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Ney Ferraz Paiva

O desastre toma conta de tudo


Prêmio Cidade de Belo Horizonte 2016

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Você gosta desse jardim que é seu?
Cuide para que seus filhos não o destruam!
Malcom Lowry, Sob o Vulcão

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À memória de

Carolina Maria de Jesus

Stella do Patrocínio

Lucienne Samôr

4
Para Tony, minha mãe.

5
Seguimos embarcados no navio S. S. Pyrrus rumo ao Oriente,
através do Canal de Suez, a Xangai, Hong Kong, Yokohama,
Singapura e Vladivostoque. A Viagem que Nunca Termina.
___________________

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7
Para Marielle Franco

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ENCONTROS MARÍTIMOS PARA UMA NOVA LITERATURA

Abre os mapas náuticos antes que seja tarde demais


Hans Magnus Enzensberger

Voltai ao mar – você Burroughs está cego no inferno


Já não pode avançar sobre a terra que fora de teu pai
Ela corrói tanto quanto o vento e as tempestades e o silêncio
Poetas não se fazem marinheiros em terra seca ou nas
Rochas ou nas estilhaçadas pirâmides do velho Texas –
Arrancam do mar bem mais do que laranja algodão maconha
Voltai ao mar – você Plath que na turva noite velejaria
Ao cerco derradeiro num labiríntico apartamento sem
Aquecimento só porque este pertencera a W. B. Yeats
A neve cobre terra mais vasta que a cabeça do poeta
Deposita-se como explosivo sobre o oceano Atlântico
Pode-se ter neve em qualquer lugar – nevou em Auschwitz
Voltai ao mar – você Barreto bancando o engomadinho
No início da carreira reconhecido pelo colete aberto no
Umbigo esse buraco negro mal-ajambrado atraindo os
Detritos guarda o entulho o ferro-velho do Império
De colete gravata paletó colarinho retine a impostura
Encalha no hospício na Praia Vermelha teu navio negreiro

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ESCREVER POEMA É UM ATO BÁRBARO

Esta espécie de crime que é escrever


Herberto Helder

Após a guerra se continua a fazer poesia


Não sem o gosto amargo da descrença
Após a guerra se recomeça outra guerra
O poeta recomeça a escrever a guerra
Cada vez é como se fosse a primeira
Mas está no seu sangue por todo corpo
Versos para homens que se matam
À luz de velas em honra aos mortos
Que recomeça o poeta senão a guerra?
Que silêncio recomeça após o silêncio?
Poesia ainda possível em dias de horror
Após Auschwitz não se venderá poesia
Não se vai ao circo nem se faz turismo
Da beleza e alegria não haverá comércio
Após a guerra se continua a fazer poesia

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AOS ASSASSINOS DE RUBENS PAIVA

Como se não tivesse acontecido nada Como se ele pudesse voltar pra casa
E dizer: “foi tudo um mal entendido” Como se vocês pudessem voltar atrás
Lavar as mãos e tocar um instrumento Sem sentir nelas o cheiro do desastre
Sei que vocês eram durões de extrema Sei que vocês jamais se arrependeram
Que não podem sentir falta desse cara Não foram nadar com ele em Ipanema
Também não podem ir ao seu funeral Vejam lá a besteira que vocês fizeram
Ainda que ninguém possa provar nada Foi levado de casa pra casa da morte
Quando eles não voltam estão mortos Entramos numa espera que nunca acaba
Sorte de vocês o país continua injusto Infortúnio dor revolta é o que resta

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NA LINHA LOGO ABAIXO DA LOUCURA

Eu devo ter levado muito soco Na linha logo abaixo da cintura


Nos rins fígado baço como um Cavalo exausto a que Nietzsche
Não pudesse interceder a favor Cavalo que não dá mais para o
Trabalho integralmente dedicado A fazer delicados versos de amor
Discretamente evitado deixado de Lado que não vai mais ao páreo
Agredido numa das ruas de Belém Eu devo ter levado muito soco
Na linha logo abaixo da cintura Nos rins fígado baço como um
Nietzsche exausto a quem um cavalo Não pudesse interceder a favor
Sem crina admirável desnorteado Pra chegar aonde nada mais reluz
Sem sorte de ir à pista pra ganhar Vai leguar sertão afora mais nada
Agredido numa das ruas de Turim Eu devo ter levado muito soco
Na linha logo abaixo da loucura

