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HARVEY, David. O Neoliberalismo: história e implicações.

São Paulo: Edições


Loyola, 2008. Cap. 1-3, p. 11-96.

INTRODUÇÃO

Já na introdução, há uma definição de neoliberalismo:

O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas


político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor
promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras
individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos
direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O papel do
Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas
práticas; o Estado tem de garantir, por exemplo, a qualidade e a integridade
do dinheiro. Deve também estabelecer as estruturas e funções militares, de
defesa, da polícia e legais requeridas para garantir direitos de propriedade
individuais e para assegurar, se necessário pela força, o funcionamento
apropriado dos mercados. Além disso, se não existirem mercados (em áreas
como a terra, a água, a instrução, o cuidado de saúde, a segurança social ou a
poluição ambiental), estes devem ser criados, se necessário pela ação do
Estado. Mas o Estado não deve aventurar-se para além dessas tarefas. As
intervenções do Estado nos mercados (uma vez criados) devem ser mantidas
num nível mínimo, porque, de acordo com a teoria, o Estado possivelmente
não possui informações suficientes para entender devidamente os sinais do
mercado (preços) e porque poderosos grupos de interesse vão
inevitavelmente distorcer e viciar as intervenções do Estado (particularmente
nas democracias) em seu próprio beneficio (P. 12)

A doutrina neoliberal estaria, portanto, vinculada a uma concepção de Estado


segundo a qual este deve atuar no sentido de construir condições para o pleno
funcionamento do mercado. Para isso seria necessário garantir direitos de propriedade e
liberdade de comércio, mesmo que por meio do uso da força (aparatos militares e
policiais). De modo concomitante, o neoliberalismo preceitua que a atuação estatal deve
se restringir a isso, pois tal estrutura não possuiria domínio sobre os sinais do mercado,
onde ocorre a formação dos preços, de modo que a sua intervenção tenderia a ser
viciosa.

CAPÍTULO I: LIBERDADE É APENAS MAIS UMA PALAVRA...

Harvey inicia este capítulo falando sobre a necessidade de existir um aparato


conceitual para respaldar o processo pelo qual um modo de pensamento se torna
dominante. Para ele, os valores eleitos pelos neoliberais foram a dignidade humana e a
liberdade individual, que em sua visão, possuem grande apelo:

As figuras fundadoras do pensamento neoliberal consideravam


fundamentais os ideais políticos da dignidade humana e da liberdade
individual, tomando-os como "os valores centrais da civilização". Assim
agindo, fizeram uma sábia escolha, porque esses certamente são ideais bem
convincentes e sedutores. Esses valores sustentavam essas figuras, estavam
ameaçados não somente pelo fascismo, pelas ditaduras e pelo comunismo,
mas também por todas as formas de intervenção do Estado que substituíssem
os julgamentos de indivíduos dotados de livre escolha por juízos coletivos
[...] (p. 15).

Em seguida, questiona-se sobre qual tipo de liberdade esses autores se referem,


já que algo importante em relação à liberdade seria aonde ela leva as pessoas. Então,
relata o caso do Iraque, onde os Estados Unidos, após a invasão, promoveram radicais
reformas institucionais no sentido da neoliberalização:

Segundo a teoria neoliberal, os tipos de medidas esboçados por


Bremmer [chefe da autoridade provisória de coalizão no Iraque] eram tanto
necessários como suficientes para criar riqueza e, por conseguinte, melhorar
o bem-estar da população em geral. O pressuposto de que as liberdades
individuais são garantidas pela liberdade de mercado e de comércio é um
elemento vital do pensamento neoliberal e há muito determina a atitude
norte-americana para com o resto do mundo. O que os Estados Unidos
evidentemente buscaram impor com mão pesada ao Iraque foi um tipo
particular de aparelho de Estado cuja missão fundamental foi criar condições
favoráveis à acumulação lucrativa de capital pelos capitalistas domésticos e
estrangeiros. Dou a esse tipo de aparelho de Estado o nome de Estado
neoliberal [...] (p. 17).

Em seguida relata o caso do Chile, onde se experimentaram ideias neoliberais a


partir de um violento golpe de Estado no começo da década de 70. Harvey conclui,
contudo, que, apesar na influência da interferência americana na proliferação de
experiências neoliberais pelo mundo, essa não seria a sua única causa:

O fato de duas reestruturações tão obviamente semelhantes do


aparelho do Estado ocorrerem em épocas tão diferentes e em lugares
completamente diferentes do mundo sob a influência coerciva dos Estados
Unidos sugere que o sombrio alcance do poder imperial desse país pode ter
por fundamento a rápida proliferação de formas neoliberais de Estado em
todo o mundo a partir da metade dos anos 1970. Embora tenha ocorrido
indubitavelmente nos últimos trinta anos, isso está longe de ser toda a
história, como o mostra o componente doméstico da virada neoliberal no
Chile. Além disso, não foram os Estados Unidos que forçaram Margaret
Thatcher a seguir o pioneiro caminho neoliberal que ela seguiu em 1979.
Nem foram eles que obrigaram a China em 1978 a seguir a rota da
liberalização. Os encaminhamentos parciais rumo à neoliberalização da Índia
nos anos 1980 e na Suécia no começo dos anos 1990 não podem facilmente
ser atribuídos ao alcance imperial dos Estados Unidos [...] (p. 19).

Após a segunda guerra mundial, buscou-se impedir as condições que


viabilizaram o nazi-fascismo. Os países capitalistas lançaram-se, pois, na empreitada de
construir um modelo de desenvolvimento baseado em um Estado intervencionista, que
se fundava em um sistema de câmbio fixo, no qual o dólar era conversível em ouro a
um preço fixo.

Influenciados pelas ideias keynesianas, uma série de Estados tinham em comum


a orientação de sua política econômica para garantir o bem-estar da população e o pleno
emprego. Harvey caracteriza o paradigma como um “compromisso de classe”. O Estado
passou a ocupar o papel intervencionista na política industrial:

O que todas essas várias formas de Estado tinham em comum era a


aceitação de que o Estado deveria concentrar-se no pleno emprego, no
crescimento econômico e no bem-estar de seus cidadãos, e de que o poder do
Estado deveria ser livremente distribuído ao lado dos processos de mercado -
ou, se necessário, intervindo ou mesmo substituído tais processos - para
alcançar esses fins, e políticas fiscais e monetárias em geral caracterizadas
como "keynesianas" foram implantadas extensamente para suavizar os ciclos
de negócio e assegurar um nível de emprego razoavelmente pleno. Um
"compromisso de classe" entre o capital e o trabalho foi advogado geralmente
como o principal garante da paz e da tranqüilidade domésticas. Os Estados
intervieram ativamente na política industrial e passaram a estabelecer padrões
para o salário social, construindo uma variedade de sistemas de bem-estar
(cuidados de saúde, instrução etc.).
Essa forma de organização político-econômica é hoje denominada
normalmente "liberalismo embutido" [...] (p. 20).

