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SIMONE DE BEAUVOIR

A VELHICE

Traduçãode
Maria Helena Franco Martins

A
EDITORA
NOVA
FRONTEIRA
Títulooriginal:LA VIEILLESSE
© ÉditionsGallimard,1970

Direitosde ediçãoda obra em línguaportuguesaadquiridospela


EDITORA NOVA FRONTEIRA S/A.
Rua Bambina, 25 —CEP 22251 —Botafogo —Tel.: 286-7822
Endereçotelegráfico:NEOFRONT—Telex: 34695 ENFS BR
Rio de Janeiro, RJ

Revisão de originais
Lúcia Alves

Revisão tipográfica
ÁLVAROTAVARES
MÁRIOELBER
CARLOSMAURÍCIONETO
HENRIQUETARNAPOLSKY

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Beauvoir, Simone de, 1908-1986


B352v A velhice/ Simone de Beauvoir;traduçãode Maria HelenaFrancoMonteiro.
— Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
(Romances de autores estrangeiros)

Tradução de: La vieillesse.

1. Idosos. 2. Velhice. I. Título. TI. Série.

CDD —305.26
90-0152 CDU- 3-053.89
SUMÁRIO

Primeira Parte: O PONTO DE VISTA DA

1M A VELHICE NAS SOCIEDADES

V DESCOBERTA E ASSUNÇÃO DA
VELHICE —VIVÊNCIA DO CORPO

VIII ALGUNS EXEMPLOS DE VELHICES


APENDICES 667
I OS CENTENÁRIOS 669
II R. E BURGER: QUEMCUIDADAS
PESSOAS IDOSAS? 673
III A CONDIÇÃO DOS VELHOS
NOSPAÍSES
TRABALHADORES
SOCIALISTAS 687
IV ALGUNS DADOS ESTATÍSTICOS
SOBRE A SEXUALIDADE DAS
PESSOAS IDOSAS 709
CAPÍTULOVI

TEMPO,ATIVIDADE,HISTÓRIA

Existir, paraa realidadehumana,é temporalizar-se:no


presente,visamoso futuroatravésde projetos que ultrapas-
sam nosso passado, no qual recaem nossas atividades, imobili-
zadase carregadasde exigênciasinertes.A idademodifica
nossarelação com o tempo; ao longodos anos,nosso futuro
encolhe, enquanto nosso passadovai-se tornando pesado.
Pode-sedefiniro velhocomoumindivíduoque tem umalon-
gavidapor trás de si,e diantede si umaexpectativade sobre-
vidamuito limitada.As consequênciasdessasmudançasre-
percutemumasnas outras para gerar umasituação,variável
segundoa história anterior do indivíduo,masda qual pode-
mosdestacarconstantes.
E, em primeirolugar,o que é ter a própriavidapor trás
de si? Sartreo explicouemO sere o nada:nãose possuio
própriopassadocomose possuiumacoisaque se podesegu-
rar na mão e observarsob todos os ângulos.Meu passadoé
Oem-sique sou, enquantoultrapassado:para tê-lo, é neces-
sário que eu o mantenhaexistindoatravésde umprojeto; se
esse projeto é conhecê-lo, é precisoque eu o torne presente,
rememorando-oparamimmesmo.Há na lembrançaumaes-
pécie de magiaà qualsomossensíveisem qualqueridade.O
passado foi vívido no modo do para-si, e, no entanto, tornou-
se em-si; parece-nos atingirnele essa impossívelsíntese do

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em-sie do para-si,à quala existênciaaspirasempreemvão.!
Massão sobretudoaspessoas idosasque a evocamcomcom-
placência.“Eles vivemmaisdalembrançadoquedaesperan-
ça”, anotavaAristóteles. Em Mémoiresintérieurse em Nou-
veauxmémoiresintérieurs,Mauriacdebruça-semuitasvezes
com nostalgiasobre o meninozinhoque foi, e cujo universo
lhe parece maisreal do que o mundode hoje. Numrecente
Bloc-notes, ele escrevia: “O velho, mesmo se não recai na in-
fância,volta a ela em segredo,dá-se o prazerde chamarma-
mãe a meiavoz.”Essa predileçãopelosdiasantigosé umtra-
ço que se encontra na maioriadosvelhos,e é mesmomuitas
vezes por aí que sua idadese faz sentir com maisevidência.
Comose explicaela? E em quemedidapodemeles “reen-
contrar o tempo perdido”?
“É o futuroque decidese o passadoestá vivoou não”,
observaSartre. Um homemque tem como projeto progredir
decola de seu passado;define seu antigo eu como o eu que
não existe mais, e se desinteressa dele. Ao contrário, o pro-
jeto de algunspara-siimplicaa recusado tempoe umaestrei-
ta solidariedadecomo passado.A maioriadosvelhosencon-
tra-se nesse caso; eles recusamo tempo porquenão querem
decair; definemseu antigoeu como aquele que continuama
ser: afirmama sua solidariedadecom suajuventude.Mesmo
que tenhamsuperadoa crise de identificaçãoe tenhamacei-
tado uma nova imagemdeles mesmos— a boa avó, o apo-
sentado, o velho escritor — cada um conserva intimamente
a convicçãodeter permanecidoimutável:evocandolembran-
ças, eles justificamessa segurança.Às degradaçõesda senes-
cência opõem uma imutávelessência e narram incansavel-

1 “Daí a lembrançanosapresentaro ser que éramos com umaplenitu-


de de scr, que lheconfere umaespéciede poesia.Aquetador que sen-
tíamos,imobilizando-seno passado,não deixade apresentaro sentido
de um por-si, e, entretanto, ela existe em si mesma, com a fixidez silen-
ciosa de uma dor de outrem,de uma dor de estátua.”(Sartre, O ser e
o nada.)

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mente para si mesmosaquele ser que forame que sobrevive
neles. Às vezes,resolvemreconhecer-se no personagemque
maisoslisonjeia:são eternamenteaqueleantigocombatente,
aquela mulher adulada, aquela mãe admirável. Ou então, res-
.Suscitamo frescor da adolescência,da primeirajuventude.
De preferência,voltam-se,como Mauriac,parao períodono
qual o mundoassumiu,para eles, sua fisionomia,no qual se
definiuo homemque vierama ser: a infância.Durante toda
a vida— aos30 anos,aos40 anos— continuarama ser aquela
criança,mesmonão sendomais.No momentoemque a reen-
contram e se confundem com ela, tanto faz terem 30 anos, 50
anos,ou 80: escapamà idade.
Mas o que podemeles reencontrar? Em que medidaa
memórianos permite recuperarnossasvidas?
O professorDelay2distingue,comrazão,três formasde
memória:A primeiraé a memóriasensório-motora,na qual
o reconhecimento é operado e não pensado;comporta um
conjunto de montagens,de automatismos,que obedecem às
leis do hábito,e permanecenormalmenteintacta na velhice.
A segundaé a memóriaautista, regidapela lei do inconsci-
ente, que atualizao passadonos sonhose nos delírios,num
modoparalógicoe afetivo.O sujeito não tem consciênciade
se lembrar,reviveno presente impressõespassadas.(Acres-
centarei que é possívelaté certo ponto utilizaressamemória
para chegar a um reconhecimentoque coloca o passadoco-
motal:é o quetentaa psicanálise.)
A terceiraformaé a me-
móriasocial, operação mentalque, a partirde dadosfisioló-
gicos, de imagens e de um certo saber, reconstrói e localiza
os fatos passados,utilizandoas categoriaslógicas.Só esta úl-
tima memória nos permite, numa certa medida, narrar-nos a
nossahistória.Para bem realizaressaobra, muitascondições
são necessárias.

2 Les Dissolutions de la mémoire.

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É preciso,em primeirolugar,que essa históriatenha si-
do fixada.Sabe-se que a memóriaexige o esquecimento;se
gravássemostudo,não disporíamosde nada.Muitosaconte-
cimentosnão foramretidos,ou foramobliteradospor outros.
Se tomo meu próprioexemplo— e posso fazê-lo aqui, pois
o queé válidoparamimoé, afortiori,parapessoasmaisidosas
— acontece-mefreqientemente, falandocomminhairmã ou
comSartre,descobrirnomeupassadoenormeslacunas.Sar-
tre me contou, por exemplo,a noite em que soubemosque a
URSS entrara em guerra: por quase toda parte, ouviam-se
vozesquecantavama Internacional.Aquelashorasforamim-
portantespara mim,e não me lembro de nada.
Por outro lado,é preciso que os circuitosnervososque
permitema revivescênciadasimagenspermaneçamintactos.
Certasdoenças— entre outras,a demênciasenile a arterios-
clerose cerebral — destroemum grandenúmerodessescir-
cuitos.Mesmoumhomemque aindatem boa saúdepodees-
tar afetado por lesões bastante graves.Berenson queixa-se:
“Aos75 anos, acontecem-me estranhos fenômenos; tantas da-
quelas coisasque aindaontem pareciamfazer parte do meu
mobiliáriointelectual desaparecerame se dissiparamantes
que eu pudesseme darconta!... Grandesfragmentosde me-
móriadesmoroname se dissipamno esquecimento.Por quê?
Como?”
As imagensde que dispomosestão bem longe de ter a
riquezade seu objeto. A imagemé a mirade um objeto au-
sente atravésde umanalogonorgânicoe afetivo.Há nela,
segundoa definiçãode Sartre, “umaespécie de pobreza es-
sencial”.Alainobservaque não se podenemmesmo,na ima-
gem do Panteão, tentar contar as colunas. À imagem não
obedece forçosamenteao princípiode identidade;ela apre-
dá-senumtempoe num
sentao objetonasuageneralidade;
espaço irreais. Não pode, portanto, ressuscitar para nós o
mundoreal do qual emana, e é por isso que, com tanta fre-
quência, surgemimagensque não sabemosonde situar. A-
conteceu-me, quando escrevia minhas Memórias, rever com

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clarezacenas que, por falta de coordenadas,foi-me impossí-
vel integrar ao meu relato, e que tive que renunciara men-
cionar.
“Aslembrançasna idadeavançadasão formigascujo for-
migueirofoi destruído— escreve Mauriac.— O olhar não
pode seguirnenhumadelas por muito tempo.” E Hermann
Broch:3“Aslembrançasaparecem,tornama submergire muitas
vezesdesaparecemtotalmente.Comosãomedrosas!...Oh! Em
que abismosde esquecimentorepousaa vida;de que distân-
cia é preciso rememorara lembrançaque já não é maislem-
brança!”
Através de raciocínios, de confrontos, de recortes, con-
segue-seinserirumcerto númerodeimagensemconstruções
coerentes e datadas.Mas chega-se apenas a hipóteses cuja
verificaçãonem sempreé possível.“Adivinha-seo passado”,
diziaHenri Poincaré. Há imagensque permanecemexatas.
Constatei, a 30 anos de distância, que o golfo do Porto, na
Córsega, tinha a mesma cor e o mesmo desenho que tinha na
minhamemória:a surpresaque issome causouprovaque es-
tou habituadaa receber da realidadeseveros desmentidos.
Com efeito, quantoserros pudeapontar! E estes não repre-
sentamsenão umapequenaparte dos que cometi.
Na maior parte do tempo, as imagenslogicamentere-
construídas e situadas permanecem tão exteriores a nós
quanto as de umacontecimentoque pertence à históriauni-
dopassado,
apenasumsentidodeformado
versal.“Possuímos
e poucosinstantesdesse passadose ligama nós por umcon-
tato vital” — diz, com propriedade,Berenson. As imagens
assumem,muitasvezes, umacaracterística de clichê: evoca-
mo-lassem modificá-las,sem enriquecê-las,umavez que só
podemosdescobrirnelaso quenelascolocamos.Muitasve-
zes amalgamosnumasó lembrançadadosque pertencem a
diferentesépocas;aolongodetodaa minhainfância,osros-

3 O tentador.

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tos de Louise, de meu pai, de meu avô permanecemimutá-
veis.Mesmoquandomelembrode umacenasingular,ela é
reconstruídaa partirde esquemasgerais.Com 12 anos,Zaza,
na sala de estudodocolégio, agradece-meumabolsaque lhe
deide presente:ela tem a silhuetae os traçosde seus20 anos.
Esses estereótiposperpetuam-senummundoem movi-
mento, de tal modo que, apesar de sua fixidez, assumem um
aspectocuriosamenteexótico.Isso não acontecerianumaso-
ciedadede repetição.Se eu usassea mesmaroupatradicional
que minhamãe, revendo-ajovem eu reveriaumajovem mu-
lher de hoje. Mas a modamudou:em seu belo vestidonegro
azeviche,ela pertence a umaépoca que terminou.Voltar ao
tempodosmeus20 anosfaz-mesentirtão desambientada
quanto me sentiriase fosse transportadaparao fimdo mun-
do.Olho paraumafotografiadovelhoTrocadéro,de cuja fei-
úra eu gostava:terei mesmovisto aquilocom meuspróprios
olhos? Uma outra dos Champs-Elysées,em 1929; eu usava
umdesseschapéuscloche,4umadessasgolasredondas,e cru-
zava com homens que usavambonés ou chapéus de feltro:
não meparece que esse cenário tenha pertencido,algumdia,
à minhavida.À medidaque os anospassam,o momentopre-
sente nos parece semprenatural; temos a vagaimpressão,já
que também ele nos parecia natural, de que o passadoera
semelhante:na verdade,as imagensque dele reencontramos
são obsoletas. Dessa maneira, ainda, a vida nos escapa: ela
era novidade,frescor; mesmoesse frescor fanou.
Foi o que sentiuEmmanuelBerl, quandoescreveu,em
Sylvia:“Meu passadome escapa. Puxo de um lado,puxode
outro, e só me resta na mão umtecido podreque se esfiapa.
Tudose transformaem fantasmaou mentira.”
“Eu mesmo reconheço-me mal nos clichês que minha
memória me propõe. Aquela personagemque desembarca
em Touquetnumcarro esporte azul,saídade umromancede

4 Chapéu em forma de sino,sem aba. (N. da T)

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Morand,com umajovem senhora saídade uma tela de Van
Dongen — que tenho eu de comumcom ela? Se todosesses
fantoches, esses simulacros, constituem minha história, então
minhahistórianão sou eu.”
“Os grandesvelhosme comovem— dizia-meumaami-
ga — por causadesselongopassadoque têm por trás deles.”
Infelizmente, eles não têm esse passado. O passado não é,
por trás de mim,uma calma paisagemna qual eu passearia
livremente,e que merevelariapoucoa poucoseusmeandros
e suassinuosidades.À medidaque eu avançasse,ele desmo-
ronaria. Os destroçosque emergemdesses desmoronamen-
tos são, na maioria, descoloridos, gelados, deformados, o sen-
tido deles me escapa. De longe em longe, aparecem alguns
que mefascinamporsuabelezamelancólica.Eles nãobastam
parapovoaresse vazioque Chateaubriandchamoude “o de-
serto do passado”.
Há muitascoisas que não conseguimosevocar e que,
entretanto, somoscapazesde reconhecer. Mas nem sempre
esse reconhecimentonos restituio calor do passado.Este úl-
timo nos toca porqueé passado.Mas é tambémpor issoque,
com tanta frequência,ele nos decepciona:nós o vivemosco-
mo um presente rico do futuropara o qualele se lançava;só
resta dele umesqueleto. É o que torna tão vãs as peregrina-
ções. Com bastante frequêncianos é impossívelreencontrar
o vestígiode nossospassos.O espaço volta a assumiras trai-
ções do tempo: os lugaresmudam.Mas mesmoos que apa-
rentemente permaneceram intactos não o são mais, para
mim. Posso passear em certas ruas de Uzerche, de Marselha,
de Ruão. Reconhecerei as pedrasdessascidades,masnão re-
encontrarei meus projetos, meusdesejos, meus medos:não
me reencontrarei.E se evoconesseslugaresumacena de ou-
trora, ela está ali espetadacomo umaborboleta numacaixa.
Os personagensnão vão maisa lugarnenhum.Suas relações
estão atingidaspela inércia.E quantoa mim,não espero mais
nada.

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Não somente o futuro desse passadocessou de ser um
futuro, mas muitas vezes, ao se realizar, ele desmentiu nossas
expectativas. Mais de uma vez vivi o início de amizades des-
tinadasa não maisterminar;algumasdelascumpriramessas
promessas;outras descambarampara a indiferençaou mes-
mo para a inimizade.Como interpretar uma harmoniaque
umadesavençacontestou? Seria essa harmoniaválidanuma
dadaconjuntura,maspredestinada
a nãomaissobreviverali?
Repousariaela numailusão?Teriapodidodurarparasempre,
e se teria quebrado por um mal-entendido?Nenhumares-
postapodeser definitiva:o sentidode umacontecimentopas-
sado é sempre revogável.Não só a materialidadedos fatos
nosescapa,como tambémhesitamosquantoao valorque de-
vemosatribuir-lhes,e nossojulgamentosemprepermanece-
rá em suspenso.
A morte de alguémque estimamosconstituiumabrutal
rupturacom nossopassado:ora, umvelho é alguémque tem
muitosmortos por trás de si. “Minhavida demasiadolonga
assemelha-seàquelasviasromanasbordadasde monumentos
fúnebres”— escreveuChateaubriand.A mortede umparen-
te, de umamigo,não nos privaapenasde umapresença, mas
de toda aquela parte de nossavidaque estava ligadaa eles.
Onossoprópriopassadoque aspessoasmaisidosasque nós
levamconsigo. Há sexagenáriosque sofrem, ao perder seus
parentesou amigosda mesmageração,com o fato de perder
umacerta imagemdelesmesmosque o defuntodetinha:com
este, é tragadaumainfânciae umaadolescênciadasquaisele
erao únicoa conservarumacertalembrança.O quedeixaos
velhosinconsoláveis
é a perdade pessoasmaisjovens,que
eles associavamao seu própriofuturo, sobretudose tinham
gerado,criadoou formadoessaspessoas:a mortede umfilho,
de um neto, é a ruína súbita de todo um projeto; ela torna
vãosos esforços,os sacrifíciosfeitosporele,
absurdamente
as esperanças que nele se haviam depositado. O desa-
parecimentodos amigosde nossaidadenão tem o caráter de
fracasso agudo:masanulaas relações que tivemoscom eles.
Quando Zaza morreu,estava por demaisvoltadapara o fu-

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turo para chorar sobre meu passado,só chorei por ela. Mas
muito mais tarde, lembro-me de como fiquei perturbada
quando morreu Dullin, com quem, no entanto, eu não tivera
umaverdadeiraintimidade.Era todoumfragmentodaminha
própriavidaque desmoronava:Ferroles, o Ateliê, os ensaios
dasMoscas,osjantares tão alegresnos quaisele contavasuas
lembranças,com ele desaparecidas.Mais tarde, nossasafini-
dades e nossas brigascom Camus aniquilaram-se;aniquila-
ram-se meus encontros e minhasdiscussõescom Merleau-
Ponty nos jardins do Luxemburgo,em casa dele, na minha
casa,em Saint-Tropez;e aslongasconversascomGiacometti,
as visitasao seu ateliê. Enquanto eles eramvivos,não havia
necessidadede lembrançaparaque, neles, nossopassadoco-
mumpermanecessevivo.Levaramparao túmuloesse passa-
do; dele, minha memória só reencontra um gelado simulacro.
Nos “monumentos fúnebres” que marcam minha história,
sou eu que estou enterrada.

Não pode, entretanto, acontecer que, tomado em sua


totalidade,o passadosejaobjeto de gozo? O fato de ter sido
bem-sucedidona vidanão bastariaparasatisfazero indivíduo
quecomeçaa declinar?É o que se imaginaquandose é jovem.
Aos 20 anos,umavidame pareciasólidacomoumacoisae, no
entanto, penetradade consciência.Se entreviaumadistância
entre umhomeme umabiografia,escandalizava-me com isso:
sabendoquemera, Baudelaire— pensavaeu — não deveria
sofrer com a incompreensãodos imbecis.Muito mais tarde,
quandoSartre começou a pensaro que escreveuno fim das
Palavras,suas afirmaçõesdesiludidasirritavam-me.Gostaria
que ele se regozijassedeserSartre.Que erro! Paraele mesmo,
ele nãoo é. MesmoVictorHugo,era sódevezemquandoque,
segundoo dito de Cocteau,“ele se tomavapor Victor Hugo”.
A fórmulaé feliz:indicaquese podejogarcomumaimagemde
si, mas não confundir-secom ela. Um grandemal-entendido
separaas pessoasque percebemde fora umhomem“bem-su-
cedido”,na aparente plenitudede seu ser-para-outrem,e a

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vivênciaqueele temdesi mesmo.QuandoAragon,numde
seus últimos poemas, fez uma espécie de constatação do
fracassode sua vida,algunscríticos o acusaramde falsa mo-
déstia: “Você teve sucesso e sabe disso” — afirmaram eles;
ao passo que Aragon aludia ao fracasso de todo sucesso.
Vignydizque umabela vidaé umaidéia de juventudereali-
zada na idademadura.Pode ser. Mas há uma distânciainfi-
nita entre o sonho sonhadoe o sonho realizado.E o que diz
tão bem Mallarmé,quandofaz alusãoa

“... Esse perfumede tristeza


Que a colheita de umsonho,mesmosem desgostoe sem
pesar,
Deixa no coração de quemo colheu.”

Sartre explicouesse distanciamentoem O sere o nada:


“Ofuturo não se deixaatingir,ele escorrega para o passado
como antigo futuro... Daí essa decepção antológicaque es-
perao para-siemcadasaídaparao futuro.Mesmoqueo meu
presente seja rigorosamenteidêntico, por seu conteúdo, ao
futuro para o qual eu me projetava além do ser, não é esse
presente para o qual eu me projetava,pois eu me projetava
para esse futuroenquantofuturo,isto é, enquantoponto de
rejuntamentodomeuser.”Foi porissoqueeu pude,semcon-
tradição,escrever nasMemóriasde uma moça bem-compor-
tada: “Nenhumavida,nenhuminstantede qualquervidapo-
de cumpriras promessascom as quais eu enlouquecia meu
coração crédulo”; e na Força das coisas: “Aspromessasfo-
ram cumpridas”,ao mesmotempo em que concluía:“Fui lu-
dibriada.”O presente, mesmoconforme às minhasexpecta-
tivas,não podiatrazer-meo que eu esperava:a plenitudede
ser à qualtende, emvão, a existência.O para-sinão é. E nin-
guém pode dizer “Eu tive umabela vida”,porque umavida
não se tem. De modoalgumpenso que a glória seja o “luto
brilhante da felicidade”;na verdade,ela não é nada, senão
umamiragemfugitivaaos olhos de outrem.Na noite de seu
80º aniversário,festejadocomumbrilhoextraordinário,Tols-
toi foi deitar-sedizendoà filha:“Tenhoa almapesada.”Acla-

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mado por sua cidade natal, Andersen derramou lágrimas:
“Comomeuspaisficariamfelizes!”,diziaele. Paraeles, a gló-
ria do filho teria sido uma realidade; Andersen a teria visto
nos olhos deles.
É verdadeque acontece um homemvoltar-se com or-
gulhoparaseu passado:sobretudose o presenteque ele vive
e o futuro que pressente o decepcionam.Então, escora-se
em suas lembranças,faz delas uma defesa, ou mesmo uma
arma.Esses intermitentessobressaltosde orgulhonão impli-
cam um gozopleno do que passou.
Naverdadeé o passadoquenossustenta.É atravésdoque
ele fez de nós que o conhecemos.Um homemdescontentede
seuestadosó encontraráaliumalimentoparasuaamargura,
uma razão suplementarpara desolar-secom o presente.E o
caso de Swift, numa carta escrita em 5 de abril de 1729, quando
tinha62 anos:“Nuncaacordode manhãsemachara existência
umpoucomaisdespidade interessedo que estavanavéspera.
Maso quemaismedesolaé lembrarminhavidade20 anosatrás
e cair de novo, de repente, no presente.” Aos 54 anos, Flaubert
escreve:“O futuronão me oferece nadade bom,e o passado
Sinaldevelhicee dedecadência.”
medevora. com
É também
amarguraque ele escreve,trêsanosmaistarde:“Àmedidaque
avançoemidade,cadavezmaiso passadomepenetraaté a me-
materiale ahumilha-
duladosossos.”Vimosqueainsegurança
ção social que se seguiramà ruínade sua sobrinhao haviam
Opassado
umhomemacabado.
feitosentir-seprematuramente
não era, para ele, umagradávelobjetode contemplação,mas
umatriste obsessão:comparando-ocom o presente,sentia-se
decaído, e a idéia dessa decadência confirmava-se, para ele, por
suaobsessãodo passado.
O contrasteentre o passadoe o presentepodetornar-se
intolerável.Há poucashistóriasmaispatéticas do que a que
o criado de quarto de Brummelcontou sobre ele. Aos 60 a-
nos, Brummelviviana França, doente, indigente,solitárioe
com o espírito perturbado.Uma noite, mandoupreparar o
apartamentocomose fosseparaumagranderecepção:pol-

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tronas,mesasde whist,velasde cera (o que era umluxo,pois
normalmentea iluminaçãoera feita com velasde sebo). Ves-
tiu uma bela casaca azul com botões dourados, toda roída de
traças, pôs umagravatabranca, luvascor de prímula,e con-
queele deveriacha-
fiouao criadoumalistade convidados
mar, de cinco em cinco minutos,a partir das sete horas. O
criadopostou-sena soleirada porta, com umatocha na mão,
e começou a anunciaros fantasmasde nomes prestigiosos,
que Brummel]acolhiacerimoniosamente.De repente, ele de-
sabouna sua poltrona,chorando.Depois, recompôs-see or-
denouaocriado:“Chamaoscarros.Irásdeitar-tequandotodos
tiverempartido.”Essa maneiradevivero passadono presen-
te tem um parentesco com os fenômenos de ecmnésia dos
quaisjá falei. Até que ponto Brummelestava possuídopelo
passadoque reatualizava?Conservariaele algumalucidez,e
se dariaconta de que representavaumasinistracomédia? O
relato faz suporque oscilavaentre a obsessãoe a má-fé.*
É sobretudoa infânciaque voltaparaperseguiro velho:
desdeFreud,sabe-se a importância— pressentidapor Mon-
taigne— que têm os primeiríssimosanosna formaçãodo in-
divíduoe de seu universo.As impressõesrecebidastêm, en-
tão, umaforça que as tornaindeléveis.O adultonão tem tem-
po de evocá-lasporqueestá ocupadoem encontrar umequi-
líbrioprático;elas ressurgemquandoessatensão se alivia.“O
maisdoce privilégioque a naturezaconcedeuao homemque
envelhece é o de retomarcom umaextremafacilidadeas im-
pressõesda infância”,escreveNodier.Tolstoiescreveemseu
Diário,em10demarçode1906,quandotinha78 anos:“Du-
rante todo o dia, uma impressãoestúpidae triste. Perto da
noite, esse estado de espírito transformou-seem desejo de
carícias,de ternura. Gostaria, como fazia na minhainfância,
de apertar-me contra um ser terno e compassivo,de chorar
brandamentee ser consolado...Tornar-mebem pequeninoe
me aproximarde minha mãe, tal como a imagino...Tu, ma-

5 Há uma analogia entre


essa anedotaeAs cadeiras,de Ionesco.

456
mãe, pega-me,afaga-me...Tudoisso é loucura,mastudo isso
é verdade.”Ele imaginavasua mãe, que morrera quandoti-
nha dois anos; maso início desse devaneiorepousaem lem-
branças.
Loisy dedicousua vidaa criticar a Bíblia, foi excomun-
gadopor suasteoriasmodernistase perdeua fé. Aos 83 anos,
seis anos antes de morrer, atormentadopor sofrimentosin-
tensos,e coma cabeça perturbada,começoua cantarcânticos
e passagensda missa,como no tempo em que era umjovem
seminarista.Comparava-sea Jó, cuja históriacontava.6
A criançafaz da vidaum aprendizadodifícil;é vítimade
complexosque precisasuperar;temsentimentosde culpa,tem
vergonha,ansiedade.
Asmáslembranças
rechaçadas
naidade
adultadespertamde novono velho.As barreirasque o adulto
conseguiraestabelecerenquantotinhaatividades,e enquanto
estava submetido a uma pressão social, desmoronam, no ócio e
no isolamento da última idade.Provavelmente, também, o trau-
matismonarcísicoprovocadopelachegadadavelhiceenfraque-
ce asdefesasdosujeito:osconflitosdainfânciae daadolescên-
ciadespertam.Durantetodaa suavida,minhamãefoimarcada
porsuainfância,masno fimela evocavamaisfrequentemente
ainda,com rancor,à preferênciaque seu pai manifestarapela
irmãcaçula.Um exemplocontundenteé o de Andersenque,
no entanto, não estava nem inativo, nem abandonado. Ele co-
meçoua ficar melancólicoporvoltade 1854,durantea guerra
com a Alemanha,que terminoucom a derrotada Dinamarca;
tinha59 anos.Lutoucontraessa depressãotrabalhandoe via-
jando. Muito célebre, cercado de amigos, começou, entretanto,
a sonhartodasasnoitescomseuantigoprofessorMeisling,que
o tinha perseguidoe humilhadocruelmente,quandoele era
estudante;era vítimadessamemóriaautistaque não permite
dominar o passado, mas que o reatualiza; ele não contava sua

6 Em seus últimos anos de vida, ele acreditava num Deus obscuramente


concebido, e Jó era um tema ao qual se referia, às vezes. Mas estava
tão longequanto possíveldo catolicismo.

