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CRISE FEDERATIVA, GUERRA FISCAL E “HOBBESIANISMO MUNICIPAL” ...

CRISE FEDERATIVA, GUERRA FISCAL E


“HOBBESIANISMO MUNICIPAL”
efeitos perversos da descentralização?

MARCUS ANDRÉ MELO


Professor de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco

A pós uma década de experiências descentra- descentralização. Na terceira parte, as relações entre fe-
lizantes, a agenda de discussão em torno do tema deralismo e seguridade social são discutidas de forma
adquiriu um novo formato. O debate público vem bastante breve e à luz dos efeitos perversos da descen-
assumindo um caráter menos apologético, típico do tralização.
consenso em que foi produzida a agenda da descentra-
lização nas décadas de 70 e 80. Os constrangimentos e DESCENTRALIZAÇÃO E MUDANÇAS
vicissitudes da descentralização são postos agora em ESTRUTURAIS NA GESTÃO PÚBLICA
discussão e os efeitos perversos de reformas passam a
ser apontados. A partir da década de 80, a descentralização consti-
Observa-se forte polarização no debate público em tuiu-se num princípio ordenador de reformas do setor pú-
torno da questão. De um lado, estão aqueles que enten- blico, que tiveram efetivamente abrangência internacio-
dem o fortalecimento dos níveis subnacionais de gover- nal, difundindo-se dos países capitalistas avançados para
no como um processo virtuoso que não só robustece a aqueles do mundo subdesenvolvido. A bandeira da des-
democracia, como também produz uma maior eficiência centralização passou assim a expressar um virtual con-
alocativa no sistema de governo. A competição entre uni- senso, sendo advogada simultaneamente por governos
dades federadas é vista como geradora de inovações no conservadores e social-democratas. Nos países egressos
sistema público. De outro lado, estão aqueles para quem os de experiências autoritárias – como é o caso da maioria
estados e municípios são loci de clientelismo e ineficiência, dos países latino-americanos – a descentralização passou
sendo que sua autonomização representa fonte importan- a ser entendida enquanto dimensão essencial da demo-
te de ingovernabilidade. Além disso, argumentam que a cratização.
irresponsabilidade fiscal nesses níveis compromete os Com efeito, a genealogia da descentralização enquanto
esforços de estabilização do Governo central. Nessa pers- princípio político tem uma longa trajetória no pensamento
pectiva, a guerra fiscal entre estados e municípios expres- liberal. Desde Tocqueville, as virtudes do local self-
saria a perda de rumo e a ausência de coordenação quan- government, entendido sobretudo em relação à intervenção
to à estratégia nacional de desenvolvimento. do Estado central, tem sido reiteradamente enaltecida por
O presente texto mapeia essa mudança recente na agen- liberais. No campo do pensamento econômico, a descen-
da pública, explorando analiticamente – embora de for- tralização, ao ser assimilada à idéia de mercado, também
ma preliminar – os termos do debate. Na primeira parte é advogada por economistas conservadores, de Hayek a
do texto algumas das principais mudanças de agenda teó- Buchanan. A teoria organizacional contemporânea
rica em torno da questão da descentralização são perfila- também aponta para a emergência de um paradigma pós-
das, com referências preliminares e rápidas à experiência burocrático, que enfatiza estruturas horizontalizadas e
internacional. Na segunda parte, focaliza-se o caso brasi- cooperativas de governance em lugar de estruturas
leiro e discute-se a questão dos efeitos perversos da hierarquizadas (Barzelay, 1992).

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Na esteira do pensamento político, a idéia da descen- ça, Itália e Espanha, importantes reformas descentraliza-
tralização também encontra guarida na tradição social- doras foram implementadas por governos socialistas. O
democrata. No conjunto das ideologias socialistas, a ques- leitmotif do processo era o caráter democratizante das
tão da descentralização e autogestão comunal, e na unidade reformas que estariam associadas à promoção da demo-
de produção, representavam noções programáticas con- cracia direta e do fortalecimento de mecanismos de
solidadas de longa data. A idéia de socialismo municipal accountability. Na Espanha, o ímpeto descentralizante foi
se constituiu numa estratégia importante no início do sé- alimentado por clivagens étnicas ancoradas em fortes iden-
culo nos países europeus, da mesma forma que as virtu- tidades territoriais. Na França, uma coalizão descentra-
des de modelos autogestionários também foram aponta- lizante formou-se entre setores da burocracia, socialistas
das por teóricos importantes do movimento socialista, e notáveis locais, buscando-se desmontar estruturas
sobretudo no contexto das críticas ao modelo soviético. centralizadas criadas durante o período Napoleônico
Em seu conjunto, no entanto, a esquerda sempre privile- (Rosanvallon, 1993). Na Itália, o processo de descentra-
giou a centralização e não a descentralização. lização teve início em 1970 com a criação de 15 gover-
A idéia de um setor público centralizado e interven- nos regionais e culminou com a reforma constitucional
cionista está efetivamente associada à tradição social-de- de 1991, que extinguiu cerca de metade dos ministérios
mocrata, consubstanciando-se no chamado estado nacionais do país – transferindo suas funções para enti-
keynesiano de bem-estar social do pós-guerra (com a ex- dades regionais – e com simultânea elevação da partici-
ceção dos países escandinavos onde foram privilegiados pação dessas entidades na receita nacional de 30% para
arranjos institucionais descentralizados ).1 Nesse tipo de quase 70%. Este movimento descentralizante foi patro-
intervenção acreditava-se que a centralização era um re- cinado pelos socialistas e setores reformistas moder-
quisito para a superação de problemas como desigual- nizadores, levando a uma das mais audaciosas experiên-
dade e pobreza. Como assinala Ashford, a história dos cias de reorganização territorial em todo o mundo
welfare states, até pelo menos a década de 70, represen- (Putnam, 1993).
tou um movimento brutal de centralização administrati- A idéia da descentralização também foi ingrediente
va e política, no qual os governos locais foram sendo pro- importante do elenco de reformas advogadas por gover-
gressivamente destituídos de seu (embora limitado) papel nos neoliberais a partir da década dos 80. Com efeito, a
de provedores de serviços sociais. Os dois pilares da se- centralização é uma peça central do repertório político
guridade social (a previdência social e a atenção à saúde) conservador, que localiza no Governo central o objeto de
exigiram para sua viabilização estruturas e mecanismos seu anti-estatismo. As instituições multilaterais, tais como
nacionais centralizados de financiamento. Estes mecanis- o Banco Mundial e o FMI e mais recentemente o Banco
mos permitem transferências horizontais e verticais Interamericano de Desenvolvimento, passaram a se cons-
(intergeracionais) de renda que constituem, em parte, a tituir em veículos importantes de difusão em escala glo-
própria razão de ser das políticas sociais. 2 bal da descentralização. O processo de descentralização
Vale lembrar que a descentralização tem sido advoga- ganhou forte ímpeto especialmente na América Lati-
da também no quadro da valorização recente de formas na, que se tornou um laboratório de experiências re-
de democracia direta e de mecanismos de controle social formistas. Na Europa – deve-se lembrar – o debate em
mais efetivos, para além das instituições representativas torno da União Européia alimentou a discussão em torno
do chamado modelo de Westminster. Essa tendência tam- das questões relativas à descentralização e ao federa-
bém evidencia-se, ainda, na convergência que se obser- lismo, que passaram a ocupar uma parte importante da
va, quanto a esse ponto, entre as tradições social-demo- agenda política.
crata e liberal. A descentralização é também um princípio
importante no quadro da renovação do pensamento polí- A RATIONALE DA DESCENTRALIZAÇÃO
tico de esquerda, sobretudo da chamada nova esquerda
pós-industrial, além de ser consistente com a idéia de frag- Embora as justificativas para as reformas descen-
mentação social que informa o chamado pós-modernis- tralizantes na última década estejam informadas funda-
mo na teoria política. mentalmente pelo neoliberalismo, no qual, como assina-
A partir da década de 70, o paradigma centralizado de lado, a descentralização é assimilada à idéia de desmonte
organização do setor público mostrou sinais de esgota- do estado central e de redução de sua atividade regulató-
mento. Não é possível discutir neste artigo, em detalhes, ria e produtiva, o consenso referido anteriormente está
as razões desse processo. Interessa assinalar, entretanto, ancorado num diagnóstico das patologias institucionais
que é nesse contexto que emerge o consenso em torno da encontradas em estruturas centralizadas e nas virtudes
idéia de descentralização. Em alguns países, como na Fran- econômicas da descentralização.

