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A educação analisada sob o foco do contexto econômico Até que ponto

organismos
internacionais
Especialistas discutem problemas da Educação brasileira e as influenciam a
Educação do país?
pressões de organismos internacionais

A economia está na ordem do dia. Nos últimos dez anos ela foi içada a vetor do
pensamento mundial e sob sua lógica têm se manifestado os mais diferentes — e
surpreendentes — segmentos sociais. A educação está entre eles.

Pensadores contemporâneos apontam episódios como a queda do Muro de Berlim, o


fim da Guerra Fria e a queda do Bloco Socialista, coincidentemente ocorridos nos
últimos dez anos, como responsáveis por esta “nova ordem” que vem colocando o
capital no centro ou no comando de todas as coisas.
Não é por acaso que as nações mais ricas — Estados Unidos, Japão e União Européia
— são responsáveis por 80% do que se investe em conhecimento no mundo.
Reconhecida internacionalmente como principal geradora de desenvolvimento, a
educação se tornou um importante meio para implementação de políticas públicas, seja
através do seu fortalecimento, ou do seu enfraquecimento, dependendo do fim a que se
propõem os governos.

Embora ainda fora do domínio público, as evidências são claras. Exemplo disso são as
dezenas de documentos, preparados por técnicos do Banco Mundial, acerca da
educação no mundo. Outro exemplo, este apontado como “escandaloso” por
pesquisadores da área, são as negociações da Organização Mundial do Comércio com
os países, no sentido de incluir o ensino superior na lista de produtos e serviços por ela
regulamentados.

Mas não precisamos dar a volta ao mundo para crer. No Brasil, por exemplo, as
estatísticas oficiais apontam o domínio do privado sobre o público em 70% das
matrículas universitárias. Para reforçar, em reportagem de capa no início deste ano, a
revista Exame qualificou a educação como um “meganegócio”, informando que o
ensino privado brasileiro movimenta, anualmente, uma estratosférica cifra: R$ 90
bilhões.

Quais as conseqüências desta política que transforma a educação apenas num


negócio? Para discutir o tema, Folha Dirigida convidou para este debate três
especialistas: Angela de Carvalho Siqueira, doutora em Educação da UFF, que passou
quatro anos nos Estados Unidos estudando as relações do Banco Mundial com o
ensino; José Raymundo Romêo, conselheiro da Universidade das Nações Unidas,
entidade educacional vinculada à ONU; e Pablo Gentili, um argentino que há dez anos
deslocou-se para o Brasil, tornando-se pesquisador do CNPq e coordenador, na Uerj,
do Observatório Latino-Americano de Políticas Educacionais.

Qual o interesse dos investidores internacionais no sistema educacional dos países em


desenvolvimento?

Profª Angela Siqueira


Desde a década de 80 o Banco Mundial se empenha em que os países Angela Siqueira
Pesquisadora das
relações entre o
ensino superior e
as agências
multinacionais
de investimento
gastem menos com educação e saúde, em termos de enxugamento do Estado. Isso abre o
mercado para o capital estrangeiro. A educação é vista como um grande setor de
expansão e de lucros. O BM, em documento apresentado em abril, fala que o mercado
educacional tem gastos estimados em R$ 2 trilhões de dólares em sua estrutura.

A população dos países desenvolvidos é envelhecida e não cresce tanto quanto a dos
países subdesenvolvidos, que se tornaram um mercado em potencial. A educação básica
e o pré-escolar ainda são vistos como áreas ligadas ao Estado, mas as empresas estão
interessadas em vender serviços educacionais e também produtos. Mas o foco maior é
no ensino superior, que na visão deles não é uma obrigação do Estado, mas apenas uma
mercadoria.

A oferta é de cursos rápidos e baratos, bastante lucrativos. Nos países desenvolvidos


houve uma redução de recursos para as universidades. Isso faz que se tenha que abrir
para outros mercados e os países menos desenvolvidos, com população crescente e de
baixa escolaridade, ficaram muito visados. A educação que trazem é fraca,
desqualificada e com cursos online, que nada têm a ver com a realidade local.

O interesse é de empresas isoladas, ou parte de organismos voltados para políticas públicas, como o
FMI e o Banco Mundial?

Profª Angela Siqueira


Parte das duas frentes, mas num trabalho de certa forma desarticulado. Os organismos
internacionais, principalmente o BM, passou a exigir, para fazer acordos, que os países
adotassem uma administração empresarial no setor educacional, reduzindo gastos. Isto
fez que a oferta, principalmente no ensino superior, fosse reduzida. Sem expansão, o
mercado fica aberto para as empresas.

