forma, o seu
argumento a favor da ineliminabilidade do vacabulário mental da psicologia não
escolhe o estado actual da nossa PSC como alvo em particular. Só tem que se
defender que alguma caracterização funcional abstracta tem que ser retida, talvez
alguma articulação ou refinamento da PSC.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
172
Psychological Explanation (New York, Random House, 1968), p. 116.
173
‘Robots: Machines or artificially created life?’, Journal of Philosophy, LXI, 21 (Nov. 12, 1964): 668-691, pp.
675, 681 ff.

! "*'!
As suas previsões quanto à PSC permanecem, no entanto, em baixa. Em primeiro
lugar, é claro que Fodor pensa que não há nada de fundamentalmente ou
interessantemente errado com a PSC. Pelo contrario, a a concepção central de
actividade cognitiva da PSC – como consistindo na manipulação de atitudes
proposicionais – vem a ser o elemento central da teoria de Fodor da natureza do
pensamento (The Language of Thought, op. cit.). Em segundo lugar, permanece o
ponto de acordo com o qual por mais ‘limpeza e arrumação’ que a PSC precise, ela
não poderá ser deslocada por nenhuma teoria naturalista do nosso substracto físico,
uma vez que são os traços funcionais abstractos dos seus estados internos que
fazem uma pessoa, não a química do substracto.
Tudo isto é apelativo. Mas quase nada, penso, é acertado. O funcionalismo tem
gozado durante demasiado tempo a reputação de ser uma ousada posição avant
garde. É preciso revelar como é de facto uma posição reaccionária e de vistas
curtas.

IV A natureza conservadora do funcionalismo

Uma perspectiva valiosa sobre o funcionalismo pode ser obtida a partir da história
seguinte. Para começar, lembremo-nos da teoria da matéria inanimada dos
alquimistas. Temos aqui uma tradição longa e variada, não uma única teoria, mas
os nossos propósitos serão servidos por um vislumbre.
Os alquimistas concebiam o inanimado como inteiramente contínuo com a matéria
animada, na medida em que as propriedades sensíveis e comportamentais das
várias substâncias eram devidas à animação [ensoulment] da matéria básica por
vários espíritos ou essências. Estes aspectos não materiais eram supostos ter um
desenvolvimento, exactamente como encontramos crescimento e desenvolvimento
em várias almas de plantas, animais e humanos. A perícia particular do alquimista
consistia em semear, nutrir e trazer à maturidade os espíritos materializados
desejados nas combinações apropriadas.
Numa ortodoxia, os quatro espíritos fundamentais (para a matéria inanimada) eram
chamados ‘mercúrio’, ‘sulfúrio’, ‘arsénico amarelo’ e ‘sal amoníaco’. Cada um destes
espíritos era considerado responsável por um síndroma amplo mas característico de
propriedades sensíveis, combinatórias e causais. O espírito mercúrio, por exemplo,
era considerado responsável por certas características típicas de substâncias

