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João Victor Ferreira de Almeida 2021011709

A Identidade Pessoal em Locke


Parafraseando bem-humoradamente a famosa frase de Whitehead
sobre Platão, Schoemaker afirma que “a história do tema da identidade pessoal
tem sido uma série de notas de rodapé para Locke” (2008). Embora talvez ele
tenha sido um pouco hiperbólico, a importância que Schoemaker atribui ao
trabalho de Locke é confirmado por muitos outros, como Ayers:

apesar de toda a transformação de nossos motivos, na verdade, de nossa teoria


filosófica geral... o debate sobre a identidade pessoal mal avançou desde as
inovações dos séculos XVII e XVIII. 

Essa importância atribuída por muitos filósofos, me motivou a escrever


sobre o capítulo 27 do livro II para a segunda edição do Ensaio Sobre o
Entendimento Humano, “Da Identidade e da diversidade”. Este artigo será
constituído de três seções: um pequeno apanhado dos problemas envolvendo
identidade pessoal identificados pela literatura analítica; uma seção sobre o
tratamento da identidade e da diversidade para perdurantes em geral no
Ensaio; e, por fim, será discutida a identidade pessoal no início do capítulo
citado. A parte final do capítulo, em que Locke desenvolve pessoa como
conceito forense, é mais um desenvolvimento da consequência prática de sua
metafísica sobre a identidade pessoal do que propriamente metafísica;
portanto, de pouco interesse para meu propósito, e será ignorada. A segunda e
a primeira seções têm a finalidade de contextualizar teoricamente o tratamento
lockiano dado ao tema da identidade pessoal.

1. Os problemas envolvendo identidade pessoal

De acordo com a entrada da Stanford Encyclopedia de autoria de E.


Olson para identidade pessoal, não há um único problema envolvendo esta
noção, mas vários. As questões elencadas por ele como “mais conhecidos” são
as seguintes:
Caracterização: a questão sobre quais propriedades individuam uma pessoa,
que tornam ela mesma e não outra. O que faz de mim eu mesmo e não o
Papa? Minha história de vida, traços de personalidade, temperamento, sistema
de crenças, patrimônio genético, um conjunto deles...?
Personalidade: a questão sobre quais propriedades definem ser uma pessoa
em oposição à não-pessoa. O que faz com que eu seja uma pessoa e meu cão
não (se é que, de fato, ele não é)? Um candidato óbvio seria a capacidade de
autoconsciência. A mim parece que essa questão é particularmente
interessante para casos limítrofes, principalmente de mamíferos superiores
não-humanos (polvos e algumas aves, como corvos, parecem ser uma
exceção) e crianças muito novas, em que não é claro se estamos ou não
tratando de pessoas. Se há algo no mundo que seja uma pessoa, parece
indubitável que devemos considerar um humano adulto em condições
psicológicas “normais” (não discutirei o que dever tido como normal aqui por
falta de espaço, mas é claro que isso mesmo é um problema) um exemplo,
também parece claro que não devemos considerar rochas, cactos e oceanos,
pessoas; mas para chimpanzés, golfinhos, elefantes... não parece claro se
estamos ou não tratando de pessoas. Para resolver a questão não basta que
tenhamos evidências empíricas a respeito das faculdades cognitivas desses
animais (ou qualquer outro candidato a ser uma pessoa), é necessário
determinar os critérios que tornam algo uma pessoa, que é precisamente a
questão metafísica da “personalidade”.
População: esse é o problema de saber quantas são as pessoas existentes. A
resposta pode parecer uma questão para a demografia, não para a filosofia.
Mas isso porque nossa prática linguística ordinária é chamar “pessoa”
simplesmente um organismo humano vivo depois do nascimento. Mas se o que
é uma pessoa não é tão óbvio quanto sugeri acima, a questão de saber
quantas são as pessoas torna-se menos óbvia por extensão. Eu poderia citar
os mesmos exemplos que dei para o problema anterior, mas Olson cita o caso
de cérebros humanos vivos cujos cérebros foram separados (Nagel, 1970),
pessoas com personalidade múltipla, e mesmo a posição de que organismos
em situação fisiológica e psicologicamente normais, que tem duas pessoas
coexistindo num único cérebro. A mim parece que o “problema” da população
pode ser entendido como mera extensão trivial do problema da personalidade.
O número de pessoas parece seguir necessariamente do critério que torna algo
uma pessoa. Portanto, é pelo menos duvidoso se este é realmente um
problema independente que merece ser elencado.
Persistência: Muitos de nós temos a intuição de que, embora mudemos ao
longo do tempo, conservamos nossas identidades. Intuímos que alguém que
comete uma infração deve ser punido, embora o infrator tenha mudado do
tempo da infração ao tempo da punição. O que nos faz conservar identidade ao
longo do tempo? Embora a questão possa ser vista num contexto metafísico
geral da persistência de objetos, de modo que a questão sobre a identidade
pessoal deve ser entendida como uma instância da polêmica perdurantismo vs
endurantismo vs exdurantismo, parece insuficiente alegar que uma pessoa tem
partes temporais que juntas a compõem, como as partes de sua anatomia
compõem a sua espacialidade, ou que ela toda persiste ao longo do tempo
sem que haja partes temporais. O que exatamente na pessoa tem partes
temporais ou persiste inteira? Se é que é possível reduzir a identidade pessoal
a algo que persiste. Mais radicalmente, há algo que persiste numa pessoa ou
nossa noção de persistência é mera ilusão?
Evidência: que tipo de evidência usamos para dizer que alguém continua o
mesmo ou é diferente de outro? Olson explica que essa questão deve ser
distinguida da questão da persistência. Ele exemplifica isso dizendo que as
digitais de alguém podem ser um critério adequado para identificar alguém,
mas certamente não são critérios necessários para a caracterização. Alguém
que perdeu os dedos certamente não deixa de ser ele mesmo, e distinto de
outros.
Que tipo de coisa somos?
Citando Olson, algumas das principais respostas à essa questão são:

