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Filosofia Medieval

O problema dos Universais

Márcio Galvão
galva.marcio@gmail.com

2008
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1. O que é o "problema dos Universais?"

Para melhor responder a esta questão será conveniente investigar sua origem desde a
antiguidade clássica até a época medieval, onde o "problema dos universais" foi formulado
de modo explícito e deu origem a uma controvérsia secular que, a propósito, ainda está em
aberto na filosofia.

No Livro A da Metafísica, Aristóteles critica as teses dos filósofos pré-socráticos sobre as


causas, e também dedica "particular atenção" a tese de seu mestre Platão sobre as formas.
É interessante observar que, nesta crítica, Aristóteles já demonstra uma maior preocupação
com o uso mais preciso de certos termos, e já fala em "definições universais".
Depois das filosofias mencionadas, surgiu a doutrina de Platão, que, em muitos pontos, segue as dos
pitagóricos, mas apresenta também características próprias (987a 30).

Platão ... acreditou ... que as definições se referissem a outras realidades que não às realidades
sensíveis. De fato, ele considerava impossível que uma definição universal se referisse a algum dos
objetos sensíveis, por estarem sujeitos a contínua mudança. Então, ele chamou essas outras
realidades Ideias, afirmando que os sensíveis existem ao lado delas e delas recebem seus nomes
(987b 5-10).

Apesar de reconhecer algum avanço na teoria de Platão e seus seguidores em relação aos
seus predecessores ("os que afirmaram a existência de Formas explicaram mais do que
todos os outros"), Aristóteles apresenta uma longa lista de dificuldades que identifica nesta
teoria (990b 1 - 993a 10). Vejamos algumas delas1.

Em primeiro lugar, eles, tentando aprender as causas dos seres sensíveis, introduziram
entidades suprassensíveis em número igual aos sensíveis (990b 1).
Ademais, a existência das Ideias não se prova por nenhuma das argumentações que
aduzimos como prova (990b 10).
Mas a dificuldade mais grave que se poderia levantar é a seguinte: que vantagem trazem as
Formas aos seres sensíveis, seja aos sensíveis eternos, seja aos que estão sujeitos à geração
e à corrupção? ... Ademais, as Ideias não servem ao conhecimento das coisas sensíveis...
nem ao ser das coisas sensíveis que delas participam (991a 10 - 15).
Dizer que as Formas são "modelos" e que as coisas sensíveis "participam" delas significa
falar sem dizer nada e recorrer a meras imagens poéticas (991a 20).

Após suas críticas ao platonismo, Aristóteles vai sugerir uma abordagem alternativa, de
cunho realista: o que é real é o particular, a substância individual, material e concreta. Em
cada substância, há algo de estável, e também algo de mutável. Há um princípio de
organização da matéria no objeto, e também um princípio de individualização. Assim, em
um certo sentido, Aristóteles transfere o dualismo platônico para dentro dos objetos
(ilemorfismo).

1 Na tradução aparecem na argumentação de Aristóteles tanto "Idéias" quanto "Formas", em certos casos, no mesmo
parágrafo.
3

No tratado "Da Interpretação" Aristóteles apresenta uma pequena passagem que é


relevante para a questão que estamos pesquisando, onde introduz a noção de universal e
sugere que os universais são predicados dos particulares:

Entre as coisas, há as universais e as particulares, e isso em função de ser sua natureza tal
que possam ser (as universais) ou não ser (as particulares) predicados de muitos sujeitos;
das universais é exemplo homem, e das particulares, Calias (VII, 17b1).

Neste ponto, já estamos em condições de dizer no que consiste o "problema dos


universais". Tal como colocado no dicionário,

Um problema capital acerca dos chamados "universais" é o de seu status ontológico. Trata-
se de determinar que classe de entidades são os universais, isto é, qual é a sua forma
peculiar de existência (MORA 2001, 2949).

Tomemos por exemplo uma categoria (ou predicado) como a "brancura". Terá ela uma
existência de modo independente dos objetos que predicamos como "brancos"?

Na versão Platônica, a "brancura" poderia ser considerada uma Forma com existência
autônoma, embora em uma realidade separada. Já Aristóteles, como vimos na passagem
anterior, confere aos universais um papel predicativo (uso do verbo "ser" como ligação
entre sujeito e predicado). Para ele, o "ser", aquilo que realmente é (tò on), é a substância
individual real, material, e existe de forma independente da nossa possibilidade de
conhecê-lo2. Já as categorias como "homem" seriam modos de estruturação da realidade:
a realidade seria composta de objetos, que possuem atributos, mas estes atributos (ou
predicados) não têm existência autônoma 3.

Como veremos adiante, a interpretação ontológica das categorias (mais precisamente, dos
gêneros e espécies) será problematizada por Porfírio (232-305), em sua obra Isagoge (uma
introdução ao Tratado das Categorias). O próprio Porfírio, entretanto, não se comprometeu
com nenhuma interpretação.

Já Boécio (480-524), no In Isagoge Porphyrii Commentarium Editio Prima et Secunda, vai


comentar o comentário de Porfírio (não sem deixar de ironizar este último, por não ter
adotado qualquer posição em relação ao problema que ele mesmo levantou). Como
também veremos em seguida, a posição de Boécio (realista aristotélico) é bastante simples,
mas longe de resolver o problema, dará margem para que a polêmica sobre a natureza dos
"universais" prossiga durante toda a Idade Média, com a participação de vários pensadores.

2Em oposição ao realismo aristotélico, podemos mencionar o idealismo (posição da época moderna), na qual o ser (aquilo
que existe) tem sua existência determinada pelo nosso modo de conhecer.

3 Aqui há várias distinções importantes, como entre matéria e forma (a matéria associada a um princípio de
individualização, e a forma associada a um princípio de organização) e entre substância primeira (proté ousia) e substância
segunda (deutera ousia), mas não entraremos em detalhes em favor da brevidade.
4

Um destes pensadores é Pedro Abelardo (1079 - 1142), que retoma a discussão no


século XI com uma abordagem conceitualista. Após Abelardo, merecem destaque Santo
Tomás de Aquino (século XIII), que também deu sua interpretação (também
conceitualista), e Guilherme de Ockham (século XIV), que também se ocupou do difícil
"problema dos universais", e cuja posição é um tipo de "nominalismo combinado com
conceitualismo".

Em resumo:

- O problema dos universais é o problema do estatuto ontológico das categorias ou


predicados.
- O realismo "forte" ou "platônico" sustenta que os universais têm existência autônoma e
vêm antes dos particulares.
- O realismo aristotélico sustenta que as categorias não existem sem um substrato, ou seja,
os particulares vêm antes dos universais.
- O nominalismo afirma que os universais são meros nomes (entidades lingüísticas).
- O conceitualismo afirma que os universais são conceitos (entidades mentais). Tem origem
na interpretação das formas como pensamentos.