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Antes de discutir esse ponto cabe fazer aqui rapidamente ção e eficiência alocativa (Israel, 1989). A descentraliza-
uma explicitação sobre o conceito de descentralização. ção no sentido amplo permite o surgimento de mecanis-
Com efeito, o conceito recentemente tem sido desagrega- mos de controle sobre o governo que não estão presentes
do em várias dimensões ou noções correlatas, tais como: no caso da descentralização intra-organizacional. A com-
desconcentração, delegação e devolução (IDB, 1994). No petição política funciona como um desses mecanismos de
sentido amplo, e que envolve as três dimensões, a devolu- controle, além de promover local policy entrepreneurship.
ção pode ser definida como a transferência ao nível inter- As vantagens da devolução e da promoção da autono-
governamental de poder decisório sobre as esferas finan- mia local, inclusive financeira, são apontadas pelo mo-
ceira, administrativa e programática. Neste sentido se delo do federalismo fiscal. Segundo este modelo norma-
diferencia – e amplia – o conceito de desconcentração, que tivo das finanças públicas, cada tipo de bem público deve
descreve mecanismos de transferência de encargos e tare- ser provido pelo nível de governo que tiver maior vanta-
fas entre unidades administrativas ou políticas subnacio- gem comparativa em responder à diversidade de prefe-
nais; ou de delegação quando apenas algum grau de poder rências dos grupos da população. A provisão centraliza-
decisório é transferido. Quando a descentralização ocorre da de um pacote uniforme de bens e serviços públicos para
no âmbito de empresas, ou entre empresas e setor públi- toda a população poderia levar a uma oferta inferior ou
co, verifica-se um processo de terceirização. superior ao nível Pareto-eficiente, que expressasse as pre-
Entendida enquanto transferência de poder decisório ferências dos consumidores. Recentemente, surgiu na
a municípios ou entidades e órgãos locais, a descentrali- Europa uma versão constitucional e administrativa dessa
zação expressa, por um lado, tendências democratizantes, teoria no debate em torno do princípio da subsidiariedade
participativas e de responsabilização e, por outro, proces- que deve presidir as relações entre níveis de governo –
sos de modernização gerencial da gestão pública – em que inclusive num nível supranacional.
apenas a questão da eficiência é considerada. Essas duas Do ponto de vista do financiamento, a teoria do
dimensões complementares estão presentes nos proces- federalismo fiscal tem como pressuposto que os bens
sos de descentralização, mas a importância relativa assu- públicos possuem incidência espacial delimitada, circuns-
mida por esses dois vetores depende da natureza da coa- crevendo clientelas territorialmente definidas. Assim a
lizão política que dá suporte às reformas. Coalizões com segurança nacional tem impacto nacional, enquanto a
predomínio de forças políticas liberais/conservadoras iluminação pública tem impacto local. A incidência da
enfatizam os aspectos relativos aos ganhos de eficiência taxação para o financiamento desses bens deveria
e de redução do setor público. Coalizões social-democra- corresponder ao impacto territorial dos benefícios
tas, por outro lado, privilegiam os aspectos relativos ao proporcionados com a provisão dos bens (nos exemplos
controle social e democratização da gestão local. em pauta incidência nacional e local, respectivamente).3
As justificativas de ordem política para a descentrali- A teoria do federalismo fiscal, portanto, justifica a
zação envolvem fatores políticos relacionados não só à existência de um grande número de governos subnacionais,
promoção da democracia participativa, como assinalado, de forma a expressar adequadamente a variedade de
mas também à preservação de identidades territoriais, preferências por bens públicos. Portanto, uma estrutura
sobretudo em países que apresentam importantes cliva- governamental descentralizada minimizaria os riscos de
gens étnicas e culturais. Este argumento tem sido reitera- os tipos ou quantum de bens públicos ofertados não
do sobretudo nos países de tamanho continental e organi- corresponderem às preferências dos cidadãos ou ainda de
zados em estruturas federalistas, tais como Brasil, China, os benefícios relativos por um grupo (jurisdição) serem
Índia, ou Canadá; e também nas chamadas “democracias arcados por outro grupo (jurisdição).4
consorciativas” (Países Baixos). Estes modelos teóricos oferecem uma justificativa con-
As justificativas de ordem econômica para a descen- ceitual e normativa para a superioridade alocativa de es-
tralização estão relacionadas aos ganhos em termos de truturas descentralizadas. Na seção que se segue são ana-
eficiência alocativa que ela permite. A descentralização lisados os limites e constrangimentos à implantação de
intra-organizacional em agências ou setores possibilita reformas descentralizantes, bem como os efeitos perver-
ganhos tais como: maior heterogeneidade e variabilidade sos que podem resultar de estratégias reformistas.
na provisão de serviços; maiores possibilidades de gera-
ção de inovações; e aprendizado organizacional devido à LIMITES E POSSIBILIDADES DA
competição intra-organizacional entre unidades adminis- DESCENTRALIZAÇÃO
trativas. Neste último caso, a descentralização seria um
market ou competition surrogate, ou seja, criaria, à seme- Após uma década de experimentos descentralizantes
lhança do mercado, incentivos que promovem competi- em vários países e continentes, tornou-se possível reali-