Contudo, no final da década de 60, este modelo de desenvolvimento começa a


apresentar problemas:
Mesmo antes da guerra árabe-israelense e do embargo do petróleo da
OPEP de 1973, o sistema de taxas de câmbio fixas DCE Bretton Woods
baseado em reservas de ouro tinha se mostrado ineficaz. A porosidade das
fronteiras dos Estados com relação aos fluxos de capital pressionava o
sistema de taxas de câmbio fixas. Os dólares dos Estados Unidos tinham
inundado o mundo e escapado ao controle daquele país, sendo depositados
em bancos _europeus. As taxas de câmbio fixas foram abandonadas por causa
disso em 1971. O ouro não mais poderia funcionar como a base metálica da
moeda internacional; as taxas de juro passaram a ser flutuantes e as tentativas
de controlar a flutuação logo foram abandonadas (p. 22).

Uma estratégia adotada para lidar com a crise foi a adoção de políticas
corporativistas a fim de regular a economia. Diante de sua ineficiência, logo se
consolidou a polarização: de um lado aqueles que defendiam a intervenção estatal e de
outro aqueles que almejavam liberar o poder corporativo e restabelecer as liberdades de
mercado. Na metade da década de 70, este grupo passa para o primeiro plano.

Enquanto no pós-guerra predominava a ideia de que o poder econômico dos


mais ricos deveria ser restringido em benefício da classe trabalhadora, com a
implementação das políticas neoliberais a desigualdade aumentou sensivelmente. Nessa
parte do livro traz-se uma série de dados que comprovam esse aumento.

Por conseguinte, é possível entender o neoliberalismo a partir de duas


interpretações: como um projeto utópico de realizar um plano teórico ou como o
processo de restabelecimento das condições de acumulação de capital e de restauração
do poder das elites econômicas. Para Harvey o que predomina é a segunda
interpretação, o que, para ele, explica o porquê em certos momentos haver uma
contradição entre as decisões adotadas pelos governos neoliberais e a cartilha dos
teóricos desse movimento.

Ao tratar acerca da ascensão das ideias neoliberais, remonta-se ao grupo de


intelectuais que se reunia em torno de Friedrich von Hayek, a Mont Pelerin Society.
Dentre estes se encontravam Ludwig von Misses, Milton Friedman e, por algum tempo,
Karl Popper. Reivindicavam-se liberais no sentido europeu clássico do termo e o
pré-fixo “neo” deve-se ao fato de aceitarem os pressupostos da escola Neoclássica, que
surgiu na segunda metade do século XIX, em oposição às concepções de economia
política clássica, de Adam Smith e Ricardo, e das de sua crítica, de Karl Marx.

Alegavam que as decisões do Estado estavam fadadas à


tendenciosidade política, que dependia da força dos grupos de interesse
envolvidos (como os sindicatos, os ambientalistas ou os grupos de pressão
corporativos). As decisões do Estado em questões de investimento e
acumulação do capital estavam fadadas a ser erradas porque as informações à
disposição do Estado não podiam rivalizar com as contidas nos sinais do
mercado (p. 30).

Esse movimento intelectual, entretanto, não obstante tivesse obtido robusto


financiamento, permaneceu à margem das decisões políticas até a conturbada década de
1970, quando suas ideias ascenderam ao centro do debate, influenciando a tomada de
decisões especialmente na Grã-Bretanha e Estados Unidos, com Thatcher e Reagan.

Quando a “bruxa” chegou ao poder na Inglaterra, opôs-se às ideias keynesianas e


monetaristas que se baseavam em atacar a estagflação no lado da curva de oferta. Na
prática isso significou o desmantelamento do Estado social-democrata que havia sido
construído das décadas antecedentes:

Em maio desse ano [1979], Margareth Thatcher foi eleita na


Grã-Bretanha com a firme obrigação de reformar a economia. Sob a
influência de Keith Joseph, um publicista e polemista bem ativo, com fortes
vínculos com o neoliberal lnstitute of Economic Affairs, ela aceitou o
abandono do keynesianismo e a idéia de que as soluções monetaristas "do
lado da oferta" eram essenciais para curar a estagflação que marcara a
economia britânica naquela década. Thatcher reconhecia que isso significava
nada menos que uma revolução em políticas fiscais e sociais, e demonstrou
imediatamente uma forte determinação de acabar com as instituições e
práticas políticas do Estado socialdemocrata que se consolidara no país a
partir de 1945. Isso envolvia enfrentar o poder sindical, atacar todas as
formas de solidariedade social que prejudicassem a flexibilidade competitiva
(como as expressas pela governança municipal e mesmo o poder de muitos
profissionais e de suas associações), desmantelar ou reverter os
compromissos do Estado de bem-estar social, privatizar empresas públicas
(incluindo as dedicadas à moradia popular), reduzir impostos, promover a
iniciativa dos empreendedores e criar um clima de negócios favorável para
induzir um forte fluxo de investimento externo (particularmente do Japão) (p.
32).

Outro marco no processo de emersão das ideias neoliberais foi a política adotada
no FED por Paul Volcker:

Em outubro de 1979, Paul Volcker, presidente do Federal Reserve


Bank no governo Carter, promoveu uma mudança draconiana na política
monetária dos Estados Unidos. O compromisso de longa data do Estado
democrático liberal com os princípios do New Deal, que significava em
termos gerais políticas fiscais e monetárias keynesianas, e tinha o pleno
emprego como objetivo central, foi abandonado em favor de uma política
destinada a conter a inflação sem medir as conseqüências para o emprego.

O episódio conhecido como “Choque Volcker” foi fundamental para a imposição


do neoliberalismo, todavia, é necessário atentar-se para o fato de que a guinada para esta
concepção social-econômica não se baseou apenas na adoção do monetarismo, mas
também em transformações institucionais em diversas outras arenas. A intensa
desregulamentação da economia promovida por Reagan, por exemplo, abriu espaço para
a liberdade de mercado irrestrita e os interesses corporativos onde antes não havia um
regime de mercado, como na área das telecomunicações.

