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Resenha 9, capítulos 7 e 8 de Os Problemas da Filosofia de Bertrand Russel

João Victor Ferreira de Almeida

1. Os princípios gerais
No capítulo 6 Russel concluiu que o princípio de indução, embora fundamental para fazer
inferências com dados que conhecemos empiricamente, não pode, ele mesmo, ser justificado
empiricamente. O mesmo vale para outros princípios, como as leis da lógica. Por exemplo:

P1: se o sal for misturado à água, então ele dissolve.

P2: o sal foi misturado à água

∴ o sal dissolveu

A pergunta principal deste capítulo é como podemos conhecer esses princípios gerais. A
pergunta é de suma importância para a justificação do nosso conhecimento, porque esses
princípios são tão importantes quantos os dados dos sentidos. Se as inferências que fazemos a
respeito de dados dos sentidos não forem corretas, então não temos justificativa para crermos
em nada além do que temos familiaridade, o que é muito pouco.

Nosso conhecimento dos princípio gerais deriva de conhecermos aplicações particulares


do princípio e percebermos que as particularidades dos casos em que se aplica são irrelevantes
para a forma do princípio. No exemplo acima, as particularidades da solubilidade do sal em água
não têm relevância para a forma do princípio que ele instancia. Podemos verificar a mesma
forma em outra instância que não tem nada em comum com o exemplo acima, exceto o fato de
também instanciar a forma:

P1: se Lula é o atual presidente do Brasil, então o presidente do Brasil é presidente do Brasil é
pernambucano.

P2: Lula é o atual presidente do Brasil.

∴ o atual presidente do Brasil é pernambucano.

Não por acaso, temos familiaridade com isso quando falamos de matemática: 2 patinhos mais 2
patinhos são 4 patinhos, 2 dias mais 2 dias são 4 dias. Aprendemos cedo que o que sabemos
sobre as particularidades de patos e dias não têm relevância para a aritmética, e a partir disso,
é que podemos fazer generalizações aritméticas, que valem para qualquer caso, e que podem
abstrair as particularidades da aplicação. Eis a matemática pura! O mesmo ocorre no caso de
leis da lógica, como o modus ponens. Do fato de que destes casos particulares se pode fazer
abstração é que podemos falar somente da forma:

P1: Se P, então Q

P2: P

∴Q

O modus ponens, que também pode ser explicado como a afirmação de que “o que quer que
siga logicamente de uma proposição verdadeira, é verdadeiro”, está implícito em qualquer
demonstração que façamos. Isso porque o princípio de qualquer demonstração é derivar
logicamente de premissas verdadeiras, conclusões verdadeiras. O princípio, claro, parecerá ao
homem comum simplesmente auto evidente, e, talvez, desinteressante demais para ser notado.
Para o filósofo, entretanto, o princípio, além de uma lei da lógica, é interessante por ser um
exemplo de conhecimento indubitável que não é um dado dos sentidos.

Há muitas outras leis da lógica, igualmente auto evidentes. A tradição, segundo Russel,
um tanto arbitrariamente, selecionou três destes princípios como “as leis do pensamento”:

1. Identidade, “tudo o que é, é”. Ou, (x) (Px -> Px)

2. Não contradição, nada pode, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, ser e não ser. Ou, (x)
¬ (Px & ¬Px)

3. Terceiro excluído, tudo é ou não é. Ou, (x) (Px v ¬Px)

A arbitrariedade de tais princípio se deve ao fato de que há muitos outros princípio igualmente
evidentes. E a denominação “leis do pensamento” é enganosa, pois o que importa aqui não é
descrição de como de fato pensamos, mas que ao pensarmos assim pensamos verdadeiramente.
Aqui fica evidente a rejeição russeliana do psicologismo, a exemplo de Frege. As inferências
indutivas são incluídas por Russel dentro do âmbito da lógica, mesmo que elas não permitam a
certeza dos raciocínios dedutivos. Isso é interessante por permitir uma lógica indutiva.

2. Racionalismo vs. Empirismo

Por empiristas, Russel entende aqueles que, como Hume, Berkeley e Locke, tudo o que
conhecemos, conhecemos por meio da experiência; enquanto os racionalistas, são aqueles que
como Leibiniz e Descartes, creem que há princípios ou ideias que são inatas, e, portanto, não são
conhecidos por meio da experiência. Segundo Russel, em seu tempo, se podia decidir, com
alguma segurança, a polêmica em favor dos racionalistas. Pelo menos em seu ponto principal.
Isso porque os princípios lógicos, pressupostos em qualquer prova, podiam ser justificados
independentemente da experiência, uma vez que qualquer prova os pressupõe.