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zar uma avaliação mais realista e sistemática da descen- gerar receita). O argumento é que recursos de transferên-
tralização. Embora a maioria das contribuições sobre a cias tendem a ser menos monitorados por atores locais do
questão ainda tendam a enfatizar as virtudes da descen- que aqueles resultantes da taxação no nível local. Por outro
tralização, muitos trabalhos recentes têm explorado os lado, as transferências de recursos, em muitos casos, teri-
limites e os efeitos não antecipados das estratégias am ocorrido antes que se fortalecesse a capacidade fiscal
descentralizantes. Alguns documentos analíticos das agên- local. As próprias transferências passariam assim a se
cias multilaterais têm adotado um tom mais cauteloso e constituir em desincentivo ao esforço fiscal local (efeito
menos laudatório em relação a esse processo. Para o Banco referido na literatura americana como o “flypaper effect”).
Interamericano, por exemplo, em seu Relatório sobre o Ademais, os governos locais se mostram incapazes de ar-
Progresso Sócio-Econômico na América Latina, “a ques- car com o ônus político de gerar receita fiscal (IDB, 1994
tão central é ... sob que condições a opção descentraliza- e Tanzi, 1995). Esse ponto, para o caso brasileiro, tem
da acarreta uma melhoria na qualidade da governança e sido objeto de grande controvérsia;5
contribui para um gasto mais efetivo em bens públicos - indefinição e ambigüidade quanto à definição de com-
locais como educação e saúde” (IDB, 1994:175-176). petências entre esferas de governo, devido à generaliza-
Por sua vez, para o diretor de Assuntos Fiscais do FMI, ção de competências concorrentes (Almeida, 1995 e
Victor Tanzi, “a questão central da discussão não é refu- Aghon, 1995). Tal indefinição tenderia a gerar inércia e
tar a conclusão que a descentralização pode trazer bene- paralisia institucional, uma vez que os mecanismos de res-
fícios, mas identificar situações nas quais essa política ponsabilização tornar-se-iam inoperantes;
pode não trazer os resultados esperados a menos que mu-
- perda de capacidade regulatória e de formulação de po-
danças importantes sejam promovidas nas condições exis-
líticas por parte do governo central pelo desmonte de es-
tentes” (Tanzi, 1995:8, grifo do autor).
truturas setoriais centralizadas e relativamente insuladas
Mais recentemente, a literatura produzida pelas agên-
da competição política. O argumento central é que tais
cias multilaterais tem procurado identificar seqüências
estruturas constituem-se em loci de expertise e de memó-
virtuosas que poderiam explicar o sucesso de algumas
ria técnica em políticas públicas (Melo, 1993b e Almeida,
experiências. Assim, os processos de descentralização
1995) e dificilmente podem ser encontradas ou mesmo
implementados após programas de estabilização teriam
construídas no nível local.
mais chances de ser exitosos.
Em síntese, a literatura tem destacado um conjunto de - descentralização fiscal com transferência de impostos
efeitos não antecipados e perversos da descentralização importantes para o nível dos estados e províncias, o que
não só para o caso de países do Terceiro Mundo, mas tam- minou a capacidade do Governo central de levar a cabo
bém do Primeiro. Esses efeitos perversos são produzidos políticas de estabilização e reformas fiscais. Incapacida-
em virtude da ausência de certos pré-requisitos para a de de ajuste fiscal a nível local (através de bancos con-
centralização e resultam de um conjunto de fatores apre- trolados pelos governos locais) devido aos incentivos
sentados a seguir: existentes (bail out pelos bancos centrais) para a indis-
- burocracias locais de baixa qualificação. Na maioria dos ciplina fiscal (IDB, 1994; Afonso, 1995 e Tanzi, 1995).
países e especialmente na América Latina existe um hia- Na literatura internacional os casos de endividamento
to muito largo entre a qualificação das burocracias cen- municipal e provincial de maior visibilidade são o argen-
trais e locais (provinciais e municipais) (Haggard, 1995 e tino (Idep, 1995) e o brasileiro. No caso brasileiro, no en-
Tanzi, 1995). Da mesma forma, existe um contraste mar- tanto, as relações entre processo de estabilização e des-
cado entre a qualificação dos burocratas da área fazendária centralização são bastante particulares devido à seqüência
e de planejamento e os da área social. O argumento fre- dos processos no Brasil, onde a descentralização prece-
qüentemente utilizado é que as transferências de funções deu a estabilização (Afonso, 1996). Ademais, no plano
e atribuições da esfera federal para os níveis subnacio- da arrecadação, observa-se aumento da receita local e não
nais significaram, em muitos casos, perda de eficiência redução. O que se nota, por outro lado, é que o processo
gerencial. Os efeitos da descentralização seriam perver- de estabilização acarretou um aumento sustentado da dí-
sos à medida que as burocracias locais não têm capacida- vida mobiliária dos estados, convertendo-se, ele próprio,
de institucional de prover adequadamente bens e servi- em fator de agravamento dessa dívida (Afonso, 1996);
ços sociais; - porosidade do governo local em relação a elites locais e
- transferência de receitas públicas sem responsabilida- provinciais, acarretando maior corrupção e clientelismo.
des de geração de receitas, o que rompe o vínculo entre o O risco de captura do Estado por elites locais também é
benefício (representado pela disponibilidade de recursos muito grande. Tais fenômenos foram assinalados para
para gasto) e o custo (o ônus político e administrativo de países distintos como França (Rosanvallon, 1993) e Bra-

