Você está na página 1de 10

1

Da Cidade Empreendedora à Smart City: desafios do planejamento urbano num contexto


neoliberal

Analúcia de Azevedo Silva.

INTRODUÇÃO

Planejar para garantir um futuro promissor continua no centro das preocupações de


governos e agentes civis, principalmente no que se refere ao destino das cidades. Elas se
expandem cada vez mais e sua densidade urbana fornece o caminho para se sair da pobreza
rumo à prosperidade (GLEASER, 2011).

As dinâmicas urbanas, bem como os processos de planejamento das cidades mundo


afora, se materializam, por vezes, em conceitos que marcam e registram no tempo e no espaço
características de um modelo de cidade desejada.

Assim, desde o século XX, o mundo viu emergirem utopias, se solidificarem planos
e se tornarem decadentes alguns desenhos de um ideal de cidade (HALL, 2005) tais como
Cidade Jardim, Cidade Empreendedora, entre outras. Hoje, em escala global, no pensamento
do desenvolvimento das cidades, figura o mais recente conceito de Smart Cities (Cidades
Inteligentes), estritamente ligado à questão da inovação 1 urbana e tecnológica no
planejamento das cidades.

Em um contexto de economia globalizada 2, o presente artigo discorre sobre o modelo


de Cidade Empreendedora e do Estado Neoliberal à luz, respectivamente, das teorias de Hall
(2005) e Harvey (2008), bem como introduz o conceito de smart city (cidade inteligente).

Importa conhecer o modelo de Estado3 no qual o planejamento urbano e regional se


insere porque isso implica diretamente na forma de implementação das políticas públicas
inovadoras, bem como nos seus efeitos econômicos, sociais e territoriais.

1
Inovação é entendida como a criação do novo e/ou algo substancialmente melhorado que pode ser um produto
novo, um processo de produção original, uma forma de organização da empresa inédita ou um marketing
singular (TUNES, 2016). Já o manual de Oslo, criado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), defende a premissa de quatro tipos de inovações: nos Produtos, Inovações de Processos, de
Marketing e Organizacionais, apresentando assim o conceito de inovação: uma inovação é a implementação de
um produto (bem ou serviço) novo ou significativamente melhorado, ou um processo, ou um novo método de
marketing, ou um novo método organizacional nas práticas de negócios, na organização do local de trabalho ou
nas relações externas. (PORTAL DA EDUCAÇÃO, 2019).
2
As principais imagens na caracterização hoje dominante sobre a globalização econômica enfatizam a
hipermobilidade, as comunicações globais e a neutralização do lugar e da distância. Existe uma tendência de se
considerar a existência de um sistema econômico global como algo dado, uma função do poder das empresas
transnacionais e das comunicações globais. (SASSEN, 2010).
2

Objetivando refletir sobre os dois citados modelos de cidade como uma opção à
dinamização da economia urbano-regional, bem como a uma possível realização do capital
dos entes privados (mercado), a metodologia aplicada no artigo incluiu a revisão bibliográfica
de alguns autores mais presentes no sobre debate sobre a smart city e o planejamento urbano
como Tereza Mendes (Observatório das Metrópoles), Evgeny Morozov e Francesca Bria,
além dos referenciais teóricos já mencionados.

Assim, o artigo está estruturado em: introdução, 3 seções descritivas conceituais e


considerações finais. A seção 1 se dedica às reflexões feitas por David Harvey sobre a história
e implicações do Neoliberalismo perante o papel do Estado; a seção 2 descreve a Cidade do
Empreendimento avocada por Peter Hall; a terceira seção apresenta os paradigmas do recente
conceito de Cidades Inteligentes. Nas considerações finais se apresentam analogias entre os 2
modelos de cidade apresentados, bem como são levantadas reflexões acerca dos desafios do
planejamento urbano das smart cities num contexto neoliberal.

