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A descentralização das funções estatais é, na verdade, um debate sobre a natureza política e o sen-
tido do Estado como instituição social. Tocqueville teria sido um dos primeiros pensadores a colocar
em destaque o governo local (local self-government) como aspiração de igualdade entre os homens.
A outorga de maiores poderes para esfera local também representou um princípio amplamente defen-
dido na teoria política liberal, sobretudo ao enfatizar a liberdade do indivíduo - ou dos agentes indivi-
duais - como condição do exercício da política. Socialdemocratas e socialistas de distintas vertentes
defenderam a descentralização em seus programas partidários, destacando os coletivos e as comuni-
dades políticas como modelos de participação efetiva e de gestão social do Estado. O debate mais
contemporâneo a respeito da descentralização recebeu um forte viés econômico, sobretudo por parte
dos críticos mais contundentes do Estado keynesiano.
Essa posição pode ser atribuída aos teóricos do chamado neoliberalismo, cujas premissas de análise
enfatizam a excessiva “burocratização” e “ineficiência” do Estado que, em última instância, seriam ini-
bidoras da livre iniciativa dos “agentes sociais”.
A ênfase atribuída ao mercado como referencial da vida em sociedade - e do próprio papel do Estado
- transformou a crítica dos novos liberais ao poder centralizado em uma ideologia do anti-estatismo.
Em linhas gerais, a descentralização recebia um tratamento mais diretamente relacionado à redução
do papel regulador e social do Estado, principalmente em relação às premissas do mercado e das
exigências de reengenharia da acumulação globalizada de capitais por parte das corporações empre-
sarias.
O cardápio de reformas estabelecido pelos organismos multilaterais - Banco Mundial, Fundo Monetá-
rio Internacional e Banco Interamericano de Desenvolvimento – seguiu as linhas defendidas pelos no-
vos liberais e estabeleceu um consenso global do significado da descentralização da gestão estatal.
A partir da década de 1980 foram implementadas, sob a guarda de governos de matriz neoliberal, di-
versas reformas no âmbito das funções do Estado, em especial em países latino-americanos. Com a
titulação ambígua de ajustes fiscais de redução do déficit público, as reformas traduziram, em seus
resultados mais contundentes, a privatização de empresas estatais e a redução de políticas sociais
universais.
As críticas ao Estado keynesiano centralizado não é um patrimônio exclusivo dos novos liberais. Ver-
tentes socialistas e socialdemocratas também colocaram em pauta o esgotamento do Estado buro-
cratizado e hierarquizado, incluso o Estado Soviético, como formas incompatíveis com a democracia
direta e a valorização da cidadania participativa. Portanto, os termos e os objetivos do debate a res-
peito da descentralização mudam substancialmente quando comparados aos novos liberais, pois con-
vergem para construção de um processo de democratização do Estado como instância de poder so-
cial. Não é ocioso lembrar que experiências de descentralização da gestão estatal foram promovidas
por governos de perfil socialista e socialdemocrata na Itália, na França e na Espanha, antes e durante
a crise do modelo keynesiano centralizado (Borja, 1988 e 2005; Ramirez, 1992; Corral, 1999).
A descentralização como principio de ordenança da gestão pública possui um forte enlace com a mu-
dança na escala territorial de decisão e de ação governamental. Portanto, estamos diante de um
tema relevante para os estudos geográficos, em especialmente nos termos de uma nova geografia
política dos lugares. O debate sobre o poder local assume uma posição destacada, uma vez que se
inscreve no plano da política da gestão do Estado e da qualidade da participação cidadã na esfera
pública.
A defesa da descentralização no Brasil fez parte das bandeiras mais significativas dos movimentos
sociais. O enfrentamento ao regime militar imposto em 1964 escreveu uma página histórica de lutas
contra a centralização autoritária e discricionária do Estado. A democracia como valor social era um
dos principais temas colocados na agenda de mudanças institucionais em causa na Constituição de
1988, tendo como argumento a participação na gestão pública como exercício de direitos e responsa-
bilidades cidadãs. Portanto, a transformação democrática institucional exigia compromissos formais
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com representação política dos cidadãos nas esferas de decisão, em especial as concernentes às po-
líticas sociais.
A proposta da descentralização dos movimentos sociais e partidos de oposição ao regime militar sig-
nificava realizar a democratização em termos práticos e concretos. Ou seja, substancializar a demo-
cracia na vida cotidiana e, sobretudo, inventar formas inovadoras de governo das cidades. A cidade
era o espaço da política, portanto as proposições de mudança democrática que convergiam para a
esfera municipal possuíam dimensões mais amplas.