457
infância para si mesmo: vivia-a de maneira neurótica. No-
meadoconselheirode Estado,sonhouque Meislinglhe dava
esse título zombandodele e jogando-lheseus livrosna cara.
Em 1867, ao chegar a Odense — sua cidade natal —, foi to-
madopor “umestranhoe louco medo”.Lembrava-sedo des-
démcom que o tratarao decanoda aulade revisão,daszom-
bariasdos alunosde latim,dos molequesque perseguiamseu
avôna rua,dosdelíriose da mortede seupai.No diaseguinte,
durante a festa dada em sua honra, ele chorava. Em 1869,
Copenhagueo festejou: foi uma apoteose.E o crítico Geor-
ges Brandês dedicou-lheum livro importantee entusiasta.
Masseu sistemanervosoalterava-see tornava-lhea vidacada
vez mais difícil. Sua angústia,que sempre estivera latente,
mesmonos tempos felizes,traduzia-sepor um sem-número
de terrores particulares: tinha medo do fogo, da água, das
doenças,de tudo. Em seus pesadelos,Meislingcontinuavaa
rir dele. Tambémem sonho, tinha raivasterríveisde antigos
amigos,e despertavacom remorso,soluçando.Seu Diário es-
tá cheio de relatos dessespesadelos.Em um de seus últimos
sonhos, sob o efeito da morfina, ele conversou calmamente
com Meislingsobre a arte e a beleza. “Enfim, tornamo-nos
amigos”, anotou ele, aliviado. Seu 70º aniversário foi um dia
feliz.Mas depois,gravementedoente,sonolento,não desejou
outracoisasenão a morte.“Se tenho que morrer,que chegue
rápidoo momento;não possoesperar,não possoficarestendi-
do,a pulverizar-mecomoumafolhamorta.”Morreupoucode-
pois. |
O caso de Andersen não tem nada de excepcional:
todas as neuroses dos velhos têm origem na infância ou
na adolescência.
Compreende-sepor que eles se sentem tão inclinados
a retornarà infância:é queesta ospossui.Eles sereconhecem
nela porque— mesmoque por um determinadotempo te-
nhamdesejadoignorá-la— ela não deixoude habitá-los.Há
ainda uma outra razão: a existência funda-se, transcenden-
do-se. Mas — sobretudoquandose atinge uma idademuito
avançada— a transcendênciaesbarrana morte. O velhoten-

458
ta fundar sua existência, assumindo seu nascimento, ou, pelo
menos,seusprimeirosanosde vida.A aliançainfância-velhi-
ce que constatamos num plano sociológico é interiorizada
pelo indivíduo.No momentode sairdavida,ele se reconhece
no bebê que saía doslimbos.
Compreende-se,também,porque a pobrezadasimagens
quesãocapazesdeevocarnãodesanimaaspessoasidosas.Elas
nãoprocuramfazerparasiprópriasumrelatodetalhadoe coe-
rente des eusprimeirosanosdevida,massimmergulhardenovo
neles. Ruminamalgunstemasque têm, para elas, um grande
valorafetivo;longede se cansaremcomessarepetição,voltam
a embeber-sedela.Evadem-sedo presente,sonhamcomfelici-
dadesantigas,conjuramas antigasinfelicidades.Uma mulher
de 86 anosme diziaque, à noite, assimque se deitava,contava
cenasdesuaprimeirainfância,
parasimesmaindefinidamente
e experimentavacomissoumaalegriainesgotável.
O homemidosointeriorizaseu passadosob a forma de
imagens,de fantasmas,de atitudesafetivas.Depende desse
passadoaindade outro modo:é o passadoque define minha
situação atual e sua abertura para o futuro; ele é o dado a
partirdo qualeu me projeto, e que tenho de ultrapassarpara
existir. Isso é verdadeem qualquer idade. Eu conservo, do
quese montaramno meucorpo,os
passado,os mecanismos
instrumentosculturaisde que me sirvo,meu saber e minhas
ignorâncias,minhasrelaçõescomoutrem,minhasocupações,
minhasobrigações.Tudoo que fiz me foi retomadopor ele
Sartrecha-
e secoisificounele,sobaformadoprático-inerte.
maprático-inerteo conjuntode coisasmarcadaspelo selo da
ação humana,e pelos homensdefinidospor suarelação com
essascoisas;paramim,o prático-inerteé o conjuntodoslivros
que escrevi,que constituemagora,fora de mim,minhaobra,
e que medefinemcomo sua autora: “Sou o que fiz e que me
escapa, constituindo-me logo como um outro.”? Todo ho-
mem,pelasuapraxis,realizasuaobjetivaçãono mundo,e

7 Critique de la raison
dialectique.

459
nele se aliena.Nele cria interesses.O interesseé “o ser intei-
ro fora de mim,como umacoisa,enquantocondicionaapra-
xis como imperativocategórico.”O interessedo proprietário
é sua propriedade,e muitasvezes ele dá maisvalor a ela do
que à sua própriavida.
tom-
naidade,maispesadamente
Quantomaisavançamos
ba sobre nós o peso do prático-inerte.E o que Gorz mostrou
muitobem em seu livrosobreO envelhecimento. Ele define a
juventudecomo“umainérciamenora ser movimentada”. Tor-
nar-seumhomemmaduroé tornar-seumoutroparaosoutros:
um indivíduodefinidopor seu ofício. O futuroque escolhera
livrementeaparece-lhedaíem diantecomoa necessidadeque
o espera;ele vê no seupassadoumaalienação.Suavidaé “uma
vida que se arrasta fora, nas coisas, como meu ser de fora, e
perdidopara mimmesmo”.Os projetos petrificaram-se.Essa
descriçãoconvémà velhice:esta últimatornou-seaindamais
pesadaque a maturidade.Todaumalongavidaimobilizou-se
atrásdenós,e nosretémcativos.Osimperativosmultiplicaram-
se,€ o avessodelessãoimpossibilidades:
o proprietáriotemque
conservarsua propriedade;ele não poderenunciara ela. Para
entenderem que medidao velhose vê atado,face ao seu des-
tino,é precisoagoraconsiderarcomo esse futurose lhe apre-
senta.Veremosquelhe aparececomoduplamenteacabado:é
breve,e é fechado.E tantomaisfechadoquantomaisbreve;e
parecetantomaisbrevequantomaisfechado.

A partir de um certo limiar,variávelde acordo com os


indivíduos, o homem idoso toma consciência de seu destino
biológico: o número de anos que lhe restam para viver é
limitado.Se, aos 65 anos, um ano lhe parecesse tão longo
quanto na infância, o lapso de tempo com o qual ele pode
racionalmente
contarultrapassaria
aindasuaimaginação;
mas
não é isso que ocorre. Esse prazo lhe parece tragicamente
curto, porqueo temponão corre do mesmomodonos diver-
sos momentosde nossaexistência:ele se precipitaà medida
que envelhecemos.

460
No que dizrespeito à criança, as horasparecemlongas.
O tempo no qual ela se move lhe é imposto,é o tempo dos
adultos;não sabe medi-lonem prevê-lo,fica perdidano seio
de umdevirsem começo nem fim.Domineio tempoquando
o animeicommeusprojetos,quandoo repartisegundomeus
programas:minhassemanasse organizaramemtornodastar-
des nas quaiseu ia à aula: então, cada dia tinha um passado,
um futuro. Minhas lembrançasdatadase coerentes remon-
tam a essa época. Por um lado, os momentos se arrastam
quandoos vivemosna tensão ou no cansaço. Ora, a criança
cansa-serapidamente,porcausadesuafraqueza,desuaemo-
tividade,da fragilidadede seu sistemanervoso.Sessenta mi-
nutos de leitura representam um maior esforço aoscinco
anos do que aos 10 anos,e maioraos 10 anosque aos 20. As
distânciassão longasde percorrer, a atenção difícilde fixar:
não se chega ao fim dos dias sem cansaço. Enfim, sobretudo,
o mundoé tão novonessaépoca, as impressõesque ele pro-
duzem nós são tão frescase tão vivasque, avaliandoa dura-
ção pela riquezade seu conteúdo,ela nos parece muitomais
extensadoque nasépocasemque o costumenosempobrece.
Schopenhauer observou: “Durante a infância, a novidade
dascoisase dosacontecimentosfaz comque tudose imprima
em nossaconsciência:assim,os diasparecemnão ter fim.Do
mesmo modo acontece, pelo mesmo motivo, parecer-nos
maislongoummês,quandoestamosemviagem,doquequan-
doestamosemcasa.”8

8 —Sobre esse aumentode duraçãoduranteasviagens,o etnólogoGeor-


ges Condaminasescreve,em L'éxotiqueest quotidien:“É preciso nos
dizermosque um dia de viagemtranspostona lembrançaocupa um
“espaço”mais amplodo que um dia passadoem casa. Sobretudo se
penetramosnumaterra quenos é totalmentedesconhecida...As horas
passadas em embeber-nos, em impregnar-nossem descanso desse
mundonovoultrapassamo recorte naturale mensuráveldotempo.Os
fatos impressionaramtão fortemente a memória,que esta os restitui
maisou menosdomesmomodoqueumfilmepassadoem câmaralen-
ta. O tempode restituiçãoé um aumentodo tempo real. ”

461
“Lembro-medos 15 minutosde recreio na escola mu-
nicipal, escreve Ionesco. Quinze minutos! Era demorado, era
pleno; tínhamostempoparapensarnumjogo, parajogar, pa-
ra terminar;para recomeçar um outro jogo... Mas o ano se-
guintenão passavade umapalavra;e mesmoque eu pensasse
que ele chegaria,esse anoseguinte,issomeparecia tãolonge,
que nãovaliaa pena pensarno assunto;era tão longoquanto
a eternidade, até que ela retorne, portanto era como se ela
nãofosseretornar.”?
Na saídada infância,o espaço se estreita, os objetos di-
minuem,o corpo se fortifica, a atenção se afirma,familiari-
zamo-noscom os relógiose com os calendários,a memória
ganha amplitudee precisão. Entretanto, as estações conti-
nuama suceder-secomumamaravilhosaou terrívellentidão.
Aos 15 anos, folheando meus livros de estudos novos, a tra-
vessiado ano escolar me parecia umagrandee apaixonante
expedição.Mais tarde, as voltas às aulasme jogavamna de-
pressão:eu me diziaquejamaischegariaao fimdos 10 meses
que tinha que passarno nosso triste apartamento.
Masassimqueeu mearrancavadessedesânimo,a imen-
sidãodo futurodesdobradoa meuspésmeexaltava:quarenta
anos,60 anos paraviver,era a eternidade,já que umano me
parecia tão extenso.
Há mais de uma razão para essa mudançaque sofre a
avaliaçãodo tempo,dajuventudeà velhice.Primeiro,é pre-
ciso notar que temos a vida inteira atrás de nós, reduzida, em
qualquer idade, ao mesmo formato; em perspectiva,vinte
anos igualam-sea 60, o que dá às unidadesuma dimensão
variável.Se o anoé igualaumquintodenossaidade,ele nos
parece 10 vezes mais longo do que será, se representar a
50ª parte dela. Evidentemente, não se trata aí de um cál-
culo explícito, mas de uma impressão espontânea. E de-
pois, a nemória dosjovens lhes apresenta o ano que passou

9 Journal en miettes.

462
com umrequinte de detalhesque se espalhamnumvasto es-
paço: eles atribuem ao ano seguinte a mesmadimensão.Ao
contrário, quando somos idosos, poucas coisas chamam nossa
atenção; os momentos trazem pouca novidade; não nos de-
moramos neles. Para mim, 1968 resume-se em algumas datas,
algunsesquemas, algunsfatos. Atribuo a 1969 a mesmapo-
breza. Mal voltei a Parisem outubro, eis-mejá emjulho.
Um outro fator conta, ainda: eu sei que serei, dentro de
doze meses, na melhor das hipóteses, a mesma que sou hoje;
ao passo que, aos 20 anos, “ser si é vir a si”, segundoa defi-
nição de Sartre. Somos espera do mundoe de nós mesmos.
Cada ano nos leva num turbilhão de novidades, inebriantes
ou horríveis,das quaissaímostransformados.Pressentimos
no futuropróximoumtumultosemelhante.Nemcom proje-
tos nem com lembrançaspodemos,então, conter o tempo,já
que ele nos arrancade nós mesmos.Não existe ninguémque
seja capazde realizara unidade,se no inícioo Eu é outro que
não aquele que vai tornar-se.Uma incalculáveldistânciase-
paraessesdoisestranhos:pelo menos,é o que eles imaginam.
Se as lembrançasafetivasque despertama infânciasão
tão preciosas,é porque,duranteumbreve instante,elas nos
pôem de novo de posse de um futuro sem limites.Um galo
canta numaaldeiacujos telhadosde ardósiaeu vejo; caminho
numpradoúmidode geadabranca, de repente é Meyrignac,
e sinto um golpe no coração: esse dia que nasce espalha-se,
imenso,até umcrepúsculolongínquo;amanhãnão passade
umapalavravazia;meu quinhãoé a eternidade.
E depois, não; reencontro-me no meu tempo, onde os
anos passamtão depressa.Possofazer minhasas palavrasde
Ionesco:“Estounumaidade(...) emque umahorasó vale
algunsminutos,em que nemmesmopodemosmaisgravaros
quartosdehora.”
Paratentar reencontrara densidadedaduraçãoinfantil,
o melhormeio (pensa tambémIonesco) é viajar: “Desde en-
tão, tento, todos os dias, apegar-me a algo estável, tento de-
sesperadamente reencontrar um presente, instalá-lo, am-

463
pliá-lo. Viajo para reencontrar um mundointacto, sobre o
qual o tempo não tenha poder. Com efeito, doisdiasde via-
gem, a descoberta de umanovacidaderetardama precipita-
ção dosacontecimentos.Dois diasnumaterra novavalem30
dos que vivemosnum lugar habitual, encolhidos pelo des-
gaste, deterioradospelo hábito. O hábito dá polimento ao
tempo, deslizamosneste como num assoalho encerado de-
mais. Um mundo novo, um mundo sempre novo, um mundo
de sempre, jovem para sempre, é isso o paraíso. A rapidez
não é apenasinfernal,ela é o próprioinferno, é a aceleração
da queda. Houve o presente, houve o tempo, não há mais
presente nem tempo, a progressãogeométricada quedanos
lançouemnada.”*º
O paradoxoé que essainfernalrapideznemsemprede-
fendeo velhodotédio,aocontrário.Emqualqueridade,ti-
vemosa experiência:os diasdeviagem,tão longosde evocar,
passaramcomo umrelâmpago,porqueo tempotodo não nos
deixavamrespirar; semanasque, retrospectivamente,pare-
cem brevesporqueesquecemostudo,arrastaram-se,hora a-
pós hora, interminavelmente.
No dia-a-dia,a maneira pela qual sentimos a fuga do
tempo depende do seu conteúdo. Mas se o homemidoso a
prevêno futuro,emsuaformapura,ela lhe parecevertigino-
samente rápida.
A diferençaradicalentreaóticadovelhoe adacriança
ou do adolescente é que o primeirodescobriusua finitude,
ao passoque, no iníciode suavida,ignorava-a:naquele mo-
mento, via diante de si possibilidadestão múltiplas e tão
vagas, que lhe pareciam ilimitadas;o futuro no qual ele as
projetava dilatava-se até o infinito para acolhê-las. Os jo-
vens de hoje muito cedo se dão conta de que a sociedade
pré-fabricou o futuro deles: mas muitossonhamescapar ao
sistema,ou mesmo destruí-lo,o que deixa um largo campo

10 Journal en miettes.
aberto à suaimaginação.No dia— que acontece maisou me-
nos cedo, segundoa classe à qual pertence — em que se vê
obrigado a reproduzir sua vida, o indivíduo, encerrado num
ofício, vê seu universoencolher e seus projetos se rarefaze-
rem. Entretanto, o adultodispõe de anos em número sufi-
ciente para poder decidiragir, empreender,para pressupor
as mudançasno mundo,ou em sua históriapessoal:suases-
perançaspovoamum futurodo qualele aindanão se repre-
senta o termo. Quanto ao velho, sabe que sua vida está feita,
e que não poderá refazê-la. O futuro não está maisinchado
de promessas, contrai-se na medidado ser finito que tem
que vivê-lo. Com efeito, a realidadehumanaé afetada por
umaduplafinitude;umaé contingente e dizrespeito à facti-
cidade: a existência tem um termo que lhe vem de fora. À
outra é umaestruturaontológicado para-si.Naúltimaidade,
uma e outra revelam-sejuntas, e uma atravésda outra. Se,
comumaexpectativadevidarestrita,eu tivessea disponibi-
lidadefísica e moral dos meus20 anos, meu fim, entrevisto
atravésde um fervilharde projetos, iria parecer-me longín-
quo. Se me dessem100 anos de sobrevidae de saúde,eu po-
derialançar-meemnovosempreendimentos, partirparaa con-
quistade camposdesconhecidos.Não mesentiriairremedia-
velmenteencerradana minhasingularidade.
Aliás,eu não
teria razão: o prolongamento dos meus dias não me arran-
caria à minhafinitude.A própriaimortalidadenão a quebra-
ria. “Arealidadehumanapermaneceriafinitamesmoquefosse
imortal,escreveu Sartre, porque ela se faz finita ao se esco-
lher humana...O próprioato de liberdadeé criadore assunção
de minhafinitude.Se eu me faço, faço-mefinito,e, em conse-
quênciadisso,minhavidaé única.”"!!Permanecendoo começo
para sempre,
daminhahistóriaimutável que
é umcertopassado
tenhoque ultrapassarparasempre:nadamepodefazersairde
mimmesmo.Essaduplacertezaimpõe-seaohomemidoso:seus
anos estão contados, e ele não se evadirá de si mesmo.

11 O ser e o nada.

465
Assim, da maturidade à última idade o futuro se trans-
forma qualitativamente.Aos 65 anos, não se tem apenas20
anos a mais do que aos 45. Trocou-se um futuro indefinido
— que se tendia a encarar como infinito — por um futuro
finito. Outrora,não percebíamosno horizontenenhumlimi-
te: agoravemos um. “Quandoeu sonhavaoutrora, escreve
mi-
retornandoaoseulongínquopassado,!?*
Chateaubriand,
nha juventudeestava diantede mim;eu podiacaminharem
direção a essa coisa desconhecidaque procurava.Agora já
não possodar maisum passosem tocar no limite.”

Um futuro limitado, um passado imobilizado,tal é a


situação que os idosostêm que enfrentar. Em inúmeros
SOSessa situaçãoparalisasua atividade.Todosos seus proje-
tos ou foram realizados, ou foram abandonados, sua vida
fechou-se sobre eles mesmos;nadaos solicita: eles não têm
mais nada a fazer. Foi o que aconteceu com Michel Leiris
depois do sucesso de Biffures: “Parecia-meque minhavida
atingira uma espécie de terrível ponto culminante. O fim
dessavida,tal como se apresentavapara mim,assemelhava-
se um pouco aos últimosdiasda minhaestada em Florença.
Assimcomo,na capitaltoscana,visitadapornósde caboa
rabo, restavam-nosalgumasninhariasparaver, restavam-me
algumasninharias a fazer durante o tempo que eu ainda
tinha para viver”,escreve ele em Fibrilles.Nesse mesmo li-
vro, ele explica por que seu futuro se tinha assimdespovoa-
pelamorteoupelasenilidade
o desaparecimento
do:“Quando
não é maisencarado como um destino, masesperado como
um mal que se prepara para atingir-nos,acontece — e É O
meu caso — que se perde até a vontade de empreender:
avalia-seOpouco tempo de que aindase dispõe, tempo es-
trangulado,sem relação com aqueledasépocas em que esta-
va fora de cogitação pensarque um projeto podianão ter o

12 . Letire à Mme Récamier.


tempo desejado para se desenvolverlivremente,e isso tira
todo o estímulo. Do mesmo modo, embora se tenha, como
eu, um longo hábito, é durosaber que a noite — agoraobs-
truídapela fadigae pelo sono — não será maisaqueleperío-
doinfinitamenteaberto duranteo qualumhomem,que nada
aindaveio enfraquecer, podeamare consumir-sesem reser-
vas.Possoestar maislúcido,maisvulneráveldo que qualquer
outro, ou mais avaramentepreocupadocom minhaprópria
pessoa, mas me parece que aquele cuja existência passou,
assim,do ilimitadoao limitado,vivenumaespéciede asfixia...
Últimos recursos, a arte e a poesnaoferecem-se como um
meio de aliviaro aperto. Mas não é pena rebaixá-lasao pon-
to de tratá-las como substitutivosque permitemcompensar
a desoladorapenúriadavelhice?”
Naverdade,o projeto de escrevertinha,nessecaso, raí-
zes tão profundas,que resistiua essacrise; a própriaangústia
de Leiris forneceu-lhe novos temas, e ele escreveu Fibrilles.
Mas pode acontecer, por motivosde saúde,ou por causa de
dificuldades
exteriores,queo desânimodovelhosejadefini-
tivo: ou ele não vê maisnadaa fazer, ou renunciaa projetos
que pensa não ter maistempo de executar.
Entretanto, há tambémcasosem que os imperativosca-
tegóricos que emanam do passado conservam toda a sua
força: este trabalho deve ser executado, esta obra deve ser
terminada, estes interesses preservados. Então, com uma an-
siosaobstinação,o homemidosoempreendeumalutasem
trégua contra o relógio: “Minha experiênciamaisdolorosa,
ao se avizinhara velhice, foi a de ter perdidotodo o sentido
do lazer”, escreveu Berenson, aos 70 anos. É maisdoloroso
aindaser 1ncapazde atingiros finsque continuama solicitar-
nos: vimoscomo Papinidesolava-sepor não poder terminar
o livrode suavida,Ojuízofinal.
Nossosprojetos podemvisar a fins que estão situados
alémde nossamorte: sabe-sea importânciaque a maioriadas
pessoasatribuema suasdisposiçõestestamentárias,à execu-
ção de suasúltimasvontades.Nassociedadesrepetítivas,na-

467
quelasonde a históriaprogridelentamente, umhomemnão
dispõe apenas de seu futuro individual,masdispõetambém
do futurodo mundono qualpressupõeque o produtode seu
trabalho permanecerá. Um octogenário pode, então, com-
prazer-se em construir,e até mesmo em plantar. Quando a
maioriadas empresas— agrícolas,artesanais,comerciais,fi-
nanceiras— tinhamum caráter familiare estavamsituadas
numasociedadeeconomicamenteestável, o pai podiaespe-
rar que seus filhosprosseguissemsua tarefa, e que a confias-
sem, por suavez, aos própriosfilhos.Assim,evitava“tocar o
limite”.A propriedadeou a firmanos quaisele se objetivara
subsistiriamindefinidamente.Ele sobreviveriaa si próprio,
não se teria esforçadoem vão.
Hoje, o homemidosonão pode maispressuporessa es-
pécie de eternidade: o movimentoda História acelerou-se.
Ela destruiráamanhão que se construiuontem. As árvores
que o velhoplantaserão abatidas.Em quasetodosos lugares,
a célula familiardesintegrou-se.As pequenasempresassão
absorvidaspelos monopólios,ou então deslocam-se.O filho
não recomeçará o pai, e este últimosabe disso.Quandoele
desaparecer,a propriedadeserá abandonada,a loja vendida,
o negócioliquidado.As coisasque realizoue que davamsen-
tidoà suavidaencontram-setão ameaçadasquantoele. Se
ama os filhos com generosidade,se aprova o caminho que
escolheram,podepensarcomsatisfaçãoque se prolongane-
les. Mas, dado o fosso que geralmente separa as gerações,
essecasoé bastanteraro.Quasesempre,o painãose reco-
nhece em seu filho. O nadatoma conta dele todo.
Muitolongedeoferecer aovelhoumrecursocontraseu
destinobiológico assegurando-lheumfuturo póstumo,a so-
ciedadede hoje o rechaça, aindavivo,paraumpassadoultra-
passado.À aceleraçãodaHistóriaperturbouprofundamente
a relação do homemidosocom suasatividades.Imaginava-se
outroraque umtesourose acumulavanele ao longodosanos:
a experiência.Comooscristaisse depositamsobreos ramos
confiadosàsfontespetrificantes,umacertahabilidade,uma

468
certa sabedoriade vida,que não se ensinamnos livros,iriam
depositando-sepouco a pouco no corpo e no espíritodo ho-
mem.A filosofiahegelianapropõe umajustificação racional
para essa idéia:cada momentopassadoteria comoinvólucro
o momento presente, que prepararia necessariamente um
futuro ainda mais realizado,sendo os própriosfracassosfi-
nalmente recuperados.Última etapa de um constante pro-
gresso, a velhice seria o mais alto ponto de perfeição da
existência. Mas, na verdade, não é assim que esta última se
desenrola. Sua linha é constantemente quebrada pela re-
caída de nossosprojetos em realidadeprático-inerte.À cada
instanteela se totaliza,masa totalizaçãonuncaé acabada:“A
ação humanaconstituiao mesmotempoo todo e o dilacera-
mentodotodo.”*3É porissoquea nossacaminhadanãoé
umprogressocerto, masantesesse movimentotitubeantede
que fala Montaigne. Sainte-Beuve constatava:“Endurece-
mosem certos lugares,apodrecemosem outros,jamais ama-
durecemos.”A velhicenão é a “súmula”de nossavida.Num
mesmo movimento,o tempo nos dá e nos rouba o mundo.
Aprendemose esquecemos,enriquecemo-nose nos degra-
damos.
Mauriac,octogenário,escreve:“Nemenfraquecido,nem
decaído,nemenriquecido:igual— eis comoo velhose vê.
Que nãose fale comele dasaquisiçõesdavida:é inacreditável
comoretivemospoucode tudoo que nos afluiudurantetan-
tosanos.Osfatosestãoconfusosouesquecidos.Masquedi-
zerdasidéias?Cinqúuenta
anosdeleituras:querestadelas?”
A noção de experiênciaé válidana medidaem que re-
mete a umaprendizadoativo.Certas artese certos ofíciossão
tão difíceis,que é preciso umavidainteira para dominá-los.
Vimosque o trabalhadormanualconseguecompensaras de-
ficiênciasfísicasgraçasa umaexperiênciaque lhe permiteor-
ganizar o campo de suas atividades. Intelectualmente, Her-
riot diziaque“a culturaé o que restaquandose esqueceu

13 Sartre, Critiquede la raisondialectique.

469
tudo”,e, na verdade,algumacoisa permanece: uma aptidão
para reaprendero que umdiajá se soube,métodosde traba-
lho, resistênciasao erro, parapeitos.Em muitasáreas— filo-
sofia, ideologia,política— o homemidosoé capazde visões
sintéticas interditadasaos jovens. E preciso ter observado,
em suassemelhançase diferenças,umavasta multiplicidade
defatosparasaberapreciara importânciaou a insignificância
de umcaso particular,reduzira exceção à regraou designar-
lhe o lugar, subordinaro detalhe ao conjunto, desprezar a
anedota para destacar a idéia. Há uma experiência que só
pertence àquelesque estão velhos:é a daprópriavelhice. Os
jovenssó têm destanoçõesvagase falsas.E precisoter vivido
muitotempoparater umaidéiaprecisadacondiçãohumana,
parater umavisãogeraldamaneiracomose passamascoisas:
só então somos capazes de “prever o presente”, o que é a
tarefa do homempolítico.É por issoque, ao longoda Histó-
ria, muitasvezes confiou-se a homensidososaltas responsa-
bilidades.
Entretanto,só nassociedadesrepetitivasou, pelome-
nos, estáveis, a idade pode conferir uma qualificação. No seio
de um mundoimóvel,se o homem idoso se empenhou em
progredir,vê-se maisadiantadodo que aquelesque partiram
depoisdele.Não acontece o mesmono mundomóvelde hoje.
O devir individualinscreve-senum devir social com o qual
não coincide: esse desnívelproduz-seem detrimentodo ho-
memvelho, que se vê necessariamenteatrasadoem relação
ao seu tempo. Para seguir adiante, ele precisa arrancar-sea
umpassadoque o aprisionacadavezmaisestreitamente:sua
marchaé lenta. Entretanto, a humanidadenão é monolítica;
faceao passadoquepesasobreasantigasgerações,asnovas
são livres, retomam a tocha até o momento em que, esma-
gadas pelo peso do prático-inerte, serão por sua vez ultra-
passadas pelas jovens. O indivíduonão tem condições de
acompanharessa corridana qual o projeto ressuscitaindefi-
nidamenteem seu frescor. Fica paratrás. No seio damudan-
ça, ele permaneceo mesmo:está condenadoà obsolescência.