 Somos organismos biológicos (“animalismo”: Snowdon 1990, 2014, van Inwagen 1990,
Olson 1997, 2003a).

 Somos coisas materiais “constituídas por” organismos: uma pessoa pode ser feita da
mesma matéria que um determinado animal, mas são coisas diferentes porque o que é
preciso para que persistam é diferente (Baker 2000, Johnston 2007, Shoemaker 2011).

 Somos partes temporais dos animais: cada um de nós está para um organismo assim
como sua infância está para sua vida como um todo (Lewis 1976).

 Somos partes espaciais de animais: cérebros talvez (Campbell e McMahan 2010, Parfit
2012), ou partes temporais de cérebros (Hudson 2001, 2007).

 Somos substâncias imateriais sem partes – almas – como pensavam Platão, Descartes
e Leibniz (ver também Unger 2006: cap. 7), ou coisas compostas de uma alma
imaterial e um corpo material (Swinburne 1984: 21).

 Somos coleções de estados ou eventos mentais: “feixes de percepções”, como disse


Hume (1739 [1978: 252]; ver também Quinton 1962, Campbell 2006).

 Não há nada que nós somos: nós realmente não existimos (Russell 1985: 50,
Wittgenstein 1922: 5.631, Unger 1979, Sider 2013).

Embora seja conveniente que os problemas aqui listados não sejam


confundidos, eles parecem ter uma conexão tal que parece impossível não
entrelaça-los. O problema que parece que é mais evidentemente lockiano é
o da persistência da identidade pessoal, mas as questões sobre
caracterização, “que tipo de coisa nós somos?”, e personalidade também
aparecem no Ensaio. Aqui não haverá privilégio ao problema da
persistência, os problemas serão abordados conforme aparecem no texto,
sem preocupação de delimitação rígida.

2. A identidade e diversidade em Locke

O capítulo 27 do Ensaio Acerca do Entendimento Humano não é


exclusivamente sobre identidade pessoal, mas sobre a identidade e diferença
para vários tipos que perduram no tempo. Este contexto geralmente é
negligenciado na apresentação da teoria lockiana sobre identidade pessoal, por
isso achei conveniente tratar do capítulo desde o princípio.
A identidade e diversidade que interessam a Locke são caracterizadas
por ele como se segue:

Outra ocasião em que a mente frequentemente realiza comparações provém do próprio ser das
coisas, quando, considerando algo como existente num determinado tempo e lugar, nós o
comparamos a ele mesmo existindo noutro tempo e, a partir disso, formamos as ideias de
identidade e diversidade. Quando vemos algo existir num certo lugar num certo instante do
tempo, estamos seguros (seja ele o que for) de que é a mesma coisa e não outra que, ao
mesmo tempo, existe noutro lugar, por mais parecida e indistinguível que seja em todos os
outros pontos. Nisso consiste a identidade, quando as ideias às quais ela é atribuída não
variam em nada do que foram naquele momento em que consideramos sua existência anterior
e ao qual comparamos a presente, pois, nunca achando nem concebendo como possível que
duas coisas da mesma espécie existam no mesmo lugar ao mesmo tempo, corretamente
concluímos que o que quer que exista num certo lugar num certo tempo exclui todas da mesma
espécie e aí se encontra, ela mesma [it self], sozinha. Portanto, quando perguntamos se
alguma coisa é ou não a mesma, isso sempre se refere a algo que existiu num determinado
tempo num determinado lugar, acerca do qual era certo que, naquele instante, era o mesmo
que ele mesmo [the same with it self] e não outro. Disso se segue que uma coisa não pode ter
dois inícios de existência, nem duas coisas um único início, sendo impossível para duas coisas
da mesma espécie ser ou existir no mesmo instante no mesmíssimo lugar; ou uma e a mesma
coisa, em diferentes lugares. Portanto, aquela que teve um início é a mesma coisa e a que teve
um início diferente daquela no tempo e lugar não é a mesma, mas diversa. O que causou a
dificuldade acerca dessa relação foi o pouco cuidado e a pouca atenção usados para se ter
noções precisas das coisas às quais ela é atribuída.

Então temos que:


1) A identidade que interessa a Locke não é a identidade de tipo
lógico, intensional, semântica, mas o tipo de identidade que
intuímos que seres que perduram no tempo tem.

2) A identidade “provém do próprio ser das coisas”, não trata-se de


mera ficção útil; o que podemos entender como uma concepção
realista para identidade de seres que perduram.

3) A identidade que interessa a Locke é claramente o tipo que hoje


chamaríamos de identidade numérica. Ainda que A seja
indistinguível de B em todas as outras propriedades (excluídos
posição inicial no espaço-tempo como propriedade), a existência
em dois lugares diferentes num mesmo momento é suficiente
para que sejam diferentes e não o mesmo, são 2 e não 1.

4) Disso segue que A e B devem ter inícios diferentes, e A tem


somente um início e não dois. Há uma correspondência biunívoca
entre inícios e entidades.

5) A identidade se conserva ao longo do tempo, disso segue-se que


a mudança não é suficiente para fazer com que o mutante não
seja o mesmo. O homem de Heráclito que se banha no rio em t1
continua 1, o mesmo, em t2, ainda que tenha ganhado ou perdido
propriedades.

Tais princípios parecem aplicar-se a duas das três substâncias


cartesianas, que, Locke afirma, são as três que podem ser pensadas. Para
Deus, que é eterno, imutável e omnipresente, a identidade não é confundível
de modo algum. Não parece ser necessário aplicar a ele esse tipo de critério.
Para espíritos finitos e corpos, tendo para cada um tempo e lugar de início, os
critérios acima aplicam-se, embora haja especificidades que precisam ser
desenvolvidas.
Há, segundo ele, critérios da identidade diferentes para a matéria
inorgânica e para a vida. Mas embora interessantes em si mesmos, esta
diferença não é interessante para meu propósito aqui. O critério que ele
estabelece para seres orgânicos é o mesmo que estabelece para humanos.
Embora humanos sejam tradicionalmente vistos como compostos de matéria e
espírito, Locke recusa-se a ver a identidade humana no espírito:

Quem localizar a identidade do homem em qualquer outra coisa senão, como a dos outros
animais, num corpo adequadamente organizado tomado num certo instante e, a partir desse
instante, mantido numa organização vital em várias partículas de matéria sucessivamente
cambiantes unidas a ele, encontrará dificuldade em fazer de um embrião e um idoso, um louco
e um sensato, o mesmo homem por meio de uma suposição que não torne possível Set,
Ismael, Sócrates, Pilatos, S. Agostinho e César Bórgia serem o mesmo homem. Se somente a
identidade da alma constitui o mesmo homem e não há nada na natureza da matéria em razão
da qual o mesmo espírito individual não possa estar unido a diferentes corpos, será possível
que aqueles homens, vivendo em épocas distantes e com diferentes temperamentos, possam
ter sido o mesmo homem. Essa maneira de falar deve provir de um uso muito estranho da
palavra homem, aplicada a uma ideia a partir da qual corpo e formato estão excluídos. Essa
maneira de falar concordaria ainda menos com as noções daqueles filósofos que admitem a
transmigração e são da opinião de que as almas dos homens podem, por causa de seus
malfeitos, serem postas em corpos de animais, como habitações adequadas, detentoras de
órgãos apropriados à satisfação de suas inclinações bestiais. Contudo, ainda assim penso que
ninguém, mesmo que estivesse seguro de que a alma de Heliogábalo estivesse num de seus
porcos, diria que aquele porco era um homem ou Heliogábalo.