Prof. Pablo Gentili


Cada vez mais a Organização Mundial do Comércio reconhece a
educação como serviço. Ela passou a ser objeto de discussão
comercial nos tratados internacionais. Se tenho uma empresa de
consultoria, posso abrir uma sede dessa empresa na Argentina, no Pablo Gentili
Uruguai, porque é mais difícil para os países do Sul abrirem em países Coordenador
do Observatório
do Norte; mas se tenho uma universidade, a possibilidade de abrir uma Latino-Americano
subsidiária em outro país, em termos jurídicos, sofre uma série de de Políticas
Educacionais e
impedimentos, e as articulações para a liberalização foi o que levou a pesquisador/CNPq
educação para o campo das relações comerciais entre os países.

A questão, hoje, é em que medida a lei é aberta para facilitar essa circulação de
empresas. Embora seja um processo muito periférico, o deslocamento de instituições em
algumas cidades do interior do Brasil já existe. No Sul, várias pessoas estão fazendo
doutorado em Educação em universidades européias. Claro que com uma qualidade
muito diferente. A Universidade de Salamanca (Espanha) tem uma enorme penetração
no sul do país, só que os estudantes nunca foram a Salamanca, não falam espanhol, mas
fazem seu doutorado na instituição. Essa seria uma forma de transnacionalização do
serviço universitário, ainda que de forma precária, por enquanto.
As universidades argentinas também oferecem diploma de doutorado e algumas já
colocaram unidades nas regiões de fronteira, para que se atravesse a ponte e se faça um
curso de Medicina lá.

A preocupação dos meios acadêmicos está direcionada para o ensino a distância, hoje bastante
facilitado pela tecnologia. Mas a informação que os senhores trazem é que essa educação sem
fronteiras vem se dando em nível presencial. Com a abertura do mercado, esta é a tendência?

Prof. Pablo Gentili


Existem também universidades, principalmente americanas, que oferecem cursos de
pós-graduação virtuais, mas estamos num patamar inicial. Na Argentina, essa tendência
de abertura de sedes de universidades estrangeiras no país começou no governo (Raul)
Alfonsín. Deu uma parada por causa da crise, mas a situação do dólar vai estimular seu
retorno.

Hoje você pode fazer um curso de pós-graduação na Universidade de Bolonha (Itália),


sem sair de Buenos Aires. São lucrativos, porque o custo de manutenção é muito barato,
e são muito procurados.

Os professores são italianos ou argentinos?

Prof. Pablo Gentili


São argentinos contratados de forma temporária. O crescimento da circulação de capital
estrangeiro pelo ensino superior é crescente. A capacidade reguladora do Estado vai
diminuindo e o poder destes grupos, de interferência nas políticas locais, vai
aumentando.

A revista Exame publicou em sua capa matéria que dizia: “O meganegócio da educação,
R$90 bilhões, movimenta o sistema privado de educação no Brasil”. Isso desperta o
interesse dos grupos estrangeiros. E os grupos locais, vendo seu mercado disputado,
começam a buscar alianças com os estrangeiros. Isso impõe uma situação muito
complexa e muito difícil para a educação pública e para a construção de um projeto de
educação nacional.

Prof. José Raymundo Romêo


Desde a década de 80 estes organismos exigem que os países em
desenvolvimento não apliquem recursos na educação superior, e sim
na fundamental. Eu participei de uma reunião no Zimbabwe (África) José Raymundo Romêo
em 1987, em que o BM apresentou um documento à Associação Membro do Conselho
Latino-Americano da
Internacional das Universidades apontando no sentido de priorizar o Universidade das
ensino fundamental. Nações Unidas (UNU)
e do Conselho de
Reitores Brasileiros
O primeiro-ministro do Zimbabwe dissecou o trabalho e chegou à conclusão de que,
para o país, era preferível aplicar recursos na educação superior do que na educação
básica. Ele argumentou que não adiantava um país de pessoas alfabetizadas, que não
conseguisse transformar suas riquezas potenciais em riquezas reais que beneficiassem a
população. O caminho apontado pelo banco era de dependência e de dominação. Mas
isso foi-se expandindo pela América Latina, sobretudo no Brasil da última década.

Existe alguma iniciativa concreta, no sentido de grupos estrangeiros atuarem no Brasil através de
alianças com instituições locais?
Prof. José Raymundo Romêo
Existem grupos fazendo estudos prospectivos no Brasil, testando o mercado. Mas eu
acho muito difícil, porque os donos de universidades não se entendem tanto, não
conseguem sequer fazer algo em conjunto até para melhorar a situação de suas
instituições. Preferem uma guerra mercadológica entre eles, sem muita ética, e os
governos favorecem.

