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Resumo Abstract
Este artigo objetiva analisar conceitualmente as This article aims to analyze conceptually the
seguintes variáveis incidentes à formação da go- following variables influencing the formation of
vernança neoliberal nos regimes urbanos no Bra- neoliberal governance in urban regimes in Brazil:
sil: os pressupostos conceituais do neoliberalis- the conceptual assumptions of the Hayekian
mo hayekiano; o papel das Organizações Sociais neoliberalism; the role of Social Organizations
(OSs) e das Organizações da Sociedade Civil de and of Civil Society Organizations of Public
Interesse Público (Oscips), advindas da reforma Interest (known as Oscips), which arose from the
gerencial do Governo Fernando Henrique Cardo- managerial reform of Fernando Henrique Cardoso’s
so; os diversos instrumentos gerenciais privados government; the various private management
atuantes no Estado, nas dimensões meio (gestão) instruments operating in the State, in the
e fim (políticas públicas), entre os quais as Par- dimensions related to management and public
cerias Público-Privadas e os regimes de conces- policies, including Public-Private Partnerships and
são; os pilares privatizantes do sistema político concession schemes; the privatizing pillars of the
brasileiro; e a financeirização dos instrumentos e Brazilian political system; and the financialization
políticas urbanos. Conclui-se que todos esses ins- of urban policies and instruments. It is concluded
trumentos se sobrepõem ao planejamento público that all these instruments overlap with public
no Brasil, tornando a governança dos regimes ur- planning in Brazil, making the governance of urban
banos semelhante ao que Dardot e Laval (2016) systems be similar to what Dardot and Laval (2016)
chamaram de “governo empresarial”. called "business governance".
Palavras-chave: governança neoliberal; metrópo- Keywords: neoliberal governance; metropolises;
les; reforma gerencial; financeirização e governo managerial reform; financialization and business
empresarial. governance.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 21, n. 45, pp. 393-415, maio/ago 2019 Artigo publicado em Open Acess
http://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2019-4502 Creative Commons Atribution
Francisco César Pinto Fonseca
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Metodologia Pressupostos
do ultraliberalismo
O tema da governança empresarial sob o re-
gime neoliberal das (macro)metrópoles será Existem várias concepções de sociedade eri-
analisado conceitualmente da seguinte forma: gidas pelas mais diversas doutrinas políticas.
a) exame dos pressupostos do pensamento Mesmo no interior do pensamento liberal há
neoliberal, notadamente de Hayek; b) análise compreensões diversas, casos das perspectivas
conceitual de características, objetivos e mo- de S. Mill, Tocqueville, Rawls, Sen e Dworkin,
dus operandi da reforma gerencial, iniciada em entre tantos outros. Nesta seção objetiva-se
1995 e que se incrustou nas estruturas do Esta- analisar os pressupostos doutrinários do neo
do brasileiro nos três níveis da federação. Serão liberalismo de corte econômico que, embora
examinados particularmente os pressupostos tenha esse viés, pressupõem crenças filosó-
legais/conceituais dos "contratos de gestão" ficas. Expõe-se aqui, de forma panorâmica, a
estabelecidos entre agentes privados, com ou chamada escola Austríaca que, por seu turno,
sem fins lucrativos, que foram (re)ordenados influenciou outras escolas doutrinárias – as
como Organizações Sociais (OSs) e como Orga- assimchamadas “escolas” de Chicago e de Vir-
nizações da Sociedade Civil de Interesse Público gínia, como são conhecidas – e são confluen-
(Oscips), mas também as Parcerias Público Pri- tes em vários aspectos, notadamente quanto
vadas (PPPs), entre outras; c) análise conceitual à defesa do individualismo e do mercado, em
dos pilares do sistema político brasileiro desde detrimento dos direitos coletivos, do papel do
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com isso, a característica básica do salário: ser Hayek, em Os fundamentos da liberdade, deixa
um preço, como qualquer outro. Em outras pa- clara a importância do referido embate, uma
lavras, não deveria haver salários mínimos ou vez que o vencer implicaria a conquista das
mesmo salários profissionais. Para Hayek, “mentes e dos corações”. Impressiona a con-
temporaneidade dessa assertiva:
Embora, na realidade, as conquistas obti-
das pelos sindicatos com sua política sa-
Na luta pelo apoio moral dos povos do
larial sejam muito menores do que geral-
mundo, a falta de uma sólida filosofia dei-
mente se supõe, apesar disso suas ativi-
xa o Ocidente em grande desvantagem.