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sil. A idéia de que decisões e controle social não são no- tão da gestão municipal converteu-se num ponto central
ções que se equivalem foi apontada por Rosanvallon.6 Os da agenda democrática. A oportunidade da discussão pú-
atores centrais nos processos de responsabilização políti- blica das Constituições estaduais e municipais (leis orgâ-
ca – como a imprensa, o Legislativo e Judiciário – são mais nicas municipais) e dos planos diretores (que se tornaram
efetivos e independentes no nível nacional. A representa- obrigatórios após a Constituição) permitiu que fossem
ção de minorias também ocorre de forma mais efetiva aglutinadas forças que haviam se fragmentado.
no plano nacional (sobretudo nos sistemas de voto pro- As grandes iniciativas nesse plano são os mecanismos
porcional); institucionais criados para a participação popular, além
- fragmentação institucional. Proliferação de municipali- de novas práticas de gestão.8 Tais experiências adquiriram
dades ou entes administrativos no âmbito local (Almeida, grande visibilidade e colocaram em segundo plano na
1995). Esta tendência, segundo vários analistas, poderia agenda pública os efeitos perversos que o neomuni-
ser observada com grande força no Brasil, como será cipalismo – ou mais acertadamente o “neolocalismo” –
discutido a seguir. produziu. Esse ponto, sobretudo a sua dimensão fiscal,
tem sido bastante enfatizado nas discussões sobre o
DESCENTRALIZAÇÃO E POLÍTICAS SOCIAIS processo de estabilização. Observa-se, no quadro atual,
NO BRASIL PÓS-CONSTITUINTE forte polarização do debate.
O neolocalismo tem repercussões predatórias sobre a
A descentralização constituiu-se numa peça central da cidadania social, ou seja, o hobbesianismo municipal, que
agenda reformista da Nova República em virtude de dois se expressa, entre outras coisas, na disputa entre localida-
desenvolvimentos. Em primeiro lugar, a centralização ca- des por investimentos industriais – deslegitimando as pri-
racterística do autoritarismo burocrático do regime mili- oridades sociais em lugar de benefícios fiscais e isenções
tar converteu a descentralização num princípio ordenador tributárias –, nas estratégias de exclusão e apartheid so-
das mudanças para os setores de esquerda. No caso espe- cial, em que mendigos são expulsos ou impedidos de en-
cífico da Nova República, também cumpriram um papel trarem em municípios afluentes, etc. Pelos seus próprios
destacado para certas elites intelectuais as experiências pressupostos, o neolocalismo consagra vantagens com-
espanhola e francesa de descentralização, devido à forte parativas locais e as reproduz ou potencializa. Além dis-
visibilidade política que alcançaram. Para a descentrali- so, converte todas as questões relativas à desigualdade e
zação da política de atenção à saúde – a política setorial concentração de renda em questões ilegítimas: elas pas-
emblemática desse processo –, o modelo compreendeu as sam a ser vistas como obstáculos ao progresso.9 Investi-
reformas que ocorreram na Europa na década de 70.7 Por mentos sociais compensatórios tendem a ser pensados
outro lado, a descentralização constituía-se numa peça como custos e/ou desincentivos à localização de empre-
também importante do pensamento liberal de oposição ao sas, o que debilita sua viabilidade política. Por outro lado,
regime. Na Nova República, as duas matrizes – a esquer- tais incentivos enfraquecem as frágeis bases fiscais de tais
da e a direita – engendraram uma coalizão frouxamente localidades, inviabilizando o financiamento de políticas
articulada, mas que logrou conferir um forte viés munici- sociais. A geração de empregos no quadro de reestrutura-
palista não só à Constituição de 1988, como também às ção produtiva não tem compensado as perdas ocorridas.
diversas propostas de políticas. O mais significativo a ser
destacado aqui é que o denominador comum às duas po- Os Efeitos Perversos do Federalismo Fiscal
sições é a visão de que a descentralização era um instru-
mento eficiente de engenharia político-institucional da A agenda atual da discussão pública sobre a questão
democracia emergente (Silva, 1995). da autonomia dos estados e municípios contrasta forte-
mente com aquela que balizou as reformas de meados da
Efeitos Perversos da Descentralização: década de 80 (Lobo, 1993). Com a nova Constituição, os
Neolocalismo, Exclusão Social e governos locais aumentaram sua participação na receita
Desorganização Institucional fiscal significativamente. A participação dos municípios
na receita total disponível aumentou de 9,5% em 1980
A cultura política fortemente municipalista da década para 16,9% em 1992, enquanto para os estados elevou-se
dos 80 produziu, como amplamente estudado, um ciclo de 24,3% para 31,0%, no mesmo período. A receita tri-
virtuoso de inovações na gestão pública, sobretudo na butária disponível (inclusive transferências) dos municí-
esfera das políticas sociais. Importantes iniciativas ino- pios passou de 2,5% em 1980 para 4,1% do PIB já em
vadoras e democráticas surgiram em função da eleição 1990. Essa situação levou a União, num movimento de-
de prefeitos da oposição em vários municípios. A ques- fensivo, a criar impostos (na realidade impostos sob a