2. As três questões fundamentais de Porfírio

Agora já temos a questão definida: O "problema dos universais" diz respeito à natureza
ontológica dos universais. Que tipo de entidades seriam, e que tipo de existência teriam?

No texto clássico Isagoge, Porfírio (232-305), discípulo de Plotino e de Alexandre de


Afrodísis, apresenta uma introdução ao Tratado das Categorias de Aristóteles. Seu
comentário, em linhas gerais, levantava a questão de que não estava claro o que Aristóteles
queria dizer sobre a natureza das categorias. Qual seria a relação existente entre a
substância primeira, o indivíduo, e as outras nove categorias (gêneros e espécies, atributos
do indivíduo)? Porfírio expôs suas dúvidas nas três questões seguintes4:

1) Se os gêneros e as espécies são realidades subsistentes em si mesmas5, ou se consistem


apenas em simples conceitos mentais6.
2) Admitindo que sejam realidades subsistentes, se são corpóreas7 ou incorpóreas.
3) Neste último caso, se são separadas ou se existem nas coisas sensíveis, e se delas
dependem.

4 As três questões forma destacadas da seguinte passagem (Isagoge, I, 1-16): "Não tentarei formular se os gêneros e as
espécies existem po si mesmos ou puramente em nosso intelecto, nem se no caso de subsistirem, se são corpóreos ou
incorpóreos, sem se existem separadamente dos objetos sensíveis ou nestes objetos, como parte dos mesmos". Observar
que Porfírio não tenta respoder as questões que formulou.
5 Vale observar que Platão descartou rapidamente no Parmênides a tese idealista de que as Idéias ou Formas fossem

conceitos mentais, mas esta noção seria recuperada pelos filósofos modernos.
6 Posição compatível com o conceitualismo estrito.
7 Notação compatível com Aristóteles (forma presente no objeto material) ou com o materialismo estóico.
5

3. A interpretação de Boécio

Posteriormente, Boécio (480-524) formula de modo mais explícito o "problema dos


universais" em seu comentário ao comentário de Porfírio, In Isagoge Porphyrii
Commentarium Editio Prima et Secunda (c. 507-509). Resumidamente, Boécio defenderá a
tese, bastante simples, de que sendo o Isagoge um comentário ao pensamento de
Aristóteles, então deve ser interpretado de modo compatível com o realismo aristotélico:
nesta abordagem, que favorece o conceitualismo, as características comuns que
identificamos pelo processo mental da abstração como universais (atributos) existem
apenas nas coisas (universalia post rem).

Durante todo o período medieval, diversos pensadores farão referência ao problema


colocado por Porfírio e transmitido por Boécio, adotando posições filosóficas diversas em
relação ao tema, como o realismo, o conceitualismo e o nominalismo, e suas diferentes
versões e subdivisões.

4. Realismo platônico versus realismo aristotélico

Antes de prosseguir, seria conveniente explicar o que entendemos por realismo em Platão
e em Aristóteles.

No realismo platônico ou "forte", os universais são entidades autônomas, existentes em


uma realidade separada do mundo material. Além de terem existência própria, sua
existência é "prévia e anterior à das coisas ... se assim não fosse ... seria impossível entender
qualquer das coisas particulares. Com efeito, estas coisas particulares estão fundadas
(metafisicamente) nos universais" (MORA 2001, 2950), de modo que tal perspectiva foi
denominada universalia ante rem (universais antes das coisas).

Platão foi portanto um defensor de um realismo dualista no sentido "forte", que por este
motivo é às vezes chamado de "realismo platônico". Há outras formas de realismo "forte",
como o que se pode atribuir a Santo Agostinho, que entretanto sugere que as Ideias ou
Formas não possuem uma "existência autônoma", mas existem na "mente de Deus":

Pois as ideias são determinadas formas ou razões das coisas, fixas e imutáveis, não formadas
elas próprias e, portanto, eternas, sendo sempre do mesmo modo e estando contidas na
inteligência divina. E embora não tenham começo, nem fim, tudo que pode ter começo e
fim deve ser formado de acordo com elas, assim como tudo que efetivamente têm começo
e fim (Santo Agostinho, De diversis quaestionibus octaginta tribus, q. 46).

Uma forma de realismo mais moderada foi a sugerida por Aristóteles. No realismo
aristotélico, as características comuns que identificamos como "predicados" existem nos
indivíduos, são aqueles traços que nos permitem estabelecer relações entre eles. Estas
características ou atributos seriam "separadas" dos indivíduos por um processo mental de
abstração.
6

Este tipo de realismo onde os universais encontram seu fundamento a partir das coisas foi
denominado universalia post rem (universais após as coisas)8. Um dos desdobramentos
desta posição é o conceitualismo medieval (universais são "conceitos" que existem no nosso
intelecto).

Há ainda outras posições filosóficas importantes na questão dos "universais", como o


nominalismo, uma alternativa ao realismo que propõe que os universais são nomes, termos
gerais, palavras, não têm qualquer tipo de existência fora da linguagem.

Há versões mais extremas do nominalismo (como em Rosselin de Compiégne, por volta de


1120, para os quais os universais são meros "sons vocais"), e outras menos radicais, que
levam em conta o papel do significado, como ocorre na semântica mentalista inaugurada
por Pedro Abelardo que, como veremos em seguida, de certo modo, está na base das
correntes nominalistas contemporâneas, onde a relação entre nome e referente passa pela
análise da estrutura da linguagem e pelos significados atribuídos aos termos não lógicos
(Frege, Russell, Quine etc.).

5. Abelardo e a "quarta questão" sobre os Universais


Pedro Abelardo vai retomar em sua "Logica Ingredientibus" as três questões de Porfírio e
apresenta suas respostas para elas.

... passemos à resolução das questões propostas por Porfírio a respeito dos gêneros e das
espécies... (Op. Cit. 239).

Primeira questão (id, 240):

.. A primeira dessas questões é a seguinte: se os gêneros e as espécies subsistem, isto é,


significam algumas coisas verdadeiramente existentes ou se estão postos apenas no
intelecto...

A isso é preciso responder que, em verdade, eles significam por meio da denominação
coisas verdadeiramente existentes, isto é, as mesmas coisas que os nomes singulares.

Segunda questão (id, 240-241):

... se as coisas subsistentes são corporais ou incorporais, isto é, uma vez que se admita que
os gêneros e as espécies significam as coisas subsistentes, se eles significam coisas
subsistentes que são corpóreas ou incorpóreas.