A elevação dos preços do petróleo pela OPEP e o embargo do petróleo foram


outros eventos marcantes nesse processo histórico. Frente às pressões geopolíticas do
imperialismo americano, os países petroleiros passaram a remeter seus ativos para
bancos americanos sediados em Nova York. Estes, com grandes recursos e poucas
opções de investimentos, passam a buscar os governos estrangeiros, ávidos por se
endividar. Nesse contexto os países em desenvolvimentos passam a se tornar demasiado
vulneráveis a flutuação da taxa de juros americana e de certa maneira “reféns” do FMI,
que passa a condicionar os empréstimos a draconianas reformas liberalizantes e de
desmantelamento do aparato de proteção social.

Assim, configura-se uma nova forma de poder imperial, na qual utiliza-se o


domínio financeiro para submeter os países tomadores de empréstimos a determinadas
políticas econômicas. Nas palavras de Harvey:

A restauração do poder a uma elite econômica ou classe alta nos


Estados Unidos e em outros países capitalistas avançados apoiou-se
pesadamente em mais-valia extraída do resto do mundo por meio de fluxos
internacionais e práticas de ajuste estrutural (p. 38).

No final do capítulo, empreende-se o esforço de identificar a classe que tem


protagonizado o empreendimento de restaurar o seu poder. Nesse sentido, identifica-se
uma série de continuidades e descontinuidades, por meio de processos deveras diversos,
a partir dos quais é difícil traçar paralelos.

Harvey tenta identificar algumas tendências. A primeira a ser identificada é a


fusão dos privilégios de propriedade e de gerências com a remuneração de CEOs por
ações. Isso fez com que o preço das ações se tornasse o guia da atividade econômica. A
segunda tendência se refere à redução da separação entre capital monetário e produtivo.
Assim, muitas corporações que antes se dedicavam à produção passaram a empreender
no setor financeiro. Prolifera-se uma gama de serviços financeiros:

Tudo isso se vinculava à forte expansão da atividade e do poder no


mundo financeiro. Cada vez mais liberta das restrições e barreiras
regulatórias que até então limitavam seu campo de ação a atividade financeira
pôde florescer como nunca antes, chegando a ocupar todos os espaços. Uma
onda de inovações ocorreu nos serviços financeiros para produzir não apenas
interligações globais bem mais sofisticadas como também novos tipos de
mercados financeiros baseados na securitização, nos derivativos e em todo
tipo de negociação de futuros. Em suma, a neoliberalização significou a
"financialização" de tudo. Isso aprofundou o domínio das finanças sobre
todas as outras áreas da economia, assim como sobre o aparato de Estado e,
como assinala Randy Martin, a vida cotidiana (p. 41).

Por fim, trazem-se alguns conceitos resgatados de Karl Polanyi, especialmente a


diferenciação entre as liberdades “ruins”, ou seja, a liberdade de se obter lucros a todo
custo, e as liberdades “boas”, em que pese, liberdade de expressão, opinião, escolher e
própria profissão, dentre outras. Polanyi entende que a liberdade de mercado irrestrita
faz com que haja um máximo de liberdade para aqueles que possuem renda para viver
confortavelmente e apenas um “verniz” àqueles que estão à margem. Arrematando o
capítulo, Harvey deixa o seguinte questionamento:

Como poderia ter dito Polanyi, o neoliberalismo proporciona direitos e


liberdades àqueles "que não precisam de melhoria em sua renda, seu tempo
livre e sua segurança", deixando um verniz para o resto de nós. Como então o
"resto de “nós" aquiesceu tão facilmente a esse estado de coisas? (p. 47).

CAPÍTULO 2: A CONSTRUÇÃO DO CONSENTIMENTO

A despeito de, em alguns lugares, o programa neoliberal ter sido implantado por
meio da violência e coerção, como no Chile e na Argentina, a imposição das ideias
neoliberais em tamanha escala só foi possível com a construção do consenso em ampla
camada da população. Para isso, Harvey aponta que houve um grande investimento na
produção de ideias, propaganda e cooptação de intelectuais e instituições:

Como então se gerou suficiente consentimento popular para legitimar


a virada neoliberal? Os canais por meio dos quais se fez isso foram
diversificados. Fortes influências ideológicas circularam nas corporações, nos
meios de comunicação e nas numerosas instituições que constituem a
sociedade civil – universidades, escolas, igrejas e associações profissionais.
A "longa marcha" das idéias neoliberais nessas instituições, que Hayek
concebera já em 1947, a organização de bancos de idéias (apoiados e
financiados por corporações), a cooptação de certos setores dos meios de
comunicação e a conversão de muitos intelectuais a maneiras neoliberais de
pensar - tudo isso criou um clima de opinião favorável ao neoliberalismo
como o garante exclusivo da liberdade. Esses movimentos mais tarde se
consolidaram com o domínio dos partidos políticos e, em última análise, o
poder do Estado (p. 49-50).

Ao discorrer sobre os movimentos que se espalharam pelo mundo a partir de


1968, conclui-se que havia neles um forte apelo às liberdades individuais. Por outro
lado havia igualmente um clamor por justiça social. Essas pulsões nem sempre são
compatíveis e, por vezes entram em conflito, ao que serve como exemplo a cisão entre o
movimento de esquerda tradicional e o movimento estudantil no levante de maio na
França. Esse conflito não é criado pelo neoliberalismo, que, entretanto, busca explorá-lo
e até mesmo fomentá-lo. Na década de 70, entretanto, sob a lógica do liberalismo
embutido, o Estado intervencionista aliado às grandes corporações mostrava-se como
um inimigo comum.

Como nos movimentos sociais que clamavam por liberdades individuais havia
também um clamor anti-corporações, que ameaçava a posição da classe dominante,
surgiu a demanda por uma estratégia que privilegiasse o enfoque individualista daquele
movimento, enfatizando a liberdade de escolha dos indivíduos enquanto consumidores,
agora não apenas de produtos, mas de ideias e estilos de vida. Ao encontro dessa
demanda caem como uma luva as ideia pós-modernas. Essa teria sido a tarefa para a
qual teria se orientado a classe dominante a partir na década de 80:

Tomando ideais de liberdade individual e virando-os contra as práticas


intervencionistas e regulatórias do Estado, os interesses da classe capitalista
podiam alimentar a esperança de proteger e mesmo restaurar sua posição. O
neoliberalismo era bem adequado a essa tarefa ideológica, precisando porém
da sustentação de uma estratégia prática que enfatizasse a liberdade de
escolha do consumidor, não só quanto a produtos particulares, mas também
quanto a estilos de vida, formas de expressão e uma ampla gama de práticas
culturais (p. 52).

Assim, resgatando uma carta de Lewis Powell à Câmara de Comércio dos


Estados Unidos, demonstra-se que a classe dominante não só tinha conhecimento desse
movimento, como ele ocorreu de forma ampla, organizada e fortemente financiada a fim
de moldar o senso comum segundo os ditames neoliberais. A própria Câmara de
Comércio, por exemplo, que passara por grande expansão no número de empresas
integrantes, financiou e articulou uma série de pesquisas e propaganda a fim de
propagar e desenvolver esse ideário.

