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Você gosta desse jardim que é seu?
Cuide para que seus filhos não o destruam!
Malcom Lowry, Sob o Vulcão
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À memória de
Stella do Patrocínio
Lucienne Samôr
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Para Tony, minha mãe.
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Seguimos embarcados no navio S. S. Pyrrus rumo ao Oriente,
através do Canal de Suez, a Xangai, Hong Kong, Yokohama,
Singapura e Vladivostoque. A Viagem que Nunca Termina.
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Para Marielle Franco
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ENCONTROS MARÍTIMOS PARA UMA NOVA LITERATURA
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ESCREVER POEMA É UM ATO BÁRBARO
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AOS ASSASSINOS DE RUBENS PAIVA
Como se não tivesse acontecido nada Como se ele pudesse voltar pra casa
E dizer: “foi tudo um mal entendido” Como se vocês pudessem voltar atrás
Lavar as mãos e tocar um instrumento Sem sentir nelas o cheiro do desastre
Sei que vocês eram durões de extrema Sei que vocês jamais se arrependeram
Que não podem sentir falta desse cara Não foram nadar com ele em Ipanema
Também não podem ir ao seu funeral Vejam lá a besteira que vocês fizeram
Ainda que ninguém possa provar nada Foi levado de casa pra casa da morte
Quando eles não voltam estão mortos Entramos numa espera que nunca acaba
Sorte de vocês o país continua injusto Infortúnio dor revolta é o que resta
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NA LINHA LOGO ABAIXO DA LOUCURA
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UM MUNDO ONDE FOUCAULT POSSA RECLINAR A CABEÇA
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BLANCHOT A KOZOVOI
De todo coração a ti
Maurice Blanchot
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A MORTE NÃO É MUITO CARA
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não se deixava levar por dogmas
rotinas
manuais de como arrumar ideias num saco
recusava-se a pensar no umbigo
sitiar-se pelos livros
contudo bastou dormir
umas poucas vezes com a beleza
pra ser levado direto à bancarrota
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AMAR FAZER DESTRUIR
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Lupan virtual & veloz guia
dentes heavy metal
assovia ao invés de latir
bebemos muito ali
jogados no sofá da varanda
desfalecidos não morremos
esvaziamos os copos ainda
entramos vivos na simulação
a pele revestida de musgo
tão suave quanto um sapato
movediça abre-se em feridas
calo suor às vezes respira-se
poros fermentados desatam a falar
tamanha transparência das coisas
– cerimônias do êxtase –
teus quadros permitem afrontar a vida
agitá-la numa guerra interior
adversa individual alternativa
agrilhoados & vagantes
exaustos horas a fio
acostados ao redor das mesas
Bar do Parque repleto de
amor ironia indignação
aos mortais sacia as suas penas
fortes bafios de urina & cerveja
putas desfilam de pé sobre cavalos
saídas do fosso da noite
lambei lambei cães
o sal das palavras
ainda não mortas
até que tudo apodreça
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O FAROL ATRAI A TEMPESTADE
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dizia-se “estrada velha do aeroporto”
torpor de hélices arremetendo
nasci/ cresci ali agora mesmo
tudo leva o tempo de um segredo
passou/ passei veio o silêncio
inerte entre os escombros
desterrado perdido acuado
à espera de um hipotético barco
na avenida descarrega-se
o delírio da cidade
desenfreadas procissões
pastoreiam pés descalços
o pecado o pecado
círculos sucessivos
a que sempre se volta
engastados numa corda
sem saúde nem saída
reticências reticências
a mala cheia de papéis
entre Recife & Belém
uma rota pra náufragos
distâncias engolem/ vomitam
flamejam sobre mim
afogado no silêncio-uivo
à margem de um rio
escritor de leitor algum
a coisa mais estranha é a indiferença
tua mão certa vez na estante
à procura de um livro meu
não saem da minha cabeça os detalhes
teus dedos virando a página
– não é fácil achar
um livro entre outros
talvez ensaio montagem
sem início & fim solenes
tateavas percorrias dorso/ crina
cabelos branco-açucarados
exumados revivescidos
bailavam saiam de mim
puxavas manobravas
a teia áspera do poema
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COMO SERIA DE SE ESPERAR DE TRAMAS FANTASIOSAS
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LEGADO
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A EFICÁCIA DO ÍCONE
ao meu lado
entusiasmado
escutando Vivaldi
tendo visto
tudo nessa vida
você escrevia
caneta bic preta
lugar reservado ao remetente:
Um velho safado
a carta lacônica
não burocrática
emprenhando
pelos ouvidos
dizia:
Buceta tem que ser cabeluda
ramos pra fora do vaso
flor aberta na lapela
de cara escancarada
barba negra a vulva
pequenos grandes lábios
vermelhos – formam
uma ilha
a casa do escaravelho
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NO CORAÇÃO DESCONCERTANTE DA CABANA
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NA IMPOSSIBILIDADE DE UM RETRATO DE MAX MARTINS
COMO FARIA FRANCIS BACON OU PAULO PONTE SOUZA
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MÁRIO FAUSTINO VOLTA A BELÉM PELA ÚLTIMA VEZ
voando em pedaços
mandado pelos ares
sem deixar o menor rastro
como em um atentado terrorista
o tempo Mário não ri ou chora
à nossa volta
o tempo não olha pra trás
fecha aos pássaros o ferrolho
um périplo de vespas
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mário os limites do céu mudaram
ali o que cai aqui o que cresce
sem oscilar um milímetro
o tempo cruza
a linha da chuva
Cérbero surge
salta à frente
devora novas línguas
sem se contentar
com o que vem
com o que está vindo
vibrar a madrugada
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JULHO DEVO VIAJAR
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ressequem rachem mudos
nem ser guiado pra algum
destino já traçado mapeado
percorrer falsas promessas
amar o mar como Melville
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NÃO VÃO ME VER MAIS
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NÃO HÁ PAÍS PARA OS POETAS
escrevo à mão
jogo sinuca
telegrafo numa
sala minúscula
vou forjando tudo
tudo está em jogo
não discorro
sobre os motivos
não escondo
o tom de decepção
com o qual
enxergo a vida
hesito chamar
você de grande
amigo
amizade é uma
pequeneza
uma dor cruza
a minha cabeça
como um cruzado
no queixo
aplicado há anos
de distância
não dependo
da visão dos outros
dono da minha
própria cegueira
peço ao amigo
que queime
meus livros
a mim conceda
que me esqueça
entro no universo
das sereias
pelo prazer
extremo de cair
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DESTERRO
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POR DENTRO DOS NERVOS DA PALAVRA
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CHELSEA HOTEL MAIO DE 1971
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CITAÇÕES FORA DO CONTEXTO
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O NEGRO ESTÁ SOB SUA PRÓPRIA CÚPULA DE CÉU
A Lima Barreto
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pelo sentido da vida
o negro tem que
viver de brisa
de cifra modesta
como o poeta
não transgredir
com a sua admirável
vocação de artista
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MORTOS POR DESVENTURA
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Para Pagu
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BIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA
Gregory Corso
morreu em 2001
em silêncio
na Horatio Street
pra morrer
basta estar vivo
se beber já não
o tivesse matado
teria morrido de estranheza
saltado do precipício
um paredão de granito
acelerando pra baixo
mas foi sempre
muito bem
sucedido em todos
os seus saltos
não sei como
andava da sua falta
de amabilidade
70 anos aquela
aura de vida
não era uma metáfora
sobre o dorso disforme
os pés despencando
a poeira cobria tudo
coração olhos
ossos tíbios
ressequidos
sei que andava muito
fatigado
não sei como
estariam seus glúteos
se está vivo
o poeta mostra
a bunda pro mundo
enquanto a rua alicia
mete os sapatos
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não segue nem recua
sei que com 25 anos
se apaixonou por
Shelley Chatterton Rimbaud
odiava os poetas velhos
mãos nodosas mecânicas insípidas
algo de semelhante se pode
afirmar de uma puta
pra quem o interesse
primeiro não está na poesia
descuidado da literatura
fez negócios com o desastre
vendedor de livros
filmes CDs piratas
fotógrafo de bebê porta a porta
humilde abnegação
poderosa capacidade de cultura
pra enganar os olhos
ensinar deleitar comover
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DETETIVE SEM MISTÉRIO
Bolaño falou
a última vez
numa entrevista
à revista Playboy
desceu à frivolidade
não aceitou
maquiagem
photoshop
cortar cabelo
untar de perfume
manias outros
desleixos literários
escandalizou
líricos suicidas
quando disse
que escrevia pra
conquistar
mulheres fáceis
comia feijão com
arroz todo dia
não era assim
tão bom de garfo
mas se escrevia
enquanto bebia
tudo facilmente
reconhecível ontem
despistava hoje
detetive sem mistério
desenrolava a trama
dava pro gasto
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ABOMINÁVEL CLARICE
esquiando na Suíça
avessa a qualquer exagero
delicado difícil equilíbrio
não pisoteia a neve
não espera um guia
consegue parar fixa
leve parece meditar
a face barbeada da
mulher barbada tão
abominável com um sorriso
para que sombra se evade?