8Vale ressaltar que Aristóteles era um naturalista e está preocupado com as substâncias ou objetos do mundo natural.
Conceitos abstratos como "felicidade" são tema para a razão prática, e não pertencem ao mundo natural, ao qual seriam
aplicáveis as categorias aristotélicas. Analogamente, as teses de Aristóteles não são aplicáveis aos objetos matemáticos,
o que levanta dúvidas sobre a natureza ontológica destes tipos especiais de entidades, e disso se derivam diferentes
correntes filosóficas (realismo, intuicionismo etc.).
7

... Num certo sentido são as coisas corporais; isto é, separadas na sua essência; mas as
incorporais ... porque os universais não denominam separada e determinadamente, mas
confusamente.... Daí os próprios nomes universais serem chamados corpóreos quanto à
natureza das coisas, e incorpóreos quanto ao modo de significação, porque embora
denominem coisas que existem separadas, não as denominam, todavia, separada e
determinadamente.

Terceira questão (id, 241-242):

... se os gêneros e as espécies estão colocados nas coisas sensíveis...

... Por isso, indagava-se com razão se eles (gêneros ou espécies) poderiam existir alguma
vez nos sensíveis, e responde-se, quanto a certos deles, que existem, mas de tal maneira
que ... continuam a existir naturalmente fora da sensibilidade.

Após comentar as três questões de Porfírio, Abelardo adiciona uma quarta questão9:

...Se os gêneros e as espécies têm necessariamente alguma coisa a eles subordinada,


através da denominação, ou se, destruídas as coisas denominadas, então o universal
poderia constar da significação da intelecção, como este nome 'rosa' quanto não há
nenhuma rosa.

A questão proposta por Abelardo introduz como novidade em relação às questões


anteriores vários conceitos importantes, como as noções de denominação, significação e
intelecção, que colocam em destaque a relação entre a palavra e o conceito.

Pela primeira vez na discussão dos universais, ressalta-se com maior clareza o aspecto
linguístico do problema. Em essência, a tese de Abelardo é de que os universais são o
significado da intelecção, ou seja, existem apenas no nosso intelecto, e não têm existência
autônoma.

Neste sentido, Abelardo pode ser considerado um conceitualista - não é um realista estrito,
e tampouco um nominalista radical (como Rosselin), pois aceita uma noção de universais
como termos gerais que leva em conta o significado das palavras (semântica mentalista).

9 A resposta de Abelardo para sua própria questão é: "... que nós, de modo algum, queremos que os nomes universais
existam, quando, tendo sido destruídas as suas coisas, eles já não sejam predicáveis a respeito de muitos, porquanto eles
não são comuns a quaisquer coisas, como ocorre com o nome da rosa, quanto já não existem rosas, o que, entretanto,
ainda é significativo em virtude do intelecto, embora careça de denominação, pois de outra sorte não haveria a seguinte
proposição: nenhuma rosa existe".
8

6. A contribuição de Duns Scotus

João Duns Scotus (1266 - 1308) pode ser vinculado ao início da "crise da escolástica", que
decorre da retomada do interesse pelo pensamento aristotélico na Idade Média em
oposição a interpretação cristã do platonismo, tal como formulada por Santo Agostinho. O
interesse pelo pensamento de Aristóteles abre uma outra via para o pensamento cristão.
Esta nova perspectiva, iniciada com Santo Tomás de Aquino (1225 - 1274), se acentuará
com Duns Scotus.

No contexto da questão dos universais, Scotus dará a sua interpretação das questões
colocadas por Porfírio quase 1.000 anos antes, no século III. Resumidamente, Scotus pode
ser classificado como um realista post rem, no sentido de que entende que o universal é
extraído do singular pelo intelecto, ou seja, o universal não tem uma existência autônoma
fora das coisas.

Porém, a característica fundamental do pensamento de Duns Scotus e que pode ser


considerada uma contribuição inovadora para o problema dos universais é a sua doutrina
da univocidade como um estado metafísico do ser. Scotus, em seu realismo, considera que
o singular não é um mero nome, mas possui uma essência (haeccitas quidditas), é uma
entidade existente que pode ser diferenciada dos outros indivíduos. O ser é único, tem
unidade e unicidade.

Quanto ao aspecto epistêmico, embora considere que sua tese é uma consequência direta
do que disse Aristóteles, Duns Scotus admite a possibilidade de conhecimento do singular,
e neste sentido, se afasta de Aristóteles, para quem o conhecimento é apenas do universal:
conhecer é definir, ou seja, o conhecimento do ser (singular) seria sempre dependente das
determinações ou classificações lógicas que se pode fazer dele10.

O que é, afinal, esta essência do singular?


Em que sentido o "isto" (haec) seria irredutível?
Em outras palavras, usando um exemplo já clássico, o que seria a "socrateidade" de
Sócrates? Seria a essência a lista de suas propriedades ou o "feixe" de suas descrições?11
Seria esta essência material?

10Aqui, é importante diferenciar a questão ontológica (o ser e sua existência) da questão epistemológica (o conhecimento
do ser, que se dá, segundo Aristóteles, sempre através da generalidade/universal).

11A tese de que um nome próprio (como 'Aristóteles') seria equivalente a um conjunto ou feixe de descrições definidas
(sentenças na forma 'o tal e tal') foi recusada por Kripke, para o qual nenhum conjunto de descrições definidas como “o
professor de Alexandre”, “o autor da Teoria do Silogismo”, “o filósofo grego discípulo de Platão” etc. seria suficiente para
justificar nossas crenças a respeito de qualquer indivíduo (em outras palavras, para identificá-lo univocamente). Para ele,
o único critério para determianação da referência de um nome próprio seria o que chamou de "batismo" (Naming and
Necessity, 1972).
9

A simples noção de uma "essência do singular" parece contraditória sob o ponto de vista
aristotélico, pois se a matéria é o princípio da individuação e a forma é o modo de
organização da matéria em cada indivíduo de uma mesma espécie, então a forma seria a
mesma para cada espécie. Neste caso, o que seria a forma ou essência do singular? Apesar
de ter o mérito de ter dado esta contribuição inovadora no contexto da "querela dos
universais", Scotus não oferece uma resposta clara para esta difícil questão.

A valorização do singular no contexto do problema dos universais, iniciada em Scotus, vai


prosseguir com seu contemporâneo Ockham (?1288 - ?1349), que entretanto (como
veremos mais adiante) discordará em relação a certos pontos (como a noção de
"socrateidade"), e valorizará em seu nominalismo conceitualista noções importantes como
a de intuição intelectual e a de serialização.

