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Não se crê no desastre, não se pode crer nisto: que se vive ou que reconduzidos à ausência, o nada no lugar de tudo é muito e * >>> O receptível seria o ilegível
que prende, o texto ardente,
se morre nele. Nenhuma fé que esteja à sua altura e, ao mesmo muito pouco. O desastre não é maiúsculo, ele oferece, talvez, produzido continuamente fora de
tempo, uma espécie de desinteresse desinteressado do desastre. a morte banal; ele não se sobrepõe, estando aí como suple- qualquer verossimilhança e cuja
função – visivelmente assumida
Noite, noite branca – assim o desastre: essa noite à qual a escu- mento, ao espaçamento do morrer. Morrer nos dá, às vezes por seu escriptor – seria a de
ridão falta, sem que a luz a clareie. (indiretamente, sem dúvida), o sentimento de que se morrês- contestar o constrangimento
semos, escaparíamos do desastre e não de nos abandonar ao mercantil do escrito; esse texto,
O círculo, desenrolado sobre uma direita rigorosamente pro- guiado por um pensamento do
desastre – de onde vem a ilusão de que o suicídio libera (mas a impublicável, atrairia a seguinte
longada, refaz um círculo eternamente privado de centro.
consciência da ilusão não a dissipa, não nos deixa nos desviar resposta: não posso ler nem
escrever o que você produz, mas
A “falsa” unidade, o simulacro da unidade a comprometem dela). O desastre do qual se deveria atenuar – reforçando-a – eu o recebo, como um fogo,
mais que a sua evidência direta que, de resto, não é possível. a cor preta, expõe-nos a uma certa ideia da passividade. Nós uma droga, uma desorganização
enigmática”. (BARTHES, Roland.
Escrever em um livro seria tornar-se legível para cada um e,
somos passivos em relação ao desastre, mas o desastre é talvez Roland Barthes por Roland
para si mesmo, indecifrável? (Jabès não nos quase disse isso?). a passividade, por ela atravessado e sempre atravessado. Barthes. São Paulo: Cultrix, 1975,
p. 127: “Legível, escriptível e mais
O desastre cuida de tudo. além”).
Se o desastre significa estar separado da estrela (o declínio
que marca o desvio quando é interrompida a relação com Odesastre: não o pensamento tornado louco, nem mes-
o acaso daquilo que vem do firmamento), ele indica a que- mo, talvez, o pensamento como aquele que carrega, sem-
da sob a necessidade desastrosa. Seria a lei o desastre, a lei pre, sua loucura.
suprema ou extrema, o excessivo da lei não codificável: a
O desastre nos retira esse refúgio que é o pensamento da
isso somos destinados sem nos concernir? O desastre não
morte, dissuadindo-nos do catastrófico ou do trágico, de-
nos olha, ele é o ilimitado sem olhar, o que não pode se
sinteressando-nos de todo querer como também de todo
medir em termos de fracasso nem como a perda pura e
movimento interior, não nos permite mais jogar com esta
simples.
questão: o que você fez para conhecer o desastre?
Nada é suficiente para o desastre; o que quer dizer que,
O desastre é do lado do esquecimento; esquecimento sem me-
mesmo a destruição em sua pureza de ruína não lhe convém,
mória, retirada imóvel do que não foi traçado – o imemorial,
mesmo a ideia de totalidade não saberia marcar seus limites:
talvez; lembrar-se pelo esquecimento, novamente o fora.
todas as coisas alcançadas e destruídas, os deuses e os homens
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“Você sofreu pelo conhecimento?”. Isso nos foi pergunta- Não direi que o desastre é absoluto, ao contrário, ele de-
do por Nietzsche, na condição de que nós não menospre- sorienta o absoluto, ele vai e vem, desassossego nômade,
1. A palavra “pas”, em francês, zemos a palavra sofrimento: a submissão, o “passo-não”1 porém com a instantaneidade insensível, mas intensa, do 2. O termo utilizado por Blanchot
comporta estes dois significados:
passo e não. A opção em manter
do absolutamente passivo recuado em relação ao tudo vis- fora, como uma resolução irresistível ou imprevista que é arrière-pensée. Optou-se por
“costas do pensamento” por
os dois sentidos da palavra to, ao tudo conhecer. A menos que o conhecimento, não nos viria do além da decisão. conta da polifonia da palavra
em português foi por conta sendo o do desastre, mas conhecimento como desastre e “costa” na língua portuguesa: ela
da construção textual deste Ler, escrever como se se vivesse sob a vigilância do desas- traz o sentido de algo que está
fragmento de Blanchot: “[…] le por desastre, carregue-nos, deporte-nos, surpreendidos
tre: expostos à passividade para além da paixão. A exalta- atrás, mas ao mesmo tempo é
subissement, le ‘pas’ du tout à por ele, o conhecimento, mas sem que ele nos toque, ao “costa”, é “litoral”. O desastre
fait passif en retrait par rapport ção do esquecimento.