dades nesse campo são muito prejudiciais
Há muito que o estado de espírito de seus
do ponto de vista econômico e extrema-
líderes intelectuais se vem caracterizando
mente perigosas do ponto de vista políti-
pela desilusão com seus princípios, pe-
co. . [...] embora pouco se deva esperar de
lo desprezo por suas realizações e pela
qualquer ação específica do governo con-
preocupação exclusiva com a criação de
tra o monopólio da iniciativa [empresa-
“mundos melhores” [leia-se socialismo e
rial], a situação é diferente nos casos em
intervencionismo]. Não é com esse estado
que os governos deliberadamente promo-
de espírito que se pode esperar ganhar
veram o crescimento do monopólio e até
adeptos. Se quisermos vencer a grande
deixaram de exercer a função primordial
luta que se está travando no campo das
de governo – a prevenção da coerção –,
ideias, devemos, antes de mais nada, sa-
permitindo exceções às normas legais
ber em que acreditamos. Devemos tam-
gerais, como vêm fazendo, há muito, no
bém ter ideia clara daquilo que deseja-
campo do trabalho. (Ibid., pp. 330 e 322)
mos preservar, se não quisermos perder
Como se observa, o radicalismo ultrali- o rumo. [...] nossa própria sobrevivência
pode depender de nossa capacidade de
beral despreza um elemento crucial das socie-
congregar uma parte suficientemente sig-
dades industriais: o fato de a força de trabalho nificativa do mundo em torno de um ideal
ter poder infinitamente menor do que o dos comum). [...] devemos esperar que, aqui,
detentores do capital. Logo, o veto à organiza- ainda exista um amplo consenso com res-
ção sindical denota forte caráter conservador, peito a certos valores fundamentais. Mas
esse consenso já não é mais explícito; e,
e mesmo reacionário, afastando-se das ver-
para que tais valores voltem a predomi-
tentes mais democráticas surgidas no seio do nar, há urgente necessidade de sua reafir-
liberalismo no século XIX. Mas é fundamental à mação e defesa. (Ibid., pp. XXXII e XXXIII)
compreensão das estratégicas contra hegemô-
nicas neoliberais observar que Hayek – assim Essa passagem ilustra cabalmente o ca-
como outros ideólogos dessa doutrina – tinha ráter da disputa político-ideológica vigente
absoluta convicção de que o embate que trava- durante todo o século XX, que se mantém – re-
va era, antes de tudo, ideológico, pois voltado novada – até os dias de hoje, em que as velhas
à constituição de nova hegemonia. Esta, para ideias ultraliberais, ao tentarem transparecer
que se realizasse, deveria demonstrar e enfati- como “modernas”, apenas expressam todo o
zar as falhas e os equívocos do então consen- elitismo, o reacionarismo (pois reativa à socie-
so dominante (keynesiano), bem como provar dade de direitos) e seu compromisso como o
a superioridade do (ultra)liberalismo. Por isso, capital em detrimento dos trabalhadores.
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A política que ainda hoje é chamada de direitos sociais (educação, saúde e assistência
“social” por inércia semântica não se social) e os direitos trabalhistas (precarização,
baseia mais em uma lógica de divisão
terceirização, estrangulamento dos sindicatos,
dos ganhos de produtividade destinada
diminuição profunda da Justiça do Trabalho,
a manter um nível de demanda suficien-
te para garantir o escoamento da pro- ausência de garantias trabalhistas). A partir da
dução em massa: ela visa a maximizar a “eleição” de Jair Bolsonaro, que em verdade
utilidade da população, aumentando sua implicou “fraude eleitoral”, conforme aponta-
“empregabilidade” e sua produtividade,
do no início, esse processo – verdadeira conti-
e diminuir seus custos, com um novo gê-
nuidade do golpe de 2016 – tende a aprofun-
nero de política “social” que consiste em
enfraquecer o poder de negociação dos dar-se ao limite.
