Você está na página 1de 5

Marília acorda

Usa meias compridas até os joelhos porque, mesmo no verão,


tem os pés frios. Senta na beirada da cama e vai desenrolando as
meias: panturrilha, canela, tornozelo e para. Volta a se endireitar. A
barriga impede que se dobre sobre si. Respira fundo, estica bem os
braços e termina. Dobra as meias e as coloca embaixo do
travesseiro. São apenas para dormir. Marília não é doce, mas,
olhando da outra metade da cama, não consigo não amá-la.
Lá vai Marília até a cozinha e eu já imagino que, em pouco tempo,
vou ser acordada pelo barulho de metais batendo, gavetas sendo
empurradas ou por um assovio de canção velha que já não
sabemos a letra. Eu viro para o lado da janela ainda com as frestas
escuras, porque é muito, muito cedo, fecho os olhos e sorrio. Os
ruídos começam. Ela não faz por mal, só não tem silêncio nas
mãos. A porta bate e, do fundo do nosso espaço, começo a ouvir a
melodia. Sempre a mesma. E me pergunto que música é essa. Acho
que é a nossa.
Agora sei que em breve terei que fingir um sono profundo, porque
ela vai voltar para a cama com cafés e pães e, se ela achou tempo,
uma flor desenhada no guardanapo. Marília gosta de carrinhos de
controle remoto, prendedores de roupas, saias com bolsos e
plantas. Nunca vai arrancar uma flor. Por isso, desenha.
A porta abre. Marília senta na cama sem a bandeja. Ela toca a
minha perna e eu finjo despertar. As frestas da janela já iluminadas
recriam seus contornos. Eu pego a sua mão inquieta e, antes de
abrir os olhos, percebo que não vai bem. Pergunto o que ela tem.
Ela me diz que está esquecida. Eu replico que estamos. Ela me olha
triste e diz que fez o café sem o pó e queimou os pães na torradeira.
Eu desalinho a testa num não entendimento e ela repete que fez o
café sem o pó, que deixou só a água fervendo na moca e que, ao
servir apenas água nas xícaras, ficou um minuto parada sem
entender, por isso, os pães queimaram na torradeira. Ela me diz que
está velha e esquecida. Eu digo que somos velhas esquecidas.
Olho para os cabelos dela, agora sobre o meu ventre. Ela deita de
lado e pede para que eu lhe cubra os pés, apenas os pés. Pede
também que eu abra a janela. Eu estico minhas costas e braços até
a cordinha da persiana e a luz nos revela: minhas mãos manchadas
sobre os cabelos brancos dela. Há quantos anos, Marília? Há
quanto tempo esse ritual das manhãs de domingo? Penso, mas não
digo nada. Parece que Marília chora. Se chora, não é para fora. Ela
me diz que vai fazer o nosso café. Levanta e vai.
Sem flor dessa vez, percebo. Não tenho coragem de perguntar.
Tomo o café em golinhos para não queimar meus lábios
ressequidos. Como o pão em pedacinhos para não engasgar com
um farelo mais duro. Marília come também, mas olha o tempo todo
para baixo. Parece que tem um acanhamento novo entre a gente.
Termino. Olho mais uma vez pela janela. O dia está bom. Quero
caminhar no pátio. Marília levanta, pega o andador e põe ao lado da
cama. Ela sabe que eu quero levantar sozinha, e levanto. O lance
de escadas, apesar de pequeno, ainda me causa problemas, mas
não quero um elevador na casa e não vou tolerar descer uma rampa
de cadeira de rodas. Marília abre a porta e saímos para a manhã. O
dia está mais fresco do que eu imaginava. Ela pega uma manta de
tricô que temos desde não sei quando e põe sobre as minhas
costas. Ela aperta meus ombros com muita força, porque mesmo
depois de todos esses anos, não descobriu a medida certa do
carinho. Eu gosto. Porque entendo que naquele ato, naquela força
está o nosso carinho. E ficamos ali, atrás do muro que esconde o
nosso pátio da rua e que esconde a nossa vida das pessoas.
Ali, ali naquela casa, moram duas velhas. Moram ali faz anos
essas duas velhas. Acho que essas velhas têm alguma coisa,
moram juntas faz anos. Ali na casa das velhas estranhas.
Duas velhas estranhas, Marília e eu. Enquanto eu penso, o sol
ultrapassa a laranjeira e começa a esquentar a minha cabeça. Eu
levanto. Não sei o que aconteceu com as minhas pernas. Elas
perderam a força de um dia para o outro. Fui a médicos, mágicos,
benzedeiras, mas elas não voltaram. Justo eu que gostava tanto de
andar, de sair pela vizinhança, de fazer caminhadas no mato, de
subir morro, descer cascata, justo eu, quase não consigo atravessar
o pátio da minha própria casa. Sento ali na grama mesmo, a cinco
passos da cadeira onde eu estava, porque o equilíbrio está difícil já.
Olho para trás e não vejo Marília. Não consigo me levantar. Começo
a ficar angustiada, mas logo ela aparece por trás da pilastra e grita
para mim se está tudo bem, se caí, se estou machucada e corre
sem jeito para me ajudar, mas eu a tranquilizo antes de chegar. Digo
que estou bem e a convido para sentar ali no chão comigo. Ela
reclama da umidade da grama, mas senta. Ela diz que é capaz de
eu pegar uma gripe, mas fica. Ela dá um tapa na minha perna, e eu
sei que ela quer dizer que me ama. E que sente muito. Eu sorrio e
digo que quero entrar, mas não quero. Entro porque sei que ela
quer.
Marília gosta de rotinas. Aos domingos, ela levanta cedo, faz o
café, depois ficamos um pouco na varanda ou, se tem sol, no pátio,
depois ela gosta de entrar e ler o jornal. Eu costumava caminhar,
agora leio o jornal. Depois comemos, depois dormimos um pouco,
depois assistimos à televisão, depois comemos de novo, depois nos
olhamos por um longo tempo antes de ir para a cama. Nos olhamos
para tentar entender como foi que chegamos ali. Nunca
entendemos. Sempre entendemos. Somos muito quietas, sempre
fomos do silêncio.
Agora ela me ajuda a tomar banho. Lava minhas costas com suas
mãos desajeitadas. Parece que ainda tem vergonha dos nossos
corpos. Ou é mesmo esse acanhamento novo tão velho. Passa
xampu na minha cabeça três vezes e eu sinto que tem algo errado,
mas não digo nada. Eu tenho medo. É justo que eu tenha medo.
Mas não é justo que mostre isso para ela. Marília é medrosa, parece
dura, mas morre de medo. Eu morro de medo ainda e de novo e
todos os dias rezo para que morramos juntas, porque eu não vou
suportar ficar sozinha, nem ela. Eu pensei em cuidar disso eu
mesma. Pensei em fazer com calma, pensei em deitar com Marília,
de meias, e no chá misturar uma dose que nos tranquilize e, com
sorte, não acordaremos. Pensei só, mas não tenho coragem. Então
eu rezo. Eu rezo para que sejamos juntas tão juntas como sempre
fomos, agora e na hora da morte.
No domingo seguinte, Marília acorda e me acorda com cheiros de
café, gavetas sendo empurradas e a nossa melodia sem palavras.

Você também pode gostar