! "*/!
metálicas – serem brilhantes, liquefactíveis, etc. O sulfúrio era considerado
responsável por certos traços residuais típicos de substâncias metálicas, e por
aquelas manifestadas pelos minerais dos quais o metal podia ser destilado.
Qualquer substância metálica dada seria uma orquestração critica, principalmente
destes dois espíritos. Existia uma história semelhante para os outros dois espíritos,
e entre os quatro um certo domínio de traços físicos e transformações era tornado
inteligível e controlável.
O grau de controlo era sempre limitado, como é óbvio. Ou melhor, as previsões que
os alquimistas faziam e o controlo que possuíam eram devidas mais ao saber
manipulativo adquirido na aprendizagem com um mestre do que a qualquer insight
genuíno fornecido pela teoria. A teoria seguia, mais do que ditava, a prática. Mas a
teoria dava alguma ordem à prática, e na ausência de uma alternativa desenvolvida
era suficientemente forte para suster uma longa e teimosa tradição.
A tradição tinha-se tornado apagada e fragmentada no tempo em que a química de
Lavoisier e Dalton se ergueu para a substituir para sempre. Mas vamos supor que
ela tinha permanecido um pouco mais – talvez porque a ortodoxia dos quatro
espíritos se tinha tornado uma parte muito usada do senso comum de cada um – e
vamos examinar a natureza do conflito entre as duas teorias e as possíveis
avenidas de resolução.
Não há dúvida que a linha mais simples de resolução, e aquela que historicamente
aconteceu, é a simples substituição. A interpretação dualista das quatro essências –
como espíritos imateriais – aparecerá sem determinação e desnecessária dado o
poder da taxonomia corpuscular da química atómica. E uma redução da velha
taxonomia à nova parecerá impossível, dada a extensão na qual a velha teoria
comparativamente impotente classifica as coisas transversalmente relativamente à
nova. A eliminação aparecerá então como a única alternativa – a não ser que algum
astucioso e determinado defensor da visão alquímica tenha a inteligência de sugerir
a defesa seguinte.
Ser ‘animado por mercúrio’ ou ‘sulfúrio’, ou qualquer outro dos dois assim chamados
espíritos, é de facto um estado funcional. O primeiro, por exemplo, é definido pela
disposição para reflectir luz, liquefazer-se sob calor, unir-se com outra matéria no
mesmo estado, e assim por diante. E cada um destes quatro estados está
relacionado com os outros, pelo facto de o síndroma para cada um variar como
função de qual dos outros três estados é também instanciado no mesmo substrato.

! "*3!
Assim o nível de descrição compreendido pelo vocabulário alquímico é abstracto:
várias substâncias materiais, convenientemente ‘animadas’ podem manifestar as
características de um metal, por exemplo, ou mesmo especificamente do outro. Pois
é o síndrome total das propriedades causais e ocorrentes que importa, e não os
detalhes corpusculares do substracto. A alquimia, conclui-se, compreende um nível
de organização na realidade distinto de e irredutível à organização que se encontra
na química corpuscular.
Esta concepção podia ter sido muito apelativa. Afinal, poupa aos alquimistas o
trabalho de defenderem almas que vão e vêm; liberta-os de terem de enfrentar as
exigências sérias de uma redução naturalista, e poupa-lhes o choque e a confusão
da simples eliminação. A teoria alquímica emerge como basicamente correcta! E
eles também não têm que parecer demasiado teimosos ou dogmáticos nisto. A
alquimia, tal como está, concedem eles, pode precisar de limpeza e arrumação, e a
experiência deve ser o nosso guia. Mas não temos que temer a sua deslocação
naturalista, lembram-nos eles, uma vez que é a particular orquestração dos
síndromas de propriedades causais e ocorrentes que tornam um pedaço de matéria
ouro, e não os detalhes idiossincráticos do seu substrato corpuscular. Uma outra
circunstância ainda podia ter tornado esta pretensão ainda mais plausível. Porque o
facto é que os alquimistas sabiam como fazer ouro, neste sentido relevantemente
enfraquecido de ouro, e podiam fazê-lo de uma variedade de maneiras. O seu ouro
nunca era tão perfeito - infelizmente! – como o ouro nutrido nas profundezas da
natureza, mas que mortal pode esperar igualar-se às artes da própria natureza?
O que esta história mostra é que é pelo menos possível para a constelação de
lances, teses e defesas característicos do funcionalismo constituírem um insulto à
razão e à verdade, e fazê-lo com uma plausibilidade que é assustadora.
A alquimia é uma teoria péssima, bem merecedora da sua eliminação completa, e a
defesa que acabámos de explorar é reacionária, retrógrada lança poeira para os
nossos olhos, e é errada.Mas em contexto histórico, ela poderia ter parecido
totalmente razoável mesmo a pessoas sensatas.
O exemplo alquímico é um caso deliberadamente transparente do que poderia ser
chamado ‘estratagema funcionalista’ e outros casos são fáceis de imaginar. Uma
defesa fabulosa da teoria flogística da combustão pode ser erguida nesta linha.
Pense-se em ser altamente flogisticado e ser deflogisticado como estados
funcionais definidos por certos síndromas de disposições causais; aponte-se para a