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UM MUNDO ONDE FOUCAULT POSSA RECLINAR A CABEÇA

A minha cabeça morrerá por último


Samuel Beckett

Um mundo onde Foucault


Possa reclinar a cabeça
Daqui a pouco ou agora
Mesmo antes do avanço
Da insurreição fascista
Um mundo que não pode
Ser esse mundo vigiado
Que prevalece sobre o
Mundo que não se faz
Que não se pode mais
Fazer que se esgotou
Um mundo que ruiu
Bem rápido ignorando
Prenúncios de alguma coisa
Que se quebra na Alemanha
E nos atinge silenciosamente
Sem que se possa consertar
Martela a cabeça de Foucault
Pra não cair no sono enquanto
Caminha adora curtir
Fazer coisas divertidas
Filosofar nadar escrever
Mesmo sem ganhar dinheiro
Agora inteiramente fatigado
Gosta tanto quanto nós
De não constar na folha
De pagamento do medo
Algo que parecesse férias
Um fundo de emergência
Auxílio crédito gratificação
Pelos serviços prestados
Ao Mercado ou à Verdade
Mundo em embalagem dura
Fechado ao enigma da poesia
Cuja validade já passou
Aí ele perderia a cabeça

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BLANCHOT A KOZOVOI

De todo coração a ti
Maurice Blanchot

Ele, Blanchot, recebeu


O livro de Paul Valéry
Traduzido por Kozovoi
– “Quero agradecer” –
Uma carta, um livro
Uma iniciação louca
No ventre da velhice
Começa-se a amizade
Um nunca viu o outro
Mas foram enlaçados
Com devoção irrestrita
De muito longe ressoa
O silêncio que não isola
Abre o coração imensurável
Cartas curam catástrofes
“Precisas de dinheiro?”
“Tens notícia de teu pai?”
“Ira recebeu minha carta?”
“A mãe dela está doente,
É grave?” “O que vais fazer?”
Andar o incessante caminho
Andar também em círculos
Sobre as próprias pegadas
O desgaste do solo é grave
A solidão está logo abaixo
O esquecimento o atraso
Uma ferida que não seca
Considerai essa viagem
A contrapelo à flor da pele
A amizade vela o desastre

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A MORTE NÃO É MUITO CARA

Já tentei o exílio, o silêncio


e a esperteza
Lawrence Ferlinghetti

você aí nesse cubículo


distante
mais para o inferno
que pro paraíso
trapaceando as musas
ah meu caro Ferlinghetti
grande nômade fora-da-lei
deixou-nos como quem vai
tomar um café na Shakespeare & co
não atravessou de forma alguma
o átrio magnífico
do edifício da literatura
como muitos ainda fazem
sempre de volta ao ar livre
aventurando pela calçada
o calcanhar de Mercúrio
mensagens que vêm de toda parte
o não dito do cotidiano
cada qual com seus atributos
é certo
amigos amantes antepassados
cada qual investe o que tem
com o menor risco
mas não o poeta
ele a tudo trapaceia
se calhar você era mesmo
o banqueiro anarquista
sua poesia diz: o que é daquele pode ser deste
não era rico
mas não andava sempre duro
passava troco com os sentidos
recusava subvenções
contrapartida financeira
generosos elogios
a palavra indo-vindo
como um cão-guia

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não se deixava levar por dogmas
rotinas
manuais de como arrumar ideias num saco
recusava-se a pensar no umbigo
sitiar-se pelos livros
contudo bastou dormir
umas poucas vezes com a beleza
pra ser levado direto à bancarrota

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AMAR FAZER DESTRUIR

Cães (viajores de um dia)


Hilda Hilst

não tens escrito


foi o que disseste
desde então nada mais li
de ti nem vi teus quadros
na última exposição
corria o ano de 1999
não fui fiquei num bar
sozinho isso foi um erro
não ir a tua exposição
qual era mesmo o nome?
agrilhoados & vagantes
título baseado em um poema
de um poeta amigo teu
de resto tudo te pertencia ali
foi o que disseram
li nos jornais
já vai adiantado
quem ainda pode saber?
nos jornais palavras não
servem pra mais nada
muito menos pra falar de arte
talvez de crimes gotejando sangue sem parar
leitores querem outra coisa
levantar um pouco o véu & se interrogar
não se curvar diante dos fatos
o coração já não está nem aí
torce o rabo como uma porca
enquanto peço desculpas
fazer um poema pra isso
eu deveria ficar quieto
por certo nem notaste que não fui
encoberto com as linhas
dos teus quadros
olhando-os & andando
a galeria na direção inversa
fuliginosa casa dos exilados
onde nada chega ao fim

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Lupan virtual & veloz guia
dentes heavy metal
assovia ao invés de latir
bebemos muito ali
jogados no sofá da varanda
desfalecidos não morremos
esvaziamos os copos ainda
entramos vivos na simulação
a pele revestida de musgo
tão suave quanto um sapato
movediça abre-se em feridas
calo suor às vezes respira-se
poros fermentados desatam a falar
tamanha transparência das coisas
– cerimônias do êxtase –
teus quadros permitem afrontar a vida
agitá-la numa guerra interior
adversa individual alternativa
agrilhoados & vagantes
exaustos horas a fio
acostados ao redor das mesas
Bar do Parque repleto de
amor ironia indignação
aos mortais sacia as suas penas
fortes bafios de urina & cerveja
putas desfilam de pé sobre cavalos
saídas do fosso da noite
lambei lambei cães
o sal das palavras
ainda não mortas
até que tudo apodreça