A Associação Internacional de Presidentes das Universidades se reuniu este ano na


Austrália e firmou uma posição de que a educação superior é um bem público, que tem
que contribuir para o desenvolvimento sustentável de um povo. O conteúdo foi enviado
a vários ministros e, no Brasil, eu enviei para o ministro Paulo Renato. Não sei se ele
leu.

Mas há uma grande pressão sobre a OMC, para não considerar a educação como
serviço.

Profª Angela Siqueira


Mas essa pressão é do Japão, para contrabalançar os Estados Unidos, a Nova Zelândia e
a Austrália.

Os senhores acreditam que a política do MEC é limitar a oferta no ensino superior, para favorecer
o capital internacional privado?

Profª Angela Siqueira


Eu não posso falar de intencionalidade explícita, mas o BM propôs, em 1991, uma
reforma no ensino superior, justificando que a universidade baseada em pesquisa é
dispendiosa para os países do Terceiro Mundo.

O Brasil é apontado nos documentos internacionais como um exemplo de expansão do


ensino privado, principalmente superior. São poucos os países no mundo que têm essa
proporção de alunos no ensino privado, como o Brasil. Na década de 60, tínhamos 30%
no ensino privado e mais ou menos 70% no público. Hoje é o inverso. O que não se
discute é a qualidade do serviço. O que houve foi a expansão de institutos superiores de
educação, com cursos baratos, nas áreas Social e Humana. Poucas oferecem Medicina,
Engenharia ou Física, que são cursos caros.

Aqui no Brasil já existem associações de grupos estrangeiros, como o Apolo, o


Pitágoras e o Objetivo. E no centro de Niterói há vários núcleos de universidades
privadas com cursos superiores como se fossem cursinhos, em uma salinha pequena,
sem biblioteca e sem laboratórios.

Prof. Pablo Gentili


O MEC deu inúmeros sinais de favorecimento a grupos privados e, ao mesmo tempo,
outros sinais de desfavorecimento ao ensino público, haja vista que nós tivemos um
crescimento extraordinário do número de matrículas nesta década e, ao mesmo tempo,
temos decadência, sucateamento, crise profunda, em todos os sentidos, nas
universidades públicas. Este crescimento do mercado foi capitalizado por grupos
privados, que cresceram transformando instituições supostamente de ensino superior em
depósitos de alunos, em supermercados de diplomas.
A importância dos investimentos no setor público Ensino superior
recebe muitas
críticas. Falta uma
Se não houver investimentos na área pública, a universidade não política mais
consistente
consegue cumprir seu papel fundamental e estratégico

Como fica a ciência e tecnologia, diante deste predomínio do privado sobre o público? Há exemplos
na América Latina que podem servir de espelho para o Brasil?

Prof. Pablo Gentili


O sistema científico e tecnológico sempre se sustentou da educação
pública, de modo que a crise da educação pública também é uma crise
do sistema científico-tecnológico nacional, num país que, apesar de
estar na periferia, tem desenvolvimento na área de tecnologia Pablo Gentili: “Direito à
invejável para muitos do Primeiro Mundo. O Governo favoreceu, educacão significa ensino
de qualidade, não apenas
estimulou, criou condições para que este processo se aprofundasse. acesso”
Mas a questão é se o futuro governo fará o mesmo ou tentará criar critérios regulatórios
um pouco mais sérios.

Também não podemos desconhecer que a comunidade econômica européia está atenta.
Temos uma relação assimétrica no trânsito internacional, tanto que perdemos a posição
como a décima economia. Não tivemos capacidade de negociar a inserção de produtos
nos mercados internacionais, por causa das restrições. O governo americano faz disso
um emblema. O japonês não coloca um quilo de arroz nos Estados Unidos, sem que
passe pelas travas burocráticas, impostos enormes. Essa mesma proteção que os Estados
Unidos têm em sua política internacional, nós não temos para as nossas e a fraqueza de
nossos programas é muito grande.

Por isso, um governo que se posicionar neste contexto internacional de forma fraca,
atendendo à desregulamentação, como foi este último governo, infelizmente promoverá
uma ampliação deste sistema e a conseqüência disso será como na selva, onde ganha o
mais forte.

Prof. José Raymundo Romêo


Em qualquer lugar no mundo, o momento é da sociedade do conhecimento, quem
detiver conhecimento terá um nível de vida melhor. Agora o que esta iniciativa privada,
se entrar, vai fazer neste sentido? É uma coisa que precisa ser discutida, debatida, até
dentro da comunidade universitária brasileira. As universidades públicas ficaram muito
fechadas nas suas questões conjunturais e se esqueceram de criar essa base conceitual,
que é importante para dizer para a sociedade e para o governo o que ela representa. O
que distingue o pobre, seja ele povo ou país, do rico, não é só o fato de ele não ter
desenvolvimento. É o fato de ele ser excluído da criação e do benefício do
conhecimento.