! "*+!
grande variedade de substratos naturais capazes de combustão e calcificação;
clame-se uma integridade funcional irredutível para aquilo que provou não ter
qualquer integridade natural; esconda-s eos defeitos que permanecem sob um
compromisso de procurar melhorias. Uma receita semelhante dará nova vida aos
quatro humores da medicina medieval, para a essência vital ou archeus da biologia
pré-moderna, etc.
Se a sua aplicação noutros casos for de todo um guia, o estratagema funcionalista é
uma cortina de fumo para a preservação do erro e da confusão. De onde deriva a
nossa certeza de que nas revistas científicas contemporâneas a mesma charada
não está a ser jogada em benefício da PSC? O paralelo com a alquimia é em todos
os outros aspectos assustadoramente completo, até ao próprio paralelo da busca de
ouro artificial com a busca de inteligência artificial.
Vamos ver se não sou mal entendido neste ponto. Ambas as finalidades são boas
finalidades : graças à física nuclear ouro artificial (mas real) está finalmente à mão
para nós, nem que seja em quantidades submicroscópicas, a inteligência artificial
(mas real) eventualmente estará também. Mas assim como a cuidadosa
orquestração dos síndromas superficias era a forma errada de produzir ouro
genuíno, assim também pode a cuidadosa orquestração de síndromas superficiais
ser a forma errada de produzir inteligência genuína. Da mesma forma que com o
ouro, pode ser que o que seja requerido seja que a ciência penetre nos género
natural subjacente que pode dar origem ao síndroma total directamente.
Em suma, quando confrontados com a impotência explicativa, história estagnada e
isolamento sistemático dos idiomas intencionais da PSC, não é uma defesa
adequada insistir que esses idiomas são abstractos, funcionais, e irredutíveis em
carácter. Desde logo, a mesma defesa poderia ser erguida com plausibilidade
comparável para qualquer haywire rede de estados internos que a nossa tradição
supersticiosa nos tivesse adscrito. E por ouro, a desfesa assume essencialmente o
que está em causa: assume que são os idiomas intencionais da PSC. Mais ou
menos um pouco, que exprimem os traços importantes partilhados por todos os
sistemas cognitivos. Mas pode ser que não seja assim. É pelo menos certamente
errado assumir que o fazem, e depois argumentar contra a possibilidade de um
deslocamento materialista que este tem que descrever as questões a um nível
diferente do nível que é realmente importante. Isto é pura e simplesmente uma
petição de princípio a favor do enquadramento antigo.

! "*4!
Finalmente, é muito importante apontar que o materialismo eliminativo é
estritamente consistente com a tese de que a essência de um sistema cognitivo
reside na organização funcional abstracta dos seus estados internos. O materialista
eliminativo não está comprometido com a ideia segundo a qual um relato adequado
da cognição tem de ser um relato naturalista, embora se lhe possa perdoar explorar
essa possibilidade. O que ele de facto mantém é que o relato adequado da
cognição, seja funcionalista ou naturalistas, terá tanta semelhança com a PSC como
a química moderna tem semelhança com a alquimia dos quatro espíritos.
Vamos agora tentar lidar com o argumento contra o materialismo eliminativo a partir
da dimensão normativa da PSC. Creio que isto ode ser feito fácil e rapidamente.
Em primeiro lugar, o facto de as regularidade adscritas ao núcleo intencional da
PSC serem predicadas a certas relações lógicas entre proposições não constitui por
si fundamento para defender algo de normativo acerca da PSC. Fazendo um
paralelo relevante, o facto de as regularidades adscritas pela clássica lei dos gases
serem predicadas sobre relações aritméticas entre números não implica o que quer
que seja de normativo acerca da lei clássica dos gases. E relações lógicas entre
proposições são tanto uma questão objectiva de factos abstractos como o são as
relações aritméticas entre números. A esse respeito, a lei

(4) (x) (p) (q) [(x acredita que p) & (x acredita que (se p então q))) %(exceptuando
confusão, distracção, etc, x acredita que q)]