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O FAROL ATRAI A TEMPESTADE

Submergir pelas matas ou nas ondas do mar


Hélio Oiticica

marinheiro de segunda classe


sem nome nem pertences
sempre mudando para mais longe
efeitos de introversão
filiado ao sindicato dos marítimos
ainda que por lá já não militem marujos tão bons
Billy Budd Paul Bowles Basil Bunting
digo pra mim mesmo
quero mais tempo pra ler/ escrever
flutuar no éter das distâncias
algures & aqui nesta deriva
palavras resgatam velhas pegadas
incontáveis tropeços
saem pela boca
vísceras do dia
aberrante lugar da escrita
tentar fingir pra si mesmo
um caminho de fuga
depois da brumosa chuva
a cidade se contempla pelo avesso
um caos de detritos
ruína de navio ao largo
um tipo de luto
cidade oculta na sucessão de ruas
corredores fechadas janelas
estreitos desfiladeiros
não existe mais
nada sobrou
do seu próprio cadáver
pelos becos corriam cavalos
terrenos baldios
cemitérios de cães carros
até avião tinha
construíram aeroporto perto dali
– sim às vezes se foge
nomadismo & vagabundagem
tempo em que não existia rua avenida

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dizia-se “estrada velha do aeroporto”
torpor de hélices arremetendo
nasci/ cresci ali agora mesmo
tudo leva o tempo de um segredo
passou/ passei veio o silêncio
inerte entre os escombros
desterrado perdido acuado
à espera de um hipotético barco
na avenida descarrega-se
o delírio da cidade
desenfreadas procissões
pastoreiam pés descalços
o pecado o pecado
círculos sucessivos
a que sempre se volta
engastados numa corda
sem saúde nem saída
reticências reticências
a mala cheia de papéis
entre Recife & Belém
uma rota pra náufragos
distâncias engolem/ vomitam
flamejam sobre mim
afogado no silêncio-uivo
à margem de um rio
escritor de leitor algum
a coisa mais estranha é a indiferença
tua mão certa vez na estante
à procura de um livro meu
não saem da minha cabeça os detalhes
teus dedos virando a página
– não é fácil achar
um livro entre outros
talvez ensaio montagem
sem início & fim solenes
tateavas percorrias dorso/ crina
cabelos branco-açucarados
exumados revivescidos
bailavam saiam de mim
puxavas manobravas
a teia áspera do poema

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COMO SERIA DE SE ESPERAR DE TRAMAS FANTASIOSAS

Outra noite no Teatro da Paz


a Companhia Usina do Sabão
declarou estar sendo perseguida
pelo secretário vitalício de cultura

Que nova cena pode se abrir?


não lembro mais do espetáculo
mas a fala que me ficou foi essa
“na cidade nenhuma bilheteria paga
o perfume de estrelas prodigiosas”

Olhei cobicei a nudez das atrizes


a carne os seios eretos
sob os efeitos da iluminação
e foi isso a peça me pareceu confusa
linguagem trocada por falas neutras

No intervalo saí pra um próximo trago


o mundo das artes de tão cretino
só se consegue comprar mordaças
ofereci a uma amiga
que óbvio não quis

Ontem um dia antes


um dia mais tarde
nada se consumou
tentativa malograda
de transpor fronteiras

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LEGADO

quando jovem só gostava da fotografia


pelas bordas
antes dos cinquenta quase não aparecia
em lugar algum
longos & permanentes dias incandescentes
às vezes álacres
turvos pela guerra máquina ditadura
buscavas o caminho que não te daria sentido
quando te conheci já eras um cão de rua
Bar do Parque 3x4 Marahu
arrastavas todos ao inferno com a tua presença
o cigarro a poesia o álcool vinham mudando teu corpo
os livros que falavas eu os roubava na Livraria Jinkings

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A EFICÁCIA DO ÍCONE

ao meu lado
entusiasmado
escutando Vivaldi
tendo visto
tudo nessa vida
você escrevia
caneta bic preta
lugar reservado ao remetente:
Um velho safado

a carta lacônica
não burocrática
emprenhando
pelos ouvidos
dizia:
Buceta tem que ser cabeluda
ramos pra fora do vaso
flor aberta na lapela
de cara escancarada
barba negra a vulva
pequenos grandes lábios
vermelhos – formam
uma ilha
a casa do escaravelho

não sei se pensava em Courbet


ou nas putas da Condor
à maneira de um catálogo pornô
difundia naqueles
dias de horror
a explosão da poesia