À pergunta que alguns contemporâneos interessados em filosofia da


modalidade fazem, “Sócrates poderia ser um ovo frito?”, Locke parece que
responderia negativamente, mesmo que, em virtude de malfeito perpetrado por
Sócrates, sua alma transmigrasse para um ovo frito. Para a identidade de
humanos, não há dúvidas, Locke está em pleno acordo com animalistas,
aqueles que falam em continuidade física ao invés de psicológica. Deste modo,
não pode ser de modo algum negligenciada a distinção lockiana entre pessoa e
humano.
Locke justifica esta distinção por aquilo que chama de “identidade
adequada à ideia”. Para julgarmos corretamente a questão da identidade,
devemos analisar que ideia a palavra que a ela se aplica representa. Uma coisa é ser a mesma
substância, outra o mesmo homem e uma terceira a mesma pessoa, se pessoa, homem e
substância são três nomes representando três diferentes ideias; pois, tal como é a ideia
pertencente ao nome, assim deve ser a identidade.

A diferença que Locke estabelece entre humano e pessoa apela à


intuição de que um organismo é de algum modo diferente de uma pessoa, e
não é necessariamente inconsistente em relação a negação do dualismo de
substância, ainda que ele mesmo estivesse envolvido num contexto cartesiano.
Mas ela pode gerar confusão, se interpretada à luz das noções
fregianas de sentido e referência, que são muito pertinentes à esse tipo de
discussão sobre identidade não tautológica que está em jogo aqui. A ideia
nesse sentido lockiano parece, prima facie, conformar-se melhor à noção
fregiana de sentido, considerando que elas podem referir-se a um mesmo
referente; ao apontar para Locke, posso estar falando do organismo Locke ou
da pessoa Locke, sendo que isso facilmente pode ser interpretado como
modos de apresentação de uma única referência, Locke. Ademais, ela parece
exercer o mesmo tipo de função que o “conceito” na teoria fregiana dos
números. Para Frege, um número não pode ser uma propriedade de um objeto
físico indiferenciado. Se aponto para a Lua, e pergunto, “qual o número
daquilo?”, minha pergunta não tem sentido, porque não está determinado a quê
exatamente este número se aplica; ao número de átomos, de moléculas,
crateras, círculos celestes brilhantes visíveis...? Mas se pergunto sobre o
número de satélites naturais da Terra, agora sim, temos uma pergunta com
sentido, que pode ser corretamente respondida, 1. Por função pragmática da
linguagem, geralmente entendemos a que se adequa o número a que a
pergunta se refere, mas isso porque temos um conceito em mente
implicitamente. Locke parece estar fazendo algo similar quanto a identidade de
perdurantes: sua identidade demanda uma diferenciação conceitual. No
espírito de Frege, se perguntamos se um referente r, que seja pessoa e
humana, em t1 continua a mesma em t2, esta pergunta é ambígua até que
determinemos o conceito a que a identidade deve aplicar-se, ao de humano ou
de pessoa. Então, a concepção lockiana de ideia neste contexto parece mais
adequada ao de sentido fregiana, prima facie.
Mas os critérios de identidade que Locke expõe no início do capítulo
são estritamente extensionais, não é o tipo que é definido por satisfazer um
certo conjunto de propriedades, como a identidade dos indiscerníveis leibiziana
e o critério fregiano para números. Ainda que indiscerníveis em todas as suas
propriedades, os “indiscerníveis” não são o mesmo se tem inícios distintos e
ocupam distintas posições no espaço ao mesmo tempo. Talvez, se conhecesse
a filosofia fregiana e pressionado, Locke diria que pessoa e humano são
referências distintas, dado que, embora sejam, prima facie, indicerníveis quanto
ao espaço que ocupam num momento em que a pessoa existe, e sua
referência seja fixada por um único termo (o nome próprio Locke, por exemplo);
são discerníveis quanto ao início, já que o humano tem início na concepção,
enquanto a pessoa tem início muito tempo depois, quando o organismo
começa a gerar a consciência que caracteriza a pessoa. O que sua “identidade
adequada à ideia” estaria fazendo, na verdade, é discernir referências a tipos
distintos (no espírito de Kripke, talvez), que podem ser confundidas por
ocuparem o mesmo espaço, embora sejam distintas por seu incínio. É uma
lástima que o próprio Locke não possa esclarecer isso, mas parece que o seu
raciocínio funciona melhor se considerarmos suas ideias fixando referências
distintas, não sentidos diferentes para um mesmo referente.
De qualquer modo, a distinção lockiana entre humano e pessoa continua
interessante até hoje para o problema da identidade pessoal. Como citado no
tópico “O que somos nós?”, animalistas, para quem pessoas são organismos
animais, devem esforçar-se para mostrar a invalidade da distinção lockiana;
para eles as pessoas devem ser simplesmente o que Locke entende por
“humanos”. Ou, no máximo, que a diferença é do tipo estrela da manhã e
estrela da tarde. Aqueles que estão interessados em critérios de continuidade
psicológica de modo exclusivo para a persistência por exemplo, devem
defender a distinção lockiana na versão que distingue referências.
3. O problema da identidade pessoal em Locke

