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Bernard Charlot
O princípio de base afirmado pelo FME é aquele que conclui a Carta redigida
durante o Fórum: “a educação pública para todos como direito social inalienável,
garantida e financiada pelo Estado, irredutível à condição de mercadoria e serviço, na
perspectiva de uma sociedade solidária, radicalmente democrática, igualitária e justa”.
Esse princípio opõe-se à lógica da globalização neoliberal e, mais especificamente, ao
Banco Mundial, cuja visão tornou-se predominante nas políticas internacionais sobre a
educação ao longo dos anos 80. Essa visão pode ser resumida nos seguintes pontos :
- A educação deve ser pensada e organizada prioritariamente em uma lógica
econômica e como preparação ao mercado do trabalho. Ela é a acumulação de um
capital humano que deve ser pensado em termos de custos e benefícios. Ela faz parte,
assim como qualquer outro capital e qualquer outra mercadoria, de um mercado.
- Conseqüentemente, os investimentos na educação e os currículos devem ser
pensados de acordo com as exigências do mercado. Por um lado, é preciso formar
trabalhadores “empregáveis”, “flexíveis” e “adaptáveis”, “competitivos”. Isso se traduz
por uma pressão dos setores econômicos sobre os currículos. Por outro lado, é preciso
desenvolver uma educação de base para todos (com uma duração de cerca de quatro
anos) e ao mesmo tempo organizar o ensino secundário e superior em relação às
exigências do mercado e sob a forma de um mercado educativo desregulamentado. Esse
esforço para submeter a educação às exigências de mercado capitalista ocorre em todos
os níveis, inclusive no ensino superior e na área da pesquisa, cada vez mais dependente
dos interesses e dos recursos do grande capital.
Essa visão da educação, imposta por alguns órgãos internacionais, teve por
efeito muito concreto de colocar um número crescente de países diante de um dilema:
devem escolher entre pagar a dívida externa (acrescida de juros estupendos) ou dar
educação para todos.
Essa visão traz uma série de conseqüências:
- A dimensão fundamentalmente cultural e humana da educação sendo oculta, o
direito à identidade cultural e à diferença cultural, mal respeitado antes da globalização,
já nem é mais reconhecido. A dimensão universalista, referida ao que é comum a todos
os homens, além de qualquer diferença cultural, também não está sendo levada em
conta. A questão da diferença cultural e do universalismo, do direito a ser diferente
culturalmente e ao mesmo tempo semelhante (e igual) em termos de dignidade e
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reconhecimento, já nem está mais pautada: da educação, são reconhecidos apenas seus
aspectos econômicos e profissionais. Dentro dessa lógica de desvalorização da cultura e,
portanto, dos universos simbólicos (lógica que se observa também no setor da arte ou da
comunicação), o que está ameaçado são as próprias referências que permitem ao sujeito
construir-se. Como ficar surpreso, então, com as explosões de violência e, de forma
mais geral, da violência difusa e onipresente nas sociedades contemporâneas? Assim, a
redução neoliberal da educação ao estatuto de mercadoria ameaça o homem em sua
universalidade humana, em sua diferença cultural e em sua construção como sujeito.
- O papel do Estado em matéria de educação está sendo contestado e, de fato,
recua. Esse papel está ainda mais contestado na medida em que o neoliberalismo
combate todas as formas de regulamentação, portanto, contra todos os espaços públicos
e contra a própria cultura do serviço público. A intervenção do Estado é considerada
legítima apenas para fazer a gestão e limitar os prejuízos sociais e, portanto, os riscos de
explosão social, ligados a essas políticas educativas neoliberais : espera-se dele apenas
que desenvolva políticas pontuais e compensatórias junto a algumas populações (que
podem também constituir a maioria da população de um país...). A educação passa
então a ser concebida como auxílio social e deixa de ser um direito humano e um
projeto de dimensão universal e cidadã.
- Nessa situação, observa-se um aumento do ensino particular, em todos os
níveis e principalmente em nível universitário. Vê-se também a introdução da lógica do
mercado nas próprias instituições públicas, cada vez mais colocadas em situação de
concorrência não somente com as instituições particulares, mas também com elas
mesmas. Na área universitária, procura-se impor a idéia que as universidades, inclusive
as públicas, devem se auto-sustentar. Aliás, às vezes, e de forma cada vez mais clara,
não é apenas a lógica do mercado que se apodera da escola, mas as próprias empresas
(os bancos, as grandes multinacionais) que se introduzem cinicamente na escola para
vender ou valorizar seus produtos ou serviços.
- Os níveis de escolarização de base aumentam, mas as desigualdades sociais no
acesso ao saber agravam-se. Agravam-se porque se pede à escola pública de base incluir
populações que a lógica neoliberal leva, paralelamente, à exclusão ou à marginalização.
Agravam-se porque a escola pública deve enfrentar essa contradição sem receber,
entretanto, os investimentos devidos, quer em termos financeiros, quer em termos de
formação, quer em termos de pesquisas e inovações pedagógicas. Agravam-se porque
os jovens estão cada vez mais escolarizados em instituições diferentes, dependendo do
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educação pública, na escola pública ou outros dispositivos públicos, deve ser acessível a
todas as idades: “Zero a 6 anos”, infância, adolescência, idade adulta, velhice.
- A escola pública deve ser defendida como um direito. O desrespeito desse
direito deve ser denunciado publicamente como desrespeito dos direitos do homem. É
preciso sobretudo denunciar publicamente, com ampla divulgação (inclusive
internacional), as exigências de redução dos créditos fornecidos à escola pública,
impostas pelo FMI com seus programas ditos de ajuste (com o apoio de países
dominantes, e, particularmente, de um país hegemônico, que fazem belos discursos
sobre os direitos do homem para os países dominados, impõem a eles suas políticas que
não respeitam o direito universal à educação). As reformas educativas devem ser o ato
de uma soberania nacional à qual não se pode renunciar, e o efeito das inovações dos
educadores, e não uma adaptação ao mercado globalizante.
- O fato de a escola pública ser um direito traz para ela obrigações. O direito não
é simplesmente o acesso à escola pública, é o acesso ao saber e à educação.
Portanto, deve ser definido um currículo comum de base para todos que constitui
uma obrigação para a escola e o Estado.
Portanto, devem também ser respeitados os princípios de base de uma educação
democrática na sociedade contemporânea:
* uma educação para o respeito dos direitos do homem e da dignidade de si
mesmo e dos outros: contra a violência, a opressão, a droga...; logo, uma educação aos
valores universais: liberdade, igualdade, solidariedade, paz, saber
* uma educação que reconhece as diferenças culturais e que as respeita e as leva
em conta (se estas não se opuserem ao direito à dignidade nem aos direitos do sujeito)
* uma educação que respeita os direitos da criança (definidos em cartas
internacionais), principalmente seu direito à expressão
* uma educação que se inscreve na perspectiva do desenvolvimento sustentável
e solidário, portanto, uma educação ambiental e uma educação ao conhecimento e ao
respeito do patrimônio
* uma educação que garante a alfabetização de todos (inclusive dos adultos
analfabetos)
* uma educação para o pensamento crítico e racional, que protege contra todas
as formas de fundamentalismo, entreguismo, populismo demagógico
* uma educação que leva em consideração as evoluções científicas e
tecnológicas; logo, uma educação que, junto com o acesso aos livros (que permanecem
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