Quanto à influência de Scotus já na modernidade, pode-se dizer que "tanto os temas


tratados pelo filósofo como as soluções oferecidas e o método adotado estiveram ligados a
pontos vitais do pensamento filosófico moderno, de tal modo que não é estranho descobrir,
na trama deste último, ... numerosos 'fios scotistas'" (MORA 2001, 2626)12.

7. A crítica que São Tomás de Aquino à posição platônica na Suma Teológica

No século XIII, época de transição entre a Alta e a Baixa Idade Média, a Igreja adotava como
doutrina filosófica o neoplatonismo, sobretudo na interpretação de Santo Agostinho.
Assim, naquela época, a Igreja não via com bons olhos o estudo de Aristóteles, que, além
de crítico de Platão, ele considerado materialista, interessado na ciência natural, e ainda
era estudado através dos pensadores islâmicos, como Averróes, "o comentador".

Apesar disso, ainda no século XIII São Tomás de Aquino (1225 - 1274) vai retomar o estudo
de Aristóteles. Em sua Suma Teológica este pensador faz uma releitura da filosofia
aristotélica e problematiza a questão13 do conhecimento do sensível, apresentando uma
defesa da ciência natural. Sendo a natureza uma criação divina, o seu estudo, ou o
conhecimento da realidade sensível, seria um caminho legítimo para nos aproximar do
Criador, e não algo a ser desprezado (como ocorre em Platão) ou combatido.

Na Suma Teológica, Santo Tomás (corajosamente, considerando o contexto da época), faz


críticas diretas à Santo Agostinho e sua teologia cristã neoplatônica. O estilo dialético de
Santo Tomás terá grande influência na Idade Média, e só será abandonado na época
moderna14.

12 Além da referência já feita à Kripke, é interessante mencionar que Quine, um dos maiores filósofos nominalistas do
século XX, admitia que a "socrateidade" pudesse ser um predicado logicamente válido. Seria a "propriedade instanciada
unicamente por Sócrates, ou, pode-se dizer, a propriedade de ser Sócrates".
13 Pode-se dizer que, para Platão, isto não era um problema, pois ele não estava interessado na busca pelo conhecimento

da realidade material ou do mundo sensível.


14 Na época moderna, o estilo escolático de "Sumas" é substituído por uma forma de argumentação mais pessoal e

confissional (como em Descartes) ou baseada em ensaios (como em Locke, Montaigne etc.).


10

Pode-se comparar a forma argumentativa de São Tomás como uma espécie de "prova por
absurdo" de base retórica: ele primeiro expõe os argumentos da tese que deseja combater,
e depois refuta toda esta argumentação (sed contra), provando o seu contrário, e em
seguida, apresenta as suas respostas.

Vejamos como este método é empregado para criticar a posição platônica de Santo
Agostinho, em relação à possibilidade do conhecimento do mundo material.

Na Questão 84 , artigo primeiro, "Se a alma conhece os corpos pelo intelecto", São Tomás
inicia sua dialética apresentando a posição agostiniana, que deseja combater. Esta tese,
fundamentada na noção platônica de que "igual se relaciona com igual", é a de a alma
conhece a realidade inteligível, e o corpo conhece a realidade material. Ergo, pelo intelecto,
que é uma faculdade da alma, não se pode conhecer o mundo sensível:

Parece que a alma não conhece os corpos pelo intelecto. Pois, diz Agostinho, os corpos não
podem ser compreendidos pelo intelecto; porque só os sentidos podem perceber o que é
corpóreo.

Santo Tomás apresenta um segundo argumento, que basicamente reafirma o primeiro


("logo, de nenhum modo, pelo intelecto, se pode conhecer os corpos, que são sensíveis"),
e em seguida um terceiro argumento (resumidamente: o intelecto se refere à coisas
necessárias, imutáveis, mas os corpos móveis são mutáveis, logo não podem ser conhecidos
pelo intelecto). Finalmente, é apresentado um terceiro argumento, de que os corpos são
móveis e não existem sempre do mesmo modo, logo, não poderiam ser conhecidos pela
alma (intelecto), que teria como objetos as coisas necessárias (imutáveis).

Após expor a tese que deseja combater, Santo Tomás apresenta a sua resposta, refutando
o que foi dito antes. Alega que a ciência natural depende da capacidade de nosso intelecto
poder conhecer os corpos móveis, pois estes são seus objetos de estudo. A argumentação
anterior (platónica), de que os corpos móveis não podem ser conhecidos pelo intelecto,
torna a ciência natural impossível, o que é absurdo:

Mas, em contrário, a ciência está no intelecto. Se, pois, este não conhece os corpos, resulta
que não há nenhuma ciência deles. E, então, desaparecerá a ciência natural, que é a do
corpo móvel.

Prosseguindo, Santo Tomás apresenta a sua solução para a questão em discussão.


Adotando a técnica argumentativa de "apelo à autoridade mais antiga", faz menção ao
naturalismo pré-socrático, citando os primeiros filósofos (anteriores a Platão), que
acreditavam ser possível o conhecimento da natureza, mas que teriam concluído que (aqui
São Tomás se refere à Heráclito), como tudo está em fluxo, não podemos ter certeza da
verdade das coisas15.

15
É impossível não lembrar de Popper nesta passagem, e sua tese de que todo conhecimento é conjectural.
11

Então, Platão teria introduzido outros entes além dos seres corpóreos, "para poder salvar
o conhecimento certo da verdade". Estas seriam as ideias ou espécies. As coisas sensíveis
participariam destas ideias (noção de participação), que seriam separadas da realidade
material. Em função disso tudo, o intelecto (alma) não teria acesso ao conhecimento das
coisas sensíveis, mas apenas das ideias. Após apresentar este resumo da tese de Platão, São
Tomás refuta um a um todos os três argumentos já apresentados. Nesta parte, importa
ressaltar, mais uma vez, a coragem intelectual de São Tomás, que discorda claramente de
Platão ...

Ora, de duplo modo se mostra a falsidade desta opinião ...

Primeiro, São Tomás alega que sendo as ideias imóveis e imateriais, ficaria excluído do
alcance da ciência o conhecimento do movimento e da matéria. Em seguida, com alguma
ironia, Santo Tomás recorre ao argumento aristotélico do "terceiro homem" contra a noção
das ideias platônicas:

... seria risível que, procurando conhecer as coisas que nos são manifestas, introduzamos
outras intermediárias, que não podem ser as substâncias das primeiras por diferirem delas
essencialmente.