470
No campo do conhecimento, ele fica necessariamente
atrasado.Vejo bem isso, no meu próprioexemplo: aprendi
muitodesdeos meus20 anos,masde ano paraano torno-me
relativamentemaisignorante,porqueas descobertasse mul-
tiplicam, as ciências se enriquecem e, apesar dos meus es-
forços para manter-meinformada,pelo menos em certas á-
reas,o númerode coisasque me permanecemdesconhecidas
multiplica-se.
Para entender com maior precisão esse processo de
desqualificação,é precisoabandonaras generalidadese con-
siderar em sua singularidadediferentes atívidades Masob-
servemosprimeiroque é enquantoquer intervirna evolução
da sociedadeque o velho fica a reboque: enquantoconsumi-
dor,ele usufruidoprogressotécnicosemqueesteo incomo-
de; chega a acolhê-locompresteza.Tolstoi,em princípio,de-
testava a novidade; entretanto, o gramofone e o cinema ma-
ravilhavam-no;pensouem escrever roteiros.Assistiua cor-
ridasde automóveise almejavaver aviões.Andersen,aos 65
anos,encantava-secoma rapidezdascomunicações:atraves-
sava-sea Suécia em 24 horas, ao passoque outrora era pre-
ciso uma semana para fazê-lo. “Nós, velhos, somos vítimas
dos dissaboresnaturaisde um período de transições, entre
duasgerações; masé muitointeressante.”Wells,aos 70 anos,
apaixonava-sepor todasas invençõesmodernas,e em parti-
cular pelo cinema.No municípiode Plodemet,estudadopor
Morin, 14há velhos deficientes, doentes, enfraquecidos, aban-
donados,que dizemnãoservirparamaisnadaa não sertomar
conta da casa, como umcão. Algunsoutros,emboraem bom
estado de saúde, fecham-se no passado:não sabem ler nem
escrever,recusama águacorrente, o gás,aeletricidade.“Para
quê? Não é do nosso tempo”, diz um deles. Mas a maioria
fica deslumbradacom o mundomoderno:“Teremosvistotu-
do, da bicicleta à Lua”, diz um marceneiro de 80 anos. Lem-
bram-se de como ficaram espantadosdiante dos primeiros

14 Commune en France.

471
automóveis,dos primeirosaviões; o aquecimento a gás e a
televisão deixam-nos maravilhados. O passado, a seus olhos,
é umperíodode barbárie:“Cemanosatrás,isto aqui,ah! sim,
era umaverdadeiraterra de selvagens.Agora estamoscivili-
zados,todomundosabepelo menosler e escrever.Antes, era
a miséria,agoraestamosbem.” Admiramo fato de os jovens
servirem-sede máquinase de radaresparapescar.Ficamsub-
jetivamente orgulhosospor ter o mundoobjetivamentepro-
gredido. Na medidaem que seus interesses, seu passadoe
suas atividadesnão são questionados,nenhumantagonismo
os separa do conjunto da humanidade:reconhecem-se ale-
gremente nela. A evoluçãoda humanidadeé umbelo espe-
táculoque eles contemplama distância,semse sentiremcon-
testados.
Há em Plodemet umcontraste impressionanteentre a
atitude dos grandesvelhos inativose a dos homens de 50 a
60 anosque trabalham.Estes últimosentramemconflitocom
a época porqueesta comprometeseusinteresseseconômicos
e ideológicos.Opõem-seà modernizaçãodaagricultura.Essa
modernizaçãoexigiriadeles um aprendizadodiante do qual
torcem o nariz; estão apegadosàs rotinas que constituíram
sua vida;não querem renunciaraos benefícios de sua expe-
riênciae ficar em inferioridadediantedosjovens, maisaptos
que eles paramanipularas novasmáquinas.Muitosobstinam-
se na recusa; então os filhos vão trabalhar na cidade, e os
pais sentem-se traídos: “Quantos velhos pais são aban-
donados pelos filhos! — diz um agricultorde 55 anos. “Ter
programadotoda umavidaparaconseguiralgo,e depoisnin-
guémpararetomara tocha!”15
Encontrei em um número do France-Soir de outubro
de 1968 a seguinteocorrência polícial:“Ouviu-seumestam-
pidono pátio:meusogroacabavade matarWolf,nossocão
pastor. Jean, meu marido,abriu a porta. Seu pai apareceu.
Seguravaumagranadana mão.Jean atirou-sesobre ele, e os

15 Falei desseconflitono capítulosobre “Aquestão social”.

472
doisse atracaram.À granadacaiuno chãoe explodiu”— con-
tou Dominique.Albert Rouzet, 65 anos, cultivadorem Chi-
nay(Côte-d'Or), quesofriade neurastenia,resolvera,navés-
pera, suprimirtoda a sua família,começando por seu filho
Jean, de 25 anos, que reprovavapor gerir a fazendasegundo
métodos modernos. “No meu tempo, levantávamo-nosde
madrugadapara prepararo trabalhodo dia,e não precisáva-
mosgastaro dinheirotodo comprandomáquinasparatraba-
lhara terra”,diziaele.O paie o filhomorreramcoma explo-
são.
No caso dos agricultores, entretanto, a sociedade per-
mite umaescolha entre a fidelidadeao passadoe a abertura
ao progresso;mashá outroscasosem que o velho artesão ou
o velho comercianteé condenadosem apelação pelo desen-
volvimentoda indústriaou do comércio. No fim do século
XIX, o aparecimento dos magazines arruinou um sem-núme-
ro depequenoscomerciantes.E ahistóriadelesqueZola conta
emAu Bonheur des Dames. Descreveu a resistênciae o de-
sespero da antiga geração diante do futuro que a espolia.
Baudu — de cara amarela, cabelos brancos, patriarca autori-
tário — é proprietáriodavelhaloja Au VieilElbeuf, fundada
cem anos atrás, de teto baixo, vitrines profundas,negras e
poeirentas, e que fica em frente aos esplendoresda grande
loja:numavitrinecintilante,a seçãode tecidosparecezom-
bar dele. Quando a sobrinha, chegada há pouco a Paris, o vê,
ele está na soleira da porta, com os olhos injetados, a boca
contraída, contemplandocom furor as vitrines do Bonheur
des Dames. À loja antiquada— balcões de carvalhogastos
pelo uso, gaveteiroscom fortes fechaduras,pacotes de mer-
cadoriassombriasempilhando-seaté asvigasdoteto —quase
não vê maisclientes. A cólera e o ódio devoramBaudu.“Ah!
meuDeus! ah! meuDeus!” — geme ele, olhandoparaa loja
onde sua sobrinha aceitou trabalhar. Indigna-see profetiza
a ruínada empresa;uma loja de novidadesnão devevender
de tudo:é um“bazar”.“Vendedoresde panovendendopeles,
é muitoengraçado!”Ele não pode aceitar a quedade todas
as tradiçõesdas quaisviveu.Rói-se. Outrora, suavelha casa

473
era a que tinhamaiorfreguesiano bairro, e ele tinhaorgulho
disso.E eis que— comotodasaslojasvizinhas— ela agoniza:
“Era a morte lenta, sem abalo, uma diminuição contínua dos
negócios, freguesas perdidas,uma a uma.”Le Bonheur des
Dames prospera, Baudu é forçado à admiti-lo:“Eles estão
tendo sucesso,pior para eles! Quanto a mim,protesto, é só
isso.”Para fazer face ao vencimentodosprazosde pagamen-
to, ele vende sua casa de campo. Arruinado, perde-se em
queixassobre os novostempos:está tudo desmoronando,a
família não existe mais. Ao mesmo tempo, está humilhado,
sente-se vencido:“Aconsciênciade sua derrota tirava-lhea
antiga segurançade patriarcarespeitado.”No fim, oferece-
ram-lhe um lugar no Bonheur des Dames, mas ele recusa e se
fecha no desespero.Vê-se aqui a relação que se estabelece
entre o tempo biológico e o tempo social. Mais jovem, ele
teria desejadoreadaptar-se,e teria sidocapazde fazê-lo.Mas
a brevidadede seu futuroe o peso do passadolhe vedamto-
das as saídas.À realidadena qualele se objetivara era o seu
comércio; estando este arruinado,ele não é mais nada: um
mortoemsursis.Atéo fim,cegoparao restodomundo,ele
se obstinará raivosamente em conservar, com suas recusas e
suas lembranças, aquele que foi um dia. Dramas análogos
produzem-sehoje em dia quando magazinesimplantam-se
em pequenascidades,onde arruínamos pequenoscomerci-
esse
a concentraçãomultiplica
antes.Nospaísescapitalistas,
fenômeno.
quea marchado temponãodes-
Há muitasatividades
qualifica,enquantotais: masafeta o indivíduoque as exerce.
Vimosque, numcerto momento,operários,funcionáriospú-
blicos,pessoalde nívelsuperiore outrosfuncionáriossão
aposentados.A sociedadeacolhe de maneiraambíguao en-
velhecimento dos médicos, dos advogados, de todos aqueles
que exercemprofissõesliberais.Isso chamaparticularmente
a atenção no que diz respeito aos médicos. Durante certo
tempo, a idade os valoriza;considera-seque ela traz expe-
riência; prefere-se o homemque tem umalongacarreira por
trás de si a umjovem inexperiente.Depois, esta imagemcai.

474
Pensa-sequeo velhodoutorjá está gasto,biologicamentede-
caído,e que perdeu,portanto,muitode suascapacidades.E,
sobretudo,ele é vistocomoatrasado;não está a par,supõem,
das descobertas mais recentes. Os clientes se afastam dele, e
oconsultório se esvazia.Em quasetodasasáreas,mesmoque
não caia sob o golpe da aposentadoria,e que aindaesteja a-
daptado às suas tarefas, o velho está condenado à inativi-
dade em consequênciade um preconceito desfavorável.
Nascarreiras que exigemgrandescapacidadesfísicas,a
involuçãobiológicaé determinante.Jovem ainda,o despor-
tista se vê impedidode competir.Readapta-se,então, no ra-
mo que é o seu: o campeão de esqui torna-se treinador de
umaequipe,o lutadorprofissionalde boxe,empresário;mui-
tas vezes, também, ingressa num ramo inteiramente diferen-
te: Carpentier abriuumbar, Killyvendecarrosesporte, Ma-
rielle Goitschel rodaumfilme.Há emsuasvidasumaruptura
que haviamprevisto,o que não impedeque muitosdeles te-
nham dificuldadeem se recolocar, e fiquem amargurados.
Uma rupturaanálogaproduz-senaexistênciadosdançarinos
e doscantores: aquelesperdema flexibilidade,e a vozdestes
se altera. Muitoscomeçama ensinara arte que não praticam
mais;assimpermanecemno mundoque foi o delese, ao mes-
mo tempo em que sofrem uma frustração, conservamuma
transcendência,graçasao progressode seus alunos.Outros,
por necessidadeou porescolha, afastam-seinteiramente.Os
atores têm que contar com as mudançasdo rosto e da voz.
Algunsresolvemnegá-las:vi De Max, aos 80 anos,no papel
do jovem Nero. Se é o caso de “monstrossagrados”,o públi-
co admira essa obstinação: aplaudia-se Sarah Bernhardt
octogenária, representandoAthalie, com umapernade pau.
Na maior parte dos casos, o ator mudade emprego; mas os
papéisde pessoasidosasnão são numerososno teatro, e são
maisrarosaindano cinema.No teatro, se o texto é importan-
te, amemóriaestá sujeitaa falhar.Aí tambémaspessoaspro-
curam readaptar-se,sem se afastar demaisde seu passado;
mas as saídassão limitadas:a maioriadosvelhos atores está
condenadaà aposentadoriae à pobreza.Maisfavorecidos

475
são os cantores-compositores satíricos, os humoristas, de
quem não se exigemproezastécnicas, e que podemadaptar
suas produçõesàs suaspossibilidades.O própriofato de ser
idosopodeentão constituirumaatração: com 80 anos,Mau-
rice Chevalierdeu umrecital que foi um triunfo,em grande
parte porqueele tinha80 anos.É precisoaindater umabela
saúde e ser capaz de conservardurante anos as boas graças
de umpúblicoávidode novidade.As carreirasnasquais,ape-
sar do papelimportanteque tem o corpo, a involuçãosenilé
maisnormalmenteultrapassada,são as dosmúsicosintérpre-
tes: pianistas,violinistas,violoncelistas.Acontece conserva-
rem até maisde 80 anos seu talento e sua celebridade: isso
supõeque eles não sejamvítimasde doençasque arruinariam
sua virtuosidade,e que não parem de se exercitar. Se biolo-
gicamente resistem ao tempo, o envelhecimentosocial não
os afeta, pois não se lhes pede outra coisa senão igualar-sea
si mesmos. Pode, aliás, acontecer que se superem na última
idade,graçasa umacompreensãocadavezmaisprofundadas
peças que interpretam.
Os trabalhadores intelectuais são menos afetados do
que os outrospelo declíniofisiológico.Um certo númerode-
les goza, em sua relação com a sociedade,de uma singular
autonomia: os criadores. Eles não são numerosos, mas sua
situaçãoprivilegiadafaz deles reveladores:quaissão as pos-
sibilidadespráticasde umhomemidosoquandoum máximo
deoportunidades lheé concedido?Qualé, nasdiversasáreas
intelectuaise artísticas,a relaçãoentrea idadee a fecundi-
dade,e como entender essa relação?
É muito raro um sábio inventarem sua velhice. Euler
fez importantestrabalhosmatemáticosaos 71 e 72 anos. Ga-
lileucompletouaos 72 anosseusDiálogosdasciênciasnovas,
sua melhor obra; escreveu aos 74 anos seus Discursos e de-
monstrações matemáticas. Buffon compôs entre 67 e 81
anos, os sete últimosvolumesde sua Histoirenaturelle,que
contêm o melhor de sua obra. Franklin, entre 78 e 80 anos,
inventouos óculosbifocaise estudouo envenenamentopelo

476
chumbo.Laplace terminoucom 79 anos sua Mécaniquecé-
leste.Herschelcontinuouaté 80 anosou maisa dirigirimpor-
tantes comunicaçõesà Sociedade Real. Michelson tinha 77
anos quandopublicouo relatório da experiênciasobre a ve-
locidade da luz, que realizara com Morlay. Gauss e Pavlov
continuaram
e enriqueceram
emseusvelhosdiasostrabalhos
iniciadosna juventude.Mas essassão exceções.Em seu livro
AgeandAchievement,no qualtentou estabelecer umacorre-
laçãoentreaidadee asrealizações
humanas,
Lehman,
'óba-
seando-senaBrevehistóriada química,do professorHildich,
mostraque, em química,asdescobertasmaisimportantesfo-
ram feitas por homens de 25 a 30 anos; as mais numerosas,
entre 30 e 35 anos;em 993 contribuições,3 apenasse devem
a homensdemaisde 70 anos.Noquese refere à física,a idade
idealseria de 30 a 34 anos;no que dizrespeito à astronomia,
de 40 a 44. Lehman observa que Edison produziudurante
toda a sua vida,massobretudoquandotinha 35 anos. Che-
vreul, que viveu 103, e trabalhou até muito velho, é conhe-
cido sobretudo por suasdescobertassobre a gorduraanimal,
feitas aos 37 anos.
É principalmentena matemáticaque as invençõestar-
dias são muitoraras.Houveumabrilhanteexceção.Elie Car-
danpublicou,aos 67 anos,umtrabalho absolutamentenovo
em relação à suaobra passada,e que marcouépoca na histó-
ria da matemática.Resolviaali problemasque ele mesmose
haviapropostoaos28 anos,e aosquaisos maioresmatemá-
ticosnão tinhamconseguidodarresposta.Citam-sealguns
outroscasos dessetipo, masmuitopoucos.À esterilidadedo
matemáticoidosoé tão conhecida,que o grupoBourbakinão
aceitavanenhummembrode maisde 50 anos.
O envelhecimentodossábiosnão é de ordembiológica.
Não se trata aqui de estafa, de desgaste nervoso, de fadiga

16 Quandose trata de arte e de literatura,o métodoestatísticoutitizado


por Lehman é aberrante. Nasciências,o númeroe o valordas desco-
bertas são maisfáceisde analisar.

477
cerebral; algunspermanecematé o fim em excelente estado
de saúde.Por que motivo,passadaumacerta idade,eles não
descobremmaisnada?
Pararesponder,é precisoprimeiroentenderque opção :
umhomemfaz,quandodecidededicar-seà ciência. O objeto
de seu estudoé o universalenquanto apreendidoatravésde
símbolose de conceitos abstratos.Isso implicaque ele instale
o universalemsimesmo.Suprimesuasubjetividadeparapen-
sar segundoum sistemaracionalválidopara todos. Mesmo
quetrabalheisoladamente,não estásó: participade umaobra
coletiva que, ao mesmo tempo que progrideatravés de ca-
minhosdiversos,esforça-se por unificar-se.Hoje em dia, a-
liás, ele geralmentefaz parte de umaequipe onde cada um
se sente o mesmoque os outros. O sábio não é um aventu-
reiro; ele retoma a herança de seus predecessores, os cami-
nhos nos quais se aventurajá foram, em parte, trilhados,e
outrospesquisadoreso acompanhamnessatrajetória;encon-
tramaliOsmesmosobstáculos,e acontece inventar-sesimul-
taneamente, em vários lugares,o meio de ultrapassá-los:a
descobertaindividualé preparadae demandadapeloconjun-
to da ciência. É verdadeque, por maissubmetidoque esteja
ao objeto de seu estudo,o pesquisador,quase a despeito de
si mesmo, permanece um sujeito singular:tem sua própria
visãodascoisas,imagina,tomasuasdecisões.Assimse explica
que por vezes ele se veja emergirda coletividadee encontre
umaidéiaoriginal.Masa escolhado universalfazcomque
essasiluminações
sejamrarase breves.Compreende-seque
elas se produzamquasesemprenajuventude,ou no inícioda
maturidade:então o sábio dominao conjunto dos conheci-
mentos que constituemsua especialidade;apreende-oscom
umolhar novoque lhe revelaasfalhase ascontradiçõesdesse
conhecimento;
ousapretenderremediá-las, porquetemtoda
umavidadiantedesipararetificarseuserros,parafazerfru-
tificar asverdadesque pressente.À seguir,é precisoumtra-
balho considerávelparatirar as consequênciasde sua desco-
berta, paraverificá-las,paraorganizá-las.A obra torna-se de
novo coletiva, e não é necessariamenteo inventorque será

478
o maisqualificadopara levá-la a termo. Na maior parte dos
casos, ele permanece o homem daquele momento,daquela
idéia:ao passogue o desenvolvimentodaciênciaexigiriauma
novaruptura.!
Umgrandematemáticode55 anosdisse-mequeliaago-
ra as obrasmatemáticascommaisfacilidadee proveitodo
que na juventude; suas possibilidadesde compreensão,sua
experiência,suacapacidadede sínteseenriqueceram-se.Mas
sua curiosidadeembotou-se um pouco. Aos 25 anos, vítima
da ilusãojuvenil que dilatainfinitamenteo futuro,ele proje-
tavaconhecer tudo,emtodosos ramosdamatemática.Agora
resigna-sea não ler as obras que não dizemrespeito direta-
mente à sua especialidade,e a ignorarmuitacoisa.Na mate-
máticadehoje — explicou-me— a especializaçãoé tão avan-
çada,os diferentesramossão tão compartimentados,que ele
acompanhamaisfacilmentea defesade umatese de biologia,
do que a aula de umcolega sobre uma área matemáticaque
lhe é estranha. Julga que um pesquisadorque não se tenha
afastadoda pesquisaconservapor bastante tempo a possibi-
lidadede fazer descobertas: mas atrapalham-noobstáculos
epistemológicos que os jovens ignoram. Hoje em dia, um
ÉvaristeGaloisseria impossível:paradominaras riquezasdo
edifício matemáticomoderno,é preciso ter de 25 a 30 anos.
É essa a idade mais favorávelpara a invenção.Mais tarde,
muitasvezessomosvítimasdainibição.Quandosabemosque
ninguémconseguiudemonstrara veracidadeou a falsidade
de um determinadoteorema, quandonós mesmosjá nos es-
forçamosemvão paraconsegui-lo,decidimosque seriaperda
de tempo obstinar-senaquele caminho,e deixamos de lado
o problema.O matemáticodequefaloviu-senessasituação,
há 11 anos.Um matemáticorussolhe disse,depois,ter resol-
vidoo problema.Ele investiucontra este, de novo:sabendo

17 Asexceções que assinaleidatam quase todasde um tempoem que o


sábio trabalhavasolitariamente;algumasdessas descobertastardias
têm um caráter quase artesanal.

479
que era possíveldescobrir,estava fora de cogitação abando-
nar a luta. E ele descobriu;muitorápido,pela simplesapro-
ximaçãode doisoutrosteoremasque conhecia perfeitamen-
te. Esse caso é muitofrequente— disse-meele. Nesseponto,
osjovenslevamumagrandevantagem.Muitasvezesignoram
que muitosoutros quebrarama cabeça em cima da questão
que os preocupa; abordam-nacom confiança; e têm todo o
tempodiantede si, não ficamtentadosa economizarseuses-
forços.
O passado— disse-meo meuinterlocutor— pesasobre
o sábioidososobretudosoba formade hábitosdeespíritoe
de interessesideológicos.Nonossotempo,a matemáticase
renova numa rapidezvertiginosa,e a mudançapõe em dis-
cussão todo o aparato.Trata-sede aprendera cada vez uma
linguagem radicalmente diferente. Evidentemente, se há
preferênciaporessalinguagemem relaçãoà antiga,é porque
ela é maisadequada,maisrápida,e porque facilita a desco-
berta. Aquele que não se decidea adotá-laé obrigadoa tra-
duzir nos termos aos quais está habituadoverdadesnovas:
isso retarda terrivelmenteseu caminhar.Acontece um pro-
fessor de 40 anos não entender umaexposiçãode suas pró-
prias teorias, feita por um jovem matemático de 25 anos a
colegas da mesmaidade,na nova linguagemque lhes é co-
murm,
e queo maisvelhoignora.Este últimonuncapodees-
perar passar à frente daquelesque possuemo instrumento
melhor adaptado.Entretanto, aprendero hebreu e o chinês
numacerta idadeé difícil,é desanimador:muitossábiosque
estão envelhecendotorcem o nariz.Em relação ao seu pró-
prio pensamento, o matemático tem um movimentode re-
cuo. “Se tenho a intuiçãode um novo teorema — diz-meo
meu interlocutor— dou-meconta de que ele me obrigaráa
revertudoo que eu tomavaaté aquicomoadquirido:hesito.”
“Ao envelhecer, tornamo-nos mais livres e menos livres -
dizia-meele, ainda. Somos mais livres em relação aos ou-
tros: não temos medode causar espanto, de passarporcima
de certos preconceitos, de contestar idéias adquiridas.Mas
somos menos livresem relação a nós mesmos.”Ele tem no

480
preloumlivrodematemática
redigidonoanopassado.Já es-
creveu, depois disso,um artigo que torna o livro obsoleto:
não se deteve no assunto,masficou incomodadopor infligir
a si mesmoumdesmentido.Essemesmoartigojá estáagora
contestadopor umtrabalhomaisrecentequeele acabade
terminar.O progressomatemáticonão é umatranquilacami-
nhada para a frente. É uma sequência de contestações que
acarretam incessantes reformulações.É preciso muita pai-
xão,muitadisponibilidade
parasubverterde caboa raboos
conhecimentosadquiridos:osjovens estão maisaptosa fazê-
lo doqueosoutros.
Vemosconfirmar-senessecaso o que eu disseem geral
sobre as atividadesdo homemidoso: o peso do passadore-
tardaseucaminhar,ou mesmoparalisa-o,ao passoque asno-
vas gerações subtraem-seao prático-inertee vão adiante.
Pode-se descrevermaisprecisamenteo que freia o ve-
Ilhosábio.Em primeirolugar,ele tem interessesideológicos;
estáalienadopelasuaobra,“conjuntodesignificaçõesiner-
tese sustentadas
pelamatériaverbal”,18naqualeleconstitui
seuserforadesi.Essaobraestáemperigonomundoporque
existe para outros que a ultrapassamà luz de seus próprios
projetos. Seu autor esforça-se para defendê-la;combate as
teoriase ossistemasqueestãosujeitosadesqualificá-la.
Pode
querer corrigi-la,enriquecê-la,masnão negá-la,o que, num
certo momento,poderiaser necessárioao progresso.Ela en-
cerra para ele exigênciasinertes às quais deve dobrar-se,o
que pode arrastá-loparacaminhossemsaída.Certos pesqui-
sadoresestão de tal maneirapresos a seus interessesideoló-
gicos, que chegam a alterar resultadosde experiênciasque
contradizemsuasteses. Darwintinhaconsciênciadesseperi-
£o, umavez que haviaestabelecidocomo regra anotar ime-
diatamente os fatos e as idéias contrárias a suas doutrinas:
“Poiseu sabiaporexperiênciaprópriaque asidéiase os fatos
dessetipo desaparecemmaisfacilmenteda memóriado que

18 Sartre, Critiquede la raison dialectique.

481
aqueles que nos são favoráveis.”Diz-se, entretanto, que, na
sua velhice, Darwinrecusavaque se lesse paraele qualquer
escrito que se opusesse a suas teorias; o mesmo aconteceu
com Augusto Comte. Uma tal obstinação torna impossível
rever a obra à luzdosconhecimentosnovos,de modoa per-
ceber e tentar retificar os eventuais erros nela contidos. O
caso de Lévy-Bruhl é excepcional: em seus carnês, escritos
em 1938-39, ele renunciaa todas as suasantigasidéiassobre
a mentalidadepré-lógica,a participação,a não-conceituali-
zação que pensaraobservarentre os primitivos.Entretanto,
não inventounadade novo.
Mesmoque seja desinteressado,o sábioesbarraem
resistências íntimas. Tem hábitos de espírito que o fazem
obstinar-seem métodosobsoletos.À especialização,que lhe
permitiuseussucessos,impede-odesemanterinformadoso-
bre trabalhosparalelosaosseus,e cujo conhecimentolhe se-
ria talveznecessário para inovar.Os maislúcidostêm cons-
ciênciadessaslacunas.Poucodepoisde ter recebidoo prêmio
Nobel, o professor Kastler falava em vir sentar-se entre os
estudantesparaassistira aulassobre a teoria dosquanta.En-
fim, sobretudo, certas idéias são tão familiares ao velho sábio,
que ele as toma porevidênciase não pensa,portanto,em pô-
ora,seriaprecisolivrar-sedelaspa-
lasdenovoemdiscussão:
ra avançar.Entre os “obstáculosepistemológicos”deque fala
Bachelard, a idadelhe parece umdos maisimportantes.
o velhosá-
Paradefendersuasconcepçõesretrógradas,
bio muitasvezesnão hesitaemcontrariaro progressodaciên-
cia: o prestígiode que gozalhe permite fazer isso. “Os gran-
des sábiossão úteisà ciência na primeirametadede suavida,
e nocivosnasegunda”— disseBachelard.ArthurClarkeexa-
minou um grande número de invenções que algunssábios
haviam declarado impossíveis,não por falta dos conheci-
mentos necessários, mas por uma falta de imaginaçãoe de
audáciaque Clarke imputaà idade deles, caracterizando-se
como velho, segundoele, umsábio que tenha atingidoos 40
anos. Há oitenta anos, a idéia de que a luzelétrica podiaser

482
utilizadapara a iluminaçãodomésticafoi vaiadapor todosos
especialistas; Edison, aos 31 anos, trabalhou, entretanto, na
realização de uma lâmpadaincandescente; mais tarde, po-
rém,ele se mostrou,porsuavez, retrógrado,quandose opôs
à introduçãodacorrente alternada.O astrônomoamericano
Newcombdemonstrounumensaio célebre que o vôo de ob-
jetos maispesadosque o ar era impossível.Quandoos irmãos
Wrightconseguiramvoar,Newcombdeclarouque a máquina
delesjamaisseria capazde transportarmaisde umindivíduo,
e portanto não teria qualquer aplicação prática. Um outro
astrônomo,W. B. Bickering,sustentoua mesmaopinião. Os
princípiosdaaeronáuticaeramentão conhecidos:masos dois
recusaram-sea deduziras consequênciasdesses princípios.
Em 1926, o professorBickerlowafirmou,apoiadoem provas,
que nunca se conseguiriaenviar um projétil à Lua: ele não
via outra fonte de energiasenão a nitroglicerina,e supunha,
em seuscálculos,que o combustíveldeviaestar incorporado
ao projétil. J. B. Campbell,astrônomocanadense, afirmou,
em 1938, que seria preciso um milhãode toneladasde com-
bustívelparaarrancarda atração terrestre umpeso de umou
dois quilos: a partir disso,chegava à mesmaconclusão que
Bickerlow. Supunha,em seus cálculos, que o foguete devia
ser dotado de umavelocidadefabulosa, e que a aceleração
seesgotariaembaixaaltitu-
seria tãolenta,queocombustível
de. Rutherford tinha66 anos quandomorreu,em 1937; pre-
tendiaque nuncase poderialiberar a energiacontidana ma-
téria.Cincoanosmaistarde,deu-seandamentoà primeira
reaçãoem cadeia,em Chicago.QuandoPontecorvoanun-
ciou que se podia observar o interior das estrelas graças a
partículasmuitopenetrantes,os neutrinos,osastrofísicoscom-
petentes riram-lhena cara: poucotempodepois,ele teve su-
cesso em suas experiências. “Aquele que sabe mais coisas
sobre um dado assuntonão é necessariamenteaquele que,
nessa área, poderáprevercom maisexatidãoo futuro”,con-
cluiClarke.E maisduramenteaindadoqueBachelard,ele
condenaosvelhossábios:“Oscientistasde maisdecinquenta
anosnãoservemmaisparaoutracoisaanãoserparticiparde

483
congressos,e deveriamser afastadosa todo custo dos labo-
ratórios.”
A exposiçãode Clarke não é muitosatisfatória.Ele in-
veste contra homens de valor muito diverso.Não estuda as
razões de suasresistências.Limita-se a dizerque é fatal que
tenhampreconceitos.“Umespíritocompletamenteaberto
seria um espíritovazio.”Entretanto, sublinhouum fato im-
portante:o conhecimento,ao invésde servirà previsão,pode
funcionar como um obstáculo a ela. Foi assimque Augusto
Comte, aos 35 anos, afirmouque nuncase poderiaconhecer
a composiçãodo Sol. Citarei tambéma declaração feita em
1835 pela Academiade Medicina de Lyon, a propósito das
viagensde trem:ela profetizouque o organismohumanonão
seria capaz de suportara vertiginosarapidezdesse meio de
transporte:“O movimentode trepidaçãoprovocarádoenças
nervosas...enquantoa fugazsucessãode imagensacarretará
inflamaçõesna retina.A poeira e a fumaçaocasionarãobron-
quitese aderênciasdapleura.Enfim, a ansiedadedosperigos
quesecorreconstantemente
manteráosviajantesnumalerta
permanente,e será o pródromode afecções cerebrais. Para
uma mulhergrávida,toda viagemde trem acarretará infali-
velmente um aborto, com todas as suasconsequências.”
Mesmograndesespíritos,passadaumacerta idade,têm
dificuldadeem caminharcom seu tempo. Comentando em
1934, quandotinha55 anos,o suicídiode seu amigo,o físico
Ehrenfest, Einstein atribuiu-o aos conflitos interiores dos
quaisé vítimatodosábioprofundamentehonestoque passou
dos 50 anos. Ehrenfest entendia claramente problemasque
não era capaz de resolver de maneira construtiva:“Nesses
últimosanos— dizEinstein — essa situaçãoagravou-se,em
virtudeda evoluçãoestranhamentetumultuadaque sofreu a
físicateórica.Aprendere ensinarcoisasquenãose podeacei-
tar plenamente,de coração, é sempreumacoisadifícil.A isso
junta-se a dificuldadecrescente de se adaptara novospensa-
mentos,dificuldadecom a qualse defrontasempreo homem
quepassoudos50 anos.”