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forma de contribuições sociais) que não estão sujeitos a ção em todo o país. A questão adquiriu forte visibili-
partilha com estados e municípios através dos Fundos de dade política no período recente sinalizada em pronun-
Participação de Estados e Municípios (FPM e FPE) (Dain, ciamentos recorrentes dos ministros da Justiça e do Pla-
1993 e 1994). A União vem tentando também criar me- nejamento em torno da necessidade do estabelecimento
canismos que rompam a rigidez orçamentária e permitam de medidas que contenham a proliferação dos novos
a ampliação dos graus de liberdade no plano fiscal e tri- municípios. A questão também foi objeto de projeto de
butário resultante das chamadas “vinculações” do orça- emenda constitucional do Executivo em 1994 e de dois
mento (recursos com destinação determinada). Desde projetos em tramitação de emenda constitucional de
1990, a União entrou em guerra não-declarada com as en- parlamentares. A multiplicação dos municípios no país
tidades subnacionais, visando ampliar seu espaço fiscal e deve merecer reflexão sistemática por duas ordens de
tributário. consideração: pelo impacto fiscal causado pela multi-
A história contemporânea da política de estabilização plicação de estruturas administrativas e instâncias po-
brasileira tem sido permeada por tentativas de garantir lítico-institucionais (secretarias municipais, câmaras de
maior liberdade alocativa à União e coibir o gasto de vereadores, etc.) no âmbito local sem a contrapartida
estados e municípios. As tentativas de revisão cons- de geração de riquezas; e pela existência de um núme-
titucional (o chamado “Emendão” do Governo Collor), a ro extremamente elevado de unidades subnacionais
criação do Fundo Social de Emergência e a revisão supostamente potencializaria as dificuldades de coor-
constitucional de 1993-94 são exemplos dessas iniciativas. denação federativa no país.
Vale lembrar que, em geral, tais iniciativas malograram Esses dois argumentos, no entanto, devem ser rela-
devido às resistências do Congresso Nacional, sobretudo tivizados ao se considerar que, do ponto de vista com-
do Senado Federal. Atualmente, a disputa federativa no parativo, o Brasil apresenta um número extremamente
país atingiu um novo patamar e se expressa na bancarrota reduzido não só de municípios per capita, como tam-
fiscal dos estados e de alguns municípios. O plano de bém de representantes no Legislativo local (Nickson
estabilização iniciado no Governo Itamar Franco – e que 1995). Em relação à América Latina, observa-se forte
tem tido continuidade no Governo Fernando Henrique discrepância em relação à média no que se refere ape-
Cardoso – tem implicado perdas significativas para estados nas às duas grandes metrópoles (Rio de Janeiro e São
e municípios (devido inter alia ao desaparecimento do Paulo). Os dados, no entanto, não autorizam a conclu-
“imposto inflacionário”). O Governo federal vem utili- são de que o número de cargos políticos é excessivo.
zando o reescalonamento da dívida de estados e municí- Porém, em comparação à situação dos países desenvol-
pios como moeda de troca na aprovação de reformas vidos, os dados para o Brasil revelam contrastes ex-
constitucionais. cepcionais, em que o número de representantes no país
Portanto, o issue destacado na agenda dos anos 90 – e mostra-se extremamente baixo (Tabela 2) . A crítica,
em forte contraste com a década de 80 – constitui-se nos portanto, tem algum fundamento no caso de emancipa-
efeitos perversos, até mesmo perversos para alguns, da ção de alguns tipos de distritos: os muito pobres e os de
descentralização fiscal brasileira. A revisão constitucio- dimensão muito reduzida. Esse ponto exige minucioso
nal em curso está claramente informada por uma estraté- levantamento empírico para que generalizações mais
gia global de recentralização, com base em supostos ex- amplas possam ser feitas.
cessos descentralizatórios ocorridos.
Tais efeitos perversos expressam-se de várias formas. TABELA 1
Em primeiro lugar pela proliferação de municípios, pois
Criação de Municípios
a nova Constituição brasileira transferiu a responsabili- Brasil – 1940-1994
dade legal pela definição dos critérios de criação de no-
vos municípios – que até era prerrogativa federal – para Décadas Total de Municípios Municípios Criados Crescimento (%)
o âmbito estadual. Em seu artigo 18, inciso 4o, a Consti-
tuição estabelece que as regras para a criação, a incorpo- 1940 1.574 - -
ração, a fusão e o desmembramento de municípios serão 1950 1.889 315 20,0
objeto de lei estadual, e dependerão de consulta, median- 1960 2.760 877 46,4
te plebiscito, às populações diretamente interessadas. O 1970 3.952 1.186 42,8
1980 3.974 22 0,5
processo de emancipação de novos municípios adquiriu
1990 4.491 715 13,0
um ritmo desenfreado nos últimos anos. Até fevereiro de
1994 4.974 483 10,7
1995, cerca de 1.200 municípios haviam sido criados e
centenas de novos municípios estão sendo objeto de cria- Fonte: Fundação IBGE. Anuário Estatístico do Brasil 1995. Rio de Janeiro, 1996.

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TABELA 2 Outro ponto que é objeto de forte controvérsia diz res-


Número de Vereadores, segundo Países Selecionados peito à questão do balanço entre encargos e atribuições
1989-1991 dos estados e municípios e à nova repartição da receita
pública ocorrida. A crítica de que houve distribuição de
Número de Habitantes/ recursos a essas entidades sem a contrapartida de novos
Países
Vereadores Vereadores
encargos tem sido fortemente contestada por Affonso
Brasil (1991) (1993) e Afonso (1993). A redução da participação da
Recife 41 32.707 União no gasto social tem efetivamente levado os esta-
São Paulo 53 181.640 dos e municípios a atuarem de forma a suplementar essa
Porto Alegre 33 41.818 lacuna. O problema da perda da qualidade do gasto, no
Rio de Janeiro 42 130.331
entanto, permanece como uma questão aberta (Afonso,
Chile (1991) 1996).
La Florida 10 39.125
Outro efeito perverso decorrente da maior autonomia
Vina del Mar 10 31.231
Concepcion 10 31.154 desfrutada por estados refere-se à “guerra fiscal”, que
adquiriu grande visibilidade recentemente (Azevedo e
México (1990)
Guadalajara 20 81.431 Melo, 1996; Piancastelli e Perobelli, 1996 e Negri Neto,
Nezahualcoyotl 20 62.977 1995). Com a Constituição de 1988, os estados passaram
Ecapetec 20 60.962 a dispor de autonomia para fixar as bases dos impostos
Argentina (1989) de competência estadual, notadamente um imposto sobre
Buenos Aires 60 48.347 valor adicionado (o ICMS). Nos últimos anos, os estados
Uruguai (1985) passaram a praticar a renúncia fiscal em escala massiva,
Montevidéu 31 40.210 numa tentativa de atrair novos investimentos. A magni-
França (1) ... 110 tude dessa “renúncia fiscal” e o que ela representa como
EUA (1) ... 490 mecanismo diminuidor da carga tributária agregada, a
importância do ICMS (que representa quase um terço da
Japão (1) ... 1.600
receita tributária do país), além da impossibilidade de
Inglaterra (1) ... 1.800
formulação de uma política de desenvolvimento regional
Fonte: Nickson (1995:65). por parte do Governo federal apontam para a irraciona-
(1) Os dados referem-se à década de 80. lidade coletiva desse tipo de situação.