Está inteiramente a par com a lei clássica dos gases:

(6) (x) (P) (V) (") [((x tem a pressão P) & (x tem o volume V) & (x tem a quantidade
")) % (exceptuando pressão ou densidade muito alta, x tem uma temperatura de PV/
"R)]

Uma dimensão normativa entra apenas porque acontece valorizarmos mais os


padrões adscritos pela PSC. Mas não os valorizamos todos, Considere-se

(6) (x) (p) [(x deseja com todo o seu coração que p) & (x vem a saber que ~p)
%(exceptuando uma excepcional força de carácter, x fica destroçado que ~p)]

! "**!
Além do mais, com acontece em geral com as convicções normativas, insights
frescos podem motivar enormes mudanças no que valorizamos.
Em segundo lugar, as leis da PSC adscrevem-nos apenas uma racionalidade
mínima e truncada, não a racionalidade ideal que alguns sugeriram. A racionalidade
caracterizada pelo conjunto de todas as leis da PSC fica muito aquém da
racionalidade ideal. Isto não é surpreendente. Nós não temos de qualquer modo
qualquer concepção clara e acabada de racionalidade ideal; certamente o homem
comum não a tem. Assim sendo, simplesmente é implausível que as falhas das
quais a PSC sofre sejam devidas em primeiro lugar a falhas humanas de se manter
à altura dos standards ideais oferecidos. Bem ao contrario a concepção de
racionalidade que ela oferece parece coxa e superficial, especialmente quando
comparada com a complexidade dialéctica da nossa história científica, ou com o
virtuosismo de raciocínio manifestado por qualquer criança.
Em terceito lugar, mesmo se a nossa actual concepção de racionalidade – e mais
em geral de virtude cognitiva – está largamente constituída no modelo
sentencial/proposicional da PSC, não há garantia que este enquadramento seja
adequado ao relato mais profundo e mais preciso da virtude cognitiva que é
claramente necessário. Mesmo se concedermos a integridade categorial da PSC,
pelo menos aplicada a humanos utentes de linguagem, continua a estar longe de
ser claro que os parâmetros básicos da virtude intelectual sejam encontrado ao nível
categorial compreendido pelas atitudes proposicionais. Afinal, o uso de linguagem é
algo que é aprendido por um cérebro já capaz de vigorosa actividade cognitiva: o
uso de linguagem é adquirido como apenas uma entre um grande número de
perícias de manipulação aprendidas; e é dominado por um cérebro que a evolução
moldou para muitas funções, o uso de linguagem sendo apenas uma última e talvez
menor entre elas. Sobre este pano de fundo, o uso de lingaugem aparece como
uma actividade bastante periférica, como um modo racialmente idiossincrático de
interacção social que é dominado graças à versatilidade e poder de um modo mais
básico de actividade. Porquê aceitar então uma teoria da actividade cognitiva que
modeliza os seus elementos à imagem da linguagem humana? E porquê assumir
que os parâmetros fundamentais da virtude cognitiva são ou podem ser definidos
sobre elementos deste nível superficial?
Um avanço sério na nossa apreciação da virtude cognitiva pareceria assim requerer
que vamos para alem da PSC, que transcendamos a pobreza da concepção de

! .11!
racionalidade da PSC transcendendo inteiramente a sua cinemática proposicional,
desenvolvendo uma cinemática da actividade cognitiva mais geral e mais profunda,
e distinguindo dentro deste novo enquadramento quais dos modos cinematicamente
possíveis de actividade devem ser valorizados e encorajados (como mais eficientes,
fiáveis, produtivos, ou seja o que for). O materialismo eliminativo não implica assim
o fim das nossas preocupações normativas. Implica apenas que elas terão que ser
reconstituídas a um nível mais revelador de entendimento, um nível providenciado
por uma neurociência madura.
Vamos agora explorar o que um futuro teoricamente informado pode reservar-nos.
Não porque possamos prever estas questões com clarividência especial mas
porque é importante quebrar os grilhões da nossa imaginação constituídos pela
cinemática proposicional da PSC. No que diz respeito a esta secção, podemos
resumir assim as nossas conclusões. A PSC não é nem mais nem menos do que
uma teoria culturalmente entrincheirada da forma como nós próprios e os animais
superiores funcionam. Não tem nenhuns traços que a tornem empiricamente
invulnerável, nenhuma função singular que a torne insubstituível, nenhum estatuto
especial que seja. Teremos por isso uma postura céptica para qualquer pleito a sua
favor.