1. O NEOLIBERALISMO, CONCEITO E PRÁTICA.

Sabe-se que o contexto de Estado no qual um governo planeja suas mais variadas
políticas implica diretamente no modelo concreto de nação e consequentemente de cidades.
As sociedades mundiais já experimentaram modelos Comunistas, Socialistas, Capitalistas de
economia Liberal e Neoliberal, entre outros, sendo o neoliberalismo 4 o mais relevante para
grande parte das nações na contemporaneidade.

Por essa razão, é salutar compreender sua história e suas estruturas, visto que os 2
modelos de cidade discutidos no artigo encontram-se estabelecidos sob a égide de suas regras
econômicas. Nesse sentido, as análises de Harvey (2008) são aqui referenciadas para a
sustentação do raciocínio crítico acerca do Estado Neoliberal.

De acordo com o autor, o neoliberalismo se pauta em práticas político-econômicas que


apoiam o bem-estar das pessoas a partir da capacidade empreendedora individual, em um
regime pleno de propriedade privada, livres mercados e livre comércio. Assim, o neoliberal

3
Estado: em geral, a organização jurídica coercitiva de determinada comunidade. O uso da palavra deve-se a
Maquiavel (O príncipe, 1513, § 1). Podem ser distinguidas três concepções fundamentais: 1º a concepção
organicista, segundo a qual o Estado é independente dos indivíduos e anterior a eles; 2ª a concepção atomista ou
contratualista, segundo a qual o Estado é criação dos indivíduos; 3ª a concepção formalista, segundo a qual o
Estado é uma formação jurídica. (ABBAGNANO, 2007).
4
A verdade é que o contexto de formação mais relevante para a maioria das cidades – pelo menos na América
do Norte e em grande parte da Europa ocidental – tem sido o do neoliberalismo ou, mais precisamente, o da
transição de um compromisso keinesiano e fordista para o urbanismo altamente empreendedor e financializado
que emergiu e se expandiu no fim da década de 1970. (MOROZOV, E. & BRIA, F., 2019).
3

implica em uma tríade composta pela desregulação, privatização e retirada do Estado da


ordem econômica.

Via de regra, o Estado deve se retirar da ordem econômica (deve apenas garantir a
qualidade e integridade do dinheiro), cabendo-lhe estabelecer as estruturas e funções militares
de defesa, da polícia e o sistema legal regulamentar requerido para o pleno funcionamento do
modelo neoliberal. Nesse sentido, o neoliberalismo é antagônico ao Estado de bem-estar
social no qual saúde, educação, assistência e seguridade social são garantidas pelo Estado.

O livre-mercado era a base fundante do liberalismo clássico baseado na não-


participação do Estado na economia. Para Harvey, o neoliberalismo foi mais incisivo, sendo
então, uma espécie de fuga achada pelo Estado não somente para se desobrigar ou reduzir sua
participação, mas para passar a trabalhar em prol do mercado e do grande capital
internacional.

Essa liberdade é observada também no desenvolvimento das inovações tecnológicas


que Harvey (2008) teme poder ser manipuladas em favor, uma vez mais, da especulação
capital. Os detentores de patentes usam seu poder de monopólio para estabelecer preços de
monopólio e evitar transferências de tecnologia exceto mediante o pagamento de altos preços.

Além disso, atravessadores talentosos podem mobilizar inovações


tecnológicas para solapar relações sociais e instituições dominantes e, por
meio de suas atividades, até mesmo reformular o senso comum para sua
própria vantagem pecuniária. Há, portanto, um vínculo constitutivo entre
dinamismo tecnológico, instabilidade, dissolução de solidariedades sociais,
degradação ambiental, desindustrialização, aceleradas mudanças das
relações espaço-tempo, bolhas especulativas e a tendência geral de formação
de crises no capitalismo. (HARVEY, 2008, p. 39).

Desmantelar o Estado de bem-estar social conquistado no período pós-guerra e a


abertura total da economia (desregulação estatal) foi um imperativo do mercado aos governos
de capitalismo avançado e alguns acontecimentos expressivos ocorrem no desenrolar dessa
transformação.