É nesse sentido que se inscreve retomada do município como lócus privilegiado da ação pública e
como garantia de atendimento das demandas sociais. Estava em causa nas lutas dos movimentos
sociais o governo democrático da cidade.
Apesar dos sensíveis avanços no âmbito da legislação, a descentralização do Estado gerou conflitos
e contradições não necessariamente previsíveis, a exemplo das disputas fiscais entre municípios,
ou Guerra de Lugares, como definiu com maior precisão Milton Santos (1999). Tratava-se, sobretudo
de uma competição aberta entre municípios diante da ampliação das exigências de localização das
corporações empresariais que, no final das contas, implicaram compromissos de fundos públicos em
infra-estruturas técnicas adequadas e a adoção de normas fiscais flexíveis como mercadorias
da cesta de vantagens competitivas. A descentralização se traduzia, na perspectiva da competitivi-
dade local, como uma prática empresarial de recursos públicos em favor de interesses privados não
locais: uma exteriorização dos lugares.
A descentralização nos campo das políticas públicas, tendo o município como esfera de coordenação
e execução, não significava um capítulo distinto das relações mais amplas entre governo e socie-
dade. As críticas à centralização das políticas sociais por parte do governo federal convergiram para
propostas de gestão participativa e da relevância da escala local das decisões.
“Dentro deste contexto, o processo de descentralização apontava para uma nova forma de planeja-
mento e gestão. Instituindo uma hierarquia verticalizada, através da articulação das secretarias, con-
selhos, planos e fundos, imprimindo uma nova lógica que partiria de baixo para cima, ou seja, dos
municípios para os estados, destes para a União. Ao mesmo tempo em que permite uma articulação
horizontal através da relação usuários, trabalhadores e prestadores de serviços” (Raichellis, 1994,
121).
A proposta da escala local como espaço privilegiado da gestão e execução de políticas públicas sina-
lizava três questões fundamentais: a necessária superação da distância entre os agentes formulado-
res das ações e o público beneficiado; a correspondência efetiva entre a qualidade da ação e as de-
mandas de grupos sociais em “situação de vulnerabilidade”; e, em especial, a realização das ações
públicas sob controle social dos cidadãos. Carvalho (2007) destaca com propriedade esse conjunto
de expectativas em relação à descentralização:
“A municipalização não é apenas expressão de uma reforma do Estado para reduzir custos e desres-
ponsabilizar o Estado na garantia de serviços de direito dos cidadãos. É necessária para criar uma
governança pautada na participação e democratização da coisa pública e, sobretudo, pautada na pro-
dução de uma gestão territorial de proximidade, integralizando atenções ao cidadão com desenvolvi-
mento local.” (Carvalho, 2006, p.127)
É importante observar que a mudança de escala geográfica preconizada era um indicador de trans-
formações no sentido da política pública, uma vez que colocava a participação social como decisiva
no âmbito da formulação, execução e gestão das ações. Portanto, o significado da descentralização
assumia um horizonte mais amplo do que uma simples passagem de atribuições entre entes federati-
vos, uma vez que assinalava uma proposta radical na direção do empoderamento cidadão pau-
tado em uma gestão territorial de proximidade.
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A criação de Conselhos de Direitos na esfera municipal assumiria, por sua vez, um papel estratégico
nesse processo de democratização das políticas públicas. Na condição de instância de mediação en-
tre governo e sociedade civil, estimava-se que os Conselhos se tornassem fóruns qualificados de par-
ticipação cidadã e novas centralidades das políticas públicas. Desse modo, o desenho da descentrali-
zação do Estado estaria completo e resultaria em avanços substanciais das formas e processos de
gestão pública e, sobretudo, das políticas públicas como instrumento de igualdade no plano de direi-
tos e da justiça social.
Partimos da consideração que há relações diretas entre a prática cidadã e o uso do território como
condição da democracia. Afirmar que a cidadania significa o exercício de direitos é reconhecer a
busca permanente das condições de sua realização na vida em sociedade. E, quando vivemos em
sociedades marcadas por profundas desigualdades sociais e distinções territoriais de direitos, o tema
da justiça social assume dimensões amplas e profundas, dialogando com o princípio da igualdade
como condição do exercício da cidadania.
O retorno ao território para o debate crítico da igualdade e da justiça nos conduz também à reflexão
do sentido da política pública como campo de relações de poder, uma vez que as ações e intenções
dos sujeitos e das instituições sociais possuem a sua vivência real em espaços/tempos demarcados.