Profª Angela Siqueira


Uma outra forma de intervenção dos grupos privados no ensino superior é no controle
do financiamento da ciência e tecnologia. Tanto que há o acordo das patentes. A partir
do momento que o governo não financia as pesquisas e deixa essa questão nas mãos da
iniciativa privada, ela passa a determinar o que vai ser pesquisado, como e quando vai
ser divulgado.

Prof. José Raymundo Romêo


Tivemos, em um passado recente, uma parceira das universidades no campo da ciência
e tecnologia, que eram as estatais. A Embratel fazia pesquisa junto com as
universidades. E agora, quem vai fazer isso?

A gente nunca vai poder discutir a universidade, sem uma discussão do modelo
econômico vigente no mundo. A gente nunca vai poder dissociar essas coisas que, hoje,
condenam o mundo a ser dividido, não pelo Muro de Berlim, mas em cada cidade, em
cada país, em cada região, em cada estado, num mundo de pobres e ricos. Uns que vão
ter o domínio da tecnologia e continuar mandando, e outros que vão ser dependentes.

Profª Angela Siqueira


O último documento do BM e da Unesco de 2000, para a política de ensino superior dos
países em desenvolvimento, coloca claramente essa divisão. Para as pessoas mais
pobres, o ensino superior seria um pós-secundário educacional, um ensino rápido, de
dois anos, e que deveria ser ministrado por instituições privadas. E grandes empresas
que controlam sistemas de comunicação, como a Microsoft, estão se associando a esses
tipos de cursos.

Isso não é positivo, no sentido do acesso ao mundo do trabalho?

Prof. José Raymundo Romêo


Se for assim, vamos fazer escolas técnicas e fechar as universidades, porque é mais
barato. Vamos fazer escola técnica, curso por correspondência, e colocar o diploma na
parede. O ethos universitário é insubstituível, o aluno universitário não é para ser
treinado, não é para ganhar uma profissão, é para ser um cidadão, tem que sair
preparado para a cidadania, para a vida, para transformar a sociedade.

Juscelino (Kubitschek) dizia que alguns homens plantam carvalho, outros plantam
couve. Temos um governo plantador de couve, poliglota, mas plantador de couve, que
quer colheita imediata. Temos 96% de alunos nas escolas, mas fazendo o quê? Temos
mais alunos nas universidade, fazendo Direito, Administração, mas de que maneira?
Isso é estelionato.

Profª Angela Siqueira


Os norte-americanos também são falaciosos quando dizem que 80% da população têm
nível superior, porque eles têm um sistema que forma em dois anos.

Prof. Pablo Gentili


A experiência latino-americana demonstra que o crescimento do ensino privado é
diretamente proporcional às perdas em todos os níveis, não apenas no universitário. A
famosa universalização que o mercado promove se dá apenas em uma direção. E nada
garante que ter 96% das crianças nas escolas significa que o direito à educação se
universalizou. Direito à educacão significa ensino de qualidade, não apenas acesso e
permanência. Os novos senhores da educação, hoje, interferem nas políticas
educacionais e, em alguns casos, chegam a mandar mais do que o ministro.
A concorrência não exige, não garante qualidade?

Prof. Pablo Gentili


Isso na educação é um mito. A concorrência piora a qualidade. Qualquer uma das
instituições privadas que foram referência do ensino no país, hoje, pela obrigação da
competitividade, se tornaram piores, não valorizando os professores, implantando
salários mais baixos. Essa regulamentação que o MEC colocou, com relação ao número
de doutores, é uma ficção. Contrata professores-doutores que não dão aulas e os que
seguem dando aulas têm muito baixa qualificação, são substitutos de formação muito
precária.

Prof. José Raymundo Romêo


É um mito também em outros setores. Como é que o produtor rural pequeno, que nunca
viu veterinário, agrônomo, que faz aquilo artesanalmente, porque aprendeu com seus
pais, vai melhorar com competição? Isso é uma falácia.

Profª Angela Siqueira


E no nosso caso, é uma competição sem pesquisa, sem investimento e com abertura de
mercado. Muitas universidades famosas nos Estados Unidos, como Harvard, oferecem
cursos no exterior, mas não são os mesmos de lá. São todos contestados, de baixa
qualidade.

Prof. José Raymundo Romêo


Caímos na questão que o Pablo falou, de instituições argentinas que vêm ao Brasil dar
mestrado, doutorado.