O federalismo fiscal brasileiro também apresentou al- A SEGURIDADE SOCIAL E A


gumas patologias associadas supostamente à indisciplina DESCENTRALIZAÇÃO NO BRASIL
fiscal de estados e municípios. Com efeito, o nível de
endividamento de estados e municípios, que atingiu 15% No Brasil, na segunda metade da década de 80, uma
do PIB, tem sido entendido como um impedimento im- ampla reestruturação da seguridade social teve lugar.
portante para o programa de estabilização da economia. Mudanças constitucionais em 1988 e programáticas en-
Afonso (1996) argumentou, com bastante perspicácia, que tre 1987 e 1993 consagraram um projeto reformista am-
essa indisciplina fiscal é um mito. Na realidade, observa- bicioso para a área da saúde e previdência social. Nos
se, no plano da arrecadação, aumento da receita local e principais textos legais que regulamentaram tardiamente
não sua redução. Além disso, o aumento do endividamento a implementação do projeto reformista – as Leis Orgâni-
de estados recentemente não tem origem fiscal, devendo- cas da Saúde (1990), da Seguridade Social (1991) e a da
se ao crescimento das taxas de juros durante o Plano Real. Assistência Social (1993) –, o acesso universal à seguri-
A capacidade de os governos estaduais se autofinan- dade social e à saúde foi consagrado.
ciarem através da compra de papéis do Tesouro Estadual No entanto, o processo de implementação da descen-
pelos seus bancos públicos – ou visto de outra forma as tralização da saúde, que foi deslanchado em 1987 com o
dificuldades de controle dos bancos estaduais pelas auto- Sistema Único e Unificado de Saúde (Suds) – que com a
ridades monetárias – tem sido vista como um obstáculo nova Constituição passa a ser denominado Sistema Úni-
de grande monta para os programas de estabilização eco- co de Saúde (SUS) –, foi tortuoso por várias razões. A
nômica (Banco Mundial, 1996). No entanto, embora o uso implementação do SUS implicava uma transferência mas-
clientelístico e político dos bancos seja um fato inegável, siva de recursos humanos e instalações físicas da rede
o agravamento da crise dos bancos também está associa- pública a cargo do Governo federal e dos estados para a
do ao processo de estabilização. esfera municipal. O até então poderoso Instituto Nacio-

17
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996

nal de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) e fiscal, tendo em vista processos em curso de reestrutu-
foi extinto e os recursos que comandava deveriam, segun- ração produtiva.
do o modelo, ser transferidos automaticamente para os A área da saúde foi a mais afetada no quadro da im-
municípios, segundo critérios de população e carências, plementação do novo modelo de seguridade social. Con-
e com a plena implementação do SUS, com base no perfil testações no Judiciário sobre as contribuições previstas
epidemiológico das comunidades. A gestão dos recursos na Constituição (sobre o faturamento das empresas) le-
do SUS estaria a cargo de comissões tripartites locais, varam à contestação por via judicial de valores corres-
permitindo o controle social e a transparência das deci- pondentes a mais de 2,0% do PIB (US$14 bilhões). Por
sões de gasto. outro lado, esse problema foi exacerbado porque a carac-
Importa assinalar para os propósitos desse texto que o terística incomprimível das aposentadorias e pensões –
projeto reformista passou a ser fortemente combatido, a pela sua natureza contratual – significou que a saúde foi
partir, sobretudo, de 1991, como uma das fontes de ingo- sendo fortemente marginalizada no gasto social federal.
vernabilidade crescente do país. As iniciativas de refor- A efetiva implantação do SUS enfrentou grandes obstá-
ma no campo social, em particular da previdência social, culos devido ao passo errático de desembolso – ou reten-
que tiveram lugar nos últimos anos estão assentadas em ção de repasses pelo Tesouro.
um diagnóstico comum. Em linhas gerais este diagnósti- A agenda da discussão pública em torno das questões
co aponta para os seguintes aspectos: relacionadas à descentralização da seguridade social en-
- inconsistência entre o princípio de seguridade social e o volve fundamentalmente três pontos que são discutidos a
de seguro que informam simultaneamente o capítulo so- seguir: a perda de qualidade do gasto social em virtude
cial da Constituição. Se propõe, portanto, que os benefí- da descentralização; ambigüidades na definição de atri-
cios que não tenham base contributiva – a renda mensal buições da seguridade social por nível de governo; e difi-
vitalícia e a saúde – sejam separados dos que tem um per- culdades de compatibilização entre a estrutura federativa
fil contributivo, conforme plano atuarial. Nesse sentido, e a transferência automática de recursos da seguridade para
preconiza-se uma especialização das fontes de financia- municípios.
mento do sistema: as contribuições sobre a folha de salá- Esses aspectos dizem respeito basicamente à saúde e à
rio para as aposentadorias; e as contribuições sobre o lu- assistência social, uma vez que a área previdenciária é na
cro e o faturamento das empresas para a saúde e a sua quase totalidade centralizada. Registre-se, no entanto,
assistência social. Propõe-se também a expansão dos pla- que a Constituição de 1988 permitiu a criação de entidades
nos privados de saúde no modelo health maintenance municipais de previdência social, o que levou à criação de
organizations (HMO), de forma a segmentar as cliente- cerca de 1.300 entidades municipais de previdência –, a vasta
las dos sistemas público e privado, em que o primeiro maioria das quais sem bases atuariais. Na proposta de re-
estaria voltado para a população de baixa renda. A uni- visão constitucional em tramitação no Congresso Nacio-
versalização da cobertura e a equalização de benefícios nal, está proibida a criação dessas entidades. Os dados
previdenciários urbanos e rurais (estes sem base contri- escassos divulgados sobre essas entidades, revelam fortes
butiva), permitindo a incorporação de cerca de 40 milhões desequilíbrios atuariais e irregularidades administrativas.
de indivíduos à medicina previdenciária, são amplamen-
te citadas como fontes de desequilíbrio fiscal de propor- Perda de Qualidade do Gasto Social
ções gigantescas;10
- propostas de restrições à “generosidade pública” na con- Com a nova Constituição de 1988, os governos locais
cessão de benefícios sociais (auxílio maternidade de 120 aumentaram significativamente sua participação na receita
fiscal. Os municípios tiveram sua participação na receita
dias, renda vitalícia de um salário mínimo, aposentadoria
total disponível aumentada de 9,5% em 1980 para 16,9%
por tempo de serviço, elegibilidades com tempo de con-
em 1992. Para os estados, estes valores correspondiam a
tribuição exíguo, entre outros);
24,3% e 31,0%, respectivamente. Essa expansão contras-
- na linha da redefinição de direitos sociais, busca-se a ta fortemente com a reconhecida deterioração na quali-
“desconstitucionalização” de matérias sociais, que pas- dade dos serviços sociais. A receita tributária disponível
sariam a ser tratadas por lei ordinária, obtendo-se maior (inclusive transferências) dos municípios, que havia per-
flexibilidade no tratamento dos problemas afetos a essas manecido estável na década de 80 em 2,5% do PIB, atin-
áreas de intervenção; giu 4,1% do PIB já em 1990. A expansão observada quanto
- redução da carga tributária global e dos encargos so- ao gasto local refere-se às despesas com pessoal, que atin-
ciais num tratamento unificado das questões do mercado giram 6,8% do PIB em 1990 (enquanto este valor para o
de trabalho, da previdência social e da política tributária Governo federal se reduziu). Os pontos controversos da

