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Contos e

Mitos em
Arteterapia

Celso Falaschi
Elisabete Cristina Carnio Beltrame
Fabíola Gaspar
Marcieli Cristine do Amaral
Tabata Oliveira da Silva
(Organizadores)
Contos e
Mitos em
Arteterapia
Rua Helena Lapreza, 71 – Pq. Carvalho de Moura – Campinas (SP)
13051-495 - Fone: (19) 3368-1058
www.evidenciabr.com.br
evidencia@evidenciabr.com.br

Edição: Celso Falaschi


Foto da capa: Denise Zinetti Bitencourt
Projeto gráfico: Evidência BR
Diagramação: Flávio Morin

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Tuxped Serviços Editoriais - Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

F177c Falaschi, Celso (org.) et al.

Contos e Mitos em Arteterapia / Organizadores: Celso Falaschi, Elisabete


Cristina Carnio Beltrame, Fabíola Gaspar, Marcieli Cristine do Amaral Santos
e Tabata Oliveira da Silva. -- 1. ed. – Campinas, SP : Evidência.BR, 2022.

232 p.; fotografias; 16 x 23 cm.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-80929-12-2

1. Arquétipos. 2. Arteterapia. 3. Mitos. 4. Pandemia. 5. Simbologia. I.


Título. II. Assunto. III. Organizadores.
CDD 150:615.8:B869.93
CDU 159:7.0:82-34

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO


1. Psicologia: Terapias específicas (música, dança, arte); Arteterapia; Conto
2. Psicologia; Artes em geral.
Celso Falaschi
Elisabete Cristina Carnio Beltrame
Fabíola Gaspar
Marcieli Cristine do Amaral Santos
Tabata Oliveira da Silva
(Organizadores)

Contos e
Mitos em
Arteterapia

1a edição
Campinas (SP)
2022
O corpo não mente, e a mente presente
Denise Zinetti Bitencourt

O corpo guarda memórias.


O corpo guarda sensações.

As sensações são pontes


E passagens para as lembranças.

O corpo fala.
O corpo é canal de transição
Entre o mundo material
E a transcendência.

O corpo é como chave


Para o despertar da consciência.
Há coisas na gente
Que de tão esquecidas
Guardam poeiras.
Elas estão lá no calabouço.
Amordaçadas.
Ficam ali o tempo todo
Passando desapercebidas,
Quase num tom de invisibilidade.

Às vezes a vida dá umas chacoalhadas


Para ver se a poeira cai.
Mas nos escondemos debaixo da cama,
Com medo de sair.

Mas quando o corpo fala por meio da arte


isso não é possível.
Não dá prá se esconder.
NÃO DÁ!

Se não sai de uma maneira,


Sai de outra.

Sabiamente Mia Couto nos recorda:


“A viagem não começa quando se percorrem as distâncias,
Mas quando se atravessam as nossas fronteiras”.

Ou, como diz a filosofia tibetana,


“Antes que a alma possa ouvir a imagem
o homem tem que se tornar tão surdo aos rugidos como aos
sussurros, tanto aos bramidos dos elefantes furiosos quanto ao
argênteo zumbir do pirilampo de ouro”.

Quando a Arteterapia entra em ação,


Não tem como fugir.
O inconsciente se manifesta.
E sacode toda aquela poeira guardada debaixo da cama.
Tudo ali, ou quase tudo,
Então se revela e se faz presente.
A mente não mente mais.
O corpo se faz presente.
O casulo se abre e a borboleta voa.
Não há mais limites.
Está aberto o caminho da individuação!
Apresentação
É com imenso prazer, satisfação e orgulho que apresento este
livro - “Contos e Mitos em Arteterapia”.
Esta obra nasce de um sonho partilhado inicialmente por Fabío-
la Maria Gaspar, coordenadora do curso de Pós-graduação em Ar-
teterapia - NAPE/FAVI - e o professor Celso Falaschi, juntamente
com a equipe de professores, que sempre acreditaram nos bene-
fícios e transformações que a Arteterapia propicia às pessoas nos
desafios e jornadas da vida.
Este sonho concretiza-se também pela dedicação dos alunos
das turmas T4 de São Paulo e T16 de São José dos Campos, que
compilaram suas experiências nos atendimentos arteterapêuticos
e transformaram o trabalho de conclusão de curso nesta rica obra.
Os trabalhos tiveram como eixo norteador a mitologia. Para
Mircea Eliade [1], em seu livro Mito e Realidade, “O mito é uma rea-
lidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e
interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares”
(1989, p.11).
Felicito a todos, por aceitarem o desafio de percorrerem o ca-
minho da psique humana.
Ao ler e enveredar pelos “Contos e Mitos em Arteterapia”, o
leitor constatará a importância e a incontestável ponderação e
transformação ocorridas nas pessoas que vivenciaram a experiên-
cia dos grupos arteterapêuticos conduzidas pelos alunos do NAPE
no período pandêmico de 2020-2022.

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As temáticas abordadas com a utilização de mitos e contos re-
fletem no encorajamento para enfrentar os desafios da vida, na ex-
pressividade da afetividade para com os outros, e, principalmente,
no voltar o olhar para si e assim envolver-se com o cuidar-se.
“Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta”
(Jung, 1875-1961).
A representação simbólica identificada nos mitos propicia a leitura
da realidade dos comportamentos humanos. No trabalho artetera-
pêutico, recorrendo à mitologia, aos deuses e deusas, heróis e he-
roínas, favorecemos a reconexão do indivíduo à natureza universal.
Segundo Campbell [2] (1991, p.13) “os mitos são chaves para a
nossa mais profunda força espiritual, a força capaz de nos levar
ao maravilhamento, à iluminação e até ao êxtase”.
Lançando mão também das artes plásticas, temos a possibilida-
de da abertura de canais expressivos para fortalecer a capacidade
e a motivação para o recomeçar.
Assim, reitero meu convite para a leitura do livro “Contos e
Mitos em Arteterapia”.
A leitura o colocará em contato com sentimentos e experiências,
propiciará viajar sem sair do lugar, além de expandir e aprofundar
o conhecimento sobre a Arteterapia e ampliará os horizontes e a
importância da compreensão da vida, de si e do mundo.
Com carinho e gratidão! Boa leitura.

Elisabete Cristina Carnio Beltrame


beteccbeltrame@gmail.com

[1] ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. . São Paulo: Ed. Perspectiva, 1989.

[2] CAMPBELL, Joseph. O poder do mito com Bill Moyers. São Paulo: Palas
Athena, 1991.
Sumário

11
Coautores

13
A escuta que acolhe, valoriza o olhar que percebe
Sônia Regina Rodrigues Oliveira de Novais

35
Arquétipos dos ciclos lunares: o feitiço das mulheres sábias
Ana Teresa Costa Figueiredo (Ana Piu)

59
Expressão artística e sua simbologia na busca do equilíbrio emocional infantil
Manuela Broering Gomes da Mata

77
Resgatando Raízes: entrelaçamentos da mitologia afro-indígena
Ana Carolina Sá Faria / Bárbara de Oliveira Rodrigues / Jéssica Lane S. dos Reis
Brito

99
Heróis e heroínas dos tempos bíblicos: uma visão contemporânea
Caroline de Lima Lopes / Danielle Caroline Malavasi Barbosa / Silvia Rodrigues
Lanes

119
As cores da vida e o desabrochar de Rosa
Adriana Rodrigues de Oliveira Miqueletti / Izabel Cristina Ferreira Gomes /
Wanice Alves Facure Locci
133
Entre estrelas e pedras preciosas: devolvendo às mulheres as rédeas de sua
vida interior
Carlos Alberto Faruk Abu Laila Silva / Iriê Prado de Souza

157
As deusas e os quatro elementos na roda da vida
Simone de Souza Silva / Telma de Carvalho Craide

175
A Jornada Heroica na Parentalidade
Cristina Fernandes das Neves / Denise Regina de Almeida / Isabela de Souza
Rangel do Prado / Jaques Junqueira de Souza

189
Transformando e revelando emoções com a arte
Elaine Oliveira Santana Maia / Francine Da Silva Marcondes / Gisely Gonçalves
Martins / Maria Cristina De Souza Freitas / Rosiane Aparecida Rangel De Oliveira
/ Sandra Aparecida Dos Santos Kecek

203
O mito de Atlas e a sobrecarga feminina: uma jornada criativa de autocuidado
Andressa Silvestre Machado / Fernanda Netto do Nascimento / Juliana Claro
França / Lenise Dos Santos Gonçalves / Nayara Flôr Marques Penteado / Rebeca
Batista de Melo Martineli

219
Do vazio ao acolhimento em tempos de pandemia
Wilse Ricardo Francisco / Ariane Hecht

10 | Contos e Mitos em Arteterapia


Contos e Mitos em Arteterapia

São coautores deste livro:

Adriana Rodrigues de Oliveira Miqueletti

Ana Carolina Sá Faria

Ana Teresa Costa Figueiredo (Ana Piu)

Andressa Silvestre Machado

Ariane Hecht

Bárbara de Oliveira Rodrigues

Carlos Alberto Faruk Abu Laila Silva

Caroline de Lima Lopes

Cristina Fernandes das Neves

Danielle Caroline Malavasi Barbosa


Denise Regina de Almeida

Denise Zinetti Bitencourt

Elaine Oliveira Santana Maia

Fernanda Netto do Nascimento

| 11
Francine da Silva Marcondes

Gisely Gonçalves Martins

Iriê Prado de Souza

Isabela de Souza Rangel do Prado

Izabel Cristina Ferreira Gomes

Jaques Junqueira de Souza

Jéssica Lane S. dos Reis Brito

Juliana Claro França

Lenise dos Santos Gonçalves

Manuela Broering Gomes da Mata

Maria Cristina de Souza Freitas

Nayara Flôr Marques Penteado

Rebecca Batista de Melo Martineli

Rosiane Aparecida Rangel de Oliveira

Sandra Aparecida dos Santos Kecek

Silvia Rodrigues Lanes

Simone de Souza Silva


Sônia Regina Rodrigues Oliveira de Novais

Telma de Carvalho Craide

Wanice Alves Facure Locci

Wilse Ricardo Francisco

12 | Contos e Mitos em Arteterapia


A escuta que acolhe,
valoriza o olhar que percebe

Sônia Regina Rodrigues Oliveira de Novais[1]

[1] madres3m@gmail.com

Preparando o cenário

A qui estou, depois dos meus 57 anos vividos, reviven-


do as cenas de um passado ainda presente; momen-
tos de uma infância rarefeita, mas de muitas cenas recuperadas.
Aprendi a escutar o que no fundo lateja, e olhar com os olhos
que a alma deseja. Assim, me descobri, na maturidade, rainha
sonhadora por um atrevimento sufocado. Mãe de 3M’s [2], biblio-
terapeuta e professora aposentada da rede pública de ensino do
Estado de São Paulo.

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Após um longo período de dedicação exclusiva ao ensino, me
fortaleço na mudança de ciclo, buscando uma formação há muita
sonhada, voltada também para o cuidado do outro, a Arteterapia,
em um curso de pós-graduação lato sensu, com estágio super-
visionado e um trabalho de conclusão de curso na forma de um
ensaio pessoal.
Para tornar a leitura mais aconchegante e cheia de ternura, op-
tei em utilizar em toda a extensão dessa minha produção escrita o
emprego da ênclise, porque acredito que essa forma, além de ser
mais poética, facilita a compreensão e o envolvimento do público
leitor. Então, como borboleta em arrebento de casulo, me vejo
refazendo o caminho na transição formativa. Sigo então essa ca-
minhada que já de algum tempo tem me trazido bem-estar. Assim
como as estações do ano, que nos renovam os sentidos, os quatro
elementos que transmutam sentimentos e as fases da lua, que nos
permitem o ciclo do viver, o percurso arteterapêutico agora me é
jornada de experiências sensoriais, que utiliza da simplicidade do
ver ao aprofundamento do olhar; do aflorar do sentir, à condição
do perceber, do acolher e do autocuidar.
Desde pequena, num sonho de menina, desejava como nas
brincadeiras, me tornar professora. Isso me acompanhou pela
vida e, com custo, fui construindo um caminho, no qual não só
encontrei pedras, mas também livros, tecidos, agulhas e linhas.
Juntei tudo e fiz um grande bordado de enredos, entremeado das
linhas da escrita às linhas do bordado, porque além de me dedicar
ao magistério, na maturidade resgatei uma herança guardada no

[2] 3M’s Marco, Matheus e Milena

14 | Contos e Mitos em Arteterapia


fundo do baú do esquecimento, a arte da costura, um dos meus
primeiros contatos com a Arteterapia.
Por anos vi e senti; a partir das marcas grafadas na lousa, a du-
reza da cal na mão.
Foram muitos momentos, muitas pessoas, muitas cenas; entre
conflitos internos e externos para entender uma lição que não só
estava para ser ensinada, mas também para ser aprendida.
No ano de 2016, readaptada como professora de sala de leitura
da escola, onde por 22 anos tive a oportunidade de expandir o meu
campo de pesquisa na arte literária, conheci a Biblioterapia[3] com
Cristiana Seixas, que me apresentou o poder da literatura no cuida-
do das emoções. Como diz a própria Cristiana (2014, p.43) “obser-
vo que, quando um texto realmente traduz o que a pessoa sente,
ela cala e o acolhe como um bálsamo ou um raio na consciência”.
Assim como também nos relata Ribeiro (2004, p.12),
“Contamos histórias para o ouvinte tocar, abraçar, e reconhecer a
plenitude de sua essência, para o ouvinte organizar a sua casa inter-
na, os seus objetos e, nela mesma, na sua casa interna, desvendar
cômodos, janelas, quadros, sótãos, porões ou caixinhas que sempre
existiram e nunca foram notadas”.

As histórias tocam aqueles que ouvem ou lêem com profundi-


dade, explorando o self, planificando o auto-olhar mais profundo,
principalmente quando o ouvinte se identifica com a história. Eu
estava nesse processo de vida, e assim, também fui absorvendo e
me organizando internamente.

[3] Biblioterapia tratamento terapêutico por meio de livros


https://mundobibliotecario.com.br/

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Em meados do caminho, passei a desenvolver encontros e ofi-
cinas de Biblioterapia com o grupo docente e discente no espaço
que me era permitido. Percebi o quanto a literatura cuidava, aco-
lhia e em alguns momentos transformava sentimentos amargura-
dos em compreensíveis. Era notório o quanto aqueles encontros
traziam benefícios a muitos colegas do convívio de trabalho; po-
rém, sentia que algo faltava para complementar esse processo de
cuidados. Passei a buscar em estudos respostas para essa falta e
encontrei na Arteterapia o que buscava.
Foi então que, no segundo semestre de 2019, iniciei a forma-
ção em Arteterapia do NAPE, na cidade de São Paulo. Um estudo
embasado pela teoria junguiana e me dei conta do que nos fala
Philippini (2013, p.14), que “em Arteterapia o trajeto é marcado
por símbolos particulares que assinalam, informam e definem so-
bre a jornada de individuação de cada um”, e, sendo assim, uma
vez que caminhando juntos, cliente e arteterapeuta, buscamos
a essência do melhor viver, ancorados num processo de trans-
formação e transmutação, na busca da condição de bem-estar
individual e coletivo.
Como numa grande arpillera [4], o bordado de enredos que pro-
curei idealizar no Programa de Estágio, trouxe no desenho fiado
muitas cenas reais, cenas essas que também estiveram presentes
em minha trajetória de vida. No momento, me dedico em possi-
bilitar, através desse caminho que a Arteterapia me conduz, ser
ponte entre o que o ver e o olhar, levando ao outro um movimen-
to de percepção e autoacolhimento.

[4] Arpillera é uma técnica têxtil chilena que possui raízes numa antiga
tradição popular iniciada por um grupo de bordadeiras no Chile.

16 | Contos e Mitos em Arteterapia


Uma cortina se abre
No avançar do curso, chegado o momento de realizar o pro-
cesso de estágio, passei a organizar o tempo em sincronia com
as demais demandas. Como já havia em mente o tema, “Cuida-
dos Arteterapêuticos na Prevenção do Adoecimento Silencioso do
Profissional da Educação”, então, passei à confecção dos convites
ao público participante: professores da rede de ensino público e
privado, os quais estavam em situação de atividade em sala de
aula; readaptação; aposentado ou afastado por licença de longa
duração. Depois de prontos, os convites foram para postagem em
mídias diversas.
Alguns professores interessados entraram em contato, e nesse
percurso, percebi o acanhamento e o desconhecimento deles da
Arteterapia como ferramenta terapêutica; alguns acreditavam ser
curso para ensinar a trabalhar com os materiais de arte. Foi então
que me dei mais conta do quanto seria importante fazer conheci-
da essa ferramenta terapêutica nesse segmento profissional.
Em abril de 2021 já estava com o cronograma de trabalho
pronto e com dois grupos de professores. Em número tímido,
porém de uma vontade certa de estar presente. Um grupo com
três professores da ativa, em sala de aula regular, escola pública,
idades entre 30 e 45 anos. Outro grupo com duas professoras,
uma readaptada há mais de 3 anos e a outra em situação de li-
cença saúde de mais de 3 anos, pleiteando a readaptação junto
à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Assim, os en-
contros semanais com cada grupo foram realizados de forma re-
mota, com duração de duas horas, no período da noite, de abril
à setembro. Foram momentos muito especiais, que hoje fico a
rememorar. Depois do fechamento do ciclo, retomamos quando
possível para o reavivar de olhares.

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Um cenário composto por bordados de enredo
O processo de estágio teve início no dia 27 de abril, com a
turma I e dia 29 de abril com a turma II. Para a realização das
atividades expressivas, procurei organizar os materiais que já ha-
via idealizado, mas como me encontrava com muitas demandas,
demorei dois encontros para preparar todo o material para entre-
gar a cada cliente. Busquei, nos meus atrevimentos de costureira,
confeccionar uma sacola artesanal, como forma de recepcionar
as participantes do estágio composta dos materiais de arte que
iríamos utilizar durante o processo. Dos materiais enviados, listo
alguns: lãs, massinhas, retalhos, cola de tecido, pincel e guache
entre outros. Das cinco participantes do estágio, quatro moram
não muito distante de onde resido e com os devidos cuidados do
protocolo de segurança da saúde, levei pessoalmente a sacola a
cada professora, antes, me certificando com cada uma a possibi-
lidade de receber os materiais entregues por mim em domicílio.
A quarta participante, a professora que reside mais distante, o
material seguiu via sedex.
Durante toda a jornada arteterapêutica procurei dar voz e
liberdade de expressão às clientes, para que assim pudessem,
além do produto expressivo, também trabalhar a oralidade e a
escrita criativa.
Não posso me furtar em dizer que muito do que planejei não
deu certo. A começar pelo uso das mídias, no momento de com-
partilhar vídeos, músicas e imagens. Foi muito denso e tenso. Me
frustrei por vezes seguidas, até encontros inteiros foram atropela-
dos. Demorei um pouco para acertar o passo, mas fui encontran-
do o caminho. Hoje já posso dizer que consigo lidar um pouco
mais com a tecnologia, de forma básica, não somos grandes ami-
gas, mas procuramos nos entender sem mais sofrimento.

18 | Contos e Mitos em Arteterapia


Outra revelação que gostaria de fazer é que tenho apreço pelas
coisas tangíveis. Sinto que a arte é pelo sentir, pelo que a luz do
olhar nos revela, e isso só acontece pelo olho no olho, pelo ca-
lor exalado no teor das emoções. Sou assim, das antigas. Fiquei
muito triste quando ouvi de alguém, que para estar nos dias de
hoje como profissional de qualquer área, teria que dominar as
tecnologias, por isso acho que vivo a querer desistir dessas coisas.
Mas já fui muito moldada por opiniões, hoje não aceito menos do
que pensar que se quero caminhar, tenho sapatos que me cabem
e não preciso de scarpins.
Falando das músicas e vídeos que depois de alguns tropeços con-
segui utilizar; quando fui em busca observei a riqueza de sons e me-
lodias. Utilizei músicas clássicas, instrumentais e popular brasileira
(MPB) em muitos momentos. Os relaxamentos, aprendi a realizar de
forma guiada e observei que trouxe benefícios diversos às clientes,
pois houve relatos de que era um dos momentos mais aguardados,
principalmente quando os dias eram mais causticantes.
No caso dos vídeos, procurei utilizar os curtas metragens, com
temáticas sensibilizadoras e reflexivas, algumas sem emissão da pa-
lavra/texto, com o objetivo de trabalhar cenas do cotidiano e possi-
bilitar o olhar apurado do si e de seu entorno. Utilizei também como
recurso o texto imagético e o jogo de ilustrações diversas. Nessa
proposta, o objetivo foi instigar a criatividade do cenário narrativo
na oralidade ou na escrita. Durante os cinco meses, alguns encontros
que constavam na programação não ocorreram, devido ao adoeci-
mento de meus familiares, meu esposo e meus filhos adolescentes
contraíram o vírus da Covid, e, também situações diversas de mais de
uma cliente num único encontro, porém essas situações não afeta-
ram o bom andamento do programa de estágio, pois pôde ser con-
cluído conforme as normas da instituição referente a carga horária.

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Um ponto importante a ser ressaltado é que todo o processo de
estágio foi ancorado pela Biblioterapia de fruição, pois, segundo
testemunha Seixas (2014, p. 76) “através da leitura, desenvol-
ve-se a capacidade de brincar com a própria cabeça, desviar do
sofrimento e criar outra realidade… Brincar é criar. E criar e ter
autonomia sobre si mesmo”. Desde que tive contato com a Biblio-
terapia por meio da própria Seixas, passei a utilizar os benefícios
das orientações dela tanto no cuidado pessoal quanto no coletivo.
Os gêneros literários utilizados como fio sensibilizador foram
diversos: contos como “Diante da Lei”, de Kafka”, crônicas como
“Tarde de Sábado”, de Cecília Meireles, poemas como “autorre-
trato falado”, de Manoel de Barros, e histórias da literatura infan-
to juvenil, como “A Cidade dos Carregadores de Pedras”, de San-
dra Branco, “Vazio”, de Anna Llenas, e “Um presente diferente”,
de Marta Azcona. Além desses textos, muitos outros estiveram
presentes em nossos encontros e trouxeram uma gama de cenas
e personagens para nos sensibilizar. Em algumas passagens desta
narrativa as protagonistas serão identificadas por codinomes por
mim atribuídos a elas ao longo dos atendimentos, como forma de
preservá-las de qualquer exposição pública.
Em um dos trabalhos, utilizando os benefícios da leitura cuida-
dora, realizamos um movimento de mergulho nas fortalecedoras
águas do mar de “Fátima, a Fiandeira”, por Regina Machado.
No retorno de tantos mergulhos encorajadores, cada participante
construiu sua própria tenda, trançando cordas em fortes mastros.
Com fios de lã e varetas de bambu, foram chamadas à tessitu-
ra da mandala “olho de Deus” (Figura 1), que tem a função de
organizar os pensamentos e traz, em sua gênese, a simbologia
da projeção dos desejos de felicidade para quem as produz os a
quem são dedicadas.

20 | Contos e Mitos em Arteterapia


O conto foi utilizado como fio sensibilizador e foi ferramenta
de grande valia na observação quanto à energia psíquica de cada
participante. Para tanto, voltemos o olhar para a própria prota-
gonista da história. Fátima vai agregando em sua trajetória mui-
tos conhecimentos, principalmente pelas dores e perdas vividas,
porém sempre mantendo a firmeza em seu propósito de vida,
valorizando os aprendizados em cada dificuldade. Fátima valoriza
o presente vivido e o que ele tem a oferecer na construção do
conhecimento e no seu processo de individuação.

Figura 1 - Mandala Tenda tecida por Rosa Carmin

No material simbólico de Rosa Carmin, está a firmeza e a deli-


cadeza de uma tenda elaborada a partir da força da passividade,
porém com o toque sutil da delicadeza. Focada nesse caminhar
“biblioarteterapêutico” e o leque de possibilidades que a litera-

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tura nos oferta, fui em busca de focos temáticos que pudessem
trazer esse fio de luz para cada uma das professoras participantes,
agora já mais seguras na entrega ao fazer artístico e suas mobili-
zações simbólicas na caminhada rumo ao autoconhecimento.
Cada momento de encontro desse programa de estágio era tra-
balhado com uma conversa inicial para pontuar informalmente
o nosso processo, um relaxamento que trouxesse apaziguamen-
to ao coração e à mente, quase sempre com músicas e o mo-
mento biblioterapêutico, com uma história como fio condutor e
como ponte entre o ver e o olhar; e para finalizar, o produto arte
mobilizador de tudo que foi vivenciado no encontro. Em muitos
momentos a escrita criativa esteve também presente para fortale-
cer o movimento de externalização, pois, conforme Seixas (2014)
e Abreu (2006, escrever significa mexer com funduras. E ainda,
para Mosé (2006, p.19), “Quem escreve escava o que o silêncio
palavra”. A palavra grafada nos momentos de grande força emo-
cional e quando permitida pelo indivíduo em processo terapêutico
proporciona alívio do que muitas vezes a palavra falada não é
permitida. Um exemplo desse fato foi observado no produto arte
da participante Flor de Liz, que demonstrou certa delicadeza no
fluir da palavra (Figura 2), se abstendo muitas vezes da expressão
sonora e se permitindo falar por meio da escrita.
Os primeiros encontros, realizados entre os meses de abril e
maio de 2021, em período de nova onda da pandemia do corona-
vírus, foram com foco no movimento do “Ver”, na visão panorâ-
mica do estado em que as coisas se apresentavam para cada par-
ticipante do estágio. A cada encontro sempre era proposta uma
autorreflexão acerca das questões e situações vividas. Para o foco
do movimento olhar, a perspectiva de trabalho ficou agendado
entre os meses de maio e junho.

22 | Contos e Mitos em Arteterapia


Os meses de agosto e setembro idealizei trabalhar com foco nas
percepções do sentir, perceber e autocuidar.

Figura 2 - Desenho com material de livre escolha e escrita criativa

É de grande valia pontuar que a abordagem dos movimen-


tos Ver, Olhar, Perceber e Autocuidar estiveram presentes como
prognóstico de um processo terapêutico e que o momento de
despertar de cada cliente participante foi respeitado em sua es-
sência. Como bem atesta Phillipini (2013, p. 14) “em Arteterapia
o trajeto é marcado por símbolos particulares que assinalam, in-
formam e definem os estágios da jornada de individuação de cada
um”. Foi o caso da participante Menina Açucena, a qual trouxe na
confecção do produto arte e da escrita proposta (Figura 3) pela
dinâmica uma visão expressiva, que foi a finalidade de todo o pro-
cesso, conhecer as distintas formas de expressão que contribuem
para a compreensão do acolhimento de todas as participantes.

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Figura 3 - Tecido colado sobre papel

Veja quanta ternura e leveza há no produto arte de Menina Açu-


cena. Quando da atividade reflexiva, apresentou um panorama do
seu processo a partir da dinâmica do “Ver, olhar e perceber”.
Com a liberdade de utilizar os materiais da sacola de Arteterapia,
lançou mão de tecidos colados sobre o papel sulfite A4 e resumiu
seu mergulho na jornada do autoconhecimento proporcionado,
que também ficou evidente na escrita criativa:

“Vejo um recomeço, uma possibilidade de mergulhar nas


profundezas de mim mesma. Sob as fases da lua, ora míngua
e hora expande, dando tempo certo de renovar e começar tudo
novamente (...) Perceber-me menina, mulher e a anciã que tece
os pequenos pedaços de retalhos da minha vida”.

24 | Contos e Mitos em Arteterapia


Menina Açucena, mulher cabocla, traz em sua matriz a ances-
tralidade cravada num peito pulsante. Ama a natureza das coisas
simples e verdadeiras. Contadora de histórias de mão cheia. Can-
ta, dança e exala feminilidade. Trouxe ao grupo de estágio a força
e a leveza em sincronia. Como professora de Geografia, Açucena
vai além do estudo do clima, dos relevos e planícies, pois leva
também ao conhecimento de seus aprendentes o planejamento
dos hábitos e ações do ser humano em relação ao espaço social.
Nesse caminhar de movimentos cíclicos e renovadores, foi pos-
sível observar na produção de cada participante o alvorecer do
possível novo caminhar, uma nova perspectiva de olhar o cami-
nho através de fachos em frestas de luz. Nessa trajetória, Marga-
rida Delicada trouxe também esse olhar, apurado e reflexivo em
sua produção.

Figura 4 – Produção livre de Margarida Delicada

Margarida Delicada é sim essa flor em delicadeza, que está pre-


sente na definição de seu pseudônimo, marca registrada na gen-
tileza e serenidade que conduz suas palavras, apesar de uma vida
de luta cotidiana. Professora em licença de longa duração, por

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conta de problemas de saúde neuro-ortopédicos, aguarda rea-
daptação, e a cada perícia médica o suplício parece não ter fim,
uma vez que o olhar médico não alcança as necessidades de um
cuidado humanizado, e até por conta desse quadro, acredita que
suas dores se acentuam quando tem consultas médicas periciais.
Como observadora desses quadros de transformações do ver ao
olhar apurado, percebo que as participantes, num caminhar um
tanto sôfrego pelas várias situações que a vida lhes impõe, pude-
ram acessar a autopercepção e chegar ao ponto de perceberem
que por meio da Arteterapia podem buscar momentos de alívio e
bem-estar, assim como de autocuidado consciente e, assim, terem
como escolha a possibilidade de ressignificar suas histórias de vida.
Acreditando no poder cuidadoso da Arteterapia, estendi esse
olhar a outros espaços e permiti-me, ainda, a participação em
mais três eventos, os quais foram realizados em ambiente virtual,
com profissionais da Educação, com o objetivo de levar ao conhe-
cimento de mais pessoas os benefícios dessa prática terapêutica,
com o apoio também dos diversos gêneros biblioterapêuticos.

A materialidade na concretização dos sentimentos


Durante todo o processo do estágio as participantes expressa-
vam por meio da oralidade, da escrita criativa e de produção de
atividades artísticas os mais distintos sentimentos que as acome-
tiam no universo escolar e fora dele. Assim, nos encontros que
sucediam, foi possível a realização da observação e percepção
dos mais sublimes sentimentos de medo, alegria, tristeza, decep-
ção, expectativa e outros que merecem toda a atenção para uma
melhor compreensão desse universo emocional tão presente que
permeia a realidade dos educadores.

26 | Contos e Mitos em Arteterapia


Ficou nítido durante nosso percurso que mudanças aconteceram
e provavelmente reverberam ainda no solo particular de cada par-
ticipante. Trago como exemplo a participação da “Delicada Marga-
rida”, que por meio da escrita artística trouxe de uma forma bem
fragilizada da vida dela, o modo de ver o momento presente, assim
como na segunda foto, quatro encontros depois, já é possível notar
a mudança, mesmo que singela do auto-olhar. Vejo assim, na cons-
trução do caminho, uma parceria entre a arteterapeuta e a cliente,
como um processo de reconhecimento e crescimento mútuos.
Processo que evidencia por meio da antítese “incerteza – espe-
rança” a confiança da participante “Delicada Margarida” em se
expressar de forma espontânea e delicada, como na atividade de
escrita expressiva (Figura 5), na qual é possível perceber o delica-
do estado emocional em que ela está no momento da confecção
artística, em que expressa por meio do círculo colorido a situação
das constantes licenças médicas, mas com a sensação de falta de
respostas, necessitando assim, de acolhimento e atenção social.
Já na Figura 6 ela expressa sentimentos de esperança e espiritua-
lidade por meio dos fenômenos naturais: o Sol, flores e plantas,
por estar convicta de que a vida poderá ser melhor, quando se
refere, no final, à “obra de Deus”.

Figura 5- O mundo real de Delicada Margarida

| 27
Figura 6 – Imagem ressignificada

Arrematando os fios da conversa


Não me demorando mais por aqui, apesar de querer muito
mais grafar, todos os momentos e movimentos que me encheram
de contentamento em realizar o Estágio de Conclusão do Curso
de Pós em Arteterapia, arremato nossa conversa com olhares e
percepção aguçada para as próximas jornadas, que não tardam
a acontecer.
Planejo uma trajetória como arteterapeuta, sem pretensões de
um público em questão, mas um deles sempre esteve em meus pla-
nos, trabalhar com o professorado. A necessidade de levar esse tra-
balho terapêutico ficou mais evidente com o olhar atento ao pro-
cesso, percebi que nos primeiros encontros as participações eram
bem tímidas e as ações ver/olhar pareciam ter a mesma sinonímia.
Depois de três meses, em torno do décimo encontro, percebi
um olhar mais apurado. Essa expansão do que era visto tornou-se
ampliada para algumas professoras, porém nem todas demons-
travam essa percepção. Senti que o segundo grupo, com a profes-

28 | Contos e Mitos em Arteterapia


sora readaptada e a professora em licença médica, a ampliação do
olhar ficou a ser mais explorado, apesar de uma presença de fala
mais encorajada para algumas questões. O respeito ao momento
de cada participante do processo foi fundamental, no sentido de
proporcionar a cada fruto o seu tempo de maturação.
Creio este ser também o motivo pelo qual busquei a Arteterapia.
Saber que o trabalho com a arte nos atinge no âmago e que de lá
extrai o que nem mesmo cada um é capaz de supor, e assim, nos
tornar brotos fortalecidos em um novo ciclo de renascimentos.
Foi um tanto denso chegar aqui, mas esse olhar cuidadoso de
que falo já foi forma de ver aturvilhada. Contudo, hoje, já me per-
mito racionar e emocionar, aceitar e recusar, colorir e acinzentar.
Descobri que sou possível e que aprendi a querer ser. Assim sou,
como diz a poesia de Pessoa[5].
Olho em torno e vejo mais que eu, mais de mim mesma, muitos
a me sustentar e muitas pessoas luzes, como as professoras parti-
cipantes do estágio, com as quais, de maneira sincrônica, vivemos
muitos sentidos de ser e que foram importantes para minha jorna-
da escritora. E hoje finalizo o que quero de forma indelével e para
que fique registrada nossa trajetória, para cada uma delas escrevi
um poema com apreço. E caracterizei poeticamente essas clientes
com homônimos de belas flores, as quais foram pacientemente
desabrochando e com muito zelo, os sentimentos foram afloran-
do e transcendendo para a alma a paz e a leveza tão necessitada.
Homenageando-as de forma épica, desenhei versos para coroar
nossa jornada e para que sejam lembradas por toda a eternidade.

[5] Fernando Pessoa - poema “Sim, sou eu mesmo, tal qual resultei de tudo”.

| 29
Escolhi para aqui registrar um deles que resume toda a nossa
caminhada, que no olhar da Pequena Iris resumiu a intenção e o
objetivo do estágio no fluir da correnteza.

Figura 7: A correnteza de Pequena Íris – “deixe fluir, seja rio”

Correnteza
Fé e coragem,
caminhos resilientes.
A força impetuosa surgiu em menina flor.
Agigantou-se no caminho, ao caminhar.
Fez jornada na possibilidade do tempo.
Beleza delicada em variedade cuidadosa.
Honra em simbologia;
é renovação de ciclo,
é mudança de rota,
é caminho revisitado.
Pequena materialidade de alma ampliada.
Flor de tríplice beleza.
Busca e refaz o caminho;
forte e firme.
Não titubeia e nem perde a passada.

30 | Contos e Mitos em Arteterapia


O produto arte intitulado “Deixe fluir, seja rio”, nos trouxe um
caminho possível, e como rio, elas e eu seguimos a caminhada,
não mais tão sós, agora mais fortalecidas em nossa individuação ,
com nossos self’s encorajados e revitalizados pela arte percebida
do viver melhor.
Não ainda saciada com meu encanto pelo visto, sentido e ob-
servado, e pelo contentamento de quem recebeu o diagnóstico,
de que a arte é capaz de promover curas, quero registrar ainda
em poesia, pois esse também é alimento que nutre, a força que
nos impele a seguir; e com um contentamento que me toma por
completo, faço o desfecho deste texto ensaístico. A poesia a se-
guir apresenta a condensação que mostra a ternura dos sentimen-
tos mais sublimes e divinos das clientes educadoras, guerreiras e
vitoriosas, que mesmo em uma situação de vulnerabilidade e, em
meio a um contexto dramático da pandemia do coronavírus que
assolou toda a sociedade, continuaram na batalha em prol da
transformação dos educandos.
E num clima primaveril, encerramos nossa jornada do estágio
em Arteterapia, não definitivamente, pois muito ainda pretende-
mos realizar em encontros futuros já solicitados. Os versos finais
encerram a proposta desse programa de estágio “O Ver, olhar e
autoperceber num Despertar de Primavera”.

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Despertar de Primavera

Em noites de inverno,
lá fora o céu se torna escuridão,
as estrelas mais cedo adormecem.

Em casulo, as borboletas aguardam voos em liberdade sonhada.


Jardins em repouso preparam floradas,
Em cores e aromas sutis.
Meninas, mulheres-flores
em cumplicidade de olhares e afetos,
numa jornada de cuidados
se apoiam no acolher.

É Primavera que anuncia a chegada;


da colheita, ramalhete com flores em variedade

Flor de Liz,
joia rara amorosa,
delicadeza pueril do ser mulher.

Açucena menina,
fortaleza na ancestralidade permitida;
vibrou na força cabocla
o passo da caminhada.

Pequena Íris,
despertou com fé e coragem.
De força impetuosa,
resgata caminho em resiliência.

32 | Contos e Mitos em Arteterapia


Em solo pedregoso
Delicada Margarida firmou suas raízes;
no coração, a fé e a esperança
florescem os novos passos.

Luas e sóis nos iluminam,


e assim vamos seguindo,
agora mais fortalecidas.

Ansiando o novo porvir, de luz e calor.


Em outros jardins, novos despertares.
Pois a jornada continua, iluminada pela arteluz.

E agora sim, depois de um delicioso alongar de escrita fluida,


chego à conclusão de que a escolha sou eu quem faço, o meu ver
se tornou olhar e apesar das pedras no caminho, já me aperfeiçoo
no ofício de canteiro.

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Referências

AZCONA, Marta. Um presente diferente. São Paulo: Callis 2008.


BARROS, Manoel de. O Livro das Ignorãças, Rio de Janeiro: Record, 1998.
BRANCO, Sandra. A Cidade dos Carregadores de Pedra. São Paulo: Cortez, 2010.
JONAS, Ribeiro, Ouvidos Dourados: A arte de ouvir as histórias. São Paulo: Ave Maria,
2004.
KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
LLENAS, Anna. Vazio, São Paulo: Editora Salamandra, 2018.
MEIRELES, Cecília. Escolha o seu sonho. Rio de Janeiro: Record, 2002.
PHILLIPINI, Angela, Para entender Arteterapia: Cartografias da Coragem. Rio de
Janeiro: Wak, 2013.
SEIXAS, Cristiana, Vivência em Biblioterapia: Práticas do cuidado através da literatura.
Niterói: Edição do Autor, 2014.