Prof. Pablo Gentili


O que na Argentina é reconhecido como de mediana qualidade faz sucesso no Brasil. O
que estamos vendo de forma muito clara em outros países da América Latina, como o
México, por exemplo, é que a ampliação do mercado em países com fraca
regulamentação e com fraco controle público gera corrupção. Alguns anos atrás, quando
se discutia o financiamento educacional, o tema da corrupção não aparecia. Podia
aparecer no sentido da má utilização dos recursos públicos por parte dos ministros, de
alguns secretários, mas hoje um dos grandes temas é a corrupção, seja ela ativa ou
passiva.

Um caso que estamos vivendo recentemente é com o BNDES, que abre uma linha de
crédito para investimento em infra-estrutura universitária, e coloca como pré-condição a
obrigação de penhorar bens da instituição que quer acesso ao crédito. Só a universidade
privada poderá obter este crédito, porque o reitor da UFF, por exemplo, não pode dar
como garantia o campus do Gragoatá, que é um patrimônio da União. Moral da história:
os fundos públicos, os recursos do BNDES, foram todos para construir esses enormes
prédios que vemos por aí.

Profª Angela Siqueira


O Banco Mundial também está nisso, porque ao mesmo tempo que
forçou o governo a reduzir os gastos fortaleceu o Internet Financial
Corporation (IFC), que é o braço privatizante do BM e visa a
incentivar a expansão do setor privado da educação. Eles produziram Angela Siqueira: “A
um documento em 1989 sobre a estratégia para o investimento em maioria das universidades
federais foi criada perto
dos quartéis”
educação privada, e uma das propostas é justamente o enfraquecimento das regulações
dos países, no sentido de ter uma maior abertura do mercado e de conseguir maior
transferência dos recursos públicos para o setor privado, através de financiamentos.

O BNDES é citado como um dos aliados nessa perspectiva de financiamento ao setor


privado. O Internet Financial vem lutando para estabelecer a abertura do mercado de
educação na OMC. Isso aconteceu no Canadá, porque antes de fazer o acordo do Nafta
foi feito um acordo entre Estados Unidos e Canadá, e o Canadá sofreu muito. Só 25%
dos livros didáticos canadenses são produzidos lá, o resto vem dos Estados Unidos. São
fabricados no México, mas são vendidos por empresas americanas. Isso tem
conseqüências não só para a educação, mas em termos da própria cultura, porque os
livros são completamente dissociados dos valores canadenses. Se isso aconteceu com o
Canadá, que era forte, imagine com o Brasil.

Prof. Pablo Gentili


Essa é uma tendência que vamos sofrer e é um alerta para as políticas públicas do futuro
governo. Não é que tenhamos um caso específico de corrupção na educação porque
somos eminentemente corruptos latino-americanos, é porque este crescimento
desenfreado do mercado cria falta de controle e se sustenta sobre bases profundamente
fracas em termos dos valores republicanos.

E isso não ocorre só na universidade. Essa tendência vai afetar todo o sistema, porque
entrando pela universidade, que é o mercado mais imediato, mais dinâmico em termos
de circulação de capital, também vai entrar no ensino fundamental e uma das formas é
através do livro didático.

Aqui no Brasil não vimos muito isso, pela especificidade lingüística do país, mas na
Argentina, no Peru, no Uruguai, no México, a reforma curricular é feita sobre as
mesmas bases de sustentação. E os intelectuais que trabalharam na reforma destes
países são, possivelmente, os mesmos que trabalharam no Brasil. Muitos dos
documentos da base da reforma curricular brasileira foram impressos em espanhol, a
partir dos trabalhos feitos naqueles países, com os mesmos profissionais, com a
diferença que, nos outros países chamados de ibero-americanos, de língua espanhola, as
editoras espanholas, que já tinham uma presença significativa, hoje têm presença quase
total, comprando as editoras nacionais falidas, ou produzindo os livros didáticos
associados às reformas.

Existe algum mecanismo que preserve o Programa Nacional do Livro Didático? Não se tem
conhecimento de editoras estrangeiras nas concorrências do MEC. São todas empresas nacionais.

Profª Angela Siqueira


A proposta do livro didático aqui no Brasil, que foi financiada pelo BM, estava ligada
ao Projeto Nordeste. Aliás, na Conferência de Educação para Todos tinha gente do BM,
do Banco Interamericano, da Unesco, e houve uma discussão acalorada sobre o livro
didático. O BM enfatizava que era preciso criar livros mais baratos. A proposta era para
a região nordeste, mas eles estavam muito mais preocupados com custo, do que com
conteúdo. Em vez de discutir a referência regional, estavam preocupados com capa,
distribuição, essas coisas mais operacionais, mais financeiras.
Prof. Pablo Gentili
Pensar que o Brasil ainda não entrou, não significa que não vai entrar, porque é um
grande mercado. Fornecer software à rede pública de qualquer país é um mercado
extraordinário.