Segundo São Tomás, "a causa de Platão ter-se desviado da verdade" (!) é de ter assumido o
pressuposto de que a forma do conhecido está necessariamente no conhecente, e de que
o intelecto intelige universalmente. Assumir que a forma (do objeto conhecido) está no
cognoscente (conhecedor) do mesmo modo que no conhecido é problemático. Mas não é
necessário que as coisas se passem desta forma. Uma forma, como a "brancura", pode estar
presente em muitas coisas de modo diferente. O recebido está no recipiente ao modo deste.
Logo, pode-se concluir que a alma, pelo intelecto, pode conhecer os corpos, ou seja, há um
conhecimento inteligível do sensível e móvel. Assim São Tomás responde ao primeiro
argumento de Santo Agostinho.

Na resposta ao segundo argumento, São Tomás faz a interessante observação de que como
consequência da tese de Santo Agostinho, Deus e os anjos estariam impedidos de conhecer
os seres corpóreos.

Finalmente, em sua resposta ao terceiro argumento (o da mobilidade), São Tomás alega


que "todo movimento supõe algo imóvel", ou seja, que "os modos de se dar das coisas que
mudam são, eles próprios, imóveis". Este argumento - já encontrado inclusive no próprio
Heráclito, para quem havia logos ou racionalidade no próprio fluxo - justifica que se possa
ter "uma ciência imóvel das coisas móveis". Assim, a ciência natural é possível, mesmo
tendo como objetos de estudo os corpos móveis.

Concluindo, a principal crítica que São Tomás faz à posição platônica em nosso
entendimento parece ser é a de que ela torna a ciência natural impossível, ou seja, produz
um resultado absurdo.
12

8. São Tomás de Aquino e o problema dos Universais

Já na primeira frase da Metafísica (Livro A, 980a), Aristóteles se distancia de Platão16, ao


afirmar que "Todos os homens, por natureza, tendem ao saber", e isto seria evidenciado
pelo prazer obtido pelas sensações, em especial, a visão, que nos proporcionaria mais
conhecimento do que as demais. O conhecimento seria não apenas desejado, mas natural,
passível de se obter através de um processo linear, cumulativo, realizável através de etapas.

Segundo Aristóteles, as sensações seriam o ponto de partida para todo o conhecimento,


pois nos fornecem acesso imediato ao real (tese empirista, onde os sentidos fornecem o
"material de trabalho" para o intelecto). Esta seria, pode-se dizer, a primeira etapa do
processo de conhecimento. Porém, tal acesso aos dados dos sentidos teria pouca serventia
ao processo do conhecimento se não pudesse ser retido, ou fixado. Entra em cena a
memória (segunda etapa), que nos permite reter os dados sensoriais. Diz Aristóteles:

Em alguns animais, da sensação não nasce a memória, ao passo que em outros nasce, e por
isso estes últimos são mais inteligentes e mais aptos a aprender do que os que não têm
capacidade de recordar (id, 980b).

No que seria a terceira etapa, especialmente relevante para a espécie humana, as inúmeras
lembranças nos conduzem à experiência, condição para estabelecer relações (de base
indutiva) entre os dados das sensações retidos na memória:

Nos homens, a experiência deriva da memória. De fato, muitas recordações do mesmo


objeto chegam a constituir uma experiência única (id, 981a).

A experiência (emperia) seria o conhecimento dos particulares, mas o verdadeiro


conhecimento se daria com a capacidade de formar juízos universais. Este conhecimento
seria arte:

A arte se produz quando, de muitas observações da experiência, forma-se um juízo geral e


único, passível de ser referido a todos os casos semelhantes (id, 981a - 5).

Isto nos permitiria conhecer pelas causas, seria um saber de maior valor:

A experiência é o conhecimento dos particulares, enquanto a arte é o conhecimento dos


universais... consideramos que o saber e o entender sejam mais próprios da arte do que da
experiência, e julgamos os que possuem a arte mais sábios do que os que só possuem a
experiência... E isso porque os primeiros conhecem a causa, enquanto os outros não a
conhecem (981a 15-25).

16 Platão, sobretudo na fase da República, era bem menos otimista em relação à possibilidade do conhecimento, que seria
algo muito difícil de se obter, exigindo uma transformação da alma. Porém, o "conhecimento" que Platão valorizava não
era o do mundo natural, que Aristóteles, inversamente, privilegia.
13

Assim, segundo nos ensina o grande gênio de Aristóteles, os mais sábios (os que conhecem)
são os que conhecem as causas e, em função disso, são capazes de ensinar.

Aqui, já nos aproximamos um pouco do "problema dos universais", ao perceber que é


através destas destas etapas (sensação - memória - indução empírica - generalização) que
se torna possível passar do múltiplo (variedade de dados das sensações, das impressões dos
singulares em nós) para o um (uma experiência única). De certo modo, conseguimos gerar
um "universal" indutivamente, fazer uma generalização. E para explicar como isto se dá,
Aristóteles desenvolve a sua Teoria da Abstração (abordada mais claramente no Tratado da
Alma, , 5).

Muito resumidamente (a questão é difícil), haveria em nosso intelecto uma parte passiva
ou paciente que seria afetada pelo real (impressionada pelas sensações), e uma outra parte,
superior ou ativa, que seria capaz de elaborar o que foi fornecido pelos sentidos, formando
conceitos. Não é muito claro se seriam dois intelectos, ou um intelecto único com duas
funções. Mas, em essência, a ideia é que os objetos singulares (reais, materiais) produzem
afecções na alma através dos sentidos (intelecto passivo), e por um processo mental de
abstração, destas afecções seriam produzidos conceitos, formas abstratas gerais universais
(intelecto ativo).

A relevância disso para a questão em estudo é que estes conceitos aristotélicos de intelecto
passivo, intelecto ativo e abstração são adotados como pressupostos na concepção
defendida por São Tomás de Aquino (1225 - 1274) na Suma Teológica, com relação ao
problema dos universais. Mais especificamente, na Questão LXXXV São Tomás investiga se
o que é universal teria prioridade no nosso conhecimento intelectual (em oposição ao
singular), e, em várias passagens faz referências explícitas a Aristóteles ("O Filósofo") e à
teoria do intelecto aristotélica.

Na referida discussão (artigo III, Questão LXXXV, "se o que é universal é anterior (ao
singular) em nosso conhecimento intelectual"), São Tomás primeiro apresenta a tese de
que "os universais são posteriores", isto é, são conhecidos posteriormente. No item 3, cita
Aristóteles:

O Filósofo diz que nós conhecemos o definido antes de conhecermos as partes da definição.
Ora, o mais universal é parte da definição do menos universal; assim, animal é parte da
definição de homem. Logo, os universais são, quanto a nós, conhecidos posteriormente.