Em 1978, aconteceu a liberalização da economia chinesa guiada por Deng Xiaoping o


que despertou cuidados por parte dos países ricos. Nos Estados Unidos da América (EUA),
em 1979, Paul Volcker assumiu a liderança da Reserva Federal e alterou dramaticamente a
política monetária, enquanto na Inglaterra, a Primeira Ministra Margaret Thatcher assumiu o
poder dos sindicatos e passou a enfraquecê-los.

Em 1980, foi eleito presidente dos EUA o candidato Ronald Reagan que se valeu das
políticas de Volcker, implementou um conjunto de reformas para limitar o poder sindical,
4

desregular a indústria, criando assim as condições para o mercado financeiro operar com mais
liberdade e maior poder a nível nacional e global.

Tudo isso se vinculava à forte expansão da atividade e do poder no mundo


financeiro. Cada vez mais liberta das restrições e barreiras regulatórias que
até então limitavam seu campo de ação, a atividade financeira pôde florescer
como nunca antes, chegando a ocupar todos os espaços. Uma onda de
inovações ocorreu nos serviços financeiros para produzir não apenas
interligações globais bem mais sofisticadas como também novos tipos de
mercados financeiros baseados na securitização, nos derivativos e em todo
tipo de negociação de futuros. Em suma, a neoliberalização significou a
"financialização" de tudo. (HARVEY, 2008, p. 20).

É nesse contexto de política econômica Neoliberal que Peter Hall apresenta as


dificuldades dos planejadores de cidades que se viram à mercê das regras do jogo
mercadológico, da inflação e do crescente desemprego. Estados Unidos e Inglaterra buscaram
na Cidade do Empreendimento, segundo Hall (2005), recuperar-se de mais uma crise do
capital, porém, sem preocupar-se com as condições da empobrecida classe trabalhadora
subtraída em suas conquistas sociais.

2. A CIDADE DO EMPREENDIMENTO OU EMPREENDEDORA

O crescimento econômico acelerado desenvolvido pelo processo de industrialização


vivido nas últimas décadas do século XIX em países europeus e destacadamente nos EUA
deixou como herança para as cidades no século XX problemas urbanos de toda ordem, desde
aqueles ligados à moradia (expansão de cortiços), bolsões de pobreza, até os relativos aos
deslocamentos (mobilidade urbana). Além disso, as cidades no século XX se depararam com
uma nova realidade econômica, a saber, o processo de desindustrialização e a forte expansão
da atividade e do poder no mundo financeiro.

A crise econômica instalada nas cidades, de anterior efervescência industrial, trouxe


um total descompasso para os planejadores urbanos (HALL, 2005) que, diante da crescente
massa de desempregados e da grave crise financeira, abandonou o planejamento
convencional, a utilização de planos e a regulamentação do uso do solo e passaram a consentir
a manipulação da Cidade (uso solo) como meio de ganho capital.

O planejamento deixou de controlar o crescimento urbano e passou a


encorajá-lo por todos os meios possíveis e imagináveis. Cidades, a nova
mensagem soou em alto e bom som, eram máquinas de produzir riqueza; o
primeiro e principal objetivo do planejamento devia ser o de azeitar a
máquina. O planejador foi-se confundindo cada vez mais com seu tradicional
adversário, o empreendedor; o guarda-caça transformava-se em caçador
furtivo. (HALL, 2005. Pg. 408).
5

Segundo o autor, essa guinada às avessas no planejamento das cidades ocorreu em


razão dos problemas urbanos e intra-urbanos ocasionados pelas diversas crises econômicas
vividas durante a segunda metade do século XX e que culminaram num processo de
decadência urbana. Os EUA (orla marítima degradada de Boston) e a Inglaterra (declínio das
Docklands) foram claros exemplos disso. Pode-se afirmar que as crises foram desencadeadas
pela junção combinada de indústrias em fuga, fechamento de fábricas e permanentes reduções
físicas, gerando a perda de milhões de empregos nas regiões industriais americanas e inglesas,
por exemplo.