34 | Contos e Mitos em Arteterapia


Arquétipos dos ciclos lunares: o
feitiço das mulheres sábias

Ana Teresa Costa Figueiredo (Ana Piu)[1]

[1] piudabia@gmail.com

1º. Ato: Eu sou porque estou

Caminhar melhor
Recomeçar sem medo de errar
Iluminar meus pensamentos
Sentir mais o meu corpo
Ternuziar os meus gestos
Inovar os meus sonhos
Alcançar?
Envolver-me mais com a natureza

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Desenvolver as minhas habilidades
Amar o meu jeito, para amar o outro
Sensibilizar-me com o simples
Incansavelmente conhecer-me
Louvar Deus que que acredite
Valorizar o que é simples
Saudar, o sol, a lua, a terra
Ouvir ou escutar?
Usufruir o que conquista
Zelar pelas amizades verdadeiras
Amar, amar, amar
Cris[2]

Q uem sou eu? Como me vejo? Como me veem? Não será


a primeira questão a mais complexa de responder? Po-
demos passar uma vida inteira sem saber quem somos e muitas
vezes com o convencimento de que sabemos. Normalmente esse
convencimento é fruto de uma quase ausência de auto-obser-
vação, do autoconhecimento. As perspectivas de quem vê e de
quem é visto sempre são interpretações mais ou menos desfo-
cadas. Ao final de quarenta e alguns anos de existência comecei
a aprender a focar na respiração, a meditar, esse compromisso
eterno com o ‘Eu Sou’, esse exercício gradual de ir esvaziando da
tagarelice mental, do nhamhamnham em tupi guarani, esse passo
para a individuação, se assim nos permitirmos.
Ninguém nos pode obrigar a enveredar por esse processo de
individuação. Por vezes, é somente quando o tapete sai debaixo

[2] poemas e frases que abrem cada ato deste ensaio foram escritos pelas
participantes do processo de estágio descrito neste ensaio.

36 | Contos e Mitos em Arteterapia


dos nossos pés e vamos ao fundo do poço que precisamos tomar
a decisão de parar e ir ao fundo de nós, percorrendo longos túneis
úmidos e sombrios até encontrar aquela luz que vem do nosso
coração e do baixo ventre, esse grande núcleo central, como se
uma bola de fogo nos lembrasse que somos energia vital, intui-
ção. Entretanto, vamos tateando o labirinto do nosso interior até
encontrar infinitas possibilidades para assim irmos nos alinhando
com a nossa alma. E quase sempre esse labirinto está muito escu-
ro. Reaprender a respirar, a sentir a respiração é um grande passo
nesse processo de individuação.
Como atriz de teatro, palhaça, encontrei-me em parte no espa-
ço cênico interpretando outras personagens de mim mesma e de
outros. Paralelamente a essa profissão artística e ao fato de ser
mãe solo formei-me em Antropologia Social. Certa vez um ho-
meopata falou, quando adoeci: “tu és muito boa mãe, boa dona
de casa, boa profissional, boa estudante, mas esqueceste de ser
mulher. Esqueceste de ti mesma”. Levei muitos anos a entender
o que ele queria me dizer. Para mim eu estava a cumprir todas as
funções para as quais eu havia me proposto. Qual de nós mulhe-
res nunca passou por isso? Concluída a graduação, em 2012 mu-
dei-me para o Brasil para fazer mestrado em Antropologia Social
sobre a visita e interação de palhaços a Idosos em Instituições de
Longa Permanência. Aí começou a grande crise e me vi obrigada
a olhar para dentro de mim, gradualmente, mas com resiliência,
acolhendo a minha vulnerabilidade.
Terminado o mestrado, continuei na tentativa de criar um ou-
tro tipo de vínculo com os idosos, que respondesse, de alguma
forma, às suas necessidades e também carências. Senti que me
faltava repertório para propor um outro trabalho mais aprofunda-
do que unisse identidade e arte. Foi então que decidi ingressar na

| 37
pós-graduação em Arteterapia do NAPE. Um mundo se abriu, um
infinito mundo de possibilidades, tanto ao nível profissional, mas
principalmente um desbloqueio que eu tinha para com algumas
expressões plásticas, assim como entender o que estava por de-
trás do meu olhar algumas vezes murcho. Assim fui confirmando
que realmente nunca tinha marcado um encontro mais demorado
comigo mesma e que desconhecia os meus ciclos lunares. Apesar
de já ter me iniciado numa caminhada espiritual, tanto budista
tibetana e zen como com povos da floresta (povo Huni Kuin e Ya-
nawa do Acre) através das suas cantorias e plantas de cura, foi na
Arteterapia que encontrei um caminho a trilhar juntamente com
essas trilhas iniciadas.
Acredito que para convidarmos alguém a esse mergulho inter-
no precisamos, de iniciá-lo dentro de nós e também de contex-
tualizar a necessidade desse mergulho e de estudar as várias fer-
ramentas teórico práticas. Criar vínculos de confiança é também
falar um pouco da nossa trajetória e o que nos levou a trilhar
determinados caminhos até chegar ao momento presente. Hu-
manizarmo-nos. Apresentarmos as nossas potencialidades, vul-
nerabilidades e resiliências.

Pavimentando o caminho até os ciclos lunares


Com os pés no chão, levantar os braços aos céus e com o olhar
pegar a luz e trazer para dentro de mim, respirar o verde da
natureza dentro da mata escura para limpar a minha cabeça e
espírito e assim agradecer nossa existência.
Maria

Para dar suporte à minha busca, assim como à fundamentação


teórico-prática complementar para executar o estágio obrigatório

38 | Contos e Mitos em Arteterapia


de conclusão do curso de Arteterapia, ampliei meu leque de leitu-
ras e participei de vários cursos, principalmente aqueles conduzi-
dos por Kaká Werá, conhecido escritor, ambientalista, terapeuta e
conferencista indígena brasileiro do povo tapuia: “O poder sagrado
das histórias”; “O poder dos sonhos” e “Xamanismo: a via do co-
ração”. Kaká Werá promove imersões e vivências voltadas para o
autoconhecimento e desenvolvimento pessoal pela via da sabedo-
ria ancestral. Outros caminhos me levaram aos cursos conduzidos
por Raquel Leal, psicologia junguiana: “Seja a mulher que nasceu
para ser” e “Sagrado e profano como a face da mesma moeda”.
Essas vivências despertaram em mim o interesse para a influên-
cia dos ciclos lunares na natureza, incluindo nesse universo, é
claro, os seres humanos. Além dos livros desses dois terapeutas,
mergulhei também no artigo “Arteterapia, mitos e resgate dos
ciclos lunares de morte vida”, de Aline Marques Barcelos. Outras
referências foram: Carla Maciel, Celeste Carneiro, Angela Phili-
ppini e Humberto Oliveira. As mandalas lunares de 2019, 2020 e
2021 serviram também de suporte teórico, assim como algumas
referências da cultura Yorubá, a partir do curso de dança “Igbasi-
le Dudu Ni Ijó”, do antropólogo e artista Luís Anastácio.
O primeiro contato com a temática dos ciclos lunares foi através
da Mandala Lunar, em 2019. “Mulheres que correm com Lobos”,
de Clarissa Pinkola Estés, já tinha tido uma primeira leitura, mas o
entendimento tem vindo a se efetivar com todo esse movimento
que estuda a potência da mulher selvagem onde os estudos jun-
guianos estão contemplados.
Todas essas vivências e leituras têm pavimentado um sólido ca-
minho para o conhecimento e entendimento da ciclicidade femi-
nina, que decidi aplicar durante as atividades práticas do curso
de Arteterapia. O estágio, em plena pandemia do coronavírus,

| 39
foi aberto sem distinção de faixa etária ou gênero, mas foram
as mulheres que efetivamente se comprometeram a mergulhar
comigo nessa jornada de autoconhecimento. As primeiras sessões
foram de aproximação, para criação de vínculos e diagnóstico da-
quilo que essas participantes traziam para ser trabalho terapeuti-
camente. Isso nos levou, a partir da oitava sessão, a desenvolver
uma estrutura de atendimento em Arteterapia com base nos ci-
clos lunares e em mitos da cultura afro-indígena brasileira. Assim
o grupo se consolidou com a participação de seis mulheres, com
idades compreendidas entre os 20 e os 69 anos. Duas delas, com
a idade de 20/25 anos, assumiram sofrer de depressão agravada
pelo confinamento imposto pela pandemia. Mas em todas elas
observou-se uma necessidade de resgatarem a autoestima e a au-
toconfiança, saberem-se capazes e importantes para elas mesmas.

2º. Ato: Eu sou porque nós somos


Um ser
Outro ser
Cada um dentro de si
Perdido
Ao tentar encontrar o outro
Acha que não conseguirá
Logo desiste e se vai
Mas não sabia que o outro
Também estava à sua procura
Para um encontro de diálogo
E celebração
Lari

40 | Contos e Mitos em Arteterapia


Nós somos cíclicos, quer estejamos ou não em conexão com os
ciclos lunares, solares e com o cosmos. Desde os tempos mais re-
motos a Humanidade tenta entender e dar um sentido à sua vida,
se esta existe para lá da matéria e das encarnações sucessivas
presentes em diferentes culturas, religiões e mitos do Ocidente e
do Oriente. Foi a partir dessa necessidade de entender os misté-
rios do cosmos que os mitos de criação foram estabelecidos em
diferentes pontos do planeta, atravessando o tempo e o espaço e
manifestando-se de diferentes maneiras, mas sempre com pontos
em comum entre grupos e sociedades. A conexão com os ciclos
da natureza e a imensidão do espaço sideral tem sido um caminho
adotado pelos diferentes povos do planeta para dar um sentido
aos ciclos de vida - morte - vida e compreender como lidar com
emoções e sentimentos enquanto seres individuais em interação
com outros seres igualmente individuais, fazendo ou não parte do
seu grupo.
Diante dessa perspectiva, buscamos mitos de matriz indígena e
africana com o intuito de sair da cosmovisão eurocêntrica, indo
assim ao encontro da identidade dos povos originários ameríndios
e dos povos que foram trazidos do continente África e que consti-
tuem a identidade do povo brasileiro e de seu inconsciente coleti-
vo. Escolher as orixás como os arquétipos a serem trabalhados foi
justamente para sair das referências greco-romanas e deste modo
estreitar um vínculo mais profundo com as participantes brasilei-
ras, duas delas afrodescendentes.
De origem grega, a palavra cosmos significa ordem, harmonia
dada ao caos. Desde o fundo dos tempos que as mais diversas so-
ciedades e culturas, tenham estas desenvolvido a escrita ou não,
possuem os seus mitos de criação para dar um sentido à sua exis-
tência deste imenso espaço sideral, onde o planeta Terra está in-

| 41
serido. Assim sendo, existem muitas cosmovisões onde o pai Sol,
a mãe Terra e a avó Lua são invocados, assim como a origem das
estrelas e os deuses e deusas que são arquétipos das emoções e
sentimentos humanos que atravessam essa mesma humanidade
ao longo de milhares e milhares de anos. Nessa necessidade de
sobreviver às intempéries, que para muitas culturas estão ligadas
à ira dos deuses, entender o ciclo da existência: vida - morte -
vida, mitos e lendas se criaram ao longo do tempo, encontrando
vários pontos em comum entre grupos distintos em diferentes
pontos do planeta e a grandes distâncias temporais. Estamos as-
sim a falar de inconsciente coletivo.

O caminho lunar
Estou no caminho!
Cris

A noite está escura. Aos poucos a Lua cresce, colocando luz


no que antes não víamos, recolhidos na sombra da penumbra,
na escuridão fundamental. Mas a luz da Lua vai em crescente,
iluminando a sabedoria ancestral por muitas mulheres esquecida
e resgatada aos poucos, resistindo a milhares de anos de patriar-
cado. Recordar quem nós somos é dar plasticidade à nossa alma.
Entender a energia cíclica lunar é entender que nós somos cícli-
cas, logo nãos estamos sempre com o mesmo estado de ânimo e
que ora nos recolhemos, ora nos expandimos.
O útero é a nossa casa primeira. Nele guardam-se memórias mui-
to antigas, memórias celulares, passadas da avó, da mãe para os
seus filhos e passando para a frente quem der à luz outros seres.
O poder de criação, de dar à luz tanto outros seres humanos como
sonhos, projetos, borbulha no baixo ventre, onde se encontra o

42 | Contos e Mitos em Arteterapia


útero quer este esteja ou não. O baixo ventre é o nosso núcleo cen-
tral, essa bola de fogo que nos faz mover mesmo em imobilidade.
Honrar a ciclicidade é honrar a nossa luz e sombra com as suas
distintas tonalidades, aceitar e honrar-nos enquanto seres ínte-
gros, que tudo é transitório e que nada acaba nunca, só muda
de lugar, de forma, de perspectiva, textura, cor, odor, matéria. O
material se torna imaterial, o colorido incolor, o sopro vital trans-
forma-se em poeira cósmica onde a fronteira do objetivo e subje-
tivo diluem-se numa eterna dança de mistérios e auto revelações.
Somos um ciclo dentro dum ciclo sem princípio, meio nem fim,
seres espiralados que se descobrem, se perdem, reinventam-se e
voltam ao mesmo lugar sem voltar ao mesmo lugar, porque mes-
mo na imobilidade há sopro, sopro de vida, movimento vivo.
No aconchego do ventre onde se encontra o núcleo central da
nossa mãe mora o fogo da intuição que ora está mais acesso ora
mais apagado. Somos vento, sentimento, encontro de corpos que
geram outro corpo. Somos ar, pensamento que se materializa,
somos terra enraizada em memórias celulares muito antigas que
se alojam no útero das nossas mães e avós. Somos memórias que
atravessam os tempos no inconsciente coletivo.
O que é preciso lavar com águas limpas? Que fogo precisa se
manter acesso para que a intuição se reacenda e transmute o
fogo da (auto) destruição? Precisamos abrir as janelas e portas do
nosso jardim interno para que o ar circule com pensamentos leves
e profundos. E uma vez condensados com as águas de nossas
emoções curadas criem nuvens que fertilizem a terra desse nosso
jardim. Jardim com macieiras de conhecimento libertador onde
ninguém é demonizado e expulso. Espaço aberto para que a nos-
sa coluna vertebral dance a sensualidade da existência, do prazer
de ser e estar presente no aqui e agora. Agora a nossa coluna que

| 43
nos sustenta e nos faz inteira serpenteia-se com a dignidade de
sermos criadoras, criativas, sensuais, firmes para não permitir que
nos objetifiquem. Inteira, individuada num coletivo que necessita
brincar mais, rir mais, resgatar essa criança interior que é a espon-
taneidade e a alegria de viver com a consciência que o planeta
precisa ser cuidado, porque, afinal, somos uma grande teia e a
pandemia do coronavírus veio a confirmar isso. A expansão da
consciência também se dá por contágio e para tal é necessário
um silenciar interno, um cessar de tagarelice interna, auto-obser-
vação e exercício da escuta generosa para consigo mesma e para
com os demais.

3º. Ato: Lua nossa de cada dia


É preciso buscar energias talvez... nas águas.
Cris

Para Kaká Werá, cada ser humano é portador de histórias e me-


mórias. Essas memórias são maleáveis ao tempo. A ideia que temos
de nós mesmos não é idêntica ao que o outro tem de nós, pois
essas ideias são construtos internos, de enredos e interpretações.
Para o autor, a nossa história pessoal modela uma parte de nós em
que os principais aspectos que formam o registro interno do sub-
consciente, consciente e supra consciente são a sobrevivência, afe-
to e ideal. Assim, expressar narrativas com o propósito de conectar
com o inconsciente é uma jornada no reconhecimento do “eu”
instintivo, do “eu” emocional. Tanto as expressões plásticas como
a escrita criativa, ferramentas da Arteterapia, permitem essa co-
nexão com o inconsciente, acontecendo uma liberação da psique
para que possa interagir com o sonho. Kaká Werá defende que as

44 | Contos e Mitos em Arteterapia


histórias que curam promovem ressignificações de uma memória,
desidentificação de uma memória. Em suma, há uma conexão com
arquétipos que são parte constituinte dos mitos estruturantes.
Como lembra Raquel Leal, os arquétipos são formas universais
destituídas de conteúdo. Esses conteúdos são trazidos pelos su-
jeitos históricos em seus contextos locais e temporais. Conteúdos
são as histórias que contamos para nós mesmos. Kaká Werá cha-
ma então a atenção para as histórias que contamos e que guarda-
mos e como estas têm impacto na nossa vida. Reinventar a ideia
que temos acerca de nós e do mundo é uma forma de descrista-
lizar memórias de sobrevivência extrema e de dor. Para Werá, um
contador pode contar histórias de medo com foco no medo, mas
para trazer para a consciência e curar.
Unindo essa sabedoria ancestral com a Arteterapia vamos en-
contrar, em Juliana Cézar Nunes, o arquétipo da Mandala Lunar
(2021):
“(...) na cultura Yorubana, as histórias são contadas em forma de
Itans – mitos e canções com os ensinamentos da ancestralidade afri-
cana (...) Um dos mais conhecidos Itans Yorubanos fala sobre como
dos seios e do ventre de Yemanjá brotam os rios onde vão reinar os
demais Yabás, entre elas, Osun, Oyá e Obá. Juntas como Yemanjá e
Nanã, as Orixás femininas orientam nossos caminhos e fluxos, regem
os ciclos lunares conectadas com as Yabás. Nosso ventre-água-viva
é também cabaça onde nutrimos sonhos, gozos, filhos, dores e amo-
res. É ventre-embarcação que navega entre maré cheia e maré baixa,
águas salgadas, doces e lamacentas. (...). Devolvemos nosso sangue
à terra. Nanã, a Yabá anciã, nos abraça e acolhe. Com nossas águas,
ela molda o barro de onde ressurgiremos mais plenas e sábias. Forta-
lecidas em nossa ancestralidade para um novo ciclo de vida”.

E assim os “Ciclos lunares” começaram a se materializar em


nossas práticas arteterapêuticas. Eles têm como objetivo disponi-
bilizar ferramentas de autoconhecimento através dos quatro ar-

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quétipos da donzela (lua crescente), mãe (lua cheia), feiticeira (lua
minguante) e bruxa ou anciã/mulher sábia (lua nova) expressas
nas atividades arteterapêuticas propostas.
Com esse escopo, nos propusemos a disponibilizar ao grupo de
mulheres os estudos e práticas sobre os ciclos lunares em conso-
nância com os seus ciclos femininos como ferramentas para im-
pulsioná-las ao processo de individuação.

4º. Ato: Viagem sem chegada


Precisando de entrar em sintonia com o hoje, o agora.
Cris

Não tem certo nem errado! Tem o prazer de nos expressarmos,


de brincar e jogar para assim sabermos um pouquinho mais de
quem nós somos! Esse é o processo de individuação como agen-
tes históricas, fazendo parte de um coletivo e de algo muito maior
que a própria humanidade, de um Todo que nos transcende. Vi-
vam os encontros marcados com nós mesmas, confirmando que,
apesar de tudo, e mesmo da pandemia, não estamos sós! Pois nós
estávamos lá, um grupo de mulheres em vivências arteterapêuti-
cas para a internalização dos arquétipos dos ciclos lunares. Como
se deu esse processo?
As primeiras oito sessões estiveram focadas na criação de vín-
culos de confiança entre as participantes e a arteterapeuta em
formação. “Quem sou eu? O que me traz aqui? Que objeto, ima-
gem me representam? Que textura e cor me representam?”. Estes
foram os primeiros motes para as atendentes se apresentarem.
(Figura 1)

46 | Contos e Mitos em Arteterapia


Figura 1: O início do processo de identificação

Ao longo de todas as sessões a escrita criativa esteve sempre


presente como continuação da atividade plástica, imagética ou
corporal. Foi proposto que dentro de uma caixa expressassem o
mundo interno e o que realmente era importante para as suas
vidas, refletindo sobre as questões: “Quem sou?”, “De onde
vim?”, “Onde estou?”, “Para onde vou?” Usaram-se fotografias,
recortes de revistas e todos os elementos naturais levados por elas
(Figura 2). Na sessão seguinte, foi proposto criarem uma man-
dala de sementes acerca dos sonhos que traziam dentro de si e
que gostariam de realizar (Figura 3). Na sexta sessão trabalhou-se
sobre a origem do nome, sendo proposta atividade de pintura
escrita do acróstico do nome e criação do totem do mesmo. Na
sessão seguinte trabalhou-se o vínculo coletivo. Foram apresenta-
das várias imagens para que cada participante escolhesse uma ou

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duas. Em grupo compartilharam o que essas imagens escolhidas
representavam e a partir daí foi proposto criarem uma história
coletiva, a seguir resumida:

“A mulher balança entre o escuro e a natureza que ela


quer viver. O que está fora, a natureza, é a parte que a
gente gosta, a escuridão entra na rotina, em que não
damos muita atenção nas pessoas-imagem das pessoas”.

“A indiferença, falta de empatia entre as pessoas”.

“O desejo de uma vida melhor, que aparece


no início, ainda está viva, e o sentimento de
agradecimento ao divino. Entram as preces”.

“Seu rosto expressa um olhar de prece aos céus,


e ela no centro, ela em seu centro de significado
espiritual, até porque o branco representa paz,
pureza, e parece que a moça está tentando
enviar uma mensagem para os céus, pedindo
uma trégua. (Isa, Nanã). Há um desejo nessa
mulher, que sempre volta para a escuridão, de se
autoconhecer, construir a si com o conhecimento
de seus ancestrais. O fim esperado é o de conseguir
estar disposta a compartilhar com outras mulheres
os seus aprendizados e as suas emoções, e construir
relações lindas, cheias de liberdade e experiências”.

48 | Contos e Mitos em Arteterapia


Figura 2: O que afeta a vida

Figura 3: Mandala de grãos: reestruturando o cotidiano

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Na oitava sessão as mulheres foram convidadas a transmitir
para o corpo em movimento esse texto criado coletivamente. Elas
ainda revelaram um certo bloqueio no que se refere esse contato
íntimo com o corpo, com o movimento e o gesto. Trata-se, por-
tanto, de uma abordagem feita gradualmente, visto também a
sessão ocorrer de forma remota, não presencial.
Para a nona sessão preparamos o início à imersão nos arquéti-
pos femininos ligados a cada fase da lua. Iniciamos pelo arquétipo
da bruxa, anciã, a mulher que sabe, pois encontrávamo-nos sobre
a energia da Lua Nova. Esta fase representa o inverno, o mito Yo-
ruba de Nanã, a deusa Orixá que representa este arquétipo, em
que o elemento terra é predominante.
Na sessão seguinte estávamos sob a luz da Lua Crescente, essa
energia primaveril representada pela donzela. O mito de Ewá
tráz-nos essa jovialidade associada ao elemento água (Figura 4).

Figura 4: As águas internas

50 | Contos e Mitos em Arteterapia


Já na décima primeira sessão foi trabalhado o arquétipo da mãe,
que está ligado à energia da Lua Cheia, do Verão, da abundância
e expansão. Yemanjá foi a Orixá escolhida em que o elemento
água é igualmente predominante. Foi proposto assim criar uma
boneca (Figura 5), com retalhos e sementes e escrever uma carta a
esta boneca, que representa a participante, fazendo conexão com
o mito de criação de Iemanjá.

Figura 5: A menina que sou e fui. Menina mulher sou

No encontro seguinte entramos em Lua Minguante, abordando


assim o arquétipo da feiticeira, representativa da energia outo-
nal, do anoitecer. Trouxemos a Orixá Yansã, ligada aos elementos
fogo e ar, provida de espada para abrir caminhos, jogando fora o
que não serve mais e com um escudo para se proteger. Nas duas
sessões seguintes foi trabalhado o mito das 13 matriarcas e de-
pois retomamos aos quatro arquétipos lunares.

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Retirando espinhos
Cada ser tem sonhos à sua maneira.
Lari

Mágoa é uma água má, um sentimento turvo que precisa ser


limpo. Um espinho emocional a ser retirado, como se fosse um
grosso espinho enfiando no pé e um outro no coração. A mulher
caminha habituada à dor achando que esta faz parte da sua na-
tureza. Há muito que aquele espinho está enfiado no pé. De vez
em quando sente dificuldade em caminhar. Para por instantes,
porque lhe foi ensinado que não deve pausar, não se deve tocar,
não se deve perceber a si mesma. Mas ela não aguenta mais e
sente através da intuição que ainda lhe resta que algo está errado.
A mulher coloca a mão no coração. Tem uma parte que pulsa e
outra que está endurecida. Sente a batida cardíaca. Com o passar
do tempo vai retornando essa pausa para colocar as mãos sobre
o coração, passando a fazer parte da sua rotina. Um dia percebe
que há um espinho que atravessa o seu coração. Vai levando as
mãos do coração até ao útero como um massagear de alma, mas
isso não é suficiente. Terá de encarar a façanha de arrancar esse
espinho do coração que até então considerava fazer parte de si.
Gentil e firmemente vai retirando esse espinho para que nada
fique lá dentro. Ao mesmo tempo que sente um alívio, uma dor
profunda atravessa sua alma. Chora. É tempo de se libertar da
dor do ressentimento, da dor do abandono, da negligência, do
abuso, do desentendimento. O coração sangra um pouco, mas
como matéria viva regenera-se com os cuidados devidos para que
a sua cicatrização seja honrada pela capacidade de libertar quem
a magoou tanto na primeira infância, como na adolescência e ao
longo da vida. É tempo de libertar os pais que não a desejaram.

52 | Contos e Mitos em Arteterapia


Mesmo que seja difícil de perdoar esse movimento torna-se ne-
cessário. Libertá-los do aprisionamento da dor causada. A mulher
respira fundo e descobre o prazer de sentir o seu coração mais
leve, surpreendendo-se com o fato de ter achado até então que
aquele espinho era parte do seu coração. A respiração flui.
É tempo de continuar a caminhada depois dessa mágoa liberta.
Mas há um outro espinho no pé que precisa de ser igualmente
retirado. Faz tanto tempo que aquele espinho ali está, que mais
parece uma macha. Precisa fazer um pequeno corte para que a
retirada desse espinho seja efetiva. Volta a estremecer de dor. O
espinho insiste em permanecer em seu pé. Ela desiste e caminha.
A dor volta, o pé inflama. É obrigada a parar e a cuidar desse pé,
correndo o risco de o perder. Precisa ser gentil e cuidadosa consi-
go mesma e assumir que a correria não a levará a lugar nenhum
se não ao abismo de si mesma.
Nesse espinho estão contidas ideias feitas sobre si mesma e
como agir, ideias distorcidas sobre o mundo e os outros que a im-
pedem de caminhar com fluidez. O obstáculo está antes de tudo
dentro dela.
Precisa de ferramentas para retirar esse espinho, tal qual prego.
Precisa pausar, se autocuidar, pedir ajuda, precisa se saber inter-
dependente, saber que não está só, que não é a supermulher, a
mulher maravilha. Precisa se reencontrar. Voltar a dançar, a rir, a
criar, a sentir prazer de ser e estar. É uma caminhada que não tem
meta a alcançar? É! É a caminhada do coração.
Aos poucos, as mulheres desse grupo foram retirando os es-
pinhos de seus corpos, um a um, envolvidas que estavam pelo
fazer artístico, arteterapêutico, com desenhos, pinturas, danças,
ciclos lunares, na compreensão da ciclicidade feminina, em bus-
ca de si mesmas!

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E fecham-se as cortinas:
Nada acaba nunca. Só é preciso continuar
Se eu adormecer toca o meu braço que eu às vezes durmo
quando conto histórias. Mas se eu dormir muito não me acorda,
ué! Que eu quero é mais dormir. Apaga a minha luz e fica a
olhar para o céu escuro que é de noite que se vê melhor as
estrelas. Porque a morte?.... É mentira, ué!
Ana Piu e Paula Só

Eis alguns retornos, segundo questionário preenchido pelas


participantes sobre o impacto que estes encontros tiveram sobre
suas vidas (Figura 6):

“Agora sou muito grata pela minha vida e as experiências


que estou vivendo. Sinto-me aberta cada vez mais ao novo
e aos aprendizados que a vida oferece”.

“Tem ajudado muito, penso em coisas que deixei de fazer ao


longo destes anos, que era de me olhar no espelho, sempre
fiquei cuidando muito dos outros e esquecendo de mim, mas
sei o quanto preciso melhorar, pois tenho ainda em mim a
preocupação de cuidar do outro e vê-los bem e quando sinto ou
percebo que não consegui, fico frustrada. Preciso deixar isto de
lado, não posso agradar a todos, pois não faço isto comigo”.

“São muito bons os laços que criamos neste espaço, a


confiança que temos umas nas outras para compartilhar.
Como não tenho muitos amigos e me afastei das pessoas
durante a pandemia, foi uma ótima oportunidade para

54 | Contos e Mitos em Arteterapia


conhecer outras pessoas e realidades, num espaço tranquilo.
Foi um pouco me desligar dos acontecimentos de casa,
muitas vezes as pessoas que moram comigo (pais e irmãos)
não entendiam que eu precisava desse tempo e espaço
para mim. Me sinto renovada, e descobri muita coisa sobre
mim, sobre o ser humano, sobre outras culturas (indígena
e africana principalmente). (...) me sinto mais calma,
consigo identificar as origens das minhas dores com mais
facilidade. (...) também consegui voltar a desenhar, escrever
e tocar instrumentos, coisas que eu já não fazia há alguns
meses antes de começar a arte- terapia, pois havia perdido
completamente a vontade e a motivação”.

Figura 6: Reconhecendo os ciclos da vida

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Há um campo imenso de estudo e de atuação em Arteterapia.
Infinitas possibilidades em colocar em prática as propostas com
embasamento na psicologia junguiana. Em tempos de encerra-
mento desse processo de estágio, recorremos ainda a Mircea Elia-
de, para quem o xamanismo é a religião da terra, conexão com
o inconsciente, pois o xamanismo aborda a natureza espiritual
da doença, aborda os sonhos iniciáticos, culto e conexões com
os antepassados, e no qual cada objeto tem alma. E nós, seres
humanos, somos força da natureza com um corpo físico que pre-
cisa ser cuidado e desintoxicado, um corpo emocional que precisa
aprender a lidar com as emoções, sobretudo com o medo que se
manifesta em relação ao futuro, ao fracasso, à doença e à morte.
Somos um corpo intuitivo que precisa se abrir à contemplação,
ao silêncio. Irmos ao encontro da nossa alma é um dos maiores
contributos e tributos à vida.

56 | Contos e Mitos em Arteterapia


Referências

BARCELOS, Aline Marques. Arteterapia e Mitos no Resgate do Arquétipo da Mulher


Selvagem e dos Ciclos Lunares Menstruais de Vida-Morte-Vida. Revista Interdisciplinar.
Vol. 9 – Ano 5 – nº 9, Janeiro/2007.
BACARIN, Adriane Viola. O retorno de Inana: a mulher em busca do feminino reprimido.
Revista Travessias, 1982.
BOLEN, Jean Shinoda. As Deusas e as Mulheres - nova psicologia das mulheres.
Coleção: Amor e psique. São Paulo: Paulus, 1990.
PEGADO, Raquel Leal dos Santos. O profano e sagrado como faces da mesma
moeda: os sentidos da imagem da Pombagira no inconsciente coletivo. Belo Horizonte:
Faculdade de Psicologia - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2018
(Monografia).
OLIVEIRA, Humbertho (org.). Morte e Renascimento da Ancestralidade Indígena
na Alma Brasileira - Psicologia Junguiana e inconsciente cultural. Petrópolis: Vozes,
2020.
QUALLS-CORBETT, Nancy. A prostituta sagrada a face eterna do feminino. Coleção
Amor e Psique. São Paulo: Paulus, 1990.

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58 | Contos e Mitos em Arteterapia
Expressão artística e sua
simbologia na busca do
equilíbrio emocional infantil

Manuela Broering Gomes da Mata[1]

[1] manudamata@hotmail.com

F alar o que está acontecendo, sobre o que se passa na cabe-


cinha e dentro do coraçãozinho de uma criança não é ta-
refa fácil para ela. O seu mundo interior é gigante se comparado
com seu vocabulário. Ela tem muito a mostrar, a compartilhar, a
interagir, a desabafar. Mas esse tipo de expressão verbal não faz
jus ao que ela pode dizer e revelar. O seu mundo verbal ainda é
restrito.
A criança é mais que palavras, ela é criativa, inusitada, verda-
deira, expressiva, pura, seu self está plugado ao modo artístico de
expressão, mediante o qual transfere de maneira natural todos

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seus afetos, medos, anseios e emoções. E, mesmo sem que ela se
dê conta, por meio das artes plásticas e da expressão corporal vai
se equilibrando emocionalmente, explorando seu inconsciente,
seu mundo interior, expondo-o, desenvolvendo maior autocons-
ciência, pensamentos positivos e elucidativos, autoestima, junto
de um aprofundamento na criatividade.
A infância é marcada por um período de intenso desenvolvimen-
to não só cognitivo e físico, mas também emocional. Essa matura-
ção está diretamente ligada com as experiências que vivencia no
meio em que está inserida. Mas cada ser é individual e é afetado
por diferentes influências de forma singular. Essas mudanças de
comportamento, de entendimento, se tornam conflitantes e por
vezes as emoções se tornam um caos. A sua falta de compreen-
são e o surgimento de sentimentos diversos geram desequilíbrio
emocional, afetando diretamente os sentimentos da criança, pois
aquilo é algo novo e ela não sabe lidar com eles ainda, não tem o
discernimento para a sua compreensão, tem dificuldades para se
expressar verbalmente, e às vezes sem o auxílio de um adulto ou
de um cuidador a situação fica ainda mais complexa.
Entre as várias possibilidades de suporte nessas situações, co-
loca-se uma questão: será que a Arteterapia consegue proporcio-
nar esse equilíbrio emocional para essas crianças? Será que ela é
transformadora mesmo? Algumas respostas podem indicar cami-
nhos seguros a seguir nessa jornada de apoio a crianças.
A Arteterapia não é somente uma forma de tratamento, é mui-
to mais, é forma de comunicação, expressão, exploração, desco-
berta, cura de traumas. É fazendo parte desse processo criativo
que o ser ali integrado já está em processo terapêutico, pois essa
prática não requer habilidades e nem experiência dos atendidos.
É somente se deixar levar, ser sincero e explorador de seu interior.

60 | Contos e Mitos em Arteterapia


Dentro desse contexto seguro, as crianças podem receber apoio
necessário para se descobrirem mais fortes, visualizarem seus an-
seios, suas dúvidas, e se verem desbravadores de novos caminhos
para solucionar seus problemas. Podem expressar seus sentimen-
tos sem regras ou tabus. Pois a arte é transformadora.
O profissional arteterapeuta, coadjuvante nesse processo, pas-
sa a compreender aquele serzinho que parecia frágil como um
conhecedor profundo de seus sentimentos, mas que, por vezes,
podem estar desalinhados, confusos, incompreendidos. E é aí
que ele se torna o protagonista, assumindo o papel fundamen-
tal de auxiliar o infante à compreensão e ressignificação de seus
sentimentos. Nessa dialética entre o arteterapeuta e a criança,
toda a simbologia da arte é trazida à consciência. Aquilo que na
tentativa verbal pode parecer frustrante, com as atividades plás-
ticas expressivas torna-se claro, beneficiando a criança com cal-
ma, autorregulação e entendimento. Tudo isso se relaciona com
aquilo que Jung (1964) coloca quando propõe que o inconsciente
pessoal corresponde às camadas mais superficiais e o inconscien-
te coletivo refere-se às camadas mais profundas desse universo,
estruturas psíquicas que são comuns a todos.
PHILIPPINI (1995) também traduz esse processo como colabo-
rativo na compreensão e resolução de estados afetivos conflitua-
dos, favorecendo a estruturação e a expansão da personalidade
através da criação.
Por meio da arte, a criança vai desenvolvendo uma criativida-
de que muitas vezes está abafada dentro do ser. Por meio das
pinturas e dos desenhos que influenciam diretamente o estado
emocional, ela libera simbolicamente os sentimentos internos da
angústia, tristeza, raiva ou medo, até mesmo aqueles ligados à
felicidade, alegria e o amor. Tudo isso ganha vida no mundo ex-

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terno, objetivo, concreto, através do feitio artístico com alma e
cores. Conforme destaca Philippini (2000, p. 19)
“O símbolo tem uma função integradora e reveladora do eixo de si
mesmo, entre o que é desconhecido – inconsciente individual
e coletivo – e a consciência. O símbolo aglutina e corpori-
fica a energia psíquica, permitindo ao indivíduo entrar em conta-
to com níveis mais profundos e desconhecidos do seu próprio ser e
crescer com estas descobertas. O símbolo constelado com a ajuda
dos materiais expressivos dinamiza e facilita a estruturação e trans-
formação dos estados emocionais que lhe deram origem”.

Expressando emoções
A vivência diária nos presenteia com diversas emoções que sur-
gem ao acaso, sem escolhermos, defronte às diferentes situações.
No mundo adulto, isso já é difícil administrar, agora no mundo
infantil, as coisas se complicam mais. As emoções se embolam,
surgem diariamente e cada uma com um significado diferente,
sempre querendo dizer algo. A criança pode nem mesmo saber
o que ela significa, o que ela está a sentir, não a reconhece, não
sabe dar um nome para aquilo ou, às vezes, se confunde. Esse
processo de saber identificar, nomear, entender e ressignificar é
muito importante para o desenvolvimento saudável das crianças.
Quando isso ocorre pode-se evitar traumas futuros e elas terão
um melhor relacionamento consigo mesmas, sabendo diferenciar
as emoções e criando cenários menos conflituosos durante seu
processo de crescimento.
Foi nesse contexto que o trabalho de campo relatado neste en-
saio foi aplicado. Buscou-se ajudar duas irmãs, uma de 8 anos e a
outra com 10 anos, que vinham sofrendo de crises de ansiedade,
não só pelo cenário da pandemia em 2020/2022, mas também por
fortes influências ocorridas no interior de suas vidas familiares.

62 | Contos e Mitos em Arteterapia


Incentivando a criança a se expressar, falando, pintando ou de-
senhando suas emoções, vai se criando caminhos para que ela se
perceba e entenda que o outro não está a julgá-la e sim a apoiá-la.
Ela se sente protegida, acolhida, surgindo um caminho trilhado na
autoestima, na força e na sabedoria. Claro que o significado da
Arteterapia é muito mais literal, mas para a criança, ela pode estar
associada a uma brincadeira, um jogo, uma dança, ao teatro, à
contação de história. Por meio desse envolvimento, dentro dessa
trajetória, ela se torna protagonista de sua própria história.
O simples fato da solicitação do terapeuta para o desenhar ou
pintar “O que você está sentindo hoje?” faz com que a criança
pense algo que ela não conseguia entender, mas que nesse mo-
mento passa a ter um significado. A criança não está acostumada
a pensar ou a materializar aquela emoção, nem mesmo sabe lidar
com isso no seu dia a dia. Assim ela toma consciência de algo
que até então fazia parte do seu Ser, mas não era materializado,
e começa a assimilar suas emoções, iniciando um processo de
identificação e exploração das mesmas. Dessa forma, a pintura,
muito utilizada no início da Arteterapia, tem como base ser uma
atividade sensorial, possibilitando o colorir de uma emoção que
estava trancadinha em um lugar no universo interior da criança.
Uma colagem sobre a família vai explorar sentimentos que serão
transfigurados para aquelas imagens escolhidas aleatoriamente,
mas que de aleatório não tem nada, pois já é o seu inconsciente
falando. A modelagem vai dar forma ao pensamento.
Essa ponte do eu interior com o eu exterior, através dos meios
artísticos, é necessária e transformadora para o entendimento da
criança. A partir do conhecimento das emoções, percebe que elas
estão sempre presentes e são assim, vão e voltam, mais fortes,
mais fracas, de uma maneira positiva ou de uma maneira negati-

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va, e o discernimento de seus significados favorece a passar por
situações de uma forma mais calma, mais tranquila, sem a men-
ção de contenção, mas sim de ressignificação.