Seguindo seu método dialético (tese - antítese), São Tomás então apresenta a tese oposta,
em contrário, a de que é pelo universal que devemos chegar ao particular. Aqui, ele utiliza
a técnica argumentativa de estabelecer distinções, e de fato estabelece uma distinção
muito importante, que consideramos uma contribuição fundamental para o problema dos
universais: trata-se da separação entre a ordem do ser (aspecto ontológico) e a ordem do
conhecer (aspecto epistemológico).
14

Se o critério é ontológico, o objeto singular, material, existe e nos afeta, e o universal não
tem existência autônoma. Aqui, São Tomás se alinha com Aristóteles e se afasta de Platão
(e suas Ideias existentes em um mundo separado).

No sentido de "conhecimento" ainda passivo, ou seja, que se refere à afecção da alma


(conhecimento sensitivo, pela parte passiva do intelecto), o conhecimento do singular vem
antes.

Porém, quando o critério é o epistemológico, o conhecimento do mais comum é anterior


ao do menos comum, pois o universal (conceito produzido pelo intelecto ativo, por
abstração) torna-se um princípio ou pré-requisito para que o singular possa ser conhecido
(aqui, "conhecido" no sentido ativo, de "classificado", "definido"). Por este princípio, o
universal vem antes, ou é anterior em nosso conhecimento.

Nas palavras de São Tomás:

O universal, entendido simultaneamente com a intenção da universalidade, é, de certo


modo um princípio de conhecimento, enquanto essa intenção é consequente ao modo de
inteligir, que se opera pela abstração. Não é necessário, porém, que tudo o que é princípio
de conhecimento seja princípio de existência, como pensava Platão; pois, por vezes,
conhecemos a causa pelo efeito, e a substância pelo acidente, como se vê em Aristóteles.

Na argumentação da Suma Teológica, fica evidente que São Tomás se apoia diretamente
em Aristóteles, em sua tese de que o universal não tem existência própria (ontológica) mas
resulta de um processo de abstração intelectual ("determinação"), que nos permite
perceber o que há de comum em múltiplos indivíduos.

Neste sentido, o da abstração cognitiva, a ordem do ser, o universal é posterior, pois não
pode haver tal abstração sem os indivíduos que possam ser apreendidos. Mas o ser
individual não pode ser conhecido ou "definido", no sentido predicativo, e neste aspecto, o
universal é anterior.

Deste modo, a teoria aristotélica do intelecto passivo e do intelecto ativo é um pressuposto


na interpretação do problema dos universais feita por São Tomás, que deu contribuições
importantes, como a distinção entre a ordem do ser e a ordem do conhecimento.

Com esta abordagem, o aspecto epistemológico do problema dos universais ganha força,
sobretudo nos últimos dois séculos da filosofia medieval, e será tema de estudos na época
moderna com Descartes, Locke e vários outros pensadores.
15

9. Ockham

Apenas alguns anos após a morte de São Tomás nasce Guilherme de Ockhan (~1288 - ~1349)
que podemos classificar como um representante da via moderna, em oposição à via
antiqua. Ockham entende que os termos gerais (universais) são nomes ("o universal é um
termo de aplicação geral"), e neste sentido antimetafísico, ou seja, ao negar qualquer
existência autônoma aos universais, ele é um nominalista.

Ao mesmo tempo, Ockham sugere que o que torna um termo "universal" é a sua
significação, ou seja, o fato de poder ser utilizado como sinal de múltiplas coisas singulares
("É isso o que diz Avicena no V livro da Metafísica: 'Uma só forma no intelecto refere-se à
multidão, e sob esse aspecto é universal'"). Em função da valorização das noções de
significação e conceito, além de intenção mental e intuição intelectual, Ockham pode ser
interpretado mais como conceitualista do que nominalista.

Assim, em termos ontológicos, para Ockham o universal é o conteúdo semântico


(significado) de um termo da linguagem que pode ser aplicado de forma genérica. O que
de fato existe é o singular, e um termo universal não precisa ter um referente real que a
ele corresponda.

Ou seja, ele nega que o universal seja algo externo a nós e possua existência autônoma,
tanto no sentido platônico, que violaria a máxima ockhaniana nominalista da não
multiplicação das entidades ao introduzir novas noções desnecessárias como as "formas"
("entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem"), seja no sentido de que os universais
existem "nas coisas" (universallia post rem).

Para Ockham, pensar o universal como algo externo (reificação) nos força a tomá-lo como
objeto, e assim ele deixa de ser universal. O universal só pode ser pensado como palavra,
mas uma palavra que tem a funcionalidade de ser aplicável a muitos singulares.

No contexto do problema dos universais, Ockham valoriza a importância da experiência


humana como sendo uma experiência do singular. Vale mencionar que embora Duns Scotus
também tenha valorizado o singular no contexto da questão dos universais, Ockham critica
explicitamente a posição scotista ("Opinião de Scotus acerca do universal e sua refutação"),
e aplica a sua "navalha" em noções que considera supérfluas, como a de "Socrateidade":

Conquanto muitos vejam que o universal não é uma substância existente fora da alma nos
indivíduos e distinta realmente deles, pensam alguns que o universal está de algum modo
fora da alma nos indivíduos, ainda que não distinto realmente deles, mas apenas
formalmente. Dizem então que em Sócrates há uma natureza humana contraída a Sócrates
por uma diferença individual, não distinta realmente dessa natureza, mas formalmente...
Essa opinião, entretanto, me parece de todo improvável.
16

Como Ockham entende o singular? Na parte de sua obra (Summa Totius Logicae) em que
trata dos "Problemas Epistemológicos" (pg. 360), o filósofo nos explica que o termo
"singular" pode ser entendido em dois sentidos.

No primeiro, significa algo que é dotado de unidade numérica, "tudo quanto é uma coisa e
não várias". Ele então faz a interessante consideração de que, segundo este critério
(numérico), o próprio universal (um termo geral predicável de muitas coisas) seria um
"singular para nós", pois todo termo ou palavra, por mais comum, é numericamente um.

No segundo sentido, "singular" é uma só coisa e não várias, e não pode ser predicado (sinal)
de nenhuma outra. Com esta restrição, diz Ockham, "nenhum universal é singular", pois o
universal que tem como função, por sua própria natureza, ser o sinal de muitas coisas, e
neste sentido, não é numericamente uno.

Retornando à noção de singular, para Ockham, o indivíduo (individuum) pode ser entendido
como algo que tem "autonomia ontológica" e não pode mais ser dividido sem perder o
sentido. Por exemplo, uma perna separada do corpo não seria um "indivíduo". Uma coisa
singular, res singularis é algo que podemos numerar, contar. Nesta interpretação, a
singularização seria um tipo de "totalidade em si mesma", e a universalidade é pensável
como uma série de singulares (noção de serialização).