Essa situação caótica, ou talvez, cíclica de colapso do capital, desequilibrou a política


de bem-estar social keynesiana, dando espaço para a aplicação de uma política mais voltada
para as necessidades do mercado até mesmo no âmbito do planejamento urbano.

Assim, diante do quadro de desaceleração do crescimento, foram propostas reformas


macroeconômicas de cunho Neoliberal. Margareth Tatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan,
nos EUA implementaram o neoliberalismo visando se reerguer economicamente às custas de
qualquer perda de seguridade social ou ambiental que impingiram aos espaços urbanos uma
lógica competitiva. As regulamentações urbanas foram reduzidas a fim de proporcionar os
mais diversos tipos de empreendimentos. Nesse sentido, as cidades foram objetificadas como
empreendimentos ou entes empreendedores, segundo autor.

O foco dessa perspectiva empreendedora situava-se nos processos de revitalização


urbana (a palavra-isca norte americana para conquistar adeptos) de áreas degradas envolvendo
parcerias público-privadas como horizonte à circulação do capital financeiro no espaço
urbano, atualmente conhecido como Operação Consorciada Urbana, tendo como primeiros
exemplos a revitalização da orla marítima de Boston (EUA) e a reurbanização das Docklands
(Inglaterra).

A partir do novo conceito baseado na reutilização adaptável de recuperação e


reciclagem de antigas estruturas físicas, a ideia era reurbanizar grandes áreas incorporando
novas atividades atratividades ao local para os moradores de renda mista. Atividades como
recreação, cultura, compras e habitação envolvendo recursos públicos e privados.

Assim, o subvencionamento federal, conjugado com uma nova visão de


investimento em empreendimento lucrativo por parte do setor público, e a
cooperação entre os empreendedores do setor público e privado foram
elementos decisivos da nova fórmula (HALL, 2008, p. 413).

A nova fórmula apareceu como saída da crise financeira com a qual as cidades
dinamizaram suas economias e os entes privados buscaram a realização do capital na forma
6

da financialização de tudo, como prenunciou Harvey (2005). Boston, Baltimore e Londres


tornaram-se cidades do empreendimento pós anos de 1970. Mas, nessa ebulição financeira, ao
trabalhador restaram os baixos salários e a luta sindical enfraquecida.

Por fim, a ideia de uma cidade do empreendimento, competitiva e atrativa aos


investidores financeiros surgiu como uma ferramenta eficaz de crescimento ancorada, claro,
numa perspectiva neoliberal. O modelo ainda funciona como estratégia de desenvolvimento
econômico nos dias atuais, principalmente em países emergentes ou de capitalismo recente.
Entretanto, outros arranjos foram se desenhando nos quais o modelo empreendedor deu lugar
a novas estratégias para alavancar o desenvolvimento das cidades. A seção seguinte dá um
longo salto no tempo pousando no século XXI apresentando o paradigma do recente modelo
de cidade, a saber, o de smart cities (cidades inteligentes).

3. A SMART CITY

Passados mais de 40 anos das motivações que levaram os planejadores a se valerem


da Cidade Empreendedora como veículo para azeitar a máquina da economia e mitigar os
problemas urbanos, o mundo globalizado, trouxe novos desafios para o planejamento urbano
que enfrenta complexos problemas nas relações espaciais, sociais, econômicas, culturais e
ambientais.

Acontecimentos relativamente recentes, por sua vez, trouxeram novas


variáveis para este cenário, como o Atentado Terrorista de 2001 nos EUA, a
Crise Econômica de 2008, a intensificação de fenômenos climáticos
extremos e o esgotamento dos recursos naturais. Com efeito, se já existiam
preocupações a respeito das respostas que os gestores públicos poderiam
fornecer para assegurar a administração das cidades, estas se aguçaram
diante da necessidade de soluções cada vez mais ágeis e mais eficientes.
(MENDES, 2020. TD 011, p. 2).