484
O próprioEinstein teve que enfrentar essadificuldade,
e seu caso é interessantede examinar.Ele não estavaaliena-
do por interesses ideológicos.Jamais procurarater a última
palavra,e poucosepreocupava
comsuareputação.Seuamor
puro.Só quetinhaumavisão
à verdadeera absolutamente
da ciência tão solidamenteenraizadaem si próprio,que não
imaginavarenunciar a ela, a nenhumpreço: a ciência devia
dar uma imagemharmoniosae racional do mundo.O para-
doxode suacarreira é que sua teoria da relatividadeinfluen-
ciou grandementea teoria dos quanta: no entanto, a partir
dos45 anos,encarouesta últimacom mávontade.Seu antigo
colaborador, o físico polonês Infeld, escreveu: “Há ironia no
papelde campeãoqueEinstein assumiunagranderevolução,
porque ele virou as costas mais tarde a essa revolução que
ajudaraa criar. À medidaque o tempo passa,ele se distancia
cadavezmaisdajovem geraçãode sábiosque continuam,em
suamaioria,aspesquisassobrea teoriadosquanta.”
AntoninaVallentin,comquemEinstein muitasvezesse
abriuparacontarseus“tormentosmatemáticos”,
esclarece
que não se tratava“do divórcioque se opera entre umage-
ração nova,consciente da ousadiade seu pensamento,e um
velhoque permanecenovestígiodopassado,comoumbloco
no meio de uma estrada que continua. Seu dramaé antes o
de um homemque, apesarde sua idade,obstina-seem con-
tinuar numcaminhocadavez maisdeserto, enquantoquase
todosos seusamigose todosos jovens ao seu redor afirmam
que esse caminhonão leva a lugaralgum,e que ele está ca-
minhandopara umbeco sem saída”.
Ele não estava certo de ter razão. Em março de 1949,
aos 70 anos, escrevia a Solovine: “Você pensa que eu vejo
com umacalmasatisfaçãoa obra da minhavida.Masvistade
perto, a coisa se apresentade maneiracompletamentedife-
rente. Nãohá umaúnicanoção de cuja sustentaçãofuturaeu
esteja convencido,e não estou certo de estar geralmenteno
bom caminho.Os contemporâneosvêêm em mimao mesmo
tempo umherege e umreacionário que, por assimdizer,so-

485
breviveua si mesmo.E verdadeque isso é uma questão de
moda e de visão limitada, mas o sentimento da insuficiência
vem do interior.”
Entretanto, era-lhe impossívelmodificarsuaposição.À
seusolhos,umateoriasóeraválidasepossuísseuma“perfei-
ção interna”; a abundânciadas“confirmaçõesexternas”não
lhe bastava.A teoria doscamposunificados,quedurantetrin-
ta anos ele tentou desenvolver,deviarespondera essas exi-
gências. A das partículaselementares não as satisfazia.Ele
a teoriaquânticadeNielsBohr.À
entendeuimediatamente
tal ponto, que declarou: “Eu mesmo teria podidochegar a
algo semelhante.”Mas acrescentou logo: “Mas se tudo isso
é verdade,então issosignificao fimdafísica.”Ele não queria
admitirque a física pudesseassumiruma fisionomiadesar-
mônica. Mais tarde, os postuladosde Bohr deixaramde pa-
recer paradoxais;ficaram contidos numa nova teoria geral
que conciliavaumponto de vistacorpusculare umponto de
vista ondulatório,graças à idéia de onda de probabilidades.
Esta idéiaera recusadapor Einstein, emboratodaessa cons-
trução tenha sidoelaboradaa partir de seu própriosistema.
Ele não era homem de se contentar com velhas verdades; mas
nãojulgava— dadoscertoscritériosque não pensavaem
abandonar— que as idéiasnovasfossemconcludentes.
Nunca teve condiçõesde verificar sua teoria unificada
doscampos,tal a dificuldadede exprimi-lamatematicamente.
Por outro lado, suas resistênciaso impediramde participar
dos progressosda física quântica.Totalmentedespojadode
egocentrismo,não viveuseu fracassoe seu isolamentocomo
uma tragédia subjetiva.Mas, objetivamente, há quase uma
unanimidadeemjulgar que perdeuos últimos30 anosde sua
vidaem pesquisasvãs.Seu biógrafoKuznetsovconstata que
algumasdas idéiasemitidaspor Einstein na décadade 1940
atingiramhoje sua maturidade,no campo da física quântica
relativista.Concluidaíquesuacrítica“indicavaoslimitesda
mecânicaquântica,paraalémdosquaisperfilavam-seteorias
mais revolucionárias”.Como a ciência progriderenegando-

486
se para se ultrapassar,os retardatários podem sempre ser
consideradosmaistardecomo precursores.Maso fato é que,
no fimde suavida,Einstein dificultoumaisdo que favoreceu
Oprogressoda ciência.
A opção do filósofo é radicalmentediferente da do sá-
bio. Enquanto este descreve o universo em exterioridade,
aquele consideraque é o homemque faz a ciência: quer dar
conta darelação entre o universoe o homemcolocadocomo
sujeito. E ao mesmotempo a favore contra a ciência: aceita-
a, na medidaemque ela é umprodutohumano,masrecusa-se
avernelao reflexodeumarealidadequeexisteemsimesma.
O sábio não põe em discussãoaquele por queme para quem
a ciênciaexiste— o homem.O filósofoé aqueleparaquem
o homemestá em discussãono seu ser, é aqueleque se inter-
roga sobre a condição humana tomada em sua totalidade.
Mas ele próprioé um homem, todo o homem:o que tem a
dizer, é ele mesmo, em sua universalidade. Quando Descar-
tes diz: “Eu penso...”,é o Homemuniversalque pensanele.
Não precisa,portanto,de ninguémpara falar,e não devesa-
tisfação a ninguém.Existe a ciência. Existem filosofias.E é
verdadequenenhumasecriaapartirdezero;o filósofosofre
influências,encontra problemasque outros colocaram.Mas
cada sistemasó pode ser criticadodo interior, e não por re-
ferência a dadosexteriores.Podem-sedenunciaras contradi-
ções, aslacunase asdeficiênciasdessesistema,masnãoopor-
lhe fatos que outros tenham determinado.Com efeito, há,
no início, o que Bergson chamavauma “intuiçãofilosófica”,
que se pode definir tambémcomo umaexperiênciaontoló-
gica, a partirda qualconstitui-seumavisãodo mundo.
Essa intuiçãotem umaevidênciaíntimairrefutável.Con-
frontadocomnovasfilosofias,o filósofopodeaceitardestascer-
tos aspectos, podeser levadoa colocar-se novosproblemas:
masnão abandonaráseu pontode partida.Se acrescenta,
suprime, corrige, é sempre numadeterminada perspectiva
que é sua,e à qualé estranhaqualqueroutra perspectiva,de

487
tal modoque outremnuncapoderásuperá-lo,nuncapoderá
desqualificá-loou contradizê-lo.
Quase sempre seu pensamento enriquece-se com a
idade. Tem a intuição original na juventude ou na maturi-
dade — excepcionalmente, no caso de Kant, com mais de
50 anos. Para apreender as implicações dela, ele precisa de
tempo, uma vez que visa a nada menos do que apreender
as relaçõesdohomem,enquantosujeito,coma totalidade
do mundo. É um programa inesgotável. Uma vez fixada
uma construção, o filósofo faz, com relação a ela, um recuo
que lhe permite criticá-la, que o leva a propor-se novos
problemas, a descobrir novas soluções. Houve um caso em
que o progresso foi sustado pela própria natureza da obra:
foi o de Hegel, cujo sistema fechou-se em torno dele mes-
mo, quando tinha cerca de 60 anos. Hegel colocou-se no
fim da História, convencido de ter feito uma exposição
exaustiva sobre o curso do mundo. À obra realizada não
permitia novo desdobramento e a contestação só se podia
fazer do exterior. Em todos os outros, o sistema permane-
ceu aberto e, mesmo que a última idade não tenha sido a
mais fecunda, eles ainda o enriqueceram nesse momento.
Citarei apenas dois casos: o de Platão e o de Kant.
Todosconcordamem pensarqueAs leis,que Platão es-
creveu aos 80 anos, a despeito de belas passagensoriginais
sobre o tempo e à memória,marca um recuo em relação ao
conjuntodesuaobra:um“refluxo”,um“empobrecimento”,
um“abandono”. Parecequesuaexperiênciao tornoupessi-
mista.“Nossaespécie não é totalmente semvalor”,concede
ele. Mas escreve tambémque: “Aparte dosmalessobrepuja
a dosbens”,e que os maioresbens são “maculadoscomo por
umafatalidade”.
Levaa melancoliaaopontodedeclararque
o homemnadamaisé do que umfantoche nasmãosdosdeu-
ses e dosdemônios.Nessascondições,não se cogita maisde
buscarparaa cidadeumsistemapolíticoperfeito,masapenas
Osistemamenosruimque for possível.Para governaros ho-
mens, Platão não confia mais na razão, na educação, no co-

488
nhecimentodaverdade.É precisoimporaoshomensleis,e
persuadi-los,não importapor que meios, a dobrar-sea elas.
Já na República,Platão aceitava a idéia da mentira útil, mas
concedia-lhepoucaimportância;ao passoque esse utilitaris-
motriunfasemcontrapartidaemAsleis.É umaobra didática,
na qualos três interlocutoressão velhos— ao passoque nos
diálogosanteriores haviasempreao menosumjovem. O es-
tilo é pesado.Prudente,emperrado,o pensamentode Platão
esclerosou-se.Ele não manifestamaisaquelasede daverda-
de que inspiravasuas obras anteriores. Essa últimafase de
suavelhice é intelectualmenteumdeclínio.
Entretanto, foi a partirdecerca de62 anosqueescreveu
suasobrasmaisprofundase maispessoais.Foi-lhe necessário
tempo paralivrar-seda influênciade Sócrates e de seus pre-
decessores,paracompreendertudoo que suasprópriascon-
cepções implicavam.Aos 62 anos, houve uma crise na sua
evolução.Fez um recuo em relação a sua obra; descobriuas
objeções que sua teoria das idéiaslevantavae, para respon-
der a essas objeções, retomou o problemaem sua base, no
Teetetoe noParmênides;tornou precisasua posiçãoem rela-
ção aos megáricos.Ao longode O sofista, Opolítico, Timeu,
Críton, Filebo, sua doutrina não cessa de se renovar e de se
enriquecer.É emFilebo,escrito quandoele tinhacerca de 74
anos, que respondeà questão proposta em Teetetosobre o
erro e o saber:“Saberé imitarna almaasrelaçoesqueexistem
no ser.Ӄ nessaobra que encontramosa maisamplaexposi-
ção de suadialética.AforaAs leis, as obras davelhicede Pla-
tão representamumincessanteprogresso.”?
Kant publicouaos57 anosa Críticada razãopura. Tinha
66 anos quandoescreveu a Críticadojuízo e era aindamais
idoso quandocompôsA religiãodentrodos limitesda mera

19 Certos historiadoresda filosofiaconsideramo períododa maturidade


maisdinâmicoe criador,comoporexemploYvonBrês, emLa Psycho-
logiedePlaton. Mas mesmoesses historiadoresreconhecema impor-
tânciadas obras da velhice.

489
razão.Esses doislivrostratamcertos pontosessenciaisdeseu
sistemacom umaprofundidadeinteiramentenova.Enrique-
cem e renovam sua obra anterior. Ele trabalhou em suas
obras póstumasaté que suasforças intelectuaiscomeçaram
a declinar.SegundoLachiêze-Rey, essas obras são o coroa-
mento de toda a sua filosofia.Seus primeirostrabalhospro-
punhamcertos problemasque ele só conseguiuresolver no
fimdavida,no Uebergang.O principalera o seguinte:Qual é
o mododepresençadoespíritoparasi mesmo,enquantopre-
sença constituinte?Anteriormente,ele sentia-se incomoda-
do com o lugarque concediaao realismopsicológico;hesita-
va em aplicarcom rigoro método transcendental.Ao enve-
lhecer, longe de se esclerosar, adquiriusuficiente confiança
em si próprio para vencer suas resistênciase se libertar dos
antigospreconceitos. Reconduziuas pseudo-realidadespsi-
cológicas ao papel de simplesmomentosna constituiçãodo
mundoe doeu. O Uebergangpõe o sistemade acordoconsigo
mesmo. À consciência encontrou ali, enfim, sua autonomia,
e faz reconhecer sua realidade.A coisa desaparece, em be-
Ocogitoafirma-secomopotênciadeter-
nefíciodaatividade.
minante.
Bem entendido,se o filósofo pode enriquecer seu pró-
priosistemaaté a velhice,não poderiasairdele parainventar
outro radicalmentenovo.Kant pressentiuFichte, masnão se
pode imaginarque ele tenha descoberto a dialéticahegelia-
na.Comoo sábio,o filósofoestáempartealienadoainteres-
ses ideológicos.Se ultrapassasuasconcepções anteriores, o
faztentandoconservá-las:nãopodeaceitarvê-lasdesquali-
ficadas.E tambémele tem “hábitosde espírito”:tem suama-
neira de pensar,que lhe é tão naturalque lhe parece neces-
sária, e pressuposiçõestão enraizadasem si, que não as dis-
tingueda verdade.
Como envelhecem os escritores? Eles são tão diversos,
perseguemobjetivostão diferentes,que é difícilrespondera
essapergunta.Algunspermanecemcriadoresatéumaidade
muitoavançada:SófoclesencenouÉdipoemColonaaos89

490
anos.Voltaire produziuo melhorde sua obra nos 20 últimos
anos de sua vida.Os últimosvolumesdasMémoiresd'outre-
tombee La ViedeRancé foramcompostosporChateaubriand
na velhice. Goethe escreveu seus mais belos poemas du-
rante os últimos25 anos de vida;dessaépoca datamPoesia
e verdadee O segundoFausto.Hugo,quandovelho,tinha ra-
zão em não se sentir inferiora seu passado:“Há meio século
que escrevo meu pensamentoem prosa e verso, mas sinto
que disseapenas a milésimaparte do que está em mim.”Es-
creveu ainda uma obra considerável a partir dos 64 anos.
Yeats superou-seno fimda vida.
São exceções. Em geral, a idadeavançadanão favorece
a criação literária. Em Corneille, em Tolstoi e tantos outros,
é esmagador o contraste entre a produção da maturidade
e a dosúltimosanos.Por hábito,paraganhara vida,paranão
admitiro própriodeclínio,muitosvelhoscontinuama escre-
ver. Mas a maioriajustifica o dito de Berenson: “O que se
escreve depoisdos 60 anos não vale maisque umchá que se
faz de novo, sempre com as mesmasfolhas.” Tentemosen-
tenderpor quê. O que procurao escritor? Em que condições
pode ele obtê-lo?
A filosofia considera o homem enquanto noção; ela
quer conhecer sua relação total com o universo.Tambémo
escritor visa ao universal,mas a partir de sua singularidade.
Ele não pretende fornecer um saber, mas comunicaro que
não podeser sabido:o sentidovivenciadode seu ser no mun-
do.Transmite-oatravésde umuniversosingular:sua obra. O
universalsó é singularizado,a obra só tem umadimensãoli-
terária se a presença do autor se manifestanela pelo estilo,
pelo tome pela arte, que trazemsua marca.De outro modo,
estaremoslidandocom umdocumento,que apresentaa rea-
lidadeem sua objetividadeimpessoal,no plano do conheci-
mentoexterior,e não enquantointeriorizadaporumsujeito.
Mas de que modopode a minhavivênciatornar-se a de um
outro? De uma única maneira: por intermédioda imagina-
ção. O leitorde umdocumentoinforma-sesobreumadaspar-

491
tes de seu universosemdeixaresse universo:permaneceem
seu lugarno mundo,numdeterminadolugar,numdetermi-
nado momento de sua vida. O leitor de uma obra literária
entra num outro mundo,molda-senumoutro sujeito, dife-
rente de simesmo.Issoimplicaqueele neguea realidadepara
jogar-se no imaginário.Isso só lhe é possívelse a obra que lê
lhe propõeummundoimaginário.Comunicara vivêncianão
'consiste em transcreverno papelumalinguagemque previa-
mente a exprimiria: o vivenciado não é formulado; trata-se,
parao escritor, de extrairenunciadosdefinidose inteligíveis
da confusa opacidadedo não-dito.Assimcria ele umobjeto
que não traduznenhumarealidade,que existe no modo do
imaginário;ele própriose dáumaconstituiçãofictícia:Sartre
faz alusão a essa operação quando,em seu ensaioDes rats e
deshommes,declaraque todo escritor está possuídopor um
“vampiro”.
Bem entendido,nãose devesuporqueo escritorresolva
primeirocomunicare depoisrecorra à imaginação.É sua es-
colha originaldo imaginárioque decide sobre sua vocação;
essa escolha tem, de acordo com os indivíduos, motivações
diversas,masé sempreencontradana raiz de umaobra lite-
rária. Esta últimaé a materialização— atravésde signostra-
çadosem papel— do mundoirreal que o sujeito criara para
si atravésde jogos, de devaneios:mundoirreal, que só pode
adquirirconsistênciae permitira transmissãode uma expe-
riência porqueé a projeção da realidadenumaoutra dimen-
são.
Escrever é, portanto, uma atividadecomplexa:é, num
mesmomovimento,preferir o imaginárioe querer comuni-
car; nessas duas escolhas, manifestam-se tendências muito
diferentes e, à primeiravista,contrárias.Parapretendersubs-
tituir por umuniversoinventadoo mundoreal, é preciso re-
cusar agressivamenteeste último.Aquele que nele sentir-se
comoumpeixena água,considerandoque tudoacontece na-
turalmente,nãoescreverá.Maso projeto decomunicaçãosu-
põe que nos interessemos pelos outros; mesmo que entre

492
inimizadee desprezona relação do escritor com a humani-
dade — quando escreve, como Flaubert, para desmoralizá-la,
ou para fustigá-la,para aviltá-la,para revelar sua ignomínia
— há umapretensãode ser reconhecidoporessa mesmahu-
manidade:do contrário, seu próprio projeto de denunciá-la
estaria condenado ao fracasso, e não teria sentido; através do
ato de escrever, atribui-lhemaiorvalor do que em suas de-
claraçõesverbais.O desesperoabsoluto,o ódioradicalde tu-
do e de todossó pode satisfazer-secom o silêncio.
O projeto de escreverimplica,portanto,umatensãoen-
tre uma recusa do mundoem que vivemos homens e uma
certa atração pelos homens;o escritor está ao mesmotempo
contra eles e com eles. É umatitudedifícil:implicavivaspai-
xões e, para sustentar-se por muito tempo, exige força.
A velhice reduzas forças, extingueas paixões.O desa-
parecimento da libido acarreta, como vimos, o de uma certa
agressividadebiológica;o abatimentofísico, a fadiga,a indi-
ferença naqualmuitasvezesmergulhaa velhiceimpedem-na
de se preocuparcom os outros. A tensão que a conciliação
de doisprojetos, senão contraditórios,pelo menosdivergen-
tes, gerava, relaxa-se. O velho autor se vê privadodaquela
qualidadeque Flaubert chamava de “alacridade”.Abatido
pela ruína de sua sobrinha, dizia ele, numa de suas cartas:
“Paraescrever boas coisas,é preciso umacerta alacridade.”
E numaoutra: “Para bem escrever, é preciso umacerta ala-
cridadeque não tenho mais.”Aos 64 anos, Rousseausentiu
com melancoliao declíniode suasfaculdadescriadoras.Con-
tando nas Rêveriesum de seus passeios,escreve: “O campo
aindaverde e risonho, mas em parte desfolhadoe já quase
deserto, oferecia por toda parte a imagemda solidão e da
proximidadedo inverno.Resultavade seu aspecto umamis-
tura de impressõesdocese tristes, por demaisanálogasà mi-
nha idade e ao meu destino, para que eu não aproveite a
comparação.Via-me,nodeclíniodeumavidainocentee in-
fortunada,a alma aindacheia de vigorosossentimentose o
.espíritoaindaornadode algumasflores,masjá fanadospela

493
tristezae ressecadospelos desgostos.Só e abandonado,sen-
tia chegar o frio dos primeirosgelos e minhaimaginação,a
exaurir-se,não povoavamaisminhasolidãocomseres forma-
dossegundomeucoração.”Escreveele ainda,namesmaépo-
ca: “Minha imaginação, já menosviva,não maisse inflama
como outrora à contemplação de um objeto que a anime;
embriago-memenoscom o delírio do devaneio;há maisre-
miniscênciado que criaçãono que ela produz,doravante;um
morno langordebilitatodas as minhasfaculdades;o espírito
de vidaextingue-segradativamenteem mim;só com dificul-
dade minhaalmase projeta para fora do seu caducoinvólu-
cro...”
Esse langorprejudicatanto maiso escritor idoso,quan-
to lhe é necessáriosentir-se inspirado:quandojovens, bas-
ta-nostersimplesmente
vontadedeescrever,paranoscon-
vencermosde que temos “tudo”a dizer. Quandovelhos,te-
memosestar no fimda linha,tememossó ser capazesde nos
repetir. Gide constata, melancolicamente, no fim da vida:
“Recaio em temas já repisados,e dos quais não me parece
que aindapossa tirar partido.”E, emAinsi-soit-il, aos 81 a-
nos: “Disse maisou menosbem tudoo que pensavater a di-
zer, e temo repetir-me.”
O risco de repetição provémem parte do fato de o es-
critorestarpresoa interessesideológicos.Ele defendeucer-
tos valores, criticou certas idéias,tomou tal ou tal posição:
está fora de cogitaçãorenegaressas atitudes.Não é impossí-
vel que, permanecendofiel ao seu passado,um escritor se
renove.Podeacontecer tambémqueele prefirasualiberdade
a seusinteresses.Isso aconteceu comigo.Meu públicoexigia
de mimo otimismoantesde tudo,particularmenteno que diz
respeito ao destino da mulher: o fim de Sob o signoda His-
tóriae minhasúltimasnarrativasdesmentiram
essaespera,e
issomefoivivamentereprovado.Masrecuso-meamealienar
numaimagemestática de mimmesma.
De qualquermaneira,todosnóssabemos,seja ele Flau-
bert, Dostoiewski,Proustou Kafka, o escritorsó escreveseus

494
próprioslivros.É fatal que esses livrostragama sua marca,
já que a literaturaexprimeo escritor em suasingularidade.E
sempre ele que está ali, em suas diferentes obras, e inteiro,
tal como a vida o fez. As coisas mudam, nós mudamos: mas
sem perder nossa identidade.Nossasraízes, nosso passado,
nosso ancoradourono mundopermanecemimutáveis:é por
aí que se definem os objetivos que nos esperam, no futuro,
ascoisasa fazer,ascoisasadizer.Nãose podeinventararbi-
trariamenteprojetos parasi mesmo:é precisoque esses pro-
jetos estejam inscritosno nossopassado,como exigências.
o que indicaCamusno prefáciodeL'Envers et l'endroit:“To-
do artista conserva assim, no fundo de si, uma fonte única que
alimenta, durante sua vida, oque ele é e o que ele diz. Quando
a fonte seca, vemos a obra endurecer e fender-se, aos poucos.
São as terras ingratasda Arte que a corrente invisívelnão
irriga mais. Com o cabelo tornado raro e seco, o artista, co-
berto de palha,está maduroparao silêncioou paraos salões,
Oque vem a ser a mesmacoisa.”
É verdadeque a obranãose desenvolvemecanicamente
nemorganicamentea partirde umgermeno qualestariacon-
tida em potencial; através de enriquecimentos, de desvios, de
regressões,ela abraça o movimentoda existência.Mas é, de
certa maneira,programadapela nossa infância:é então que
o indivíduose fazser o queessencialmentepermanecerápara
sempre,é então que ele se projeta nas coisaspor fazer. Dis-
raeli, bempequeno,decidiraque umdiaseriaministro;ainda
criança,Sartre decidiuser escritor.Avida delesfoi orientada
Aspessoasquecomeçama
poresseprojeto,e o realizaram.
escrever tardiamente,nempor issodependemmenosestrei-
tamente de seus primeirosanos de vida;vê-se bem isso nas
obrasdeRousseau:reencontram-se
esseprimeiros
anosno ho-
mem que eles talharam. Dependendo da amplitudeque ti-
nha originalmente,o projeto de escrever terminarárápido,
Ou,ao contrário, a morte, mesmo tardia, o deixará inacabado:
Rimbaud,aos 20 anos, julgavanão ter mais nada a dizer, e
Voltaire, aos 80, não se cansava de falar. De qualquer modo,
a obra é afetada pela finitude.O homem idoso toma cons-

495
ciência disso e muitas vezes — como no caso de Gide — de-
sanimade continuá-laduranteo tempo que lhe resta.
O silênciode certos escritoresidosostem aindaumaou-
tra razão. À vocação deles — Sartre mostrou-ono caso de
Genet, de Flaubert — é suscitadapelas contradiçõesde sua
situação;viver lhes parece impossível,eles se debatemnum
impasse.Escreveré a únicasaída:eles escolhemo imaginário
para nele inscreveruma reconciliaçãodas oposições que os
dilaceram.Navelhice, realizaramessa reconciliação.E aliás,
seja lá como for, a vidafoi vivida,dandoassima provade sua
possibilidade.
O gênero literárioque convémmenosao homemidoso
é o romance. Nesse campo tambémhá exceções. Defoe es-
creveu todos os seus romances, e Henri James algumasde
suasmelhoresobras, depoisdos 60 anos. Cervantestinha 68
anosquandoescreveua segundapartedeDom Quixote.Dois
romancesencontram-seentre as obras da velhice de Hugo.
Nos diasde hoje, o impressionanteJohn CowperPowyses-
creveutodosos seusgrandesromancescom maisde 60 anos.
Albert Cohen acabade publicar,com 73 anos,seu maisbelo
livro, Bela do Senhor. Mas no conjunto, os escritores idosos
voltam-semais para a poesia e para o ensaio do que para o
romance. Thomas Hardy, romancista fecundo até os 60 anos,
a partir desse momentosó compôspoemas.Ao envelhecer,
Colette só escreveumemórias.MartinduGardnuncaconse-
guiudar forma ao romanceconcebido depois dos Thibault,
para o qual fizera anotações duranteanos. Por quê?
Mauriacpropôsumaresposta.Escreve ele, emMémoi-
resintérieurs:“Masà medidaque o tempocorre, e que nosso
futurotemporalse reduz;quandonão se pode maisapostar,
quandoa obra está concluídae a provafoi entregue, quando
a aventurahumanase aproximadofim,então os personagens
de romancenãoencontrammaisemnósespaçoondepossam
mover-se:ficam presosentre o bloco endurecidoe inalterá-
vel de nossopassado,onde doravantenadamaispenetra, e a
morte que, maisou menos próxima,está doravantepresen-

496
te.” E também:“Findaa juventude,ao avizinhar-sea última
virada,nossoprópriorumornão encobre maiso marulharco-
tidianodapolítica,poistudoemnóstorna-se,doravante,silên-
cioe solidão.Então apregoamosquea leituradosromancesnos
entedia,e queàsmaisbelashistóriasimaginadasdeve-seprefe-
História.”E ainda,em1962:“Averdadeé que,
rir a inimaginável
chegadosao últimocapítulode nossahistória,tudoo que é in-
ventadonos pareceinsignificante.”“Só as criaturasde carne e
ossosubsistemaindaem nósnesselimiteindeterminadoentre
o finitoe o nada,que se chamade velhice.”
Penso que, com efeito, se nosso impulsopara o futuro
se quebra, é difícilpara nós recriá-lo num herói imaginário:
para tanto, nem nele nem em nós a aventurahumanasuscita
bastante interesse. Quanto à relação do romancistacom o
passado,compreendo-ade outro modo.A obra que escrevo
depende ao mesmotempo de sua fonte longínquae do mo-
mento presente. A ficção, maisdo que qualqueroutro gêne-
ro, exige que o dado seja pulverizadoem benefício de um
mundoirreal: este últimosó temvidae cor se estiverenraiza-
do em fantasmasmuitoantigos.Os acontecimentose a atua-
lidadepodemfornecer ao romancistaumpontode apoio, um
ponto de partida:ele deve ultrapassá-los,e só o faz com feli-
cidade alimentando-seno mais profundode si mesmo.Mas
então são os mesmostemas, as mesmasobsessõesque reen-
contrará, e se arrisca a repetir-se. Ao contrário, as memórias,
a autobiografiae o ensaio reconstroemou reassumemexpe-
riências cuja diversidadeé enriquecedorapara o escritor. E
sempreele que fala: masarrisca-semenos a repetir-se quan-
do fala de coisasnovas,do que quandoexprime,sob umnovo
pretexto, sua fundamental e sempre idêntica atitude com re-
laçãoaomundo.20

20 O próprioMauriacconfirma,com seu exemplo,o que digoaí. Ele re-


novou-se— pelo menosaté um certo momento— quandoescreveu
seus Bloc-notes. Seu último romance, ao contrário, parece uma imita-
ção dosde sua maturidade.