a) Definição psicológica de identidade pessoal, intelectualismo


e anti-intelectualismo

Locke entende por pessoa, principalmente, um ser autoconsciente:


Pessoa, penso eu, é um ser pensante inteligente que tem razão e reflexão e pode
considerar a si mesmo como si mesmo, a mesma coisa pensante em diferentes tempos
e lugares, o que é feito somente pela consciência, que é inseparável do pensamento e,
como me parece, lhe é essencial: é impossível para qualquer um perceber sem
perceber que percebe. Quando vemos, ouvimos, cheiramos, degustamos, tocamos,
meditamos ou desejamos alguma coisa, sabemos que fazemos isso. É sempre assim
nas nossas sensações e percepções presentes e, por isso, cada um é para si mesmo
[to himself] o que chama de eu [self]. Não se considera, neste caso, se o mesmo eu
[self] subsiste na mesma ou em diversas substâncias. Dado que a consciência sempre
acompanha o pensamento e que é ela que faz cada um ser o que chama de eu [self] e,
desse modo, distinguir a si mesmo [himself] de todas as outras coisas pensantes,
apenas nisso consiste a identidade pessoal, isto é, na mesmidade do ser racional. A
identidade de uma pessoa tem um alcance tão grande quanto a consciência puder ser
estendida retrospectivamente a uma ação ou pensamento do passado: trata-se agora
do mesmo eu [self] que era antes e é pelo mesmo eu [self] do presente, que agora
reflete sobre ela, que a ação foi feita.

Sua visão é psicológica como discutimos acima, e o que há em


nossa psicologia que está envolvida em nossa identidade pessoal, é,
sobretudo, de ordem intelectual; por isso convém chamar sua posição de
intelectualista. Esta é uma concepção muito intuitiva do que é ser uma
pessoa, mas não é universalmente aceita. Em Behaviorismo, obra que
tinha, parafraseando o autor, a finalidade de expor a filosofia do
behaviorismo, B.F Skinner, caracteriza pessoa sem apelo à
autoconsciência:
Numa análise comportamental, uma pessoa é um organismo, um membro da espécie
humana que adquiriu um repertório comportamental. Ela continua sendo um organismo
para o anatomista e para o fisiologista, mas é uma pessoa para aqueles que dão
importância ao comportamento. Contingências complexas de reforço criam repertórios
complexos, e, como vimos, diferentes contingências criam diferentes pessoas dentro
de uma mesma pele, das quais as as chamadas personalidades múltiplas são apenas
a manifestação extrema. (...) Uma pessoa não é um agente que se orgine; é um lugar,
um ponto em que múltiplas condições genéticas e ambientais se reúnem num efeito
conjunto. Como tal, ela permanece indiscutivelmente única. Ninguém mais (a mesma
que se tenha gêmeo idêntico) possui sua dotação genética e, sem excessão, ninguém
mais tem sua história pessoal.