Na prática
O atendimento com as irmãs se deu de forma remota, devido ao
cenário da pandemia em 2021. Foram sessões semanais de uma
hora e meia ao final da tarde, durante os meses de maio a outu-
bro. Elas estavam totalmente habituadas a usarem a plataforma
digital. Antes do primeiro encontro, foi feita uma entrevista inicial
com a mãe, a qual apontou suas preocupações em relação às cri-
ses de ansiedade que as meninas apresentavam, informando que
elas estavam também se submetendo a avaliações para o diagnós-
tico de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade).
Como fatores mais preocupantes estava a separação recente dos
pais, a mudança de casa e também a mudança de escola.
O primeiro encontro se deu de uma forma muito divertida. O
objetivo era criar um vínculo e fazer as apresentações. As crianças
não sabiam o que era Arteterapia, mas ao explicar que todas as
dinâmicas iriam se basear em uma arte que elas fizessem e que
qualquer coisa estava certa sem se preocupar com estética, elas
ficaram aliviadas.
Nesse dia foi utilizada a música “Desengonçada”, de Bia Be-
dran (2004), como uma forma bem leve para a criação do vínculo,
o que superou as expectativas iniciais, pois elas dançavam e se
divertiam. O gelo já foi quebrado e elas ficaram muito animadas e
felizes, criando expectativas para os próximos encontros.
Nas semanas seguintes, de uma forma sutil, as crianças co-
meçaram a apresentar a sua família, utilizando o desenho, con-

64 | Contos e Mitos em Arteterapia


seguindo verificar a importância dada por parte delas e ao seu
pertencimento dentro do contexto familiar. “O desenho também
concretiza alguns pensamentos e exercita a memória, bem como
está relacionado ao movimento e ao reconhecimento do objeto e
tem função ordenadora” (VALLADARES, 2000/2001; 2001; 2003;
2004a e b; 2005).
Uma técnica muito favorável para conhecer o mundo interno da
criança é a utilização de desenhos, pois, por meio deles, ela irá ex-
pressar inconscientemente sua realidade interna, trazendo à tona
algumas emoções que estão ali bloqueadas. Isso já traz um tema
simbólico para ser trabalhado, o que resulta em desenhos da famí-
lia, animais de estimação ou de nomes das pessoas de seu convívio.
Apresentações feitas, laços afetivos mais fortalecidos, iniciamos
nossas próximas dinâmicas através do mundo das emoções, bus-
cando primeiramente saber o que as meninas conheciam sobre
seus sentimentos. Na tentativa dessa análise, busca-se a escuta
primordial, ouvindo suas explicações, individualmente, quando
imposta a pergunta “o que era aquela tal emoção para si”?
Buscando dar a devida importância às emoções que mais fa-
ziam parte desse mundinho infantil presente, iniciamos as vivên-
cias através da Arteterapia, abordando uma por vez as emoções
como: tristeza, raiva, ansiedade, amor, alegria e medo, entre ou-
tras. As emoções que mais criaram impactos, tanto em nível emo-
cional como de entendimento, foram tristeza, raiva, ansiedade e
o amor, que serão abordados a seguir.

Tristeza
O que é a tal da tristeza, porque ela aparece de repente, o que
se sente quando ela chega e como entendê-la?

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As crianças atendidas percebiam que sentiam algo que não era
legal e que as incomodava, mas não sabiam exatamente distinguir
a tristeza dos outros sentimentos, como chateação, raiva e tam-
bém angústia eventuais. Achavam que ficar triste era algo chato
e às vezes não podiam demonstrar para os outros; tinham um
entendimento de que esse sentimento não deveria existir.
Muitas coisas as deixavam tristes, como a palavra pandemia e ela
em si, o fato de terem que ficar em casa e não ir para escola, não po-
der abraçar as pessoas, não poder ir à casa do amigo, não ter liber-
dade. Era tudo muito triste e o grau dessa tristeza estava alto demais.
Levando-se em conta que elas ainda estão em pleno desenvolvi-
mento emocional e um turbilhão de fatos acontecendo ao mesmo
tempo, a orientação de um terapeuta nesse sentido e neste mo-
mento possibilita um caminho orientado com maior segurança e
criando autonomia.
Utilizando das mais diversas técnicas em Arteterapia, optou-se
pelo uso da Musicoterapia e da Biblioterapia como disparadores
das atividades. Após o diálogo inicial, as irmãs escutam o conto em
animação “A Alegria e a Tristeza”, através do canal no YouTube
“De criança para criança”. Esse conto apresenta um diálogo lúdi-
co que já faz menção ao significado do estar triste, comparando
com os simbolismos da natureza, lágrimas com a chuva e o seu
contrário, alegria com o sorriso do sol. Essa simbologia já vai tra-
zendo um sentido mais concreto dos seus sentimentos, saindo do
imaginário, trazendo a percepção do pertencimento a um mundo
como um todo.
Da Biblioterapia foi utilizado o livro “Tristeza”, da coleção Sen-
timentos (FERREIRA, 2012), que constituiu na contação de história
narrada, a qual ativa pequenas reflexões e cria interação lúdica
entre os participantes.

66 | Contos e Mitos em Arteterapia


Na primeira parte do livro, é apresentado o que é a tristeza
e como ela surge. No meio, o autor fala um pouco mais de sua
complexidade e é nessa parte que se faz a primeira interrupção e
é solicitado às crianças identificar essa emoção através do recorte
e da colagem, buscando em revistas imagens de palavras tristes
ou pessoas tristes, para depois serem coladas nas extremidades de
uma folha de papel sulfite, deixando o meio livre. Elas demonstra-
ram figuras de pessoas e lugares bem feios e tristes e até estrela
com carinha de triste. É nesse momento que aquele sentimento
internalizado das irmãs se confronta com imagens expostas e elas
vislumbram o seu pertencimento ao grupo.
A colagem é um facilitador inicial no processo arteterapêutico in-
fantil; é simples, ordena e integra, faz parte dessa técnica uma con-
figuração simbólica muito rica. Para Angela Philippini (2009, p. 24)
“as colagens nos dão pistas simbólicas, não só através da natureza
das imagens escolhidas em uma composição, mas também através
da relação entre figuras, pela presença de polaridades cromáticas
(policromia e monocromia), pela posição e forma de ocupação no
suporte, pelo modo como se movimentam e se relacionam entre si
as imagens”.

A narrativa da última parte do livro elucida que a tristeza é uma


emoção compreensível, é natural e normal senti-la e podemos
transmutá-la positivamente.
Ao perguntar às meninas o que elas poderiam fazer para deixar
aquelas pessoas tristes mais felizes, elas responderam que pode-
riam falar algo de bom para elas, e foi o que fizeram. No meio da
folha escreveram mensagens positivas e desenhos alegres, tudo
colorido, acolhendo e ressignificando a tristeza. Pintaram sorri-
so nas bocas tristes das pessoas e escolheram o sol como uma
imagem para alegrar aquelas caras tristes, desenhando-o bem ao
meio e deixaram todos felizes (Figura 1).

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Durante o seu ressignificado, elas entenderam que a tristeza faz
parte das emoções, é normal senti-la e deve-se, sim, manifestá-la
e, quando ocorrer, podemos falar com alguém, buscar saber o
que está causando aquilo. Entenderam também que chorar traz
alívio (até a natureza chora com a chuva), assim como fazer algo
para se alegrar, como ouvir música, rir, ter pensamento positivo e
abraçar alguém.
A sessão desse dia foi concluída com a frase que elas mesmas
criaram:
“Sem a tristeza não se consegue conhecer a alegria”.

Figura 1: O sol como símbolo da alegria

Raiva
A raiva é muito presente no dia a dia das emoções e quando ela
surge toma conta de todas as outras. Ela é uma emoção bem ho-
nesta, chega com tudo e não tem como esconder, fica estampada
na cara, às vezes até cobre o rosto de vermelho. A pessoa fala o
que não quer falar, não pensa direito e nem reflete, perdendo o
controle inúmeras vezes.

68 | Contos e Mitos em Arteterapia


Ao questionar as irmãs sobre esse sentimento, a resposta que
surgiu foi intrigante: “A raiva é feia, temos que segurá-la”. Claro,
não se pode sair por aí batendo o pé, mas ela é mesmo feia? Tem
que escondê-la? Não há um jeito de expressá-la sem causar pânico?
E no intuito de buscar uma compreensão melhor sobre esse
sentimento para essas crianças, foi utilizado nessa sessão o livro
narrado “Raiva”, coleção Sentimentos (FERREIRA, 2012).
A raiva, disseram, surge quando não gostam de alguma coisa
que fizeram para elas, na escola, na rua, na família, ou quando
são contrariadas. Também achavam que essa emoção tem um ca-
ráter perigoso, porque dá vontade de bater, de agredir, de gritar,
e não conseguem se segurar.
A atividade artística desse dia foi encontrar uma cor que combi-
nasse com a raiva e, claro, não deixou de ser a cor vermelha. Elas
conseguiram identificar essa comunicação visual da cor dentro do
processo arte- terapêutico, uma cor forte e vibrante que está liga-
da a um sentimento impulsivo, baseado nos estudos de Chevalier
& Gheerbrant (1998).
Outra atividade proposta foi fazer uma careta usando massinha
de modelar (Figura 2), moldando sua raiva. E nesse momento,
além de fazerem a modelagem, elas extravasaram um pouco de
raiva contida até mesmo batendo no material com pequenos so-
cos. Gerou-se um momento de liberdade de expressão, sem cul-
pa, sem travas, sem condenação.
E assim, nesse contexto, elas começam o entendimento de que
é normal sentir raiva, extravasar, por para fora, mas com ela pode
vir a violência e é aí que devemos tomar cuidado e não bater, não
xingar, não empurrar. Ficou claro que não há problema algum
com o sentimento, mas quando o sentirem devem falar que não
estão gostando daquilo e tentar falar com alguém.

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Após entenderem o que é e como se sentem quando estão rai-
vosas, foram impostos os questionamentos sobre o que poderia
ser feito na busca da calma? E chegaram às seguintes respostas:

“Parar , respirar fundo, pensar, respirar


novamente, contar até 10”.

“Não ficar o dia inteiro com raiva, não guardar a


raiva no coração, vai fazer mal, te deixar ruim”.

Terminamos com a frase:


“Sentir raiva é normal, mas agir com raiva não é legal”.

Figura 2: Modelando a raiva com massinha

Ansiedade
Em um outro encontro falamos sobre a ansiedade cada vez mais
presente no mundinho das crianças, em particular nessas irmãs
que já apresentam esse quadro, conforme relatado anteriormen-
te. Ansiedade em si não é um sentimento ruim, ela nos alerta ao
perigo, mas a sua intensificação ou não ter controle sobre ela
torna-a desagradável. As crises de ansiedade afetam diretamente

70 | Contos e Mitos em Arteterapia


o desenvolvimento emocional da criança, trazendo uma sensação
de insegurança perante atividades comuns do dia a dia.
E, como não podia deixar de ser, ao questioná-las sobre quando
elas sentiam maior ansiedade, a resposta foi unânime: perante
as provas da escola. Mas não ficou só nisso. Elas acabaram de
mudar para uma escola nova e esse fato do não pertencimento a
um grupo novo estava causando muita ansiedade. Agora, o que
mais chamou atenção mesmo foi elas relatarem que quando não
tinham nada para fazer, ou seja, momento de férias, momento de
relaxamento, de ócio, as deixavam extremamente ansiosas porque
não tinham objetivos. Sim, a nova geração é muito acelerada,
esse momento do descanso tem um significado totalmente di-
ferente de outros tempos. Se antes era um tempo precioso para
buscar a calma, agora, na visão dessa nova geração, é um tempo
se perdendo, inútil. A ansiedade conduz a pessoa a sempre viver
no futuro, deve-se trabalhar nessa inquietação, buscando cone-
xão com o aqui e o agora, o viver no presente.
A dinâmica se deu através do uso do livro “Ansiedade”, da
Coleção Sentimentos (FERREIRA, 2012). A narrativa apresenta o
que é, como ela surge, e o que devemos fazer para conseguir seu
controle. Ela também explica alguns sintomas físicos que a an-
siedade causa no corpo e que foram totalmente ao encontro das
respostas das meninas. Quando, primeiramente, perguntou-se se
ao sentirem ansiedade elas percebiam alguma reação física, rela-
taram: pulsação, aceleração no coração, enjôo, ânsia, tremedeira,
pés e mãos suados e pesadelos.
Usando uma folha de papel sulfite em branco, elas fizeram o
desenho de um corpo e, no seu interior, com pedaços de EVA
cortado, conseguiram identificar os locais onde elas mais sentiam
ansiedade (Figura 3). Nesse brincar com o desenho se explora a

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emoção que vai se refletindo naquela imagem, surgindo um es-
tímulo cada vez mais lúdico, com muita sensibilidade, para de-
monstrarem o que sentem no seu interior, que às vezes é tão
difícil expressar verbalmente. Por meio dessa atividade as meninas
tomam consciência que emoções e pensamentos estão conecta-
dos ao próprio corpo.
A partir dessa sessão, as crianças já começaram a perceber me-
lhor a dinâmica das emoções. Elas mesmas falaram que se sentem
isso no corpo delas e que todo mundo tem um corpo, então as
emoções são gerais, fazem parte do ser humano. Aqui também,
durante nossas discussões, elas expuseram que todos os senti-
mentos fazem parte da vida, que eles vêm e vão, e é só saber
como lidar com aquilo que está acontecendo.
O encerramento desse momento se deu de uma forma apazi-
guada, com um relaxamento corporal, no qual as próprias crian-
ças instigaram o respirar fundo, o espreguiçar e o ouvir música
para controlar a ansiedade.

Figura 3: Onde meu corpo sente ansiedade

72 | Contos e Mitos em Arteterapia


Amor
Quando o amor reinou foi uma emoção geral. Ele é um senti-
mento que transmite carinho, afeto, leva uma pessoa a desejar
sempre o bem para outra. Difícil explicá-lo em palavras, mas em
atitudes sempre é bem perceptível e é nele que se busca toda
a força para se enfrentar as diversas situações. A base de uma
família está no amor e elas o expressam de uma maneira muito
singular, sem utilizar de palavras, por meio de gestos e carinhos.
O amor é um sentimento poderoso, crianças amadas se sentem
mais seguras, confiantes, com melhor autoestima e se tornam
adultos amorosos.
Essa emoção foi fácil de ser identificada no dia a dia das irmãs.
Elas estavam rodeadas por ele, porém um fato recém acontecido
as perturbava e a relação de amor seguro ficou estremecida. A
recente separação dos pais as deixou abaladas e com muito medo
de perder o amor por parte de algum deles.
Na prática desse dia foi proposto fazerem recortes de revistas,
identificando o amor nas imagens e escreverem algumas palavras
amorosas, frases instigando uma escrita criativa.
Como forma de materializar esse sentimento, elas moldaram
com massinha de modelar o amor e simbolizaram corações em
forma de balão (Figura 4), que disseram ter sido um presente que
o pai teria dado à mãe em alguma ocasião. Percebe-se que as
crianças já haviam absorvido o sentimento por meio da visualiza-
ção de um simples ato de carinho entre os pais, mas ao simbolizar
aquilo novamente, teve um significado muito maior a ambas, não
somente um exercício em si, mas a lembrança de um momento de
união muito especial entre os familiares, o que trouxe como sig-
nificância que, mesmo os pais estando separados, houve ou ainda
há o sentimento de amor em torno da família.

| 73
Por fim, em uma forma de brincadeira, as meninas fizeram uma
outra atividade, um recorte numa folha em formato de coração e
colaram algodão sobre ele (FIGURA 4) e uma passou no rostinho
da outra, com amorosidade, ao som de uma música tranquila, com
os olhos fechados e recebendo muito amor reciprocamente. A di-
nâmica foi estendida para utilizarem com os demais familiares.
Dia cheio de coração, símbolo universal do amor, elas se en-
tregaram de alma e ficaram muito emocionadas com a dinâmica.

Figura 4: Lembranças de manifestação do sentimento amor

Caminhos a seguir
O resultado deste trabalho de campo em Arteterapia com crian-
ças se demonstrou muito benéfico e satisfatório. A eficácia da in-
tervenção da Arteterapia buscando o equilíbrio emocional dentro
do contexto infantil foi totalmente garantida e ela se verificou em

74 | Contos e Mitos em Arteterapia


todas as atividades plásticas expressivas. Essa autoexpressão das
crianças por meio dos trabalhos artísticos foi transformadora, ati-
vando simbolicamente conceitos que antes não eram conhecidos
por elas.
As mudanças ocorridas, as transformações, e o crescimento du-
rante todo esse tempo proporcionou a elas uma segurança maior
para o enfrentamento da vida, e junto dela uma maior flexibilida-
de de pensamentos.
Pode-se dizer também, que as músicas selecionadas e a Biblio-
terapia utilizada foi de fundamental importância para abertura
dos caminhos onde as crianças conseguiam se conscientizar das
emoções presentes, relacionando com seus comportamentos indi-
viduais liberados ou involuntários.
Ao término, as crianças já estavam aceitando com mais natu-
ralidade situações que antes eram vistas como indesejáveis e não
compreendidas como naturais. Seus níveis de ansiedade ficaram
mais controlados e, por fim, elas mesmas conseguiam sentir quan-
do algo não ia bem e poderia desencadear uma crise, e por meio
de algumas técnicas aprendidas nas sessões de Arteterapia, elas
as utilizavam buscando um melhor bem-estar emocional.
E foi assim que a Arteterapia demonstrou a sua importância e
o seu dinamismo por meio de um cuidado entre a arte e o amor.

| 75
Referências

BEDRAN, Bia. Desengonçada. in: A Caixa de brinquedos da Bia. Rob Digital. 2004. 1 CD.
Faixa 11 (3 min 59). Disponível em https://www.letras.mus.br/bia-bedran/561347/
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Olympio, 1998.
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https://www.youtube.com/watch?v=woWH_HGjrlA.
FERREIRA, G. Fabio. Tristeza - Coleção Sentimentos, Ed. Cedic - 1ª ed, 2012. Disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=Nfe6_V73MUs.
FERREIRA, G. Fabio. Raiva - Coleção Sentimentos, Ed. Cedic - 1ª ed, 2012. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=HOeDdDLaZEo
FERREIRA, G. Fabio. Ansiedade - Coleção Sentimentos, Ed. Cedic - 1ª ed, 2012 disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=KDykQEACmLU.
FERREIRA, G. Fabio, Amor - Coleção Sentimentos, Ed. Cedic - 1ª ed, 2012. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=wXRot9dV78Y.
JUNG, C Gustav. O homem e seus Símbolos. 13ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1964.
MACHADO, B. Colagem o olhar terapêutico: recurso da arteterapia, UCAM. Londrina:
Inesul, 2020
PHILIPPINI, Ângela. Universo Junguiano e Arteterapia in Revista Imagens da
Transformação – Vol. II. Rio de Janeiro: Clinica Pomar, 1995.
PHILIPPINI, Ângela. Cartografias da coragem. Rotas em arteterapia. Rio de Janeiro:
Pomar, 2000.
PHILIPPINI, Ângela. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: uso,
indicações e propriedades. Rio de Janeiro: Wak, 2009.
VALLADARES, A. C. A. Arteterapia cores da saúde. Anais da I Jornada Goiana de
Arteterapia. Goiânia: UFG/ ABCA, p.11-17, 2001.

76 | Contos e Mitos em Arteterapia


Resgatando Raízes:
entrelaçamentos da
mitologia afro-indígena

Ana Carolina Sá Faria[1]


Bárbara de Oliveira Rodrigues[2]
Jéssica Lane S. dos Reis Brito[3]

[1] anacarolina.sadefaria@gmail.com

[2] barbaraoliveira.arte@gmail.com

[3] jessikamoshi@gmail.com

Raízes Ancestrais

N os formamos enquanto grupo através do interesse em


trabalhar com mitos, histórias e contos de origem afri-
cana e indígena. Essas histórias nos conectam com nossas raízes
pessoais e da população brasileira como um todo em graus dife-

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rentes. Por se tratar de uma população miscigenada, temos em
nossa árvore genealógica o DNA e os elementos culturais desses
grupos que são a base do nosso país, muitas vezes apagadas pelo
processo de colonização.
Com o desejo de quebrar com o olhar eurocêntrico, que é o
olhar do colonizador, priorizamos resgatar a sabedoria ancestral
passada pelos “Griôs” africanos e pelos anciãos dos povos origi-
nários na transmissão oral de conhecimento por meio da conta-
ção de histórias. Por acreditar no poder curativo das histórias e na
sua capacidade de transportar os indivíduos para uma viagem em
contato com seu inconsciente e com o inconsciente coletivo cons-
truído por sua comunidade, selecionamos mitos e contos para
servirem de disparadores no atendimento arteterapêutico a um
grupo de mulheres.
As histórias foram escolhidas durante o processo em que se da-
vam os encontros, pois se baseavam nas questões trazidas pelas
integrantes do grupo conforme as sessões anteriores. Por meio da
representação dos arquétipos presentes nos mitos dos orixás afri-
canos e nas personagens das lendas e mitos indígenas, executamos
práticas de transposição de linguagem com um grupo de cinco
mulheres, ligadas à educação, uma vez por semana, em encontros
online de duas horas de duração pela plataforma Google meet.
Vimos nessa abordagem a oportunidade de desdemonizar os
orixás e tudo que faz parte de um panteão que não é branco,
elitizado e eurocêntrico. Tirando o véu da ignorância, conseguiría-
mos proporcionar as identificações e autorreconhecimentos das
participantes com atitudes, emoções e sentimentos vividos pelas
personagens diante de situações adversas.
Assim como os deuses gregos e romanos, que em seus mitos
tomam atitudes mundanas tomados pelas paixões e pela ira, as

78 | Contos e Mitos em Arteterapia


divindades africanas e indígenas retratam os questionamentos
existenciais e toda a humanidade presente em nós mortais. Emo-
ções primitivas como o ciúme, a raiva, a inveja, diversas outras
apareceram, sendo possível nomeá-las, identificá-las e assumi-las.
Ao se colocar em diversos papéis, ora causador do conflito, ora no
papel da vítima, lidar com a vergonha, o medo do julgamento e
do olhar do outro, foram alguns dos pontos refletidos pelo grupo
após externalizar essas questões em produções plásticas.

O fazer artístico, o resgate de si e as


potencialidades individuais
Acredita-se que as manifestações artísticas tenham se origina-
do, na pré-história, através dos mitos e rituais que o ser humano
criou tentando entender sua existência e sua relação com a natu-
reza. Existia uma relação mágica nessa conexão e o fazer artístico
era uma extensão da existência humana, um ritual que a conecta-
va ao mundo e aos fenômenos da natureza.
Ainda hoje, através dos mitos e do fazer artístico, é possível
pensar nas atitudes dos sujeitos e como eles se percebem dentro
de uma sociedade. Por se tratar de uma ferramenta atemporal, os
mitos conseguem acessar o inconsciente individual, independente
do passar dos séculos, proporcionando a reflexão de si e do outro
dentro das relações sociais. Conforme Prandi (2001):
[...] Na sociedade tradicional dos iorubás, sociedade não histórica, é
pelo mito que se alcança o passado e se explica a origem de tudo, é
pelo mito que se interpreta o presente e se prediz o futuro, nesta e
na outra vida. Como os iorubás não conheciam a escrita, seu corpo
mítico era transmitido oralmente (PRANDI, 2001, p. 24).

Assim, nos processos arteterapêuticos, os mitos foram os ele-


mentos desencadeadores para trazer à tona as questões a serem

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trabalhadas. Quando as participantes se interrogam sobre o valor
da existência individual, se deparam com a importância das rela-
ções humanas, e com os mitos que apresentavam situações de
conflitos, e que a partir da união e integração dos elementos, há a
superação dos desafios, resultando em um processo de aprendiza-
dos e passagens de lições culturais. Sendo assim, apontavam para
uma melhor possibilidade de entendimento dessas relações, apro-
ximação com a natureza e o resgate dos valores ancestrais africa-
nos e indígenas, exteriorizados através da criação e fazer artístico.

Meu cantinho preferido


“Meu cantinho preferido é dentro de mim
Onde encontrei liberdade de expressão
Onde acesso criatividade e invenção
Meu cantinho preferido é um rio
Fluido, constrange e largo
De água doce, sem saber o amargo
Meu cantinho preferido é só meu
Um lugar secreto e seguro
Onde consigo lutar comigo
Sem construir muitos muros
Meu cantinho preferido é minha mente
Onde a loucura faz sentido
Onde cultivo sementes
Meu cantinho preferido é meu lar
Que não precisa de casa para existir
Basta eu me sentir lá
Meu cantinho preferido traz segurança
Independente de onde esteja, de quem for, do que seja

80 | Contos e Mitos em Arteterapia


Vivem famílias, velhos e crianças
Meu cantinho preferido é meu ser
Meu canto, meu tudo pertencer
Meu cantinho preferido eu desbravo caminhos
Sigo pegadas, ouço palavras, pois sei que não sigo sozinho”.
AMETISTA[4] , 2021

Quando pensamos em raízes, automaticamente a relacionamos


com a terra, pois é ela que serve de sustentação para que as
sementes germinem, recebam os nutrientes necessários para se
desenvolverem e crescerem, fortes e saudáveis. Nossa terra natal
simbolicamente também é o solo em que nascemos, crescemos,
nos desenvolvemos e nos nutrimos com a cultura e os ensina-
mentos transmitidos por nossos antepassados. Essa cultura rica de
mitos, lendas, crenças e costumes, perpassa a nossa constituição
enquanto sujeitos, sendo o adubo que influencia na construção
da nossa identidade.
Foi a partir do elemento terra que iniciamos a busca individual
e coletiva das participantes no encontro com elas mesmas, na ten-
tativa de descobrirem quem são, reconhecendo-se em cada etapa
desse processo de imersão em conteúdos inconscientes e de trans-
formação através da arte. Assim como as árvores, estamos numa
troca constante com o ambiente em que estamos inseridos, é nessa
interação que aprendemos a ser quem somos, passando por mu-
danças constantes de acordo com os ciclos da vida e nos renovando
a cada instante. Nesse sentido, conforme simboliza SANTO (2010):

[4] Nome fictício de participante do grupo.

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[...] Desde a raiz que prende vigorosamente aquele ser vivo a terra,
passando pelo caule que lhe dá suporte e serve de caminho para a
alimentação, estendendo-se verticalmente como estaca em direção
ao céu, continuando pelas folhas que intercambiam o efêmero fa-
zendo, pelo processo de respiração que promovem, a troca contínua
com o meio ambiente, até os frutos - continentes das sementes, as
reiniciantes do ciclo da vida - toda árvore (madeira, alimento, sei-
va, sombra, suporte) é só doação e generosidade. Ela é o próprio
exemplo e símbolo do servir, do entregar-se, do integrar-se ao Todo
(SANTO, 2010, p. 29).

Verificamos que o mito e o fazer artístico funcionam como uma


ponte que nos facilitou esse acesso, uma conexão à bagagem
pessoal de cada uma das participantes, trazendo à tona suas fra-
gilidades, necessidades e objetivos a serem alcançados. A ressig-
nificação do mito se dá quando cada uma o interpreta dentro do
seu mundo particular e o externa através do fazer artístico. Na
busca dessa ação do eu, foi realizada a proposta para o retorno às
suas origens, sendo o primeiro passo para a identificação do ego:
a nomeação. A busca pelo significado de seu nome e sobrenome,
relacionando ao momento em que se deu início a sua vida, o pri-
meiro ambiente que o acolheu como se realmente é.
Como não vivemos sozinhos, mas sim em sociedade, após passar
por esse processo de individuação, é preciso passar por um perío-
do de identificação da grupalidade, onde nos sentimos acolhidas e
conseguimos fazer trocas, a busca pela sensação de pertencimen-
to. De acordo com STEIN (2000), Jung usou o termo individuação
para falar sobre desenvolvimento psicológico, que ele define como
o processo de tornar-se uma personalidade unificada mas também
única, um indivíduo, uma pessoa indivisa e integrada.
Uma atividade artística coletiva interliga o inconsciente particu-
lar ao inconsciente coletivo, possibilitando uma reflexão sobre o
Todo, as relações sociais, a natureza e de que forma essas relações

82 | Contos e Mitos em Arteterapia


com o externo e interno (do outro) são refletidas em nossas ati-
tudes diante de desafios, conquistas e afetos. Para realizar trocas
seguras, além do contrato grupal, foi-se estabelecendo atividades
de sensibilização e aproximação das partes desse grupo, uma de-
las sendo a atividade de produção de uma imagem representativa
do grupo: o totem (Figura 1).
Durante a produção do totem do grupo, que ocorreu virtual-
mente por meio da plataforma Witeboard, cada participante con-
tribuiu desenhando elementos distintos que inicialmente aparen-
tam não terem relação entre si, mas ao verem o resultado final,
puderam notar que apesar de não se conhecerem ainda, estavam
ligadas ou tinham mais em comum do que pensavam. Apesar de
suas particularidades, as participantes estavam naquele momen-
to se constituindo enquanto grupo, vendo representados em seu
“brasão” elementos simbólicos do inconsciente coletivo.

Figura 1: Tótem/Brasão Grupal

| 83
Pensar, sentir, agir e o elo sagrado com a natureza
Na mitologia africana e indígena, o respeito e o equilíbrio com a
natureza estão presentes como uma relação sagrada para a sobre-
vivência de qualquer ser. Com a devida importância, trouxemos
para o processo arteterapêutico atividades artísticas que envol-
viam mitologias que abordavam os quatro elementos (terra, ar,
água e fogo), desafiando e motivando as participantes a equilibra-
rem suas emoções e sua conexão com os elementos da natureza.
Oxum é uma orixá de origem africana relacionada às águas do-
ces, mas que também representa a sabedoria e o poder feminino.
No mito “Oxum é transformada em pavão e abutre”, Oxum vira
pavão para intervir ao castigo dado por Olodumare aos orixás
que se rebelaram contra ele. Como todas as tentativas anterio-
res tinham fracassado, Oxum foi hostilizada pelos outros orixás,
que riram e duvidaram de sua capacidade em conseguir o perdão
de Olodumare. Oxum passa por vários desafios e obstáculos, que
vão machucando-a de forma a perder toda sua beleza de pavão,
até tornar-se um abutre em estado miserável. Porém, apesar de
todo sacrifício, consegue chegar ao Senhor Supremo, consegue
seu perdão e tornar-se seu mensageiro-abutre.
A atividade proposta com base nesse mito foi passar uma folha
de papel sulfite no corpo, como se o limpassem das angústias,
pesos e sobrecargas que carregam nele, ao mesmo tempo em que
se entregavam à sensação do papel amassado em contato com o
corpo. Depois, encontraram, diante das marcas, sua renovação,
algo que queriam transmutar, ou seja, transformar em algo di-
ferente. Com o mito e atividade, percebemos nas participantes
a compreensão da força surpreendente que ultrapassa o corpo
físico e questionamentos sobre o valor da própria existência; elas
trouxeram reflexões relacionadas ao sacrifício feminino necessário

84 | Contos e Mitos em Arteterapia


para a conquista e louvor, sempre tão presentes nos mitos e no
cotidiano de cada uma delas, porém, também trouxeram conten-
tamento em estar mais perto de quem realmente são, sabendo
um pouco mais do seu mundo interno e buscando o renascimento
através da transmutação. Uma delas partilha:
Desenhei pássaros, gaivotas, um círculo amarelo em homenagem a
Oxum, seu calor e amor, com raios vermelhos para aquecer. Busco
minha liberdade interna, me aceitando com as imperfeições e “ras-
gos”. Senti meu coração aquecido, sem a necessidade de algo exter-
no para me sentir bem (GAIVOTA[5], 2021).

No fechamento, jogaram para o ar palavras positivas que repre-


sentavam a sensação depois das vivências e partilhas.
O ar é o elemento essencial para a vida, é o oxigênio que preen-
che nossos pulmões e transporta o sangue em nossa corrente
sanguínea. Quando paramos de respirar, nosso coração deixa de
bater, deixamos então de existir. Todos os seres vivos dependem
dele, sejam plantas, animais ou seres humanos. O ar está relacio-
nado ao mundo das ideias, nossos pensamentos, nossa capacida-
de de abstração e poder de comunicação. Sem ar nos sentimos
sufocados, é assim que se sente um indivíduo sem seu próprio
espaço, seja espaço para pensar, sonhar, falar ou criar.
A escrita criativa foi uma ferramenta que possibilitou uma ma-
neira de organizar seus pensamentos de forma livre, sem a co-
brança de seguir regras e/ou uma estrutura pré-determinada. Ao
deixar com que as palavras surgissem espontaneamente, surgiram
textos carregados de poesia e simbolismo.

[5] Nome fictício de participante do grupo.

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Não se pode controlar o fluxo da água, assim que ela jorra na
nascente segue seu caminho em busca de seu destino, seja ele
uma cachoeira, um rio ou o mar. Assim também ocorre com o
fluxo da vida, cada indivíduo tem seu caminho a percorrer, po-
dendo fazer escolhas que o levarão até seu objetivo. As emoções
são como as águas, ora são calmas e cristalinas, ora são revoltas
e turvas. Podemos tentar controlar a nós mesmos, nossas esco-
lhas e nossas ações diante dos outros, mas a tentativa constante
e desenfreada de ter esse controle pode acarretar num distan-
ciamento de si mesmo, fazendo com que não se compreenda as
próprias emoções.
Executar atividades ligadas ao elemento água foi uma tentativa
de aproximar as participantes de seus sentimentos mais íntimos,
aflorando sua sensibilidade e imaginação, convidando-se para
mergulhar em suas emoções, em contato com sua subjetividade.
Algumas participantes, através do mito e atividade proposta, uti-
lizando materiais como a pintura com tinta guache que promove
essa fluidez, trouxeram interpretações quanto aos valores e blo-
queios internos que tinham enraizados sobre o choro “não ser
bonito” ou precisar ser “contido”, conseguindo desbloqueá-los e
ressignificar essa concepção. A perda do controle foi algo trazido
como um incômodo, logo, serviu como um ponto que as coorde-
nadoras do grupo resolveram trabalhar.
A Mãe D’Água é uma representação da sereia dentro da cultura
indígena. Ligada ao elemento água, pode simbolizar o poder do
sagrado feminino, a purificação e a cura das emoções. Os Encan-
tos da Mãe d’água, escrita e contada por Cristiane Crispim, que
narra as aventuras de Heloísa, menina esperta, cheia de sonhos,
que descobre a força e os encantos da Mãe d’água, foi um divisor
de águas durante o processo arteterapêutico, escolhida após o

86 | Contos e Mitos em Arteterapia


apontamento das participantes sobre a constante aparição do sa-
crifício feminino nos mitos e lendas apresentados nos encontros.
A história serviu de disparador para uma atividade com tinta gua-
che dividida em três etapas: pintura com barbante, pintura com
guache diluída e pintura com respingos (Figura 2). Uma das inte-
grantes trouxe para o grupo percepções da atividade realizada:
[...] Gostei muito de fazer a atividade da pintura com barbante, gosto
do efeito obtido no “não controle” sobre as formas, sobre o que vai
acontecer, e o resultado de onde os pinguinhos vão cair. Na arte me
sinto segura em não ter o controle das coisas e não ter o controle
dos resultados. Acho que fica muito mais bonito e natural. Talvez eu
deva adotar esse pensamento para a minha vida também, em todos
os aspectos. (VENTO[6], 2021)

Figura 2: Guache diluído e barbante

[6] Nome fictício de participante do grupo.

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Ao descobrir o fogo, o homem conseguiu vencer a escuridão.
Com o fogo ele conseguiu cozinhar seus alimentos, se aquecer
em dias frios, espantar animais selvagens e contar histórias em
volta da fogueira. O fogo é o elemento das paixões, é ele que nos
impulsiona, que nos dá energia e gera o dinamismo na vida. Está
ligado à intuição, à criatividade, ao futuro e à capacidade de ser.
Ser é arder, algo tão importante quanto sentir, saber e fazer.
Oya é considerada a Deusa guerreira, senhora dos ventos e
tempestades, dona do poder do fogo, junto de seu marido Xan-
gô. A figura de Iansã está ligada à força e ao empoderamento
feminino, pois não tem medo de se arriscar e mudar de direção
quando necessário, aprendendo a dominar todos os poderes de
seus maridos. Pensando nessa força e nesse poder de transmuta-
ção, trabalhamos o poder do elemento fogo e sua capacidade de
cura, tendo o mito “Oyá usa a poção de Xangô para cuspir fogo”
como elemento disparador para uma atividade de pintura com giz
de cera derretido na vela (Figura 3). Algumas participantes relata-
ram sentir irritação e desconforto durante a execução da pintura,
atribuindo à falta de controle do giz derretido o motivo de tanto
incômodo. O trabalho com o fogo trouxe à tona essa sensação de
descontrole e permissão para o erro, ativando a capacidade de
adaptação dos ambientes familiares e profissionais, trazidos pelas
participantes durante a reflexão no compartilhamento do término
da atividade.
Outras relataram ter se conectado com a chama da vela, o que
permitiu maior introspecção em um diálogo consigo mesmas. A
energia resultante do elemento fogo provocou nas participantes
o encorajamento para enfrentar as mudanças e desafios do dia
a dia, fazendo emergir o simbolismo da heroína que encara suas
fraquezas de forma honesta e otimista. Também levou luz à escu-

88 | Contos e Mitos em Arteterapia


ridão, proporcionando vitalidade e lucidez para agirem com sere-
nidade e força. O que todas relataram em comum foi a percepção
de que é necessário abrir mão do controle em algumas ocasiões,
deixando as coisas fluírem naturalmente, se permitindo sentir e se
abrindo para novos processos de transformação.

Figura 3: Pintura com giz derretido

Com isso, foi possível trabalhar os medos e as incertezas in-


ternas. As participantes trouxeram dúvidas sobre os caminhos a
serem trilhados, sendo o maior deles a questão temporal: futuro
e envelhecimento.
Transitar pelos quatro elementos é ir ao encontro com o que há
de natureza em nós, permitindo resgatar aspectos do nosso ser
que pareciam esquecidos. Ver, ouvir, sentir, tocar... numa viagem
de dentro para fora, buscando no mais íntimo, na essência de
cada um, as respostas que tanto anseia, em um processo de indi-
viduação constante que só termina no nosso último dia de vida.