leva o incerto na esportiva
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UM LUSTRE PARA VIRGÍNIA
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ERA UMA VEZ FERNANDO DINIZ
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ISTO NÃO É UM NECROLÓGIO
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23 DE JANEIRO
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FRAGILE
ó filha de Ícaro
não aprovo quando sentas
tão distraidamente com outro cara
leias pra ele dividas o mesmo prato
não me dizes pra ser prudente
pros pés tocarem sempre o solo
e alinhando o corpo com a lua
desvie a grandes passos do Egeu
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CACASO AO ACASO
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COISAS COMO ÁLBUNS DE FAMÍLIA
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RETRATO FALADO DE RADUAN NASSAR
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NO SILÊNCIO E PELO SILÊNCIO
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POEMA DE ANIVERSÁRIO DE EVANDRO NASCIMENTO
SÁBIO PEREGRINADOR DAS PASSAGENS
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FOI UM SUICÍDIO LONGAMENTE PREMEDITADO
minha cabeça
deve explodir
por esses dias
há também a
hora do infortúnio
há também o
interior do espanto
até lá devo escrever
aquelas memórias
que ficaram nubladas
no horizonte
eclipsadas
no último toque
do meu pai
filósofo famoso
tímido franco
impiedoso
que há muito
foi morar pela Europa
entre esses anos
se passaram coisas
a filosofia problematiza
franze a testa
mas não transmite
nenhuma verdade
há pessoas que vivem
simplesmente
fechadas num livro
de contabilidade
vitrine ou palco
a juventude no caminho
da zona de salto
uma ligação cada vez menos
íntima com os
acontecimentos reais
um amontoado de exílios
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o mundo é um lugar distante
esta treva selvagem
na simulação na dissuasão
no território invadido
o discurso enfrenta Deus
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HÁ UM FERNANDO PESSOA EM MIM QUE DEUS ME DISSE
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A TODOS VOCÊS
num transatlântico
à margem do mundo
meus olhos mal podem
diferenciar os caminhos
se vou a Galápagos
a milhas de distância
ou ao supermercado
pela calçada com as crianças
ou com monstros ultramarinos
sobre a cidade tudo que sei
é que rui eletrizantemente
minha casa ameaça desabar
Kruschev invadiu Budapeste?
Soyinka escapou aos pelotões
de execução na Nigéria?
o que mais está por cair
esmagar o que eu era
quem irei me tornar
um dia poderei voltar?
resgatar meus filhos?
mudada até os ossos
estou muito desmunida
se afundar no mar
no abismo incompreensível
seria um regresso?
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CÃES DE CAÇA
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Para Hilda Hilst
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NOTAS SOBRE UM SONHO
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O RELES E O CACHORRO
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MATEI ONTEM DURANTE A CHUVA UM CACHORRO PRETO
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S. S. Pyrrus como um navio dentro de uma garrafa
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