V Para além da psicologia do senso comum

O que pode a eliminação da PSC de facto envolver – poderá ela envolver não
apenas os idiomas relativamente simples da sensação, mas todo o aparato das
atitudes proposicionais? Isso depende fortemente daquilo que a neurociência possa
descobrir, e da nossa determinação em capitalizar sobre isso. Eis três cenários nos
quais a concepção operativa da actividade cognitiva é progressivamente divorciada
das formas e categorias que caracterizam a linguagem natural. Se o leitor me
permitir a falta de substância real, vou tentar esboçar alguma forma plausível.
Primeiro vamos supor que a investigação acerca da estrutura e actividade do
cérebro, quer de grão fino quer global, finalmente produz uma nova cinemática e
correlativa dinâmica para aquilo que conhecemos como actividade cognitiva. A
teoria é uniforme para todos os cérebros terrestres, não apenas os cérebros
humanos, e faz contacto conceptual apropriado com a biologia evolucionista e a
termodinâmica do não-equilíbrio. Adscreve-nos, a cada momento, um conjunto ou

! .1)!
configuração de estados complexos, que são especificados na teoria como ‘sólidos’
figurativos dentro de um espaço de fases quadri- ou penta dimensional. As leis da
teoria governam a interacção, movimento e transformação destes estados ‘sólidos’
dentro daquele espaço, e também a sua relação com quaisquer transdutores
sensoriais e motores que o sistema possua. Como com a Mecânica celestial, a
especificação exacta dos ‘sólidos’ envolvidos e dar conta exaustivo de todos os
‘sólidos’ adjacentes dinamicamente relevantes não é possível na prática, por muitas
razões, mas aqui vem a verificar-se que as aproximações óbvias nas quais
recaímos providenciam excelentes explicações / previsões da mudança interna e
comportamento externo, pelo menos a curto prazo.
Quanto à actividade de longo prazo, a teoria oferece relatos poderosos e relevantes
do processo de aprendizagem, da natureza da doença mental, das variações em
carácter e inteligência no reino animal, bem como entre os indivíduos humanos.
Alem disso, oferece uma teoria do ‘conhecimento’, tal como este é tradicionalmente
concebido. De acordo com a nova teoria, qualquer frase declarativa à qual um
falante dê o seu confiante assentimento é meramente uma projecção uni-
dimensional – através da lente composta das áreas de Wernicke e Broca para a
superfície idiosincrática da língua do falante – uma projecção uni-dimensional de um
‘sólido’ quadri-ou penta dimensional que é um elemento no seu verdadeiro estado
cinemático.(Lembremo-nos das sombras na parede da caverna de Platão).
Sendo projecções dessa realidade interna, tais frases transportam informação
relevante acerca dela e são portanto apropriadas para funcionar como elemtnos de
um sistema comunicacional. Por outro lado, sendo projecção sub-dimensionais, elas
não reflectem senão uma pequena parte da realidade projectada. Elas são portanto
impróprias para representar a realidade mais profunda em todos os aspectos
cinematicamente, dinamicamente e mesmo normativamente relevantes desta. I.e.,
um sistema de atitudes proposicionais, tal como a PSC, tem inevitavelmente que
falhar em capturar o que está a passar-se aí, embora possa reflectir sufieciente
estrutusra de superfície para manter uma tradição à maneira da alquimia entre
pessoas que não dispõem de uma melhor teoria. Da perspectiva da nova teoria, no
entanto, é claro que simplesmente não existem estados legiformes do tipo que a
PSC postula. As leis que realmente governam as nossas actividades internas são
definidas sobre estados e configurações cinemáticos diferentes e muito mais