Embora a tese de Ockham pareça ontológica, há também um aspecto epistêmico, pois para
dizer que algo é um singular precisamos ser capazes de reconhecê-lo como único. Como
discutido na questão seguinte, os singulares podem ser aprendidos como únicos pela
intuição intelectual. Segundo Ockham, a forma de apreensão do singular é a intuição (intuir
= "entrar dentro de algo"). Esta seria uma faculdade do intelecto17, ou seja, não se trata de
uma intuição sensível. Além de um conhecimento direto do conceito do ser (singular), a
intuição nos permitiria apreender também conceitos de gênero e espécie:

Que conhecimento abstrativo é primeiramente obtido mediante a intuição?


Respondo: 'Às vezes o conceito do ser apenas; às vezes o conceito do gênero; às
vezes o conceito da espécie especialíssima, conforme o objeto for mais ou menos
remoto". Contudo, sempre tem-se impresso o conceito do ser'.

Seria esta intuição que nos permitiria isolar e enumerar os singulares, formando a série que
é a generalização. Porém, este processo pode falhar: não há garantias de que o que
apreendemos intuitivamente como "singulares" de fato existam no mundo real. Diz
Ockham: “A visão é uma qualidade absolutamente distinta do objeto; logo, pode realizar-
se, fora de qualquer contradição, sem um objeto”. Isso conduz ao ceticismo, a partir da
perspectiva de que "podemos ser enganados por nossas intuições".

17Observe-se que a tese de que o homem pode adquirir conhecimento através de intuição intelectual será recusada por
Kant. Por intuição intelectual, Kant se refere a uma faculdade que permite a criação de seus próprios objetos.
17

10. Breve resumo das posições filosóficas sobre os Universais

Antes de concluir, segue um breve resumo das principais posições sobre a questão dos
universais.

Platão

No realismo dualista platônico ou "forte", os "universais" são entidades autônomas,


existentes em uma realidade separada do mundo material. Além de terem existência
própria, sua existência é "prévia e anterior à das coisas ... se assim não fosse ... seria
impossível entender qualquer das coisas particulares. Com efeito, estas coisas particulares
estão fundadas (metafisicamente) nos universais" (MORA 2001, 2950), de modo que tal
perspectiva foi denominada universalia ante rem (universais antes das coisas).

Aristóteles

No realismo aristotélico, as características comuns que identificamos como "predicados"


existem nos indivíduos, são os traços que nos permitem estabelecer relações entre eles.
Estas características ou atributos seriam "separadas" dos indivíduos por um processo
mental de abstração. Este tipo de realismo onde os universais encontram seu fundamento
a partir das coisas foi denominado universalia post rem (universais após as coisas).

Porfírio

No Isagoge, Porfírio (232-305) apresenta uma introdução ao Tratado das Categorias de


Aristóteles. Seu comentário levantava a questão de que não estava claro o que Aristóteles
queria dizer sobre a natureza das categorias. Que tipo de entidades seriam as categorias e
que tipo de existência teriam? Apesar de ter dado visibilidade ao problema ontológico dos
universais, Porfírio não adotou uma posição própria sobre o tema.

Boécio

Boécio (480-524) formula de modo mais explícito o "problema dos universais" em seu
comentário ao comentário de Porfírio, In Isagoge Porphyrii Commentarium Editio Prima et
Secunda (c. 507-509). Este pensador defenderá a tese de que sendo o Isagoge um
comentário ao pensamento de Aristóteles, então deve ser interpretado de modo
compatível com o realismo aristotélico: nesta abordagem, que favorece o conceitualismo,
as características comuns que identificamos pelo processo mental da abstração como
universais (atributos) existem após as coisas (universalia post rem)18.

18 Abordagem equivalente a do universalia in rebus (universais existem nas coisas, e delas são abstraídos)
18

Pedro Abelardo

Em essência, a tese de Abelardo é de que os universais são o significado da intelecção, ou


seja, existem apenas no nosso intelecto, e não têm existência autônoma. Assim, Abelardo
defende uma posição que introduz, como novidade em relação às abordagens anteriores,
as noções de denominação, significação e intelecção, que colocam em destaque a relação
entre a palavra e o conceito. Deste modo, pela primeira vez na discussão dos universais,
ressalta-se com maior clareza o aspecto linguístico do problema.

Santo Agostinho

Como mencionado, Platão foi um defensor de um realismo dualista no sentido "forte". Uma
outra versão de realismo "forte" se encontra na abordagem de Santo Agostinho, que sugere
que as Ideias ou Formas não possuem uma "existência autônoma", mas ainda assim existem
na "mente de Deus".

São Tomás de Aquino

Para São Tomás de Aquino o universal não existe no sentido ontológico, sendo o resultado
de um processo de abstração. Na Suma Teológica, a partir da Questão 85, este filósofo vai
elaborar em oito artigos algumas noções do Tratado da Alma de Aristóteles, investigando
"o modo e a ordem de conhecer" (talvez fosse mais apropriado "o modo e a ordem pelo
qual entendemos").

Quanto ao aspecto epistemológico da questão dos universais, São Tomás sugere que existe
entre o universal e o singular uma relação de precedência, e aqui importa destacar a
distinção feita entre a ordem do ser e a ordem do conhecer. Na ordem do ser, o que existe
é o singular (como Sócrates), e pode ser apreendido. Mas o ser (indivíduo) não pode ser
conhecido enquanto tal, no sentido de ser definido. Este tipo de conhecimento baseado em
definição requer predicação (Todo S é P), ou seja, precisamos do universal para poder
definir o singular. Nesta sentido do conhecimento, o universal vem primeiro, e o singular
em segundo.

Duns Scotus

Duns Scotus pode ser classificado com um realista post rem. Para ele, como se pode
interpretar em sua discussão das questões de Porfírio, o universal não tem uma existência
autônoma fora das coisas, mas é delas extraído pelo intelecto. Assim, pode-se dizer que o
universal existe após a coisa (res), mas não de forma independente. Observe-se que Scotus
não é um conceitualista, pois não entende que um termo geral universal denomina uma
ideia, mas sim uma coisa ("o universal denomina a coisa e não o intelecto").
19

Guilherme de Ockham

Para Ockham, um termo da linguagem torna-se universal (passível de ser predicado de


múltiplas coisas) pelo processo semântico de significação. Trata-se de uma abordagem que
mistura o nominalismo (universais como termos ou nomes) e o conceitualismo (valoriza o
significado). Quanto ao aspecto ontológico, Ockham nega qualquer tipo de existência
externa aos universais, e valoriza seu aspecto funcional: o universal é algo que pode ser
aplicado como um modelo, que se refere à múltiplas coisas singulares.