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NO CORAÇÃO DESCONCERTANTE DA CABANA

onde farei a minha cabana


e esperarei o apocalipse?
antes essa pergunta soava
com perplexidade calafrio
trombetas designavam a manhã
traziam mensagens dos céus
labaredas à cabeça de Orfeu
a cabana que vou construir
barco pra vagar na limpidez
ou pelo interior de grutas
certa curvatura de enseada
pra chegar perto de você
pela porta secreta do esconderijo
Em Paris Vancouver Belém
cabana com paredes falsas
prorrogada aberta ao mar
alçapão quarto emboscada
Seis passeios pelos bosques da ficção
ou pelo Rodrigues Alves
a passante vem à deriva
insone desce as escadas
farto café fumo amizade
escassa bagagem dinheiro
levarei minha biblioteca
o cativo tigre da Coréia
a vitrola a música a cor
penetro adentro a cabana
espaço imprevisto do gozo

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NA IMPOSSIBILIDADE DE UM RETRATO DE MAX MARTINS
COMO FARIA FRANCIS BACON OU PAULO PONTE SOUZA

usaste todas as sete faces depressa demais


aos noventa anos o que resta?
esperamos que estejas bem na Tartária longínqua
ou em Marahu ou em Michigan
Murilo te enviou um telegrama
não sabe que não subiste nem
para onde desceste e te propõe uma visita a Roma
deixaste os caminhos abertos
desempacotados manuscritos
diários notas cartas
voltas da tua própria mudez
aos saberes que não se sabe
a escrita pode incluir a vida
deslinguada não vetar nada
ferver a beleza encová-la
em seu próprio esplendor
na impossibilidade de um retrato como
faria Francis Bacon ou Paulo Ponte Souza
recorro a certos closes que
não te refletem ou variações
cortes bruscos algum vestígio
traços de assíduas feridas
enraizadas abertas tua sina
tantas vezes tentaste cortar a garganta do poema
evitando fazer muita sujeira
e mostravas transfixado o que não se extingue

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MÁRIO FAUSTINO VOLTA A BELÉM PELA ÚLTIMA VEZ

Aqui estão vossos guizos, vossos confetti.


Ide! Rejuvenescei as coisas!
Ezra Pound, Saudação Segunda, Tradução de Mário Faustino

voando em pedaços
mandado pelos ares
sem deixar o menor rastro
como em um atentado terrorista
o tempo Mário não ri ou chora
à nossa volta
o tempo não olha pra trás
fecha aos pássaros o ferrolho
um périplo de vespas

a juventude se desgasta à queima-roupa


céu terra inferno se encontram
acorrentada compassadamente
ele prossegue
amante esquartejado
– a morte corta os Andes
fede a carne descomposta –

o verbo selvagem remonta


em que lugar
o indefectível relógio Cartier que usavas
nem radares nem sismógrafos indicam
pisas pela última vez a terra – como não
irromper um grito?

nem a bala nem a navalha te assassinam


algo de horror
a noite intolerável evocas
pilhas de livro e disco rangem a um canto
o barulho da chave do amante na porta
os detritos as abafadas penumbras
jogavas com os arcanos da linguagem
o nada & a morte
arriscavas todos os teus dedos
– estavas sempre ganhando

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mário os limites do céu mudaram
ali o que cai aqui o que cresce
sem oscilar um milímetro
o tempo cruza
a linha da chuva
Cérbero surge
salta à frente
devora novas línguas
sem se contentar
com o que vem
com o que está vindo
vibrar a madrugada

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JULHO DEVO VIAJAR

penso se devo tirar férias


se devo me aposentar
trabalhei duro nestes
versos com o corpo todo
devo viajar comprar
música pop on-line?
como sabem que estou
interessado? como me
observam? devo
trabalhar ainda mais
ou andar de bicicleta?
seria então isso a viagem?
esta espera este impasse?
o que deve entrar nos
meus versos empenho-me no
ato de escrever um romance?
a quem tomaria como modelo
Proust Joyce Kafka Machado?
seria ou não seria esse o caso?
devo procurar em outro lugar
chave a que não tenho acesso
enxerto paisagens mortas
realidades longas inertes
em que me perco de vista
deserta despovoada pele
devo ir de visita a Ítaca
devo perder lá o coração
desaparecer sem deixar
notícia um corte súbito
talvez por alguns anos
outra passagem de ar
anteprojetos de escrita
todas as outras coisas
das quais devo me livrar
sei que não quero estar
aqui pra que meus lábios

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ressequem rachem mudos
nem ser guiado pra algum
destino já traçado mapeado
percorrer falsas promessas
amar o mar como Melville