497
A sorte de umvelho escritoré ter tido, no início,proje-
tos tão solidamenteenraizados,que lhe permitemconservar
para sempre sua originalidade,e tão amplosque permane-
cem abertosaté suamorte.Se nãodeixoude manterrelações
vivascom o mundo,tambémnão deixaráde encontrar nele
solicitaçõese apelos.Voltairee Hugocontamentre esses fe-
lizardos.Ao passoque outros ficam tentando ressuscitarve-
lhos temas, ou calam-se.
Os músicosnão fizeramconfidênciassobresuamaneira
de trabalhar.O que se pode constatar é que geralmentesua
obra progridecom os anos. Algunsrevelam-semuito cedo,
comoMozarte Pergolese:se tivessemvividomais,teriamain-
da crescido ou se repetiriam? O que é certo é que as obras
que Bach compôsquandovelho contam entre as maisbelas,
e Beethoven superou-secom seus últimosquartetos. Às ve-
zes,é numaidademuitoavançadaque o músicocompõesuas
maioresobras-primas.Monteverditinha 75 anos quandoes-
creveu AcoroaçãodePopéia.Verditinha72 quandoescreveu
Otelo,e 76 quandocompôsFalstaff, a maisaudaciosade suas
óperas. Stravinsky,já idoso, soube, conservandoa própria
identidade,adaptar-seàs novasformas musicais:suas obras
davelhicesão originaisemrelaçãoàs de suamaturidade,
e
não têm menosvalor.Explico essas ascensõespelo rigor das
imposiçõesàs quaiso músicoestá submetido;precisade um
longoaprendizadoparaadquirira competênciaque lhe per-
mitirá destacar sua originalidade; isso é tanto mais difícil
quanto a músicaé o campoem que as influênciasse exercem
mais imperiosamente:o compositor desconfia, com razão,
das reminiscências.Enquanto o trabalho do escritor é o de
dar um alcance universalà sua vivência,a singularidadedo
músicoé, no início,esmagadapela universalidadeda técnica
por ele utilizada,e do canto sonoro a partirdo qualinventa;
no começo, só se expressatimidamente.É precisoque tenha
umagrandeconfiançaemsi,e portantojá umaobrarealizada,
paraousarnão apenasinovarno interiordasregrasimpostas,
mas, numa certa medida, libertar-se dessas regras: assim,
Monteverdi permite-se acordes que a época qualificavade

498
“diabólicos”,e Beethoven não recua diante das “dissonân-
cias”queescandalizamo públicomédio.Parao músico,o en-
velhecimentoé a marchaemdireçãoa umaliberdadequeo
escritor possuidesdesuajuventude,ou pelo menosdesde a
maturidade,porqueo sistemadasregrasa respeitaré menos
opressivo.
Os pintoresnãoestão sujeitosa regrastão estritasquan-
to os músicos;mas tambémeles têm necessidadede tempo
para superar as dificuldadesdo seu ofício, e muitasvezes é
na última idade que produzemsuas obras-primas.É nessa
época— depoisdapassagemporVenezadeAntoniode Mes-
sina,que abriunovoscaminhosà pinturaitaliana— que Gio-
vanni Bellini se encontrou. Ele pintou, entre 75 e 86 anos,
suasmaioresobras: entre outras,os quadrosde São Zacarias
e o famosoretratododogeLoredano.QuandoDürero en-
controu em Veneza, ele era, aos 80 anos, o pintor mais céle-
bre dacidade.Já muitovelho,Ticianopintouquadrosbelís-
simos.Rembrandtnão tinha maisde 60 anos quandopintou
suas últimastelas, suas obras-primas;mas Franz Hals tinha
85 quando, com as Regentes,chegou ao ápice de sua arte.
Guardi pintou, com 76 anos, A laguna cinza e O incêndio de
S. Marcuola,seusquadrosmaisinspirados,maisimpressio-
nantes, nos quais se pressente magnificamenteo impressio-
nismo.Corottinhacercade80 anosquandopintousuastelas
maisbemrealizadas,emparticularO interiorda Catedralde
Sens. Ingres pintouÀ fonte aos 76 anos. Monet, Renoir, Cé-
zanne, Bonnard superaram-seem seusúltimosanosde vida.
Os pintoressão menosafetadosque os sábiospelo peso
do passado,pela brevidadedo futuro; suaobra é constituída
por umapluralidadede quadros;encontram-sea cadavezdi-
ante de umatela virgem;seu trabalho é umasucessãode co-
meços. E o quadroexige menos tempo do que a elaboração
de uma teoria científica: quandocomeçam a pintá-lo,estão
aosescritores,têm
quasecertosdeterminá-lo.Comparados
umagrandesorte: não se alimentamde sua própriasubstân-
cia. Vivemno presente,e nãono prolongamentodo passado.

499
O mundolhes fornece inesgotavelmentecores, luzes,refle-
xos,formas.É verdadequetambémelessófazemsempresua
própriaobra: mas esta permanece indefinidamenteaberta.
Todo criador, ao chegar ao fim da vida, tem menos timidez
diante da opinião pública,maisconfiança em si. A idéia de
queseráadmiradoporqualquercoisaquefaçapodecondu-
zi-lo à facilidade e ao embotamento do senso crítico; mas se
continua exigente, é uma grandevantagempara ele poder
reger-se por seus próprioscritérios, sem se preocuparem a-
gradar ou desagradar. Só que o escritor aproveita pouco
essa liberdade,já que muitasvezesnão temmaisnadaa dizer:
há sempre para o pintor algo a pintar, e ele pode usufruir
dessasoberaniasem a qual não há gênio. Como o músico,o
pintor inicianteé profundamenteinfluenciadopor sua épo-
ca: ele vê o mundoatravésdosquadrosdageraçãopreceden-
te; é umlongotrabalhoo deaprenderaver comseuspróprios
olhos. Assim,Bonnard,no começo, imitavaGauguin,e atri-
buía grande importânciaao tema tratado. À partir do Café
doPequenoPolegar,quepintaaos61 anos,o tematendea
desaparecer,em benefício da cor. Escreve ele, aos 66 anos:
“Creio que, quandosomosjovens, é o objeto, o mundoexte-
rior que nos arrebata: estamosentusiasmados.Mais tarde, é
o interior, a necessidadede exprimira emoção que impeleo
pintora escolhertal ou tal pontode partida,tal ou tal forma.”
Seus desenhossão abreviaçõescadavezmaisaudaciosas,ele
desprezaa perspectiva,afasta-sedecididamentedavisãocon-
vencionaldascoisas: delasprocuraexprimira vidae o calor.
Daí a espantosajuventudede suasúltimastelas.
A velhice de Goya não foi apenas um ascender a uma
perfeição cadavez maior,mastambémumaconstante reno-
vação. Ele tinha 66 anos quando,em 1810, perturbadopela
ocupação francesa e suas sangrentasconsequências,come-
çou a gravaras 85 matrizesdosdesastresda guerra.Assistira
à insurreiçãode 1808 e contribuiufinanceiramentecom en-
tusiasmoparao equipamento
dosguerrilheiros.
Entretanto,
não se recusou a executar os retratos dos principaisdignitá-
rios franceses; presidiucom dois outros pintores a escolha

500
dos melhoresquadrosque seriamenviadosa Paris; recebeu
dos franceses “a gravatavermelha da ordem da Espanha”,
que era chamadade “berinjela”.Na liberação, em 1814, foi
absolvidoa duraspenas pela Comissãode Expurgo.Entre-
tanto, executou para FerdinandoVII umgranderetrato ofi-
cial. Foi nessemesmoano— tinha70 anos— quepintouseus
trágicose magníficosquadros,a Cargadosmamelucose Os
fuzilamentos.Pintou tambémO colosso,e um belíssimoau-
to-retrato no qualse representacomos traçosde umhomem
de 50 anos. Em 1815, executou a série de gravurasreunidas
sob o nome de Tauromaquia. Pintou, sob encomenda, um cer-
to númerode retratos de personagensoficiaisou de amigos,
todosbelíssimos.Em 1818, decidiu,depoisde pintarÀjunta
das Filipinas, que sua carreira oficial estava terminada, assim
comoa carreiradopintormundano.Doravante,não aceitaria
maisencomendas,e só trabalhariapara si mesmo:tinha ne-
cessidadede uma inteira liberdadepara continuarsua obra.
Comprouumacasa isoladaque foi chamada,no lugar,de “a
casa do surdo”,pois fazia anos que ele não ouviamais.Per-
dera a mulher em 1812. Para tomar conta da casa, mandou
vir umaparenta longínqua,dona Leocadia, que trouxe con-
sigoa neta, Rosarito, então comtrês anosde idade.Goyaco-
meçoua cobriras paredescom ascélebres “pinturasnegras”,
nas quais,sem nenhumapreocupaçãocom o público,deixou
fluir sua imaginação?!.Satumo devorandouma criança, As
feiticeiras do Prado do Bode, O cão atolado, todas essas obras
são assombrosaspela novidadede sua feiturae pela sombria
riqueza de sua inspiração.Ao mesmo tempo, ele executou
uma série de gravuras,Os disparates,que compreendemos
nelasrepresenta,emtraçosvirulen-
Sonhose osProvérbios:
tos, os triunfosda estupidez.

21 Um admirador,o barão Erlanger,comproude novoa casa e mandou


retiraras pinturas,que foramcolocadasem telas e depoisdoadaspor
ele ao museudo Prado.

501
Sempredesejosode se renovar,em 1819 Goyaintrodu-
ziuna Espanha a litografia,descobertaem Leipzig,em 1796.
A primeira que executou representa uma velha fiandeira.
Fez muitasoutras depois.
Tinha 77 anos quandoo terror branco desencadeou-se
na Espanha. No começo ele escondeu-se,e depoisexilou-se
em Bordéus. “Goya chegouenvelhecido,surdo,enfraqueci-
do, sem saber uma palavra de francês, sem um criado... e, no
entanto, muito satisfeito e muito desejoso de ver o mundo”,
escreve seu amigoMorantin.Fez umaviagema Paris, e de-
poisretornoua Bordéus,ondese fixou.Quasenãoenxergava
mais. Para trabalhar, precisavasobrepor vários óculos e u-
tilizarumalupa.Nempor issodeixoude executar umaadmi-
rávelsérie de litografias.Os tourosdeBordéus,e outras inti-
tuladasO amor,O ciúme,A canção andaluza.Desenhou ani-
mais,mendigos,lojas, a multidão.A pequena Rosarito, que
tinhaentão 10 anose a quemele era muitoapegado,quis
pintarminiaturas,e ele pintou-ascomela, apesardafraqueza
da vista. Um ano antes de sua morte, aos 81 anos, pintou um
retrato de freira e um de monge,cuja feitura faz pensarem
Cézanne.
Nos últimosanos, muitasvezes explorouo tema da ve-
lhice. Já no Até a morte, dos Caprichos, ele retomava o tema
tão exploradopela literaturados séculosXVI e XVII: a mu-
lher velha que se acredita ainda bela. Desenhou uma hor-
rível velha colocando o chapéu enquanto se olha compla-
centementeno espelho.Portrásdela,jovensriemfurtivamen-
te. Em 1817, retomouo mesmotema emAs velhas:duaspa-
vorosasvelhas contemplam-senum espelho: por trás delas
ergue-seo Tempo,com duasgrandesasase com umcesto na
mão.É na Celestinaquesuafiliaçãoà tradiçãoliteráriaes-
panholase afirmamaisclaramente: umajovem muito deco-
tada e de rosto sensual exibe-se num balcão; por trás dela
perfila-se a personagembem conhecidada aia-alcoviteira:é
uma horrível velha de nariz adunco, ar cúmplice e sorrateiro,
que desfia um terço entre dedos que mais parecem garras.

502
Goya pintou também, em seus Sabbats, inúmeras feiticeiras.
Aos 80 anos,desenhouumvelho com o rosto afogadonuma
juba e numabarba brancas,apoiadoem duasbengalas:a le-
genda é “Estou sempre aprendendo”.Goya zombavade si
mesmoe de sua sede de novidade.
Baudelaire ficou impressionadocom o espantoso reju-
venescimentoque a velhicerepresentouparaGoya: “No fim
de sua carreira — escreve ele — os olhos de Goya estavam
tão enfraquecidosque era preciso— conta-se — apontar os
lápispara ele. No entanto, nessa mesmaépoca, faz grandes
litografias muito importantes, matrizes admiráveis,amplos
quadrosem miniatura— novaprovaem apoio a essa lei sin-
gularque presideo destinodosgrandesartistas,e que deter-
minaque, conduzindo-sea vidaao contrárioda inteligência,
ganhemeles de um lado o que perdem do outro, e que ca-
minhemassim,seguindoumajuventude progressiva,refor-
çando-se,revigorando-see crescendoem audáciaaté a beira
do túmulo.”
Acabamosde ver exemplosprecisos,entre intelectuais
e artistas,do que havíamosdito a propósitoda velhice: que
esta nos revelanossaduplafinitude.Os intelectuaise artistas
têm consciênciada brevidadede seu futuroe da singularida-
de, impossívelde superar,da Históriana qualestão encerra-
dos. Dois fatores interferem para definir a situaçãodeles: a
amplitudede seu projeto original e o peso mais ou menos
paralisantedo passado.Vimos que, no que se refere aos sá-
bios,a velhiceacarretaquasefatalmenteesclerosee esterili-
dade.Os artistas,ao contrário,têmfrequentementea impres-
são de que sua obra está inacabada,de que poderiamainda
enriquecê-la: masentão acontece que lhes falta tempo para
terminá-la;estafam-seem vão: apesarde toda a suaobstina-
ção, Miguel Ângelo não viu a cúpulade São Pedro. Muitas
vezes estabelece-se um equilíbrio: há coisas ainda a fazer
sem que se esteja encurraladopelo tempo. São mesmopos-
síveis,ainda,progressos.Mas eles têm, nessa época da vida,
um caráter decepcionante: progride-se,sim, mas marcando

503
passo. Na melhor das hipóteses, o velho não ultrapassará
muito o ponto que atingiu. Há alguns que se entregam a
inúteis contorções para sair da própria pele: só conseguem
caricaturar-se,e não renovar-se.Naverdade,a obra só pode
renovar-se em concordânciacom o que é e não deixará de
ser.
Essa idéia pode desanimar,sobretudose o declínio fi-
siológico, a doença e a propensãoao cansaço tornam o tra-
balho penoso. Mas certos velhos empenham-se com uma
paixãoheróicaem continuara luta.O heroísmonão está ape-
nas — como no caso de Renoir, Papinie Miguel Ângelo -
em sua relação com um corpo insubmisso.Tambémestá em
descobrir alegria em progressosque a morte logo vai inter-.
romper;em continuar,em querer superar-se,mesmoconhe-
cendo e assumindoa própriafinitude.Há aí uma afirmação
vivenciadado valor da arte e do pensamento,que suscita a
admiração.Tanto mais que a contestação feita pelas novas
gerações não atinge apenaso sábio, mastambémo artista,o
escritor. Bonnard sofria com a “dureza”da juventude que,
enquantoele enriqueciasua obra, afastava-sedesta.
O mais penoso, no fim de uma vida criadora, é interio-
rizaressa dúvida.Homensjovens são capazesde levara con-
testação até o desespero, até o suicídio:Van Gogh, Nicolas
de Staël. A finitude— e as impossibilidadesque ela implica
— pode revelar-seem qualqueridade.Em geral, umhomem
jovem,mesmodescontenteconsigomesmo,põeesperanças
no futuro que se abre diante dele. Para um homemidoso,é
jogo feito. Se descobreem suaobra fraquezas,é penosopara
ele saber que não pode modificá-lafundamentalmente.Em
certos momentos,Monet duvidavaradicalmentedo valorde
suapintura,e se desolava.Se está contente comseu trabalho,
o velho sente que este está em perigo no julgamentode ou-
trem, e em particularno veredictoque dará a posteridade.
Esta últimapode aparecer como um recurso contra a
morte: uma promessade sobrevida.A obra existirá para as
gerações futuras,terá talveza oportunidadede se prolongar

504
indefinidamentenelas. No tempo de Ronsard,de Corneille,
essa idéiaera consoladora;eles pensavamque o regimemo-
nárquicodurariaeternamente, que nem a civilizaçãonem os
homens mudariam:a glória deles repercutiriade século em
século, do mesmo modocomo a tinham alcançado.Não te-
mosmaistais ilusões.Sabemosque nossasociedadeestá em
plenaevolução:a que formade socialismoou de tecnocracia
ou de barbáriechegaráela? Ignoramo-lo.Mascertamente os
homens do futuro serão diferentes de nós. (E por isso que
Franz os imaginasob a forma de caranguejosem Os seques-
tradosdeAltona.) Supondo que nossa mensagemchegue a
eles, não podemospreveros gabaritosatravésdos quaisirão
decifrá-la.De qualquermaneira,umquadroou umromance
não pode ter, para seus contemporâneos,o mesmosentido
que terá para os séculos futuros:ler ou olhar no presente é
algointeiramentediferente de ler ou olhar atravésda espes-
sura do passado.
Mesmoatendo-seao futuropróximo,a obracorre riscos
tanto maisangustiantesquanto maisse crê no seu valor. E,
em primeirolugar,corre o risco de ser aniquiladaem conse-
qüência de circunstânciasexteriores: é o destino que Freud
temiaparaa psicanálise.Nãoé menospenosopensarque esta
será desfigurada.Newtonsabiaque sua teoria da atração se-
ria atingidapeladeformação,e pelaesclerose:tentouemvão,
através de múltiplas advertências, prevenir esses desvios.
Nietzsche ficava apavoradodiante da possibilidadede dar
margema falsasinterpretações:e teria recusado,semdúvida,
as queos nazistasderamà idéiade super-homem.
Paraum
indivíduo vaidoso, conta menos o futuro de seus trabalhos do
que o de suafama.Se pensaser desconhecido,tende a apelar
paraos homensde amanhã:Edmondde Goncourtdiziapara
si mesmoque eles o prefeririama Zola. Inversamente,Ber-
nard Shaw, célebre enquanto vivo, estava convencido de que
— por uma espécie de lei de compensaçãoda qual haviam
sidovítimasHardy,Meredithe muitosoutros — as gerações
vindourasnão lhe fariamjustiça. Em todo caso, seja esqueci-
do, incompreendido,depreciadoou admirado,nenhumho-

S0S
mem está presente quandose decide seu destino póstumo:
só essa ignorânciaé certa, e a meusolhos ela torna ociosas
todas as hipóteses.

Para concluir este estudo sobre a relação do homem


idosocom suapraxis,vou considerara velhicede alguns
homens políticos.O homempolítico não escolheu o campo
abstratodo sábio e do filósofo, nem o mundodo imaginário.
Está ancoradona realidade;quer agirsobre os homenspara
dirigirpara certos fins a históriade sua época. Esse projeto
pode assumirnele a forma de uma carreira: é o caso de
Disraeli que, desde a infância, almejava ser ministro; a polí-
tica apresenta-seprimeirocomo umaformaà procurade um
conteúdo; o objetivo visado é, antes de tudo, o exercício de
um poder, seja qual for, e o prestígioque dele decorre. Em
outros casos, trata-se de um engajamentosuscitado— num
indivíduo
formadodeumadeterminada
maneira— pelocur-
so dos acontecimentos: ele sente-se chamado,exigido.Em
geral,asduasatitudesinterferem.Aquelequevaiseguiruma
carreira optará por certos fins, e doravanteestará sujeito às
exigências desses fins — foi o caso de Disraeli. O homem
chamadopara uma missãoconcreta procuraráo poder para
realizá-la. De qualquer modo, o político depende mais es-
treitamente de outrem do que os intelectuais e os artistas.
Estes últimos precisam ser reconhecidos através de obras
cujo materialnão é o própriohomem.O políticotoma como
materialos próprioshomens:se os serve,é servindo-sedeles;
Osucessoe o fracassodopolíticoestãonasmãosdoshomens,
cujas reações permanecem para aquele, em grande parte,
impossíveisde prever.Antes de examinarque consequências
isso pode ter na velhice, convém, primeiro, ver qual é, em
geral, a relação do indivíduoque envelhece com a História.
Esta últimatem diversasfaces. Não intervémnassocie-
dadesrepetitivas.NaIdadeMédia,pareciacatastrófica:asal-
vaçãovinhade umoutromundo.NoséculodasLuzes,estava
carregadade esperanças.Hoje, encerra promessas,mastam-

506
bém ameaças:a destruiçãototal ou parcialdo nossoplaneta
pela bomba.Vi genteencararsemgrandeproblemaessaeven-
tualidade:do momentoem que se está morto,que importao
quepossaacontecerdepois?E mesmo,dizemalguns,poupam-
se todasas penas,se sabemosque a Terradesaparececonos-
co.
Para outros, entre os quaisme coloco, essa idéia causa
horror. Incapaz, como todos, de conceber o infinito, não acei-
to a finitude. Tenho necessidade de que se prolongue in-
definidamenteessa aventurana qualminhavidase inscreve.
Amo a juventude;desejo que nela continue nossaespécie, e
que esta últimaconheçatemposmelhores.Semessaesperan-
ça, a velhicepara a qual eu me encaminhoparecer-me-iain-
teiramente insuportável.
Pode ocorrer, às vezes,que grandesmudançaspolíticas
e sociais transfiguremuma velhice. À partir da tomada da
Bastilha,Kant renunciouao seu invariávelpasseiocotidiano
para ir ao encontro da malapostal que lhe trazia as notícias
da França: sempre acreditaranumprogressoque levaria ao
desabrochardasociedadee doindivíduo,e pensavaque a Re-
voluçãoconfirmavasuasprevisões.Uma tal sorte é rara,pois
no dia-a-diaas derrotas constituemabsolutose os sucessos
são precários.Frequentementedecepcionadosem nossases-
peranças,nuncaconhecemosa felicidadepurade ter tido ra-
zão. “Averdadenão triunfajamais. Seus adversáriosacabam
pormorrer”,diziao físicoPlanck.Pessoalmente,suporteicom
horror a guerra da Argélia: a independência custara caro
demaispara que eu tivessepodidoacolhê-lacom alegria.“O
caminhoque leva ao bem é pior que o mal”,disseMirabeau.
Jovens, com uma ilusória eternidade diante de nós, damos
um salto para o fim da estrada; mais tarde, não temos mais
entusiasmosuficiente parasuperaro que chamamos“os fal-
sos ônusda História”,e osjulgamosterrivelmenteelevados.
Quanto às regressões,elas têm qualquercoisa de definitivo.
Os jovens acalentam a esperança de ver nascer um amanhã
diferente: o recuo levarátalvez a umsalto para a frente. As

507
pessoasidosas,mesmoque a longoprazoconfiemno futuro,
não contam assistira essa reviravolta.Sua fé não as defende
dasdecepçõespresentes.Porvezes,essa fé as abandona,e os
acontecimentos insuperáveislhes parecem um desmentido
de toda à sua existência.Uma das tristezasde Casanovafoi
ver destruídopela Revolução francesa o antigo mundono
qualvivera.Do fundo do castelo da Boêmia, onde se confi-
nara, chamava Mirabeau de “escritor infame”.
Um exemplo impressionantedesse tipo de desilusãoé
o de Anatole France. Socialista à maneira de Jaurês, isto é,
humanistae otimista,ele imaginavaque um homemmelhor
e maisjusto nasceriaem breve, e semviolência.Em 1913 -
tinhaele 69 anos—, pensavaque “todosos povosdo universo
encaminham-separa a paz”.Dizia que “os proletariadosdos
povosvãologounir-se”.Estavaconvencidode que,em todos
os países,o proletariadoera pacifista,e prontoparase levan-
tar contra a guerra. Acreditava também que o capitalismo
não conduzianecessariamenteà guerra. Ao voltar de uma
viagemà Alemanha,afirmava:“É certo que a Alemanhanão
desejaa guerra.” Num discursopronunciadoem abrilde 1914,
anuncioua “próximauniãoda Europa reconciliada”.Confia-
va na razãohumana;matare destruirera nefasto paratodos:
a humanidadetinhabastantebomsenso parasabero que lhe
era útil. Caiu dasnuvensem agostode 1914, e ficou tão aba-
lado que, em outubro,pensou no suicídio.Escreveu a um a-
migo: “Não podendomaissuportara vida,e numestado de
prostração que me retém aqui, suplico-te que me arranjes
veneno.”Publicoualgunstextos— de que maistardese arre-
pendeu— nos quais,levadopela corrente, condenavao mi-
litarismo alemão; mas depois calou-se, até o armistício. Vê-se
por sua correspondênciaque renuncioua suas ilusõesidea-
listas e reformistas.Impossívelacreditar,doravante,que as
massasseriamcapazesde impedira guerra.Ficavamuitasve-
zes em completodesespero.Escreve, em dezembrode 1915:
“Aexistência me é insuportável,e só tenho sede e fome do
nada.”Emjunho de 1916: “Minharazãomeabandona.O que
me mata é menos a maldadedos homensdo que sua estupi-

508
dez.”Em dezembrode 1916:“Aestupidezhumanaé infinita.”
Indignava-sepor não se pôr umfim à guerra.Terminouuma
longae iradacarta com estaspalavras:“Nãotemospressa.A
guerra só faz a França perder 10.000 homenspor dia!” Em
novembrode 1917, escreve:“Nãohá maislimitesparaminha
tristeza e minha preocupação.”Tomoupartido a favor dos
homensque Clemenceaumandoucondenar— discretamen-
te a favorde Caillaux,e comestardalhaçoa favorde Rappo-
port. “Viviumano a mais,e até mesmo70 — escreveu,ainda.
Nem mesmodesejo maiso fim dos horrores que desolama
Europa. Não creio nem desejo maisnada,só aspiroao nada
eterno.”
Ficou muitoabaladoem suasconvicçõescom a revolu-
ção russa:“O primeiropassodecisivoparaumfuturomelhor
seriaa aplicaçãodasdoutrinasde KarlMarx.O pacifismoestá
ultrapassado”,escreve ele. A guerra lhe demonstraraa ne-
cessidadedaviolência,masnãoseresignavafacilmentea essa
idéia:“Temobastantequeo fimdessaguerranãofecheaera
daviolência.Para asseguraro desarmamentouniversal,seria
necessáriaa revoltadospovos...essahorrívelguerraestá pre-
nhede trêsouquatroguerrastão horríveisquantoesta.Eis
aí a terrívelverdade.”Essa verdadeo torturava.Em 3 de ou-
tubro de 1918, escreve: “Meu coração, contrariamente ao
que pensamdosvelhos,tornou-semaisbrandodo que antes,
e a vidatorna-se,paramim,umperpétuosuplício.”Assinado
o armistício,acalentaa esperançade que “a guerraproduzirá
a revoluçãouniversal”,e afirmasuaadmiraçãopelossovietes.
Em 1919, as grevese os movimentosoperárioso encorajam
a crer no próximoadventodo socialismo.Engaja-se de novo
publicamentena luta.Lança umapelo aoseleitores: “Só aca-
baremos com a luta de classes com o desaparecimentodas
classes...Tudonosprecipitaparao socialismo.”Nãose ins-
creve nem no partidosocialista,nem no comunista,mastem
amigosem ume em outro.NoL 'Humanité,em 1922, publica
umaSaudação aos sovietes,“primeiratentativade umpoder
que governapelo povo,para o povo”.Com Barbusse,parti-
cipa do grupoClarté. Entretanto, em sua correspondênciae

509
em suasconversas,mostra-semuitopessimista.Temdúvidas
quanto ao seu futuropóstumo.Em La Vieenfleur, em 1921,
Sua visãodo futuroé desolada.“Nãoteremos maiorposteri-
dade do que a que tiveramos últimosescritores da Antigui-
dade latina.”Pensavaque a Europa e sua civilizaçãofossem
morrer: “Aspotênciasdo malgovernamo mundo.”“AEuro-
pa soçobra na barbárie.” O socialismono qual queria ainda
acreditar não era mais,de modo algum,aquele com o qual
havia sonhado. Atendendo ao apelo de Gorki, condenou o
processodossocialistasrevolucionáriosque se abriaemMos-
cou. Não podiarenegar os valores humanistascom os quais
vivera:a tolerânciae a liberdadeburguesa.Tantosuamaneira
de pensarcomo seu estilo estavamobsoletos. Tentou seguir
o movimentoda História, mas permaneciao homemde um
outrotempo.Seus'escritosnão tinhamnenhumaeficácia.Em
1923, foi violentamente atacado pelo L 'Humanité: repro-
vavam-lheo diletantismo,o anarquismo,o ceticismo.Foi tam-
bém excluídodo Clarté. De fato, apesarde seu esforço para
adaptar-seaosnovostempos,a guerrade 1914 arruinaracom-
pletamentesuasesperançasem ummundorazoávele feliz.
Mais radical ainda foi a derrota de Wells, em 1940. Aos
70 anos, ele continuava extremamente jovem, e, no começo,
adaptou-semuito bem à sua época. Foi aos EUA, onde se
encontrou com Roosevelt: sonhavacom uma aproximação
entre o Oriente e o Ocidente.Percebeu que fracassara:“So-
fri umaderrota numempreendimentoque era amplodemais
para mim.”Quandoeclodiua SegundaGuerra Mundial,ele
ficou tão perturbadoque caiu doente. Falandodo mundode
1942, declarou:“Este espetáculoacabouporabater-mecom-
pletamente.”Dizia-se“no fimda linha”,e anunciou:“O au-
tor não tem maisnadaa dizer,e nuncamaisterá algoa dizer.”
Viveuaté 1946 no horrore no desespero.Sua fé nos homens
estava morta. Todo o seu trabalho, todas as suas lutas ante-
riores,o própriosentidodesuavidarepousavamnaconfiança
“quedepositavaem seus semelhantes:perdidaesta, nenhum
outro recursopoderiaencontrar,onde quer que fosse; só lhe
restava abandonar a luta, desejar o nada, morrer.