à toute vue, tout connaître.” A cara a cara com a ignorância do desconhecido, assim es- estaria então às costas do
pensamento, mas também no seu
passagem “le ‘pas’ du tout à fait quecendo sem cessar. Não é você que falará; deixe o desastre falar em você, mes- litoral – limiar entre dois campos
passif” poderia ser traduzida mo que seja pelo esquecimento ou pelo silêncio. heterogêneos. E aqui o tradutor
por “o passo do absolutamente O desastre, inquietação do ínfimo, supremacia do aci- refere-se à noção de letra como
passivo”, mas nela também se
dental. Isso nos faz reconhecer que o esquecimento não O desastre já ultrapassou o perigo, mesmo quando esta- litoral, formulada por Jacques
escuta, claramente, a expressão Lacan, em seu texto “Lituraterra”:
“pas du tout” que significa é negativo ou que o negativo não vem depois da afirma- mos sob a ameaça de –. O traço do desastre é que não se “Não é a letra... litoral, mais
“absolutamente não”. Dessa
ção (afirmação negada), mas relaciona-se com o que há de está nunca nesse lugar senão sob sua ameaça e, como tal, propriamente, ou seja, figurando
forma, optou-se por traduzir a que um campo inteiro serve de
palavra “pas” por “passo-não”, mais antigo, com o que viria do longínquo das eras sem ultrapassagem do perigo.
fronteira para o outro, por serem
apostando menos na ideia de um jamais ter sido dado. Pensar,isso seria nomear (chamar) o desastre como as eles estrangeiros, a ponto de
“aí não passo” e mais na noção não serem recíprocos? A borda
de um “passo do não”. É verdade que, em relação ao desastre, morre-se muito costas do pensamento2. do furo do saber, não é isso
que ela desenha? E como é que
tarde. Mas isso não nos dissuade de morrer, convida-nos, Não sei como eu vim de lá, mas é possível que, a partir a psicanálise, se justamente o
escapando do tempo onde é sempre muito tarde, a supor- daí, eu chegue ao pensamento que conduz a se manter à que a letra diz de sua boca “ao
tar a morte inoportuna, sem relação com nada, somente distância do pensamento, pois ele dá isto: a distância. Mas
pé da letra” não lhe conveio
desconhecer, como poderia a
com o desastre como retorno. ir aos confins do pensamento (sob essa espécie de pensa- psicanálise negar que ele existe,
esse furo, posto que, para
Jamais decepcionado, não pela falta de decepção, mas a mento da extremidade, da borda) não é possível somente preenchê-lo, ela recorre a invocar
decepção sendo sempre insuficiente. mudando de pensamento? Daí esta injunção: não mude de nele o gozo?”. (LACAN, Jacques.
Outros escritos. Rio de Janeiro:
pensamento, repita-o, se você puder. Jorge Zahar Ed., 2003. P. 18:
“Lituraterra”).
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O desastre é o dom, ele dá o desastre: é como se ele pas- Uma repetição não religiosa, sem arrependimento nem
sasse além do ser e do não-ser. Ele não é advento (a par- nostalgia, retorno não desejado; o desastre não seria en-
ticularidade do que acontece) – isso não acontece, de tão repetição, afirmação da singularidade do extremo? O
maneira que não alcanço nem mesmo esse pensamento, desastre ou o inverificável, o impróprio.
exceto sem saber, sem a apropriação de um saber. Ou
O esquecimento imóvel (memória do imemoriável): nisto
então ele é advento do que não acontece, daquilo que 3. A passagem em questão é a
se descreve, grita3, o desastre sem desolação, na passivida- seguinte: “[…] en cela se dé-
viria sem chegada, fora do ser, como por deriva? O de-
de de um abandono que não renuncia, não anuncia senão crit le desastre sans désolation
sastre póstumo? […]”. A cisão no verbo “décrire”,
o retorno impróprio. O desastre, nós o conhecemos tal- conjugado na terceira pessoa do
Não pensar: isso, sem retenção, como excesso, na fuga vez por outros nomes talvez jocosos, declinando todas as singular, faz ressaltar um “crit”
que, por ter a mesma sonoridade,
pânica do pensamento. (p. 13) palavras, como se aí pudesse haver, para as palavras, um leva-nos ao “cri”, ao “grito”.
todo.
Dizia-se:você não se matará, seu suicídio o precede. Ou então:
morre-se inapto a morrer. A calma, a queimadura do holocausto, o aniquilamento do meio
dia – a calma do desastre.
O espaço sem limite de um sol que testemunharia não
através do dia, mas pela noite livre de estrelas, noite Ele não está excluído, mas é como alguém que não entra-
múltipla. ria mais em parte alguma.
O desastre não é sombra. Ele se libertaria de tudo se pu- O que é estranho é que a passividade nunca é bastante
desse ter relação com alguém. Nós o conheceríamos em passiva: é aí que podemos falar de um infinito; somente,
termos de linguagem e ao termo de uma linguagem por talvez, porque ela escapa a toda formulação, mas parece
um gai savoir. Mas o desastre é desconhecido, o nome des- que há nela como uma exigência que a chamaria sempre
conhecido pelo qual, mesmo dentro do pensamento, nos a vir aquém dela mesma – não a passividade, mas exigên-
dissuade de ser pensado, distanciando-nos pela proximi- cia da passividade, movimento do passado em direção ao
dade. Somente para se expor ao pensamento do desastre intransponível.
que desfaz a solidão e transborda todo tipo de pensamento 4. No original, encontra-se:
Passividade, paixão, passado, passo-não4
(às vezes negação e “Passivité, passion, passé, pas”.
como a afirmação intensa, silenciosa e desastrosa do fora.
traço, às vezes movimento da caminhada), esse jogo semântico
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