Profª Angela Siqueira


Isso foi apresentado no World Education Market, em 2000, que fala do crescimento do
comércio de serviços na área de educação. Eles mencionam o gasto pequeno com o
ensino ao redor do mundo, mas, mesmo com esse gasto pequeno, é um mercado em
potencial. A China, por exemplo, gasta 4,71 dólares por aluno, porque tem milhares
matriculados. Isso gera um gasto de 900 milhões de dólares. A China é o maior mercado
potencial, na perspectiva para 2009.

Prof. José Raymundo Romêo


Falta uma política mais consistente. Só há políticas isoladas. Quem comanda essa
política no país? O Conselho Nacional de Educação virou um cartório, o ministério não
tem uma inteligência, o ministro investiu no marketing, através dessas avaliações...

Profª Angela Siqueira


Mas o ministro está muito envolvido com os organismos internacionais, em termos de
ser um vendedor de serviços.

Prof. José Raymundo Romêo


E certamente envolvido com o setor particular. Não adianta discutir educação fora do
contexto econômico internacional. A base para formar sociedades mais justas é a
universidade, e para serem eficientes elas têm que ter bibliotecas atualizadas, base de
informática, equipamentos para laboratório. Temos uma das maiores biodiversidades do
mundo, mas, se não tivermos equipamentos para formar pessoas para a pesquisa, não
vamos conseguir nada.

Para mudar o rumos disso tem que ser criado um fundo internacional, que a Unesco
poderia manejar, para a educação superior, para que ela seja mais igual no mundo.
Outro ponto que eu queria abordar é que não sou contra a universidade particular, mas
ela tem que ser pública nas suas finalidades, não pode ser um comércio. Nos Estados
Unidos ela tem um papel importante, embora lá as universidades sejam
majoritariamente estatais.

Profª Angela Siqueira


Mas grande parte dos seus recursos são públicos.

Um fundo nacional para financiar o ensino superior


Um problema central
está relacionado
sempre com a
Na multiplicidade dos problemas apontados, surge um complicador: escassez de recursos
onde estão os recursos para todas as carências?

Gostaria que o professor Romêo esclarecesse melhor sua proposta de criação de um novo fundo
para a educação.
Prof. José Raymundo Romêo
Seria um fundo nacional de educação superior, que não poderia ser
controlado pelo governo. O FNDE (Fundo Nacional de
Desenvolvimento Educacional) é uma brincadeira. Poderia ter um
volume de recursos muito maior do que tem, mas os empresários
José Raymundo Romêo:
sonegam, não se interessam por ele. Tem que ser um fundo controlado “Os militares acreditavam
pelos doadores e pelos usuários que vão se beneficiar da educação mesmo que a educação
gerava desenvolvimento”
superior. Isso é fundamental num país como o Brasil.

Profª Angela Siqueira


Agora tem que ver se isso não se transforma como em outros países, onde a maioria
destes fundos passa a ser administrado pelos doadores.

Prof. José Raymundo Romêo


Mas o doador tem que participar. É inaceitável que o FNDE não tenha um conselho de
empresários. Este fundo é usado politicamente pelo Ministério da Educação. Se as
empresas é que pagam o salário-educação, deveria ter um conselho de empresários para
controlar sua destinação.

Até aqui houve consenso na consideração de que os investimentos na universidade são geradores de
desenvolvimento. Em termos de América Latina, por que a Argentina, que investiu em educação,
vive uma situação-limite?

Prof. José Raymundo Romêo


Em matéria de educação, o sistema deles é de muito boa qualidade. Um país de
população pequena, muito organizado, com a economia baseada na agricultura. Mas
criaram um problema na universidade, acho que no governo (Raul) Alfonsín, que foi o
livre ingresso, para mim um erro fundamental. Uma universiade de Direito ou Ciências
Sociais passou a ter 20 mil alunos e pagava 100 dólares ao professor. Poderiam ter
partido para um ingresso gradativo, como eu acho que deve ser no Brasil. Não pode
mudar tudo de repente, com todo mundo na universidade pública. Se não forem criadas
condições, vai-se cair numa situação falsa, de oferecer o que não se tem.

Já no governo (Carlos) Menem, houve uma liberação para o setor privado e foram
criadas grandes corporações, como a Universidade de Palermo, que, inclusive, tem um
bom padrão em algumas áreas. No setor público, o reitor da Universidade de Córdoba
tentou criar o pagamento de mensalidade e gerou confusão, mas foi uma experiência.
Apesar disso tudo, o setor público conseguiu criar um certo padrão e a Universidade de
Buenos Aires foi uma referência.