S10
Um tal desespero pode levar ao suicídio. Virginia
Woolf, que viviaà margemda política, numcírculo de privi-
legiados,ficouaterradacom a declaraçãode guerrae com os
bombardeiosde Londres: aos 58 anos, não pôde sobreviver
à desintegração
deseuuniverso??.
Commaisrazãoainda,se
uma pessoavelha sente-se ameaçadapela conjuntura,pen-
sará que, para ela, a partidaestá perdida,que a luta é vã e
que o melhoré acabarcomtudo.Na França,foramprincipal-
menteosjudeusidososquese mataramquandoo paísfoiocu-
pado.
Se um homemidosocontribuiupara provocaraconte-
cimentosque deplora,será maisafetado por isso do que um
jovem; este último,ao invésde se perderem culpasvãs,ten-
tará repará-las;o primeironão tem maistempo diante de si
para imaginarque poderá ainda alterar o curso dos aconte-
cimentos: foi esse o infortúnioque tornou sombriosos últi-
mosanosde Finstein. Ele estavamuitoconscientedarespon-
sabilidadedosábio no que dizrespeito às aplicaçõesdaciên-
cia. Preocupava-secom as possíveisconsequênciasdalibera-
ção daenergiaatômica,realizadaa partirdesuasdescobertas.
“Fazerrecuaressa ameaçatornou-seo problemamaisurgen-
te do nosso tempo”, dizia ele, antes da guerra. Em 1939, os
físicosWignere Szilard,temendoque a Alemanhafabricasse
a bomba de urânio, convenceram Einstein a escrever a
Roosevelt paraadverti-lodoperigo.Ele o fez, e solicitouque
fosse mantidoum contato permanente entre a Administra-
çãoe osfísicosqueestudavam
asreaçõesemcadeia;erapre-
cisoabastecerosEUAdeurânioe aceleraro trabalhoexpe-
rimental. Esse conselho foi seguido. Muito cedo, Einstein
passou a temer as consequênciasdisso. Desde 1940, falava
dessacarta como do acontecimentomaisinfelizde sua vida.
Quandoforamventiladosprojetos de destruiçãodascidades
japonesas pela bombaatômica,ele enviouummemorandoa
Roosevelt: este últimomorreusem ter aberto a carta. Eins-

22 Ela já tivera crisesde depressãoduranteos quaispensarano suicídio.

511
tein não pensavaseriamente que algumindivíduopudesse,
só com suasprópriasforças, influenciarseriamente a Histó-
ria.E suainiciativade1939justificava-se:
umabombadeurâ-
nio alemãparecia,então, possível.Nãose consumiu,portan-
to, em remorsos. Mas sentiu dolorosamentea contradição
entre a riquezadascriaçõescientíficase o usodestruidorque
era feito delas.
Maisjovem, ter-se-la certamente engajadoa fundonu-
ma luta pela paz; teria buscadoneutralizarde um modo ou
de outro a invençãodabombaatômica:o brevefuturode que
dispunhanão lhe permitiaesperar encontrar umremédio.
Mesmo quandoa Históriadesenrola-sesemcatástrofe,
há umaoutrarazãoparaqueo velhonão tire delasatisfações:
como vimos no caso de Anatole France, só com dificuldade
o idosoabraçao movimentoda História.Sabe-se que ele tem
dificuldadede adotarumnovoser.Alémdisso,na maiorparte
do tempo,nãoquerfazê-lo:é impedidoporseusinteresses
ideológicos. As frases ditas ou escritas, o personagemque
criou para si próprioconstituemum “ser fora dele mesmo”,
através do qual se aliena. Um velho professor confunde-se
com a aulamagistralque reproduztodo ano, e com os títulos
e as honrasque esta lhe proporcionou:as reformaso irritam,
não somenteporquese tornou incapazde substituirsua aula
por umdiálogo,mastambémporquepensaque então perde-
ria tudo o que constituisua razão de viver.Assimcomo seu
trabalhoprofissional,a atividadepolíticade umhomemvelho
é sobrecarregada
pelopesodo passado.Ele nãoconsegue,
muitasvezes,entender umaépoca demasiadodistantedasua
Juventude.Faltam-lheos instrumentosintelectuaisnecessá-
rios para tanto. Sua vidao fez como é. Diante de circunstân-
cias que o pegam desprevenido, não encontra a resposta
apropriada.Lamentandoter-se obstinado,em 1940, numpa-
cifismo cego, Guéhenno, jovem ainda, entretanto, escrevia:
“Há no fundo dos homensda minhaidadeum sem-número
de lembrançasparalisantes.”Ele não se deraconta de que as
palavras“guerra”e “paz”não tinhamo mesmosentidoem

512
1914 e em 1940: há experiênciascujas lições são obsoletas,
princípiosabstratos que é preciso pôr de novo em questão
quando as circunstâncias mudam. Alain foi, como Guéhenno,
vítimade suaslembranças,quandose inclinouparaa colabo-
ração; mas tambémnão procurouencarar de frente a situa-
ção; foi impedidopor seu interesse ideológico: o pacifismo
de que fora defensor durantetoda a vida.Pelo mesmomoti-
vo, Bertrand Russellcometeuo mesmoerro; colocou a causa
a que sempreserviraacimada realidadepresente: em nome
do pacifismo,pregouà Inglaterraa não-resistênciaao nazis-
mo.
O caso de Jeanette Vermeersché significativo.Ao lon-
go de todos os acontecimentos que se desenrolaramdesde
suajuventudeaté o outonode 1968, sualinhade pensamento
nunca se modificou. Incondicionalmente fiel à URSS, stali-
nista obstinada, tendo procurado, após a morte de Stalin,
frear na França a desestalinização,colocou-se cadavez mais
à margemde ummundoem movimento.Enquanto o partido
comunistamudavade política,ela aferrou-se às suasantigas
posições.No momentoda crise tchecoslovaca,apressou-sea
aprovaros dirigentessoviéticos,homens maisou menos da
sua idade,que conhecia pessoalmente,e nos quaisse encar-
nava, para ela, a verdadedo comunismo.Viu-se isoladano
seio de seu partido; nenhummembrodo Comitê Central a-
poiou-a publicamente,e teve que pedir demissão.Essa rigi-
dez que a tornou ultrapassadaexplica-se também por seus
interessesideológicos:ela recusou-sea pôrem questãoa sta-
linistaquehaviasido,e a políticade Thorez, paraa qualhavia
colaborado estreitamente. Essa recusa de se contestar a si
mesmoencontra-seemquasetodososvelhos,e se compreen-
dem as razões disso.Já que, como dizHegel, toda verdadeé
devinda,poderíamosassumiros erros de outroracomo tendo
constituídoumaetapa necessária:massó nos decidimosa fa-
zê-lo se tivermosa esperançade exploraressaverdadenova,
de seguir seu desenvolvimento,de nos enriquecermoscom
ela. Quando o futuro está limitado, não é fatal, mas é normal

513
que nos obstinemosa apostarno passado,e a não modificar
a idéiaque fizéramosdele.
Já constatamosissoao estudaras sociedadeshistóricas:
qualquerque seja o regimeou o partidoao qualpertencem,
osvelhossão levadosa alinhar-sedo ladodosconservadores.
E difícilparaeles escaparao passadoque os moldou:é atra-
vés dele quevêem a atualidade,e compreendem-namal.Fal-
tam-lhes tempo e meios para se adaptarà novidade;e seus
própriosinteressesos impedemde tentá-lo. Esforçam-sepor
mantero statusquo. As revoluçõessão feitas por homensjo-
vens: quandoenvelhecem,estes só continuama dirigi-lasse
estivereminstitucionalizadas;mesmoassim,com frequência
seu papel é, então, maisrepresentativodo que ativo.Os ho-
mens políticosquase semprevêem sua velhice desprestigia-
da. Representaram um momento da História: esta mudae
exige novos homens.Em seu livroLouis XIV et 20 millions
deFrançais, Pierre Goubert observa:“Ele deixouda monar-
quiaumaimagemadmirável,
masjá envelhecida,senãoob-
soleta, no momento em que morreu. Como muitosoutros
reis,e comoquasetodosos homens,envelheceraendurecen-
do-se,esclerosando-se.”Sentia, aliás,que aqueletemponão
era maiso seu, e que sua sorte o haviaabandonado.Conhe-
ce-se a frase que dirigiuao velho marechalde Villeroy,após
a derrota de Romilly: “Não somos felizes, nas nossas idades,
senhor marechal.” Monarca absoluto, ele conservava seu tro-
no. Mas umministro“obsoleto”não tem maisoportunidade.
A Históriaabundaemquedasestrepitosas.E como,emgeral,
o homempolíticoé umambicioso,suportamalsuadecadên-
cia. A melancoliade Chateaubriandnos seusvelhosdiasde-
corre essencialmentedo fato de que, no âmbitopúblico,ele
se viu alijado, acabado. Parece-me interessante estudar de
perto a velhicede algunshomenspolíticos;é sempreumaa-
ventura complexa,na qual contam o passadodo indivíduo,
seu estadobiológico,o impactodosacontecimentose ascon-
trafinalidadeshistóricas.Tomareitrêsexemplosnosquaispre-
dominaa importânciade umou de outro dessesfatores.

514
Veremos, com Clemenceau, que um homem que man-
tém durantetoda a suavidaa linhapolíticadajuventudevê-
se, pela fidelidadeao seu passado,ultrapassadopelo momen-
to presente. Já se disse muitasvezes: é preciso mudarpara
permanecer o mesmo.Permanecendoapegadoa uma certa
forma de democracia,Clemenceau acabou passandoda ex-
tremaesquerdaà reação que,entretanto, nãoo estimava,por
causa de seus antecedentes. Seu valor, seu caráter, a neces-
sidadeque se tinha dele levaram-noao cume da glória. No
entanto, logo foi reduzidoà impotência porque não havia
maislugarpara ele na novavidapolíticafrancesa.
Churchill,escolhidopara fazer a guerraporque a tinha
profetizadoe exigidoque sepreparassem paraela, não fez o
esforço necessárioparainspirarconfiançaà Inglaterraquan-
do foi preciso viver de novo na paz. Aliás, não podia mais
fazê-lo: nãoevoluíracomseutempo,e conheciamalos novos
problemasque se apresentavam.Mas o que entristeceu sua
velhice foi sobretudo uma inelutáveldecadênciafisiológica
que combateu ferozmente, masque pouco a pouco o arrui-
nou por completo.
Dotado até a morte de uma admirável saúde, Gandhi
levou a bom termo o projeto de toda a sua vida:a indepen-
dência da Índia. Mas os meios que empregara para chegar
a isso — entre outros, a exaltação da religiosidade— trou-
xeram consequências que desmentiramos princípiosde to-
da a sua vida, de tal maneira que ele terminou seus dias no
desespero.
Criado no culto da Revolução Francesa por umpai fe-
rozmenterepublicano,que criticavao Império,Clemenceau,
em suajuventude,aliou-secom ardoràs opiniõesdo pai. Es-
tudandomedicinaem Paris, ligou-se a um grupode jovens
positivistase ateus; escreveu para um jornal subversivo,e,
com a idade de 21 anos, em 1862, foi aprisionado em Mazas
por ter, num artigo, exortado os operários a se reunirem em
14 dejulho na praçada Bastilhae a celebraremesse glorioso
aniversário.Ao sairda prisão,sofreu a influênciade Blanqui.

S15
Uma permanênciade quatro anos nos EUA fortificou seu
amorà democracia.Em 1869,casou-seno civilcomumaame-
ricana e, de volta à França, lançou-se,em 1870, na ação po-
lítica. Foi nomeadoprefeito provisóriodo XVIIIe arrondis-
semente, em 8 de fevereirode 1871, deputadopor Paris.Na
Assembléiade Bordéus, em 1º de março de 1871, votou -
com Victor Hugoe algunsoutros— contra o tratadoque en-
tregavaa Alsácia-Lorena à Alemanha: a capitulaçãodo go-
verno o indignou.De volta a Paris, tentou em vão represen-
tar, entre o governoe a Comuna,o papelde umconciliador.
Pediu demissão porque a Assembléia, influenciada por
Thiers, recusou-se a votar uma lei que preparasseeleições
municipais.“Que Paris se submeta primeiro”,diziaThiers.
Clemenceau pensavaque, para realizar umaverdadeirade-
mocracia, a França devia apoiar-se no povo. Quando, em
1874, realizaram-seas eleições municipais,ele foi eleito, e
tornou-se, em 1875, presidente do Conselho municipal, sen-
do depoiseleito deputadopelo XVIIIe arrondissement.
Começou para ele, então, uma grande carreira parla-
mentar,na qualfiguroucomo homemde esquerda,e mesmo
de extrema esquerda.Exigiupara os partidáriosda Comuna
a anistia,que só foi concedida,e mesmoassimparcialmente,
em 1879. A partirde 1881,o partidoao qualpertenciatomou
o nomede “radical-socialista”.Era, dentrodessepartido,um
dos membros mais brilhantes e mais ouvidos. No Parlamento,
em artigos,lutoupela secularizaçãoda República,pela laici-
dade do ensino, pela liberdadede imprensa,pelo direito de
reunião, por um plano de educação nacional, por reformas
econômicas. Seu partido tinha um programasocial que era
consideradomuitoavançado:exigiamedidasdeproteçãoao
trabalho, o reconhecimentodos sindicatoscomo personali-
dadesjurídicas,e a melhoriada condiçãooperária.
Temidopelos adversáriospor sua eloquência, Clemen-
ceau combateu o colonialismo de Jules Ferry. Derrubou
Freycinet,Gambetta,Jules Ferry.Chefe incontestávelda ex-
trema esquerda, chamavam-no“o derrubador de ministé-

516
rios”. Contribuiupara a queda do boulangisme. Para vin-
gar-se, Déroulêde tentou comprometê-lona questão do Pa-
namá.Defendeu-sebrilhantemente,e ficoulivredequalquer
suspeita.Nem por issodeixoude perderseu mandatode de-
putado.
Tinha ele, então, 52 anos. Lançou-se no jornalismo.
Suas preocupaçõesnão eram unicamentepolíticas:frequen-
tavaescritores,pintores;apoiouapaixonadamenteo impres-
sionismo de Rodin. Jaurês estimava, por outro lado, que, em
seus artigos, “o pensamento socialista afirma-se com uma
crescente nitidez”.Representou umpapel capitalna revisão
do processode Dreyfus.
Eleito senadorem 1893, apoiouCombescontra as con-
gregaçõese defendeua lei de separaçãoda Igreja do Estado;
entretanto, reivindicava a liberdade do ensino. Partidário de
um “socialismoprogressivo”,sua ação começou a se opor à
dossocialistasque reivindicavama desapropriaçãoda classe
capitalista,a socializaçãointegral dos meios de produçãoe
de troca. Quanto a ele, recusavaa luta de classese desejava
reformasrealizadaspela via legal.
Entretanto, fiel ao espíritode 48, em 1882, por ocasião
das grevesdos mineiros,defendeuo direito de greve contra
as companhiasde mineração.Denunciou os assassinatosde
Fourmies.
Foi 12 anosmaistarde,quandonomeadoministrodo
Interior, que suaposiçãopolíticamodificou-sebruscamente.
Nãoqueele mesmotivessemudado.Masasituaçãotransfor-
mara-se.A sociedadeliberalpermaneceraa mesma,enquan-
to o proletariadotornara-se muito mais numerosoe muito
maismiserável.Resultavadissoumatensãosocialque de-
mandavasoluções extremas.Clemenceau desejavaantes de
tudo manter a ordem republicana,isto é, burguesa.Desen-

23 Corrente políticaligadaà pessoaou à doutrinado genera!Boulanger.


(N.da T)

517
cadearam-se,em Lens, grevesque se transformaramem re-
beliões: ele envioutropasque atiraramnosoperários.Por to-
da parte ondejulgavanecessária a repressão, apelou para o
exército. Chamava-sea si mesmo“o primeirotiradaFrança”.
Os socialistaso atacavamcom violência:entre estes e os ra-
dicais,a rupturaera doravantetotal e definitiva.
Clemenceau tinha 65 anos quando, em 1906, tornou-se
presidente do Conselho: era, efetivamente, o chefe do parti-
do radicalque representavaa maioriada Câmara,e que lu-
tava agora contra as forças progressistas.O sindicalismoo-
perário tornara-se revolucionário.Por toda parte eclodiam
graves conflitos: Clemenceau dominou-os pela força. As
repressõesforamsangrentas.Em Villeneuve-Saint-Georges,
em 1908, houve— de fonte oficial— quatrooperáriosmor-
tos e quarenta feridos.Ele se opôs energicamenteà criação
de sindicatosde funcionáriospúblicos.Os socialistase, em
particular,Jaurês, investiamcontra ele. Dava ainda outros
apoios à reação: concedeu plenos poderes a Lyauteypara
ocupar,no interior,a regiãosituadaparaalémde Casablanca.
Masemborase preocupassecomadefesanacional— nomeou
Foch diretor da Escola de Guerra — a direita reprovava-o
pornegligenciá-la.Depoisdaexplosãodo Jéna, Délcasséde-
nunciouas enormes insuficiênciasdo departamentoda Ma-
rinha. O ministériofoi derrubado.Briand formou um novo
gabinete.
Nesse momento de sua história, Clemenceau ilustra o
que indiqueiacima:umhomemidosoque se obstinaem suas
posiçõespassadas,vê-sedefasadoem relação à atualidade.O
“socialismo”de Clemenceautornara-seobsoleto a ponto de
se transformarnumapolíticareacionária.
Ele se declaroumuitocontente por reencontrar sua li-
berdade,e partiuparafazerconferênciassobreademocracia
na América do Sul: “Sou soldado da democracia”, declarava
ele. De volta à França,fundouem 1913 umjornal, L'Homme
libre,ondeescreveuquasediariamente.Sentiaquea guerra
se aproximavae, ao mesmotempoque desejavaque esta fos-

518
se evitada,combatiao pacifismo.Fez campanhapela lei que
estendiapara três anos a duraçãodo serviçomilitar.
Uma vez declaradaa guerra, criticou tão asperamente
a maneirapela qualela era conduzida,que seujornal foi sus-
penso, reaparecendo,depois,com o nome de L'Homme en-
chaíné.Vivianipropôs-lhe,em 1914, entrarno ministério;ele
recusou. Convencidode que só ele mesmopoderiasalvara
França, almejavaa presidênciado Conselho,ou nada.A par-
tir de janeiro de 1915, representou um papel importanteao
presidirno Senadoumacomissãodo Exército e dasRelações
Exteriores. Apesar de seus 75 anos, ia frequentemente ao
Jfronte percorria as trincheiras; passou uma noite no forte
Douaumont. Criticouviolentamentea deplorávelorganiza-
ção do Serviçode Saúde.Em seujornal, lutavatambémener-
gicamentecontra o “derrotismo”.E exortava os EUA a so-
correr a França.Após as rebeliõesde 15 de maiode 1917, fez
umdiscursovirulentocontra o ministrodo Interior, Malvy.
Seu patriotismoe sua energia valiam-lheno país uma
imensapopularidade.Nosmeiospolíticos,entretanto, susci-
tara ódiosde todosos lados.Poincaré detestava-o.Reprova-
va nesse homemde 77 anos“seuimensoorgulho,suamobili-
dade, sua leviandade”.Decidiu-se, entretanto, a chamá-lo.
Clemenceau estava um tanto surdo,mas conservaratoda a
sua inteligênciae toda a sua vitalidade.Permaneceuvinte e
seis meses no poder, trabalhandode seis horas da manhãàs
10 danoite.Cercara-sedeumaequipenova.AÀ
situaçãoera
dramática.No intuitode buscarsoluções,ele recrutounovas
classes, fez com que fossem votados créditos, combateu im-
piedosamenteo derrotismo.Viu-sevivamenteatacadopelos
socialistas.Conseguiuimporaos aliadosa unidadedecoman-
do, e apoiou Foch, que se viu, então, à frente de todas as tro-
pas.Quandoos alemãescomeçarama recuar,ele foi acolhido
triunfalmente nas regiões liberadas. “Não era entusiasmo,
masumaverdadeiraloucura,anotou Mordacaq.Tive a maior
dificuldadedo mundoem impedirque ele fosse esmagado.”
Clemenceau,que fora severamentecriticadoduranteseu mi-

S19
nistério, teve aí uma feliz desforra. “É preciso mesmoter o
coração sólidopararesistira semelhantesemoções,diziaele.
Elas consolamde muitasamarguras.”Poincaré, Pétain e um
certo númerode outros homenspolíticose de militaresde-
sejavamquese perseguisseo exército alemãoaté Berlim.Cle-
menceau apoiouFoch quandoeste últimodecidiuassinaro
armistício: “Ninguémtem o direito de prolongarpor mais
tempoo derramamentode sangue”,declarouFoch. Não era
a única razão para sua atitude.Tendosido atingidosos fins
essenciaisdaguerra,a opiniãopúblicaexigiao armistício;te-
riasidoperigoso“brincarcomo moraldastropase dopaís”.*
Por outro lado, se a guerra tivessecontinuado,o papel dos
exércitos americanosse teria tornado cada vez mais impor-
tante, e a pazteria dependidomaisaindadaAmérica.Enfim,
tanto Foch como os dirigentesaliadostemiamque o prolon-
gamentodashostilidadesfavorecessena Alemanhaa difusão
do bolchevismo.
Quando anunciou a assinatura do armistício, Clemen-
ceau foi aclamado pelas Câmaras. Uma multidãoreunida
diantedo MinistériodaGuerra exigiuque aparecesseno bal-
cão do seu escritório e o ovacionou,fazendo com que cho-
rasse de emoção. Entretanto, à noite, sua alegria já decli-
nara. Seus filhoso levaramao GrandHôtel, paraque vissea
multidãoemjúbilo,napraçadaÓpera.Elecontemplou-a em
silêncio:“Dize-mequeestásfeliz,pediua filha.— Nãoposso
dizê-lo, porque não estou feliz. Tudo isso não terá servido
para nada.”Chamavam-noo Pai Vitória, faziam-seestátuas
dele: mastinhamedodo futuro: “Agora,vai ser preciso con-
seguira paz,e será talvezmaisdifícil,disseele. Se eu mepreo-
cupasse com a minha glória, deveria morrer agora”, disse,
também.Sentia-se muitocansado;tinhao estômagodestruí-
do, as mãos roídas de urticária; dormia mal.
Fez umaviagema Londres,ondefoi aclamado.Foi acla-
madoem Strasburgocom um entusiasmoque lhe provocou

24 Tardieu, La Paix.

520
lágrimas.Após um breve descansona Vendéia— sua terra
natal—, abriua ConferênciadaPaz,e recomeçoua trabalhar
sem descanso. Em 9 de fevereiro de 1919, um jovem anar-
quista de 23 anos, Cottin, deu nele dois tiros de revólver.”
Um deles o atingiu,masnão ficou seriamenteferido.
As negociaçõescom Wilsonforam espinhosas.Ele de-
fendiaos interessesfranceses;obteve,em princípio,que a A-
lemanhapagasseà Françaindenizações;obteve tambémque
o exércitofrancêsocupassedurante15 anosa margemes-
querdadoReno, e umcerto númerodeoutrasvantagens.En-
tretanto, Foch reprovava-opor fazer concessõesdemais,e a
direita começava a chamá-lo o “Perde Vitória”.º No inte-
rior,eclodiramgreves;portodapartesurgiamreivindicações.
Ele ordenou uma repressão impiedosa: a polícia dispersou
violentamente uma manifestação de viúvasde guerra. No
lº de maio, os operários formaramum cortejo que as forças
da ordematacaram,de sabre em punho: houvemortose fe-
ridos.A políciachegoua atacar umcortejo de grandesmuti-
lados com uma inacreditávelselvageria. Clemenceau con-
cedeu aos operários a lei de oito horas, masperderajunto a
eles toda a popularidade.Em 28 dejunho, foi assinadoo tra-
tado de Versalhes:quandosaiucom Wilson,quaseforames-
magadospor umamultidãoentusiasta.Mas Clemenceaunão
estava satisfeito com essa paz: a França, segundoele, não
conseguiraas garantiasque lhe eram necessárias.O tratado
foi severamentecriticadopor muitoshomenspolíticosfran-
ceses. Um “depósitode explosivos”,diziaCambon.
Tinha contra si toda a esquerdaque lhe reprovavaseu
“patriotismoestreito e revanchista”.Os intelectuais irrita-

25 Nuncaseteve conhecimentodo que estavapor trásdocaso.Condena-


doà morte, Cottinfoi absolvido,e depoislibertado.Parece que se tra-
tavade um iluminado.