As possíveis soluções para essa complexidade de problemas tem encontrado apoio nas
inovações relacionadas às tecnologias de informação e comunicação (TICs). Como disse
Harvey (2008), há um fetiche na teoria neoliberal da mudança tecnológica que crê que para
todo e qualquer problema há um remédio tecnológico, uma solução pela via do mundo
informacional.

Nesse sentido, o uso das novas tecnologias e inovações para resolverem os problemas
das cidades tais como governança, mobilidade, energia, comunicações, saúde, educação,
segurança, habitação, meio-ambiente, desenvolvimento econômico, envolvimento
comunitário, etc., surgiram paulatinamente nos últimos anos por meio de propostas como as
de Cidade Digital (digital city), Cidade do Futuro (future city), Cidade Global (global city),
entre outras. A premissa dos administradores públicos de cidades é torna-las capaz de atrair
7

investidores, empresas, talentos profissionais e turistas, pois, com a crise do capital de 2008
os orçamentos públicos caíram vertiginosamente e uma saída administrativa tem sido investir
em infraestruturas tecnológicas e inovação, em parceria com empresas de TICs, para enfrentar
os desafios da contemporaneidade. É nesse contexto que a ideia de smart cities se apresenta.

A “smart city” é certamente um dos conceitos “smart” mais proeminente a


conquistar a imaginação pública na última década. Também é um dos termos
que traz mais consequências e é da maior importância politica ao informar e
moldar o trabalho de planejadores urbanos, arquitetos, operadores de
infraestrutura, incorporadoras imobiliárias, secretários de transporte,
prefeitos e indústrias inteiras. (MOROZOV, E. & BRIA, F., 2019).

O termo Cidades Inteligentes surgiu em princípio nos EUA entre o staff das empresas
International Business Machines Corporation (IBM) e Cisco Systems (Cisco) que através do
uso de TICs, proponham a digitalização das cidades como ferramenta para assessorar as
administrações na correção dos seus diversos problemas.

É um termo cunhado por vários autores os quais têm em comum o entendimento de


que Cidades inteligentes (Smart Cities) são aquelas que possibilitam o empoderamento e a
melhoria na qualidade de vida da população, que utilizam as Tecnologias da Informação e
Comunicação (TICs) como ferramenta para a melhora na infraestrutura e nos serviços da
cidade e na otimização do uso dos seus recursos (KON; SANTANA, 2016).

Segundo os autores, o mais intrigante é que parte desses conceituadores não


estabelece por qual meio tudo isso deve ser alcançando, enquanto outros buscam definir que o
alcance de uma smart city se dá através da construção de uma infraestrutura tecnológica para
melhorar os serviços da cidade, ou seja, uma cidade inteligente é aquela que garante a
implantação e o uso de coisas tais como rede de fibra ótica, sensores, radares e etc. O artigo
assume o conceito de smart city cunhado por Mendes:

Genericamente, pode-se conceituar uma smart city como uma cidade que,
através de uma visão holística, multidimensional/multiparticipativa, e com o
uso intensivo de recursos tecnológicos, é capaz de promover um crescimento
inclusivo e sustentável, com a maximização da eficiência na alocação dos
seus recursos, visando a melhor qualidade de vida da sua população. O uso
de tecnologias digitais, e consequente geração extraordinária de dados,
possibilitariam estratégias mais eficientes de gestão, com maior rapidez de
respostas (muitas vezes em tempo real). (MENDES, 2020. TD. 011, p. 8).

Apostas na transformação de cidades clássicas em smart cities já se espraiaram por


todos os continentes. Há experiências na Europa em cidades como Barcelona (Espanha) e
Águeda (Portugal); na América do Norte em Boston (USA) e Toronto (Canadá); na Ásia
Dubai (Emirados Árabes Unidos) e Songdo (Coreia do Sul); na África em Maputo. Na
8

América Latina, no Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Cidades Inteligentes,


Humanas e Sustentáveis (IBCIHS) muitas cidades também abraçaram a proposta.
Mundialmente, são cidades das mais variadas dimensões geográficas, adensamento
populacional e desenvolvimento sócio econômico, investindo no modelo.