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Brincadeira de criança...como é bom!

É importante o reconhecimento de que nosso corpo precisa de amor,


e saber lidar com ele não é segredo, só requer criatividade e sereni-
dade para deixar a vida fluir através dele, coisa que não fazemos por
medo de agir. Agir com espontaneidade é uma forma de se libertar
desse controle que sofremos e impomos ao nosso corpo. No final,
tudo se resume a voltar a ser criança, só assim teremos empatia por
nós mesmas (CISNE[7], 2021).

A criança brinca, pula, se suja, corre, cai, nada, escala, cai de


novo, tropeça, ri, dança, joga, esconde, pega, sente, descobre... e
aprende. Esse é o propósito. Conforme crescemos, perdemos essa
energia vital do descobrimento, o jogo de aprendizagens e erros,
tão importante para o nosso amadurecimento. Muitas vezes, nem
nos recordamos quando exatamente paramos. Mas há um ponto
em que há essa parada. Seja por medo, vergonha ou rejeições,
há esse bloqueio que vira uma dificuldade de lidar com nossas
feridas. O negativo disso é que com esse bloqueio, é interrompido
esse fluxo de criatividade e espontaneidade que a criança tem.
Como aceitar os nossos defeitos? E os defeitos dos outros?
Ativando os cinco sentidos com o processo arteterapêutico foi
proposta a retomada desse ponto para levar as participantes a
identificar feridas que geraram frustrações e possibilidades de
cura para lidar com elas, aceitação do eu, renovação dos sonhos,
fantasias e afetos perdidos.
Quando se é criança, muitas vezes acredita-se em monstros que
vivem no escuro, mas que desaparecem assim que a luz se acende.
Conforme vamos crescendo os monstros vão tomando forma

[7] Nome fictício de participante do grupo.

90 | Contos e Mitos em Arteterapia


representam feridas ainda não cicatrizadas. Não é preciso muita
coisa para que os medos e traumas do passado ressurjam como se
nunca tivessem ido embora. Nos vemos pequenos, frágeis e insegu-
ros diante de desafios que parecem assustadores e impossíveis de
superar. Nossa criança espera ser olhada e cuidada com o amor e a
atenção que lhe são de direito, mas que por vezes foram negados.
O processo arteterapêutico foi um convite para cada participan-
te resgatar sua criança interior, olhando para toda a potenciali-
dade que ela carrega na tentativa de trazer para a consciência o
grande poder de cura individual. Além disso, como numa brinca-
deira de roda, suas crianças deram as mãos umas para as outras
numa troca empática que foi o combustível para proporcionar
uma experiência de cura coletiva.
Realizou-se a atividade de pinturas livres com pipoca (lúdico) e
direcionadas com tinta, selfbox, retomada de objetos, músicas e
outros elementos culturais daquela época.
Movimentando lembranças felizes da infância, visamos resgatar
aspectos positivos da trajetória de vida das participantes, para
que elas reconheçam momentos importantes dessa época que as
marcaram e que foram fundamentais para que elas se tornassem
quem são hoje.

Temos nosso próprio tempo...

No meu caminho há desafios, às vezes esqueço quem sou, mas nesse


caminho encontro pessoas, encontro arquétipos que como um estalo
me lembram ao que vim. Me encontro em meu interior, mergulhada
no amor de quem sou. Nesse caminho há processos tão profundos
que não consigo explicar essa sensação, mas sinto que estou no ca-
minho certo, no caminho do meu Eu, pois nele encontro a beleza de
existir na luz que o divino nos proporcionou (LUZ[8], 2021).

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A experimentação de lidar com as contradições de uma ida-
de em que nada está garantido e tudo está se transformando é
intensa, desesperadora e se revela um grande complicador caso
não haja apoio – e mesmo que haja, muitas vezes sente-se sem
suporte. Para reativação de memórias dessa época, utilizou-se
elementos culturais e que devido a faixa etária das integrantes
serem próximas, causou uma maior aproximação e disponibilida-
de de apoio ao que era revelado naquele espaço extremamente
empático e acolhedor. Com isso, uma aceitação de que tudo que
era trazido seria escutado, foi possível entrar em um processo de
fortalecimento, cura e diminuições de inseguranças.
O filme “Kiriku e a feiticeira” também foi levado como objeto
mediador das questões, entre eles os altos e baixos que o herói
da narrativa teria que enfrentar. As integrantes se identificaram
com essa figura e trouxeram soluções para alguns conflitos em
que se sentiam “emperradas”. Também revelaram no exercício
de “máscaras de si” uma diferença de apresentação de si - inter-
na e externa, como estou e como me apresento ao outro, algo
que muitas nunca haviam entrado em contato anteriormente e
naturalizavam. Provocadas pelas coordenadoras em outra sessão,
sobre as diferenças de percepção: ver, pensar, sentir, perguntar e
imaginar, refletem a importância do autoconhecimento como fer-
ramenta de enfrentamento para o futuro – tão temido até então.

Sabedoria como fase acolhedora


O tão temido envelhecimento se dá sem ao menos perceber-
mos, pois acontece diariamente, quando estamos respirando, oxi-

[8] Nome fictício de participante do grupo.

92 | Contos e Mitos em Arteterapia


genando, a célula funciona, cresce, se multiplica e se divide, pro-
cessa funções, passa o tempo... O sol nasce, o sol se põe, a lua
aparece, a lua se vai, a noite escurece, o dia amanhece e en-
velhecemos. Esse é o ciclo da vida. Como todos os ciclos, há o
nascimento, a vida-morte-vida-renascimentos. Todos os processos
da natureza seguem esse ciclo. É preciso respeitá-los. Deixar vir –
Deixar ir. Deixar nascer – Deixar morrer. Deixar? Será que temos
esse poder? Vem a sensação de que é possível controlar o incon-
trolável. E não é.
Ao integrar a questão do amor e ódio, reconhecendo a impor-
tância desses sentimentos e significados, procuramos o equilí-
brio em si. Há o mito de que somos invencíveis caso nos proteja-
mos, nos cuidemos, o tal famoso envelhecimento saudável. Será
para sempre?
A “aranha e o quibungo” trata da história da aranha que en-
gana todos os animais para se satisfazer. Segundo Santo (2010),
“É esse perfil de imobilizadora e devoradora com que se identificam
algumas mulheres ao estabelecerem relações de controle na tentati-
va de se apropriarem de um poder atribuído comumente ao homem
que as faz serem denominadas mulheres-aranhas”.

Santo aponta ainda que em nossa sociedade, é bastante co-


mum as mulheres serem julgadas por desempenharem esse papel,
incorporando um aspecto negativo, por se tornarem extremamen-
te eficientes como mães, donas-de-casa, esposas e até como pro-
fissionais bem sucedidas, muitas vezes não hesitando em alimen-
tar da energia alheia, blefando poderes que nem tem de fato e
muitas vezes sendo cruéis. No grupo, as participantes trouxeram
questões ligadas à necessidade de controle e dificuldade de acei-
tação do processo de envelhecimento.
Para proporcionar e instigar as participantes a tecer a teia que

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representa o ciclo da vida, fazendo bom uso de suas atitudes,
intuições e sonhos, foi proposto tecerem um filtro dos sonhos
(Figura 4). O Filtro dos Sonhos, também conhecido como “apa-
nhador de sonhos”, “caçador de sonhos”, “cata-sonhos” ou “es-
panta pesadelos” é um símbolo místico indígena. Diz a lenda que
o grande sábio espiritual apareceu em forma de aranha, que tecia
um filtro dos sonhos, para um velho índio em uma montanha bem
alta. A mensagem da aranha enquanto tecia o filtro dos sonhos
era sobre os ciclos, do que acontece a partir do nosso nascimen-
to, até a nossa morte, sobre boas e más influências espirituais
que atuam sobre nós durante essas fases. A teia representa esses
ciclos e que o filtro ajuda a alcançar objetos, filtrando os bons
sonhos dos negativos que ocupam o ar da noite.

Figura 4: Filtro dos sonhos com barbante tingido com corante


alimentício, argola plástica , broche e miçangas.

94 | Contos e Mitos em Arteterapia


Foi possível notar através da atividade as mudanças e melhor
aceitação do ciclo vivenciado por essas mulheres, conseguindo
trazer projetos futuros – diferença que pontuaram quanto ao
nome utilizado pelas crianças de “sonhos”, em que têm seus de-
sejos estabelecidos e assegurados.

Fechando Ciclos
O sacrifício feminino está presente em muitas histórias do ima-
ginário universal, de forma que o sofrimento das mulheres e sua
entrega total aparece em vários contos, mitos e lendas de diversas
culturas. É tão naturalizado que é representado muitas vezes de
forma romantizada, contribuindo para que se crie um estereótipo
da mulher guerreira, que dá conta de tudo sozinha, que é boa mãe,
esposa e amante, sem que tenha suas necessidades atendidas.
Desde muito cedo, aprendemos a controlar nossas emoções,
engolir o choro, sermos fortes e capazes para superarmos as
frustrações, em relação, principalmente, ao que o outro é capaz
de nos causar. Culturalmente a mulher é posta como o sexo
frágil, inundado de emoção, sentimentos e guiadas para as ta-
refas mais artesanais. Assim, mesmo com toda independência e
conquistas, as obrigações impostas e arcaicas, ainda estão pre-
sentes, mesmo que em nosso inconsciente, dentro de cada uma
de nós, causando cobranças ainda maiores de nós mesmas. Bem
cuidar de tudo que nos rodeia, de todos que amamos, da famí-
lia, da casa, do trabalho, das tarefas diversas, tudo ao mesmo
tempo, não é uma característica da mulher, mas sim, uma for-
ma que desenvolvemos para conseguir dar conta de tudo e ao
mesmo tempo. Esse caminho é egoísta, solitário e carente, por
muitas vezes não conseguir pedir ajuda e socorro, de demandar

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tarefas e reconhecer que por mais que a vontade em resolver
tudo seja genuína, ela muitas vezes não é possível. Todas essas
questões causam um desequilíbrio emocional, físico e psicológi-
co, um sofrimento muitas vezes silencioso.
No atendimento arteterapêutico, as participantes se depararam
com essas histórias que abordam o sacrifício feminino dentro de
diversos contextos, em que a entrega e o sofrimento das mulheres
se torna a solução para os problemas de sua comunidade, como
nos mitos: Oxum é transformada em pavão e abutre, da deusa
Sedna, da Vitória Régia, da origem da mandioca, entre outros.
Como se os arquétipos da mãe, da guerreira e da vítima fossem
características inatas das mulheres, tornando-as modelos estereo-
tipados de heroínas. Por outro lado, o altruísmo das personagens
possibilitou discussões e reflexões sobre a quebra de padrões pré-
estabelecidos pela sociedade e como cada participante encontra
seus próprios artifícios para enfrentar as adversidades cotidianas e
se fortalecer, sendo a heroína de sua própria jornada.
[...] A imagem não tem forma definida, embora eu quisesse dar-lhe
uma, não fui capaz disso. No início isso me frustrou. Mas depois,
achei interessante e alegórico, pois, quando iniciei essa jornada eu
desejava uma forma muito clara na minha mente, hoje eu prezo pela
jornada e não mais pela forma (CISNE, 2021).

96 | Contos e Mitos em Arteterapia


Referências

CRISPIM, Cristiane. Contando o Rio Opará - Ep 04 - Os Encantos da Mãe d’água.


Youtube, 04 de maio de 2021. Cia. Biruta de Teatro. Disponível em: <https://youtu.be/
fPnvLOevnwI>. Acesso em 22 de maio de 2021.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. 1ª ed. - São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
SANTO, Maria, I. do E., Vasos Sagrados - Mitos indígenas brasileiros e o encontro
com o feminino. São Paulo: Rocco, 2010.
STEIN, Murray. Jung, o mapa da alma. SP: Cutrix, 2000.

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98 | Contos e Mitos em Arteterapia
Heróis e heroínas dos tempos
bíblicos: uma visão contemporânea

Caroline de Lima Lopes[1]


Danielle Caroline Malavasi Barbosa[2]
Silvia Rodrigues Lanes[3]

[1, 2, 3] eraumavezarteterapia@gmail.com

Heróis e heroínas dos tempos bíblicos

A sociedade brasileira é constituída de diversas crenças,


dentre as quais, o cristianismo se destaca na formação do
inconsciente coletivo do povo. Pensando nisso, nós: Caroline (Psi-
cóloga), Danielle (Arte-educadora) e Silvia (Agente de Promoção
Ambiental), resolvemos nos debruçar nas histórias da Bíblia, para
aplicar no nosso estágio no curso de pós-graduação em Artetera-

| 99
pia. Fugimos do lado espiritual e focamos na prática humana con-
tida nos relatos bíblicos, contextualizamos historicamente todas as
narrativas, trabalhando em categorias, como mitos e contos, dos
personagens, enfatizamos os feitos heroicos que surgiam a partir
de suas dificuldades e sofrimentos, bem como venceram. Entrela-
çamos as histórias com o arquétipo do herói segundo Jung, com
a Jornada do Herói de Campbell e os quatro elementos naturais.
Com a temática pronta, definimos os dias e quantidades de
encontros, a princípio definidos em (dez encontros e duas turmas)
na modalidade online, utilizamos para isto a plataforma Zoom, a
divulgação ocorreu em diferentes mídias sociais e atraiu pessoas
de diferentes religiões, classes econômicas, idades e regiões no
Brasil e no exterior, decidimos então abrir uma nova turma, aten-
dendo também outro fuso horário, totalizando (três turmas).
Ficou evidente que as mulheres que participaram dos encontros,
mesmo tendo muitas diferenças, tinham muitas coisas em comum:
vimos guerreiras, focadas no crescimento profissional, intelectual,
empreendedoras e confiantes, todas chegaram bem armadas, ver-
dadeiramente vestidas de heroínas e prontas para a guerra.
A arte acompanha o ser humano desde os primórdios, seja atra-
vés de pinturas em rocha, pedra, madeira, corantes naturais etc.,
não diferente, o ser humano pós-moderno, ou seja: depois da
globalização, da industrialização, dos computadores, dos filmes e
todas as mídias disponíveis, tem se aproximado de novas formas
de comunicação e expressão artística, buscando novos elementos
para tal, assim como também vê o mundo de uma forma diferente.
Durante todo o processo de estágio, observamos claramente
essa questão, em que tão diverso quadro de participantes, utili-
zaram dos recursos do cotidiano atual para recontar histórias tão
antigas como as contidas na Bíblia, bem como as lições de vida

100 | Contos e Mitos em Arteterapia


dos heróis se assemelham com as nossas, ao nosso dia a dia pós-
-moderno, de modo que tudo que foi requerido para execução
estava ao alcance das mãos de todas.
Estudando a história das civilizações, como foram se organizan-
do, as ideias, culturas e mitos que resultaram em costumes e cren-
ças, fica mais fácil ler as imagens que surgem em sonhos e nas
expressões artísticas. Por exemplo, a história de um personagem
que errou em algum momento de sua vida, mas que supera seus
erros, medos e fraquezas, se transformando em um herói, trazida
para dentro da Arteterapia, leva as participantes a enxergarem as
suas próprias vidas, a comparar com suas situações não tão satis-
fatórias, e essa experiência analisada no relato serve de trampolim
para a saída de uma situação que causa incômodo e superação.
O percurso terapêutico foi muito enriquecedor, fomos imersas
na experiência do autoconhecimento junto de nossas partilhan-
tes de uma forma respeitosa, de muita confiança, sem desgastes,
com leveza, sem julgamentos, sem possibilidade de ficar alheias à
experiência, o processo de envolvimento com as emoções, sensa-
ções e habilidades, reverberaram numa nova aventura, em que a
descoberta maior, veio do inconsciente.
Usamos as referências bíblicas e autores do campo da Psico-
logia, Arteterapia, Neurociência, Artes, Antropologia, Teologia,
relaxamento, músicas e dinâmicas.

As partilhantes
As turmas que passaram pelo nosso estágio, não proposital-
mente, foram formadas por mulheres, com diferentes característi-
cas que ao longo dos encontros, criaram uma personalidade única
e marcante para cada grupo. Para facilitar a compreensão do pro-

| 101
cesso, ao término de todos os encontros, pedimos uma palavra
que descrevesse o momento e vamos utilizar essas palavras para
nomear os grupos, assim, expressando as características que se
formaram. Embora o tema e toda preparação foram os mesmos,
cada grupo trilhou um caminho diferente, que foi de encontro
com o que buscavam em suas jornadas pessoais, a sincronicidade
se fez presente em todas as turmas.

As Acolhedoras: (Grupo composto por quatro mulheres, en-


tre 40 e 47 anos), que em suas diferenças se assemelhavam e se
encorajavam, dentro de seus processos, ao menor sinal de “sofri-
mento” elas se armavam para se proteger, como em um acolhi-
mento, bonita era a forma com que se respeitavam e enxergavam
o belo na evolução da outra, sempre observadoras, de lugares
diferentes do país, elas se encontravam toda semana por volta de
1:30h para evoluírem juntas.

As Corajosas: (Grupo formado por quatro mulheres, entre 27 e


46 anos), que se diferenciam entre crenças, profissões, cidades e
estados em que residem, se encontraram em dez encontros quin-
zenais por 1:30h, se uniam em coragem e com muita dedicação
demonstravam o quanto são guerreiras, determinadas, focadas,
mas também cheias de amor e gratidão.

As Aventureiras: (Grupo formado por quatro mulheres, entre


47 e 66 anos), de dentro e fora do país, de espíritos joviais e livres,
sem reservas dentro do processo, falantes, de fácil interação desde
o primeiro momento unidas. Para ser aventureiro é necessário ter
coragem, e elas tinham de sobra, seus encontros foram realizados
em 5 semanas seguidas, também com 1:30h em cada encontro.

102 | Contos e Mitos em Arteterapia


O quebra-gelo
Podemos dizer que a ansiedade era enorme para o início do es-
tágio, e pensando em quebrar o gelo, conhecer as pessoas e criar
vínculos, Sara e Abraão foram os personagens bíblicos escolhidos
para o primeiro encontro, giramos em torno dos nomes dos per-
sonagens e seus significados, e como eles foram alterados após
uma grande conquista.
A história conta que Abrão e Sarai receberam uma promessa
divina, seriam pais de uma grande nação, porém os anos foram
passando e eles não tinham filhos, quando já idosos receberam
a visita de um anjo para relembrá-los da promessa. Sarai riu du-
vidando, pois, não via a possibilidade de ser mãe com a idade
avançada, é neste momento que tiveram seus nomes alterados,
Sarai passou a se chamar Sara, que significa “princesa”; e Abrão,
se tornou Abraão que significa “pai de multidões”, algum tempo
depois, a promessa se cumpriu e eles tiveram um filho chamado
Isaque, que significa “ele ri”.
Para este encontro, solicitamos previamente os materiais: pa-
péis, lápis, lápis de cor e canetinhas. Após ouvir a história, as par-
tilhantes usaram a plataforma Mentimeter, criando uma nuvem
de palavras com as características que poderiam ser boas e/ou
ruins, que elas reconheceram na personagem Sara. As seguin-
tes características foram as mais destacadas: bela, corajosa, forte,
submissa, determinada e ansiosa. Embaladas pelos adjetivos atri-
buídos para a Sara, as partilhantes montaram um acróstico com
seus nomes e destacaram suas características pessoais de forma
bem criativa, com muitas cores e detalhes, transformando a escri-
ta em obra de arte, o que desencadeou segurança e acolhimento,
deixando-as confortáveis para contarem as histórias, significados

| 103
e origens de seus nomes, trazendo a consciência da importância
de suas origens familiares.
O momento fez transcender através da escrita criativa, carac-
terísticas que as partilhantes talvez não tivessem consciência,
surgidas no primeiro encontro e sendo trabalhadas ao longo de
todo o processo, mostrando, que esse tipo de atividade costuma
resultar em um benéfico e silencioso diálogo, entre quem escreve
e os aspectos de sua vida psíquica menos conscientes, trazendo
uma grande tomada de consciência de suas características inter-
nas, pois, em momentos antes das atividades, fizemos uma bre-
ve apresentação pessoal, onde o que ficou evidenciado foram as
conquistas profissionais e familiares.

A Jornada do Herói Moisés


Com vínculo criado, as partilhantes seguiram para uma jorna-
da de autoconhecimento, crescimento e descoberta através do
personagem Moisés. Sua história narrada no livro de Êxodo, caiu
como uma luva no arquétipo do herói segundo Jung, na Jorna-
da do Herói de Campbell, e tornou-se um campo fértil de possi-
bilidades para trabalharmos os quatro elementos. Entramos no
clima da jornada, usando um trecho da história que faz parte
do inconsciente coletivo e pedimos previamente que fizessem um
barquinho de papel e preparam um recipiente com água e con-
vidamos as partilhantes para colocar o barquinho na água e na-
vegar, sentindo a temperatura, o movimento e emoções que este
relaxamento proporciona, um momento leve e de descontração,
houve quem entrou no barquinho, quem só navegou e quem se
atreveu a sentir a água e mergulhar no rio.

104 | Contos e Mitos em Arteterapia


Figura 1 - Partilhante do grupo As Corajosas - Relaxamento com o
Barquinho de Papel, elemento Água

A jornada do herói foi um marco no estágio e na vida de cada


partilhante, para contextualizar, iniciamos pela fase Mundo Co-
mum - o nascimento de Moisés, em uma época, em que os des-
cendentes hebreus eram numerosos no Egito, temendo que esse
povo se tornasse maioria na sua terra, o Faraó (título dado aos
soberanos do Antigo Egito), ordenou às parteiras, que ao auxi-
liarem as mulheres hebréias grávidas, se nascessem meninos, os
matassem ainda antes das mães os verem, porém, essas mulheres
não obedeceram a ordem do Faraó, este muito irado, deu uma
nova ordem, desta feita aos seus soldados, que entrassem nas ca-
sas, procurando pelos meninos encontrando qualquer recém-nas-
cido, deveriam jogá-los no Grande Rio Nilo. Foi neste cenário, que
Joquebede, uma mulher hebreia, teve um menino e o escondeu
por três meses, porém, em grande temor por sua vida, decidiu
colocá-lo num cesto à beira do rio, de tal forma estaria lançado a
sorte e não a morte certa. Entramos na segunda fase: chamado à
aventura - ao colocar a criança no rio, sua irmã Miriam, acompa-
nhou todo percurso do cesto, até o momento em que avistou uma
Princesa do Egito, banhando-se no rio com as suas criadas, ao ou-
vir o choro do bebê no cesto, ela teve compaixão, tomando para si
o pequeno hebreu. Miriam, que estava acompanhando tudo, sem

| 105
perder tempo aproximou-se e sugeriu que alguma mulher hebreia
fosse dada como ama de leite da criança, a princesa concordou e
Joquebede foi paga para cuidar do seu próprio filho, a princesa
lhe deu o nome de Moisés, que significa: eu o tirei da água. Mui-
tos anos depois, Moisés, vivendo no palácio como príncipe, ado-
tivo resolveu visitar o seu povo segundo o sangue, e deparou-se
com um egípcio batendo nos escravos, sem pensar muito, tomado
por uma grande revolta, matou o agressor e o enterrou na areia.
No dia seguinte voltou entre os escravos, e percebeu que sabiam
que ele havia assassinado um egípcio, logo o Faraó também ficou
sabendo, e por isso quis matar o então príncipe, que defendia os
escravos, com medo, Moisés fugiu.
Para este encontro, solicitamos os seguintes materiais: um bar-
quinho feito de papel, um recipiente com água (que utilizamos
no início do encontro, durante o relaxamento), papéis, lápis de
cor, giz de cera, tesoura e cola. Depois de contarmos a primei-
ra parte da história, solicitamos para as partilhantes que dese-
nhassem e pintassem uma espiral, símbolo de representação do
herói. As Acolhedoras desenharam espirais redondos, que ocu-
pavam praticamente a folha toda; as Corajosas fizeram espirais
diferentes umas das outras, alguns verticais, outros mais estrei-
tos; as Aventureiras, inovaram e representaram diferentes forma-
tos de espirais (redondos, verticais, redemoinhos, horizontais…).
Pedimos para que elas registrassem todo o processo através de
fotografias e logo após, com a tesoura, cortassem toda espiral
de forma aleatória, as partilhantes mostraram-se surpresas e um
pouco resistentes à proposta. Tivemos um momento de partilha,
para ouvi-las sobre como se sentiram ao realizar a tarefa, surgi-
ram algumas palavras: medo e agonia, provando o desconforto
causado, e constatado em todos os três grupos.

106 | Contos e Mitos em Arteterapia


Durante a terceira fase da jornada: A recusa do chamado - re-
construção de uma nova vida, em que Moisés foge para a terra
de Midiã a fim de começar uma nova história. Certo dia, as filhas
de Jetro, sacerdote de Midiã, estavam no poço dando de beber
às ovelhas e cabras de seu pai, chegaram alguns pastores e as
enxotaram do poço, Moisés as defendeu e deu água para os ani-
mais, com esse gesto, ele foi recebido por Jetro com muita grati-
dão. Casou-se com Zípora, filha de Jetro e de príncipe no Egito,
tornou-se pastor de ovelhas, estava confortável e provavelmente
nem se lembrava mais dos sofrimentos do seu povo.
Sugerimos que as partilhantes fizessem com todo o material
cortado uma produção plástica, utilizando técnica de colagem
criativa. Houve reconstruções e criações com as formas de barco,
oceano, farol, mosaico e cada uma falou da sua experiência e
expressaram diferentes sentimentos, ao tentarem reconstruir ou
criar algo, a partir dos pedaços e demonstraram muita resiliência
diante de toda a desordem da desconstrução.
Os encerramentos dos encontros eram feitos com a expressão
de uma palavra que lhes remetia todo o processo realizado, neste,
as palavras foram, resiliência, recomeço, reestruturação, proces-
so, encanto, ordenação e liberdade. Por meio das palavras, nós
encontramos sentidos simbólicos que vão de encontro com o que
Angela Philippini (2018) diz sobre atividades de colagem e mosai-
co que são verdadeiras formas de ressignificar sentimentos.
Alguns comportamentos nos chamaram atenção, as Acolhedo-
ras e as Aventureiras, tentaram organizar as partes de acordo com
os recortes, mostrando necessidade de manter a ordem e o con-
trole em todos os segmentos da vida, sentimento que reafirma-
ram e buscaram ao longo das fases do estágio, porém, deixaram
fluir livremente a atividade por entenderem que de fato, através da

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história, existem coisas na vida que precisam ser ressignificadas e
que precisamos nos adequar às mudanças. As corajosas, tiveram
sentimentos diferentes, reconstruíram e criaram coisas totalmente
diferentes, umas picotaram tanto, que quase não conseguiram re-
conhecer o desenho original e teve até quem quisesse apenas jogar
fora, sem ter a vontade de reconstruir, apenas seguir em frente.
Para seguir a quarta fase da jornada do herói: Encontro com o
Mentor ou Sobrenatural, solicitamos um recipiente de alumínio
ou vidro, fósforo ou isqueiro, a produção do último encontro e
um objeto pessoal, e nos deparamos com o momento em que
Moisés é confrontado com uma voz que saía de um espinheiro
que ardia em fogo, porém não se consumia, o desafio agora era
que Moisés saísse de sua zona de conforto e atentasse para o
verdadeiro propósito de sua vida que era o de livrar o povo de
Israel da escravidão do Egito. Desafiamos então as partilhantes a
pegarem suas obras e de forma segura atearem fogo, no geral,
elas disseram que não se sentiram incomodadas em queimar a
produção, pois, de alguma maneira o fogo vem para transmutar
situações e que às vezes essas mudanças se fazem necessárias.

Figura 2 - Queima da espiral - Trabalhando o elemento Fogo. Foto da


atividade da partilhante do grupo: As Acolhedoras

108 | Contos e Mitos em Arteterapia


Percebemos que todas as partilhantes, demonstraram diferentes
sentimentos em relação às mudanças, mostraram-se mais desape-
gadas de suas obras e entenderam que o processo de desconstru-
ção das situações é necessário e, além disso, trouxeram à cons-
ciência os movimentos que são realizados para transformá-las.
Finalizando o primeiro ato da jornada, passamos para a quinta
fase: Travessia do Primeiro Limiar, o herói, sua família e o seu
bastão, partiram para o Egito para encontrar-se com o seu irmão
para a anunciação da promessa de libertação dos Israelitas. Assim
como o nosso herói tinha o seu bastão como seu objeto pessoal
de identificação e proteção, pedimos às partilhantes que buscas-
sem em seus pertences pessoais objetos com o objetivo semelhan-
te ao do nosso herói, em todos os grupos os objetos escolhidos
foram praticamente iguais: fotografia, mochila, celular, caderno,
vaso e passaporte.
No grupo das Corajosas, uma das partilhantes sentiu-se muito
incomodada em ter que escolher apenas um objeto, relatou ter
usado o seu instinto maternal pensando em levar somente a sua
filha, porém, não a considerava um objeto e conseguia pensar em
algo mais importante para carregar consigo. Em todos os grupos
elas queriam seguir apenas com algo representativo, que servisse
como um lembrete de onde tinham saído, onde estavam e onde
queriam chegar, uma das partilhantes do grupo das Corajosas
nos surpreendeu, dizendo que enfim tinha tomado coragem para
fazer a sua tão desejada transição de carreira.
Solicitamos papéis, lápis, canetas, canetinhas e o “Objeto de
Trajeto” pelo deserto usados no último encontro, o segundo
ato, a Descida / Iniciação, fase seis: Provação, Aliados e Inimi-
gos - fase em que Moisés chega no Egito dizendo que o Senhor
o enviou para libertar o povo da escravidão e junto com seu ir-

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mão Arão, começaram a anunciar essa boa notícia, mas as coisas
não saíram como esperado, uns acreditaram, outros duvidaram
e teve até quem preferia viver como escravo, afirmando que só
bastava saber que teriam o que comer no fim do dia. Pedimos
para que as partilhantes expressassem o que as mantinham na
zona de conforto. As Acolhedoras e as Corajosas, se expres-
saram através da escrita criativa, descrevendo sentimentos de
comodidade, segurança, tranquilidade, proteção, falta de tem-
po, controle, facilidade e medo. As Aventureiras se expressaram
através de produções plásticas, como desenho e colagem, porém
os sentimentos foram semelhantes.
Dúvidas e discórdias, nos levaram a fase sete: Aproximação da
Caverna Escura, Moisés questiona se realmente ouviu uma voz
divina, se não foi apenas coisa da sua imaginação, quando no-
vamente a voz lhe fala e o encoraja a ir perante o Faraó, para
libertar o povo. Moisés e Arão mostraram para o Faraó que real-
mente Deus os havia enviado com sinais milagrosos através do
seu bastão, que virou serpente e voltou ao estado normal, porém
os encantadores do palácio também sabiam alguns truques, e o
povo continuou cativo. Assim, chegamos a fase oito: Provação Su-
prema - As dez pragas surgiram para tirar o povo e Faraó da zona
de conforto, e tomarem uma decisão. Depois de tanto sofrimento
como escravos e ainda acometidos por dez pragas, a fase nove:
A Recompensa, finalmente o povo é libertado, a comoção foi tão
grande que o próprio Rei pediu para eles saírem dizendo:
– Saiam daqui vocês e todos os outros Israelitas! Deixem o meu
país. Vão adorar a Deus, o Senhor, como vocês pediram. Peguem
as suas ovelhas e cabras e o seu gado e vão embora. E peçam a
Deus que me abençoe. Os egípcios insistiram com os israelitas
para que saíssem do país o mais depressa possível. Eles diziam:

110 | Contos e Mitos em Arteterapia


– Se vocês não saírem, todos nós morreremos! Assim, cada fa-
mília israelita pegou a massa de pão sem fermento, pôs numa ba-
cia, embrulhou a bacia num pano e carregou no ombro”. (Êxodo
12. 31,32 e 33).
Foi então, que pedimos às partilhantes para lembrarem do ob-
jeto que elas escolheram e ressignificassem para esta nova etapa
que estavam seguindo junto com o nosso herói. No grupo das
Corajosas, elas desenharam, fizeram de seu objeto um adorno,
criaram poemas, colagens, demonstrando que estavam prepara-
das para enfrentar um novo caminho, assim também foi com os
outros dois grupos, os objetos foram ressignificados e trazendo
um ar de satisfação entre elas, como se o objeto pessoal escolhido
fosse exatamente aquilo que elas precisavam para prosseguir.
Chegando na última parte da jornada do herói Moisés, lemos
sobre a travessia do Mar Vermelho e como este momento da his-
tória tem o relato de Miriam tocando um pandeiro e dançando,
propomos que as partilhantes decorassem discos de papelão atra-
vés da técnica de assemblage, e refletissem sobre todo processo
de maneira individual, este, tornou-se um dos momentos mais
marcantes entre as atividades, as produções trouxeram significa-
dos que levaram de encontro com a família e a importância de
viver cada momento intensamente.
Nos chamou a atenção no grupo das Aventureiras, um momen-
to emblemático, onde uma das partilhantes, insistiu em colar um
objeto que não fixava no papelão, mesmo ela tentando utilizar vá-
rios tipos de colas e no seu momento de partilha, ela falou sobre
esse objeto e confundiu o personagem principal da saga, trocan-
do Moisés por Noé, neste momento de confusão, a conduzimos
com calma para o caminho que ela mesmo tinha trilhado para si,
conforme ela falava sobre suas questões, ficou muito emocionada

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por perceber a necessidade de resolução de uma questão familiar
antiga. Ouvindo esta partilhante, tivemos a certeza sobre como
a arteterapia nos levou e nos leva, por caminhos completamente
diferentes, independente de um roteiro, trazendo à consciência
somente aquilo que nosso Ego é capaz de suportar, tudo no mo-
mento certo.
Seguimos pela história, lendo o trecho sobre a travessia no de-
serto, que conta sobre a presença de uma nuvem durante o dia,
protegendo do calor e da chama de fogo durante a noite, pro-
tegendo do frio e de animais letais, representando o cuidado de
Deus com o povo. A atividade sugerida neste momento da história,
foi criar um efeito de luz e sombra juntamente com a assemblage
produzida, observando os efeitos que sua arte reproduzia em mo-
mentos de diferenciação das luzes. Nos três grupos as percepções
dessa atividade foram bem parecidas, elas trouxeram questões,
dizendo que perceberam que existiam coisas que já estavam em
tempo de saírem da sombra e voltarem para a luz, também sobre
o movimento contrário, outras poderiam ficar exatamente onde
estavam (seja luz ou sombra) que não fariam diferença.

Figura 3 - Assemblage - trabalhando o elemento Ar. Foto da


atividade da partilhante do grupo: As Aventureiras

112 | Contos e Mitos em Arteterapia


Para a última parte da jornada: O Retorno com o Elixir, solicita-
mos, folha de papel, lápis, lápis de cor e canetinhas, e seguimos
para o momento da história em que Moisés subiu ao monte para
encontrar-se com Deus e após este encontro recebeu os Dez Man-
damentos e comunicou ao povo sobre as regras que deveriam
seguir. Propomos as partilhantes que contornassem os próprios
pés, em uma folha e se expressassem através de desenhos, pintu-
ras, colagens, da melhor forma que conseguissem para criar um
mandamento para si, fazendo movimento de aterramento, para
que assim, criassem o hábito de pensar, idealizar e realizar planos
de acordo com as suas necessidades e desejos, sem perder o foco
e objetivo.
No momento de partilha, As Aventureiras trouxeram questões
de saída da zona de conforto, caminhos que são necessários se-
guir e sobre a responsabilidade de onde os pés pisam, as Aco-
lhedoras falaram sobre prosseguir na caminhada mesmo com as
dificuldades apresentadas no percurso, sobre acreditar em si mes-
ma e nas suas capacidades, as Corajosas, focaram no processo de
transformação e de autoaceitação.

Foto 4 - Desenhando o pé - Trabalhando o elemento Terra. Foto


da atividade da partilhante do grupo: As Corajosas.

| 113
Finalizando este encontro sugerimos que cada partilhante, vol-
tasse para o seu pandeiro (assemblage) e fizéssemos um momen-
to de dança, com intuito de descontração e finalização de uma
jornada incrível de muito autoconhecimento e redescobrimento
de questões que impediam evolução em suas jornadas.

Os últimos encontros
Nesta jornada, evidenciamos os momentos de dificuldades, mu-
danças e transformações através do personagem Moisés, porém
não poderíamos deixar de ressaltar as grandes mulheres que fo-
ram aparecendo durante a história e como elas resolveram os pro-
blemas que surgiram.
Moisés foi um grande herói e construiu a sua história com a
ajuda de mulheres que foram guerreiras e enfrentaram grandes
situações. As heroínas estiveram presentes na vida de Moisés,
desde o seu nascimento e é por isso que falamos sobre as Par-
teiras, Sifrá e Puá, que receberam a ordem do Faraó para matar
os meninos hebreus, e então num ato heróico, não obedeceram,
mentiram para Faraó, dizendo que as mulheres eram muito rápi-
das ao dar à luz e que elas não chegavam a tempo. Tornando-se
símbolo de resistência civil diante da injustiça, salvaram não só a
vida de Moisés como a de vários outros meninos bebês.
Essencial também foi a mãe de Moisés, mulher corajosa, Joque-
bede, ao ver que o rei do Egito vinha para matar os bebês, jogou
seu filho num cesto de junco ao Rio Nilo, dando uma chance de o
menino crescer em segurança.
Sua irmã Miriam, desempenha um papel fundamental e de
grande responsabilidade, muito sagaz, ela acompanha a descida
do irmão pelo rio Nilo, até ver o que aconteceria, foi responsável
por sugerir que a própria mãe como ama da criança, assim sendo

114 | Contos e Mitos em Arteterapia


possível um reencontro entre a mãe e o filho. A princesa do Egito,
estava com as suas servas banhando-se no rio, quando ouviu um
choro de criança vindo de um cesto, percebendo que se tratava de
uma criança hebréia, teve compaixão e salvou a criança.
Já em sua vida adulta, Moisés, encontra uma outra mulher,
Zípora, contamos a história desse primeiro encontro na terceira
fase da jornada herói: A recusa do chamado. Podemos perceber
que a atitude de Zípora em agradecer e seguir o seu caminho,
demonstra uma mulher forte, corajosa e protetora.
Abordamos com mais afinco essas personagens com as aven-
tureiras, fechando a jornada com um olhar mais feminino, elas
se identificaram com as histórias e nos relataram momentos bem
conturbados em que tiveram de tomar decisões importantes, po-
rém elas nunca tinham percebido a importância de suas atitudes
até aquele momento e ficou evidenciado nessa partilha, o quanto
cada uma delas são verdadeiras heroínas para muitas pessoas do
convívio. O momento serviu de trampolim para o empoderamen-
to, elas encerraram a jornada expressando através de atividades
plásticas o que sentiram durante toda a saga.
Com as Acolhedoras e as Corajosas, tivemos mais tempo para
trabalhar outras personagens bíblicas femininas, como Raabe,
Rute, Maria mãe de Jesus, A mulher samaritana, a mulher que
derramou perfume aos pés de Jesus, Dorcas e Lídia. Estas perso-
nagens foram muito importantes para fixarmos como as mulheres
são importantes, guerreiras, determinadas em todas as épocas,
civilizações e circunstâncias.
No último encontro, mostramos os simbolismos que aparece-
ram através do processo das produções plásticas, escrita criati-
va, fala, transposições e seus significados universais, assim elas
conseguiram compreender e partilharam o quanto mudaram do

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primeiro ao último encontro. As mudanças foram muito visíveis,
que as próprias partilhantes apontavam as diferenças entre elas,
evidenciando a eficácia de todo processo realizado.