18
CRISE FEDERATIVA, GUERRA FISCAL E “HOBBESIANISMO MUNICIPAL” ...

discussão recente em torno do tema referem-se ao signi- recursos para os municípios é inconsistente com a distri-
ficado dessa expansão. Para analistas do Governo, no pla- buição espacial da rede de saúde. As localidades cujos
no federal, ela revelaria o aumento do emprego público habitantes se dirigem a estabelecimentos de saúde em
de base clientelista e perda de qualidade do gasto públi- municípios vizinhos recebem muitas vezes aportes de re-
co. Argumenta-se, em contrário, que o crescimento do cursos no mesmo nível que estes últimos.
gasto em custeio e pessoal expressa, na realidade, a ex- Embora circunscrita a alguns aspectos selecionados, a
pansão do papel dos municípios enquanto provedores de discussão anterior sugere que a questão das relações en-
serviços sociais, em resposta à retirada da União. Affonso tre estrutura federativa e políticas sociais é muito mais
(1993), com base na expansão observada da formação complexa do que é freqüentemente apresentado na mídia
bruta de capital fixo nos municípios, no período recente, e nas propostas governamentais recentes.
também critica o argumento. Em síntese, a questão acer-
ca de qual a qualidade do gasto municipal, para além da CONSIDERAÇÕES FINAIS
natureza da despesa, se custeio ou capital permanece sem
uma resposta conclusiva. A descentralização em curso em escala global, e mais
Após a aprovação da Lei Orgânica da Assistência So- particularmente na América Latina e no Brasil, apresen-
cial em 1991, iniciou-se a um amplo processo de descen- ta-se como uma idéia força importante e certamente cons-
tralização dos convênios de assistência social mantidos titui-se em processo irreversível. No entanto, decorrida
pelo Governo federal (em particular por duas entidades uma década de experiências descentralizantes, esse pro-
que foram extintas pelo governo Fernando Henrique Car- cesso passa a ser visto com mais cautela. Essa mudança
doso: a Fundação de Bem-Estar do Menor e a Legião Bra- ocorre em virtude da visibilidade que vem ganhando al-
sileira de Assistência). Os cerca de 8.000 convênios man- guns efeitos perversos observados a partir de processos
tidos por essas entidades apresentavam graves distorções de descentralização. No caso brasileiro, observa-se sobre-
e irregularidades, sendo que sua descentralização apre- tudo no plano fiscal e tributário uma forte tendência de
sentou-se como a solução (Brasil, 1996). Nesse sentido, reversão da descentralização alcançada. A agenda públi-
à luz da experiência desses convênios, o questionamento ca hoje está fortemente polarizada em torno dos efeitos
sobre a perda da qualidade do gasto social local parece da descentralização – ao contrário do consenso ocorrido
estar perdendo credibilidade. na Nova República. A discussão também tornou-se ideo-
logizada num claro esforço por parte do Governo central
Ambigüidades na Definição de Atribuições de transferir os custos políticos do processo de descen-
da Seguridade Social tralização para os estados e municípios. Os constrangi-
mentos do jogo político e institucional democrático, no
Em larga medida, a estratégia do SUS, no Brasil, foi entanto, têm limitado fortemente as tentativas do Gover-
claramente municipalista. Os estados, a despeito de sua no federal de efetuar mudanças em um sentido recen-
centralidade no arranjo político-institucional brasileiro, tralizante. A experiência descentralizante num contexto
não tiveram atribuições claramente definidas. A excep- democrático tem permitido, no entanto, um processo de
cional heterogeneidade dos cerca de 5 mil municípios bra- aprendizagem social em que seus limites e possibilidades
sileiros, no plano socioeconômico e no que se refere à podem ser efetivamente compreendidos. A conjugação
capacidade de gestão das prefeituras quanto a recursos entre reformas descentralizantes (que ocorrem em escala
humanos, infra-estrutura material, tamanho e renda, cons- global) e uma crise do pacto federativo confere ao caso
titui-se num impedimento formidável para a implantação brasileiro singularidades que tornam esse país um rico
de um modelo único. Uma grande parcela desses municí- laboratório de experiências político-institucionais.
pios não tem condições de organizar isoladamente ou em
consórcios um sistema local de saúde, salvo com a inter-
veniência dos estados.
NOTAS
Compatibilização entre a Estrutura Federativa e a Esse artigo foi escrito no âmbito do projeto Federalismo no Brasil, desenvolvido
Transferência Automática de Recursos no Instituto de Economia do Setor Público da Fundap.
1. Numa análise das tendências descentralizantes, Ashford (1992) aponta tam-
bém para uma dimensão tecnológica da questão, ou seja, o recurso a entes locais
As dificuldades administrativas, informacionais e téc- se faz necessário como um imperativo organizacional e técnico: “na medida em
que os welfare states se tornam mais avançados, é provável que eles também se
nicas para a organização de distritos sanitários definidos tornarão cada vez mais localizados. Enquanto as necessidades se tornam mais
segundo perfis epidemiológicos da população mostraram- diversificadas, os serviços se tornam cada vez mais especializados”. Ou seja,
progressivamente se faz necessário uma personalização dos serviços sociais, que
se quase intransponíveis. A transferência automática de por sua natureza demandam uma esfera de governo próxima ao usuário para a