Uma das alternativas que surgem como respostas à crise de acumulação por que
passava a classe burguesa foi a reestruturação que se deu a partir da crise fiscal na
cidade de Nova Iorque. Os efeitos da reconfiguração da economia e desindustrialização
eram lá sentidos como em muitas cidades estadunidenses. Para contê-los, a estratégia
inicialmente adotada foi o aumento do número de empregos e serviços públicos. Nixon,
em sua gestão, entretanto, declarou que a crise urbana que vinha se estendendo por anos
havia acabado e cessou a ajuda governamental.

Por um tempo cobriu-se o déficit com o endividamento, porém, em determinado


momento, um grupo de banqueiros liderados por Walter Wriston do City Bank negou-se
a conceder novos empréstimos, escrachando-se, assim, o problema fiscal.

A solução encontrada para resgatar a situação fiscal da cidade foi o


estabelecimento de novas instituições com total liberdade de gestão dos recursos
públicos, canalizando as receitas, primeiramente para o pagamento dos acionistas. O
saldo remanescente seria utilizado para cobrir os serviços essenciais:

O resgate que se seguiu envolveu a construção de novas instituições


que assumiram a administração do orçamento da cidade. Elas tinham total
liberdade de gestão das receitas de impostos a fim de pagar em primeiro lugar
os acionistas, ficando o que restasse para ser empregado em serviços
essenciais (p. 55).

Dessa forma, mesmo que por vias democráticas, a classe burguesa logrou
realizar uma reforma institucional que se pode dizer análoga ao que foi realizado a partir
do golpe militar no Chile:

Isso foi equivalente a um golpe das instituições financeiras contra o


governo democraticamente eleito da cidade de Nova York, e tão eficaz
quanto o golpe militar que ocorrera antes no Chile. Em meio a uma crise
fiscal fez-se uma redistribuição da riqueza favorável às classes altas (p. 55)

O resultado disso foi o retrocesso social e a precarização da infraestrutura


urbana, como o transporte subterrâneo, por exemplo. Por outro lado, aquelas
infraestruturas destinadas a gerar um clima de negócios favoráveis, atrair turistas e gerar
condições propícias às corporações ganharam prioridade, contando com forte
investimento.

Assim, pode-se afirmar que o ajuste fiscal nessa cidade serviu de balão de ensaio
para uma nova concepção de Estado, em que a gestão pública assume um papel de
empreendedora: o bem-estar corporativo toma o lugar do bem-estar social. Logo as
práticas adotadas nessa experiência foram levadas para o âmbito federal e internacional,
influenciando as ações da gestão Reagan:

A administração da crise fiscal de Nova York abriu pioneiramente o


caminho para práticas neoliberais, tanto domesticamente, sob Reagan, como
internacionalmente por meio do FMI na década de 1980. Estabeleceu o
princípio de que, no caso de um conflito entre a integridade das instituições
financeiras e os rendimentos dos detentores de títulos, de um lado, e o
bem-estar dos cidadãos, de outro, os primeiros devem prevalecer. Acentuou
que o papel do governo é criar um clima de negócios favorável e não cuidar
das necessidades e do bem-estar da população em geral. A política do
governo Reagan nos anos 1980, conclui Tabb, foi "apenas o cenário de Nova
York" dos anos 1970 "bastante ampliado” (p. 58).

O processo pelo qual essas ideias tomaram proporções nacionais, todavia,


requeria o apoio de uma sólida base popular. Ao encontro disso, na década de 70,
editou-se uma série de decisões da Suprema Corte permitindo o financiamento de
campanhas por parte de corporações. Estas, por meio dos Comitês de Ação Política
(CAPs) passaram a injetar pesados recursos nos partidos, tanto o Republicano como o
Democrata, tornando o primeiro, nas palavras de Harvey, “um instrumento particular
seu” (p. 58).

Como estratégia política, os republicanos apelaram para o fundamentalismo


cristão e para o nacionalismo branco. Essa parcela da população, mesmo que, muitas
vezes, possuindo interesses diametralmente opostos ao programa neoliberal, foi levada,
por motivos culturais e religiosos, a cumprir o papel de sua base de apoio social. Os
democratas, por outro lado, viam-se divididos. Embora a base do partido fosse
tradicionalmente ligada a grupos oprimidos, como negros, imigrantes, homossexuais e
operários, dependia, em grande medida, do financiamento de grandes corporações.
Assim, por esta questão e também pela divisão dos grupos que integravam sua base
popular, via-se impedido de levar a cabo um programa anti-corporativo ou
anti-capitalista.

Tal contradição evidenciou-se na gestão Clinton que, entre os interesses do


capital e de seus eleitores optou pelos primeiros:

Diante da necessidade de superar um imenso déficit e relançar o


crescimento econômico, o único caminho econômico viável para ele
[Clinton] era reduzir o déficit para baixar as taxas de juros. Isso significava
ou uma taxação ponderavelmente alta (equivalente ao suicídio eleitoral) ou
cortes no orçamento. Fazer esta última opção significava, como disseram
Yergin e Stanislaw, "trair seu eleitorado tradicional para paparicar os ricos"
(p. 61).
Assim, dotado de financiamento e capaz de mobilizar ampla camada da
população a partir de questões culturais e religiosas, o Partido Republicano apresentava
sólida hegemonia, em contraposição ao Partido Democrata, que, incapaz de atender às
necessidades materiais de sua base de apoio, via-se fragilizado. Com a ascensão de
Reagan à presidência, portanto, deu-se o primeiro passo no sentido de consolidar as
condições que permitiram a virada para o monetarismo, perpetrada por Volcker.

Chegando ao poder, o republicano agiu no sentido de permitir a


desregulamentação do capital, enquanto apertava o cerco contra o trabalho organizado,
promovendo uma cruzada contra os sindicatos. Num cenário de altos índices de
desemprego e de migração de indústrias para outras regiões, dentro do próprio país ou
até mesmo fora dele, como o Sul e Sudeste asiático, estavam dadas condições propícias
para a redução de direitos sociais.

Essa empreitada precisava, pois, de uma boa explicação e muitos foram os


argumentos levantados. Como ponto em comum entre eles havia a ideia de que a
intervenção estatal na economia era mais viciosa que benéfica e que uma política
monetária estável e a redução de tributos para as faixas de renda mais altas resultaria em
um cenário econômico mais saudável:

O ponto comum mais aceitável desses argumentos era a alegação de


que a intervenção do governo era antes o problema do que a solução, e que
"uma política monetária estável associada a radicais cortes de impostos nas
faixas mais altas produziria uma economia mais saudável" ao manter os
incentivos à atividade empreendedora corretamente alinhada (p. 64).