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NÃO VÃO ME VER MAIS

ligo pra Glauber Rocha


hospitalizado em Portugal
desde 6 de agosto de 1981
ele vai morrer em dez dias
a luz solar a força eólica
a biomassa o gás a água
com problemas bronco-pulmonares
“você está preparado pra morrer?”
ele pergunta e ri escandalosamente
do meu silêncio da minha pena
devo ter baixado os olhos
engolido em seco o momento
daquela extravagância
que nele era tão normal
não poderia deixar de ser
queria colocar tudo abaixo
demolir abater desbaratar
dinamitar a marca Hollywood s/a
pela qual nutria aversão extrema
ocultou como pôde sua intrínseca fragilidade
acrobata do choque quebra espaços distantes
anjo naufragado à deriva cão demônio abutre
serpente dragão lagarto enormemente vários
“vão pensar o pior de mim mas não vão me esquecer”
tinha de si mesmo as próprias miragens
“se voltar a pôr os pés no Brasil
vou tirar a roupa e me masturbar
em praça pública”
queria se livrar de um fardo
e deixar um rastro
não ia ficar acuado esfolado vivo
jogado na vala comum do medo
“é claro que você sabe que não está preparado”
fiquei sem responder o que
ele também não podia saber
um silêncio que vem das entranhas
quando o que resta é aderir ao erro

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NÃO HÁ PAÍS PARA OS POETAS

escrevo à mão
jogo sinuca
telegrafo numa
sala minúscula
vou forjando tudo
tudo está em jogo
não discorro
sobre os motivos
não escondo
o tom de decepção
com o qual
enxergo a vida
hesito chamar
você de grande
amigo
amizade é uma
pequeneza
uma dor cruza
a minha cabeça
como um cruzado
no queixo
aplicado há anos
de distância
não dependo
da visão dos outros
dono da minha
própria cegueira
peço ao amigo
que queime
meus livros
a mim conceda
que me esqueça
entro no universo
das sereias
pelo prazer
extremo de cair

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DESTERRO

onde nasci? em Estranha


Maura Lopes Cançado
é a minha mais esquisita
conterrânea
lá as mulheres não enlouquecem
por castigo divino
trocam e-mails impublicáveis com o primo
têm um elefante solto na cabeça
Onze Mil Varas de Apollinaire
num pendrive

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POR DENTRO DOS NERVOS DA PALAVRA

sonhei que Maura era minha mãe


não suportei muito essa descoberta
o rosto dela era um filme em preto
& branco
será que os críticos estavam cegos?
será que os atores estavam gagos?
com certeza eu confundi as cartas
remetidas sempre de um hospício
batidas sempre na mesma tecla
fita furtada para a Remington
só confiava na máquina de escrever
pra conversação
pra confabular
sem uma única rasura
continuar o périplo
como amantes
confidentes
você se vira
por impulso
você virá
persiste
descarada
descobre
como estou
nesse momento
mudou tudo
vetusta
aterrissa
sobre as casas
desembarcam
dúvidas dúvidas
os restos mortais

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CHELSEA HOTEL MAIO DE 1971

no decorrer de uma manhã de brincadeiras


como num filme de Hitchcock
você me deu uma faca
o suspense entre nós estava criado
sob o chuveiro você convida
atenta ao perigo que a cerca
a faca risca a cena
obriga o corpo a essa tarefa delicada
de olhos vendados
passo a marcar você
a dor se abre como uma árvore
mão suspensa no ar
tudo que vai colher
deixo todos os traços da minha passagem
a febre o corte o rasgo

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CITAÇÕES FORA DO CONTEXTO

Jean Baudrillard disse: no Brasil vigora o charme


epifanias de acontecimentos ilusões espaciais cobiças
Andy Warhol tanto adorava a caligrafia da mãe que
sua obra Redescobrimento do Brasil foi assinada pela mãe do artista
abria-se o guarda-louça da arte canibal pras latas de Sopa Campbell
depois fomos enfiando devorando Marilyn no leito da casa patriarcal
a história do Brasil é uma instalação interativa
todas as coisas vão se constituindo
o Grande Jogo de Cartas Marcadas
ninguém joga o nada & a morte
o país do futuro por 15 minutos
original banal sujo decadente
não passa: colide bate-volta