Embora comece o trecho afirmando que uma pessoa é um


organismo, o que seria um animalismo, o espírito do texto parece
concordar com a distinção lockiana entre pessoa e humano. Primeiro,
porque há uma distinção entre o organismo, considerado fisiológica e
anatomicamente, e o repertório comportamental adquirido por ele.
Segundo, porque ele admite a possibilidade de múltiplas pessoas
vivendo num mesmo organismo, e que o transtorno de múltipla
personalidade é somente um caso extremo disso, sugerindo que a
personalidade humana normal tem certa fragmentação, permitindo uma
multiplicidade pessoal no interior de um único organismo humano. Disso
segue que não há uma correspondência biunívoca entre o número de
pessoas e o número de organismos humanos, impossibilitando que
sejam numericamente idênticos. Embora o organismo seja condição
necessária, ele não pode ser idêntico à pessoa. Quanto a persistência,
não parece que Skinner tem maiores problemas; prima facie, não há
maiores dificuldades com a afirmação de que repertórios
comportamentais perduram ao longo do tempo, parece ser precisamente
este o sentido em que empregamos a noção de “hábito”.
Mas, embora ele possa endossar uma continuidade psicológica,
falar em repertório comportamental como o que caracteriza uma pessoa,
implica que a autoconsciência não é condição necessária para a
identidade pessoal. Não é necessário que alguém tenha em mente os
hábitos que perduram ao longo do tempo e fazem com que conservem
sua pessoa. A essa visão, no sentido em que é oposta à de Locke,
podemos chamar anti-intelectualista. Skinner, claro, é somente um
exemplo. Um psicanalista poderia afirmar a identidade pessoal via um
inconsciente psicodinâmico, que, aliás, teria a vantagem de ser em
algum sentido atemporal; um cognitivista, poderia falar de um
inconsciente cognitivo... o que importa é que a distinção humano/pessoa
de Locke pode ser sustentada sem apelo à autoconsciência.
Alguém que defenda essa concepção intelectualista do Locke,
poderia admitir a existência de estados mentais que estão fora da linha
da consciência, mas objetar que estes não são o que constitui uma
pessoa. Prima facie, pode parecer tão impróprio dizer que alguém é um
conjunto de hábitos ou estados mentais inconscientes, quanto dizer que
alguém é um conjunto de fatos de sua anatomia. Certamente, um
fisicalista consequente não afirmaria que uma pessoa pode existir sem
hábitos e estados mentais inconscientes em geral, (a não ser que seja
uma eliminativista); mas y ser condição necessária para x, não é
condição suficiente para y ser idêntico a x. Intuitivamente uma pessoa é
diferente de estados mentais inconscientes e hábitos. Parece que
hábitos e estados mentais inconscientes são um bom critério para a
identidade e continuidade de uma mente, mas não é nada claro que uma
mente seja o mesmo que uma pessoa. Na teoria freudiana, por exemplo,
o eu não é o todo da mente, mas somente uma de três estruturas que a
constituem. Infelizmente, não ocorreu à Locke tratar dessa possível
diferença entre identidade mental e pessoal nesses termos (a psicologia
da época era muito diferente, naturalmente).
b) A memória como condição para continuação psicológica,
identidade pessoal e de substância e o problema problema
da descontinuidade da memória em Locke
A condição para a identidade pessoal lockiana implica um recurso
à memória, já que para um autoconsciente, a identidade implica acesso
consciente a si mesmo, e este, para um estágio passado da vida de um
autoconsciente, implica que ele seja capaz de evocar memórias deste
estado. A concepção intelectualista de Locke tem a vantagem de estar
em acordo com nossa noção sobre o que é ser uma pessoa, mas tem a
desvantagem de estar, prima facie, exposta à refutação do Thomas
Reid, da qual a alternativa anti-intelectualista escapa.
Apresentações panorâmicas sobre o tema da persistência da
identidade apresentam a tese lockiana de que a memória é a condição
para a identidade pessoal, e a crítica reidiana, sem dar atenção à
antecipação que o próprio Locke faz do problema da descontinuidade da
memória:
Contudo, o que parece levantar dificuldade é que, sendo a consciência sempre
interrompida pelo esquecimento, não há momento nas nossas vidas em que temos a
sequência inteira de todas as nossas ações passadas perante nossos olhos numa
única visão. Até as melhores memórias perdem de vista uma parte enquanto veem
outra; nós, às vezes, e isso na maior parte de nossas vidas, não refletimos sobre
nossos eus passados [past selves], estando voltados para nossos pensamentos
presentes, e, no sono profundo, não temos pensamento algum ou, ao menos, nenhum
com a consciência que caracteriza nossos pensamentos quando estamos despertos.
Em todos esses casos, digo que, estando nossa consciência interrompida e tendo nós
perdido a visão de nossos eus passados [past selves], dúvidas podem ser levantadas
se somos a mesma coisa pensante, isto é, a mesma substância ou não, o que, por
mais razoável ou não razoável que seja, em nada diz respeito à identidade pessoal. A
questão é o que constitui a mesma pessoa e não se ela é a mesma substância
idêntica, que sempre pensa na mesma pessoa, o que, neste caso, não importa em
nada. Diferentes substâncias, pela mesma consciência (se elas realmente
compartilham-na), estão unidas numa única pessoa, assim como diferentes corpos,
pela mesma vida, estão unidos num único animal, cuja identidade é preservada, na
mudança de substâncias, pela unidade de uma única vida contínua. Sendo a mesma
consciência que faz um homem ser ele mesmo para ele mesmo [be himself to himself],
a identidade pessoal depende somente disso, tanto se ela estiver vinculada somente a
uma substância individual ou puder se manter numa sucessão de várias substâncias.
Um ser inteligente é o mesmo eu pessoal [same personal self] tanto quanto puder
repetir a ideia de qualquer ação passada com a mesma consciência que teve dela
originalmente e com a mesma consciência que tem de qualquer ação presente, pois é
pela consciência que tem de seus pensamentos e ações presentes que ele é um eu
para si mesmo agora [it is self to it self now] e, assim, será o mesmo eu [self] tanto
quanto a mesma consciência puder se estender a ações passadas ou vindouras; e não
seria, pela distância no tempo ou mudança de substância, duas pessoas mais do que
um homem não é dois homens por vestir roupas diferentes hoje e ontem com um sono
longo ou curto no intervalo: a mesma consciência une essas ações distantes na mesma
pessoa, quaisquer que tenham sido as substâncias que contribuíram para produzi-las.