Acerca da instauração da experiência neoliberal na Grã-Bretanha, Harvey


destaca que a configuração por meio da qual ela ocorreu foi totalmente distinta. Isso
porque além de haver uma cultura política bastante diferente, na Inglaterra existia o
Partido Trabalhista, que por décadas foi um instrumento de luta da classe trabalhadora.
Ademais, lá o estado de bem-estar social era muito mais consolidado:

O poder corporativo britânico é pouco inclinado a apoiar o ativismo


político aberto (suas contribuições aos partidos políticos foram mínimas),
preferindo em vez disso exercer influência direta mediante as redes de classe
e privilégio que há muito vinculam governo, academia, poder judiciário e
funcionalismo público estável (que na época ainda mantinha sua tradição de
independência) com os líderes da indústria e da finança. A situação política
também apresentava radicais diferenças, dado que o Partido Trabalhista fora
construído em larga medida como instrumento do poder da classe
trabalhadora, sob a vigilância de sindicatos fortes e por vezes bem militantes.
Assim, desenvolveu-se naquele país uma estrutura de bem-estar social bem
mais elaborada e abrangente do que se sonhou algum dia nos Estados Unidos
(p. 65).
Na ilha britânica, o capital financeiro há tempos já exercia grande influência, com a City de
Londres, e, a despeito da perda de influência a nível mundial ocasionada pela descolonização, o domínio
financeiro ainda era um resquício remanescente do império. Assim, conclui-se que nas décadas anteriores
a Thatcher, já havia uma contradição latente entre o capital produtivo e o capital financeiro:

Surgiram contradições entre o liberalismo embutido instaurado


domesticamente e o liberalismo de livre mercado do capital financeiro com
base em Londres que operava no plano mundial. A City de Londres, o centro
financeiro, havia muito favorecia políticas monetaristas em vez de
keynesianas, formando assim um bastião de resistência ao liberalismo
embutido (p. 66).
Todavia, o fator determinante para a eclosão do projeto de Thatcher foi a crise de acumulação do
capital nos anos 70. Com desemprego, inflação alta e estagnação econômica, eclodiu a greve dos
mineiros que culminou na queda do governo do Partido Conservador e a tomada do poder pelo Partido
Trabalhista, que findou a greve firmando um acordo favorável aos trabalhadores. Ocorre que, não
conseguindo honrar as suas condições e frente a uma calamitosa situação econômica, o governo
trabalhista recorreu ao FMI, cedendo aos seus ditames de restrições orçamentárias, priorizando, assim, a
integridade da moeda aos interesses de sua base eleitoral.

Nesse contexto, os trabalhadores fazem um novo levante, com greves em diversos setores. A
mídia passa a atacar ferrenhamente os sindicatos e a opinião pública começa a mudar de lado: nas
eleições seguintes Margaret Thatcher ascende ao cargo de primeira-ministra.

A respeito de sua gestão, afirma-se que assim como Regan o foco foi nas relações de trabalho e
no combate à inflação. As altas taxas de juros aumentaram o desemprego, enfraquecendo a organização
dos trabalhadores. Tal qual o presidente americano fez com o sindicato dos controladores de voo,
Thatcher fez com os mineiros, esmagando a greve que durou quase um ano. Abriu-se o país para
investimentos externos, ponto as indústrias tradicionais, onde se concentravam os trabalhadores
organizados, em grandes dificuldades _ e até mesmo acabando com certos setores. O saldo de tudo isso,
ao final de seus mandatos, foi a redução do nível dos salários e uma classe trabalhadora “relativamente
obediente”: “Ela erradicara a inflação, controlara o poder sindical, dominara a força de trabalho e, no
processo, construíra para suas políticas o consentimento da classe média (p.59).”

CAPÍTULO 3: O ESTADO NEOLIBERAL

Neste capítulo discorre-se a respeito das características de um Estado aos ditames do


Neoliberalismo. Esta doutrina presa por direitos de propriedade e livre circulação de mercadoria,
restringindo a atuação do Estado ao papel de garantir as condições para o adequado funcionamento do
mercado.

De acordo com a teoria, o Estado neoliberal deve favorecer fortes


direitos individuais à propriedade privada, o regime de direito e as
instituições de mercados de livre funcionamento e do livre comércio. Trata-se
de arranjos institucionais considerados essenciais à garantia das liberdades
individuais. O arcabouço legal disso são obrigações contratuais livremente
negociadas entre indivíduos juridicamente configurados no âmbito do
mercado (p. 75).
Assim, ao se estabelecerem tais condições, a concorrência entre os agentes
econômicos tenderia a levar a um progresso generalizado. O livre mercado e a livre
concorrência seriam, pois, o caminho mais adequado para o combate à pobreza. Para
isso, caberia ao Estado atuar no sentido de garantir clareza e estabilidade para a forma
de funcionamento do mercado, estabelecendo-se direitos de propriedade sólidos. Um
dos pontos de convergência destes teóricos é a defesa da privatização de ativos.

A competição - entre indivíduos, entre empresas, entre entidades


territoriais (cidades, regiões, países, grupos regionais) - é considerada a
virtude primordial. Naturalmente, as regras de base da competição no
mercado têm de ser adequadamente observadas. Em situações nas quais essas
regras não estejam claramente estabelecidas, ou em que haja dificuldades
para definir os direitos de propriedade, o Estado tem de usar seu poder para
impor ou inventar sistemas de mercado (como a negociação de direitos de
poluição).
[...]
O sucesso e o fracasso individuais são interpretados em termos de
virtudes empreendedoras ou de falhas pessoais [...] (p. 76)

Há, contudo, um sentimento de desconfiança em relação à democracia, vendo na


influência de grupos de interesse uma ameaça a prerrogativas e garantias
constitucionais. Há a tendência de relegar a solução de conflitos à arena judicial.