sindicatos, degradar o direito trabalhista, A seguir são analisados alguns aspectos
baixar o custo do trabalho, diminuir o va- das respectivas leis das OSs e das Oscips, apro-
lor das aposentadorias e a qualidade da
vadas sob FHC, e que ganham maior projeção
proteção social em nome da “adequação
após a ascensão dos ultraliberais: Temer e Bol-
à globalização”. (Ibid., p. 284)
sonaro, sem contar estado (como o de São Pau-
Logo, as “políticas públicas” e o Estado lo, por exemplo) e municípios.
de “bem-estar”, embora mantenham essas
denominações, em verdade expressam outros Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998:
significados: o apoio ao “empoderamento do CAPÍTULO I
DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS
indivíduo” em busca de vencer pelos seus pró-
Seção I
prios “méritos”. Daí a lógica coletiva ser desva- Da Qualificação
lorizada, assim como os conflitos e as estrutu- Art. 1º. O Poder Executivo poderá quali-
ras políticas, econômicas e sociais, sempre em ficar como organizações sociais pessoas
nome das saídas individuais. A razão prática e jurídicas de direito privado, sem fins lu-
crativos, cujas atividades sejam dirigidas
o utilitarismo orientariam as “novas” (em ver-
ao ensino, à pesquisa científica, ao desen-
dade, velhas) políticas. O gerencialismo seria
volvimento tecnológico, à proteção e pre-
a expressão dessas premissas e lógicas tanto servação do meio ambiente, à cultura e à
nas atividades-meio como nas atividades-fim saúde, atendidos aos requisitos previstos
do Estado.6 nesta Lei.
Por fim, o golpe de Estado vigente no Art. 2º. São requisitos específicos para
que as entidades privadas referidas no
Brasil desde 2016 tem se utilizado fartamente
artigo anterior habilitem-se à qualificação
do discurso “modernizante” para privatizar, como organização social:
conceder, transferir, desnacionalizar, contratua- I - comprovar o registro de seu ato consti-
lizar, para agentes privados nacionais e inter- tutivo, dispondo sobre:
nacionais, riquezas, bens e serviços antes per- a) natureza social de seus objetivos relati-
vos à respectiva área de atuação;
tencentes ao Estado ou a agentes nacionais. Ao
b) finalidade não lucrativa, com a
mesmo tempo, a EC 55 e a reforma trabalhista/ obrigatoriedadede investimento de seus
terceirização irrestrita, aprovadas no Congres- excedentes financeiros no desenvolvi-
so Nacional, desestruturam respectivamente os mento das próprias atividades;
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grupos empresariais, em meio a entidades tipi- Art. 1º Podem qualificar-se como Orga-
camente “filantrópicas”, atuando com extrema nizações da Sociedade Civil de Interesse
Público as pessoas jurídicas de direito pri-
desenvoltura junto à administração pública e
vado sem fins lucrativos que tenham sido
nas diversas etapas das políticas públicas.A
constituídas e se encontrem em funcio-
área de saúde, em diversos municípios e esta- namento regular há, no mínimo, 3 (três)
dos – casos de São Paulo, por exemplo –, con- anos, desde que os respectivos objetivos
figura-se como um dos casos em que a saúde sociais e normas estatutárias atendam
“pública” – à luz de Dardot e Laval – é, de fato, aos requisitos instituídos por esta Lei.
(Redação dada pela Lei nº 13.019, de
viabilizada por entidades privadas por meio
2014) (Vigência)
de critérios muitas vezes “não públicos”. Em § 1º Para os efeitos desta Lei, considera-
outras palavras, embora os recursos sejam pú- -se sem fins lucrativos a pessoa jurídica
blicos (provindos do Sistema Único de Saúde), de direito privado que não distribui, entre
os instrumentos de gestão, de contratação e de os seus sócios ou associados, conselhei-
ros, diretores, empregados ou doadores,
prestação de serviços são essencialmente pri-
eventuais excedentes operacionais, brutos
vados, privatismo este ancorado em tradições e ou líquidos, dividendos, bonificações, par-
culturas organizacionais empresariais e geren- ticipações ou parcelas do seu patrimônio,
ciais distintas e pouco controláveis, tanto social auferidos mediante o exercício de suas
como efetivamente. Nos regimes urbanos, nas atividades, e que os aplica integralmente
na consecução do respectivo objeto social.