Frequentemente esquecemos, e mesmo quando lembramos,


nossa lembrança é sempre parcial. O que vale para situações, também
vale para estágios temporais de nossas pessoas. Isso tem por
consequência que alguém em t2 pode não se lembrar de um estágio
temporal t1 de sua história de vida. Então como sustentar a identidade
pessoal apesar disso? Aqui é que é importante sua distinção entre
identidade pessoal e identidade quanto a “substância pensante”. A
limitação e descontinuidade da memória constitui um problema para a
afirmação de que somos sempre a mesma “coisa pensante”, “que
sempre pensa na mesma pessoa”, mas não para a identidade pessoal,
sugerindo que uma mesma pessoa pode ser constituída por muitas
“substância pensantes”. As “substâncias pensantes” estão para a
pessoa como os componentes materiais, em perpétua troca, estão para
o organismo, embora a “substâncias pensantes” sejam, diríamos hoje,
partes temporais da pessoa, sem o caráter espacial dos componentes
materiais.
Mas a noção de substância pensante, como aparece aqui, é
confusa. Em primeiro lugar, por causa da inconsistência entre a
definição de pessoa como substância pensante no início da seção, e a
afirmação posterior de que a descontinuidade da memória constitui
problema para a afirmação de que permanecemos a mesma substância
pensante, mas não constitui problema para a afirmação de que somos a
mesma pessoa. Pessoa é descrita como uma coisa pensante
autoconsciente, literalmente ele diz que é “a mesma coisa pensante em
diferentes tempos e lugares”. Assim temos o resultado de que a “a
pessoa é uma substância pensante que perdura”, e a, ao mesmo tempo
“a descontinuidade da memória pode fazer com que a substância
pensante não perdure, mas isso não constitui problema para a
perduração da pessoa”. Uma resposta possível é que se tratou de um
descuido vocabular, e que devemos considerar que uma pessoa não é
uma substância pensante de modo algum, mas constituída de
substâncias pensantes. Mas não é claro como, no espírito, em certo
sentido ainda cartesiano, no qual Locke está trabalhando, uma pessoa
não é uma substância pensante.
Em segundo lugar, não é claro como uma substância pensante
pode ser uma parte temporal. E aqui a ênfase está na substância. Locke
não é claro na passagem citada sobre o que exatamente é “substância
pensante”, e não dá no capítulo sobre a Identidade e Diversidade
nenhuma definição de substância pensante; para extrairmos o conceito
lockiana dessa expressão, é preciso recorrer ao capítulo XXIII, Nossas
Ideias Complexas de Substância .A noção de substância, para a qual
Locke não explicita um sentido incomum no Ensaio, é o de um suporte
para qualidades, que, enquanto tal, existe por si e não por outros, e
sustenta o que não pode existir por si. Locke mostra-se bastante crítico à
noção de substância na obra, mas quase à contragosto, continua a usa-
la. O espírito, substância que sustenta as qualidades mentais, é descrita
por ele assim:
O mesmo ocorre com respeito às operações da mente, tais como pensamento,
raciocínio, medo etc. Pelo fato de concluirmos que não podem existir por si mesmas,
nem descobrindo como podem pertencer ao corpo ou serem por ele produzidas, somos
levados a pensar que constituem atos de uma outra substância qualquer denominada
espírito; por ser evidente que, não havendo da matéria outra idéia ou noção exceto a
de algo em que as inúmeras qualidades sensíveis que afetam nossos sentidos
subsistem, e por supor uma substância em que pensamento, conhecimento, dúvida,
poder de movimento etc., subsistem, adquirimos uma noção tão clara da substância do
espírito como da do corpo. Uma é suposta (sem saber o que ela é) o substratum das
idéias simples derivadas do exterior, e a outra (com a mesma ignorância acerca do que
ela é) o substratum destas operações que experienciamos dentro de nós mesmos. E
claro, pois, que a idéia de substância corporal na matéria está tão distante de nossas
concepções e apreensões como a da substância espiritual, ou espírito; por
conseguinte, por não termos nenhuma noção da substância do espírito, não podemos
concluir pela sua não existência; do mesmo modo e por razão semelhante não
podemos negar a existência do corpo, já que é tão racional afirmar que não existe
corpo, porque não possuímos idéia clara e distinta da substância da matéria, como
afirmar que não existe espírito, porque não temos idéia clara e distinta da substância
do espírito.