Nesse contexto, Morozov & Bria (2019) atenta para uma necessária reflexão sobre a
geopolítica da pauta das cidades inteligentes. O autor questiona o motivo, por exemplo, da
presença da proposta de smart cities na lista de políticas oficiais prioritárias da missão
europeia do Departamento de Comercio dos Estados Unidos estarem postas ao lado do
Acordo de Parceria Transatlânticas de Comércio e Investimento (TTIP), bem como do
Mercado Único Digital. Ele também questiona quais os verdadeiros interesses das grandes
companhias de tecnologia alemãs, chinesas e americanas ao disputarem os mercados que
intentam desenvolverem smarts cities. Segundo ele, a Índia pretende desenvolver mais de cem
smart cities nos próximos anos investindo cerca 1 trilhão de dólares. É importante registrar
que:

Não faz muito sentido construir uma smart city não neoliberal, libertada da
Cisco e da IBM, para no fim descobrir que ela estava desde sempre
subjugada às maquinações do Google ou da Uber. É evidente que o ponto
nevrálgico aqui é uma interpretação específica do caráter smart, mas antes
suas consequências politicas e econômicas – que em geral continuam as
mesmas, independentemente de os serviços em questão serem ou não
caracterizados como “smart” ou apenas como “inteligentes”, “interativos”.
(MOROZOV, E. & BRIA, F., 2019).

A respeito dessas desconfianças, Morozov & Bria (2019) diz ser prudente pesquisar
as ligações existentes entre as infraestruturas digitais que remodelam o cenário digital das
cidades (como câmeras, algoritmos, sensores, telas, roteadores, telefones celulares e muitos
outros ingredientes que emprestam o smart às “smart cities”) e os projetos políticos e
econômicos urbanos atuais prestes a ser implementados. Somente por meio dessa investigação
se encontrará resposta para o verdadeiro intuito do embarque na smart city.

Pelo exposto, o destino das cidades tornadas ou já nascidas inteligentes (smart) é


uma incógnita quanto a concretização do seu objetivo de promover um crescimento inclusivo
e sustentável por meio das tecnologias digitais, pois, nas cidades com significativa
desigualdade social, como é o caso brasileiro, o modelo idealizado pode não abranger o
conjunto da sociedade e se tornar mais um instrumento catalisador de mais distorções e
injustiças sociais como a exclusão digital, que de acordo com Mendes (2020. TD. 013) é o
oposto de inclusão digital, um conceito que trata da desigualdade econômica e social no que
diz respeito ao acesso, ao uso ou ao impacto da informação e das tecnologias de comunicação.
9

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As crises cíclicas do capitalismo levam inexoravelmente os operadores do capital a


reinventarem formas de lucro, e o neoliberalismo tem sido a expressão mais aguda desse
embate no qual os agentes do livre mercado e comércio, detentores da propriedade privada,
saem fortalecidos. Em contraposição a isso, Harvey (2008) sugere que uma importante luta
política deve ser travada contra a natureza intensamente antidemocrática do neoliberalismo
fortemente apoiado pelo autoritarismo dos neoconservadores. É imperioso, segundo ele,
desacreditar o conceito torpe e danoso de liberdade sobre o qual o neoliberalismo se erigiu.

A Cidade Empreendedora e a Cidade Inteligente têm em comum o paradigma do


neoliberalismo, pois a primeira nasceu junto com ele e a segunda surge em seu auge. Outra
reflexão que se pode fazer entre elas é que se diferenciam na práxis: a primeira necessita do
uso do solo para se concretizar, enquanto que a segunda não prescinde dele, pois se
materializa tão somente sobrepondo, no espaço construído, as tecnologias e inovações sobre
as camadas da cidade desde o subsolo, passando por arranha céus, torres de repetição de sinais
e satélites.