Foto 5 - Representação da Jornada com o Herói Moisés - Atividade da


partilhante do grupo: As Aventureiras

Como já mencionamos anteriormente, a escolha de trabalhar


a temática bíblica, não envolvendo questões religiosas, mas, a
história de vida dos personagens deste grande livro, contém o
objetivo de mostrar às pessoas que participaram, que todas as his-
tórias podem ser trabalhadas e que podemos tirar delas grandes
momentos de reflexão e transformação pessoal.
Durante todo o processo de estágio, percebemos grandes mu-
danças na vida das participantes, notamos em todos os grupos, um
olhar mais sensível para a sua caminhada e para a caminhada do
próximo. Ocorreram mudanças no âmbito profissional, pessoal e
afetivo. Tivemos grandes encontros e em cada um deles, uma pes-
soa diferente se destacava de acordo com a história em questão.
Tivemos partilhantes que deram o salto inicial para a mudança
de carreira, houve quem entendeu a sua relação complicada entre
alimentação, peso e aceitação do seu próprio corpo, e que hoje
dá workshops de mandalas de frutas, outra que se identificou
pronta para entrar de fato na profissão, onde não tinha iniciado
antes por não se sentir preparada. O fato é que em todos os gru-
pos, por mais diferentes que fossem os caminhos percorridos por
elas, as transformações aconteceram de forma singular.

116 | Contos e Mitos em Arteterapia


Referências

Bíblia de Estudo Conselheira. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2014.


Bíblia Sagrada: Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Barueri, SP: Sociedade Bíblica
do Brasil, 2021.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito / Joseph Campbell, com Bill Moyers; org. por Betty
Sue Flowers. - São Paulo: Palas Athena, 1990
CARNEIRO, Celeste. Arte, Neurociência e Transcendência, Rio de Janeiro, RJ: Editora
Wak, 2010.
CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, gestos, formas, 34ª ed.
figuras, cores, números/ Jean Chevalier, Alain Gheerbrant. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio,
2020.
GASPAR, Fabíola Maria. Arteterapia e os quatro elementos da Natureza. (Apostila)
NAPE: Pós-Graduação, lato sensu, em Arteterapia.
GRENZER, Matthias. O Projeto do Êxodo/ Matthias Grenzer. 2.ed. ampl. (Coleção Bíblia
e história). São Paulo, SP: Paulinas, 2007.
JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o inconsciente coletivo/CG. Jung. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2000.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião / C. G. Jung. Petrópolis, Vozes, 1978.
JUNQUEIRA, Marciclene de Freitas Ribeiro. A viagem do relaxamento: técnicas de
relaxamento e dinâmicas / Marciclene de Freitas Ribeiro Junqueira. Goiânia: Ed. da UCG,
2006.
NETTO, Roberto Lima. A Bíblia Junguiana - Conceitos básicos da psicologia com
exemplos da Bíblia trazendo a mensagem do Velho Testamento. Rio de Janeiro,
RJ: Best Seller, 2013.
PHILIPPINI, Angela. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: uso,
indicações e propriedades, 2ª edição. Rio de Janeiro, 2018.
VIRGOLIM, A. M. R.; FLEITH, D. S.; NEVES-PEREIRA, M. S. Toc toc... plim plim!: lidando
com as emoções, brincando com o pensamento através da criatividade. 13ª ed. Campinas:
Papirus, 1999.

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118 | Contos e Mitos em Arteterapia
As cores da vida e o
desabrochar de Rosa

Adriana Rodrigues de Oliveira Miqueletti[1]


Izabel Cristina Ferreira Gomes[2]
Wanice Alves Facure Locci[3]

[1] adriana.o.miqueletti@gmail.com

[2] Iferreiragomes@hotmail.com

[3] wanicefacure@uol.com.br

Histórias que guardam histórias

P assos rangem o assoalho de aroeira desgastado pelo tempo


da memória. Caminhando vagarosamente, chega diante a
uma porta semiaberta, arranhada pelos veios da história, convi-
dando a entrar. Janelas se abrem como olhos prontos para obser-
var. Cortinas refletem a luz sobre berços que embalam livros, com

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personagens brincando de esconde-esconde, pulando de livro em
livro, por entre as folhas, querendo saltar, guardando histórias
prestes a ressoarem.
Quando nos encontramos diante de uma estante de livros, de-
paramos com infinitas possibilidades de caminhos a percorrer. Co-
res, formas e texturas tocam nossos olhos. Nos primeiros momen-
tos, as capas são como portais que nos convidam insistentemente
a entrar. As histórias nos transportam para um infinito mundo de
possibilidades, de espelhos, nos quais ora nós nos reconhecemos
como protagonistas, ora como contempladores de vidas.
Muito antes das páginas guardarem histórias, elas pairavam nas
vozes de nossos ancestrais, ao redor de fogueiras, sob a luz do
luar ou mesmo embalando o sono infantil. Narravam em tons me-
lodiosos, fatos verídicos ou imaginados, alimentando assim ima-
gens psíquicas em nossa alma. No relato, a voz e a cadência de
um contador de histórias criam imagens que materializam o verbo
(GIORDANO, 2020, p. 14).
A história contada e recontada guarda a memória de cada um
que a ouviu, narrando momentos como histórias-espelhos onde
nos vemos por entre os arquétipos que vivem em nós.
Jung percebeu que mitos e contos de fadas apresentavam motivos
arquetípicos, como a jornada do herói, a redenção, a morte do velho
rei, a ausência da mãe, a presença da bruxa, e a criança divina,
todos motivos arquetípicos inerentes à condição humana” (SCHNEI-
DER, 2021, s/p).

Há diversas formas de contar histórias. No processo terapêu-


tico, através das palavras, imagens ou sons, elas proporcionam
reverberações internas e descortinam velhos questionamentos
como: de onde vim? Onde estou? Quem sou? Para onde vou?
Certa vez Paul Gauguin (1848-1903), pintor e gravador pós-im-
pressionista francês, considerado um dos grandes nomes das artes

120 | Contos e Mitos em Arteterapia


plásticas da França do final do século XIX, deparou-se, em um
período de sua vida, em desespero e angústia. Gauguin havia de-
cidido tirar sua vida, mas antes pretendia pintar seu último quadro.
Na superfície branca de tecido desgastado, plasmou com cores e
formas seus sentimentos, tristezas e angústias que o sufocavam.
Em um ato de despedida, registrou imagens na tela, com leitura
no sentido oriental, onde narra o início da vida no canto inferior
esquerdo da tela, um bebê. Percorrendo até ao meio da tela, um
jovem, quase na fase adulta e ao final da tela, ao lado direito in-
ferior, uma velha, o final da jornada. Quando representa a morte,
Gauguin encontra a vida.
“Antes de morrer, descarreguei toda a minha energia e minha pai-
xão dolorida por terríveis circunstâncias. Em uma visão tão limpa e
sem correções, desapareceu a pressa e surgiu a vida” (MAZZANTI,
PRINCI, 2007, p. 79.)

A arte transforma! É um instrumento de possibilidades no pro-


cesso terapêutico, um processo de energia. No momento certo
emerge, proporcionando uma reorganização interna. E assim, os
passos ecoam um silêncio repleto de imagens alquímicas, o livro
em suas mãos abre-se e da primeira página salta a história que
vamos contar.

A jornada arteterapêutica
A jornada começa antes mesmo de se iniciar o curso de Artete-
rapia NAPE/FAVI. Cada uma vem de momentos específicos e com
expectativas, sonhos e ideais distintos, de lugares tão distantes
e peculiares, mas, após se juntarem em uma sala de aula virtual,
sentiram como se se conhecessem desde sempre, amigas de jor-
nada, amigas de vida.

| 121
A vida, assim como os livros, apresenta personagens e enredos
fascinantes. Três professoras de Arte de três estados diferentes,
mas como o mesmo propósito: concluir o estágio do curso de
pós-graduação em Arteterapia encontram-se e decidem contribuir
de alguma forma com os colegas professores que estavam vulne-
ráveis emocionalmente, com todos os medos trazidos pela pan-
demia do coronavírus, pela carga de trabalho e o olhar humano à
situação apresentada por cada aluno.
Neste contexto, mais cinco personagens entram nessa história.
Convidados intuitivamente, três professores de Mato Grosso do Sul
e dois de Minas Gerais se propõem a amenizar os sintomas trazidos
pela pandemia. O grupo “Cores da Vida” se forma, com o intuito
de colorir a vida, por meio de uma jornada de autoconhecimento.
A distância era apenas um dos desafios a serem enfrentados,
um misto de curiosidade e medo, perguntas, sentimentos, sensa-
ções, aquele friozinho na barriga... mas uma era o suporte da ou-
tra e aos poucos tudo foi ficando mais claro. Era impressionante
como uma completava a outra no processo e o melhor de tudo
isso é que todas cresceram juntas e a histórias de vida se entrela-
çaram, dando movimento e transformando a si mesmo e ao outro
numa grande corrente de transformação e ressignificação.
Pautadas em um eixo estruturante “quem sou, de onde vim,
onde estou e para onde vou” a escola ficou em segundo plano.
O trabalho já não era o que mais importava. A dor e as angústias
trazidas eram resultados de uma entrega pessoal, a confiança e
cumplicidade tomaram conta do grupo. Luto, culpa, medo de não
ser uma boa mãe, invisibilidade, calar-se diante de injustiças, não
ser merecedor da felicidade. Essas dentre outras queixas foram
aparecendo a cada encontro. E por mais que houvesse um plano
antecipado, era apenas ao final de cada encontro, analisando as

122 | Contos e Mitos em Arteterapia


falas e a necessidade do grupo que a próxima atividade era prepa-
rada. O resultado de cada passo direcionava o caminho a seguir.
Caminho esse que parte do pensamento de Jung “quem olha
para fora sonha, quem olha para dentro desperta” (2015, p. 33)
e leva ao um mergulho interior direcionado por histórias conta-
das, cantadas, assistidas ou meditadas, disparadores que trazem
à tona sentimentos, emoções e dores compartilhadas, mas que
formam uma aquarela de possibilidades de novas cores, pintadas
no coletivo e refletidas individualmente.
Os papéis de protagonista ou coadjuvante se alternam a cada
encontro. Poderíamos escrever sobre qualquer um dos persona-
gens, pois todos foram de igual importância no processo, no en-
tanto a Rosa (nome fictício) foi a escolhida, não por ser mais bela
e perfumada, mas pelo seu desabrochar suave e consistente.

Quem sou?
Desde o primeiro encontro ela se representa pela cor rosa, pois,
segundo ela, é suave e leve. Com o seu olhar delicado e sorridente
frente ao desconhecido que se apresentava, se entrega, deixando
a tesoura desenhar sobre a folha dobrada. Formas e cores sur-
gem reverberando imagens que antes não sabiam que estavam
lá presentes na caligrafia de seu nome e confeccionou um totem.
Refletindo sobre sua produção, Rosa percebeu:

Apareceu a imagem de uma borboleta, ela é forte e


corajosa, é a transformação, buscar o melhor para
mim. Não uso roupas coloridas na vida, mas gosto de
colorir. A borboleta tem uma relação com o meu jeito
de ser, tento “ser colorida”, procuro me transformar, com
alegria, tento ser uma borboleta na vida das pessoas.

| 123
Mal sabia ela que sua transformação se iniciava ali. Todos os
membros do grupo se apresentaram de uma forma e cor, pois
mais do que apresentar-se ao outro, o intuito era se conhecer,
descobrir como cada um se vê, como acredita ser, seus sentimen-
tos, desejos, dores... e foi assim que ao longo dos seis primeiros
encontros, por meio de desenho, colagem, escrita criativa, man-
dala de pedras e areia coloridas, eles se revelaram.
Rosa descreve-se como amorosa, guerreira, feliz, certa do que
quer, determinada, delicada e muito generosa, uma mulher te-
mente a Deus. Diz gostar da flor girassol, pois ela sempre segue
a luz e disse que desejaria ser um girassol, pois está sempre bus-
cando iluminar o mundo e a vida e adora ser boa com as pessoas.
Contudo, na atividade “metade de mim” ela revela uma de suas
dores, o fato de não conseguir engravidar e se emociona ao fa-
lar sobre esse tema. Reafirma também a sua fé, sua paixão pela
música, o amor constante e a esperança de um milagre em sua
vida (Figura 1). A flor rosa também a representa em um dos seus
trabalhos, cheia, robusta e plantada na terra, anuncia um jardim
florido (Figura 2).

Figura 1: Metade de mim

124 | Contos e Mitos em Arteterapia


Figura 2: Enflorescer

De onde vim?
Pouco a pouco, todas foram revelando-se. À medida em que as
lembranças de situações foram surgindo por meio das imagens
nas expressões plásticas era possível compreender a história de
vida de cada uma e como essas raízes determinam a pessoa que
se é no presente. Relembrar a infância aflorou dores e mágoas pe-
sadas em algumas das componentes do grupo, mas para outras,
como Rosa, a infância foi marcada por boas lembranças. Mesmo
em momentos difíceis nunca faltou amor. Com cumplicidade e
empatia o grupo ouve e acolhe todas as histórias.
A adolescência também não foi diferente. Marcas desse perío-
do fazem uma das participantes não se sentir merecedora da feli-
cidade, uma dívida cobrada de tempos em tempos. Rosa, por sua
vez, relata passar por esse período sem grandes traumas, apenas
alguns momentos em que sofreu bullying na escola, no entanto, a
amizade com suas irmãs, a participação efetiva na igreja e o amor
recebido de pais e avós a fortalecem.

| 125
As imagens falam e o processo de criação instiga. A criança
brinca com as flores, lê para elas, a leitura é um prazer para Rosa,
mas o jardim é de uma flor só, grande e vermelha (Figura 3). A
busca pelo controle de algo que deveria ser apenas sentido como
o fogo, traz algumas interrogações. Por que a mandala quebra ao
sair da água e o conserto é imediato? (Figura 4). Por que as flores
aparecem novamente? Por que utilizar essas cores? Será que ain-
da tem algo escondido para ser trabalhado?

Figura 3: Lembrança da infância

Figura 4: Floral

126 | Contos e Mitos em Arteterapia


Refletir “de onde vim” foi uma avalanche de sentimento, ver-
dadeiros rompimentos de barreiras. Neste contexto, surgem de-
poimentos de como os encontros eram importantes para a trans-
formação que estava surgindo ali junto ao grupo. A cada passo
novas descobertas e Rosa vai desabrochando lentamente.

Onde estou?
A árvore da vida foi a atividade mais difícil de ser realizada por
Rosa. Com raízes pequenas, ela não tinha sustentação, equilíbrio.
Foi preciso olhar para o lado e até pedir ajuda para descobrir
como ficar de pé. O nome dado à sua árvore foi “Superação”.
Mesmo mentalizando uma árvore frutífera grande e cheia de fru-
tos a dificuldade em realizar a sua estrutura e fixar as raízes cha-
ma a atenção e fica como reflexão.
A máscara cai, ou revela, mesmo tendo como pano de fundo
a história “Morte de Escarlate”, um tanto quanto sombria. Rosa
confecciona uma máscara em estilo carnavalesco, bem maior que
seu rosto, com uma estampa de onça e pérolas. O vermelho e rosa
dão lugar ao dourado.

“Senti um poder de tigresa! Não uso estampa de animal, não


combina comigo, mas sinto a força da tigresa!”

Neste momento, algo acontece. A menina doce e alegre se


transforma em mulher!
Nada na vida é como um passe de mágica. A transformação não
acontece de uma hora para outra, nem tão pouco foi possível so-
zinha. É um processo constante. O olhar, o ouvir, o sentir, o estar
em grupo encoraja. O crescimento do outro é um degrau para a
transformação pessoal. Sentir-se mulher e mais dona si faz Rosa

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encarar melhor seus medos e ela não tem problema em relatar ter
muito medo, mas tem fé e isso a ajuda.
A representação do rio dos sentimentos é cercada de muitas
pedras e mais uma vez aparece o medo de transbordar, mas flores
nascem sobre as pedras. Isso é esperança! Esperança e fé sempre
foram sua marca, contudo, não se cala mais diante de injustiças.
Aprendeu a se defender e a defender a quem precisar.
Guarda sua família, bem mais precioso de sua vida, em seu
relicário. Agora adulta, em seu self box, como em uma luta, faz
e desfaz, cola e descola, apaga e de repente retira a imagem da
professora e cola a imagem de uma mulher grávida (seu maior
sonho), cola também a sua foto e diz

“Em primeiro lugar, aprendi a me valorizar”.

E assim o “onde estou” fica claro para Rosa: estar onde quer
estar e não onde outros esperem que esteja.

Para onde vou?


Como em um mergulho, renascem a cada encontro novas falas.
Olhares e atitudes reverberam em Rosa. O grupo é como um Ába-
ton, um espaço sagrado e seguro de cura. Agora Rosa se coloca
como centro, responsável por sua cura e sente gratidão.

“Me vi pela primeira vez falando um NÃO!! Aprendi a


dizer NÃO! Estou conseguindo expressar a minha opinião,
defender o que acredito e o que penso. Transformar-me
em mulher e deixar de ser a menina sapeca”.

128 | Contos e Mitos em Arteterapia


A verbalização de Rosa tendo a consciência de sua transforma-
ção deixa o grupo em festa e serve como inspiração, tempero para
a vida de todas.
Rosa reflete com um sorriso em seu olhar. Ventos passados dei-
xam o presente viver, mas e os ventos futuros, o que trazem para
mim? Deus, fertilidade, alegria, sabedoria, paz, prosperidade, fé
e amor são os desejos trazidos do inconsciente, reproduzindo em
móbile de cores vibrantes seus desejos para o futuro.
Planejar o futuro requer se ver, se enxergar, se reconhecer. Eis
o questionamento: espelho, espelho meu, quem sou eu? O espe-
lho reflete a imagem, mas a beleza está nos olhos de quem vê.
Ao decorar a moldura do espelho com fitas de seda, pérolas e
flores de tecido, tudo em tons suaves, Rosa traz a sua delicadeza
e doçura. Sua essência não mudou, mas mudou a sua forma de
se posicionar e para surpresa de todos apresenta essa mudança
externamente no encontro seguinte. Com um sorriso brilhante
no rosto, cabelos cortados com cachos esvoaçantes, surge Rosa,
mulher, sob sua pele felina, com todos os sins e nãos que agora
decide se quer dizer.

Figura 5: Pachamama

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Um grande passo foi dado. Para seguir nesse novo caminho,
Rosa confecciona sua Pachamama, mãe terra, deusa do amor e
da prosperidade, capaz de mudar todo sentido na vida das pes-
soas. Diferente no formato, mas de igual poder, dá um conselho
a Rosa: “curte sua nova eu”. Cheia de esperança e certa de que a
vida ainda exigirá muito de si, Rosa planta seus sonhos, sua espe-
rança e fé confiante em um milagre em sua vida.
Foram muitos momentos, momentos de alegria, de aprendiza-
do e dor, afinal, o mergulho interior causa dor. Como o caçador
da lenda do Povo” A’uwe Upatbi”, que foi ao céu para ser cura-
do, o grupo foi direcionado como se cada um dos integrantes
fosse atraído um pelo outro, com momentos de cura e mudanças
significativas, onde o resgate do amor próprio teve um papel im-
portantíssimo nesse processo arteterapêutico. Era chegada a hora
de celebrar! Celebrar as amigas, as transformações… Celebrar a
vida, a felicidade! Rosa está com sua alma em festa.
As amigas encontradas no Grupo Cores da Vida são como um
verdadeiro arco-íris. A certeza de que é possível deixar a vida mais
colorida, cada um com sua cor foi dando um novo tom, onde
todos foram tocados e transformados de alguma forma. Rosa pre-
senteou a todos com a sua delicadeza de uma menina e agora
revela a mulher forte que sempre esteve dentro dela. Ela permitiu-
-se, sim. Essa seria a palavra para defini-la neste processo. Permitir
ser quem é, capaz de segurar as rédeas da vida e levar todos em
uma linda jornada pautada na grande fé que a sustentou durante
todo o processo.
E assim termina essa história… Não!Aapenas um ciclo se encer-
ra, pois muitos capítulos estão por vir. Foram felizes para sempre?
A vida não é um conto de fadas, mas pode ser transformada por
um, assim como aconteceu com Rosa.

130 | Contos e Mitos em Arteterapia


Referências

GIORDANO, Alessandra. Contos que Curam: a tradição oral como fonte de trabalhos
arteterapêuticos. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2020.
JUNG, Carl G. Letters, Volume 1: 1906 – 1950. New York, Routledge – Taylor & Francis
Group, 2015.
MAZZANTI, Anna; PRINCI, Eliana. Grandes mestres da pintura, Vol. 8 - Paul Gauguim.
São Paulo: Folha de São Paulo, 2007.
SCHNEIDER, Bertolotto SOLANGE. A importância dos mitos e contos de fadas.
Disponível em: https://www.solangeschneider.com/aimportanciadosmitosecontosdefadas.
Acesso em: 31/10/21).

| 131
132 | Contos e Mitos em Arteterapia
Entre estrelas e pedras preciosas:
devolvendo às mulheres as
rédeas de sua vida interior

Carlos Alberto Faruk Abu Laila Silva[1]


Iriê Prado de Souza[2]

[1] carlos.faruk.silva@gmail.com

[2] irieprado@hotmail.com

“Quando saíres a caminho de Ítaca,


faz votos para que seja longo o caminho,
cheio de aventuras, cheio de conhecimentos.
Os Lestrígones e os Ciclopes,
o zangado Poséidon não temas,
coisas assim no teu caminho não acharás nunca,
se o teu pensamento permanecer elevado, se emoção
requintada o teu espírito e o teu corpo tocar.

| 133
Os Lestrígones e os Ciclopes,
o selvagem Poséidon não encontrarás,
se com eles não carregares na tua alma,
se a tua alma não os colocar à tua frente. (...)”
(Constantino Kavafis (1863-1933)
O Quarteto de Alexandria - trad. José Paulo Paz.)

N osso estágio começou assim como começa qualquer


aventura, com heróis que aceitam o chamado e embar-
cam em uma viagem desbravando as águas misteriosas do oceano
desconhecido. Com um frio na barriga, uma mochila cheia de
objetos, instrumentos e artefatos, que ao longo da aventura vão
se mostrando, uns necessários e relevantes, outros inúteis e obso-
letos, e outros ainda que, somente pela necessidade imposta pela
experiência que é vivenciada, vão surgindo e sendo adquiridos
no caminho. O grupo de tripulantes que aceitaram o chamado
à aventura - “ressignificar o vazio em tempo de pandemia” - e
permitiram-se ser conduzidas por nós era formado por 4 mulheres
entre 20 e 50 anos de idade, residentes na cidade de São Paulo.
As participantes possuíam um background parecido com o nos-
so (coincidência ou sincronicidade?). Todas vieram da área da
Educação, assim como nós. Elas chegaram com problemáticas re-
lacionadas àquele vazio que sentiam ter tomado conta de alguns
setores de suas vidas, como água infiltrando silenciosamente na
pedra, entrando sem avisar, erodindo aos poucos o edifício da
alma. No entanto, paulatinamente elas foram percebendo que a
água infiltrava em rachaduras que já estavam lá na pedra de seu
ego muito antes de qualquer pandemia chegar.
Perceberam, ao seu tempo, sofrendo para largar a dor que parece
lugar de conforto quando ficamos muito tempo nela, que poderiam

134 | Contos e Mitos em Arteterapia


sair da zona de conforto e tomar as rédeas de suas vidas novamen-
te (ou pela primeira vez). Em um movimento de vida-morte-vida,
assim como no conto, La loba (Estés, 1994) que após juntar os
ossos no deserto, ressuscita a mais profunda e selvagem essência
de seu ser, elas permitem-se também fundir as partes rachadas
de seu edifício de pedra com ouro (ao invés de escondê-las, elas
ganham inusitado destaque), exercitando um kintsukuroi[3] íntimo,
começando a valorizá-las com o metal precioso do autoconheci-
mento, da autoaceitação e do autoamor, validando as experiências,
imperfeições e vivências - tesouros ancestrais, sem as quais elas não
seriam quem são e não estariam onde estão hoje.
Para a nossa grata surpresa, as temáticas relacionadas com a
pandemia foram perdendo força ao longo do tempo ainda dentro
do primeiro ciclo, que foi composto por 18 encontros pautados
por mitos e contos relacionados com os 4 elementos da nature-
za - como a copa que se esvazia aos poucos para poder receber
conteúdo novo. Já no segundo ciclo, temas mais profundos e par-
ticulares delas puderam ser explorados, sem que as temáticas da
pandemia tivessem mais tanta relevância.
Percebemos que as atividades arteterapêuticas, os materiais uti-
lizados, os contos e mitos apresentados iam aos poucos liberando
núcleos emocionais que anteriormente as impediam de viver as suas

[3] Como uma filosofia, kintsugi pode ter semelhanças com a filosofia
japonesa de wabi-sabi, a aceitação do imperfeito ou defeituoso. A estética
japonesa valoriza as marcas de desgaste pelo uso de um objeto. Isso pode ser
visto como uma razão para manter um objeto mesmo depois de ter quebrado
e como uma justificação do próprio kintsugi, destacando as rachaduras e
reparos como simplesmente um evento na vida do objeto, em vez de permitir
que o seu serviço termine no momento de seu dano ou ruptura. Kintsugi pode
se relacionar com a filosofia japonesa de “não importância” (mushin) que
engloba os conceitos de não-apego, aceitação da mudança e destino como
aspectos da vida humana (fonte Wikipédia).

| 135
experiências mais plenamente, levando-as a perceber que mesmo
diante de uma pandemia era possível tornar-se mais plena, mais
inteira, mais conectada consigo mesma.
Nossa proposta no ciclo 1 era a de investigar e conhecer mais
as necessidades do grupo, assim como o de equilibrá-las e es-
truturá-las melhor, levando em consideração os elementos que
simbolizavam as quatro funções psicológicas na tipologia de Jung:
pensamento, sentimento, sensação e intuição. “Esses quatro tipos
funcionais correspondem aos recursos óbvios através dos quais a
consciência obtém a sua orientação para a experiência” (JUNG,
1964, p. 61 apud HALL e NORDBY, 2005, p. 88).
Em cada encontro um mito ou conto era utilizado, relacionando
alguma temática relevante para explorarmos e investigarmos me-
lhor as suas necessidades. Já em nosso segundo ciclo, escolhemos
trabalhar em oito encontros com dois contos somente, quatro
encontros para o conto da “Vasalisa, a sabida” [4], para tratar de
questões relacionadas à criança interior, à grande sábia, às som-
bras e à intuição. E outros quatro encontros que enfatizaram o
autoamor, autoestima, formas diferentes de amar a si e aos ou-
tros, assim como a sensualidade e feminilidade, através de alguns
contos e lendas da orixá africana Oxum [5].

[4] Conto retirado do livro: Mulheres que correm com os lobos de Clarissa
Pinkola Estés.

[5] Mitos inspirados pelo livro: Lendas africanas dos orixás, de Verger.

136 | Contos e Mitos em Arteterapia


O segundo ciclo se formou por conta da experiência que fomos
adquirindo em contato com as nossas clientes durante todo o ci-
clo anterior. As temáticas que eram mais recorrentes puderam ser
melhor exploradas no ciclo que se seguiu, possibilitando um apro-
fundamento e desenvolvimento de questões mais importantes e
relevantes para as nossas partilhantes, já que muito das angústias
e insatisfações com a condição imposta pela pandemia se torna-
ram menos potentes, como se fosse apenas um ruído externo que
com algum treino e concentração poderíamos aprender a ignorar,
focando mais dentro, no íntimo, no inconsciente.
O Baobá[6], importante árvore africana, nos auxiliou a iniciar a
nossa jornada. Sem nos darmos conta, conduziu todo o primeiro
ciclo do processo arteterapêutico. Assim como o Baobá jovem, re-
cém criado por Olorum, nós nos questionávamos muito. A vivên-
cia da etapa 1 fez com que acertássemos e errássemos, fez com
que entendêssemos melhor a prática terapêutica.
E foi quando finalmente fomos virados de cabeça para baixo,
assim como o baobá em sua lenda ou o arcano maior do Tarot[7],
“O pendurado”, que nos permitimos ver as coisas de outra pers-
pectiva, nos distanciando um pouco da razão, da lógica cartesia-
na, da teoria pela teoria.

[6] Conto do baobá inspirado entre outros pelo conto contado em Folclore
Africano Episódio de Histórias para Dormir | Euiancoski para Crianças |
Podcast Infantil, no Spotify.

[7] Usando as teorias Junguianas sobre individuação, arquétipo, sincronicidade


e imaginação ativa, Sallie Nichols analisa cada carta do Tarô de Marselha
como uma representação das diferentes etapas da jornada do indivíduo rumo
à transformação e à integração de si mesmo.

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Colocando-nos numa relação dialógica com a intuição, a sen-
sação e o sentimento, para além do pensamento. Percebendo de
fato as necessidades de nossas clientes, que ora surgiam como
ervas daninhas na relva ora como flores perfumadas no campo.
A seguir serão apresentados os resumos das atividades artetera-
pêuticas desenvolvidas com esse grupo de mulheres. Elas são aqui
identificadas pelo codinome que escolheram em um dos encon-
tros: Estrela, Lua, Jade e Rubi.

Estrela
Alguns temas se mostraram recorrentes no processo delas. In-
conscientemente de início, elas sempre os traziam em suas falas
e em suas produções. Por exemplo, a participante Estrela trazia
sempre temáticas religiosas cristãs ora ligadas ao polo da oração,
do rogar a Deus, do curar-se e conectar-se espiritual e religiosa-
mente, ora ligadas a guerras santas, a batalhas divinas. Surgiam
misturadas, imagens de espadas, de lanças junto de estrelas e
cruzes, que ela identificava como a sua espiritualidade e religio-
sidade, como se carregasse a cruz em sua psique cheia de suas
aflições e frustrações.
Surgiu a oportunidade de amplificar os símbolos e se chegou ao
sentimento de revolta, até mesmo de agressividade, no entanto,
ela negava a necessidade de entrar em contato com a sua própria
frustração e indignação, que eram trazidas em sua fala por estar
se sentindo presa por conta da pandemia, por não admitir as con-
tradições de seu círculo de conhecidos e familiares a respeito do
momento em que vivíamos.
Vimos muitas vezes que era necessário que ela confrontasse
essa frustração e irritação. No entanto, o seu próprio inconsciente

138 | Contos e Mitos em Arteterapia


é que se encarregava de efetuar as mudanças, posto que os sím-
bolos pararam de ser relacionados a agressividade, a guerras e
lutas, como se em algum lugar seu, aquelas imagens de violência
e autodefesa estivessem aos poucos se enfraquecendo, perdendo
força, permitindo que uma camada a mais se abrisse. Os símbolos
que se relacionavam à religiosidade continuaram presentes, po-
rém mais esperançosos, mais leves. Como se finalmente estivesse
se encontrando com o arcano da Sacerdotisa do tarot, conectan-
do-se ao seu mundo interno, permitindo-se acessar um pouco
mais seu lado lunar, profundo, que as águas de suas emoções
fossem aos poucos sendo exploradas e navegadas.
Em uma das sessões subsequentes novamente um símbolo re-
ligioso apareceu em sua produção, através da confecção de uma
bonequinha de pano que lembrava uma santinha, uma “Nossa
Senhora”. Lembrou-se então de sua avó, que benzia, que rezava,
que a conectava a sua espiritualidade e religiosidade. Esta cone-
xão com a sua ancestral na forma da grande sábia a fez abrir-se
um pouco mais. Acabamos a sessão com um abraço em si mesma
como se abraçasse a sua avó, agradecendo-a e recebendo o seu
carinho e cuidado. A ancestralidade era outro símbolo que este-
ve sempre presente nas sessões de Estrela. Ela buscava entender
melhor sobre os seus ancestrais, havia viajado para a Europa e
descoberto a sua linhagem, porém ainda se ressentia de não ter
conseguido encontrar todos os nomes, como se buscasse no seu
passado alguma resposta para a sua vivência presente.
Esta temática parecia dominar os pensamentos de Estrela ini-
cialmente, somente cedendo lugar para quando a sua indignação
e irritação se faziam presentes com os símbolos das suas guerras
santas. Em um dado encontro ela trouxe feliz e aliviada a desco-
berta de sua linhagem através da análise de seu genoma. A partir

| 139
de então aparentemente estava mais leve nas sessões. O encontro
que nos marcou como representando um rito de passagem para
Estrela foi o de temática de Oxum (amor consigo e com os outros).
Para esta atividade indicamos a utilização de algodão e guarda-
napo de papel, que seriam colados em uma outra folha de papel
para receber uma tinta bem aguada para colorir a composição
(Figura 1).

Figura 1: Desenho com tinta guache aguada


em papel, algodão e guardanapo colado

Estrela disse ter intencionado representar uma borboleta com


as asas bem abertas. Esta composição vinha de uma série de com-
posições que não traziam mais as temáticas que anteriormente se
repetiam tanto. Aparentemente todas foram surgindo até culmi-
nar neste momento. Estrela disse não ter visto a borboleta que in-
tencionou criar, mas viu uma pirâmide, que se abria ao meio para

140 | Contos e Mitos em Arteterapia


o sol. Como que permitindo que o calor do astro celeste derretes-
se suas amarras e correntes que a vinham acompanhando desde
o início das sessões, a busca pela ancestralidade perdida de um
lado, no passado, e a frustração com a desesperança no futuro,
do outro lado e no meio, o seu self talvez, emitindo luz, pulsando
vida, permitindo a transformação, o renascimento, a ressignifica-
ção de estados possíveis de ser e estar no mundo.
A borboleta que quis representar era a libertação que começa-
va a sentir novamente. Ainda não a libertação física, posto que a
pandemia a forçava ficar dentro de casa, mas uma outra liberda-
de, mais íntima, psíquica e emocional. Estrela sempre rememora-
va experiências de sua adolescência, na qual viajou muito, cantou,
tocou violão. A vivacidade que buscava residia em sua adolescên-
cia. Ela ainda terá um longo percurso para se reconectar com a
sua menina arquetípica, para libertar-se de todas as amarras que
a prendem, porém, naquela sessão, pudemos testemunhar o seu
rito de passagem dentro dessa pequena jornada de autoconhe-
cimento nas sessões de Arteterapia que, por sua vez, compõem
somente uma pequeníssima parte dentro da uma outra grande
jornada, a de individuação, a de reencontro com a sua essência,
inerente a experiência humana na terra.

Lua
O processo de Lua foi o mais desafiador para nós, já que ela
não se conectava com as atividades, faltava entrega e relaxamen-
to. Seu ambiente familiar aparentemente não parecia ajudar, já
que ela estava sempre no chão e havia pessoas a sua volta que se
comunicavam com ela a todo momento. Acreditamos que muito
do que poderia ter sido expressado por ela deixou de ser dito, tal-

| 141
vez por esta falta de privacidade. Mesmo assim ela nunca faltou
às sessões e sempre externalizava em palavras que estava sendo
levada a reflexões e até a tentativa de mudanças de hábitos, que
geralmente se mostravam sabotadas por ela mesma.
Algumas atividades específicas possibilitaram um encontro mais
inusitado para ela com o seu inconsciente de maneira menos ra-
cional. Esses encontros foram conduzidos pelo elemento Fogo. Ela
expressou ter trauma e medo de lidar com o fogo por conta de
uma experiência infantil em que havia se queimado em sua casa.
No entanto, a conversa e as reflexões conduziram-na a finalmente
reconhecer que parte desse medo se expressava por ter um cará-
ter extremamente controlador. Percebeu como esse elemento era
selvagem e incontrolável e todos os aspectos de sua vida que se
relacionavam com o descontrole eram muito incômodos e sem-
pre estavam presentes, repetindo-se em suas falas: a morte, a
doença, o trabalho como professora infantil em meio à pandemia.
Tudo se fazia presente como desabafo, mas aparentemente sem
alívio e sem ressignificação.
Seu processo foi como o trajeto de uma montanha russa, com
pontos altos e pontos mais baixos. Pontos que voltavam com espe-
rança renovada por ter conseguido parar de pensar excessivamen-
te e tirar um tempo para passear de maria-fumaça, por exemplo.
Mas os pontos de lucidez eram mais raros e os pontos de angústia
pareciam ser o mote principal de seu enredo pessoal, como a figu-
ra da cobra que eternamente morde o seu próprio rabo, ela se via
presa nesse ciclo sem fim de angústias e irracionalidade.
Lua não percebia que querer controlar o incontrolável fazia com
que sua energia de agência sobre o mundo e a sua própria vida
ficasse estagnada, acabava não realizando seus desejos, que se
expressavam muito relacionados ao descanso e ao lazer, posto

142 | Contos e Mitos em Arteterapia


que não quebrava o ciclo pessimista e automático de sua vida co-
tidiana: trabalho, família, trabalho. Aparentemente Lua renegava
seu animus, não permitindo que ele se curasse e se equilibrasse,
nublado por uma figura masculina presente em sua vida psíquica
que a controlava mais do que ela mesma poderia imaginar.
Por uma segunda vez ao longo de todo o processo arteterapêu-
tico de estágio Lua se viu num lugar profundo em seu interior,
entregando-se de maneira mais inteira, novamente o elemento
presente era o fogo. Desta vez foi a confecção de uma lanterna
(Figura 2), proposta de atividade das sessões que tiveram o conto
Vasalisa como tema disparador.
O molde era de papel de cor preta mais firme para dar base e
estrutura, o qual foi ignorado e não utilizado por Lua, reforçan-
do ainda a fragilidade de sua consciência para o enfrentamento
de algumas questões sombrias de seu íntimo. O papel de seda
branco foi privilegiado por ela para a confecção de sua lanterna,
naquele encontro inclusive ela expressou verbalmente o quanto
sentia-se à vontade e confortável criando algo mais delicado - po-
rém frágil também.