35
O NEGRO ESTÁ SOB SUA PRÓPRIA CÚPULA DE CÉU

A Lima Barreto

o negro pode ser


um bom desportista
o negro deve correr
abaixo de dez segundos
não interessa se lavou
prato ou carregou pedra
o negro pode ser bom
de porrada derrubar
o oponente (outro negro)
no primeiro round
a torcida não vai
se importar com isso
o negro pode ser um cavalo
fazer pequenos fretes
na Avenida Paulista
de forma que todo executivo
tenha pra onde
lançar o sorriso como
quem se livra de um sofá
o negro faz bom negócio
se consegue comer
uma vez por dia
sem arrumar confusão
com a polícia
o negro não pode perder
o espírito esportivo
com o declínio do
capitalismo financeiro
sem cotas bolsa família
carteira assinada
salário desemprego
aposentadoria
o negro tem que ser
bom de drible
não se perguntar

36
pelo sentido da vida
o negro tem que
viver de brisa
de cifra modesta
como o poeta
não transgredir
com a sua admirável
vocação de artista

37
MORTOS POR DESVENTURA

___________________________

Eu vou morrer, mas


isso é tudo o que farei pela Morte.
Edna St. Vincent Millay

38
Para Pagu

39
BIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA

Enquanto quis ternura que tivesse


Luís Vaz de Camões

Gregory Corso
morreu em 2001
em silêncio
na Horatio Street
pra morrer
basta estar vivo
se beber já não
o tivesse matado
teria morrido de estranheza
saltado do precipício
um paredão de granito
acelerando pra baixo
mas foi sempre
muito bem
sucedido em todos
os seus saltos
não sei como
andava da sua falta
de amabilidade
70 anos aquela
aura de vida
não era uma metáfora
sobre o dorso disforme
os pés despencando
a poeira cobria tudo
coração olhos
ossos tíbios
ressequidos
sei que andava muito
fatigado
não sei como
estariam seus glúteos
se está vivo
o poeta mostra
a bunda pro mundo
enquanto a rua alicia
mete os sapatos

40
não segue nem recua
sei que com 25 anos
se apaixonou por
Shelley Chatterton Rimbaud
odiava os poetas velhos
mãos nodosas mecânicas insípidas
algo de semelhante se pode
afirmar de uma puta
pra quem o interesse
primeiro não está na poesia
descuidado da literatura
fez negócios com o desastre
vendedor de livros
filmes CDs piratas
fotógrafo de bebê porta a porta
humilde abnegação
poderosa capacidade de cultura
pra enganar os olhos
ensinar deleitar comover

41
DETETIVE SEM MISTÉRIO

Bolaño falou
a última vez
numa entrevista
à revista Playboy
desceu à frivolidade
não aceitou
maquiagem
photoshop
cortar cabelo
untar de perfume
manias outros
desleixos literários
escandalizou
líricos suicidas
quando disse
que escrevia pra
conquistar
mulheres fáceis
comia feijão com
arroz todo dia
não era assim
tão bom de garfo
mas se escrevia
enquanto bebia
tudo facilmente
reconhecível ontem
despistava hoje
detetive sem mistério
desenrolava a trama
dava pro gasto

42
ABOMINÁVEL CLARICE

esquiando na Suíça
avessa a qualquer exagero
delicado difícil equilíbrio
não pisoteia a neve
não espera um guia
consegue parar fixa
leve parece meditar
a face barbeada da
mulher barbada tão
abominável com um sorriso
para que sombra se evade?
leva o incerto na esportiva

43
UM LUSTRE PARA VIRGÍNIA

de novo naquele quarto


os móveis desertavam
silêncio emaranhado abalava
a casa por todos os lados
suada quente & quadrada
cobria-nos ramificava-se
de volta às paredes
gastas pálidas abafadas
pulmões quase blindados
retomamos súbito fôlego
tardes roendo por dentro
subiam sinuosas revivescidas
– névoa sexo náusea –
muro & musgo pelos pés
a noite rangia degenerada
sobre a cama apagava
atrás de si remotos rastros
da carnificina era feita a palavra
sem aviso sem convite prévio
só sangue desmesurado
de volta naquele quarto
cada corte cada rasgo
cada cicatriz deixada

44
ERA UMA VEZ FERNANDO DINIZ

quis ser vilão de história em quadrinhos


anjo de rua com plumagem de pássaros
– isso de qualquer forma acabou sendo
paisagens estriadas desertos bifurcados
face selvagem martelada no painel caos
de longeva infância & breve vida adulta
tipo exato de louco que se quis moldar
pedra borboleta margarida estrela
a razão limbo incerto da alvorada

45
ISTO NÃO É UM NECROLÓGIO

Pois é, vim até aqui tateando a muito custo


Yi Sáng

vanglorio-me dos erros


doenças escárnios
a história dos meus desastres
valeria mais que a história
do país da cidade?
o pequeno lugar me excede
não sou aquele que sou
um bêbado protagoniza
imagens que de mim não existem
tudo já está vivenciado
fotografado exaurido
a um passo de desistir
o real não existe
demarcado por
arame farpado
é outro que soa
palavra maligna
olvidada lei da escrita
simula o mesmo que sou –
símile de Judas