A economia argentina foi se deteriorando, mas eu acho que o país está bem e vai
encontrar um caminho. O Brasil está pior, porque vive uma situação artificial. Tudo que
cresce, cresce com crise.

Profª Angela Siqueira


Na Argentina, grande parte da crise não pode se dissociar da influência do BM. Seu
relatório de 1998 mostra que o país era o que tinha mais financiamento, em todo o
mundo, em todas as áreas, e a maioria dos projetos era em termos de privatização do
Estado. A Argentina hoje está falida, porque manteve a paridade do dólar artificialmente
com o peso. As dívidas das empresas são em dólar, com o peso lá embaixo, e agora
esses organismos internacionais lavam as mãos e culpam o país por isso. A Argentina
não tem mais controle sobre o setor energético, de petróleo, e muitas empresas
nacionais faliram em função da abertura do mercado. Não foi só um processo de
privatização, foi um processo de desnacionalização.

Na época o Brasil era considerado atrasado, porque não acompanhava o ritmo argentino.
O país era a boa-moça da América Latina. Já o Brasil, por causa da Constituição e por
causa da expulsão do (Fernando) Collor, ficou de lado. Se não fosse isso, em passos
mais rápidos estaríamos nesse processo da Argentina.

Itamar Franco fez um governo nacionalista, até em termos de ensino superior. Ele deu
uma freada no processo de extinção das empresas nacionais. O Collor acabou com a
Embratur, a Embrafilme, que depois foi ressuscitada, a Capes foi extinta, depois voltou.
O governo Itamar promoveu uma volta ao processo de nacionalização.

Aqui no Brasil, o que aconteceu para frear esta tendência de privatização foram os
movimentos sociais, aqui ficou mais difícil. Na Argentina o petróleo foi privatizado,
aqui a Petrobras ainda existe, embora haja pressão para sua privatizaçãao, e também do
Banco do Brasil.

Prof. Pablo Gentili


O país que investe em educação não tem a porta para o desenvolvimento garantida por
uma regra matemática. Nós temos alguns países na América Latina que investem, não
só nos setores públicos, mas em modelos de desenvolvimento educacional. Quem
estabilizou o ensino público de forma universal? Chile, Argentina, Uruguai, Costa Rica.
Nenhum construiu uma potência econômica e dois deles, Uruguai e Argentina, estão à
beira do abismo, e são dois países que têm os seus sistemas educacionais públicos
invejáveis, em comparação com os outros países da região. E quais são os dois países
mais poderosos da

América Latina? Brasil e México. E os dois têm um sistema educacional de qualidade


mínima.
É evidente que a correlação entre o investimento em educação e o desenvolvimento
percorre caminhos nem sempre tão claros e evidentes, porque os dois países são os mais
poderosos na região, atualmente, e têm profundas desigualdades no seu sistema
educacional, comparados com Uruguai e Argentina. São diferenças enormes, eram
países com uma distribuição muito mais equilibrada do que a brasileira ou mexicana, e
economicamente estão muito mal, apesar de terem um enorme potencial. Significa então
que nós não deveríamos investir em educação para ter um retorno imediato, como o
professor Romêo comentou ainda há pouco. A educação é um direito constitucional, ela
deve ser fornecida à população por isso.

As razões da crise argentina são muitas. No que se refere ao ensino superior, tem este
assunto do livre acesso, é uma especificidade muito própria destes países, da Argentina,
Uruguai e do próprio México, sendo que a Argentina teve um problema muito grande
com a ditadura. Ela fez uma intervenção direta nas universidades muito mais dura e
muito mais violenta em termos físicos, e quando o governo Alfonsín assume a
reivindicação pelo acesso livre às universidades era uma coisa tão intensa quanto a
gratuidade da educação.
Na ditadura tinha que pagar a universidade. Num primeiro momento, nós queimamos os
talões de pagamento e a segunda reivindicação era o acesso livre, então as universidades
não souberam administrar essa situação. E estava nessa reivindicação uma coisa
importante, que eu acho que nós devemos recuperar para a discussão: que não
necessariamente a seletividade absoluta garante o crescimento de qualidade das nossas
universidades. O vestibular é um processo predatório de avaliação e as nossas
faculdades saem com uma baixa avaliação acadêmica. A receita argentina não deu certo
e acho que não faz sentido repetir; agora desafio que as nossas universidades sejam mais
abertas, democráticas, e de boa qualidade. Isso continua sendo um desafio para a
Argentina e para o Brasil.