Figura 2: Lanterna de papel e vela

| 143
A sua lanterna tomou a forma de uma máscara, no qual somen-
te um olho vazava luz, o outro permanecia obscuro e sombrio.
Para Lua, um dos temas recorrentes que surgiam em sua fala era
relacionado ao seu pai já falecido - a figura masculina que aparen-
temente a perseguia inconscientemente. Ela iniciou falando dele
de maneira mais corriqueira e superficial, mas sempre de forma
negativa, tendo sido um pai com vícios e ausente, sobrecarregan-
do a sua família e forçando-a a amadurecer antes do tempo por
ter de cuidar da casa e das irmãs enquanto a sua mãe trabalhava
para prover o sustento da família durante toda a sua infância. Foi
neste período inclusive que Lua teve sua experiência traumática
com o fogo, queimando-se enquanto esquentava algo no fogão.
A figura de seu pai sempre voltava a assombrá-la. Ela não nota-
va, mas havia uma necessidade inconsciente de reconciliar-se com
o seu masculino interior ferido, que se expressava como esse pai
ausente e sem amor. No entanto, na atividade da lanterna, pela
primeira vez, Lua trouxe aspectos positivos de sua experiência de
vida com seu pai. A temática da morte surgiu muito forte, lem-
brando-se de seu falecimento e, surpreendendo a todos nós, ad-
mitindo o quanto dele mora nela, o quanto de semelhança existe
em seus atos e nos de seu pai.
Admitiu ter um modo de ser acelerado e sem tempo a perder
muito parecido ao dele. No entanto, pela primeira vez também,
isso veio de maneira leve, quase com alívio. A temática da morte
se fez presente pela lembrança do enredo do filme da Disney/
Pixar: Viva, a vida é uma festa, em que o personagem principal
adentra o mundo dos mortos para se reconectar com a memória
de seu avô e nesta aventura aprende que quando esquecemos de
honrar a memória de nossos ancestrais, acabamos perdendo tam-
bém um pedaço de nossa própria história, de nós mesmos.

144 | Contos e Mitos em Arteterapia


Lua, finalmente, pôde encontrar um lugar de paz junto a suas
lembranças e vivências tão difíceis de infância com seu pai. Ain-
da era somente um respiro bem breve e curto diante de todo o
oceano que haveria de ser explorado e navegado. O seu processo
de autoconhecimento e autocura acabara de subir um pequeno
degrau diante de uma escadaria infinita. Os caminhos desse labi-
rinto só poderão ser desvendados aceitando as trevas inerentes ao
percurso e acendendo a sua própria luz para iluminar sua jornada
de individuação.

Jade

“Eu sou a própria tempestade, mas eu


não quero habitar o caos, com raios nas
mãos, furacão no peito e olhos de fogo,
eu me permito ser brisa, eu me permito
ser o ventinho que bate no rosto e diz que
estamos vivas, eu me permito”.
Ryane Leão

Na trajetória de Jade dentro do processo de estágio pudemos


perceber uma mulher que caminhava próxima do arquétipo da
deusa Héstia, sustentando e tentando equilibrar o fogo sagrado
de seu lar, entre medos de fracassar como mãe de uma adolescen-
te em fase de curiosidades e descobertas como não poderia deixar
de ser nesse período normal da vida. A mãe Jade aparentemente
parecia podar seus galhos ao invés de se expandir e se abrir para
novas possibilidades, nunca deixando as raízes se aprofundarem
nas entranhas da terra. Por receios, traumas e resistências, que

| 145
cultivou como escudo para desviar de grandes dores, optou por
ser bonsai em espaço e rotina seguros ao invés de baobá que
explode as folhas querendo alcançar o céu e o universo todinho.
Todavia, inicialmente em seu processo pudemos perceber em
sua fala uma insegurança perene, um manter o status quo, mes-
mo percebendo que mudanças seriam positivas e que teria de agir
para atingi-las, já que o agir inicialmente era quase impossível de
se conceber. Em mais de um encontro mencionou perceber que
em sua vida o medo era seu guardião e companheiro.
Seus galhos de bonsai temiam abraçar o mundo que gostaria de
construir. Vivia, assim, a se boicotar, não se achando merecedora
do melhor da vida. Seus boicotes eram através de comparações
com seus familiares, colocando-se sempre abaixo deles. Talvez te-
nha faltado adubo e água na infância dessa plantinha linda que
não enxerga o próprio potencial criativo, querendo permanecer
sementinha ainda.
Ao invés de se deixar aprofundar e renovar as forças que são
sugadas diariamente, ela preferia ficar na zona de conforto mes-
mo percebendo que era infértil aquela terra já devastada. Preferia
aceitar o que tinha, fosse como fosse, como quisessem lhe dar,
ao invés de entrar em embates pelo que acreditava, preferia ficar
no seu vasinho minúsculo sem reclamar. No entanto, claramente
clamava por mais calor, mais água, mais vida, mais diversão, mais
atenção e mais cor nas suas folhas. Seu animus aqui estava cativo
de uma anima amedrontada e controladora, que o acorrentava
sempre à espera do sacrifício pelo monstro marinho.
Suas folhas só seguem para onde o vento vai levando, não con-
segue aceitar que pode ouvir e se deixar guiar por seus próprios
furacões e que como diz Ryane Leão [8], “faça magia dentro de
seus vazios. Complete-os com o novo, com a ponta de seus de-

146 | Contos e Mitos em Arteterapia


dos. Água parada só se mexe quando a gente mergulha e trans-
forma em movimento”. Não tem fé em si de que vai conseguir
resolvê-los tranquilamente, pois existem vozes excessivas internas
dizendo que não é boa o suficiente. Mas afinal o suficiente tem
que satisfazer a quem?
E assim seguiu, fazendo suas atividades arteterapêuticas e nelas
aflorando saudade do que nunca experimentou nas terras dis-
tantes das metrópoles. Vislumbrando suas origens pulsou uma
certa ausência por algo que seria uma possibilidade maior de paz
interior do que na agitação onde foi obrigada a construir morada.
Entretanto, não há solidez, parece flutuar nas nuvens que se tra-
duziu no algodão em uma das atividades.
Em uma produção plástica expressiva sobre o conto do João de
Barro e a construção de seu ninho, reviveu uma perda e seu perío-
do de luto, pois sua história envolve muito do perder e ter que se
conformar para seguir. Isso parece ter se tornado parte de hábitos
naturalizados. Infelizmente, tende a direcionar mais o olhar para
suas carências, que estagnam a caminhada, ao invés de focar em
toda sua força interior. Não aceita que necessita coragem para se
adaptar e continuar tentando até conseguir de fato irradiar a ale-
gria que também quer espaço para brilhar, iluminando tudo que
ainda está confuso e inseguro. Como a tempestade e os raios que
tentam acertar seu bonsai que quer virar baobá.

[8] Poemas retirados de mídias sociais de Ryane Leão, mulher preta, poeta
e professora, criadora da página onde jazz meu coração, com mais de
600 mil seguidores nas redes sociais. Seu primeiro livro, Tudo nela brilha e
queima, já vendeu mais de 40 mil exemplares. https://www.instagram.com/
ondejazzmeucoracao/, acesso em 5/12/2021.

| 147
Talvez a seca em suas terras internas poderia ser refrescada
com suas próprias lágrimas, com poder curativo, mágico e mis-
terioso. Ao longo dos encontros foi deixando frases e problemas
no ar, dizendo que ainda não queria se abrir, o que era sempre
acolhido pelo grupo e por nós.
Jade se saía muito bem em atividades controladas e calmas,
tendo sido uma das únicas que realmente se acalmou e relaxou
fazendo o seu potinho da calma. A grande questão é até quando
será possível para ela guardar todo esse mar sem que ele vire um
incontrolável tsunami. Será que as águas de Jade podem se trans-
mutar em um lago que atravessará segura de barco para o paraíso
de Avalon? A escolha é desse pequeno universo em expansão que
simboliza Jade e sua trajetória.
Mais de uma vez surgiram observações e reflexões pela par-
ticipante quanto a sua necessidade de suprimir, controlar e su-
focar suas emoções. Em uma atividade representou visualmente
a divisão que fazia entre emoção e racionalidade, sem perceber
que as barreiras que havia escolhido para separar as duas coisas
eram frágeis demais para se manterem sólidas, posto que feitas
de algodão, reconhecendo que tinha de lidar com suas emoções
também, mas sempre guardando-as de nós como segredos tran-
cados atrás de uma porta.
Pode-se perceber na Figura 3 que a parte superior pintada de
azul claro representa, segundo ela, a emoção - quase sem cor, mas
ocupando um grande espaço. Enquanto que a parte inferior, ama-
relo ouro, representa sua razão, mais forte e marcante. O verde
escuro formava a barreira que Jade colocou entre a emoção e a ra-
zão, para separá-las. Contudo, após conversa e reflexão, a imagem
se expandiu para a de uma praia, na qual o amarelo era a areia, o
azul o oceano. A pergunta que permaneceu com ela para reflexão

148 | Contos e Mitos em Arteterapia


foi “o que acontece se colocar uma barreira entre o mar e a areia?”
e ela mesma respondeu entre dentes, com um sorriso desconcerta-
da, que não haverá de ficar pedra sobre pedra com a força do mar.

Figura 3: Desenho com tinta guache aguada em papel,


algodão e guardanapo colados no papel

De acordo com Joseph Campbell, por vezes é na caverna que


temem entrar onde se localiza o tesouro que se procura. Jade
carece de mergulhar no submundo com a deusa Hécate como
guia - a senhora dos caminhos, portadora de todas as chaves que
abrem todas as portas de todos os planos. E fazer como no último
encontro ela mesma concluiu, abrir de vez a porta.
Na atividade proposta de colagem de fotos e imagens que re-
presentassem a beleza em lugares internos e externos em sua
vida, Jade fixou no centro de sua produção uma foto de si abrin-
do uma porta e afirmou não querer mais voltar atrás, não desejar
mais fechar essa porta, como a heroína casada com Barba-azul,
que no conto abre a porta e não tem mais como esconder de si
mesma o que viu lá dentro. Enfrentando com coragem os seus
aspectos mais sombrios, analisando tudo por todos os ângulos,
entendendo o aprendizado que proporcionaram, as cicatrizes que
restaram e a partir disso se fazer lótus, baobá ou a planta que
cativar, pois o tempo do bonsai já passou.

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Rubi

“Eu conheci uma mulher feita de dendê,


coragem e búzios dourados. Ela viveu a
angústia por anos, então já sabe como
dominar o fogo, ela some num relâmpago
de tempo, ela não permite que destruam
sua morada. Ela rege a si mesma. Ela sou
eu e também é você”
Ryane Leão

O processo de Rubi foi muito bonito e prazeroso de se acom-


panhar, como se pudéssemos ver o momento exato em que uma
semente vira broto, depois árvore, depois dá flores, a flor se abre
e nasce o fruto suculento, explosão de sensações, o pêssego sa-
grado do jardim dos deuses.
Iniciou a sua jornada junto de nós ainda semente, de novo se-
mente, com todo o potencial latente de árvore, contido e reprimi-
do dentro de si. Ela viveu muitos anos somente pelos filhotes que
colocou debaixo de suas asas e cuidando deles deixou de cuidar
de si, esqueceu de se enfeitar, se apaixonou pelo homem que foi
embora deixando-a empurrando a pedra montanha acima, mas
em cada pausa a pedra rolava o percurso de volta e lá ia ela nova-
mente recomeçando um ciclo cego de desafios e cansaço que ia
engolindo as forças, a juventude, a beleza e a vivacidade.
Ao longo dos encontros e de seu desabrochar, sua flor interna
foi exalando perfumes de cravo e canela, ela remoçou. No espelho
virou cigana charmosa, seduziu o rio que antes transbordava sem
rumo, controlou a si e a ele também. Com as mãos construiu mar-
gens, colocou barreiras entre ela e o mundo, que antes a invadia

150 | Contos e Mitos em Arteterapia


sem pedir licença. Derrubou outras entre ela e o amor próprio; ba-
nhou-se nas águas de Oxum que adoçou seus lábios e abrandou
o que antes era pedra bruta. Na atividade da mandala com base
de argila (Figura 4) dentro da temática da Vasalisa, finalmente
reconheceu a necessidade de entrar em contato novamente com
sua sexualidade. O cravo no centro da mandala revelou-se como
o prazer reprimido que necessitava de atenção, de aroma, de ser
visto, de ser notado.
Despertou sua deusa interior, bebendo do poder do sagrado
feminino materializando num ritual de beber chá de cravo, de
banhar-se com seu perfume, de exalar a sua atratividade natural.
Aroma que decidiu tomar para si e incorporar como seu, por ne-
cessidade, por justiça consigo e com sua trajetória, por autoamor
e autocuidado. Vestiu-se de vermelho sangue, de pés no chão ou
salto e trovão na mão saiu desbravando, guerreira empoderada
de si, cheia de uma paixão inédita em seus dias, brilhou na noite.

“Você é uma reza bonita”


Ryane Leão

Figura 4: Mandala de grãos e especiarias com base de argila

| 151
Costurou em mandalas o ouro de Oxum, aquele que brilha mais
que o sol. Assim compreendeu que o exagero pode estar enco-
brindo o que falta, o que não se encaixa. Aos poucos observou
que em exagero tudo pode se tornar tóxico e nocivo e até mesmo
o amor mais verdadeiro pode errar buscando acertar, afinal sol
demais pode matar o girassol que é uma flor delicada e sensível.
O barquinho de papel de seus sonhos naufragou, tal como Ti-
tanic nada funcional, grande demais, pesado, exagerado, desen-
gonçado. Ao atravessar para Avalon, onde encontraria sua felici-
dade, sucumbiu nas águas escuras, perdido nas névoas da dama
do lago, vivenciando seu lado sombra, como se personagem per-
dida dentro do mito de Morgan Le Fay [9]. Sofreu muito pela di-
mensão das velas e pela pequenez e fragilidade da base, ao tentar
navegar em rios de emoções que poderiam ser vivenciados com
pequenas embarcações, simples, práticas, planejadas e efetivas.
Contudo, não precisou de colete salva-vidas ou qualquer aju-
da, pois foi sua própria salvadora e merece os louros para si, as
comemorações dançando no escuro com sua lealdade, a timidez
que caiu ao chão, o hibisco desenhado no fundo dos olhos, a
flexibilidade do corpo ao se permitir deixar o fluxo do rio seguir
para novos afluentes e para cachoeiras banhando muitas outras
pessoas que a vida trará.
Durante os encontros do ciclo final baseados nos contos e mitos
de Oxum, ela finalmente despertou sua feminilidade que clamava
por libertação. Vestiu-se de rosa choque, perfumou-se de aroma
de cravos e rosas, passou batom escuro e finalmente permitiu-se

[9] Referência a história e mitologia de Morgan Le Fay pesquisada no


site https://pt.wikipedia.org/wiki/Fada_Morgana, acesso em: 9/07/2021.
Referência a história e mitologia de Morgan Le Fay pesquisada no site https://
pt.wikipedia.org/wiki/Fada_Morgana, acesso em: 9/07/2021.

152 | Contos e Mitos em Arteterapia


ser vista em toda a sua potência feminina, sensual e selvagem,
como o lobo que vira mulher no conto La loba. De maneira mis-
teriosa, pela luz da lua ou ao toque da água em seus pés, ela sai
dançando e correndo livre pelas campinas, renascida.
Que nenhuma pedra consiga nunca mais parar seu fluxo de
vida, aquele que você tinha na infância, adolescência e da qual
romantizando a maternidade achou que não teria problema se
guardasse para usar essa roupa bonita em um outro dia mais es-
pecial; vestiu-se de trapos por tempo demais. Quase se perdeu
em um mísero igapó, sendo que Oxum lhe concedeu a vestimenta
que corre para as cachoeiras de sete ou setenta e sete véus. Se
veste e leva tudo, pedra, folhagem, medo, vergonha, mágoa, tris-
teza, frustrações, amores que deram certo mesmo sendo errados.
Leva para longe tudo isso para limpar essa curva, pois com força
esse rio será puro como sua nascente, será sua própria referência.

A todas as mulheres
Esse estágio em Arteterapia deixou diversas sabedorias e
aprendizagens para todos nós. Crescemos e aprendemos com as
trocas, as aflições, os choros, as gargalhadas, os sorrisos serenos
e os respiros de alívio. Caminhamos de mãos dadas com essas
mulheres, que aceitaram participar de uma jornada de autoco-
nhecimento e autotransformação acompanhadas de guerreiras
amorosas e de guias ávidos por facilitar o seu processo com ca-
rinho e responsabilidade.
Um lembrete a cada mulher desse grupo e a todas, em diver-
sos espaços, profissões, situações, etnias, classes sociais, com
qualquer religião e orientação sexual, mães solos ou não: este-
jam abertas, ouçam suas intuições, vocês são deusas na terra.

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Vocês são fortalezas únicas, no dom e no ofício da arte de serem
bruxas naturais. Conhecedoras da magia do inconsciente, do
descobrir-se, do desvelar-se. Mergulhem nos mares do autoco-
nhecimento, do recomeçar, do juntar os cacos a cada final trági-
co e se propor a uma nova reconstrução. Criem a profundidade
que as faz infinitas e além.

154 | Contos e Mitos em Arteterapia


Referências

A Lenda do Baobá. In: SPOTIFY. Angola | Folclore Africano Episódio de Histórias para
Dormir | Euiancoski para Crianças | Podcast Infantil. Disponível em: https://open.spotify.
com/episode/4Q4w5S2d8MtQNq8lgAKX4p?si=NTXKENXNSb-ghSIpddM1xA&utm_
source=whatsapp&dl_branch=1. Acesso em: 7/05/2021
ESTES, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do
arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
FADA MORGANA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia
Foundation, 2021. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Fada_
Morgana&oldid=62344185>. Acesso em: 9 jul. 2021.
HALL, Calvin; NORDBY, Vernon. Introdução à psicologia junguiana. Tradução:
Heloysa de Lima Dantas. 8. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2005.
JUNG, C; VON FRANZ, M. L…(et al.). O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2002.
KINTSUGI. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2021.
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Kintsugi&oldid=62083603>.
Acesso em: 20 set. 2021.
LEÃO, Ryane. Tudo nela brilha e queima. Planeta; 1ª edição (13 outubro 2017).
LEÃO, Ryane. Jamais peço desculpas por me derramar: Poemas de temporal e
mansidão. Planeta; 1ª edição (30 outubro 2019).
NICHOLS, S. Jung e o tarô: uma jornada arquetípica. São Paulo: Cultrix, 1988.
VERGER, Pierre Fatumbi, 1902 - 1996. Lendas africanas dos Orixás. Salvador: Corrupio,
1997.

| 155
156 | Contos e Mitos em Arteterapia
As deusas e os quatro
elementos da vida

Simone de Souza Silva[1]


Telma de Carvalho Craide[2]

[1] psico.simonesilva@gmail.com

[2] telmacraide@gmail.com

Um percurso inesperado

I niciamos o curso de pós-graduação em Arteterapia do NAPE


em outubro de 2019. Em fevereiro de 2020, o mundo foi
surpreendido pela pandemia do covid-19 e veio então a neces-
sidade de isolamento social, nos desafiando na continuidade da
especialização à distância, instigando alunos e educadores a algo
que seria por tanto tempo um novo modelo de vivenciar a arte e
a educação. Assim chegamos em março de 2021 no estágio de

| 157
prática supervisionada, com a tarefa de desenvolver atividades de
Arteterapia, ancoradas na temática dos contos e mitos. Apresen-
tamos a proposta nas mídias sociais da clínica de psicologia “Para
Ser Um” e 10 mulheres apresentaram-se, constituindo dois gru-
pos: Demeter-mamães de 30 a 45 anos - e Atena, jovens mulhe-
res de 18 a 30 anos, todas com formação universitária ou ensino
médio completo.
Ao selecionarmos mulheres na faixa etária de 18 a 45 anos,
consideramos que no contexto do mundo atual a força do femi-
nino necessita manifestar-se na forma de criatividade e expressão
artística para se fortalecer e se recriar.
“Uma deusa é uma forma que um arquétipo feminino pode assumir
no contexto de uma narrativa, representa uma dinâmica energética
feminina, uma energia psíquica que inspira e informa as atitudes
cotidianas” (WOOLGER,2020, p.12).

Trouxemos para o setting arteterapêutico o arquétipo da Mu-


lher – Atena, regida pela deusa da sabedoria e da civilização, que
busca a realização profissional, envolvendo-se com educação, cul-
tura, justiça social e política, para assim dialogarmos com o grupo
de jovens de 18 a 30 anos. Já o Arquétipo da Mulher – Deméter,
regida pela deusa das colheitas, verdadeira mãe–terra que gosta
de estar grávida, de amamentar e de cuidar de crianças, envol-
vidas com todos os aspectos do nascimento e dos ciclos repro-
dutivos da mulher, foi o tema para dialogarmos com o grupo de
jovens mães de 30 a 45 anos.
Para tal, após orientações iniciais e estabelecidos os critérios
de continuidade, os grupos se estabilizaram em número de par-
ticipantes e as atividades foram sendo apresentadas a cada aten-
dimento, subsidiadas por algumas técnicas como a prática de
meditação guiada, relaxamento e a apresentação de mitos e con-

158 | Contos e Mitos em Arteterapia


tos. Também utilizamos a amplificação simbólica, com o uso de
materiais expressivos, mandalas, escrita criativa, músicas e vídeos
compartilhados, consciência corporal/ritmo vitais e dançaterapia.
Estruturamos um percurso de 10 atendimentos para cada um dos
grupos com o objetivo de liberar os mecanismos de auto-expres-
são e fortalecimento da autonomia criativa.
É importante ressaltar que a escolha da trilha sonora foi ampla-
mente estudada, escolhendo canções trabalhadas em processos
de Dançaterapia (Luca Ciut [3]) e músicas que celebram os quatro
elementos de autoria de uma jovem compositora do Rio de Janei-
ro, Flora Plonczynzki[4], que conhecemos ao longo desse percurso
do estágio.

Encontros criativos
Os encontros foram semanais com duração de 1:30h. O setting
virtual, situado no ambiente de cada participante, contou com a
utilização de materiais de fácil acesso, informados previamente
no WhatsApp de cada grupo, estimulando assim a procura e o
curioso olhar para o ambiente em volta.

[3] Luca Ciut: é um compositor italiano conhecido principalmente por sua


trilha sonora “Dancing with Maria” indicado ao EFA 2018 e “Easy - un viaggio
facile facile” indicado por David di Donatello 2018.

[4] Flora Plonczynzki: Jovem compositora carioca de 21 anos que segundo


suas próprias palavras: “Acredito na potência medicinal da música e baseio
minhas composições em minhas próprias experiências, focada nos sentimentos
e percepções da vida.” (https://www.youtube.com/c/FloraPlonczynzki/)

| 159
Não havia um roteiro de atividades programado, mas um reper-
tório de elementos que seriam disponibilizados através da ampli-
ficação simbólica de um elemento significativo que aparecesse na
atividade em grupo.
As sessões virtuais foram organizadas em três etapas: prepa-
ração, desenvolvimento e conclusão. Procuramos sustentar um
território criativo e simbólico, zelando pelos espaços de criação,
para que este fosse acolhedor ao processo criativo e que as sub-
jetividades de imagens e escrita criativa de cada participante pu-
dessem ser reconhecidas nas produções plásticas expressivas de
cada participante.
“Como os arteterapeutas devem trabalhar com estratégias não ver-
bais, o aspecto da organização e planejamento de sua prática te-
rapêutica é configurado pela intermediação dos materiais de arte
pela organização adequada e específica do setting, e entre outras
possibilidades por ambientações sonoras em conexão aos temas a
serem trabalhados “(PHILIPPINI, 2011, p. 34).

Os grupos formados foram selecionados por gênero e faixa etá-


ria com objetivo de sensibilização das forças e arquétipos femi-
ninos, com abordagem arteterapêutica breve (10 atendimentos)
não diretiva, orientada por autores de abordagem junguiana, de
facilidade operacional, com descrições documentadas em relató-
rio de estágios.
Os recursos expressivos associados aos quatro elementos da
natureza (terra, água, fogo e ar) foram utilizados para a sensi-
bilização quanto aos aspectos psíquicos relacionados às quatro
funções da consciência descritas por Jung (1976) que promovem
o equilíbrio psíquico (BERNARDO, 2006). Trabalhamos também
com questões associadas a alguma função específica e para tal
utilizamos um recurso motivacional que é a Roda da Vida, um
sistema hindu de autoavaliação que permite mapear como estão

160 | Contos e Mitos em Arteterapia


as principais áreas da vida num determinado momento e quais os
elementos da natureza que auxiliam o fortalecimento e ativam o
seu potencial (SANTOS, 2021).
Segundo Jung (1976), as quatro portas da consciência (Pen-
samento, Sentimento, Intuição e Sensação) são os meios pelos
quais entramos em contato com o que está dentro e fora de nós;
entramos por uma dessas portas e depois vamos passando para as
outras, para que a consciência assimile esses eventos e acrescente
algo ao nosso desenvolvimento. Assim, na Roda da Vida, cada
experiência de vida é potencializada através de como percebemos
o que nos acontece (Sensação), como isto nos afeta emocional-
mente (Sentimento), quais caminhos que nos apontam em possi-
bilidades futuras (Intuição) e quais reflexões fazemos a respeito
(Pensamento).
A Roda da Vida é encontrada na cultura indígena em seus rituais
de cura, no qual a pessoa é colocada no centro como um símbo-
lo importante do desenrolar de processos existenciais e suas fases
correspondentes. A saber: Sul – Água (Infância – Inocência); Norte
- Ar (Velhice – Morte – Sabedoria); Leste – Fogo (Nascimento - Cria-
tividade) e Oeste - Terra (Maturidade – Introspecção). A Roda da
Vida estabelece as relações dos elementos com as quatro funções
da consciência e as correlações com as forças psíquicas atuantes
em nossos processos existenciais. Mostra que a vida se processa de
forma cíclica, envolvendo sempre a morte de velhas formas de re-
lacionamento para que os novos conteúdos que foram assimilados
pela consciência possam renascer em uma nova configuração, mais
ampla e mais rica que a anterior (BERNARDO 2001/2004).
Segundo Philippini (2013), a amplificação simbólica consiste
em aumentar a possibilidade de compreensão do significado de
um símbolo que é uma linguagem em metáforas do inconsciente.

| 161
Representa um processo que traz ao indivíduo a possibilidade de
conhecer, compreender, refazer, rememorar, reparar estruturas e
transcender no processo arteterapêutico, possibilitados por ins-
trumentos expressivos e plásticos que facilitam a apreensão do
significado deste símbolo pela consciência. Este conjunto de es-
tratégias pode compreender a utilização de uma multiplicidade
de modalidades expressivas ou às vezes o aprofundamento de
uma só modalidade, que vai se intensificando à medida que o
cliente consegue explorar com mais facilidade suas possibilidades
expressivas através de um material plástico. Este processo é mais
produtivo quando há a observação das sensações corporais que
envolvem o processo criativo das imagens.

Singularidades dos grupos


O grupo a que vamos nos referir ao setting arteterapêutico é o
Demeter – Arquétipo da Grande Mãe - formado por mães de 30 a
45 anos, como já descrito anteriormente.
Inicialmente o modo online trouxe uma necessidade de adapta-
ção para que todos se apresentassem e se conhecessem gerando
certa resistência: dificuldade em compreender as regras e em con-
cluir o trabalho, além da presença recorrente do silêncio. Como
arteterapeutas-facilitadoras aceitamos o silêncio e estas resistên-
cias, permitindo a verbalização da ambivalência afetiva. Orienta-
mos que neste grupo de Arteterapia nossa comunicação não seria
apenas verbal, mas simbólica, através das imagens trazidas. Neste
primeiro encontro, especificamente na confecção do crachá de
identidade, e no entendimento do que é Arteterapia para cada
uma, pois o inconsciente vai conversando conosco através de ima-
gens e símbolos.

162 | Contos e Mitos em Arteterapia


Apresentamos o trabalho de Nise da Silveira [5] e a linguagem
das imagens de abordagem junguiana, com seus processos de
autoconhecimento e transformação através dos símbolos.
Neste primeiro encontro, cada uma em seu silêncio, mas dis-
posta a criar um espaço de força, apresentou-se com cores e for-
mas em seus crachás, trazendo a colaboração e curiosidade para
a trilha da Arteterapia. Mulheres acolhedoras, mães, trazendo ao
grupo um convívio colaborativo, representando com afinidade a
Deusa que dá origem ao nome, pois não se negam a colaborar,
trazendo imagens que refletem um espaço interno a ser trabalha-
do e um arquétipo feminino a ser explorado. Através das imagens
e simbolismos trazidos, iniciamos nossa trilha, entendendo que
havia uma busca de resgatar uma vida interior e não se deixar
prisioneiras da rotina.
Elaboramos para o segundo encontro uma atividade que trou-
xesse à lembrança imagens da infância de cada uma, tendo como
referência palavras do encontro de apresentação, como “Filha,
mãe, independente, sonhadora, aluna, professora”, e a frase do
pintor holandês Vicent Van Gogh, “A arte é consolar aqueles que
são quebrados pela vida”
Romper barreiras e cuidar da criança interior se tornam uma
complexa tarefa que o arteterapeuta enfrenta, pois segundo Phili-
ppini (2009), desbloquear o processo criativo, formar e fortalecer
o vínculo são providências fundamentais para o sucesso no pro-
cesso terapêutico.

[5] Nise da Silveira: (1905-1999) - Nise Magalhães da Silveira foi uma médica
psiquiatra brasileira. Reconhecida mundialmente por sua contribuição à
psiquiatria, revolucionou o tratamento mental no Brasil. Foi aluna à distância
de Carl Gustav Jung.

| 163
As frases trazidas pelo grupo nos impulsionaram a refletir sobre
“como a vida nos quebra e nos reconstrói de diversas maneiras?”.
Seguindo nossa trilha, construímos um espaço para as lembran-
ças da criança interior e como atividade, propusemos a modela-
gem com massinha, proporcionando neste modo criativo trocas
de experiência. O grupo pode então manifestar as lembranças
de momentos da infância, brincadeiras com irmãos e familiares,
permitindo a verbalização da ambivalência afetiva e um diálogo
sobre sentimentos paternos e maternos com transposição e ale-
gria, ora permeados com relatos da infância dos próprios filhos
(Figura 1).

Figura 01 - Grupo Deméter - Atividade: Self box -


trabalhando a criança interior - técnica modelagem

164 | Contos e Mitos em Arteterapia


Neste momento do setting terapêutico online já se conseguia
perceber que estava se criando um espaço de resgate de poten-
cialidades adormecidas, desvelando sentimentos de compreensão
de conteúdo inconsciente, que Philippini (2009) relata como um
resgate de vivência da dimensão primária por meio da esponta-
neidade e simplicidade.
Na atividade seguinte, pensamos em focar a adolescência, atra-
vés do uso de materiais diversificados de colagem, pintura, dese-
nho e músicas da época que estimulam experiências sensoriais e
promovem a expressão de memórias afetivas. Para isso, solicita-
mos que as participantes trouxessem imagens da adolescência e
escolhessem palavras de músicas pré-selecionadas por elas em um
aplicativo específico. Essas palavras deveriam constituir-se em fra-
ses através da escrita criativa. Foram ofertados diversos poemas
sobre adolescência em diversas épocas da literatura.
As memórias da adolescência trouxeram muitos sentimentos,
que poderiam ser recortados e explorados mais especificamente,
mas devido a ser um grupo que ainda estava se conhecendo, es-
colhemos focar nas frases trazidas pelos poemas reescritos pelas
participantes e daí procurar a trilha para a próxima atividade:

“A coragem era minha aliada. Não me faltava


disposição e a vida era uma grande comemoração.”

“O início de uma jornada sozinha ou acompanhada. Muitas


cores e sabores me encantavam com tantos amores “

“Na minha vida, eu simplesmente não cabia. Então eu


sonhava, E só sonhava porque eu podia.”

| 165
O grupo participou da atividade começando interagir entre si, o
que foi possibilitado pela atividade com música e leitura dos tex-
tos produzidos por elas. A partir dessa vivência, escolhemos para
a próxima atividade a força dos quatro elementos, com o objetivo
de despertar a coragem, a autoestima e os sonhos. Levamos para
o setting arteterapêutico a Mandala da Roda da Vida, onde os
aspectos da vida prática são checados com as reflexões sobre a
presenças na vida (Qualidade de Vida, Pessoal, Profissional e Rela-
cionamentos). Uma das mulheres assim se revelou:

“Na minha mandala da vida, tudo precisa fluir e se conectar.


Tudo segue um fluxo muito próprio, estando todos os pontos
alinhados segundo uma mesma direção. Cada elemento
abre caminho para complementar o outro em harmonia.
Tudo conflui para um objetivo comum, trazendo paz e
equilíbrio para todas as áreas da minha vida. E como cada
elemento complementa o outro, eu começo e encerro
na mandala, que está fechada e concisa, demonstrando
fortaleza, completude, concretude e clareza”.

Deste modo, planejamos para o encontro seguinte o elemen-


to ar. Iniciando com relaxamento e meditação, provocados pela
pergunta: qual área da minha vida precisa colocar mais racionali-
dade? Neste dia, o grupo transcorre com jovialidade, tendo como
trilha sonora a música selecionada pelas participantes. Cada uma
apresenta seu tema, as músicas escolhidas são alegres e profun-
das e cria-se um clima de harmonia e brincadeiras. Após ouvi-
rem, selecionam cinco palavras, passando pelo processo de escrita
terapêutica e o compartilhamento de sua criação. O grupo tra-
balhou com entrosamento maior, criando uma certa intimidade.

166 | Contos e Mitos em Arteterapia


Ressaltamos as frases expostas:
• Use sua força! É tempo de reinventar-se.
• O amor vence o medo.
• Buscar o novo gera medo.
• Recarregar nossas forças e descansar nossos anseios.
• Reinventar-se.
• Hoje já não tem mais graça, tudo muda, tudo troca de lugar.

Assim, refletimos em levar para o grupo na sessão seguinte a


Deusa Hator, que na Grécia é Afrodite, a deusa da beleza e do
prazer. A atividade do grupo desenvolveu-se com maior intera-
ção entre os participantes e menor das estagiárias. Cada um dos
componentes do grupo apresentou sua mandala da deusa Hator,
relatando um aspecto do feminino e as músicas criadas através
das frases e palavras que mais lhe chamaram a atenção.
Uma das componentes informa:

“Meninas, a deusa da Fertilidade passou por aqui!


Estou gestante há 12 semanas”.

Houve muita comemoração com essa manifestação de Demeter.


Outra participante relatou ter recebido um convite para passar
o final de semana no sítio de amigos, mas estava desanimada de-
vido à pandemia. O grupo conversou e a frase:

“Divirta-se! Nunca vi ninguém se arrepender disto!”

ganhou os holofotes, encerrando o encontro ainda com as


expressões:

“Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? De ser Feliz” “Eu
quero sossego!”, “Sou Feliz comigo mesmo!”.

| 167
Estes resultados nos levaram a refletir e planejar para o próximo
encontro uma vivência corporal da Anima, para trabalhar com
elas a força do Feminino.
Assim, programamos uma atividade de consciência corporal
para a nossa trilha e a confecção de uma mandala relativa à ativi-
dade explorada. Iniciamos com o relaxamento e meditação sobre
o feminino e a dança como expressão desse corpo no espaço:
corpo que gera a vida, corpo expressivo. Projetamos para o grupo
vídeos de dançaterapia de Maria Fux [6].
Iniciamos a vivência da Força do Feminino através da música
“Despierten Mujeres”, interpretada por Luna Santa e propusemos
o diálogo corporal através da dançaterapia, primeiramente com
músicas leves e uso de bastões (movimentos contidos) e posterior-
mente com lenços (movimentos livres e espaçosos, após quebra da
tensão inicial), construindo inicialmente diálogos tônicos virtuais
em dupla e depois com todo o grupo. A atividade transcorreu com
o envolvimento de todas as participantes. Nenhuma fechou a câ-
mera e todas compartilharam o diálogo corporal musical, criando
lindas coreografias.
Na confecção das mandalas envolvendo linhas e lã, simboliza-
ram o corpo no espaço. As mandalas foram significativas e inte-
graram os movimentos dos ciclos de vida. Todas as participantes
relataram sentir-se muito bem com a atividade e com a percep-
ção do corpo no espaço, o qual vai ficando cada vez mais esque-
cido. Conforme expressa Philippini (2009, p. 132), “o trabalho de
consciência corporal em arteterapia está a serviço da fluidez, da

[6] Maria Fux: (1922) é uma dançarina, coreógrafa e dançaterapeuta


Argentina. É reconhecida como desenvolvedora de um sistema próprio de
terapia da dança na Argentina

168 | Contos e Mitos em Arteterapia


flexibilidade, do relaxamento, da serenidade, do centramento,
das atitudes essenciais para o mergulho na própria profundidade
psíquica”.
Cada uma das componentes do grupo apresentou sua conclu-
são e sua mandala da representação dos movimentos no espaço
e fios da vida, relatando sentirem-se mais fortes com o trabalho
corporal. Percebemos neste momento que o grupo já se expressa-
va mais livremente, com confiança e relatos da importância des-
ses momentos proporcionadores da força expressiva do feminino
(Figura 2).

Figura 2 Grupo Deméter - “A mulher em mim que pode voar”

| 169
O trecho da música, “Venho de uma tribo de mulheres bem po-
derosas, que realizam as coisas e têm fogo no coração. Desperta
mulheres que a mãe Terra Gaia, nos chama Filhos de Gaia”, ati-
vou a força da Terra Patchamama Deusa, vivenciada então no en-
contro seguinte. A dança representa a vida nos movimentos dos
ciclos da vida: nascimento, infância, adolescência, adulto, mater-
nidade, paternidade, atuação social e profissional, velhice, morte.
Bernardo (2008), nos explica que em cada movimento e cada
etapa representada aprendemos algo novo e importante sobre
nós mesmos, sobre o outro e sobre o mundo, que nos transforma
e amplia nossa visão de mundo e todo processo de transformação
envolve a vivência de uma morte simbólica e de um posterior o
renascimento”
A confecção de mandalas esteve no foco dessa nova sessão,
para que elas criassem e refletissem sobre suas vidas e em seus
ciclos. Para isso, solicitamos materiais relacionados aos quatro
elementos: terra, água, fogo e ar. Focamos sobre o elemento ter-
ra, que nos traz a maturidade e a introspecção, aquilo que já se
consolidou. Neste encontro, as participantes trocam experiências,
expressam sentimentos, acolhem-se e admiram as atividades e ex-
pressões num compartilhar de emoções e trocas de experiências.
Uma das participantes pede licença ao grupo para apresentar um
vídeo do jardim de sua casa. As estagiárias já não são mais inter-
mediadoras, mas observadoras atentas do processo grupal. Re-
solvemos, então, programar para o próximo encontro a lenda das
bonecas Quitapesares [7].

[7] Quitapesares: As pequenas bonecas (1,5 a 5 centímetros) chamadas de


Quitapesares (ou Quitapenas) podem ser encontradas em vários lugares da
América Latina e tem sua origem na cultura Maya com presença forte no
folclore da Guatemala.