19
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(3) 1996

sua provisão. Essa explicação se aplica em larga medida aos casos dos países de AGHON, G. Procesos recientes de descentralizacióen América Latina: revision
tradição social-democrata. A especificidade dos vários casos de descentraliza- de algunas experiencias. Cepal/GTZ, 1995.
ção dos welfare states exigiria uma análise fina que não pode ser feita aqui. Para ALMEIDA, M.H.T. de. “Federalismo e políticas sociais”. Revista Brasileira de
uma discussão analiticamente sofisticada da relação estado/mercado, ver Ciências Sociais, n. 28, junho 1995, p.88-100.
Przeworski (1995).
ARRETCHE, M. “Mitos da descentralização: mais democracia e eficiência nas
2. Com efeito, o welfare state pode ser adequadamente representado como uma gi- políticas públicas?” Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 31, 1996.
gantesca engrenagem de risk pooling e de transferências intergrupos. Vale assinalar ASHFORD, D. “Comparing local discretion”. International Review of
que a viabilidade política destas transferências requereu historicamente a solidificação Comparative Public Policy, special issue on the Local Welfare State, v.2,
dos mecanismos de produção de identidades e solidariedades sociais (Melo, 1996). 1990, p.1-24.
3. No limite, o benefício marginal decorrente da provisão do bem deveria se igualar AZEVEDO, S. e MELO, M. A. Mudanças institucionais, reforma da seguri-
ao seu custo marginal. dade social e reforma tributária. Ford/Anpocs, 1996 (Relatório de Pes-
4. Os pressupostos sob as quais se assentam a teoria do federalismo fiscal são quisa).
frágeis. Em primeiro lugar,as jurisdições territoriais existentes não são histori- BANCO MUNDIAL. Brasil: dívida estadual: crise e reforma. Relatório 14.842-
camente criadas para refletir a incidência dos bens públicos. Em segundo lugar, BR, 1996.
estas jurisdições não podem ser modificadas ao longo do tempo para refletir
mudanças na tecnologia de provisão dos bens públicos, ou no próprio tipo de BARZELAY, M. Breaking through bureaucracy. University of California Press,
bem em questão (Tanzi, 1995). Uma variante clássica de um modelo de federa- 1992.
lismo fiscal é aquela oferecida pelo conhecido modelo de Tiebout. Neste mode- BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Relatório de Ativida-
lo, as preferências dos consumidores são reveladas pelo comportamento loca- des – 1995. Brasília, 1996.
cional dos consumidores de bens públicos entre localidades. Uma situação de
ótimo Paretiano é obtida quando os consumidores votando com seus pés esco- DAIN, S. et alii. “O financiamento da previdência social no contexto de uma
lhem localidades em que o mix benefício-taxas locais é maximizado. nova reforma tributária”. A Previdência Social e a Revisão Constitucional,
v.2, 1993 (Série Pesquisas).
5. Uma refutação bastante consistente desse argumento pode ser encontrada em
Afonso (1996). DAIN, S. “Dilemas do Estado diante da nova ordem econômica e social”. Semi-
nário Governabilidade e Pobreza. Rio de Janeiro, Iuperj, junho 1994.
6. Rosanvallon (1993) argumenta de forma bastante arguta que “en décentralisant
FIGUEIREDO, R. e LAMOUNIER, B. As cidades que dão certo: experiências
on augmente aussi la capacité d’interférences corporatistes et d’intérêts particuliers
dans le champ de la décision”. E continua : “on s’aperçoit en outre qu’il ne faut pas inovadoras na administração pública brasileira. Brasília, MH Comunica-
ção, 1996.
confondre à tout coup proximité et décentralisation. Un service public de l’État
peut être organisé de façon à être proche de l’usager. La proximité est aujourd’hui IDB – Interamerican Development Bank. “Fiscal decentralization: the search for
un enjeu centrale pour l’État comme pour les collectivités locales. Il faut bien se equity and efficiency. Economic and Social Progress in Latin America, 1994
rendre compte à ces propos qu’on ne peut plus assimiler les collectivités locales et (Report).
la societé civile (ce que faisait de facto l’ideologie décentralisatrice en reduisant HAGGARD, S. “The reform of the state in Latin America”. World Bank’s Annual
toutes les questions à un grand affrontement entre ‘État et la societé civile).” Para Conference on Development in Latin America and the Caribbean. Rio de
uma discussão refinada deste ponto, ver Arretche (1996). Janeiro, 12-13 June 1995.
7. Cabe assinalar, de passagem, que malgrado a centralização, a ideologia munici- IDEP - Instituto de Estudios sobre Estado y Participación. Los nuevos contenidos
palista está fortemente enraizada no país e representava uma espécie de Leito de de las crisis provinciales, 1995, mimeo.
Procusto, no qual fórmulas políticas distintas – e não raro antinômicas – se aco-
modavam (Melo, 1993c). ISRAEL, A. Institutional development. World Bank/Johns Hopkins University
Press, 1989.
8. No caso brasileiro tais práticas e mecanismos têm sido analisados em muitos
trabalhos. As mais citadas são: experiências de orçamento participativo introdu- LOBO, T. et alii. Descentralização: cenário brasileiro pós-Constituição. Rio
zidas em algumas cidades – particularmente Porto Alegre; experiências de de- de Janeiro, Centro de Estudos de Políticas Públicas, 1993 (Texto para dis-
mocratização ampla da gestão (prefeitura nos bairros em Recife); práticas diver- cussão).
sas em Icapuí (Ceará) e Janduís (Rio Grande do Norte); experiências novas de MEDICI, A. “Políticas sociais e federalismo no Brasil: problemas e perspecti-
gestão de áreas de favelas (Prezeis em Recife, etc.); experiências e práticas no- vas”. Seminário Internacional Impasses e Perspectivas da Federação no
vas nas políticas públicas incluindo consórcios municipais, etc. em Santo André, Brasil. São Paulo, Iesp/Fundap, 1995.
Santos (São Paulo) (Figueiredo e Lamounier, 1996).
MELO, M. A. “Democracia neolocalismo e mal-estar social: a geometria políti-
9. Como assinalou Peterson (1995), para o caso americano, estruturas muito des- ca da nova República”. Pobreza e desigualdade social. Agendas de políti-
centralizadas dificultam a implementação de programas redistributivos (cuja cas públicas. Rio de Janeiro, Iuperj, agosto, 1993a.
vocação é eminentemente nacional) voltados para a redução de desigualdades
__________ . “Anatomia do fracasso: intermediação de interesses e reforma da
entre regiões e grupos sociais. Para este autor o federalismo acentuado nos Esta-
política social na Nova República”. Dados. Rio de Janeiro, Iuperj, n.3 1993b.
dos Unidos constituiu-se num dos óbices mais relevantes para a implementação
de um estado amplo de bem-estar social. __________ . “Municipalismo, nation-building e a modernização do Estado no
10. Dos 14 milhões de benefícios pagos pela previdência social em 1994, cerca Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.23, 1993c.
de 8 milhões têm caráter de seguro social e 6 milhões têm caráter assistencial. __________ . “A seguridade social e a crise do mundo do trabalho”. São Paulo
em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.9, 1996.
NEGRI NETO, A. “Guerra fiscal: evidências e políticas fiscais estaduais”. In-
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