mais diversas áreas, o ambiente é essencial-
Art. 2º Não são passíveis de qualificação
mente similar a esse. como Organizações da Sociedade Civil de
Especificamente quanto aos contratos de Interesse Público, ainda que se dediquem de
gestão, representam justamente o instrumento qualquer forma às atividades descritas no
jurídico que habilita os agentes privados em art. 3o desta Lei:
I - as sociedades comerciais;
sua prestação “pública” de serviços. Contêm
II - os sindicatos, as associações de classe ou
mensuradores de eficiência, eficácia e efeti-
de representação de categoria profissional;
vidade provindos do setor privado, e que não III - as instituições religiosas ou voltadas
são acordados com as populações às quais os para a disseminação de credos, cultos, prá-
serviços se destinam. Representam o locus tec- ticas e visões devocionais e confessionais;
IV - as organizações partidárias e asseme-
nocrático/gerencial – espécie de “insulamento
lhadas, inclusive suas fundações;
burocrático” – cujos “instrumentos de gestão”
V - as entidades de benefício mútuo des-
são tomados como inquestionáveis. tinadas a proporcionar bens ou serviços
Já, em relação às Organizações da Socie- a um círculo restrito de associados ou
dade Civil de Interesse Público (Oscips), alguns sócios;
VI - as entidades e empresas que comer-
aspectos da lei são assim caracterizados.
cializam planos de saúde e assemelhados;
Lei no 9.790, de 23 de março de 1999. VII - as instituições hospitalares privadas
CAPÍTULO I não gratuitas e suas mantenedoras;
DA QUALIFICAÇÃO COMO ORGANIZA- VIII - as escolas privadas dedicadas
ÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE ao ensino formal não gratuito e suas
PÚBLICO mantenedoras;
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As referidas PPPs, a gestão "por resulta- Por fim, as conclusões deste estudo –
dos" e toda a autonomia que as OSs e Oscips cuja análise recaiu conceitualmente no âmbito
passaram a obter, em termos de recursos finan- da macrometrópole de São Paulo, mas que po-
ceiros, humanos e administrativos, assim como de ser generalizada em larga medida – apon-
as formas de atender aos públicos aos quais tam para novas estratégias do neoliberalismo
seus serviços se destinam, descolam-se paulati- em perspectiva internacional, isto é, não ape-
namente dos padrões públicos. Em outras pala- nas a velha agenda privatizante, desreguladora
vras, desde a escolha das OSs, a fiscalização fi- e desregulamentadora das relações econômi-
nanceira/finalística até o "controle social" (que cas e sociais, mas sua convivência com o Es-
tende a ser baixo, como aludido), o processo tado e as políticas públicas que, contudo, são
não é transparente e tampouco controlável. remodelados, reformatados e redirecionados
Essas questões têm transformado substantiva- no sentido de modelarem a gestão "pública" e
mente o Estado brasileiro, impactando vigoro- as políticas "públicas" com contornos privados,
samente a governança – que se torna de outra gerenciais. Abundam exemplos de rodovias,
natureza –, particularmente nas metrópoles e sistemas de transportes, equipamentos sociais,
macrometrópole, e necessitam ser investigadas culturais e científicos, e mesmo presídios, entre
com denodo. Em paralelo, viu-se o papel do outros, concedidos a agentes privados com in-
grande capital ao financiamento de partidos teresses supostamente "públicos", tornando a
e campanhas, privatizando-se a vida política, esfera pública espécie de sucursal do mundo
assim como o predomínio das finanças e toda privado. Essa governança convive e se articula
sua complexa matematização em prol de em- ao sistema político privatizado e antipopular
preendimentos privados que se sobrepõem ao voltado às elites, impedindo a "radicalização"
conceito mais elementar de “público”. da democracia, isto é, seu aprofundamento
As hipóteses principais, à luz da dis participativo e redistributivo em termos políti-
cussão acerca da hegemonia, em Antonio cos e sociais.