Prof. José Raymundo Romêo


O livre acesso não é um problema, o problema foi o jeito como ele foi lançado. Tivemos
esta situação aqui no Brasil em 64, mas aqui o livre acesso foi para os excedentes, no
governo (Arthur) Costa e Silva. Houve a pressão política, porque as vagas eram poucas.
Os excedentes eram aqueles que prestaram exame, passaram, mas não foram
aproveitados. Dizem que aumentou a oferta em 30%, mas daquela época pra cá deveria
aumentar 100, 200%, porque o crescimento da população foi esse e o crescimento das
vagas tem que ser universal.

Profª Angela Siqueira


As universidades brasileiras não foram criadas para funcionar em tempo integral. Os
cursos noturnos são uma coisa complicada em termos de transporte e segurança. O caso
da Uerj é diferente, porque ela é urbana. A maioria das universidades federais foi criada
longe, perto dos quartéis

O regime militar foi decisivo para o crescimento e a qualidade do sistema universitário brasileiro?

Prof. Pablo Gentili


Durante a ditadura, a educação passou a ser um pólo importante para o desenvolvimento
econômico.

Profª Angela Siqueira


Basicamente no sistema de ciência e tecnologia e na pós-graduação. Apesar da grande
repressão nas áreas humanas, tivemos uma grande expansão nas áreas de minério e
siderurgia.

Prof. José Raymundo Romêo


É um paradoxo, porque os militares fizeram isso não por razões ideológicas, mas porque
acreditavam mesmo que educação gerava desenvolvimento.

A experiência do México com o Nafta pode servir de espelho para o Brasil, em relação à Alca? Sua
implantação pode trazer quais conseqüências para o país no campo da educação?

Prof. Pablo Gentili


A Alca vai ser uma tragédia em todos os sentidos, não só educacional. A Alca é uma
tentativa de os Estados Unidos traçarem as regras e as condições do mercado na região,
para enfraquecer, no mercado mundial, os outros blocos econômicos, basicamente a
Europa. O risco de a América Latina se integrar à comunidade econômica européia no
processo de intercâmbio comercial, político, social, cultural mais aberto, aterroriza o
governo americano.
É neste sentido que nós mencionamos a crise argentina e eu entendo que ela é um
espelho em que podemos reconhecer até onde o governo americano vai, que o FMI e o
Banco Mundial não são entidades internacionais no sentido puro. O amor que o FMI
tinha pela Argentina há dois anos atrás e esse ódio que experimenta hoje é muito mais
para chamar a atenção do Brasil.

Todos estamos aqui de forma muito tranqüila, esperando o que pode vir, porque o
grande risco que a Alca representaria seria para o Brasil. Eu respeito os irmãos
uruguaios, mas o prejuízo do Uruguai com a Alca será menor. A fragilização da
liderança que o Brasil tem e teve historicamente em termos regionais é um dos objetivos
do governo americano.

Profª Angela Siqueira


Um dos objetivos do governo americano e do Banco Mundial, ao financiar a Argentina,
era porque a Argentina não só estava com a dolarização, mas também, ao contrário do
Brasil, era favorável à Alca.

Prof. José Raymundo Romêo


E ao mesmo tempo vem esse grande investimento, este ano, para criar essa diferença a
ferro e fogo. E existe uma evidência de que isso não é positivo, porque a Argentina,
com todo investimento, entrou nessa crise. Só que devido às dimensões brasileiras, os
problemas aqui são muito maiores. E lá o pessoal bate panela, aqui as pessoas têm AR-
15.

Profª Angela Siqueira


Em relação ao Nafta, sua questão tem que ser vista, sim. E não só o México foi atingido,
o Canadá também foi. Em termos de abertura de comércio, um dos grandes
impedimentos dos países para exportar seus cursos são os critérios de validação do
diploma. Estão querendo que se acabe com isso, em favor de critérios expansionistas.
Tem também a questão da avaliação. É uma coisa que, no México, quando foi criada a
Ceneval (Comissão Nacional de Avaliação), foi tudo padronizado, com vários exames e
com questões de múltipla escolha, como se adota no Provão brasileiro, onde não se
avalia nada, apenas criam-se standards nacionais neste país de dimensões continentais,
com problemas regionais diferenciados, escolas diferenciadas. Criar um padrão de
avaliação nacional já é complicado, imagina fazer isso nas Américas. E o padrão que vai
ser usado é o americano.

A possível liberação do FGTS para pagamento da formação universitária vai democratizar o


direito ao ensino superior?

Profª Angela Siqueira


Sou contra. Quem propõe é um deputado (Walfrido Mares Guia, do PFL) que tem
interesse porque está ligado ao grupo Pitágoras, de Belo Horizonte. Isso contribui para
reforçar a visão dos grupos empresariais de que a educação é uma questão individual e
não social.

Prof. José Raymundo Romêo


É um desvirtuamento do FGTS, um desrespeito. Este fundo foi criado para criar
salvaguardas para o trabalhador.

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