26 Nooriginal,“Perd la Victoire”— jogo de palavrasque remete ao ou-


tro títuloque se tinhadadoa Clemenceau,por ocasiãoda assinatura
do armistício:“Pêre la Victoire”— Pai Vitória. (N.da T)

521
vam-secom seu nacionalismo.Os franceses médioso acusa-
vamde ter defendidomalos interessesdaFrança.Tinha per-
didouma grandeparte de seu prestígio.Aspiravaà aposen-
tadoria.Fez, entretanto, algunsdiscursos.Certos parlamen-
tares desejavam uma reforma da Constituição: ele defen-
deu-acontraestes. Pregoua uniãonacionale atacou fanati-
camente o bolchevismo,o que suscitou a cólera dos meios
da extrema esquerdae provocou,a cinco dias das eleições,
umagrevegeraldosoperáriosgráficosda imprensaparisien-
se.
O Bloco Nacional,istoé, a direita,triunfounaseleições,
cuja maioriaera
constituindoa “Câmaraazul-celeste”,??
compostade adversáriosdeclaradosdos partidosde esquer-
da.Clemenceauacolheuesseresultadocomdesprazer.“Cle-
menceaufalhounasaída— observouPierre Miquel*. A Câ-
maraazul-celeste começacom a derrotadosclemencistasde
esquerda.”
Em 8 de novembro,durante a primeirasessão da nova
Câmara,ele recebeu com emoção os eleitos da Alsácia e da
Lorena. Foi aclamado.Entretanto, não pediua renovaçãode
seu mandato de senador. Tinha 80 anos e estava cansado.
Seus amigosgostariamque ele se apresentasse às eleições
presidenciais.“Maseles queremminhamorte!”— protestou
ele. Ao voltarde umaviagema Londres,talvezsob a influên-
cia de LloydGeorge, aceitou apresentar-secomo candidato,
massemmuitaconvicção,de tal maneiraqueseusadversários
o acusaram de desprezar o Parlamento. Anticlerical notório,
opunha-seao reatamentodas relações da França com o Va-
ticano: tinha todosos católicoscontra ele; estes últimosliga-
ram-se com os socialistas. Foch, Briand, Poincaré fizeram
campanhacontraele. A reuniãopreparatória,quese realizou
na véspera das eleições, deu a maioriaa Deschanel. Ele re-

27 “Azul-celeste” — alusão à cor da farda dos militares, cuja influência se


faziasentir. (N.da T)

28 Biógrafo de Poincaré.

522
Cusou-sea se apresentarno dia seguintee declarouque, se
passassempor cimadaqueleresultadopreliminar,e ele obti-
vesse a maioria,não aceitariao mandato:“Eu poderiaainda
ser útil — disse, à noite, a Barrês. Mas para mim, é melhor
assim.Tenho 80 anos. Não sabem disso.Eu sei, e por vezes
cruelmente.”No dia seguinte,Deschanel foi eleito.
Não aceitavasemamargurao fato de ser “aposentado”.
Seu orgulhoficou profundamenteferido com isso. Retirou-
se para a Vendéia, para umacasinhaisoladaà beira do mar,
e daliem dianterecusou-sea ler o que se escreviasobre ele,
eloglo ou crítica. Sua saúdeera espantosa.Visitouo Egito e
fez às Índias uma viagemextremamente cansativa,da qual
retornou dizendo: “Sinto-me mais jovem do que nunca.”
“Dir-se-ia que, ao envelhecer, ao invés de consumir, acumu-
lava vida”,escreveu Alfred Capus. Mas a situação política
afligia-o. Na Córsega, em Sartena, deplorou, num discurso,
que o Tratadode Versalhesnão fosse integralmentecumpri-
do. Sofria com o recuo da América, com o problemadas in-
denizações,comasconcessõesfeitasà Alemanha,comavolta
ao poder de Briand, que odiava,e com o que chamavade
decadênciamoral da França. Lutava por intermédiode ter-
ceiros. Fundouumjornal, L'Écho national,cuja direçãocon-
fiou a Tardieu:foi umfracasso.
O NewYorkWorldpediu-lhesua opiniãosobre o papel
da Américana guerrae na paz:ele decidiuir, em caráter pri-
vado,explicar-seaosEstadosUnidos.Partiuem 11denovem-
bro. Foi acolhidotriunfalmente.Apesarde seus81 anos,dis-
cursou30 vezesem trêssemanas,esforçando-sepor“des-
pertar os americanos”.O públicoera imenso,e o aclamava;
mas sua viagem não teve nenhuma consequência política.
Pouco tempodepois,a ocupaçãodo Ruhr exacerbouo anta-
gonismoentre a Américae a França.
De volta à França, apesardas propostasque lhe foram
feitas, recusou-sea voltar ao Parlamento;masacompanhava
desoladamente o curso dos acontecimentos. Escrevia, em 26
de abrilde 1922: “Asituaçãoagrava-sedia a dia em Gênova,

523
ondeLloydGeorge impõecruelmenteseudomínio.Ruptura
ou submissão,é a quedaparao fundodo buraco...Sofro com
isso, alémdo que possadizer.”E ainda:“Traídopor seusgo-
vernos e traídopor sua imprensa,eis o destinodo nosso po-
vo.” Reprovou as concessões feitas por Briand. Quando
Poincarésucedeueste último,emjaneiro de 1922, e ordenou
a ocupaçãodo Ruhr, Clemenceaujulgouque essa medidavi-
nha tarde demais, e não tinha mais nenhum valor, parecen-
do-lhe inutilmenteperigosa:“Seu Poincaré me parece uma
criança que brincacomtiçõesacesosentre barrisde pólvora”,
escreveuele a um amigo.
Consolava-sepasseandoà beira do mar,a pé ou de car-
ro, cultivando rosas, recebendo visitas. Trabalhava no seu Dé-
mosthêne.Escreviaa umamigo:“Tenho82 anos,e issoé tudo.
O corpo não vaimal.A cabeça está razoável.O coração tam-
bém.” E também:“Nãopeço nada,e, sem poderser acusado
de egoísmo,voumorrermaisou menosfelizemmeioao duro
conflito dos destinoscontrários.”Escreveu tambémAu soir
de la pensée: “Graças a isso,º disse a Wormser,em outubro
de 1925, passeiadmiravelmentequatro anosque teria passa-
do a chorar...E curioso,não é, que o fimdaminhavidaesteja
numatal contradiçãocom o que fui, com meu caráter. É ao
meu trabalho que o devo.Ele me distraiu,elevou-me.Todo
esse formigueironão me comovemais.”
Na verdade,ele tinha crises de fadigae de depressão.
Sua melancoliaemergiadesuascartase discursos.A Poincaré
sucedeuo Cartel das Esquerdas,que procurouuma aproxi-
mação com a Alemanha. Clemenceau enfureceu-se. Viu
Caillauxe Malvy,reabilitados,tornarem-se novamentemi-
nistros. Briand assinou o tratado de Locarno, e foi saudado
como o novoapóstolodapaz.Para Clemenceau,era umasé-
rie de insuportáveisafrontas.Quando,em 1926, criou-se um
gabinete de União Nacional,do qua! faziamparte seus dois

29 Aofatode escrever.

524
maioresinimigos,Briande Poincaré,sua cólera atingiuo pa-
roxismo:rompeucomTardieuquandoeste aceitouentrar no
gabinete. Escreveu umacarta indignadaao presidenteCoo-
lidge,que exigiada Françao pagamentode suasdívidas.Pro-
fetizava catástrofes: “Em cinco anos, em dez anos, quando
bem quiserem, os boches entrarão no nosso país.” O que,
aliás, estava certo. Dizia também: “O tempo que vivemosé
de umaabjeção!” A René Benjamin, que foi visitá-loem sua
casa de campo,disse:“Essa pobrecoisaefêmera, a Françado
séculoXX, acabou,eu me desliguei...Um homemque mere-
ça esse nome morreriade repulsaentre os anões que nos go-
vernam. Estou bem, onde estou.” Fazia sobre o futuro som-
brios prognósticos:“Tereisuma degenerescência,e não de-
morará muito. Briand, com a Alemanha, vai tratar de vos
arranjarisso.Vivereisa pazapodrecidadasdecadências.”Ele
perdera toda paixão, toda convicção: “Esperar? É impossí-
vel! Não possomais,eu que não creio mais,eu que não creio
maisnoquemeapaixonou:a democracia.”
Tinha umagrandeamizadepor ClaudeMonet. Pediua
este que doasseao Estado Osnenúfares,que admirava:a ad-
ministraçãodasBelas-Artescolocou a Orangerieà disposição
do pintor. Mas este último— que Clemenceauchamavade
“rei dos rabugentos”— multiplicouas dificuldadese rescin-
diua doação.Confirmou-a
depois,masmorreuemdezembro
de 1926, antes que a instalação fosse feita. Seis meses antes,
Clemenceau perdera Geoffroy, a quem fora muito ligado.
Perdeu também seu irmão Albert, sua fiel criada Clotilde. À
solidãopesava-lhe:“Ah!quão triste é chegar ao fimda vida!
Não temos maisninguémperto de nós”,diziaele. Sua saúde
alterava-seum pouco: “Lamento estar quasebem de saúde,
sendomeuúnicomalo denãotermaispernas.”Dizia,entre-
tanto, que o trabalholhe proporcionava“alegriasde rapaz”.
Escreveu um livrosobre Monet. Ferido pelo Mémorial pu-
blicado três semanasdepois da morte de Foch, em abril de
1929, no qual este último o criticava, revidou escrevendo

525
Grandeuret misêred'unevictoire.Esses ataqueso entristece-
ram:“Tenhoraivadele? sobretudopornão meter permitido
terminar meus dias no modesto orgulho de um silêncio no
qual eu colocara o maisbelo de minhasalegriasprofundas.”
Masvoltava-secomsatisfaçãoparaseu passado:“Tivetudo...
tudoo que umhomempode ter... Vivios maioresmomentos
que umhomempodeviverneste mundo!Quandose conhe-
ceu o armistício, meus filhos!” Até o fim, conservou uma es-
pantosavitalidade.Foi só na vésperade sua morte, que mur-
murou:“Envelheço. Agarro-meà vidacom unhasfracas.”

Essa robustavelhicefaz umespantosocontraste com a


de Churchill,emborahaja entre as duassurpreendentesana-
logias. Levado ao poder em 1940, com a idade de 66 anos,
Churchill, no momento da vitória, também foi considerado
como o salvadorde seu país,e gozoude umaimensapopula-
ridade. Também ele, entretanto, foi alijado do poder assim
que acabou a guerra. Só que seudestino biológico foi intei-
ramente diferente do de Clemenceau.
Em 1940, Churchillfoi saudadocomo o homemprovi-
dencial:o paísinteiro exigiaque lhe fosse confiadoo poder.
Tinha por trás de si umalongacarreira de parlamentare de
ministro.Fora em grande parte graças à sua passagempela
chefia do Almirantado,em 1911, que a armadainglesaadqui-
rira seu poder. Quando,em 1930, a derrota do partidocon-
servador acarretou a queda do ministério Baldwin, Churchill,
que era então ministrodas Finanças, perderasua pasta. Du-
rante 10 anos, ficou afastadodo poder. Mas fizera discursos
muito notórios. Entendera cedo a gravidadedo perigo na-
zista, e, em 1936, falando diante do comitê das relações ex-
teriores do partidoconservador,invocaraa Liga das Nações
contra a Alemanha.A imprensadifundiraamplamentesuas
opiniões. Ele lançara uma campanhapelo rearmamento,e

30 Foch.

526
condenara, em seguida,todas as concessões feitas a Hitler.
Acusaram-node belicismo:masquandofoi declaradaa guer-
ra, ele apareceucomo umprofeta a quemse tinhacometido
o crime de não dar ouvidos.Os murosde Londres cobriram-
se de cartazes exigindo:“Winstonno poder!” Chamberlain
colocou-o à frente do Almirantado.Após a entradados ale-
mães na Bélgica, em 10 de maio de 1940, Chamberlainexo-
nerou-se,e Churchilltomoua frente de umgovernode coa-
lizão. Pronunciou então seu famoso discurso:“Só tenho a
oferecer sangue,trabalho,suor e lágrimas.”Tinha então 66
anos.
Duranteos anosdeguerra,ele assumiuastarefasde três
homens. Levantava-se às 8 horas, trabalhava até o almoço,
dormiauma hora e trabalhavade novo até 2 ou 3 horas da
manhã.A partirde dezembrode 1943,seucorpo traiu-o:caiu
doente em Cartago, e desde então nunca maisfoi o mesmo
homem. Seu médico, o doutor Jacques Moran, anotou dia
após dia seu patético combate contra a decadênciafísica e a
imbecilidade. Dizia ele, em 22 de setembro de 1944 — aos 70
anos:“Noque dizrespeitoao espírito,vaitudobem.Mas sin-
to-me muitocansado.Tenhoa impressãomuitonítidade ter
concluído minha obra. Tinha uma mensagema transmitir,
não a tenho mais.Doravante, limito-mea dizer:caça a esses
malditossocialistas.”Estavamarcadopelopassado.Escreveu
ao general Scobie: “Precisamosmanter Atenas. Será para o
senhor umgrandefeito chegar a isso sem derramamentode
sangue,se possível,mascomderramamentodesangue,se ne-
cessário.” Comentandoessas instruções em 1953, ele disse
ter pensadona palavraque Balfour dirigiuàs autoridadesbri-
tânicas na Irlanda: “Não hesitem em atirar.” Acrescentou:
“Essalembrançadeumaépoca longínquaobcecavameupen-
samento.” Talveztenha alegado essa reminiscênciaa título
de escusa;maso fatoé quenãose adaptavatão bemcomo
outroraàscircunstâncias.Em Yalta, nãofoi porsuaculpaque
teve que fazer importantes concessões a Stalin: defendeu
seuspontosdevistacomhabilidade e firmeza.Massuasaúde
continuoua deteriorar-se.Suacapacidadedetrabalhodimi-

527
nuiu.Tornou-sefaladore verborrágico,a ponto de exasperar
os membrosdo gabinete. Tinhaestadosempreabsorvidoa tal
ponto por suasprópriasidéias,que não se interessavapelas
dos outros. Mas sua solidãoaumentoumaisainda.Não con-
seguiamaisacompanharumpensamentoalheio.Perdera um
pouco o sentido das realidades.Iludidopelas ovações triun-
fais de que era objeto nas ruasde Londres e na Câmarados
Comuns, acreditou que, nas eleições legislativas, o sucesso
dosconservadoresestava assegurado.Lançou-se com Ímpe-
to, em 1945, na campanha eleitoral. Mas não se deu ao tra-
balho de estabelecer um programasólido.Limitava-sea de-
nunciarascatástrofesque umministériotrabalhistadesenca-
dearia: seria, dizia ele, um regime estatizante e policial. Esses
ataquescontra homenscom quemele colaboraraduranteto-
da a guerra forammotivo de preocupação. Começou-se a
perguntarse sua combatividade,útil em tempos de guerra,
não seria nefastapara a paz.O organismocentral do partido,
adormecidodesde 1940, perdera o contato com as massas.
Ao contrário, os trabalhistastinham um programasedutor:
serviçossociais,plenoemprego,vidabarata,nacionalização
de certas indústrias.Faziamumaexcelente propaganda.Di-
zia-se: “Os trabalhistastêm umprograma;os conservadores,
umafotografia: a de Churchill.”
A vitória dos trabalhistasfoi esmagadora,e Churchill
teve que se exonerar: isso lhe provocou uma grande amar-
gura: “Fui despedidopelo eleitorado britânico e privadode
qualquerparticipaçãoulteriorna conduçãodosnegócios”,
escreveuele, maistarde.Nãosuportavasentir-se“desempre-
gado”,e mergulhouna melancolia.Quando alguémlhe su-
geriuiniciarumitineráriode conferências,respondeu:“Re-
cuso-me a ser exibidocomo um antigo touro de exposição,
cujo prestígiosó se devea suasproezaspassadas.”Conserva-
va sua cadeira no Parlamento, mas durante um tempo não
teve mais atividadepolítica. Retirado no campo, pintava,e
projetou escreversuasMemórias(muitoinferioresao seu re-
lato da guerra1914-18:a partede seuscolaboradoresé aí
muito mais considerável).Depois, passoua liderar a oposi-

528
ção, e novamente frequentou assiduamentea Câmara dos
Comuns; atacava as medidaseconômicas tomadaspelo go-
verno,e sobretudoa políticade descolonização:suaveemên-
ciaincomodavaseuscorreligionários;estes desejavamque se
aposentasse.Em 1949, teve umpequenoataque,e ficou sur-
do. Sua memóriaenfraqueceu.Caminhavacom dificuldade.
“Estou no fim da linha”,dizia.Entristecia-se com o desapa-
recimento dos antigoscostumes,como, por exemplo, o dos
oito cavalosbrancosdo rei. Após a desvalorizaçãoda libra,o
Parlamentofoi dissolvido,e as eleições fizeramcom que os
trabalhistas perdessem 95 cadeiras. Attlee continuava pri-
meiro-ministro, mas Churchill entrevia uma desforra, e fez
intervençõesbrilhantesna Câmara.Em 1951, as questõesdo
Irã e asgreveslevarama umanovadissoluçãodoParlamento:
os toriesvenceram,e Churchilltornou-senovamenteprimei-
ro-ministro.Mas perderasua capacidadede trabalho: cinco
ou seis horas era o máximoque conseguia,e deixavaa seus
ministrosa parte maispesada.Sentindo-secansadoo tempo
todo, sabendo que sua pressão arterial era demasiadoalta,
frequentementesonolento, tinha medode ficar imprestável.
Fez esta queixapatética: “Mentalmente,não sou maiso que
era. Doravante, um discurso a fazer é um fardo e uma ansie-
dade.Jacques, diga-mea verdade:vou perdergradualmente
todasasminhasfaculdades?”
Entretanto,apesardosconse-
lhos do médico,apesar das indisposiçõese dos ataques, não
queriarenunciarao poder.À rainhaconferiu-lhea ordemda
Jarreteira.Masem25 dejunhode 1953,aofimdeumjantar
oficial,ele desmoronou:como em 1949, o ataquedevia-seao
espasmode umaartéria. Coma boca despencada,a elocução
confusa,sentia-se transformadonum“pacote de velhos tra-
pos”.Restabeleceu-se, e em outubrofez, no congressoanual
do partido conservador,um discursode 52 minutos,muito
aplaudido.Mas na Câmara,em 5 de abril de 1954, sua inter-
venção foi desastrosa: ao tratar do problemada bomba de
hidrogênio,reduziu-oa umaquerela entre partidos.Gritou-
se: “Demissão! A aposentadoria!” No dia seguinte, ele disse,
com pesar: “Quandose é velho,vive-sedemaisno passado!”

529
Mas não se desligava.Passandopor altos e baixos,tinha,en-
tretanto, consciência de seu estado: “Aide mim! Fiquei tão
estúpido!Você não pode fazer nadapor mim?”Espantava-
se: “É umacoisaextraordinária,Jacques, ficarvelho.”Moran
perguntou-lhequais eram os sinais que o impressionavam:
“Tudo”,respondeu.Obstinava-seem permanecerno poder,
mas cada vez tinha menos capacidadepara tanto. Para dor-
mir, tomavacalmantes.Frequentemente tinha lágrimasnos
olhos. Seu 80º aniversáriofoi uma apoteose. À noite, con-
templandoumretrato seu,que lhe tinhamdadode presente,
dissea Eden: “É a imagemde umhomemaposentado.Você
há de convirque issonão parece comigo” Entretanto, os jo-
vens conservadoresgostariamde vê-lo partir.Cometiagafes
constrangedoras.*!Sua mente arruinava-se.Durante as reu-
niõesdogabinete,frequentementedormia.Em 1955,decidiu
finalmente exonerar-se. Comia e bebia muito, mas fumava
menos que outrora. Tinha frequentemente o olhar turvo,
longosmutismos,torpores: “Estarei perdendoa cabeça?” -
perguntava.Teve um ataque de apoplexia em 1956. Ficou
completamentesurdo,apático,taciturno.Ia frequentemente
paraa Côte d'Azur,liae pintavaaindaumpouco.Foi reeleito
deputadoem 1959, e foi a Paris,onde De Gaulle o condeco-
rou com a Cruz da Libertação. Parecia muito velho e can-
sado. Depois, soçobrou por completo. Durante cinco anos,
arrastou-se,decrépito,com a cabeça perturbada.
Gandhinuncafoitraídoporseucorpo.Seuvigorfoi ain-
damaisespantosodoqueo deClemenceau.Conseguiulevar
a termo o projeto no qualengajaratoda a suavida— libertar
a Índia dos ingleses. Mas sua vitória voltou-se cruelmente
contra ele.

31 Teve o desatinode dizer:“Em 1945, enquantoos alemãesse rendiam


aos milhares, enviei ao marechal Montgomery um telegrama
aconselhando-oa estocarsuasarmas:poderiatornar-senecessáriode-
volvê-lasaos soldadosdaWermacht,se os russosforçassemo avanço.”
Intimado a explicar-se,defendeu-semuitomal.

530
Decididoa expulsaros inglesesdas Índias,inaugurara,
em 1919, a Satyagrana,isto é, a desobediênciaàs durasleis
Rowlatt, que os inglesesqueriamimpor.Conclamouà não-
cooperação.Nomeado,em 1920, presidentedaLiga pela au-
tonomia pan-indiana,multiplicouas viagensde propaganda
para difundira prática da resistêncianão violenta.Pregou o
renascimentodo artesanato,que permitiuboicotaros produ-
tos ingleses.Conseguiuparalisara vidaeconômica.Ao mes-
mo tempo, agia no interior da sociedadeindiana.Trabalhou
para suprimir os preconceitos contra os párias. Almejava
mantera amizadeentre hinduse muçulmanos.Estes haviam
vividodurantemuitotempoem bons termos.Mas no século
XX, apareceram nas cidadessérias tensões entre as classes
médiasdas duas comunidades,que disputavampostos e in-
fluências. Em 1924, Gandhiinfligiu-seumlongojejum, a fim
de reconciliá-los:duranteastrêssemanasquedurouessapro-
va, ele morou na casa de um muçulmano. Entretanto, sendo
ele mesmomuitopiedoso,deu ao movimentoque dirigiaum
caráter profundamentereligioso.“Acontecia-meficar preo-
cupado— escreveu Nehru— com essa influênciacrescente
dareligiãosobre a nossapolítica,viesseela doshindusou dos
muçulmanos.Isso não me agradavade modoalgum.”Acres-
centa que era muitodifícil,pelo menosem certos pontos, le-
var Gandhi a modificar suas atitudes: “Ele era tão firme, tão
ancoradoem certas idéias,que o resto pareciasemimportân-
cia...Do momentoemque os meioserambons,tambémo fim
só podiaser bom.”
Aos 70 anos, Gandhi estava mais convencido disso do
que nunca.Dotado de umaadmirávelsaúde,tendo-seimpos-
to, sem que esta se alterasse, inúmerosjejuns muito duros,
suportando longas caminhadas, o calor, o desconforto, e ve-
nerado por todos, desejavaviver até 125 anos. Entretanto,
enquantoele acreditavanumnacionalismounificador,o líder
muçulmanoYinnah desejavaa divisãoda Índia: a criação de
umEstado muçulmano.Quando,depoisda SegundaGuerra
Mundial, os ingleses, consentindo em retirar-se, encorajaram
a formaçãode umgovernoprovisório,os mulçumanosrecu-

531
saram-sea entrar nesse governo:exigiamas provínciasonde
a maioria dos habitantes eram muçulmanos.Desencadea-
ram-se então terríveis massacres: em Calcutá, onde houve,
dos dois lados, milhares de mortos; em Bihar, onde 10.000
muçulmanosforam mortos. Com 77 anos de idade, Gandhi
foi para a região de Noaklabi,onde se haviamrefugiadohin-
dus. Visitou 49 aldeias, pregando a não-violência, morando
muitasvezes na casa de muçulmanos.Novosmassacressuce-
diam-seno Penjab, em Delhi. No diaem que completouseus
78 anos, Gandhideclarou:“Só há angústiaem meu coração.
Perdi todo o desejo de viver por muito tempo.” Disse tam-
bém: “Nãoestou maisde acordocom o que meusmaiscaros
amigosestão fazendo.”E ainda:“NaÍndia,tal como se apre-
senta hoje, não há maislugarparamim...Não tenho nenhum
desejo de viver,se a Índia tem que submergirnumdilúviode
violência.”Só recebia cartas rancorosas:dos hindus,porque
Ihesreprovavaasviolências,dosmuçulmanosporquese opu-
nha à cisão. Convencidosde que só esta podiaevitara guerra
civil,os membrosdo Congressoacabarampor votá-la em 14
de junho de 1947. Gandhificou “desesperado”com isso. À
divisãoera, para ele, uma“tragédiaespiritual”.No dia (que
esperara durante toda a vida) em que a independênciafoi
proclamada— 15 de agostode 1947 —, ele recusou-sea to-
marpartenassolenidades.Os indianoshaviamtraídoos prin-
cípiosde não-violênciaque, a seus olhos, contavammaisdo
que a própriaindependência.“Se Deus me ama,não me dei-
xará na Terra por mais que um momento”, dizia ele. Visi-
tava os campos de refugiados, fazia discursospúblicos, fa-
zia tudo para reconciliar as duascomunidades:em vão. No
Paquistão, os hindus eram massacrados; nas Índias, era a
vez dos muçulmanos,e os sikhs eram vítimas de chacinas
nos dois países. Gandhi interrogava-se: “Haverá algo erra-
do comigo?” Ele, que sempre procurara viverharmoniosa-
mente, constatava: “Estou longe de possuir meu equilí-
brio.”A tão desejadaindependênciasó lhetrouxeo deses-
pero. E morreu de modoviolento, assassinadopor um hin-
du que o considerava um traidor.

532
Foi vítimadessacontrafinalidadeque Sartre descre-
veu, e que é ummomentoinelutáveldo desenrolarda Histó-
ria:apraxisimobilizava-se
emprático-inerte;sobessaforma,
ela é de novo apreendidapelo conjunto do mundo,que lhe
desfigurao sentido.Um homemque morrejovem pode não
assistira esseretornodascoisas:mas,como tempo,elefatal-
menteseproduz.Einsteinfoiumavítimainocente.A respon-
sabilidade de Gandhi é, ao contrário, evidente: Nehru pres-
sentiracom angústiaa catástrofeque ia desencadearos fana-
tismosreligiososque Gandhiatiçava.Obstinadona idéia da
não-violência,este não percebeu a violêncialatente no seio
das duas comunidades.Preferiu o princípio à realidade, o
meioaofim:e o resultadocontradisse
o projetodetodaasua
vida.Há poucosdestinosmaistrágicosparaumhomem,do
que o de ver sua ação radicalmentepervertidano momento
em que se realiza.

Não foi por acaso que o balanço dessastrês velhicesse


traduziupor fracassos.O homempolítico é feito para fazer
a História,e para ser morto por ela. Dela encarnaum certo
momentoao qual, não importao que faça, não se podesub-
trair. Mesmo que se adaptasse ao novo curso das coisas,
continuaria, aos olhos do público, o homem de tal tática, de
tal método, de tal decreto. Clemenceau era o homem da
guerra:o pós-guerralogoo afastou.Do mesmomodoChur-
chill,que levaraa Inglaterraà vitória,pareceua seu país
obsoleto,assimqueestafoiconquistada. Gandhiconduziua
Índiaàindependência: masaindependência criouumasitua-
ção queexigiaquetodosos seusprincípiosfossemrenega-
dos. Há velhos que ficamcegos, e que conseguemignoraro
desmentidoque os acontecimentoslhes infligem:só conse-
guemparecermaisatrasados.
Já que forambanidosdo poderpara que se adotasseu-
ma linhadiferente da deles, os velhos homenspolíticosque
caíramemdesgraçaculpamo o presentee não pressagiamnada
de bom parao futuropróximo;de qualquermodo,umaação

533
nãoé umaobra: ela só podesobreviveratravésdalembrança,
e não perpetuar-sematerialmente;para alémdo desenrolar
aventurosodaHistória,o que o homemde açãopodeesperar
legar à posteridadeé apenasa memóriado que ele realizou,
e de sua figura.À maioriaatribuia isso umaextremaimpor-
tância. Afastadosde suasfunções— e por vezes,mesmoen-
quanto as estão exercendo — escrevem memóriasque são
sempre apologiasdeles mesmos,ataquescontra seus adver-
sários,e cujo valorhistóricoé geralmentecontestável.Advo-
gam sua causa diante das gerações futuras, contra a época
atualque, a seus olhos, não lhes fez plenamentejustiça.
Percebe-se que, em quase todos os campos,com rarís-
simasexceções, a relaçãodovelho como tempo no qualvive
tem-se transformadoprofundamente.E o que exprimea cu-
riosa expressão:“No meu tempo”.Cuja estranhezaAragon,
emBlanche oul'oubli,observou.O tempoque o homemcon-
sidera como o seu é aquele no qual ele concebe e executa
seusprojetos; chega ummomentoem que, pelasdiversasra-
zões que vimos,esses projetos fecham-sepor trás dele. A é-
poca pertence aos homensmaisjovens que nela se realizam
através de suas atividades,que animamcom seus projetos.
Improdutivo,
ineficaz,o homemidosoapresenta-sea si mes-
mo como um sobrevivente.E por esse motivotambémque
ele se inclinatanto a voltar-separao passado:é o tempoque
lhe pertenceu,no qualse consideravaumindivíduoque goza
de todosos seus direitos,umser vivo.
Seu tempo era tambémaquele que era povoadopelas
pessoasde suaidade.Os lutossão menosnumerososhoje, do
que outrora. Antigamente,umhomemde 50 anos tinha, em
média, visto morrer seus pais, seus tios, suas tias, muitos ir-
mãose irmãs,provavelmentesua mulhere algunsde seus fi-
lhos.A vidaera umasequênciade enterros,e chegaràvelhice
condenava à solidão. Nos nossos dias, aos 50 anos, muitas pes-
soas só perderamna famíliaos avós. Mas se alguématinge
70, 80 anos, já viu morrer a maioria de seus contemporâneos,
e flutua, solitário, numséculo povoadode pessoasmaisjo-

534
vens.Mesmo na minhaidade,minharelação com as diversas
gerações transformou-se;só resta uma maisantigado que a
minha,extremamentedispersa,e com a morte a espreitá-la.
A minhageração,outrorafervilhante,empobreceu-semuito.
A que representavaa meusolhos a juventudecompõe-sede
homensfeitos; pais, e mesmo avós, instalados em suas vidas.
Se quiserter, sobre determinadoassunto,umponto de vista
realmentejovem, tenho que dirigir-meà geraçãoabaixo.Em
algunsanos, atingireio que Mme de Sévignéchamao “grau
de superioridade na nossa família”. A partir daí, estamos a-
meaçadospelasolidãoe suastristezas.Aos82 anos,em 1702,
Ninon de Lenclos constatava com melancolia que aqueles
que vivem muito tempo têm “o triste privilégio de conti-
nuar sós num mundonovo””*,Do triste castelo onde se re-
colhera, Casanova escrevia: “A maior infelicidade de um ho-
memé a de sobrevivera todosos seusamigos.” O grandeve-
lho de quem Rétif, em La Viede monpère, fala com venera-
ção, diza umjoveminterlocutor:“Meufilho,nãoinvejesmeu
destino nem minhavelhice. Faz 40 anos que perdio último
dosamigosde minhainfância,e quesoucomoumestranho
no meio da minhapátriae da minhafamília.Não tenho mais
ninguémque se veja comomeusemelhante,meuamigo,meu
companheiro.Uma vidademasiadolongaé umflagelo.”Ele
diz não ter nenhumsentimentopara com seusbisnetosque,
por suavez, o ignoram:“Aíestá a verdade,meu caro amigo,
e nãoosbelosdiscursosdosbem-falantesdascidades.”
O velho não viumorrer apenas as pessoasde sua gera-
ção:combastantefrequência,umoutrouniversosubstituiu
o seu. Viu-se que certos velhos acolhemessa mudançacom
prazere mesmocom orgulho:masapenasna medidaem que
elanãocontesteseupassado.Se a mudançapõedenovoem
questãotudoo que fizeram,tudoo que amaramou tudoaqui-
lo em que acreditaram,sentem-se no exílio.

32 Lembramo-nosde que, ao descreveros Struddburg,Swiftpressentira


esse exílio.