170 | Contos e Mitos em Arteterapia


Nesse novo encontro o grupo confeccionou as bonequinhas em
comunhão e conexão. As participantes relatam que as bonecas
Quitapesares paralisam o medo e mobilizam o amor. Com esse
desfecho tão completo, nos programamos para a nossa finaliza-
ção, o 10º encontro da Roda das Deusas.
Com materiais dos quatro elementos que já havíamos utilizados
nos outros encontros, Aquarela (água), Sementes (Terra), Velas
para derreter ou giz de cera (Elemento Fogo) e O elemento Ar,
representado pelo pensamento, chegamos ao final dos 10 encon-
tros programados. Iniciamos com a meditação dos quatro elemen-
tos e as deusas. Propusemos a construção do Filtro dos Sonhos,
para simbolizar a possibilidade de sonhar e realizar, mesmo em
meio à tantas atribulações da vida, principalmente em tempos da
pandemia do coronavírus.
Ainda acrescentamos mais uma sessão nesse grupo, para fa-
zermos a síntese das atividades e do processo arteterapêutico.
As participantes foram convidadas a elaborarem uma atividade
para síntese e avaliação do processo arteterapêutico vivenciado,
sendo dada a elas a possibilidade de escolha de uma das deusas
trabalhadas.
Assim elas escolheram levar para a sessão de encerramento a
meditação da Deusa Cerridwen, Perséfone na mitologia grega,
através de atividades que nos fizeram trabalhar nossos sentidos
em diversos modos, do paladar ao olfato, num processo alquími-
co, na fabricação de chás e essências, simbolizando Cerridwen,
com seu caldeirão. trazendo a matriz da vida, que representa a
sabedoria, iniciação, transformação e inspiração.

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Um percurso pelo Feminino
Ao pensarmos nosso setting de Arteterapia no modo online,
criamos um espaço acolhedor, respeitoso, com os materiais dis-
poníveis e com possibilidade de expressão através de cores e ma-
teriais plásticos onde houvesse possibilidade de explorar o sen-
timento feminino em todas as suas dimensões. As deusas não
foram necessariamente vivenciadas, mas as experiências plásticas
puderam trazer a força das mulheres que neste momento de pan-
demia são forças criativas dos arquétipos femininos que atuam
para curar as dores e recriar a vida.
As deusas, com suas forças poderosas, encontram-se em todo
o percurso terapêutico, fazendo parte do nosso inconsciente fe-
minino. Na psique de cada mulher, reconhecemos mais de uma
deusa. Iniciamos nosso percurso com a apresentação criativa e os
grupos trouxeram as mulheres que desejam reconhecimento, rea-
lização, independência, um mundo mais justo e uma humanidade
melhor, um amor universal expressando assim a força das deusas
Atena e Ártemis.
Podemos dizer que esse percurso pode ser considerado uma
grande celebração, honrando todas as mulheres dos dois grupos
e todas as mulheres de todos os tempos. Fomos todas agraciadas
pelas experiências de um grande caldeirão alquímico, transporte
da matéria-prima que vai sendo transformada, proporcionando a
sabedoria interior e a integração da vida com suas inúmeras mani-
festações. Assim nossa trilha conclui-se e transforma-se em novas
trilhas para novas mulheres.

TASHI DELEK!

172 | Contos e Mitos em Arteterapia


Referências

AMARAL DOS SANTOS, Marcieli. Curso teórico Vivencial – RodaVidArte, 2021.


Bernardo, Patrícia Pinna. A prática da arteterapia: correlações entre temas e recursos:
temas centrais em Arteterapia. Vol. 1. São Paulo: Artetepina Editorial, 2013.
Bernardo, Patrícia Pinna. A Alquimia nos contos e Mitos e a Arteterapia: Criatividade,
transformação e individuação4ª. Edição. São Paulo: Arterapinna Editorial, 2013.
Murray Stein. Jung o Mapa da Alma, uma introdução. Rio de Janeiro: Editora Cultrix,
2005.
PHILIPPINI, Angela. Cartografias da Coragem, para entender Arteterapia. Rio de
Janeiro: Wak Editora, 2013.
PHILIPPINI, Angela. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: Uso,
Indicações e Propriedades. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2009
PHILIPPINI, Angela. Grupos em Arteterapia, Redes Criativas para colorir Vidas.
Rio de Janeiro: Wak, 2011.
WOOLGER J.B, WOOLGER R.J. A Deusa Interior, um guia sobre os eternos mitos
femininos que moldam nossas vidas. Rio de Janeiro: Editora Cultrix, 2020
SILVEIRA, Nise. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Editora Alhambra, 1981.

| 173
174 | Contos e Mitos em Arteterapia
A Jornada Heroica na Parentalidade

Cristina Fernandes das Neves[1]


Denise Regina de Almeida[2]
Isabela de Souza Rangel do Prado[3]
Jaques Junqueira de Souza[4]

[1] cricaneves@yahoo.com.br

[2] araluna2020@gmail.com

[3] isabelasre@hotmail.com

[4] clinicaoneiros@gmail.com

A criação do novo não é conquista do


intelecto, mas do instinto de prazer agindo
por uma necessidade interior. A mente
criativa brinca com os objetos que ama.
Carl Gustav Jung

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A situação em que o mundo se encontra de recolhimento,
físico e emocional, o olhar incessante para o núcleo fa-
miliar, seus conflitos, emoções e sensação de pertencimento nos
levou a trafegar em mares mais profundos, gerando uma inquie-
tação na questão do papel do sujeito dentro da parentalidade.
Somos todos os dias convidados a realizar algo em nossas vidas,
seja por vontade própria, pela necessidade de atender o outro, ou
pelas circunstâncias da própria vida.
Percebemos uma enorme relação entre a Jornada do Herói e as
adversidades no processo da parentalidade. Campbell (1949), em
sua obra “O Herói das Mil Faces”, explica que a vida de cada herói
consiste em empreender uma jornada, o que o obriga a enfrentar
uma série de testes psicológicos que devem ser superados, a fim
de evoluir como ser humano. Neste trajeto, o sujeito é exposto
a inúmeros desafios, desde o chamamento até o retorno com a
recompensa.
Imbuídos no desejo de, por meio da Arteterapia criar conexões
que desvendem os mistérios desse processo e levem o sujeito a lidar
de forma mais harmoniosa e segura de sua parentalidade, buscou-
-se na mitologia a ferramenta necessária para trafegar nesta seara.
Segundo Dell (2014), o mito é a tentativa de narrar toda uma
experiência humana, cujo propósito é demasiado profundo, indo
fundo demais no sangue e na alma, para uma explicação ou des-
crição de natureza psicológica.
CAMPBELL (1990), em seu estudo sobre mitologia e jornada
heroica, relata-nos que existe um caminho para realizar as trans-
formações necessárias no ser humano e este caminho é universal.
O presente trabalho foi realizado com pessoas em suas múlti-
plas facetas na parentalidade: pais, mães, filhos e avós, perceben-
do suas singularidades e unicidades.

176 | Contos e Mitos em Arteterapia


Mundo Comum
O caminho a se percorrer em nossa jornada iniciou-se com o
momento de reconhecer-se: Quem sou? O que faço? Como vivo?
Quais meus defeitos e virtudes?
A parentalidade foi apresentada e cada participante, dessa jor-
nada, se viu frente a desafios nunca antes imaginados.
Muitas vezes, o sujeito não se dá conta do estado de frustração,
insegurança, receio e infelicidade em que se encontra, mas algo o
mantém nessa situação, existe uma necessidade de mudança, mas,
sem as ferramentas necessárias, o indivíduo se vê imóvel e incapaz
de atravessar esta ponte que o liga à realidade vivida e lidar, com
maior discernimento, com as situações expostas durante o percurso.
A arte expõe grande quantidade de informações sobre os con-
teúdos inconscientes, ou seja, o inconsciente fala por meio de
produções artísticas trazendo à tona compartimentos que a men-
te consciente não está preparada para encarar ou não consegue
compreender (PHILLIPPINI, 2018).
A self box (a caixa do eu) facilita o processo contínuo de cons-
cientização do indivíduo, ou seja, que se torne consciente da sua
forma de entrar em contato consigo mesmo e com o mundo no
momento presente. Ela é dividida em três etapas:
Modelagem – permitir que o indivíduo construa sua referência
de vida comum antes do chamado à parentalidade adaptando o
molde, dando formas e contornos, criando e recriando sob uma
perspectiva tridimensional, expondo-se a texturas e relevos, inten-
sificando a experiência com o tato.
Recorte e colagem – representar os sentimentos, pensamen-
tos e ações no momento da descoberta da parentalidade, cor-
tando o que não é necessário e agregando o que quer se fixar,
representar, preservar e elaborar.

| 177
Desenho - desenhar os sonhos, pensamentos e desejos futuros
sobre a condição da parentalidade, com a finalidade de reafir-
mar a capacidade do indivíduo de dar um destino, estruturando e
criando um propósito aos conteúdos internos.
Para Philippini (2018, p. 49) “O desenho permite expressar
histórias pessoais com clareza, apenas utilizando a configuração
linear da imagem.” Desta forma, a self box foi desenvolvida du-
rante o processo com os participantes na intenção de oferecer
uma base, uma sustentação neste início de percurso terapêutico.
Além disso, esta técnica possibilita revelar a si mesmo sua forma
de funcionar consigo, com os outros e com o mundo.
A self box trouxe ao grupo a possibilidade de lidar com os
medos, anseios, sonhos e esperanças referentes ao grau de pa-
rentalidade no qual estavam. A projeção simbólica por meio da
modelagem, recorte e colagem e desenho, na base quadrada e
sólida da caixa, permitiu a visão das emoções
no momento em que se tomou consciência
da paternidade, maternidade, da notícia
de ser avó, da mudança na visão dos pais
da infância e da adolescência, bem como
cada uma dessas emoções estão no mo-
mento e também, os sonhos e desejos
para o futuro.

Figura 1: self box

178 | Contos e Mitos em Arteterapia


Encontro com o Mentor
Percebido que não existe uma fórmula mágica para resolver as
questões, os indivíduos assumem o novo rumo que a vida impõe
e é justamente nesse momento que nos damos conta de que al-
guém está a nossa volta, um amigo, um mentor espiritual, alguém
nos chama a atenção para habilidades antes desconhecidas ou
esquecidas e que nesse momento serão de grande valia.
O mentor é um dos arquétipos extraídos da psicologia profun-
da de Carl Gustav Jung (1976) e dos estudos míticos de Joseph
Campbell (1990). Sua função é preparar o indivíduo para aceitar
a aventura fornecendo suprimentos, conhecimentos e confiança
necessários para superar seus medos. Ele é um aspecto do self.
O arquétipo self é o centro, assim como o sol é o centro do
sistema solar. A função desse arquétipo de extrema importância
consiste na organização e na unificação, pois ele tem a podero-
sa missão de atrair e harmonizar os demais arquétipos. Segundo
Jung (1977), esse arquétipo é o princípio organizador da persona-
lidade, sendo o principal arquétipo do inconsciente coletivo.
Foi no mito judaico-cristão da “Sarça Ardente” que a referência
a este encontro se tornou evidente, levando os indivíduos a se
questionarem: quem auxiliou sua preparação para a aventura na
parentalidade?
No intuito de dar estrutura, edificar, fabricar e organizar, o pro-
cesso de criação de sua própria Sarça Ardente com papel celofane,
galhos de árvores secas, materiais recicláveis, entre outros, trouxe
aos partícipes a possibilidade de classificar, selecionar e organi-
zar os conteúdos, emergindo a mudança no concreto, edificando
e estruturando tais aspectos. Dessa forma, puderam ressignificar
esses conteúdos, olhar para si e ouvir a voz do self.

| 179
A partir desse ponto a imaginação ativa promoveu um contato
com o universo inconsciente, estimulando o potencial imaginativo
do indivíduo.
As imagens/figuras que surgiram durante o processo promo-
veram um diálogo entre conteúdos internos que até então não
tinham sido integrados à consciência e o ego dos integrantes dos
grupos. Os participantes fizeram isso por meio de perguntas feitas
por eles e respostas dadas intuitivamente pela imagem incons-
ciente que acessaram na técnica. De maneira geral, relataram sen-
timentos como tranquilidade, sensação de novo sentido para a
hierarquia da paternidade, além de paz.

Figura 2: A tranquilidade

180 | Contos e Mitos em Arteterapia


A Travessia do Primeiro Limiar
Nesta etapa do processo, o indivíduo está pronto para cruzar
o limite entre o mundo que ele conhece e está acostumado, e o
mundo novo para o qual ele deve ir. Esse mundo não precisa ser
um local físico de fato, apenas algo desconhecido por ele. Pode
ser a descoberta de um segredo, a aquisição de uma nova habi-
lidade, ou, até mesmo, a mudança de lugar propriamente dita.
O indivíduo inicia uma busca de um novo mundo, de forma que
possa conhecer suas sombras e trazer à luz sua parte mais nebulo-
sa, e com isso ressurgir novo, iluminado, pleno, porque reconhece
todas as suas faces, fazendo a mudança da situação comum, per-
mitindo novas atitudes e lugares.
Com o intuito de trabalhar o enfrentamento dos medos e a
constelação do arquétipo do herói na parentalidade, o mito de
Perseu e Medusa foi utilizado como motivador dessas percepções.
Neste mito está em jogo uma série de símbolos interessantes. A
Medusa é a representação da mulher encurralada pelo poder fe-
minino e Perseu é o símbolo de quem consegue vencer o horror,
projetando-o em um espelho. A cabeça de Medusa se tornou a
principal arma de Perseu, simbolicamente representa uma manei-
ra de enfrentar o horror indiretamente, é o que a arte faz: reflete.
Permite olhar o espelho, mas, ao mesmo tempo, evitar que nos
paralise de terror.
Para tanto, o desenho em papel camurça preto com giz de
cera trouxe à tona seus medos paralisantes e a construção do
seu instrumento de poder com materiais recicláveis proporcio-
nou a aquisição de poderes existentes em cada um para superar
suas adversidades.

| 181
Figura 3: O voo da travessia

Provas, Inimigos e Aliados


Toda mudança requer persistência, força e coragem, e é jus-
tamente aqui que o indivíduo será testado. Ele se depara com
diversos desafios menores, contratempos e obstáculos que, gra-
dativamente, vão testando suas habilidades e deixando-o mais
preparado para as maiores provações que ainda estão por vir,
mantendo o propósito e seu maior objetivo, a felicidade.
Inimigos e amigos estarão nessa jornada e o indivíduo terá que
reconhecê-los e apoiar-se naqueles que lhe ajudaram na auto-
transformação e empoderamento pessoal. Assim como exemplifi-
cado por Carl Jung (1992) apud Nicolau (2018, p.23): “A criação
do novo não é conquista do intelecto, mas do instinto de prazer
agindo por uma necessidade interior. A mente criativa brinca com
os objetos que ama”.

182 | Contos e Mitos em Arteterapia


Levando em consideração a necessidade de superação dos de-
safios da parentalidade, de visualização dos aliados que puderam
acompanhar e principalmente auxiliar nesse processo, o mito gre-
go “Quimera e Belerofonte” norteou todo desenvolvimento da
atividade proposta: materializar o medo construindo sua Quimera
pessoal, utilizando-se de massinha modeladora. Ao ter o medo em
suas mãos, produziram o Pégaso com asas de papel color set co-
lorido complementando com palavras de força e encorajamento.
O objetivo estava em favorecer a consciência dos recursos in-
ternos para auxílio nas tarefas de enfrentamento dos desafios da
parentalidade. Tal objetivo mostrou-se alcançado em função do
compartilhamento dos participantes que afirmaram ter consegui-
do, mesmo observando seus medos e angústias, entender que
teriam como enfrentá-los e vencê-los.

A Caverna Oculta
É chegada a hora do conflito interno psicológico, onde o indiví-
duo pode romper tudo, desestruturar, ou olhar para imensa força
propulsora que existe dentro dele e perceber o que é possível
mesmo com todas as adversidades.
Para isso, essa fase da jornada heroica foi apoiada no mito
“Eros e Psique” para que o processo fosse desenvolvido. Amas-
sando, rasgando, moldando e recortando, os participantes cons-
truíram em papel pedra sua própria caverna, com o propósito de
concretizar, dar materialidade e forma ao que é intangível, difuso,
desconhecido ou reprimido, favorecendo a integração de aspec-
tos sombrios da personalidade.
Ao sair deste local, a proposta foi construir uma caixa de poten-
cialidades, sua caixa da beleza, onde todos os benefícios, virtudes

| 183
e alegrias da parentalidade foram colocados, por meio de palavras
escritas em diferentes papeis e decorada com diversos materiais. Os
participantes conseguiram se entender pertencentes a sua situação
de pais, mães, filhos ou avós e enxergar as belezas de sua condição.

Provação Máxima e recompensa


A provação máxima é uma espécie de morte pela qual o indi-
víduo passa, para cumprir o seu destino percorrendo um confli-
to interior mortal. Para enfrentar sua maior provação, conflitos e
medos, dentro da parentalidade, a pessoa precisou reunir todos
os conhecimentos e experiências adquiridos durante a sua jornada
até aquele momento. Esse momento tem significado de transfor-
mação e, por isso, é comparada com a morte e ressurreição para
uma nova vida. Compartilhado o mito judaico-cristão de Tobias,
espelhando o enfrentamento da possibilidade da morte, e a re-
compensa da entrega real por aquilo que se entende como real-
mente importante e cheio de significado. O papel mágico preto
foi oferecido para que, nele, os participantes pudessem desenhar
seus maiores medos, com palitos de churrasco, e trazer à tona
toda essa experiência.
Como nada é em vão, eles conseguiram enxergar suas habilida-
des, vencer seus maiores medos e traumas, olhando para traz e
identificando que tudo valeu a pena.
Para concretizar essas sensações e sentimentos, a pintura em tela
foi escolhida como alternativa de atividade para demonstrar sua
recompensa na parentalidade, pois a pintura resgata os aspectos
mais saudáveis da personalidade, permitindo o fluir das emoções,
induzindo o movimento de soltura, de expansão, trabalhando desta
forma, o relaxamento dos mecanismos defensivos de controle.

184 | Contos e Mitos em Arteterapia


Figura 3: A magia

Renascimento
Ao retornarmos/renascermos, percebemos que, independente
das dificuldades das situações, é possível recuperar-se, pois está
mais forte, presente e atuante. Renascer, voltar à vida, enfrentar
a morte deixando o velho para trás e seguindo com novas atitu-
des, com novo olhar, com novos objetivos rumo àquilo que se é
realmente.
Buscou-se possibilitar esse olhar para a parentalidade, ressigni-
ficando a imagem de si mesmo, transformando e integrando os
sentimentos e ideias, quebrando padrões polarizados e flexibili-
zando possibilidades. Para tanto, no mito judaico-cristão, a histó-
ria de Sadraque, Mesaque e Abednego, os três jovens na fornalha
ardente, refletem essa possibilidade de transformação.

| 185
No intuito de dar concretude a esse momento, utilizou-se a
mandala de fogo, mandala esta feita a partir da cera de velas co-
loridas pingadas sobre a água, favorecendo a função intuitiva dos
integrantes e possibilitando a transformação de cada um deles. Fi-
nalizando essa reflexão, temos segundo Campbell (1990, p. 131)
a citação sobre a saga do herói, em seu livro o Poder do Mito:
Não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis
de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. Temos apenas que
seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominá-
vel, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém,
mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe,
iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde pensáva-
mos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo.

O caminho terapêutico escolhido nos levou a estradas muito


diferentes, quando observamos a particularidade de cada partici-
pante, seu papel na parentalidade e suas percepções em relação a
cada atividade proposta, sendo conduzidas por meio de um conto
mitológico e trafegando pelos passos da Jornada do Herói propos-
ta por Campbell (1990).
Pudemos perceber as afinidades e desconfortos de cada partici-
pante, suas sombras e descobertas, mas, principalmente, a possi-
bilidade de autoconhecimento, o que gerou um fortalecimento em
sua percepção pessoal e em suas relações dentro da parentalidade.

186 | Contos e Mitos em Arteterapia


Referências

CAMPBELL, J. O poder do Mito, São Paulo: Palas Athena, 1990.


DELL, C. Mitologia: um guia dos mundos imaginários, São Paulo: Edições Sesc São Paulo,
2014.
JUNG, C. G. A prática de psicoterapia, 3ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1977.
JUNG, C. G. Símbolos da Transformação. Obra Completa 5ª ed. São Paulo: Vozes,
2010.
NICOLAU, M. Introdução à criatividade. 2ª ed. João Pessoa: Ideia, 2018.
PHILLIPPINI, A. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: uso, indicações
e propriedades. 2º ed. Rio de Janeiro: Wak, 2018.

| 187
188 | Contos e Mitos em Arteterapia
Transformando e revelando
emoções com arte

Elaine Oliveira Santana Maia[1]


Francine da Silva Marcondes[2]
Gisely Gonçalves Martins[3]
Maria Cristina de Souza Freitas[4]
Rosiane Aparecida Rangel de Oliveira[5]
Sandra Aparecida dos Santos Kecek[6]

[1] lainesantana1@yahoo.com.br

[2] marcondes.fran@hotmail.com

[3] giselymartins@bol.com.br

[4] mcsfreitasjp@gmail.com

[5] rangelrosiane@hotmail.com

[6] sandrakecek@gmail.com

| 189
Introdução

A Arteterapia é um processo terapêutico pelo qual consegui-


mos expressar sentimentos quando a palavra falta e a arte
expande a voz interna. A arte expressa o que a razão muitas vezes
não consegue compreender. É um processo emocional tão profun-
do que traz à tona questões que são trabalhadas de acordo com
o tempo de cada pessoa. Promove uma transformação individual,
mesmo sendo trabalhada em grupo, e auxilia nas relações interpes-
soais por meio do processo criativo, no qual o arteterapeuta dire-
ciona a produção simbólica fazendo uso das atividades expressivas.
A Arteterapia objetiva auxiliar os processos de regulação das
emoções e na promoção da inteligência emocional. A busca pelo
equilíbrio entre a intensidade das nossas emoções e a forma como
as expressamos possibilita a integração entre o racional e emocio-
nal de maneira suave, impactando nas tomadas de decisões mais
conscientes, na melhoria dos relacionamentos interpessoais e na
autenticidade consigo próprio.
O mito pode favorecer o acesso aos conteúdos inconscientes,
apresentando questões que a humanidade já vivenciou de forma
coletiva ou individual. Considerando que os mitos são símbolos
da experiência humana atrelados às vivências arteterapêuticas,
em nosso projeto “Transformando e Revelando Emoções com a
Arte” oportunizamos a um grupo de mulheres a identificação,
compreensão e o equilíbrio das emoções, contribuindo para o au-
toconhecimento e melhoria da qualidade de vida.
A compreensão das possíveis contribuições da Arteterapia para
expressão e elaboração das emoções de um grupo de mulheres de
diferentes idades, formações e interesses, ativou a capacidade de
reconhecimento das forças, favoreceu a liberação de traumas, a
reconexão com o interior e o desbloqueio da criatividade.

190 | Contos e Mitos em Arteterapia


Ao manusear materiais arteterapêuticos, é possível canalizar a
energia para a produção de algo, expressando emoções, refletin-
do sobre elas e consequentemente possibilitando a aquisição da
inteligência emocional.
GOLEMAN (1986, p. 73) define inteligência emocional como a
“capacidade de identificar os nossos próprios sentimentos e os
dos outros, de nos motivarmos e de gerir bem as emoções dentro
de nós e nos nossos relacionamentos”.
A proficiência em reconhecer as emoções nos permite fazer esco-
lhas mais assertivas e menos reativas. Proporcionar vivências artísti-
cas a essas mulheres oportunizou-lhes o reconhecimento das emo-
ções. Colar, desenhar, construir, escrever criativamente, pintar e
realizar atividades arteterapêuticas promove o autoconhecimento.

Eu e o outro
No início do processo arteterapêutico é importante que as mu-
lheres se conheçam melhor e criem um vínculo entre si e entre
elas e as condutoras das atividades, olhando para si, observan-
do suas características, suas preferências, e histórias de vida,
e compartilhando-as com o grupo. É importante também que
comecem a se familiarizar com os materiais artísticos e com a
dinâmica das sessões.
A necessidade de pertencimento é uma característica essencial
do ser humano. Ao iniciar um processo arteterapêutico em grupo
é importante propiciar vivências que favoreçam a criação de vín-
culos por meio do acolhimento, respeito e empatia.
Ao utilizar expressões artísticas simples, como colagens, dese-
nhos e transposições, as mulheres revelaram suas preferências,
suas características, contaram sua história, suas relações e usaram
a arte como forma de expressão.

| 191
Assim, as mulheres se mostraram mais à vontade no grupo, per-
mitindo-se maior envolvimento com suas próprias jornadas para,
a partir daí, promoverem o autoconhecimento.

Deuses e mortais
Aprender a reconhecer as emoções e os sentimentos, como a
raiva, a alegria, o medo, a tristeza e o amor, de forma criativa,
expressando-os através da arte, pode evitar males desnecessários.
Transforma seres conflituosos em seres humanos mais harmonio-
sos ao ressignificarem suas sombras.
Neste contexto, a mitologia nos conduz por caminhos já viven-
ciados, emergindo do inconsciente ao consciente, desse modo
nossas emoções quando reconhecidas, podem ser transformadas.
Ao materializarmos nossas emoções no processo arteterapêuti-
co podemos nos conscientizar e observar o que construímos, seja
em forma de desenho ou outras construções, dando assim vazão
a essas emoções.
A Arteterapia utiliza-se do rito e do conhecimento teórico sobre os
mitos como um dos instrumentos possíveis para acessar conteúdo do
inconsciente. Tal saber é de suma importância para qualquer setor
dos “Estudos do Homem” por ser uma pintura da alma, onde estão
as alegrias, os sofrimentos, as passagens, os movimentos e a trans-
formação do viver e saber humano, retratando o processo de busca
de si mesmo. O mito é a forma primitiva, no sentido de primeira e pri-
mordial, de abstração e pensamento do homem. Ao estudar os mitos
com atenção, percebemos dores e gozos tão nossos, subterrâneos,
tão conhecidos e tenebrosos (DINIZ (2014, p.14).

Assim, para o desenvolvimento das sessões arteterapêuticas re-


correu-se como referencial aos mitos de Orfeu e Eurídice para a
emoção tristeza, Medusa e Perseu para o medo, Sekhmet para a
raiva, Dionísio para a alegria, Eros e Psiquê para o amor erótico,

192 | Contos e Mitos em Arteterapia


Deméter e Perséfone para o amor familiar, Damon e Pítia para o
amor fraterno e Baucis e Filemon para o amor incondicional.
O trabalho com as emoções básicas, permeado pela escolha dos
mitos, sem o conhecimento prévio das mulheres, permitiu o flores-
cimento e acolhimento das emoções que surgiram naturalmente.

A jornada
No mito de Perseu e Medusa, os objetos de poder (espada,
foice, capacete da escuridão de Hades, escudo espelhado de
Atena, sandálias aladas) são usados para enfrentar seus medos.
Segundo Wilkinson (2018, p.83), a “Armadura de Perseu: era
formada com itens dados por vários deuses. Na mitologia grega,
era comum objetos encantados, dotados de magia, ajudarem o
herói em sua missão”.
No início da jornada das mulheres foi proposto que identificas-
sem seus medos e as possibilidades de enfrentamento e, assim,
construíssem um objeto de poder.
Esse enfrentamento e a ressignificação do medo permitiu que
houvesse uma ampliação da percepção de suas capacidades e
forças. Cada uma, a seu modo, construiu objetos que simbo-
lizavam suas dificuldades e como poderiam superá-las, como:
medo de falar em público e a construção de um microfone que
virou seu amuleto, uma adaga para sentir-se confiante e dispos-
ta a aceitar novos desafios, um binóculo para ver-se por outro
prisma. Em Arteterapia, reconhecer os sentimentos e emoções,
principalmente, aquelas que podem nos paralisar, como o medo,
permite a transformação de algo ruim em uma força motriz que
nos leva ao encorajamento.

| 193
Figura 1: Reconhecimento da emoção medo

Figura 2: Objeto de poder - Enfrentamento

194 | Contos e Mitos em Arteterapia


E assim continuou a jornada....
O mito de Orfeu e Eurídice foi utilizado para trabalhar a triste-
za. Orfeu perde sua amada e utiliza de sua lira para convencer a
todos a resgatá-la do mundo dos mortos, mas acaba não seguin-
do as condições impostas por Hades, deus do submundo, e perde
sua amada para sempre. Com a leitura do mito, foi proposto um
desenho que simbolizasse o que tocava cada coração, assim como
a tristeza da perda de Orfeu.
Ao recortar e colar o próprio desenho, dando uma nova confi-
guração afetivo- expressiva, foi possível olhar por um novo prisma
para a tristeza e entender que liberação de conteúdos internos
fragilizados e a possibilidade de reorganizá-los, remete-as para o
equilíbrio emocional.
Dionísio foi o mito utilizado para trabalhar a alegria. Grandes
festas eram feitas, as pessoas cantavam e narravam poesias em
sua homenagem. Com recortes de parte do texto de uma música
que as alegrasse, as mulheres construíram um novo texto cons-
tatando o que estavam sentindo. A leitura do poema “O Menes-
trel”, de Willian Shakespeare, também propiciou uma releitura
deste sentimento de alegria. Ao construírem um estandarte para
representar a alegria e assim expressá-la, relatos de descontração
e contentamento tomaram conta do encontro, inclusive a consi-
deração do estandarte servir de amuleto.
Já o mito de Sekhmet foi utilizado para trabalhar a raiva. Conta
o mito que o deus Rá convoca Rathor, deusa da beleza e do amor,
para ajudá-lo em sua vingança contra a humanidade, que estava
duvidando do seu vigor e da sua capacidade de governar, e a
transforma em Sekhmet. Porém, Sekhmet fica fora de controle e
passa a destruir a humanidade. Arrependido, deus Rá ordena que
preparem cerveja tingida de vermelho para oferecer a Sekhmet,

| 195
que bebe o líquido pensando que é sangue. Com Sekhmet em-
briagada, deus Rá a transforma novamente em Rathor, colocando
fim na sua vingança.
As mulheres tiveram um primeiro contato com o mito e foram
convidadas a fazer uma mandala, com o elemento fogo, que está
ligado a intuição, ilumina e transforma rapidamente a emoção. O
fogo está ligado às emoções ardentes e tem a capacidade de ilu-
minar pontos que precisam ser vistos, como a raiva, muitas vezes
renegada, por ser considerada uma emoção negativa. Segundo
Chevalier & Gheerbrant (2019) o fogo é um símbolo purificador,
regenerador e transformador.
As mulheres puderam acolher a emoção que surgiu durante a
atividade, assim como o descontrole ao realizar a primeira eta-
pa da mandala. Com o intuito de ordenar a emoção, acolher e
transformar o que sentiram, as mulheres utilizaram pedras, grãos,
sementes e palitos para delimitar simbolicamente esta expressão
artística. A experiência da expressão afetiva e a possibilidade de
discerni-la trouxe relatos referentes a sentimento de descontro-
le ao realizar a primeira parte da atividade, mas ao delimitar as
bordas de sua mandala teve a percepção de que com delicadeza
consegue acolher e ordenar essa emoção.
Para trabalhar a emoção do amor familiar abordou-se o Mito de
Deméter e Perséfone. Deméter, na mitologia grega, era o nome
da deusa que cuidava da terra fértil, do plantio e da colheita.
Perséfone, sua filha, é raptada por Hades, deus do submundo,
e Deméter desesperada sai a procura da filha. Diante da tristeza
de Deméter, Rá, o deus sol, revela que sua filha está com Hades.
Porém, Perséfone havia se alimentado no mundo de Hades e não
poderia mais ser resgatada. Diante disso Deméter não exerce mais
sua função de promover a fertilidade da terra, levando à escassez

196 | Contos e Mitos em Arteterapia


de alimentos. Para resolver a situação, Zeus envia um mensageiro
para convencer Hades a devolver Perséfone que aceita a condição
de que ela passasse um terço do ano com ele no mundo inferior.
A mandala surge como símbolo universal de harmonia, inte-
gração e transformação do Ser (Catarina, 2000). Nesse contexto,
a atividade proposta para as mulheres foi a construção de uma
mandala de grãos, cujo objetivo era refletir sobre o que elas esta-
vam semeando em suas vidas. As mulheres escolheram os grãos
dando a cada um deles um significado pessoal e assim compondo
a sua mandala. Divagar entre pensamentos, emoções e organizá-
-los, permite acessar e expressar sentimentos difíceis de verbalizar
e possibilita o desenvolvimento de habilidades para enfrentar as
emoções e reflete seu papel no mundo.
Para reflexão sobre o amor fraternal compartilhamos a história
da amizade entre os míticos heróis gregos Damon e Pítias, que
se passou no século IV a.c. em Siracusa, cidade-estado da Sicília.
Eram seguidores de Pitágoras, e, com o teor de seus discursos,
despertaram a ira do tirano Dionísio que condenou Pítias à morte.
Antes da execução, Pítias precisava sair da prisão para visitar sua
esposa e resolver negócios pendentes em Atenas, então, Dionísio
propôs que Damon ocupasse o lugar do amigo na prisão, com
a intenção de provar que a sua amizade não era tão profunda
quanto parecia. Porém, quando o amigo voltou no dia marcado, o
tirano, admirado pela demonstração de fidelidade, concedeu-lhes
a liberdade e pediu em troca que os dois amigos lhe ensinassem
como construir uma sólida amizade.
Ao recordar e refletir sobre os elos formados na infância, na
adolescência e no momento presente, a construção de uma self
box permitiu relembrar momentos de lealdade e cumplicidade em
cada fase.

| 197
A execução da atividade foi como um mergulho no túnel do
tempo, com resgates de momentos importantes de suas vidas
e reflexão sobre a importância dos elos fraternais como supor-
te nesses momentos. Recordações de avós, de animais de esti-
mação, de amigos da infância, da adolescência e da vida adulta
que, segundo uma delas, estavam guardados num “bauzinho de
lembranças”, revelaram sentimentos de carinho e dedicação por
amigos e familiares, gerando sentimentos positivos e construtivos,
e, principalmente o reconhecimento da importância desses elos
em suas vidas.
A recordação pode também trazer desafios, lembranças de elos
fragilizados, mas que podem ser revistos ou superados ou ainda
novos elos podem ser estabelecidos no decorrer da vida.
De modo particular, cada uma das mulheres se sentiu desafiada
ao fazer a atividade. Pensamentos pairaram nas mentes, como:
não tive elos, minha adolescência foi difícil. Porém, durante o
processo perceberam o quanto os elos foram importantes para a
superação de situações adversas.
Utilizamos o mito de Eros e Psique, que faz referência a traje-
tória de Psique na qual Afrodite, deusa do amor e da beleza, dá a
ela três tarefas impossíveis de serem cumpridas. No entanto, ela
recebe ajuda dos aliados, cumprindo as tarefas e reconquistando
o amor de Eros. Propusemos às mulheres a realização de uma al-
quimia interior, com a construção do seu próprio perfume, usan-
do flores, frutos, folhas e água, pensando na temática “Se eu fos-
se uma essência, como seria?” Ao enfeitar o pote pensaram sobre
os cuidados pessoais e na construção do perfume refletiram sobre
sua essência ser única e incomparável. A sensação de fluidez per-
meou essa construção, edificando e permitindo o reconhecimento
das habilidades e potenciais criativos de cada uma.

198 | Contos e Mitos em Arteterapia


A história de Baucis e Filemon foi a inspiração para a refle-
xão sobre o amor incondicional. Certo dia Zeus e seu filho Her-
mes, deuses do Olimpo, desceram à terra disfarçados de viajantes
humildes para testar a hospitalidade dos mortais. Andaram pela
terra pedindo às pessoas um pouco de água e comida, mas fo-
ram hostilizados por todos. Baucis e Filemon, um pobre casal de
idosos, foram os únicos que os trataram com hospitalidade, ofe-
recendo bondade e zelo sem saberem que se tratava de deuses.
Foram amorosos sem esperar nada em troca, mostrando que o
amor incondicional é generoso, altruísta e infinito.
Ao tecer uma mandala Olho de Deus, que é um tipo de manda-
la tradicional dos povos Huichol, do México, e Aymara, da Bolívia,
tecida com fios e palitos de madeira para presentear alguém, e
desejar coisas boas para esse alguém, é possível refletir sobre o
amor incondicional. Ao tecer as mandalas algumas mulheres rela-
taram impaciência e outras se sentiram confortáveis. A atividade
fluiu naturalmente e houver ponderações sobre suas facilidades e
dificuldades em relação ao amor incondicional. A busca e a cons-
trução desse tipo de amor pode se dar através da reflexão, do
exercício, do movimento e da aceitação, nem sempre linear.

Finalizando a jornada
Durante toda a jornada observou-se mudanças positivas nas
mulheres. Perceberam a necessidade de olhar para si, acolher e
ressignificar a própria emoção e a do outro, descobrindo que é
possível utilizar as emoções para o próprio desenvolvimento.
Estimular a imaginação e transformar algo possivelmente velho,
descartável em algo novo, promove nova forma de ver e viver.
Visualizar todo processo e construir um objeto que represen-

| 199
tasse a jornada arteterapêutica, utilizando o material que tinham
disponível e escolhendo os que mais lhe agradassem permitiu ma-
terializar todas as emoções vivenciadas e elaboradas.

Figura 3: Quadro Descobrimento


Representação da Jornada Arteterapêutica de uma das mulheres

A importância da jornada
Lá no início do processo, as mulheres tiveram contato com as
suas emoções por meio da atividade de criação de vínculo, es-
colheram um objeto que as representassem, pensando em suas
características positivas. Assim seguimos fazendo esse movimento
de olhar e acolher as emoções que surgiram durante o processo
arteterapêutico: transformando e revelando emoções com a arte.

200 | Contos e Mitos em Arteterapia


A jornada chegou ao seu final?
As mulheres perceberam que apesar de emoções como a raiva,
a tristeza e a alegria fazerem parte de suas vidas, não costuma-
vam refletir sobre elas. Algumas notaram que essas emoções
afetam negativamente suas vidas e que precisam mudar a ma-
neira como lidam com elas. Perceberam, também, que podem
ter atitudes bastante positivas com relação às emoções. Através
da arte as participantes conseguiram se expressar, refletir e bus-
car novos caminhos.
Assim, podemos concluir que Arteterapia nos movimenta in-
ternamente, acolhendo as emoções, melhorando a qualidade das
relações humanas, ajudando na conscientização das dificuldades
emocionais e facilitando o caminhar na vida.
A jornada nunca termina. É sempre um ir e vir, parar em alguns
momentos, refletir, para seguir em frente e como nos lembra o
poeta Guimarães Rosa (1986):

“O correr da vida embrulha tudo; a vida


é assim: esquenta e esfria, aperta e daí
afrouxa, sossega e depois desinquieta. O
que ela quer da gente é coragem”.

| 201
Referências

Arteterapia no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. Instituto


Providência - Rede de Assistência Social. Disponível em: < https://www.redeicm.
org.br/providencia/arteterapia-no-servico-de-convivencia-e-fortalecimento-de-vinculos/ >
Acesso em: 11 de dez. de 2021.
CATARINA, M. Mandala – O Uso na Arteterapia. São Paulo: Wak Editora, 2000.
CHEVALIER, J. GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números). 33ª Edição. Rio de Janeiro: Editora José Olympio,
2019.
DINIZ, L. (org). Mitos e Arquétipos na Arteterapia: os rituais para se alcançar o
inconsciente. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2014.
GOLEMAN, D. Inteligência Emocional: A Teoria Revolucionária que Redefine o que é
Ser Inteligente. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1996.
ROSA, J.G. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986.
WILKINSON, P. O Livro da Mitologia. 1ª Edição. São Paulo: Globo Livros, 2018.