Não obstante exista convergência de pensamento em determinados pontos, as


teorias neoliberais padecem de uma série de tensões e contradições. A primeira questão
trazida pelo autor refere-se a questão dos monopólios, pois a concorrência entre agentes
econômicos por ventura acaba tendo “vencedores” que expulsam do mercado seus
concorrentes mais fracos, afunilando a oferta:

Em primeiro lugar, há o problema da interpretação do poder de


monopólio. A competição costuma resultar no monopólio ou no oligopólio à
medida que empresas mais fortes vão expulsando do mercado empresas mais
fracas. (p. 77)

A maioria dos teóricos neoliberais não vê nisso um problema, porém quando se


fala dos ditos “monopólios naturais” o assunto torna-se mais controverso. Isso porque,
em determinados setores da economia o modelo de concorrência em mercado não é
aplicável em sua forma por excelência, como no caso de fornecimento de água, gás ou
transporte ferroviário, isso porque não faz sentido ter várias empresas que mantêm
várias redes de gás ou água, ou várias vias ferroviárias entre os mesmos lugares. Nesses
setores, é comum que haja abuso por parte das empresas privadas que assumem tais
serviços.
Outra questão latente é a das externalidades negativas, que ocorrem quando as
empresas tiram seus passivos do mercado de modo a socializar os prejuízos decorrentes
de sua atividade econômica. Há também a questão das falhas competitivas, quando os
custos da concorrência promovem um arranjo dos recursos de tal modo que estes ficam
subutilizados ou são usados de maneira duplicada e desnecessária.

A segunda grande área de controvérsia tem a ver com o fracasso de


mercado. Isso acontece quando os indivíduos e empresas evitam pagar todos
os custos que lhes cabem tirando do mercado seus passivos (no jargão
técnico, os passivos são "externalizados") (p. 78)
As falhas competitivas são abordadas de maneira semelhante. Pode-se
incorrer em custos crescentes de transação com a proliferação de relações
contratuais e subcontratuais (terceirizadas). (p. 78)

Como solução para tais problemas, a maioria dos neoliberais aponta como
resposta mecanismos de mercado ou até mesmo a inação, sob o argumento de que “o
remédio seria pior que a doença”.

Outro ponto de fragilidade é a pressuposição de que todos os agentes econômicos


possuem igualdade de informações e tomam decisões de maneira racional:

Presume-se que todos os agentes que operam no mercado tenham


acesso às mesmas informações, assim como se presume que não haja
assimetrias de poder ou de informações que interfiram na capacidade dos
indivíduos de tomar decisões econômicas racionais em seu próprio benefício.
(p. 78)

Há também a tendência de acreditar-se que para todos os problemas existe uma


solução a partir da inovação tecnológica, superestimando-se esse aspecto, sem contudo
levar em conta as consequências sociais:

Há, portanto, um vínculo constitutivo entre dinamismo tecnológico,


instabilidade, dissolução de solidariedades sociais, degradação ambiental,
desindustrialização, aceleradas mudanças das relações espaço-tempo, bolhas
especulativas e a tendência geral de formação de crises no capitalismo. (p.
79)

Contraditória também é a ideia de que todos são livres para escolher, porém
estritamente dentro dos parâmetros mercadológicos. A liberdade passa a ser mal vista
quanto confronta os interesses das instituições de mercado:

Embora se suponha que os indivíduos sejam livres para escolher, não


se supõe que eles escolham construir instituições coletivas fortes (como
sindicatos) em vez de associações voluntárias fracas (como instituições de
caridade). Os indivíduos com toda certeza não deveriam escolher associar-se
para criar partidos políticos voltados para forçar o Estado a intervir no
mercado ou eliminá-lo. Para defender-se de seus maiores temores - o
fascismo, o comunismo, o socialismo, o populismo autoritário e mesmo o
regime da maioria-, os neoliberais têm de impor fortes limites à governança
democrática, apoiando-se em vez disso em instituições não-democráticas e
que não prestam contas a ninguém (como o Banco Central norte-americano e
o FMI) para tomar as decisões essenciais. (p. 79-80)

No que se refere ao Estado neoliberal na prática, contudo, Harvey destaca a


dificuldade em identificar características comuns dentre as experiências:

O caráter geral do Estado na era da neoliberalização é de difícil


descrição por duas razões específicas. Em primeiro lugar, tornam-se
rapidamente evidentes desvios do modelo da teoria neoliberal, não se
podendo atribuir todos eles às contradições internas já esboçadas. Em
segundo, a dinâmica evolutiva da neoliberalização tem agido de modo a
forçar adaptações que variam muito de lugar para lugar e de época para época
(p. 80)

Nessa empreitada, o primeiro traço identificado é o direcionamento do aparato


estatal na tarefa de criar um clima favorável aos negócios: “O primeiro vem da
necessidade de criar um "clima de negócios ou de investimentos favorável" para
empreendimentos capitalistas.” (p. 81). Esta tarefa torna-se prioridade e, em caso de
conflito com outras questões que sejam postas ao Estado, deve ser priorizada:

Em caso de conflito, o Estado neoliberal típico tende a ficar do lado


do clima de negócios favorável em detrimento seja dos direitos (e da
qualidade de vida) coletivos do trabalho, seja da capacidade de
auto-regeneração do ambiente. O segundo campo de vícios vem do fato de
que, em caso de conflito, os Estados neoliberais tipicamente favorecem a
integridade do sistema financeiro e a solvência das instituições financeiras e
não o bem-estar da população ou a qualidade ambiental. (p. 81)

Não obstante, Harvey observa que, de acordo com o jogo de forças políticas em
cada caso, ocorre de políticos entusiastas das medidas neoliberais tomarem medidas em
sentido oposto: seja para proteger interesses comerciais específicos ou para manter sua
base de apoio. Nesse sentido, cita-se o exemplo dos países desenvolvimentistas do
continente asiático, que compatibilizam o processo de neoliberalização com a
consecução de um projeto de intervenção econômica e investimentos em setores do
bem-estar social estratégicos para a economia, como a educação:

Os Estados desenvolvimentistas se compatibilizam com a


neoliberalização na medida em que facilitam a competição entre empresas,
corporações e entidades territoriais, aceitam as regras do livre comércio e
recorrem a mercados de exportação abertos. Mas são ativamente
intervencionistas na criação das infra-estruturas necessárias ao clima de
negócios favorável. Assim, a neoliberalização abre possibilidades para que
eles melhorem sua posição na competição internacional mediante a criação
de novas estruturas de intervenção do Estado (como apoio à pesquisa e
desenvolvimento). Contudo, ao mesmo tempo, a neoliberalização cria
condições para a formação de classes, e à medida que esse poder de classe
aumenta também aumenta a tendência (na Coréia contemporânea, por
exemplo) de essa classe buscar liberar-se do poder de Estado e reorientá-lo
em termos neoliberais. (p. 82)
Destaca que, por mais que as práticas neoliberais não sejam abraçadas
inteiramente, as instituições internacionais, como FMI e OMC tendem a “enquadrar”
esses Estados nos ditames da neoliberalização.