! .1"!
complexos, como o são os critérios normativos para a integridade do
desenvolvimento e a virtude intelectual.
Um resultado teórico como o que acabei de descrever pode razoavelmente ser
contado como um caso a favor da eliminação de uma ontologia teórica a favor de
uma outra, mas o sucesso aqui imaginado para a neurociência sistemática não tem
que ter qualquer efeito sensível na prática comum. Velhos hábitos custam a morrer,
e na ausência de alguma necessidade prática, podem não morrer de todo. Mesmo
assim, não é inconcebível que algum segmento da população, ou toda ela, se
tornasse intimamente familiar com o vocabulário requerido para caracterizar os
nossos estados cinemáticos, aprendesse as leis que governam as suas interacções
e projecções comportamentais, adquirisse facilidade da adscrição de primeira-
pessoa, e deslocasse assim totalmente o uso da PSC, mesmo na vida comum. A
queda da ontologia da PSC estaria então completa.
Podemos agora explorar uma segunda possibilidade bem mais radical ainda. Toda a
gente conhece a tese de Chomsky de acordo com a qual a mente ou cérebro
humana contem inatamente e de forma única, as estruturas abstractas para
aprender e usar lingas naturais especificamente humanas.
Uma hipótese alternativa é que o nosso cérebro de facto contem estruturas inatas,
mas que essas estruturas têm como função original e ainda primária a organização
da experiência perceptiva, sendo a administração de categorias linguísticas uma
função adquirida adicional para a qual a evolução apenas incidentalmente as
recrutou174 . Esta hipótese tem a vantagem de não requerer o salto evolutivo que a
tese de Chomsky parece requerer, e há ainda outras vantagens. Mas estes
assuntos não têm que nos preocupar aqui. Vamos supor, para os nossos
propósitos, que esta tese concorrente é verdadeira, e considerar a história que se
segue.
Investigação sobre as estruturas neuronais que sustentam a organização e
processamento de informação perceptiva revelam que elas são capazes de
administrar uma grande variedade de tarefas complexas, algumas das quais
mostrando uma complexidade muito superior à mostrada pela linguagem natural. As
línguas naturais, vem a revelar-se, exploram apenas uma porção muito elementar
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
174
Richard Gregory defende esta posição em ‘The Grammar of Vision’, Listener, LXXXIII, 2133 (Fevereiro
1970) 242-246, reimpresso no seu livro Concepts and Mechanisms of Perception (London, Duckworth, 1975),
pp. 622-629.

! .1.!
da maquinaria disponível, o grosso da qual serve para actividade muito mais
complexas, para alem do âmbito das concepções proposicionais da PSC. O
desenrolar detalhado dessas maquinaria e das capacidades que ela tem torna claro
que uma forma de linguagem bem mais sofisticadas que a linguagem natural
embora decididamente estranha [alien] nas suas estruturas sintácticas e
semânticas, também poderia ser aprendida e utilizada pelos nossos sistemas inatos.
Um tal novo sistema de comunicação, vem rapidamente a ser concluído, poderia
elevar a eficiência da troca de informação entre os cérebros uma ordem de
magnitude, e melhoraria a avaliação epistémica uma dimensão comparável, uma
vez que reflectiria a estrutura subjacente das nossas actividades cognitivas num
detalhe maior do que a língua natural o faz.
Guiado pelo nosso novo entendimento dessas estruturas internas, vimos a construir
um novo sistema de comunicação verbal inteiramente distinto da língua natural, com
uma nova e mais poderosa grmática combinatória sobre novos elementos formando
novas combinações com propriedades exóticas. As cadeias compostas deste
sistema alternativo – chamemos –lhes “ubersatzen” – não só avaliadas como
verdadeiras e falsas, nem as relações entre elas são nem remotamente
semelhantes a relações de acarretamento, etc, que se dão entre frases. Elas
mostram uma organização diferente e manifestam virtudes diferentes também.
Uma vez construída, mostra-se que esta linguagem pode ser aprendida; tem o
poder projectado, e em duas gerações varre o planeta. Toda a gente usa o novo
sistema. As formas sintácticas e categorias semânticas das assim chamadas
‘línguas naturais’ desaparecem completamente. E com elas desaparecem as
atitudes proposicionais da PSC, deslocadas por um sistema mais revelador, no qual,
(evidentemente) atitudes ubsersatzenais’ têm o papel principal. A PSC mais uma
vez foi eliminada.
Note-se que esta segunda história ilustra um tema com variações sem fim. São
possíveis tantas psicologias do senso comum como são possíveis sistemas de
comunicação diferentemente estruturados que lhes sirvam de modelos.
Uma terceira e ainda mais estranha possibilidade pode ser esboçada da forma
seguinte. Nós sabemos que há uma considerável lateralização de função entre os
dois hemisférios cerebrais , e que os dois hemisféricos podem fazer uso da
informação que obtêm um do outro através da grande comissura cerebral – o corpo
caloso – um gigantesco cabo de neurónios que os liga. Pacientes cuja comissura foi