11. Conclusão

O problema dos universais, em seu aspecto ontológico, diz respeito à existência das
categorias ou predicados. Terá a "brancura" uma existência de modo independente dos
objetos que predicamos como "brancos"?

Na versão Platônica do realismo, a "brancura" poderia ser considerada uma Forma com
existência autônoma, embora em uma realidade separada. Já Aristóteles confere aos
universais um papel apenas predicativo (uso do verbo "ser" como ligação entre sujeito e
predicado). Para ele, o "ser", aquilo que realmente é (tò on), é a substância individual real,
material, o substrato, que existe de forma independente da nossa possibilidade de conhecê-
lo. Já as categorias seriam modos de estruturação da realidade e não teriam existência
autônoma (realismo aristotélico).

Como vimos, a partir do realismo aristotélico foram desenvolvidas na Idade Média várias
outras abordagens para a questão dos universais, como o nominalismo, que afirma que os
universais são meros nomes (entidades linguísticas), e o conceitualismo, que afirma que os
universais são conceitos (entidades mentais).

Há no problema dos universais um importante componente ontológico. Porém, um outro


aspecto importantíssimo é a questão epistêmica. Trata-se da questão não da existência do
ser, mas da possibilidade do conhecimento (ou do nosso acesso) ao ser.

Esta questão já estaria presente em Platão e Aristóteles, mas seria secundária em relação à
questão "metafísica". Por exemplo, na concepção realista de Aristóteles, a realidade
independe de nossa capacidade de podermos ou não conhecê-la, ou de nossa experiência
ou apreensão dela. Coube a São Tomás de Aquino jogar a luz de sua sabedoria sobre esta
distinção entre o aspecto ontológico (a ordem do ser) e epistêmico (a ordem do conhecer)
do problema.

Afinal, dizer que algo existe é diferente de dizer que sabemos que algo existe, e existir é
diferente de ser conhecido, a menos que se adote o ponto de vista de um empirista radical
como o Bispo Berkeley ("ser é ser percebido"). O universal, neste sentido epistemológico, é
uma espécie de condição de possibilidade para o conhecimento, resultante de nossa
capacidade de abstração.
20

No aspecto puramente ontológico, a "verdade" é a verdade do ser, é verdadeiro o que é. Já


no aspecto epistêmico, a "verdade" é a verdade da proposição sobre o ser, é verdadeiro o
que corresponde ao real. Com o tempo, ao longo da Idade Média, o aspecto epistêmico vai
ganhando prioridade, e a questão de que tipo de correspondência pode existir entre o real
e nosso conhecimento do real se torna central nas abordagens do problema dos universais.

Quanto à importância do problema dos universais, em primeiro lugar, a relevância do


assunto pode ser atestada por sua longevidade (tão antigo quanto a própria filosofia) e pela
quantidade (e pela qualidade) de pensadores que se dedicaram ao tema, incluindo alguns
dos maiores filósofos de todos os tempos. Vale ressaltar que a questão dos universais
permanece em aberto (como toda boa questão filosófica).

Em segundo lugar, importa ressaltar que o posicionamento (ou o compromisso assumido)


em relação ao aspecto metafísico ou ontológico (realista platônico, realista moderado,
nominalista, conceitualista, idealista etc.) determinará, ou afetará significativamente, várias
outras posições filosóficas em outras áreas da filosofia, como a ética (a questão do bem), a
política (a questão da virtude e da moral) e a lógica, onde o debate entre realistas e
nominalistas ganha contornos mais técnicos e relacionados com a linguagem, e também na
filosofia da matemática. Sobre isso, diz um dicionário especializado:

Embora ... se trate primordialmente de uma questão ontológica, ela teve importantes
implicações e ramificações em outras disciplinas: na lógica, na teoria do conhecimento e até
na teologia. O problema ... oferece uma multiplicidade de temas e questões... (1) a natureza
do conceito ... (2) a questão da verdade (... correspondência do enunciado com a coisa) ...
(3) a questão da linguagem (natureza dos signos e suas relações com as entidades
significadas).... Em princípio, o problema dos universais parece abarcar todas as questões
básicas filosóficas, ontológicas, gnosiológicas e lógicas. Além disso, no final da Idade Média
e durante o Renascimento, o problema dos universais inclui a questão da natureza do
indivíduo como ser pensante (MORA 2001, 2949).

Dentre todas estas posições filosóficas sobre a questão dos universais, a posição que
julgamos mais persuasiva é a de Pedro Abelardo: os universais não têm existência
ontológica própria, mas pode-se dizer que "existem" em nosso intelecto, como resultado
do processo de se atribuir significado ao que é abstraído dos singulares (intelecção).

Uma evidência da importância da posição iniciada por Abelardo e reforçada por Ockham é
que ela forneceu os fundamentos para as correntes nominalistas contemporâneas, onde a
relação entre nome e referente passa pela análise da estrutura da linguagem e pelos
significados atribuídos aos termos não lógicos. Se Ockham destacou o aspecto funcional dos
universais, como modelos aplicáveis a múltiplos objetos, Frege séculos depois formalizaria
os predicados lógicos exatamente como funções, passíveis de ser saturadas por objetos
(singulares).
21

Bibliografia

ABELARDO, P: Lógica Para Principiantes (Logica Ingredientibus). Tradução Ruy Afonso da


Costa Nunes. Coleção "Os Pensadores". Editora Abri, São Paulo.

AQUINO, T: Suma Teológica. Tradução de Waldemar Ferreira. São Paulo, Instituto Sedes
Sapientiae.

ARISTÓTELES: Órganon. Categorias e Tratado Da Interpretação. Tradução Edson Bini,


primeira edição (2005), Edipro - Edições Profissionais Ltda.

____________: METAFÍSICA. Tradução para o italiano por Giovanni Reale. Tradução da


edição brasileira de 2002 por Marcelo Perine. Edições Loyola.

MARCONDES, D. 2005: Iniciação à História da Filosofia. Dos Pré-Socráticos a Wittgestein.


Nona edição. Jorge Zahar Editor.

MORA, J. F. 2001: Dicionário de Filosofia. Tomo IV (Q - Z). Edições Loyola.

OCKHAM, G: Seleção de Textos. Coleção "Os Pensadores". Editora Abril, São Paulo.

PLATÃO: Parmênides. Texto estabelecido e anotado por John Burnet, tradução,


apresentação e notas por Maura Iglesias e Fernando Rodrigues. Editora PUC Rio. Edições
Loyola, 2003.

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