O território tem centralidade em nosso estudo, uma vez que é nele que se concretiza o mundo da
vida, onde se percebe as intencionalidades das instituições e das práticas sociais (Santos, 1994) e,
sobretudo, onde se localiza a possibilidade de substancializar os direitos da cidadania. E, em termos
mais concretos, é para o território que convergem às possibilidades reais e efetivas da construção de
políticas públicas como mediação para o exercício da igualdade cidadã e da realização da justiça so-
cial.
Nosso estudo buscou abrigar diferentes ações públicas e instituições diversificadas - secretarias mu-
nicipais e órgãos executores de políticas sociais, organizações não governamentais, conselhos de
direitos da sociedade civil, associações de moradores e entidades associativas - com o objetivo de
construir um mapa cognitivo da garantia de direitos e da participação social. Foram realizadas entre-
vistas estruturadas e semi-estruturadas com dois grupos principais: agentes (secretários e subsecre-
tários municipais, gestores e operadores de programas e projetos) e atores (membros de conselhos
de direitos, lideranças de organizações da sociedade civil e dirigentes de organizações não governa-
mentais).
A diversidade de agentes e atores foi considerada como um filtro importante para a leitura das ações
e das percepções da gestão e execução de políticas sociais, permitindo apreender o universo com-
plexo de sua materialidade no território[3]. Tendo em vista o escopo do trabalho foram privilegiadas
as áreas mais explicitamente vinculadas às ações de superação da “exclusão social”: educação, mo-
radia, trabalho, cultura, saúde, segurança e assistência social.
Para tanto, a realização dos inventários contou com a participação ativa de uma equipe de oitenta es-
tudantes universitários, residentes nos municípios selecionados, devidamente orientados por coorde-
nadores temáticos e com apoio de consultores e da coordenação geral do Projeto Rio Democracia.
Além da contribuição na formulação e aplicação de entrevistas, o envolvimento dos estudantes em
oficinas de vivência e seminários de pesquisa foi decisivo para os resultados gerais e os produtos
mais específicos do Projeto, dentre estes, o presente artigo.
Os municípios eleitos em nosso estudo - Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo, Belford Roxo, Mes-
quita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, e São João de Meriti - possuem distinções imensas,
tanto no que diz respeito às suas dimensões em áreas territoriais, como em seus aspectos populacio-
nais e de desenvolvimento socioeconômico (Quadro 1). Essas distinções revelam a acumulação de
profundas desigualdades em relação aos investimentos públicos e privados, cujas implicações em
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termos de geração de trabalho e renda, de dotação de estruturas produtivas, das condições de mora-
dia e da oferta de serviços básicos, constroem cenários de graves conseqüências sociais territoriali-
zadas.
A pesquisa se orientou mais decisivamente para os territórios de morada denominados como “áreas
de risco social”[4]. Expressão genérica atribuída às favelas e periferias urbanas que se multiplicaram
na metrópole do Rio de Janeiro, em particular, nos municípios que conformaram o recorte geográfico
do presente estudo. Essa opção metodológica tem como referencial o desvelamento dos significados
mais amplos da política pública para os chamados grupos “em situação de vulnerabilidade social”, pú-
blico considerado como prioritário de programas e projetos governamentais. E, ao mesmo tempo,
aprofundar o debate da descentralização nos marcos da democracia participativa.
A linha de trabalho adotada não invalida uma análise mais abrangente da descentralização e da parti-
cipação democrática, pois busca a corporificação desses processos sociopolíticos no mundo da vida.
Ou seja, buscamos encontrar nas grafias territoriais das políticas públicas as sendas para compreen-
são da força do local para a mudança e, em especial, para construção de agendas de direitos urba-
nos. Isto significa abordar tensões sociopolíticas expressas no território.
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territorial de realização de ações públicas. Tais tensões de ordem político-institucional vêm condu-
zindo a imprecisão de responsabilidades e a superposição de ações que comprometem a realização
de políticas sociais.
Por outro lado, o desenho de políticas públicas não raramente se apóia em percepções de grupos so-
ciais e de seus territórios morada de maneira profundamente equivocada, embora repleto das melho-
res intenções de combate à pobreza. A dimensão simbólica é uma tensão sociopolítica que se expli-
cita nas definições de grupos sociais como vulneráveis ou como excluídos e, no seu limite mais con-
tundente, na percepção estereotipada das moradas desses mesmos grupos sociais como “áreas de
risco”. Essas representações do público da política contribuem para desvalorização de sujeitos como
seres da invenção da vida e de seus respectivos capitais sociais presentes no território, implicando a
assistencialização recorrente da ação pública quando se trata de determinados indivíduos, coletivos e
moradas.