! .1'!
cirurgicamente cortada manifestam uma variedade de de défices comportamentais,
que indicam uma perda de acesso por um hemisférico à informação que este
costumava obter do outro. No entanto, em pessoas com agenese calosal (um
defeito congénito no qual o cabo de conexão simplesmente está ausente) há pouco
ou nenhum défice comportamental, sugerindo que os dois hemisféricos aprenderam
a explorar a informação transportada por outros trajectos menos directos que os
conectam através de regiões sub corticais. Isto sugere que, mesmo no caso normal,
um hemisfério em desenvolvimento aprende a fazer uso da informação que a
comissura cerebral deposita na sua entrada. O que nós temos então, no caso de
um humano normal, são dois sistemas cognitivos fisicamente distintos, (ambos
capazes de funcionamento independente) a responder de uma forma sistemática e
aprendida a informação trocada. O que é especialmente interessante neste caso é a
pura quantidade de informação trocada. O cabo da comissura consiste em '200
milhões de neurónios175 e mesmo se assumirmos que cada uma desta fibras é
capaz de um ou dois estados por segundo (uma estimativa conservadora), estamos
8
a olhar para um canal cuja capacidade de informação é > 2 x 10 bits binários por
segundo. Compare-se isto com os <500 bits por segundo do inglês falado. Agora, se
dois hemisférios diferentes podem aprender a comunicar numa escala tão
impressionante, porque não poderiam dois cérebros diferentes aprender a fazê-lo
também? Isto requereria uma comissura artificial de algum tipo, mas vamos
imaginar que conseguimos criar um bom transdutor para implante em alguma zona
do cérebro que a investigação mostre ser apropriada, um transdutor que converta
uma sinfonia de actividade neuronal em (digamos) microondas irradiando de uma
antena na testa, e fazendo a função inversa de converter as microondas recebidas
de volta em activação neuronal. Conectá-lo não é necessariamente um problema
inultrapassável. Simplesmente fazemos os processos normais de arborizações
dendríticas a crescer as sua miríade de conexões com a microsuperfície activa do
transdutor.
Uma vez assim aberto o canal entre duas ou mais pessoas, elas podem aprender
(aprender) a trocar informação e a coordenar o seu comportamento com a mesma
intimidade e virtuosismo manifestados pelos nossos dois hemisférios cerebrais.
Pense-se no que isto faria por equipas de hóquei, companhias de ballet e equipas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
175
M. S. Gazzaniga e J. E. LeDoux, The Integrated Mind (New York, Plenum Press, 1975).