Embora quanto a justificação o racionalista tivesse razão, os empiristas tinham razão


quanto à origem do conhecimento. Russel não pensa que as leis da lógica sejam conhecidas
inatamente, mas demandam experiência para serem conhecidos. A razão para isso foi dada na
seção anterior: conhecemos uma lei da lógica porque nos deparamos com vários casos de
aplicação de uma regra, e disso, desconsiderando o que há de particular nos casos, chegamos à
regra. Por isso a concordância de Russel com os racionalistas vai até o a priori, mas isso não exige
um conhecimento inato. Outro ponto de concordância com os empiristas é que questões de
existência não podem ser decididas independentemente da experiência. O que existe pode ser
conhecido diretamente por experiência (no caso dos sense data, por exemplo) ou inferido a
partir dela. O conhecimento a priori por si só não nos diz nada sobre o que existe, só nos diz
sobre conexões entre dados da experiência reais, ou faz afirmações existenciais hipotéticas.

Russel considera o mais importante dos conhecimentos a priori, o ético. Não somente
aquele que nos diz o que é útil para um fim, mas aquele que determina o que é intrinsecamente
bom, sem o qual os juízos hipotéticos de utilidade não teriam sentido. Uma afirmação como a
de que o prazer é melhor do que a dor, segundo Russel, deve ser, ao menos em parte, a priori.
Quanto à origem, certamente deve ser a posteriori. Sequer saberíamos o que são prazer e dor
sem experiência. Mas não temos qualquer provar de que o prazer é mais desejável que a dor via
experiência, é a razão que nos o que é desejável, bem como aquilo que é intrinsecamente
necessário. Isso acontece porque a ética trata daquilo que deve ser, que jamais, conforme a
falácia naturalista, pode ser inferido daquilo é. Os sentido nos informam sobre o que é, mas é à
razão que precisamos recorrer para decidir sobre o que deve ser.
Ao contrário de empiristas como Mill, a matemática pura é a priori pra Russel. Quanto a
origem, os empiristas tinham razão. Não conhecemos nada sobre matemática
independentemente da exposição de casos particulares. Mas conhecidas as regras, podemos
aplicar os raciocínios sem a necessidade de recorrer à experiência. Parte dos empiristas
poderiam, na verdade, concordar com a priori de Russel, desde de que o raciocínio a priori fosse
analítico, no sentido kantiano do termo: isto é, fosse puramente tautológico, e não nos
informasse nada. O que parece realmente impedir que Russel seja um empirista aqui, é que seu
conhecimento a priori é sintético, como o kantiano. Uma proposição de matemática aplicada,
como se tenho 2 limões, e ganho mais 2 limões, fico com 4 limões, é sintética, o raciocínio
verdadeiramente me informa sobre a quantidade de limões que possuo. Para sustentar sua
posição de que os juízos da aritmética são informativos, sintéticos no sentido kantiano, Russel
não fez recurso à intuição a priori kantiana.

Mas não é toda a inferência dedutiva que é informativa. O silogismo clássico, por
exemplo, não é informativo:

P1: Todos os homens são mortais.

P2: Sócrates é homem.

∴ Sócrates é mortal.

Isso porque a premissa maior, de que todos os homens são mortais, depende de uma inferência
indutiva, que somente é capaz de dar probabilidade. A afirmação de que Sócrates é mortal é
bastante menos dubitável do que a afirmação de que todos os homens são mortais. Por isso o
raciocínio é não informativo.

3. Kant

O que parece misterioso no conhecimento a priori é que podemos ter conhecimento de coisas
particulares com as quais jamais entramos em contato. Não sabemos nada à respeito de como
será a cidade de Belo Horizonte daqui a 100 anos, mas sabemos que daqui a 100 anos 2
habitantes de Belo Horizonte mais 2 habitantes de Belo Horizonte serão 4 habitantes de Belo
Horizonte. A interpretação russeliana de como Kant resolve a questão será o objeto desta seção.