Gramsci (2003), e da perpetuação neoliberal Os próprios acontecimentos ocorridos
contemporânea, em Dardot e Laval (2016), vol- no Brasil desde 2016, que culminaram com a
tam-se à constituição da hegemonia neoliberal eleição estruturalmente fraudada de Bolsona-
(ultraliberal) por dentro do aparelho do Estado, ro, apenas confirmam esse manancial de novos
assim como das políticas públicas. No dizer poderes em prol da agenda liberalizante: algo
destes últimos autores, representam a "nova nunca visto quanto à sua dimensão na socie-
razão do mundo" no sentido de introduzirem dade brasileira.
os referidos pressupostos, ferramentas e práti- Portanto, deve-se ressaltar que o deba-
cas sem necessariamente derrogar o Estado e te acerca das reformas neoliberais necessita
as políticas públicas. Em outras palavras, não ser refinado, sobretudo quanto ao conceito
é necessário privatizar o Estado, em sentido li- de "governança" nos regimes urbanos, cujas
teral, e sim remodelá-lo segundo os moldes da coalizões são complexas e profissionaliza-
nova razão procedimental neoliberal. das a partir do grande capital. É necessário
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Francisco César Pinto Fonseca
[I] https://orcid.org/0000-0003-4339-4786
Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Departamento de
Gestão Pública, Curso de Administração Pública. São Paulo, SP/Brasil
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Ciências Sociais, Departamento de
Política. São Paulo, SP/Brasil.
franciscocpfonseca@gmail.com
Notas
(1) Embora tenhamos mantido o termo “neoliberalismo” e suas variantes para definir o padrão de
governança metropolitana, em razão de seu domínio comum e, portanto, mais usual, preferimos
o termo “ultraliberalismo” e seus correlatos, devido à radicalidade tanto dos diagnósticos como
das proposições dessa corrente que, além do mais, demonstra pouco apreço pela democracia
política, tal como expresso pelos seus principais ideólogos, notadamente L. Von Mises, F. Von
Hayek e M. Friedman, entre outros, em suas inúmeras obras. Para discussão sobre isso, ver
Fonseca (2005). Neste artigo, ambos os termos serão utilizados como sinônimos.
(2) No caso brasileiro, o liberalismo econômico é frágil eleitoralmente. Razão pela qual sua ascensão
se dar, desde 2016, por meio de golpes: 1) impeachment inconstitucional da presidente Dilma;
2) prisão inconstitucional do ex-presidente Lula – em ambos os casos sem que se comprovasse
qualquer crime – com o objetivo, entre outros, de tirá-lo do jogo eleitoral; 3) participação
inconstitucional, eminentemente político/ideológica e político/partidária da Operação Lava Jato,
em inúmeras dimensões do processo político brasileiro e avalizada pelas cortes superiores, tais
como o TRF-4, o TJ e o STF; 4) eleição fraudada de Jair Bolsonaro à presidência da República por
meio do uso massivo, ilegal e imoral de mentiras sistêmicas disparadas por empresas altamente
profissionalizadas e enviadas por whatsApps, via robôs, especialmente a pessoas vulneráveis
a esse tipo de mensagem. Como se sabe, trata-se do mesmo processo coordenado por Steve
Bannon nas campanhas de Trump e do Brexit, recentemente trazido ao Brasil. Impressiona o
fato de as instituições de justiça no Brasil simplesmente ignorarem esse processo, consolidando,
portanto, a fraude eleitoral que, por seu turno, consolida o golpe de 2016. Afinal, Bolsonaro é
continuação radicalizada de Temer.
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(3) Pode-se definir esse conceito da seguinte forma: organismos privados que disputam a hegemonia
por meio da organização, orientação e veiculação de ideias, valores e interesses.
(4) As tentativas de aplicação das ideias ultraliberais em sociedades reais foram inteiramente
fracassadas: tanto pelo voto como pela via da ditadura em perspectiva histórica, casos do Chile
sob a ditadura de Pinochet ,e da Rússia, sob Boris Yeltsin.
(5) [...] na opinião de Hayek, agiram com regularidade e sucesso como se compreendessem
plenamente a posição-chave dos intelectuais e direcionassem seus principais esforços para
obter o apoio da “elite”, o que certamente era verdade para os fabianos e keynes na Grã-
-Bretanha. [...]
(7) Após trinta anos de afastamento formal do poder civil, os militares retornaram à vida política
ao sustentarem, com ameaças, a Operação Lava Jato, o que vem implicando a criminalização
política do ex-presidente Lula; ao apoiarem vigorosamente a figura pífia e esdrúxula de
Bolsonaro; e ao participarem, com cargos de primeiro e segundo escalão, da vida civil brasileira.
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