! .1/!
de investigação! Se a população inteira estivesse assim conectada, a língua falada
poderia bem desaparecer completamente, vítima de um princípio ‘porque rastejar
quando se pode voar?’ As bibliotecas ficariam cheias não de livros mas de longas
gravações de actividade neuronal exemplar. Estas constituem uma herança cultural,
um Terceiro Mundo em evolução, para usar a expressão de Karl Popper. Mas não
consistem em frases ou argumentos.
Como é que tais pessoas compreenderão e conceberão outros indivíduos? Só
posso responder a esta questão dizendo ‘Aproximadamente da mesma maneira que
o teu hemisfério direito ‘concebe’ e ‘compreende’ o teu hemisfério direito –
intimamente e eficientemente mas não proposicionalmente’.
Estas especulações, espero, evocarão o sentido necessário de possibilidades
inexploradas, e de qualquer forma terminarei com elas por aqui mesmo. A sua
função é fazer algumas incursões pela aura de inconcebibilidade que usualmente
rodeia a ideia de que poderíamos rejeitar a PSC. A tensão conceptual que se sente
encontra até expressão num argumento para mostrar que o materialismo eliminativo
é incoerente, uma vez que nega as próprias condições pressupostas pelo seu ser
significativo. Terminarei com uma discussão deste lance muito popular.
Tal como me chegou, esta reductio avança salientando que o materialismo
eliminativo é apenas uma cadeira sem significado de marcas ou sons, a não ser que
essa cadeira seja a expressão de uma certa crença, e uma certa intenção de
comunicar, e um conhecimento da gramática da linguagem, e por aí em diante. Mas
se a afirmação do materialismo eliminativo é verdadeira, não existem tais estados
para exprimir. A afirmação em causa seria então uma cadeia de marcas ou sons
sem significado. Seria portanto não verdadeira. Portanto a afirmação não é
verdadeira. Q.E.D.
A dificuldade de qualquer reductio não formal é que a conclusão contra a suposição
inicial é sempre não melhor do que as suposições materiais evocadas para alcançar
a conclusão incoerente. Neste caso as suposições adicionais envolvem uma certa
teoria do significado, uma teoria do significado que pressupõe a integridade da PSC.
Mas formalmente falando, também se pode inferir, do resultado incoerente, que esta
teoria do significado é o que tem de ser rejeitado. Dada a critica independente da
PSC vista atrás, esta pareceria ser a opção preferida. Mas em qualquer caso, não
se pode simplesmente assumir essa particular teoria do significado sem petição de
princípio quanto ao assunto em causa, nomeadamente, a integridade da PSC.

! .13!
A natureza de petição de princípio deste lance é ilustrada da forma mais gráfica pelo
seguinte análogo, que devo a Patrícia Churchland176. A questão aqui, colocada no
século dezassete, é saber se existe uma substância que seja espírito vital. Nesse
tempo, esta substância era tomada, sem significativa consciência das alternativas,
como sendo aquilo que distinguia o animado do inanimado. Dado o monopólio de
que tal concepção gozava, dado o grau no qual estava integrada com muitas outras
das nossas concepções, e dada a magnitude das revisões que qualquer alternativa
séria requereria, a refutação seguinte de qualquer pretensão anti-vitalista teria sido
considerada instantaneamente plausível.

O anti-vitalista afirma que não existe coisa tal que seja espírito vital. Mas esta
pretensão é auto-refutante. O falante só pode esperar ser tomado a sério apenas se
a sua pretensão não puder ser tomada a sério. Pois se a pretensão é verdadeira,
então o falante não tem espírito vital e deve estar morto. Mas se ele está morto,
então a sua pretensão é uma cadeira de ruídos sem significado, desprovida de
razão e verdade.

Que este argumento incorre em petição de princípio não precisa, penso, de mais
elaboração. Àqueles que se deixam impressionar pelo argumento anterior,
recomendo o paralelo para exame.
A tese do presente artigo pode ser resumida da seguinte maneira: as atitudes
proposicionais da psicologia de senso comum não constituem uma barreira
inultrapassável à onda de avanço da neurociência. Pelo contrário, o justificado
afastamento da psicologia de senso comum é não apenas perfeitamente possível
como representa uma dos mais intrigantes afastamentos teóricos que podemos
neste momento imaginar.

Paul M Churchland
University of Manitoba

(ALGUMAS NOTAS EM FALTA – em revisão)

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