Como o suporte de nossas qualidades mentais, a substância


pensante, pode se perder ao longo da vida de uma pessoa, de modo
que ao longo dela muitas substância sucedem-se, compondo a
temporalidade de alguém, como átomos compõem a espacialidade de
um corpo? Não à toa a substância da metafísica tradicional é fixa face às
muitas trocas de propriedades que incidem sob os acidentes. O absurdo
que a aplicação consistente de sua noção de substância pensante face
ao seu próprio uso na citação acima implica, sugere que ele não usou a
noção de substância pensante de modo consistente, de um capítulo para
o outro. A usou num outro sentido, um tanto idiossincrático e obscuro.
Por fim, na última parte da citação ele afirma a necessidade, para
a continuação da pessoa ao longo do tempo, que ele seja capaz de
“repetir a ideia de qualquer ação passada com a mesma consciência
que teve dela originalmente e com a mesma consciência que tem de
qualquer ação presente”. A afirmação é em si muito implausível. Que ao
evocar a ideia de uma refeição feita há poucas horas alguém esteja tão
consciente de suas ações quanto estava no momento em que fazia, e
tanto quanto de uma refeição atual, já parece muito difícil de admitir;
quanto mais de uma pequena vergonha vivida há 30 anos! Mas ainda
que enfraqueçamos a exigência lockiana para a mera capacidade de
evocar memórias, o critério lockiano para a identidade pessoal não
resolve bem sequer o problema que ele mesmo propõe no princípio da
citação, pelo menos não sem fragmentar um único fluxo de experiência
em muitas pessoas, que é justamente o que que uma teoria sobre a
perduração da identidade pessoal deve evitar. Francamente não me
lembro do momento em que aprendi que 7x7=49, segundo o critério
lockiano sou tão pouco idêntico ao menino que aprendeu quanto o seu
exemplo do homem platônico que não se lembra de sua vida passada
em outro mundo. O recurso à distinção entre pessoa e substância
pensante não parece fazer muito para tornar sua teoria bem sucedida
Se Locke incluísse transitividade, sua teoria estaria em melhor
condição. Não me lembro do momento em que aprendi que 7x7=49, mas
há uma parte temporal minha que se lembra, que é lembrada por outra,
que é lembrada por outra... que é lembrada por minha parte temporal
atual, que será esquecida em algum momento, mas será lembrada por
outra, que é lembrada por outra.. que será lembrada pela minha parte
temporal que se esqueceu da minha parte temporal atual. As partes
temporais estariam ligadas umas às outras como elos, que constituem
uma única corrente, sem que cada elo esteja diretamente ligado entre si.
Esta versão estaria sujeita à outras objeções que transcendem o escopo
deste artigo, mas seria um aperfeiçoamento em relação a Locke.
O recurso à memória para a perduração da identidade pessoal foi,
entre outros, um avanço do Locke. Mas sua teoria não foi bem sucedida.

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