202 | Contos e Mitos em Arteterapia


O mito de Atlas e a sobrecarga
feminina: Uma jornada
criativa de autocuidado

Andressa Silvestre Machado[1]


Fernanda Netto do Nascimento[2]
Juliana Claro França [3]

Lenise dos Santos Gonçalves[4]


Nayara Flôr Marques Penteado [5]

Rebeca Batista de Melo Martineli[6]

[1] dresilvestredp@gmail.com

[2] artesafernandanascimento@gmail.com

[3] julianaclaro@yahoo.com.br

[4] lenise@jaal.com.br

[5] nayara_fmc@yahoo.com.br

[6] rebecapsi.melo@gmail.com

| 203
“[...] Minha vida ficou plena de sentido
quando descobri que tão importante
quanto cuidar do outro é cuidar de si.”
Ana Claudia Quintana Arantes

D iante de uma influência socio-histórica-cultural, atribui-se


à mulher o papel principal de cuidadora, função na qual
elas imergem, muitas das vezes, em sua devoção ao cuidado do
outro, negligenciando o próprio cuidado. Tornam-se invisíveis no
seu próprio espelho.
O portal da Fiocruz publicou em agosto de 2020 um aponta-
mento sobre metade das mulheres brasileiras terem passado a
cuidar de alguém na pandemia da covid-19. Mulheres essas que,
diante de protocolos de isolamento e demandas de pessoas doen-
tes na família, precisaram adaptar de modo significativo suas ro-
tinas, sentindo com isso uma sobrecarga ainda maior. Para além
da pandemia, embora talvez mais expresso nesse contexto, esse
público sempre existiu: mulheres cuidadoras, sem remuneração.
Sob essa perspectiva, o cuidar do outro torna-se uma sobre-
carga, que promove a sensação de carregar o mundo nas costas.
Diante deste cenário, quem cuida da cuidadora? Como promo-
ver o autocuidado dessas mulheres? Estariam elas tão sobrecar-
regadas a ponto de não ter tempo para si ou a invisibilização e
falta de escuta faz com que essas mulheres mergulhem apenas no
cuidado ao outro?
Ao encontro dessas questões, o presente ensaio visa, à luz da
Arteterapia articulada à simbologia do Mito de Atlas, refletir so-
bre a importância de permitir a essas mulheres o acesso a um
lugar seguro e de possibilidades, promovendo o autocuidado e
autoconhecimento através do fazer criativo.

204 | Contos e Mitos em Arteterapia


Criatividade, arte e mitologia: Uma intervenção na
sobrecarga da mulher cuidadora
A palavra criatividade é oriunda do verbo criar, do latim creare,
ou seja, um ser criativo é aquele que produz algo. OSTROWER
(2013, p. 9) introduz, a respeito da criatividade, que “criar é,
basicamente formar […] o ato criador abrange a capacidade de
compreender, e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, con-
figurar, significar”. É em si um potencial e algo necessário para
o desenvolvimento humano. A partir daí, pensar no ato de criar
como o de formar, correlaciona-se ao que Philippini (2021) con-
siderou a respeito da Arteterapia, um percurso no qual possibilita
in-formar, no sentido das imagens simbólicas às quais o sujeito
expressa, se depara, se comunica, se informa, para então poder
se trans-formar.
Sendo assim, entende-se que a atitude criativa é um potencial
inerente a todo ser humano e como todo potencial, precisa ser de-
senvolvido. A Arteterapia, então, cumpre esse papel de possibilitar
tal estímulo, pois utiliza de diferentes materiais artísticos expres-
sivos tais como o desenho, a pintura, a tecelagem, modelagem,
dentre outros, conduzindo a um processo criativo e simbólico.
Outro condutor de autotransformação através do simbólico é
a mitologia. Os mitos, que nos aproximam de nossa experiência
humana, universal, são sentimentos e pensamentos compartilha-
dos pela humanidade, o que Jung (2000) denomina como nosso
inconsciente coletivo, auxiliando, segundo Campbell (1991) a per-
ceber e colocar o foco na experiência de estar vivo como pistas
que nos mostram as possibilidades da vida humana.
Sendo assim, recorreu-se neste trabalho ao mito de Atlas, tra-
balhando a metáfora “de carregar o peso do mundo” (grifo nos-
so), unido à prática arteterapêutica para que mulheres cuidadoras

| 205
pudessem se reconhecer nessa sensação de sobrecarga e, para
muito além disso, pudessem construir caminhos que as levassem
para uma vida com mais autoaceitação, autocuidado e leveza.
Para entender sobre essa jornada, quatro questionamentos fo-
ram feitos: “Como estou?”, “Quem sou?”, “O que necessito?” e
“O que pretendo realizar?” Com 13 participantes que tinham en-
tre 30 e 50 anos e eram cuidadoras não remuneradas - cuidavam
dos filhos, maridos e pais idosos.
A jornada resultou num olhar delas para si mesmas e a possibi-
lidade de formar, in-formar e transformar.

“Como estou?” e o castigo de Atlas


Na mitologia grega, Atlas era filho de Jápeto e Clímene e se jun-
tou a outros titãs que, assim como ele, representavam as forças do
caos e da desordem para atacar Zeus e seus aliados, representan-
tes das energias do espírito, da ordem e do Cosmos, para alcançar
o poder supremo. Ao final da batalha, Zeus os derrotou, lançando
seus inimigos, considerados escravos da matéria e dos sentidos, ao
Tártaro (BULFINCH, 2002; GALAHAD, HESÍODO, 1995).
No entanto, para Atlas o castigo foi diferente: o de sustentar
nos ombros o peso dos céus para sempre. Seu nome passou a sig-
nificar “portador” ou “sofredor”. Depois de ser castigado, Atlas
passou a morar no país das hespérides, terra de suas 3 filhas,
Ninfas do Poente: Eagle, Eritia, Hesperatetusa.
A Arteterapia é permeada pelos vínculos, então, se faz necessá-
rio que as mulheres se conheçam e compreendam a importância
desta. Para tal, utilizou-se o desenho, com o caráter de experi-
mentação lúdica, possibilitando o desbloqueio e a expressão atra-
vés da forma.

206 | Contos e Mitos em Arteterapia


O início de suas jornadas à luz do mito de Atlas objetivou a re-
flexão sobre como estavam, o reconhecimento dos excessos que
carregam e o contato com as emoções e sentimentos vindos da
relação de cuidado. Ao utilizar as linguagens expressivas: pintura,
construção, recorte e colagem, fotografia e tecelagem a jornada
tornou-se mais significativa e leve.
Explorando os aspectos que a pintura favorece, como capaci-
dade de expansão, vivência lúdica e cromática, elas construíram
o próprio mundo através da pintura a dedo e, em seguida, colo-
caram penas em suas produções, para trazer uma maior sensação
de leveza.
O trabalho da construção com sucatas permitiu ressignificar seu
próprio objeto de poder.
Ao fazer uma mandala, valendo-se da capacidade de selecionar,
organizar e colar os recortes de imagens escolhidas, puderam ima-
ginar um novo sentido para a realidade existente, oferecendo, além
de pistas simbólicas sobre seus processos do cuidado, uma ordena-
ção e integração dos sentimentos delas, enquanto cuidadoras.
Na mitologia grega, o mito de Atlas se cruza com um dos 12
trabalhos de Hércules, que foi encarregado de entregar a Zeus
as maçãs de ouro, plantadas na terra das hespérides, protegidas
por um dragão de 100 cabeças e pelas Ninfas do Poente. Porém,
soube que somente Atlas conseguiria colhê-las.
Foi então que Hércules se propôs a segurar o céu enquanto
Atlas colhia as maçãs. No entanto, ao retornar com as maçãs, o
titã disse a Hércules que ele não trocaria de lugar e que agora era
sua função carregar o céu. Hércules fingiu concordar, mas pediu a
Atlas para segurar o mundo enquanto procurava algo para aliviar
o peso; assim que o Titã segurou a Terra, Hércules fugiu deixando
Atlas novamente com seu fardo.

| 207
A partir desse ponto do mito, trabalhou-se com as mulheres a
aceitação de momentos de alívio.
A fotografia foi a primeira proposta desse encontro, visando a
capacidade de explorarem o cotidiano e de olharem a autoima-
gem, como lembra Ribeiro (2013, p. 37) “as fotografias são cultu-
ralmente aceitas como testemunho de presença, são aliadas fun-
damentais para o resgate da autoimagem e autoestima [...], pois
funcionam como antídoto à invisibilidade social”
Durante a semana, ao fotografarem momentos de prazer e tran-
quilidade e compartilharem com as outras cuidadoras, num mural
virtual, foi possível resgatar momentos de leveza e pertencimento.
Através da produção da mandala de lãs “olho de deus”, olharam
para os seus sentimentos com relação ao cuidado, organizando
‘uma linha de pensamento’ e permitindo perceber que os momen-
tos de alívio e prazer são também parte do processo do cuidar.
Citando Philippini (2018, p. 61) a tecelagem na Arteterapia “[...]
equivale a ordenar, a articular, a entrelaçar, a organizar, a apro-
priar-se do próprio fluxo criativo e existencial [...]” e com esse olhar
mais gentil, voltado para si mesmas, elas atravessaram a primeira
fase da jornada e deram início a um mergulho mais profundo.

Fig. 1 - Produção do próprio crachá (à esquerda)


e intervenção no desenho da mão

208 | Contos e Mitos em Arteterapia


Fig.2 - Mandala feita com utilização de recorte, colagem e
utilização de outros materiais como giz de cera

“Quem sou eu?” e o mergulho ao Tártaro


O Tártaro era um abismo profundo usado como prisão para os
deuses Titãs. Podemos entendê-lo como símbolo do nosso incons-
ciente. Uma parte nossa também habita o Tártaro, um mundo
primitivo que contém forças, também primitivas, que se forma-
ram na nossa infância. Neste contexto cabe o questionamento, o
quanto essas forças primitivas refletem nos pesos que carregamos
na relação de cuidado?
Foi a partir dessa reflexão que a segunda fase da jornada arte-
terapêutica dessas mulheres cuidadoras foi idealizada. PHILIPPINI
(2018, p. 88) enfatiza sobre a construção que:

| 209
Demandam simbolicamente a consciência e a integridade de uma
estrutura interna organizada, coesa e bem introjetada. Esta estrutura
interna abrangerá percepção de eixo, centramento, integração entre
segmentos e, se este equilíbrio não estiver sendo percebido interna-
mente, não poderá ser expresso fora. Na produção simbólica, o mes-
mo poderá ser aprendido ou reaprendido nos erros e acertos de ten-
tar edificar e de constatar que nem sempre as próprias concepções de
equilíbrio resultam acertadas. A materialidade sempre apresentará
de modo óbvio estas dificuldades, e atravessá-las e resolvê-las per-
mitirá que, analogamente, processos emocionais reorganizem-se.

A construção do “pote de si mesma” [7] sugeriu melhor percep-


ção individual e o autorreconhecimento, convidando à ressignifi-
cação daquilo que é delas e do que colocaram como responsabi-
lidade sobre elas.
Nesse movimento, foi propiciado um mergulho interno, que
também permitiu o olhar sob as próprias sombras. Lá, onde fica a
parte mais primitiva do ser, encontra-se um mundo desconhecido
que, através da linguagem simbólica, é possível acessá-lo de for-
ma mais sublime.
Carregar o peso do mundo nas costas não é uma capacidade
para o ser humano. Somente um Titã, como Atlas, pode dar conta
desta tarefa.
Os titãs eram deuses que nasceram no princípio dos tempos
como descendentes de Urano, que era o Céu, e Gaia, que era a
Terra. Muitas vezes pensamos ou somos levados a crer que é pos-
sível dar conta de tudo ao mesmo tempo, principalmente quando
estamos falando de mulheres cuidadoras, quando na realidade
estamos, metaforicamente, preenchidas por uma atitude titânica.

[7] No contexto desta proposta o “pote de si mesma” foi utilizado para fazer
uma reflexão a partir de uma lista de palavras que as participantes já
escutaram sobre si e outras que acreditavam representar quem elas são, para
então colocar no pote apenas aquilo que reconheciam em si.

210 | Contos e Mitos em Arteterapia


Para trabalhar essa busca pela perfeição feminina, foi proposta
a construção de uma self box com o tema “A mulher que fui, a
mulher que sou e a mulher que quero ser”, percorrendo múlti-
plas linguagens como a modelagem, a pintura, recorte e colagem,
desse modo elas puderam focar em seus próprios processos de
individuação.
O processo de individuação é um caminho do Ego para o Ego,
potencialmente presente no Self, que é a totalidade psíquica, pos-
sibilitando a realização do Si mesmo, a serviço da alma, que tam-
bém chamamos de Psique. Esse processo não tem fim, mas sua
finalidade é o autoconhecimento por meio do confronto com o
inconsciente até surgir o despertar do amor e, consequentemen-
te, da ética e da necessidade de servir cada vez mais, para poder
ser! (MAGALDI, 2019, s/p).
Muitas vezes, esse despertar para o autoconhecimento não
ocorre justamente por conta do peso das tarefas do cotidiano;
o mito de Atlas nos ajuda a compreender esse excesso de obri-
gações e o quanto estamos desconectadas do nosso limite e do
direito de exercer estes limites, podendo ocasionar danos físicos e
psicológicos. O complexo de Atlas é uma das doenças relaciona-
das ao estresse da vida moderna. O Complexo de Atlas nasce de
atitudes titânicas, ou seja, forças desmedidas e autodestrutivas,
que podem vir do excesso de controle e responsabilidade, da ideia
de que tudo suporta, uma personificação da mulher guerreira.
Nesta etapa, foi proposto um trabalho de monotipia para que
elas tivessem a oportunidade de refletir sobre sua produção final,
resultado de certa ausência de controle. Um processo rico que
possibilita enxergar beleza, realização, leveza e harmonia quando
renunciamos ao controle.
Para finalizar esta fase, chamada de mergulho ao Tártaro, foi

| 211
utilizada a modelagem e a pintura em pedras, a partir de uma
meditação guiada, para que as participantes se conectassem com
sua criança interior.

Fig. 3 - Modelagem e pintura em pedras na reprodução do


cenário do encontro com a criança interior

“O que necessito?” e a construção dos


próprios pilares de sustentação
De acordo com uma das versões existentes do Mito de Atlas,
após Hércules o enganar e fugir, Atlas é libertado de seu fardo e
torna-se então o guardião dos Pilares de Hércules, sobre os quais
os céus foram colocados. Após percorrer todo um caminho de re-
conhecimento e despertar, as participantes cuidadoras iniciaram,
a partir desta fase, a construção de caminhos e possibilidades
para o autocuidado.
Assim como o fardo de Atlas foi colocado sob pilares, o que
seria necessário para sustentar o peso do cotidiano das mulheres
que cuidam? Aqui, as participantes puderam olhar de forma cria-
tiva para suas peculiaridades e encontrar saídas que permitissem
uma maior qualidade de vida.

212 | Contos e Mitos em Arteterapia


A atividade proposta foi a automassagem com uma bolinha de
tênis e posteriormente, imprimir a bola de tênis com tintas sobre
o papel para construção de novos caminhos. Os grupos trouxeram
relatos de possibilidades de enxergar um novo caminho construí-
do a partir de suas percepções. Em outro momento, solicitou-se a
construção dos próprios pilares, para sustentação desta bolinha,
com sucata e materiais recicláveis.
Também nesta fase da jornada, explorou-se a técnica de recor-
te e colagem para que as participantes pudessem recontar sua
própria história com um novo olhar, a partir da leitura do poema
“Ressalva”, de Cora Coralina, e finalizou-se a jornada com a pro-
posta de uma mandala de sementes.

“O que pretendo realizar?” E a passagem para Atlântida


Como já dito, ao final do mito, Atlas passou a ser o guardião
dos Pilares de Hércules, sobre os quais os céus foram colocados,
e que também eram a passagem para o lar oceânico de Atlântida,
terra de inúmeras riquezas.
Entre os atlântidas ou atlantes, corpo, mente e espírito eram alimen-
tados por uma arte, religião e filosofia mais avançadas do que as dos
Gregos. Os sábios estudavam o movimento dos astros e meditavam
sobre os segredos do Universo, enquanto os homens se fundiam nos
mistérios da natureza. O homem comum tinha acesso a todo este co-
nhecimento e vivia sabiamente na simplicidade do dia a dia, gozando
da paz que o respeito pela tradição e pelas leis equilibradas gerava
(PORTO EDITORA, 2021, s/p).

A fase da passagem para a Atlântida foram os últimos passos


das participantes desta jornada. Aqui, puderam despertar o dese-
jo pela vida a partir da identificação de sonhos, vontades e rique-
zas pessoais, de modo que a vivência costumeira desejada, daí

| 213
por diante, consiga basear-se na manutenção do equilíbrio entre
cuidar-se e cuidar do outro.
Com a prática do plantio, as participantes listaram seus desejos
e sonhos de vida bem como, ações que as levariam a concretizá-
-los. Simbolicamente, adubar suas ações e cultivar seus sonhos.
Encerrando todo o processo arteterapêutico, olharam o cami-
nho percorrido resgatando as vivências e atividades para costurar
um caderno dos sonhos e inspirações, firmando um propósito de
estar mais conscientes de suas necessidades e desejos, bem como
dialogar diariamente com a mulher do presente e aquela que elas
esperam se tornar no futuro.

Fig.4 - Construção do caderno dos sonhos

214 | Contos e Mitos em Arteterapia


O despertar através de Altas
O percurso das mulheres cuidadoras, exposto no presente en-
saio, cujo fio condutor foi o mito de Atlas trabalhado a partir
das ferramentas arteterapêuticas, possibilitou o despertar dessas
mulheres para si mesmas, deslocando seus olhares para as suas
necessidades, os seus desejos, desenvolvendo e ampliando seus
conceitos sobre autocuidado, de modo que compreendessem
existir, apenas no equilíbrio entre cuidar de si e cuidar do outro,
a manutenção de uma existência mais leve e harmoniosa, tanto
para si, quanto para o entorno, proporcionando inclusive, mais
qualidade na relação entre elas e aqueles de quem cuidam.
Ao longo do caminho, as participantes conseguiram identifi-
car suas riquezas pessoais, seus sonhos e reencontrar o desejo
pela vida, em geral, bastante abandonado, em função, não só
das funções e papéis, mas também da intensidade com a qual
se envolviam, esquecendo-se com muita facilidade (esquecimento
sócio culturalmente bem trabalhado junto às mulheres, inclusive)
de si próprias. O reencontro com esse ser desejante que as habita
(e sempre habitou) trouxe à tona, ao longo do processo, aspectos
importantes de suas subjetividades, os quais precisavam emergir
para que então essas mulheres pudessem construir e usufruir de
sua própria Atlântida.
Porém, construir e usufruir da Atlântida, inicialmente, depen-
dia da abertura que cada participante daria ao próprio processo,
a partir do manuseio e contato com os materiais e técnicas ex-
pressivas. A cada proposta lançada, as mulheres transpareciam
em suas produções aspectos internos, cujo sentido se ordenava e
ampliava, não só mediante ao fazer artístico em si, mas perante a
sutileza e a profundidade do simbolismo que então surgia e dava,

| 215
por sua vez, algum sentido ao “não visto” por elas. Foi assim
que elas perceberam a urgência em impor limites, buscando di-
zer não a tudo aquilo que já não mais queriam para si mesmas,
bem como a imperiosa necessidade de validar e acolher seus
desejos, escrevendo dali por diante uma dinâmica de vida mais
consonante com o que desejavam e passaram a entender por
autoestima e autocuidado.
Eis a Atlântida que descortinaram ao fim do processo, cada qual
com a sua em particular, cuja existência se consolidou ao longo de
um processo de reencontro, autoconhecimento e reavaliação dos
próprios caminhos. Tal processo desenhou-se a partir de um fluxo
de expressões criativas e simbólicas, que possibilitaram acessos
internos mais profundos, alavancados pelo uso de diferentes téc-
nicas expressivas como pintura, tecelagem, desenho, construção
entre outras, as quais promoveram, por fim, amplas reflexões so-
bre o próprio existir, e a recuperação de lucidez e equilíbrio acerca
de si mesmas, encaminhando-as ao encontro dos seus potenciais
criativos, que as orientaram no caminho da reinvenção acerca de
seus modos de ser e estar no mundo.
Pois bem, caros leitores, o trabalho realizado com essas mu-
lheres cuidadoras, cuja narrativa vai chegando ao fim, de modo
algum pretende esgotar em si o assunto, tal sua complexidade
e magnitude, o qual deve ser cada vez mais abordado e traba-
lhado junto a essas figuras cuidadoras, e aos demais indivíduos
da sociedade, de modo a ampliar a consciência acerca do equi-
líbrio necessário entre o cuidar de si e o cuidar do outro para
que haja uma vida realmente saudável e harmoniosa para os
envolvidos bem como uma efetividade no cuidado daquele que
se faz dependente. Entende-se que, para alcançar tal objetivo,
muitas são as ferramentas norteadoras, tendo sido aqui apre-

216 | Contos e Mitos em Arteterapia


sentadas a mitologia e a Arteterapia como formas de pensar e
manejar questões internas, trazidas à consciência pela expressão
artística-criativa-simbólica, capazes de acender em cada uma das
participantes, possibilidades criativas para que consolidassem a
existência de suas próprias Atlântidas.

| 217
Referências

ARANTES, A.C.Q. A morte é um dia que vale a pena viver. Rio de Janeiro: Sextante,
2019.
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. 26ª ed.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
CAMPBELL, J. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1991.
GALAHAD, L.C. Atlas, o titã que sustenta o céu nos ombros. Mitologia Grega Br:
Curiosidades sobre Deuses, Monstros e Heróis. Disponível em: https://mitologiagrega.net.
br/deuses-primordiais/ Acesso em: 06/02/2022.
HESÍODO. Teogonia: A origem dos deuses. 3ª ed. São Paulo: Editora Iluminuras LTDA,
1995.
JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2000.
MAGALDI FILHO, W. Autoconhecimento como caminho de cura pessoal e
social: individuação e ego. Disponível em: https://www.ijep.com.br/artigos/show/
autoconhecimento-como-caminho-de-cura-pessoal-e-social-individuacao-do-ego. Acesso
em: 22/10/2021.
OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação. 29ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
PHILIPPINI, A. Linguagens, materiais expressivos em arteterapia: uso, indicações e
propriedades. 2ª ed. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2018.
PHILIPPINI, A. Para entender Arteterapia: cartografias da coragem. 6ª ed. Rio de
Janeiro: Wak Editora, 2021.
PORTO EDITORA. Lenda da Atlântida na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora.
Disponível em: https://www.infopedia.pt/$lenda-da-atlantida. Acesso em: 20/10/2021.
RIBEIRO, E. N. Cerzindo Histórias com Fios de Luz: A fotografia em trabalho
Arteterapêutico realizado com mulheres. in: Arteterapia: métodos, projetos e processos.
Angela Phillippini (org). 3ª ed. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2013.

218 | Contos e Mitos em Arteterapia


Do vazio ao acolhimento em
tempos de pandemia

Wilse Ricardo Francisco[1]


Ariane Hecht[2]

[1] paraochico@outlook.com

[2] arihecht123@gmail.com

I niciar o processo de estágio - após as exposições feitas pelo


professor tutor, os longos meses de aulas expositivas, as
aulas práticas e online, as pesquisas e os estudos - nos pareceu
natural e, ao mesmo tempo, desafiador. O momento nos apre-
sentava um cenário bastante complexo, durante o qual o mundo
foi surpreendido por uma doença de transmissão tão poderosa
que fez a Terra parar. Fomos obrigados a diminuir a circulação
social e rapidamente nos tornamos experts em tecnologia, ajus-
tando nossas relações interpessoais, profissionais e familiares,
ao convívio virtual.

| 219
A solidão passou a fazer parte da vida cotidiana. Então, nesse
cenário, surgiram diversos questionamentos. Essas inquietações
nos levaram a buscar respostas incessantemente. Percebemos que
nossas angústias eram norteadas por um tema que teimava em
povoar nossas cabeças: “o vazio”. O vazio de tudo nos foi apre-
sentado nesse período. As pessoas sentiram-se mais solitárias e
distantes, sem o aconchego caloroso e energizante dos contatos
humanos. Como ressignificar esse vazio nos dias de hoje? O que
é e como se manifesta esse vazio? Como nossa cabeça trabalha
com essa situação? Como isso reflete no nosso corpo e no nosso
dia a dia? Como poderíamos atuar nesse processo? Os dicioná-
rios nos informam que vazio é uma palavra originária do latim
vacivu (vago), que significa aquilo que nada contém. Figurativa-
mente, encontra-se também a seguinte definição: “sentimento
angustiante produzido por saudade, privação ou ausência” [3]. Se-
riam necessárias muitas discussões sobre esse tema. A partir dele,
deparamos também com questões relativas à saúde mental e à
necessidade de criar mecanismos para nos mantermos saudáveis:
“Em tempos de isolamento social em consequência da pandemia
do novo coronavírus, se faz ainda mais necessário falar sobre saú-
de mental. Precisamos pensar em como ficar saudável durante
esse período, para além das questões físicas. [4]”

[3] Cf. Dicionário Aurélio on line. Disponível em: https://www.dicio.com.br/.


Acesso em 12/12/2021.

[4] Extraído de: https://saude.rs.gov.br/saude-mental-sentir-angustia-tristeza-


e-preocupacao-e-normal-durante-uma-pandemia. Acesso em 12/12/2021.

220 | Contos e Mitos em Arteterapia


Assim, ressignificar esse vazio passou a ser nosso tema central
e orientou o desenvolvimento dos atendimentos arteterapêuticos,
dentro do programa de estágio do curso de pós-graduação em
Arteterapia NAPE/FAVI.
Definimos parâmetros para formar o grupo de trabalho e aco-
lhermos pessoas que estivessem sentindo os impactos do isolamen-
to social imposto pelo momento pandêmico; queríamos ajudá-las
a lidar com o sentimento de vazio existencial provocado pelo novo
coronavírus. Formamos um grupo com nove mulheres de diferen-
tes idades, atendendo-as de forma online, uma vez semana, com
encontros de aproximadamente duas horas.

Nos identificando em nós


Iniciado o estágio, logo nas primeiras sessões percebemos que
as partilhantes apresentavam forte necessidade de se conectar
com questões pessoais que foram intensificadas no período pan-
dêmico. Ficaram muito claros para nós os pontos de conexão entre
elas e as semelhanças que as aproximavam: todas passavam pelo
resgate das raízes, pelo revisitar das vivências e acontecimentos
de um passado recheado de fortes significados e a importância da
construção de uma identidade pessoal visível e atuante em serem
as condutoras de si mesmas.
As três primeiras sessões foram planejadas para que fôssemos
criando vínculos, conhecendo um pouco mais as histórias de cada
partilhante e para que, nesse processo, fosse estabelecida uma
conexão entre elas e nós, criando assim um círculo acolhedor de
troca e amorosidade. Nossos encontros foram estruturados sem-
pre a partir de um disparador (contos, lendas, mitos, canções e
poemas), precedidos por uma preparação realizada a partir de

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uma visualização criativa ou de um relaxamento. Essas práticas
iniciais preparavam o grupo para o estar ali presente, permitindo
às participantes terem o tempo focado somente em si e no traba-
lho a ser realizado.
Os materiais utilizados normalmente eram solicitados antecipa-
damente e cada partilhante se responsabilizava por tê-los no início
de cada encontro. Para algumas sessões, nós enviamos um ou outro
material específico. Em cada sessão, sempre e após todo trabalho
expressivo e respectivo compartilhamento em grupo, consideran-
do a carga de emoção contida, deixávamos sempre uma mensa-
gem, uma música ou um poema que fechava aquele momento e
acarinhava o grupo, na expectativa de deixa-las mais conscientes e
mais à vontade no retorno às suas respectivas rotinas.
Durante as 24 sessões, navegamos entre caminhos que foram
norteados pela força e pelo simbolismo dos quatro elementos da
natureza. Traçamos uma linha do tempo iniciada pelo elemento
Terra - por ser um elemento estruturante que promove as sensa-
ções, promovendo estabilidade e suporte. O mito do Baobá (Fi-
gura 1) foi o disparador para despertar e ativar percepções sobre
questões ligadas a relações ancestrais de pertencimento e reco-
nhecimento de si.
No início do processo, já se percebia que o grupo apresentava
características que davam indícios da necessidade de equilibrar as
manifestações do consciente e do inconsciente, caminhando em
busca do Si mesmo e ao encontro do ver a si. A base estruturan-
te apontava o caminho, um processo que foi despertado pelos
símbolos representados no trabalho da self box (Figura 2). Essa
técnica ofereceu uma base de sustentação para o início do traba-
lho terapêutico. GASPAR referenda essa perspectiva, ao dizer: “...
acredito na importância de se oferecer uma base, uma sustenta-

222 | Contos e Mitos em Arteterapia


ção no início do processo terapêutico. Esta atividade, denominada
self box, vem ao encontro dessa proposta.”

Figura 1: “As marcas fortes evidenciam que a árvore grande tem


cicatrizes e marcas profundas, senão ela não cresce forte. As
cicatrizes fazem a árvore forte… Me vejo sendo um tronco flechado”.

Contamos, por meio da caixa, nossa história, revisitando as ale-


grias da infância, os sonhos e planos da adolescência e da fase
atual, bem como nosso sonho de vida. As manifestações plásticas
desta fase trouxeram, a partir dos símbolos representados, lem-
branças afetivas de viagens e proximidade familiar, lembranças de
sonhos da adolescência que foram deixados para trás e a percep-
ção de que o projeto maior atual era resgatar a si mesmo.

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Figura 2

O trabalho expressivo com massa de modelar, representando as


memórias da infância, foi significativo ao colocar os participantes
diante de memórias felizes, despertando a criança interior e a
necessidade de ouvir as questões que essa criança trazia no pro-
cesso. Sincronicamente, quase que na totalidade do grupo, apare-
ceram memórias de infância relacionadas a atividades familiares,
viagens e momentos de pura alegria e felicidade.
Segundo Jung (1991, OC V. VIII/2, § 171.1991), “há pessoas
que nada veem ou escutam dentro de si, mas suas mãos são ca-
pazes de dar expressão concreta aos conteúdos inconscientes”.
Lendo Jung a partir de Ligia Diniz, percebemos que o afeto e o
acolhimento seriam a tônica dos encontros seguintes. Eram mu-
lheres com necessidades e questões de autoestima, não perten-
cimento, medos, ansiedades e frustrações. Despertar o potencial
de sonhar e realizar projetos era necessário. Então, tecer a vida e
estruturar projetos foram práticas estimuladas pelo elemento Ar,
para liberar a função pensamento. Ao tecer o Olho de Deus (Figu-
ra 3), foi necessário encarar as questões de paciência, controle da
ansiedade e movimento de cada partilhante com os processos de
aceitar e compreender as dificuldades, trazendo-as a um cenário
renovado e libertador.

224 | Contos e Mitos em Arteterapia


Figura 3

“No início achei muito difícil e, como a coisa não


caminhava, pensei em desistir, mas, ao continuar, fui
notando a necessidade de iniciar e concluir meus projetos”,

Afirmou uma partilhante. Concluir projetos, lidar com rigidez e


controle, seguir regras, desvendar caminhos foram impressões co-
lhidas que despertaram um modo de olhar para si e de se colocar
diante de si e dos outros. A conexão com o grupo foi se fazendo
presente e a luz emanada conduziu a todos para uma abertura
antes não percebida.
Os vazios, que foram a temática inicialmente proposta, come-
çaram a aparecer de diversas formas: no vazio da solidão de um
abandono, na impotência de não prever o sofrimento do filho, o
não reconhecimento dentro de uma relação e o medo de gestar
projetos profissionais e de vida. Por onde caminhar nesses encon-
tros consigo mesma? Foi preciso iluminar os caminhos, aceitar os
símbolos e decidir por onde caminhar.

“Quando não houver esperança,/ Quando não


restar nem ilusão,/ Ainda há de haver esperança,/
Em cada um de nós, algo de uma criança”
Titãs, 2003

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O elemento Fogo, estimulando a chama interior, ilumina as-
pectos dos quais temos consciência e também aqueles que ainda
estão à sombra, aspectos que precisam ser iluminados, percebidos
e trabalhados. Conforme Chevalier & Gheerbrant (2018), o fogo
é um símbolo purificador, regenerador e transformador” A cada
passo foram acessadas memórias e construídas pontes para res-
significar os nossos vazios interiores. Propusemos a elas simbolizar
essa chama com a construção de uma lanterna (Figura 4), para
que elas percebessem a luz dentro delas e voltassem ou começas-
sem a iluminar seus caminhos, preenchendo aquele vazio do início
do processo.

Figura 4: “Eu vejo que tem um caminho que ficou bem nítido,
aceso pela vela, e ficou muito bonito com o quadro pelo fundo na
floresta. Vejo que preciso observar meus caminhos”.

A cada relato, mais mergulhamos nas questões particulares de


cada partilhante no grupo e percebemos que seria muito revela-
dor ter uma sessão presencial. Dessa forma, preparamos carinho-
samente o ateliê e disponibilizamos diversos materiais. Como dis-
parador, produzimos um vídeo das sessões anteriores, contando a
trajetória do grupo até aquele momento. A proposta era: usando
diversos materiais e técnicas diferentes, preciso confeccionar e
costurar um livro de memórias (Figura 5). O produto final seria
algo que deixasse marcados - não somente na memória, mas tam-
bém fisicamente - os caminhos percorridos.

226 | Contos e Mitos em Arteterapia


Foram surpreendentes as produções e foi recompensador per-
ceber o sentimento de gratidão e satisfação pelo ressignificar de
dores, lutas e o alcançar vitórias no primeiro passo rumo ao auto-
conhecimento e à aceitação das nossas imperfeições. Foi um mo-
mento que justificou todo nosso empenho e esforço para deixar,
nas partilhantes, tudo quanto pudemos naquele momento, tudo
quanto nos foi permitido entregar sem invadir espaços de vivên-
cias pessoais.

Figura 5: Livro de memórias no fechamento do processo

A trajetória das partilhantes, durante esse processo artetera-


pêutico foi marcante. O último encontro reservou muitas emo-
ções e revelações. Os depoimentos foram emocionantes - daque-
les de arrebatar corações - e nos davam a certeza de estarmos no
caminho correto. Desde a chegada, a energia contagiou o ar; no-
tamos que as partilhantes, que fizeram todo o processo no modo
remoto, rapidamente se entrosaram e ficaram à vontade. Elas re-
solveram espontaneamente colocar os pés no chão, o tempo todo
trocando a energia com o local. O processo de confecção do livro
foi assim relatado por uma participante:

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“Vocês ajudaram pessoas, transformaram minha história e me
fizeram reavivar meus sonhos. Através da arte, vocês revisitaram
muitos corações, fazendo-os fortes, corajosos e presentes, e me
proporcionaram renascer das cinzas. EU VOU CELEBRAR!!!”[5].

Iniciamos nossa caminhada com muitas incertezas quanto ao


conteúdo, quanto à aplicação da técnica adequada para cada en-
contro e, principalmente, sobre como seria resolver cada deman-
da, as questões ou solicitações de cada partilhante. A sincronici-
dade respondeu muitas das nossas questões quando, no decorrer
do estágio, os símbolos manifestados foram trazendo as respostas
para o processo de individuação, o meio para nos tornarmos indi-
víduos autônomos e inteiros. A troca constante entre partilhantes
e terapeutas deixou emergir conteúdos inconscientes, no sentido
previsto por Thibaudier (2014), muito mais que devaneios, mas
como algo para confronto visando sua integração à consciência.
O resultado se resume na inteireza do processo, que reforçou nos-
sos desejos e afinidades com o fazer arteterapêutico, iluminando
nossa vocação de ajudar pessoas e principalmente com o “Vir a
Ser” arteterapeutas.
Ao final do curso, e aprendendo a lidar com as diferentes ca-
madas do vazio em nove mulheres, e em nós mesmos, podemos
afirmar:
“O arteterapeuta é um profissional que com o seu
cuidar coloca em prática o verbo amar”.

[5] Trecho extraido do vídeo disponível no link: https://www.youtube.com/


watch?v=A2GCjNm4giM. Celebração do final da jornada.

228 | Contos e Mitos em Arteterapia


Referências

GASPAR, Fabíola. Os 4 elementos da natureza. São Paulo: Curso de Pós-Graduação


em Arteterapia NAPE/ FAVI, 2019 (Apostila).
DINIZ, Ligia. Mitos e arquétipos na arteterapia: os rituais para se alcançar o
inconsciente. Rio de Janeiro: Wak, 2014.
_____. Arte: linguagem da alma, arteterapia e psicologia junguiana. Rio Janeiro: Wak,
2018.
PHILIPPINI, Angela. Linguagens, materiais expressivos em arteterapia: uso,
indicações e propriedades. Rio de Janeiro: Wak, 2018.
JUNG, Carl G. … [et al]; O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Harper Collins
Brasil, 2016
DINIZ, Ligia. Arteterapia e as Deusas: vivenciando o Olimpo. Rio de Janeiro: Wak,
2015.
CHEVALIER, Jean. Dicionário dos símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2020.
MATÉ. Contos do baobá. São Paulo: Noovha América, 2009.
THIBAUDIER, Viviane. Jung, o médico da alma. São Paulo: Paulus, 2014.

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232 | Contos e Mitos em Arteterapia
Os mitos sempre fizeram parte da natureza humana. Eles podem ser vistos como
representação de tudo aquilo que cerca o nosso funcionamento, sejam elemen-
tos da natureza, fenômenos naturais, objetos e figuras, inclusive aquilo que não
se traduz na materialidade e habita o campo do desconhecido, como deuses e
deusas. Por serem tão presentes, os ensaios deste livro abordam diferentes mitos
que impactam na vida de brasileiros e brasileiras: os ciclos lunares, referências
essencialmente brasileiras trazidas tanto das culturas afro-indígenas quanto das
judaico-cristãs, os quatro elementos da natureza, deuses e deusas gregas, cores e
flores, todos presentes nas jornadas heroicas da vida.

www.artenape.com.br

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