Para Kant, toda a nossa experiência é constituída de dois elementos: um pertencente ao


próprio objeto, outro à nossa própria cognição. Quanto a isso, Russel concorda. A discordância
começa quanto a discriminação dos papéis que sujeito e objeto desempenham. Segundo Russel,
cor, solidez, e etc, são dados pelos próprios objeto; enquanto o sujeito fornece a organização
espaço-temporal para o objeto. O principal argumento kantiano é que parecemos ter
conhecimento a priori do espaço, da cuasalidade, e de outras categorias do entendimento, mas
não do próprio material da experiência. Por exemplo, somo capazes de imaginar um espaço vazio
de objetos, enquanto não somos capazes de imaginar um objeto não especializado. Isso o fez
concluir que o espaço é uma condição de possibilidade para experiência.

Disso se segue a distinção kantiana entre coisa em si e fenômeno. O fenômeno é o objeto


tal como nos aparece, e é conhecido por meio daquilo que projetamos nele. A coisa em si, o
objeto em si mesmo, independente de nossa cognição fica para nós completamente
desconhecido. O que sabemos a priori de respeito, portanto, somente as condições de
possibilidade de nossa experiência, e não pode jamais ser aplicável para além dela. Quando
dizemos, por exemplo, que tudo o que passou a existir deve ter uma causa, essa afirmação não
diz à própria coisa, mas aos objetos de experiência. E podemos conhecer isso a priori porque é
uma condição necessária para a experiência, inaplicável para além da própria experiência. A
objeção russeliana consiste em apontar para o fato de que a abordagem kantiana não é
suficiente para explicar aquilo que precisaria ser explicado. Quando afirmamos que 2 + 2 = 4 não
parece que estamos falando somente de objetos de experiência. Não queremos dizer que isso é
verdadeiro somente para nós, parece que queremos dizer que isso é verdadeiro
independentemente de qualquer um poder pensar nisso. Além disso, a afirmação presume a
uniformidade da natureza humana. Ele precisa que a natureza sempre nos leve a afirmação a
prior, mas a uniformidade da natureza parece mais duvidosa que as próprias proposições que
consideramos a priori. Kant poderia argumentar que o tempo mesmo é uma condição a priori,
só aplicável a priori, e que nossos verdadeiros eus, e nossa verdadeira natureza é atemporal. O
contra-argumento de Russel é que nossas distinções fenomemais deveriam remeter de alguma
forma a características da coisa em si. Mesmo que meu verdadeiro eu não se modificasse,
deveria haver alguma coisa na coisa em si que permitisse que eu conheça a mudança no meu eu
empírico. Esse contra-argumento russeliano me parece um pouco confuso. Mas certamente
parecem menos duvidosas as afirmações da lógica e da matemática do que a afirmação de que
há uma natureza humana transcendental.

Para além das doutrinas particulares kantianas, é muito comum considerar o a priori
como dizendo respeito somente ao que pensamos. Exatamente isso o que está por trás do
psicologismo. Por exemplo, a lei da não contradição, embora certamente descreva em algum
sentido, o modo como pensamos, na medida em que rejeitamos contradições, e não
concebemos como pode uma coisa ao mesmo tempo ser e não ser, parece dizer mais que isso:
parece dizer que não pode ser o caso que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo e sob o
mesmo aspecto. O argumento russeliano é que nosso conhecimento de que não podemos
conceber contradições deriva do fato de que sabemos que não pode ser o caso que algo seja e
não seja ao mesmo tempo sob o mesmo, e não o oposto. Nossa crença de que a mente está
constituída de tal modo que não pode conceber contradições é derivada de reflexão psicológica,
que presume a lei da não contradição. O que sabemos sobre nossa psicologia deriva sobre o que
sabemos sobre o que pode ser, não o contrário. Do mesmo modo, como já adiantado, quando
fazemos uma afirmação aritmética, o que fazemos referência é a depterminados fatos sobre as
quantidades relacionadas, não à constituição de nossa mente.

Russel, mais uma vez seguindo Frege, pensa que o que sabemos a priori não pode ser
nem de natureza mental nem física. Ao dizer que estou em meu quarto, faço referência a uma
relação, “em”. Esta relação não existe do mesmo como meu quarto e eu mesmo. Por exemplo,
eu e meu quarto podemos ser conhecidos empiricamente, a relação “em” não, eu e meu quarto
somos particulares, irrepetíveis, “em” não. Mas ao mesmo tempo me refiro a ela, e ela é
indispensável à enunciação de fatos como o de que eu estou em meu quarto. Contra a afirmação
russeliana talvez seja conveniente considerar “em” como superveniente à estrutura física do
mundo, ao invés de afirmar que elas pertencem a um misterioso terceiro reino.

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