535
Foi esse um dos aspectos da velhice que impressionou
Balzac, e que ele traduziucom felicidade:o velho sobrevive
à sua época e a si mesmo.É o caso do coronel Chabert, tido
como morto em Eylau,e que, após anos de vidaerrante, re-
torna a Parisparase fazer reconhecer, parareencontrar sua
mulhere suafortuna.Seupróprioaspectofísicoindicaseu
estado: “O velho soldadoestava seco e magro. Sua fronte
propositalmenteoculta sob os cabelos da peruca empresta-
va-lhe um toque de mistério.Seus olhos pareciamcobertos
por umacatarata transparente...O rosto, pálido,lívidocomo
a lâminade umafaca... pareciamorto...A aba do chapéuque
cobria a fronte dovelho projetavaumsulconegro no alto do
rosto. Esse efeito bizarro, embora natural, fazia sobressair,
pela asperezado contraste, as rugasbrancas,assinuosidades
frias,o sentimentodescoloridodaquelafisionomiacadavéri-
ca. Enfim, a ausênciade qualquermovimentono corpo, de
qualquercalor no olharcombinavacom umacerta expressão
dedecênciatriste.”Sua mulher,casadade novoerica, de pos-
se do dinheiroque pertencia a Chabert, recusa-sea devolvê-
lo a este, que não tem força paraempenhar-seem processos:
“Ele aflorava uma dessasdoenças para as quais a medicina
não tem nome... afecção que seria preciso chamarde spleen
dainfelicidade.”Porgenerosidade,ele decidepermanecerle-
galmentemorto. Maso comportamentode suamulherinspi-
ra-lhe uma tal repulsa,que pensa em matar-se.Desaparece;
torna-seumvagabundoquese fazchamarde Hyacinthe.Aca-
ba indo pararem Bicêtre.
Um outro sobreviventeé Facino Cane, que aparece ao
narradorquandotocaclarinetanumcasamento:“Imaginem
a máscarade gessode Dante, iluminadapela luzvermelhado
candeeiroe encimadapor umaflorestade cabelosde um
brancoprateado.A impressãoamargae dolorosadessacabe-
ça magníficaera ampliadapelacegueira,poisseusolhosmor-
tos reviviampelo pensamento; escapavadeles uma espécie
de luz ardente, produzidapor um desejo único, incessante,
porrugasseme-
inscritonumafronteabaulada,atravessada
Ihantesà orlade umvelhomuro...Encontrava-sealgogrande

536
e despóticonesse velho Homero que guardavaem si mesmo
umaOdisséiacondenadaao esquecimento.Era umagrande-
zatão real, que ainda triunfavasobre sua abjeção, era um
despotismotão vigoroso,que dominavaa pobreza.Nenhuma
dasviolentaspaixõesque conduzemo homemtanto ao bem
quanto ao mal, que fazem dele um condenado ou um herói,
faltavanaquelerosto nobrementeesculpido,lividamenteita-
liano, sombreadopor sobrancelhasgrisalhasque projetavam
suasombrasobrecavernasprofundas.Existiaumleão naque-
lajaula deferro, umleão cuja ira se esgotarainutilmentecon-
tra o ferro dasbarras.O incêndiodo desesperoextinguira-se
nas cinzas; a lava resfriara-se; masos sulcos,os transtornos,
um pouco de fumaça, atestavama violência da erupção, as
devastações do fogo.” O homem é, na verdade, o descen-
dente de um nobre patrício de Veneza; após extravagantes
aventuras,ele se viude novodespojadode todaa suafortuna,
e cego.Tantonele comoemChabert,a sobrevivênciaé acom-
panhadade uma decadênciaatravésda qual emerge a gran-
deza.
É preciso citar também o bizarro e inquietante velho
que Balzac descreve, no início de Sarrasine: “Criatura sem
nome na linguagemhumana,forma sem substância,ser sem
vidaou vidasem ação... Ele usavaumacalça de seda negra,
que flutuavaem torno de suascoxas descarnadas,formando
pregascomo umavela de barco arriada.Um anatomistateria
reconhecido subitamenteos sintomasde um horrívelraqui-
tismo,ao ver as perninhasque serviamparasustentaraquele
corpo estranho. Dir-se-iamdois ossos em cruzsobre um tú-
mulo.Um sentimentode profundohorror pelo homemapo-
derava-sedo coração, quandouma fatal atenção revelavaa
quemo olhasseas marcasimpressaspela decrepitudenaque-
la máquinafrágil. O desconhecidousavaum colete branco,
bordadode ouro, à modaantiga,e sua roupa branca era de
umaalvuraofuscante.Umjabô de rendada Inglaterraum
tantoruço,cujariquezafariainvejaa umarainha,formava
colmeiasamarelassobre seu peito; mas nele, essa renda era
maisumfarrapodo que umornamento.No meiodessejabô,

537
umdiamantede valor incalculávelcintilavacomo o sol. Esse
luxo antiquado,esse tesouro intrínseco e sem sabor faziam
sobressairmaisaindao rostodesseser bizarro.A molduraera
dignado retrato. O rosto negro era angulosoe cavado em
todos os sentidos. O queixo era cavado; as têmporas eram
cavadas;osolhosperdiam-seemórbitasamareladas.Os ossos
maxilares, tornados salientes por uma indescritível magreza,
desenhavamcavidadesno meio de cada face... Os anos ti-
nhamcolado tão fortemente nos ossos a pele amarelae fina
daquele rosto, que ela descrevianele, por toda parte, uma
multidãode rugas...tão profundase tão apertadasquanto as
folhasnasbordasde umlivro...Maso quecontribuíamais
paradara aparênciade umacriação artificialao espectro que
apareceudiantede nósera o carmime o brancoque reluziam
nele... Seu crânio cadavérico escondia-se sob uma peruca
loura, cujos incontáveis cachos traíam uma pretensão ex-
traordinária.”Balzacdescreveasjóias que o cobrem.“Enfim,
essaespécie de ídolojaponês conservavanos lábiosazulados
umriso fixo e parado.Se o velhoviravaos olhos paraos pre-
sentes,pareciaqueosmovimentosdaquelesglobosincapazes
de refletir umaluzestavamacopladospor umartifícioimper-
ceptível.”Esse homemhaviasidooutrorao célebre castrado
Zambinella que, vestidode mulher, cantava nos teatros de
Roma. Dotado de umabeleza perturbadora,devastaraos co-
rações, homenstinham-sematadoporele. Um deles,o escul-
tor Sarrasine,lhe haviapreditoessedestinoatroz:“Deixar-te
a vidanãosignificacondenar-tea algopiorquea morte?”
Tolstoiretratou admiravelmenteum homemdo século
XVIII, isolado no século XTX: o velho príncipeBolkonski,
pai do príncipeAndré.Inspirou-se,para descrevê-lo,no que
lhe haviam contado sobre seu avô materno, Nicolas Volkons-
ki; este tiranizavasua filha, a mãe do autor, a qualtinha uma
governanta francesa, Mlle Henissienne. Esse retrato tem,
portanto, o valor de umdocumento.O velho príncipeusa u-
ma casaca bordadae empoaos cabelos: quandoele aparece,
sentimo-nostransportadospara uma outra época. Goza de
boa saúde, tem dentes sólidos. Não tem mais nenhuma in-

538
*

fluênciareal na sociedade,masé respeitado.Organizadoaté


a mania, cercando-se de um cerimonial imutável, sua exigen-
te durezaaterroriza os que o cercam. Conservoucertas ati-
vidades, e até dedica a estas boa parte de seu tempo; mas essas
atividadestêm qualquercoisadeobsoleto. Ele constrói,plan-
tae sobretudotranca-seemseulaboratórioparaentregar-se
a pesquisas, à maneira dos amantes da ciência do século
XVIII. Fiel aos velhoscostumes,e encerradonos preconcei-
tos de seu tempo, zombadosmilitaresda novaescola, e não
levaBonaparte a sério. Certa manhã,enquantose vestia,pe-
de a seu filho que lhe exponhaos planosda próximacampa-
nha, mas não o escuta. Está inteiramente a par da situação
políticae militar;masencarao mundoatualcomironiae des-
dém.Ele tem “um risofrio, seco e desagradável”.É um tirano
doméstico.Aterroriza a filha Marie, oprime-ae recusa-se a
separar-sedela. Por causa dele, ela não se casa. Fica furioso
por seu filho querer casar-senovamentecom Natacha,e re-
cebe tão mal esta última— de roupão e gorro de algodão,
com observaçõesdesagradáveis— que ela deixaa casa, ma-
goada.Ao envelhecer,permanecerobusto,perdeapenasum
dente, mastorna-se cadavez maisirritadiçoe cético com re-
lação aos acontecimentosdeste mundo.Depois, adoece um
pouco e acusa a filha de enervá-lo propositalmente.André
toma o partidoda irmã;o velho príncipe,a princípio,fica a-
borrecido,parece confuso,depoissalta: “Fora daqui!Nunca
maisponhasde novoos pés nesta casa.”Sua razãocomeça a
declinar. Deixa-se enganar pela governantafrancesa, Mlle
Bourienne. Tem caprichos.Tranca-se durante oito dias em
seugabinete,depoisretorna a suasconstruçõese plantações.
Mostra-se amuado com Mlle Bourienne, e também com a fi-
lha desta. Finge ignorara guerra. Sempre atarefado,dorme
poucoe mudade quartotodasas noites.Enquantoo inimigo
já está no Dniepr, ele afirmaque este não conseguirátrans-
por o Niemen.Cadavezmenoslevaem consideraçãoa reali-
dade.Seu filhoenvia-lheumacarta alarmante,e ele fingeque
ela anunciaumaderrotafrancesa.Depois relê a carta e com-
preende subitamenteo perigo;ordena à filhaque partae faz

539
&

umacena violenta porqueesta se recusa a deixá-lo,embora,


no fundo, fique muito feliz com isso. Quando os franceses
chegam,ele veste seu uniformede gala com todas as conde-
corações para ir ver o general-em-chefe. Mas no caminho
tem umataque,e fica três semanasparalisadodo ladodireito.
Sofre, tenta em vão falar. Então, enternece-se dianteda de-
dicaçãoda filhae acaricia-lheos cabelos. Conseguemurmu-
rar: “Obrigadopor tudo.”Pede paraver seu filhoe se lembra
de que está no exército. “ARússia está perdida,eles perde-
ram-na”,diz,em vozbaixa,marcandocom esse eles sua hos-
tilidadea umaépoca que não reconhece como sua. Explode
em soluços. Depois acalma-see pouco depois morre, aban-
donandosobre o leito umpequenocadáverencarquilhado.
Um sobrevivente: aos olhos de outrem, é um morto em
sursis.Mas será assimque ele mesmose vê? Como sentirá a
proximidadede seu fim?
O contexto social influenciaa relação do velho com a
morte.Em certassociedades,a populaçãointeirase deixape-
recer com indiferença,por misériafisiológica,ou porque as
circunstânciaslhe causamrepulsapela vida:então, a morte
não é problemaparaninguém.Em outras,aspessoascercam-
se, na velhice, de um ritual que valoriza essa velhice a ponto
de torná-la desejável — embora certos indivíduosdesejem
escapar-lhe. A velhice não tem, nas sociedades tradicionais,
nas quaiso paiconta comocerto que seusdescendentespro-
longarãosuaobra, a mesmacaracterísticaque tem nassocie-
dadesindustriaisde hoje. Entretanto, há, na morte, um ele-
mento que transcendea História:ao destruirnossoorganis-
mo,ela aniquilanossoser no mundo*.Da Antiguidade
até
nossosdias,há constantesnos testemunhosque descrevema
atitudedosvelhosdiante da morte.
Essaatitudevariacomasidades.A revelaçãodamorte
perturbaa criança.O jovem detesta a idéiadamorte,embora

33 Mesmo que esperemos ressuscitarnum outro mundo, a morte nos


arrancadeste.

540
seja maiscapaz do que outros de afrontá-la livremente.Re-
volta-se, se a vida lhe é tomada. Mas muitas vezes não hesita
em arriscá-la, em doá-la. E que ele não lhe atribui tanto valor,
senãopelofato de que a destinaa outracoisaquenão ela
mesma;seu amorà vidaé feito de umagenerosidadeque po-
de levá-loa sacrificá-la.O adultotemmaisprudência.Está
preso a interesses,e é atravésdestesque se recusaa desapa-
recer: o que será de sua família,de seus bens, de seus em-
preendimentos?Ele não pensacommuitafrequênciaem seu
fimporqueestá absorvidopor suasatividades,masevitacor-
rer riscos, e cuida da saúde.
Para o velho, a mortenão é maisumdestinogerale abs-
trato: é um acontecimento próximoe pessoal. “Sim, a idéia
de concessão à perpetuidadeda vida, essa ilusão na qual a
maioria dos homens vive, na qual eu vivera até agora, essa
ilusão,eu não a tenho mais”,escreve Edmondde Goncourt
em seu Journal, em 17 de agosto de 1889. Todovelho sabe
que morrerálogo.Maso que significa,neste caso,saber? Ob-
servemos a construção negativada frase de Goncourt: ele
não se crê maisimortal.Mas como é que nos pensamosmor-
tais?
A morte pertence àquelacategoriana qualalinhamosa
velhice, e que Sartre chama de “irrealizáveis”; o por-si não
podeatingi-la,nemprojetar-seemsuadireção;elaé o limite
externo de minhaspossibilidades,e não minhaprópriapos-
sibilidade.Estareimortaparaos outros,nãoparamim:é o
outroqueé mortal,nomeuser.Conheço-memortal— assim
como me conheço velha— tomandoo pontodevistadosou-
tros em relação a mim.Esse conhecimentoé, portanto, abs-
trato,geral,postoem exterioridade.Minha“mortalidade”
não constitui o objeto de nenhuma experiência íntima. Eu
nãoa ignoro;levo-aemconsideraçãopraticamenteem mi-
nhasprevisões,minhasdecisões,na medidaem que me trato
como um outro: mas não a vivo.Posso tentar aproximar-me
delaatravésde fantasmas,imaginarmeucadáver,a cerimônia
fúnebre.Possosonharcomminhaausência:massouaindaeu

541
que sonho com ela. Minhamorte persegue-meno âmagode
meusprojetos, como o inelutávelavessodeles: maseu não a
realizareijamais; eu não realizo minhacondiçãode mortal.
Do mesmo modoque esse irrealizável,a velhice pode
ser assumidade diversasformas,sua relação com esse outro
irrealizável, a morte, não é estabelecida de antemão. Cada
indivíduo
a escolhe,emfunçãodoconjuntodesuasituação
e de suasopções anteriores. Um homemidosoque se sente
aindamuitojovemficarátão revoltadodiantedaproximidade
da morte quantoficariaumquadragenárioacometidodedo-
ença incurável.Ele não mudou;sua vitalidadee o interesse
que tem pelo mundoestão intactos: e umveredictoexterior
lhe comunicaque suaschancesde vidaestão reduzidasa uma
dezenade anos! Casanova,que não suportavaque o chamas-
sem de velho, apesar de sua tristeza, de sua solidão, de sua
decadência, continuava apaixonadamentecurioso em rela-
ção ao futuro. “Oh, morte! Morte cruel! — escreve ele, aos
70 anos.À morteé ummonstroque expulsado grandeteatro
o espectador atento, antes que uma peça que lhe interessa
infinitamentetermine.Esta simplesrazãodevebastarpara
fazer com que esse monstroseja detestado.”Aos 70 anos,
Wells— antes da guerrade 1940 — comparava-sea umacri-
ança a quemse acaboude darbelos brinquedose que se man-
da dormirem seguida:“Nãotenho a menorvontadede arru-
marmeusbrinquedos.Detesto a idéiade partir.”Mesmoque
setenhaaconsciênciadaprópriaidade,enquantoseestáem-
penhadonumprojeto, detesta-sea morte,que o interrompe-
rá: foi o caso de Renoir, que nunca teria desejado parar de
pintare deprogredir.
Pode acontecer que, com a passagemdosanos,essa re-
pugnânciase atenue.Morale fisicamentedestruído,Swiftes-
creviaa Bolingbroke:“Quandoeu tinhaa suaidade,pensava
comfrequênciana morte; masagora,ao cabo de umadezena
de anos, esse pensamentojamais me deixa e me aterroriza
reduzaomesmotem-
menos.Concluodaíquea Providência
ponossostemorese nossasforças.”Esse pessimistadáprovas

542
de umcuriosootimismo,quandosupõeumprovidencialequi-
líbrio entre nossoestado fisiológicoe nossas ansiedades.É
precisoprocurar uma outra explicaçãopara este fato, à pri-
meiravistaparadoxal:combastante frequência,quantomais
próxima, menos a morte amedronta. Freud supôs* que,
quanto maisse acumulavamos anos, maisa “pulsãode mor-
” sobrepujavao desejo de viver.Mas a maioriados psica-
nalistas abandonouesta idéia; Freud não explica a relação
entre a idadee a pulsãoda morte. Por que motivo,então, a
indiferençaà morteaumentacomo tempo?
Na verdade,a idéiade que a morte se aproximaé errô-
nea. Ela não está nempróxima,nemdistante:ela não é. Uma
fatalidadeexterior pesa sobre o viventeem qualqueridade;
em nenhumlugarestá fixadoo momentoemquese realizará.
O velho sabe que se extinguirá“logo”: a fatalidadeestá tão
presente aos 70 anos quanto aos 80, e a palavra“logo”per-
manecetão vagaaos80 anos,quantoaos70. Nãoé justo falar
de uma relação com a morte: o fato é que o velho — como
todo homem— só tem relação com a vida. O que está em
questão é suavontadede sobreviver.Há umaexpressãoque
dizbem o que quer dizer:acabarcoma vida.Desejar ou acei-
desejarouaceitaracabar
tara mortesignificapositivamente:
com a vida.É normalque esta últimapareça cadavez menos
suportável,à medidaque se agravaa decadênciasenil.
Paraconvencer-sedisso,bastalembrarosmalese asmu-
tilações que essa decadênciaacarreta. Em primeirolugar,a
dor física.Freud reconheceu-o: foi ela, e não umapulsãode
morte que o fez desejar desaparecer35.É o desejo de todos
que são torturadospor seu corpo. Por outro lado,viver de-

34 Em 1920, quandoescreveu: Alémdoprincípiodoprazer.Ele pensava,


então, que todo ser vivotem uma tendênciafundamentala retornar
ao estadoinorgânico.Repetiuessaafirmaçãoaté o fimde suavida.No
entanto, algumas de suas cartas mostram que, por vezes, duvidava
dessatese.

35 Cf. pp. 641 ss.

543
mais é sobreviveràqueles que amamos.Fundamentalmente
egoístas,ou presosa seusprojetos, algunsvelhos,como Tols-
toi, cultivam a insensibilidade, e se resignam com facilidade
a esseslutos.Paraoutros,maisempenhadosemsuasafeições,
essasperdastiramo desejo de permanecerno mundo.Victor
Hugo,depoisda mortede Juliette, começoua desejara mor-
te. Verdi não esperavaoutra coisa, depois de ter perdidoa
mulher.
Quandoo mundose transformaou se revelade ummo-
do que torna intolerável a permanência nele, o homemjo-
vem conserva a esperança de uma mudança;isso não acon-
tece com o velho, a quemnão resta maisnada a não ser de-
sejar a morte, como fizeramAnatole France, Wells,Gandhi.
Ou então, é suaprópriasituaçãoque o homemidosonão po-
de maisesperar superar,e que lhe parece penosa. Goncourt
escreve, em seuJournal, em 3 de abril de 1894: “Nomeu es-
tado de sofrimento contínuo, nesta sucessão de crises que
aparecem todas as semanas, e com o insucesso de minhas
últimastentativasliterárias,e comasesmagadorasretomadas
de sucessode pessoasem que não reconheço nenhumtalen-
to, e ainda, meu Deus, com uma certa incerteza sobre a pro-
fundidade de minhas amizades mais íntimas, a morte me
parece menosnegra do que há algunsanos.”
Sobretudo,mesmoque nenhuminfortúnioparticulara-
tinja o velho, ele geralmente perde suas razões de viverou
descobrea ausênciadelas.Se a mortenospreocupa,é porque
ela é o avessoinelutávelde nossosprojetos: quandocessamos
de agir,deempreender,nãoresta nadaqueela possaquebrar.
Paraexplicara resignaçãodecertos velhosà morte,invoca-se
o desgaste,a fadiga;masse bastasseao homemvegetar,ele
poderiacontentar-se comessavidamorosa.Só que, paraele,
existiré transcender-se.A decadênciabiológicaacarretaa
impossibilidadede se superar, de se apaixonar,ela mata os
projetos, e é nesta perspectivaque torna a morte aceitável.
Mesmo que o homemidoso conserve forças e saúde,e
mesmoque a sociedadenão o tenha arrancadobrutalmente

544
de suas atividades,seus desejos e projetos definham,como
vimos,por causa de sua finitude. O programaestabelecido
em nossainfânciasó nos permitefazer, conhecer e amarum
númerolimitadodecoisas;quandoesteestácompleto,quan-
do estamosno fimda linha,a morte é indiferente,ou mesmo
misericordiosa:ela noslivradesseenfadoque os antigoscha-
mavama satietas vitae.Gide suportavamalque o fim de sua
vidaestivessecondenadoàs repetições, a umconstante repi-
sar.Sabiaquenãotinhamaisnadaa dizer,nema descobrir.
Escreve, em 7 de setembro de 1946: “Creio ser sincero ao
dizerque a morte não maisme amedrontamuito.”E, aos 80
anos,emAinsisoit-il:“Minhainapetênciafísicae intelectual
ficou tão grande,que não sei maismuitobem o que me man-
tém vivo,a não ser o hábitode viver.Inteiramenteresignado
a morrer.” Churchill dizia, aos 80 anos: “Para mim dá no mes-
mo morrer. Já vi tudo o que haviapara ver.” Tomadaao pé
da letra, a frase é estúpida:o mundode amanhãele não viu.
Entende-semelhorCasanova,quandoestese queixade ser
expulsoantes do fimdo espetáculo.Mas naverdade,é Chur-
chillquem tem razão: esse mundonovoseria percebidocom
seuvelhoolhar;ele o apreenderiadentrodasperspectivas que
semprehaviamsidoas suas;só compreenderiao que pudesse
: associarao já visto— o resto lhe teria escapado.
É poruma razãoumtantodiferenteque aidéiadamorte
me desola menosque outrora: essa razão é estar ausente do
mundo,e era a essaausênciaqueeu nãopodiaresignar-me.
Mastantasausênciasjá provocaramvaziosemmim!Meupas-
sadoestá ausente,ausentesos amigosmortos,os amigosper-
didos, e tantos lugares na terra aonde não voltarei nunca
mais.Quandoa ausênciativertragadotudo,issonão fará
maismuitadiferença.
Hávelhosquesãodevoradospelomedodemorrer.Ci-
taram-me um homem de 91 anos, rico, ativo, célebre, casado
com uma mulhermuitojovem, que toda noite, ao se deitar,
é vítimade umaangústiaatroz.Expressaessaangústiaper-
guntando-secomo ficará sua mulher depois de sua morte.

545
Bem sabe que, jovem, bela, rica, provavelmente irá chorar
porele,massabetambémqueo futurodelaestáassegurado.
E sua própriasituaçãoque o amedronta.Entretanto, os psi-
quiatras afirmamque a morte só obceca o velho quandojá
no passadoele tinhaummedomórbidodela.Os fatosclínicos
demonstram que, assim como as outras neuroses, a obsessão
damortetemsuasraízesnainfânciae na adolescência*. Está
frequentementeligadaa idéiasde culpa:se o sujeito é crente,
imaginacom terror que vai ser precipitadono inferno.
Segundoos testemunhosque colhi,o medoda morte
não é, geralmente, o inverso de um ardente amor à vida: ao
contrário.“Amorteera a minhavertigemporqueeu nãoama-
va a vida”, escreve Sartre, falando de sua infância. Do mes-
mo modoque os pais,os espososansiososnão são os que a-
mammais,mas aquelesque sentem umacarência no âmago
de seus sentimentos; as pessoasque não se sentem bem na
própriapele são as que maisassiduamenteruminama morte.
E não se deve pensar que aquelesque — como Lamartine
— chamam-nadesesperadamente,desejam-narealmente:ao
falarincessantementenela, demonstramapenasque a morte
os obceca.
Vejo uma confirmaçãode que a ansiedadedos velhos
diante da morte é excepcionalna maneirapela qualeles ne-
gligenciamsua saúde.Jogam, como vimos,com o equívoco
entre velhicee doença: masesse equívoconão seria mantido
se ohomemidosoestivesseconstantemente
atormentado
pe-
lo medode morrer.
Pesquisadoresinterrogaramos pensionistasde umare-
sidênciada C.N.R.O.: pensavameles na morte? E como? Eis
suas respostas: “um dia, vai ter que acontecer”;, “
“pensamos,

36 Segundo o psicanalistaamericano Martin Grotjhan, as angústiasde


castraçãodosvelhosdevemser analisadasantesdaangústiada morte:
muitasvezesesta últimadissimulaumaangústiade castraçãoque res-
suscitaa da infância,e de maneiratão agudaque suscitao desejo de
morrer.

546
9, “
pensamosfrequentemente”; “quandonão consigomaisres-
pirar, seria uma libertação”; “quando tenho idéias negras,
penso”; “maisvale morrer, mas não sofrer”; “vivemospara
morrer”;“há pessoasque pensam.Mas a mim,issonão cho-
ca”;“eunãopensonisso.Estamosaquiparadeixarlugarpara
os outros”;“já compreiumtúmuloparamim”;“sabemosque
temosquemorrer”;“pensofrequentemente.Seria umaliber-
tação paramim”;“nãopenso.Vemossempregente morrer”;
“é a vida.A morte é a continuaçãoda vida.Pensamosnisso
quandoestamos deprimidos”;“não é preciso saber quando
se vai morrer”;“umdiavai ter que acontecer”; “pensonisso
desdeque vimpara cá. Na cidade,pensavamenos.Não gos-
tariade mearrastar,desofrer”;“pensomesmomuitasvezes”
“ricos ou pobres, todos chegamoslá. É a vidaque é assim";
“fazpena. Há pessoasque morreramna Casa,que erammais
jovensdoque eu”; “vamoster que chegarlá”.Em que medida
essasrespostassão sinceras?O sujeito podefingirporpudor,
para esconderde si mesmosua ansiedade,para fazer boa fi-
gura.Mas a convergênciade todasasrespostasé significativa.
A morte parece preferívelao sofrimento.É evocadaquando
se está deprimido:não parece que seja ela que provoquea
depressão,masantesque se revele em seu ameaçadorabsur-
do, quandoo presente parece sinistro.Ela não é um objeto
de preocupação.Temospreocupaçõesa propósitode reali-
dades bem definidas, e que nos escapam: a saúde, o dinheiro,
o futuropróximo.A morte é de umaoutra espécie. Pelo fato
de ser umirrealizável,aparece como umaperspectivavagae
indefinida.Sua fatalidadeé apreendidade fora. “Ricosou
pobres,todoschegamoslá.” Pensamosna morte,sem conse-
guirpensá-la.
“Não é preciso saber quandose vai morrer”: esta res-
posta é significativa.Se o prazo estivessefixadoe iminente,
ao invésde se perdernummomentovagoe longínquo,a ati-
tude do velho provavelmentenão seria a mesma.Eurípides
observa,emAlceste,que os velhos se queixamde sua condi-
ção e pretendemdesejar a morte: mas,encostadosnaparede,
OpaideAdmetorecusa-seferozmentea descer
esquivam-se.

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aos Infernos em seu lugar.Tolstoi,quandovelho, diziaque
lhe era indiferente morrer, mas Sonia aborrecia-se com os
cuidadosqueele tomavacoma saúde.“Todososvelhosdão
maisvalor à vidado que as crianças,e saem dela com maior
má vontade”,escreve Rousseaunas Rêveries.“É que, tendo
sidofeitas todasasobrasparaessamesmavida,eles veem,no
fim,que se esforçaramemvão.”Há malícianessaobservação.
Rousseau pensavaque é preciso gozaro presente, e não sa-
crificá-lo a umfuturoque o nadairá tragar.Naverdade,não
é o despeitode ter trabalhadoemvãoque fazdetestara mor-
te. E essa recusa não é universal.Mas o fato é que um bom
númerodevelhosapegam-seàvida,mesmodepoisde ter per-
dido todas as razões de viver; descrevi, em Uma noite muito
suave,a maneirapela qualminhamãe, aos 78 anos, agarrou-
se à vida até o últimosuspiro.É então a condição biológica
do sujeito — a que chamamosvagamentesua vitalidade-
que determinasuarevoltaou seu consentimento.Tãocrente
quanto minha avó, enquanto esta achou repousante deixar
este mundo, minha mãe teve da morte um medo animal. Mui-
tas pessoas idosasconhecem o medo, e ter medo é realizar
no própriocorpo a recusade morrer.O que frequentemente
amenizaa morte dosvelhosé que a doença acaboude esgo-
tá-los,e tambémqueelesnãose dãocontadoquelhesestá
acontecendo.
Entretanto, há tambémmorteslúcidase calmas:quando
físicae moralmentetododesejo deviverextinguiu-se,o velho
prefere umsonoeterno à luta,ou ao enfadocotidiano.A pro-
va de que, na velhice, a morte não aparece como o pior dos
malesé o númerode velhosque resolvem“acabarcom a vi-
da”.Nas condiçõesque hoje a sociedadeproporcionaà mai-
oria deles, sobreviveré uma provaçãovã, e se compreende
que muitosprefiramabreviara vida.

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