46
23 DE JANEIRO

aprendi com meu filho de dez anos


que a poesia é a descoberta
das coisas asfixiadas na fita da máquina
de escrever de Sylvia Plath

47
FRAGILE

ó filha de Ícaro
não aprovo quando sentas
tão distraidamente com outro cara
leias pra ele dividas o mesmo prato
não me dizes pra ser prudente
pros pés tocarem sempre o solo
e alinhando o corpo com a lua
desvie a grandes passos do Egeu

48
CACASO AO ACASO

fui amigo do Cacaso o Antônio Carlos de Brito


de Uberaba que nem eu que morou
encostadinho à fazenda do meu avô
levávamos uma vida excitante de moleque
depois ela foi se abrindo como um abcesso
li dois ou três livros dele deixe-me ver:
Mar de Mineiro Lero Lero Segunda Classe
Beijo na Boca Jogos Florais – eita foram cinco!
Palavra Cerzida não li por causa do prefácio do
José Guilherme Merquior de quem sempre fomos inimigos
tem sujeito que peleja sempre contra as mesmas coisas
dentro do pequeno ringue iluminado
o mundo dos livros fica sem conserto
disque tem rua com nome do Cacaso em Jacarepaguá
isso não é Uberaba não é Rio de Janeiro
convivemos mais pacificamente com ditadores que com poetas
Uberaba e a crítica teimam em ficar do jeito que sempre foram

49
COISAS COMO ÁLBUNS DE FAMÍLIA

De repente os retratos escapam


encurralados no álbum de fotografia
que Dubravka Ugresic comprou
por menos de um florim na feira

Fogem sorrateiros dois meninos


a bailarina o bebê duas vedetes
a noiva que podia ter tido um par
em qualquer parte todavia está só

Quem são que poderão fazer aqui?


por que ninguém nunca os rasgou?
os transeuntes & os cães tentam
trazê-los de volta ao mundo secreto

Anônimo marginal meticulosamente


transportado numa mala de parcos
haveres do ano improvisado de 1945
repleta de erro de enguiço do tempo

50
RETRATO FALADO DE RADUAN NASSAR

Raduan Nassar completou 80 anos


vamos à fazenda Lagoa do Sino
fotografá-lo já que não se pode ouvir
uma pista um pouco à deriva da silhueta
que permita o retrato falado de Bartleby

Sabemos que pra uma palavrinha


sobre literatura ele fica sem jeito
infactível escapa desaparece some
não pra voltar mas pra sair da escrita
tentar deixá-la caminhar sozinha

Vamos fotografar o silêncio de


Raduan Nassar papo encerrado
esgarçar o máximo o censurado
fazemos a foto sem trocar palavra
saímos porteira à fora pela tangente

51
NO SILÊNCIO E PELO SILÊNCIO

Anne Sexton começou a escrever


pra não se matar pra voltar à vida
invejo que não tenha conseguido

52
POEMA DE ANIVERSÁRIO DE EVANDRO NASCIMENTO
SÁBIO PEREGRINADOR DAS PASSAGENS

agora são setenta Evandros


– alcateia horda bando –
seres das passagens submersas
no primeiro trago se estropiam
uma banda dele sobe ao Paraíso
outra bêbada desce o Precipício
sem se beliscar pra ver se vive
os efeitos especiais de Rimbaud
viaja sonâmbulo entre Abissínias
porcelanas vidros labirintos
são setenta uns para os outros
são setenta o lado mau ou bom
são setenta um em um em um
mortos na linguagem sem estirpe
– matilha malta récua –
e tudo é clímax desastre réstia

53
FOI UM SUICÍDIO LONGAMENTE PREMEDITADO

minha cabeça
deve explodir
por esses dias
há também a
hora do infortúnio
há também o
interior do espanto
até lá devo escrever
aquelas memórias
que ficaram nubladas
no horizonte
eclipsadas
no último toque
do meu pai
filósofo famoso
tímido franco
impiedoso
que há muito
foi morar pela Europa
entre esses anos
se passaram coisas
a filosofia problematiza
franze a testa
mas não transmite
nenhuma verdade
há pessoas que vivem
simplesmente
fechadas num livro
de contabilidade
vitrine ou palco
a juventude no caminho
da zona de salto
uma ligação cada vez menos
íntima com os
acontecimentos reais
um amontoado de exílios

54
o mundo é um lugar distante
esta treva selvagem
na simulação na dissuasão
no território invadido
o discurso enfrenta Deus