Harvey aponta que o ponto onde se torna mais evidente a contradição entre a
teoria neoliberal e a prática é o setor financeiro, onde por um lado o Estado atua no
sentido de desregulamentá-lo, porém, frente a qualquer instabilidade, logo surge como
garantidor, intervindo sem exitar:

Talvez as práticas contemporâneas relativas ao capital financeiro e às


instituições financeiras sejam as mais difíceis de conciliar com a ortodoxia
neoliberal. Os Estados neoliberais tipicamente facilitam a difusão da
influência das instituições financeiras por meio da desregulação; mas também
é muito comum que garantam a todo o custo a integridade e a solvência de
tais instituições. (p. 83)

No plano internacional destaca-se o papel do FMI e Banco Mundial, que atuam no


sentido de suprir as incertezas e proteger da falência as principais instituições
financeiras internacionais, o que se apresenta em latente contradição com os princípios
da ortodoxia liberal. Assim, houve pressões no sentido de extinguir o FMI, por
exemplo, entretanto, no governo Reagan, o fundo fortaleceu sua atuação, sendo
utilizado, inclusive para impor o receituário da nova ortodoxia:

Em consequência, neoliberais mais fundamentalistas acreditam que o


FMI deveria ser abolido, uma alternativa seriamente considerada nos
primeiros anos do governo Reagan e que foi aventada de novo em 1988 pelos
republicanos no Congresso. James Baker, secretário do Tesouro de Reagan,
deu novo fôlego à instituição quando se viu diante da potencial falência do
México e de grandes perdas para os principais bancos de investimento da
cidade de Nova York que detinham a dívida mexicana em 1982. Ele usou o
FMI para impor ao México o ajuste estrutural e assim proteger da falência os
banqueiros de Nova York. Essa prática de priorizar as necessidades dos
bancos e instituições financeiras e ao mesmo tempo diminuir o padrão de
vida do país devedor teve como evento pioneiro a crise da dívida da cidade
de Nova York. (p. 83-84)

Sobre essa latente contradição, o autor afirma que:

Mas o hábito de intervir no mercado e resgatar instituições financeiras


quando estas passam por problemas não pode ser compatibilizado com a
teoria neoliberal. Investimentos feitos sem cautela deveriam ser punidos com
perdas ao emprestador, mas o Estado torna os emprestadores largamente
imunes a perdas, devendo os tomadores pagar em seu lugar, seja qual for o
custo social decorrente. (p. 84)

No que se refere à questão do mercado de trabalho, a postura dos Estados


neoliberais direciona-se no sentido de reprimir e desincentivar qualquer empreitada no
sentido de solidariedade social. Coloca-se ênfase na ideia de flexibilidade e do
trabalhador enquanto indivíduo:
No plano doméstico, o Estado neoliberal é necessariamente hostil a
toda forma de solidariedade social que imponha restrições à acumulação do
capital. Sindicatos independentes ou outros movimentos sociais (como o
socialismo municipal do tipo de Greater London Council), que adquiriram
substancial poder sob o liberalismo embutido, têm, portanto, de ser
disciplinados, se não destruídos - em nome da supostamente sacrossanta
liberdade individual do trabalhador isolado. (p. 85)

Há uma redução no bem-estar social, e o discurso dominante é no sentido de que o


trabalhador individual é responsável pelo seu próprio bem-estar.

Por outro lado, caso tal estratégia de individualismo seja inexitosa ao controlar a
mão-de-obra, observa-se que não se exita em utilizar a força repressora do Estado e
policiamento:

Se necessário, o Estado neoliberal além disso recorre a legislações


coercivas e táticas de policiamento (por exemplo, regras antipiquete) para
dispersar ou reprimir formas coletivas de oposição ao poder corporativo. As
maneiras de vigiar e policiar se multiplicam: nos Estados Unidos, a prisão se
tornou uma estratégia-chave do Estado para resolver problemas que surgem
entre trabalhadores descartados e populações marginalizadas. O braço
coercivo do Estado é fortalecido para proteger interesses corporativos e, se
necessário, reprimir a dissensão. (p. 84)

Assim, constata-se que o grande temor dos teóricos neoliberais, de que interesses
corporativos tomem de assalto o aparelho de Estado moldando-o aos seus interesses
corporativos, realiza-se plenamente no centro do poder estadunidense, onde há uma
relação promíscua entre Estado e grandes corporações. Após esse exemplo, afirma-se
que:

Esse relato nos permite ver com clareza que o neoliberalismo, ao


contrário do que dizem alguns comentadores da direita e da esquerda, não
torna irrelevante o Estado nem instituições particulares do Estado (como os
tribunais e as funções de polícia) Tem havido no entanto uma radical
reconfiguração das instituições e práticas do Estado (em especial com
respeito ao equilíbrio entre coerção e consentimento, entre os poderes do
capital e os dos movimentos populares, e entre o poder executivo e o poder
judiciário, de um lado, e os poderes da democracia representativa, de outro).
(p. 89)

Ou seja, na prática, tal modelo de sociedade não é avesso à atuação do Estado,


desde que ela atenda às pretensões do projeto de restauração de poder de classe.

A seguir, transcreve-se um trecho no qual Harvey sintetiza o que entende serem


contradições específicas do Neoliberalismo que merecem destaque:

1. De um lado, espera-se que o Estado neoliberal assuma um poder


secundário e simplesmente monte o cenário para as funções do mercado.
Porém, de outro, espera-se que ele seja ativo na criação de um clima de
negócios favorável e se comporte como entidade competitiva na política
global. Neste último papel, ele tem de funcionar como corporação coletiva, o
que evoca o problema de como garantir a lealdade dos cidadãos. O
nacionalismo é uma resposta óbvia, mas é profundamente antagônico ao
programa neoliberal. Foi esse o dilema de Margaret Thatcher, pois foi só ao
jogar a carta do nacionalismo na guerra das Falklands/Malvinas e, o que é
mais relevante, na campanha contra a integração econômica com a Europa
que ela conseguiu se reeleger e promover mais reformas neoliberais no plano
doméstico. Repetidas vezes, seja na União Européia, no Mercosul (em que os
nacionalismos brasileiro e argentino inibem a integração), no NAFTA
(Tratado Norte-Americano de Livre Comércio) ou na ASEAN (Associação
dos Países do Sudeste Asiático), o nacionalismo necessário para que o Estado
funcione efetivamente como entidade corporativa e competitiva no mercado
mundial atrapalha as liberdades de mercado mais gerais. .
2. O autoritarismo na colocação em prática do mercado não combina
muito com ideais de liberdades individuais. Quanto mais o neoliberalismo se
inclina para aquele, tanto mais difícil se torna manter sua legitimidade com
relação a estes últimos, e tanto mais ele tem de revelar suas nuanças
antidemocráticas. Essa contradição tem como paralelo uma crescente falta de
simetria nas relações de poder entre corporações e pessoas como você e eu.
Se o poder corporativo rouba sua liberdade pessoal, o neoliberalismo se reduz
a nada. Isso se aplica aos indivíduos tanto no local de trabalho como no
espaço vital. Uma coisa é, por exemplo, sustentar que meu status em termos
de assistência à saúde depende de minha escolha e de minha responsabilidade
pessoais, mas outra bem diferente é a situação em que a única maneira de eu
poder atender às minhas necessidades no mercado é pagar prêmios de seguro
exorbitantes a empresas de seguro-saúde gargantuescas, altamente
burocratizadas e altamente lucrativas. E, quando essas empresas chegam a ter
o poder de definir novas categorias de doenças a ser tratadas por novas
drogas que chegam ao mercado, alguma coisa está claramente errada. Nessas
circunstâncias, manter a legitimidade e o consentimento se torna, como
vimos no capítulo, um ato de equilíbrio ainda mais difícil que pode se
desmontar por completo quando as coisas começam a dar errado.
3. Embora possa ser essencial preservar a integridade do sistema
financeiro, o individualismo irresponsável e auto-engrandecedor de
operadores no seu âmbito produz volatilidade especulativa, escândalos
financeiros e instabilidade crônica. Os escândalos ele Wall Street e da
contabilidade "criativa" de anos recentes solapa a confiança e deixou as
autoridades reguladoras diante de série de problemas sobre como e quando
intervir no plano internacional e no local. O livre comércio internacional
requer algumas regras globais do jogo, o que impõe a necessidade de alguma
espécie de governança global (por exemplo, pela OMC). A desregulação do
sistema financeiro facilita comportamentos que exigem re-regulação para
evitar crises.
4. Embora as virtudes da competição recebam prioridade máxima, a
realidade mostra uma crescente consolidação de poder oligopolista,
monopolista e transnacional nas mãos de umas poucas corporações
multinacionais centralizadas: o mundo da competição dos refrigerantes se
reduz a Coca-Cola versus Pepsi, a indústria de energia se restringe a cinco
enormes corporações transnacionais, e uns poucos magnatas da mídia
controlam o fluxo de notícias, boa parte das quais se torna pura propaganda.
5. No nível popular, o ímpeto para as liberdades de mercado e a
mercadificação de tudo pode sair bem facilmente do controle e produzir
incoerência social. A destruição de formas de solidariedade social e mesmo,
como sugeriu Thatcher, da própria idéia de sociedade deixa na ordem social
um imenso hiato.Torna-se então peculiarmente dificil combater a anomia e o
controle dos comportamentos anti-sociais resultantes, como a criminalidade,
a pornografia ou a virtual escravização de outras pessoas. A redução das
"liberdades" à "liberdade de empreendimento" desencadeia todas as
"liberdades negativas" que Polanyi considerou inextricavelmente ligadas às
liberdades positivas. A reação inevitável é reconstruir solidariedades sociais,
embora seguindo linhas distintas o que explica o renascimento do interesse
pela religião e pela moralidade, por novas formas de associacionismo (em
torno de questão de direitos e cidadania, por exemplo) e mesmo o retorno de
antigas formas políticas (fascismo. nacionalismo, localismo e coisas do tipo)
(p. 89-91)

Ao constatar a instabilidade característica ao Estado neoliberal, Harvey afirma


que há indícios de que uma possível resposta que tem se apresentado a essa questão é o
Neoconservadorismo. As raízes desse movimento possuem íntima relação com o
Neoliberalismo e é comum que estejam acompanhados, tal como a estratégia política
adotada por Reagan.

Assim, dentre os dois fenômenos é possível traçar semelhanças, em relação a


defesa do poder corporativo, propriedade privada e o processo de restauração de poder
de classe, por exemplo, bem como diferenças, especialmente no que tange ao discurso
acerca das liberdades individuais:

Os neoconservadores americanos são favoráveis ao poder corporativo,


à iniciativa privada e à restauração do poder de classe. O
neoconservadorismo é, portanto, perfeitamente compatível com o programa
neoliberal de governança pela elite, desconfiança da democracia e
manutenção das liberdades de mercado. Mas ele se afasta dos princípios do
puro neoliberalismo, tendo remoldado práticas neoliberais em dois aspectos
fundamentais: em primeiro lugar, na preocupação com a ordem como
resposta aos caos de interesses individuais e, em segundo, na preocupação
com uma moralidade inflexível como o cimento social necessário à
manutenção da segurança do corpo político vis-à-vis de perigos externos e
internos. (p. 92)

Um ponto característico do Neoconservadorismo é o ode ao militarismo,


entendendo-o como uma saída para o caos individualista, consequência inerente ao
programa neoliberal:

Diante disso, algum grau de coerção parece necessário à restauração


da ordem. Os neoconservadores enfatizam assim a militarização como
remédio para o caos dos interesses individuais. Por esse motivo, mostra-se
mais propensos a acentuar ameaças, reais ou imaginadas, nos planos
doméstico e externo, à integridade e à estabilidade do país. (p. 93)

Dessarte, o neoconservadorismo apresenta-se como uma solução para uma grande


contradição latente do neoliberalismo, contudo, sem se afastar de seu projeto
primordial: a restauração de poder de classe. Nesse sentido:

O que os neoconservadores fazem é mudar a "maneira peculiar"


mediante a qual essas questões entram no debate, tendo por meta se contrapor
ao efeito dissolutivo do caos de interesses individuais que o neoliberalismo
costuma produzir. De modo algum se afastam do programa neoliberal de
construção ou restauração do poder de alguma classe dominante. Contudo,
buscam legitimar esse poder, assim como buscam o controle social, por meio
da construção de um clima de consentimento que gira em torno de um
conjunto coerente de valores morais. (p 94)
Portanto, é plenamente concebível uma aliança, em que o discurso
neoconservador é instrumentalizado para viabilizar arranjas políticos aptos a viabilizar
tal programa, como na coalizão específica constituída nos anos 70 entre a elite e os
interesses de negócio, de um lado, e a “maioria moral” da classe traabalhadora branca
ressentida, de outro. (p. 94)

Seguindo esse mesmo mecanismo, observa-se que é possível que, de igual modo,
se instrumentalize o nacionalismo, não obstante, nos seus primórdios o Neoliberalismo
tenha buscado dele se afastar. Assim, Harvey aponta os perigos desse cenário onde se
une a ideia de superioridade moral de uma nação com a disposição de se recorrer a
draconianas práticas coercitivas (p. 96).

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