Outro nível de tensão sociopolítica grafada no território está relacionado à descontinuidade de progra-
mas e projetos sociais. Tornaram-se evidentes as rupturas na realização de ações públicas, seja em
função das mudanças partidárias no âmbito da gestão das instâncias governamentais (federal, esta-
dual e municipal), ou por razões diretamente relacionadas ao aporte de recursos de financiamento e
de pessoal. Essa realidade é demonstrativa - independente de uma avaliação criteriosa da qualidade
social da ação pública – do não asseguramento de direitos e, de maneira mais preocupante, resul-
tando na baixa expectativa de direitos por parte dos cidadãos, notadamente entre os residentes em
favelas e periferias.
Esses três níveis de tensionamentos sociopolíticos no âmbito da ação pública possuem escalas de
acontecimentos distintas, mas que se cruzam nos territórios de morada e fazem emergir conflitos e
contradições que contribuem na reiteração de desigualdades sociais. E, de modo contundente, estão
na base constitutiva de formas fragmentadas e processos híbridos de gestão e execução de políticas
sociais na escala local.
Políticas sociais e escala local: fragmentação, hibridismos e participação nos territórios de morada
Por outro lado, proliferam formas e processos híbridos de uso de recursos públicos nos municípios
estudados. A descentralização mostra uma face perversa de reprodução de poderes discricionários e
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Outra forma híbrida identificada inclui diretamente a própria gestão pública. É caso da transferência
indevida das atribuições do Estado para entidades da sociedade civil, por meio de convênios ou sim-
plesmente de aportes de recursos e cessão de instalações físicas. O relato de um dos gestores entre-
vistados é ilustrativo de relações híbridas na execução de ações públicas:
“Às creches comunitárias nós damos assistência com leite, o pagamento da coordenação do projeto.
Algumas delas são mantidas por ONG´s, algumas são mantidas por Centros Espíritas, por Igrejas
Evangélicas, por Igrejas Católicas, varia muito”.
Não queremos invalidar as iniciativas sociais e populares de atenção solidária, sobretudo as que se
fazem presentes em espaços populares. Entretanto, é impossível não assumir uma postura crítica di-
ante formas substitutivas e de práticas de transferência de responsabilidades do Estado para entida-
des e organizações civis, inclusive alienando o papel social e as atribuições originais dessas mesmas
instituições.
Na sua dimensão prática, os municípios não conseguem converter políticas, programas e projetos fe-
derais em políticas municipais fundamentadas em demandas locais. Por outro lado, permanecem os
conflitos de ordem administrativa e jurídica entre os entes federativos em termos de competências e
atribuições da gestão e execução de políticas públicas, cujos resultados são a incompletude e a des-
continuidade de programas e projetos.
A descontinuidade das políticas sociais continua sendo notória nas experiências estudadas âmbito
das gestões municipais. Tal fato corresponde à inconsistência de ações governamentais na atenção
aos cidadãos, à pulverização de recursos e aos baixos impactos em termos da efetivação de direitos
sociais. A descontinuidade aliada à fragmentação das políticas públicas abre lacunas para promoção
de direitos. Lacunas que são preenchidas por práticas de clientelismo, privatização e hibridismo na
aplicação de recursos públicos, na seleção de beneficiados e no uso do território como instrumento
de reprodução de poderes discricionários.
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Consideramos que a esfera municipal ainda não se efetivou como lugar privilegiado de participação
democrática e controle social de políticas públicas. Conselhos e Fóruns de Direitos e de Controle So-
cial permanecem, em sua expressiva maioria, com limitações da sua representação política de de-
mandas, reivindicações e valores da sociedade civil diante de executivos e legislativos municipais.
O uso do território pela gestão municipal no tocante à formulação e à execução de políticas públicas
continua a ser mobilizado como palco de ações limitadas em termos integração de políticas sociais e
da participação democrática, embora sejam notáveis determinadas experiências de participação de-
mocrática em ações públicas Portanto, não se observam políticas mais abrangentes que garantam,
efetivem e promovam direitos de reconhecimento de sujeitos sociais em suas condições de apropria-
ção e uso do território, fato que conduziria a novas possibilidades de exercício da cidadania e da pro-
moção da justiça territorial como fundamentos de uma agenda propositiva de direitos à Cidade.
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