55
HÁ UM FERNANDO PESSOA EM MIM QUE DEUS ME DISSE

tive sempre o mesmo pai


a mesma mãe eu que fui vário
nascemos como as pedras
com todos os sexos
por esse rio turbulento
meu coração dá as ordens
cortejando seres à deriva
saídos da rede de esgoto
ou das redes sociais
exalações de proporções
homéricas poluídas
indiagnosticáveis desejos
meu horóscopo é o mesmo
de Fernando Pessoa
impostas certas
cláusulas contratuais
essa merda não tem jeito
o parentesco não
me serve de nada
um a um eu os vi
morrer todos eles
gagos de voz & de mão
sem uma saída
viva pra vida

56
A TODOS VOCÊS

num transatlântico
à margem do mundo
meus olhos mal podem
diferenciar os caminhos
se vou a Galápagos
a milhas de distância
ou ao supermercado
pela calçada com as crianças
ou com monstros ultramarinos
sobre a cidade tudo que sei
é que rui eletrizantemente
minha casa ameaça desabar
Kruschev invadiu Budapeste?
Soyinka escapou aos pelotões
de execução na Nigéria?
o que mais está por cair
esmagar o que eu era
quem irei me tornar
um dia poderei voltar?
resgatar meus filhos?
mudada até os ossos
estou muito desmunida
se afundar no mar
no abismo incompreensível
seria um regresso?

57
CÃES DE CAÇA
_________________

Os cães são os que morrem de


fome ao pé da mesa do banquete.
Adília Lopes

58
Para Hilda Hilst

59
NOTAS SOBRE UM SONHO

no centro a aranha espera


Orides Fontela

Dia e noite deitado ou de pé


Entre os poderes das trevas
E da luz tenho sonhado com
Aranhas que se conectam sem
Fio a meu silêncio a minha sombra
Como se fossem eu próprio
Não param de se deslocar um
Cerco entrechocante ímpeto
Numa língua incerta acrobata
Venenoso ruído sismografado
Centrífugo elas avançam ouço
Seus pés o levante implacável
Máquinas temidas hipertélicas
O que querem? O que levam?
Tenho vivido de cigarros do
Odor adocicado das cantinas
Agarrado a umas duas garrafas
Folheado livros na biblioteca
Não estão nem aí me põem a nu
Imerso em um pesadelo acordado
Tomam-me de assalto emparedam
Não são propriamente deste mundo
Vetustas encenam o tempo todo
O tom a nuance de seus gestos
Traçam o campo de um impasse
Posso ouvir mas nada entendo
Posso imediatamente zerar tudo
Recorro à esquiva parto pra briga
Aranhas vão dar a estocada final

60
O RELES E O CACHORRO

Franz Kafka tinha um cachorro


Que poucos souberam o nome
Nem sempre estavam fazendo
As mesmas coisas um cão de
Nenhuma raça ladrão habituado
Em esgoto ignorava os silêncios
Que tanto estimulavam o dono
Não era um parasita não metia
Absorto o focinho na literatura
Não temia o risco de levar por
Trás um chute nas costelas por
Amizade um canto um osso
Kafka sentia-se acorrentado
A uma aberração irreversível
Andava sempre tão pra baixo
Esperava que seu cão pudesse
Protegê-lo sem que nada houvesse
A ser feito nem mesmo latir morder
Estava fora de caso terminar bem
Não podia ter mais alguma saúde
Não podia dar um passo adiante
Não podia se virar na imundície
Vetado todo contato com a vida
Manteve-se murcho intumescido
Ora fosse ele o animal que fosse

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MATEI ONTEM DURANTE A CHUVA UM CACHORRO PRETO

Matei ontem um cachorro preto


Eu me preparava pra ouvir você
Pego o telefone o cachorro avança
Ouço cada pata o latido crescente
O que faria? O que poderia fazer?
Contra os dentes nenhum muro
Nem de levinho um cavaquinho
Pra desviar o salto sobre mim
O ataque em brados irrompendo
Sofro por causa do modo
Como a chuva me esgota
Primeira verdadeira infelicidade
Inevitável como o dia seguinte
Chuva & cão se digladiam
Entram nos lugares mais fechados
Surpreendem tudo fica de través
Não tem espaço pra mais nada
Ouço cada pata cada gota d’água
Nenhum dos dois abranda o ataque
– cada vez mais bruto cru frontal –
Detalhes da cena de um assassinato
Na peça no filme no quadro
Tento escapar pelo piso interminável
Enroscado em um ninho de livros
Cobertores páginas manuscritos
A imensa habilidade técnica do cão
Ameaça-me por algo que só ele sabe
De forma cristalina límpida viril
O cão avança a chuva me adoece
Percebem o que está acontecendo?

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S. S. Pyrrus como um navio dentro de uma garrafa

E o tempo todo eu sabia que


deveria me lembrar de algo...
algo que alguém tinha dito...
mas eu tinha esquecido o que era.
Igmar Bergman, Vergonha, sequência final, 1968.

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