Ambas, cada uma em seu momento histórico e método respondem pela reconstrução
do capitalismo em crise, bem como promovem a financeirização do mercado. Resta saber, e
isso só o tempo dirá, se assim como a Cidade Empreendedora, a Smart City não contribuirá
para a redução das desigualdades sociais, mas sim com a dinamização da economia e
realização do capital.

Mendes (2020. TD. 013), alerta que sem a redução da desigualdade socioeconômica
haverá exclusão digital, o que praticamente torna impossível, no redesenho do espaço urbano,
que toda a população se favoreça dos proveitos gerados pelas novas tecnologias de forma
inclusiva e democrática.

A opção por smart cities trará para as cidades de maneira universal as soluções
urbanas e econômicas mais adequadas? Quais as implicações de sua implementação em um
Estado Neoliberal? Estarão os pobres incluídos nas benesses desse modelo de cidade ou,
assim como no caso da Cidade Empreendedora, o modelo servirá como estratégia voltada às
necessidades do mercado até mesmo no âmbito do planejamento urbano?

Essas questões inquietantes poderão ser examinadas, uma a uma, ao passo que um
considerável número de smart cities for sendo implementadas, inclusive (se isso realmente for
possível), em países em desenvolvimento.
10

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

DICIONÁRIO FINANCEIRO. O que é inovação. [S.l.]: [S.n.], 2019. Disponível em: Acesso
em: 20 out. 2020.

GLAESER, Edward. Os centros urbanos: a maior invenção da humanidade. Rio de Janeiro:


Elsevier, 2011.

HALL, Peter. Cidades do amanhã. São Paulo: Perspectiva, 2005.

HARVEY, David. O Neoliberalismo: História e Implicações. São Paulo, Edições Loyola,


2008.

INSTITUTO BRASILEIRO DE CIDADES INTELIGENTES, HUMANAS E


SUSTENTÁVEIS. Institucional. Disponível em: <https://redebrasileira.org/institucional>.
Acesso em: 18 out. 2020.

KON, Fábio; SANTANA, Eduardo Felipe Zambom. Cidades inteligentes: conceitos,


plataformas e desafios. São Paulo: [S. n.], 2016.

OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia. Texto


para discussão. In: MENDES, Teresa Cristina M. Smart Cities: solução para as cidades ou
aprofundamento das desigualdades sociais? Rio de Janeiro, INCT, 2020. 23 p. (Texto para
discussão, n. 11). Disponível em: <https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-
content/uploads/2020/01/TD-011-2020_Teresa-Mendes_Final.pdf>. Acesso em: 10 out. 2020.

OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia. Texto


para discussão. In: MENDES, Teresa Cristina M. Smart Cities: iniciativas em oposição à
visão neoliberal. Rio de Janeiro, INCT, 2020. 27 p. (Texto para discussão, n. 13). Disponível
em: <https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/06/TD-013-
2020_Teresa-Mendes_Final.pdf>. Acesso em: 23 out. 2020

MOROZOV, E. & BRIA, F., A Cidade Inteligente – Tecnologias Urbanas e Democracia,


UBU Editora/Fundação Rosa Luxemburgo, São Paulo, 2019.

SASSEN, Saskia. A cidade global: recuperando o lugar e as práticas sociais. Porto Alegre:
Artmed, 2010.

TUNES, Regina Helena. Geografia da inovação: território e inovação no Brasil no século


XXI. 2015. 526 f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2015. Disponível em:
<https://www.capes.gov.br/images/stories/download/pct/2016/MencoesHonrosas/Geografia-
Regina-Helena-Tunes.PDF>. Acesso em: 20 set. 2020.

Artigo apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais em


cumprimento às atividades avaliativas da disciplina Abordagens sobre Cidades e Dinâmicas
Urbanas.

Docentes: Alexsandro Ferreira Cardoso da Silva e Maria Dulce P. Bentes Sobrinha.

Você também pode gostar