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O neoliberalismo em debate1*

FRANCISCO JOSÉ SOARES TEIXEIRA

1. Introdução

O neoliberalismo nasceu logo depois da Segunda Grande Guerra mundial, nos principais
países do mundo do capitalismo maduro. Nasceu como uma reação teórica e política ao modelo
de desenvolvimento centrado na intervenção do Estado. que passou a se constituir, desde então,
na principal força estruturadora do processo de acumulação de capital e de desenvolvimento
social.21 Considerando essa intervenção como a principal crise do sistema capitalista de
produção, os neoliberais passaram a atacar qualquer limitação dos mecanismos de mercado por
parte do Estado, denunciando tal limitação como uma ameaça letal à liberdade econômica e
política.32
É nesse sentido que os neoliberais vão retomar a tese clássica de que o mercado é a única
instituição capaz de coordenar racionalmente quaisquer problemas sociais, sejam eles de
natureza puramente econômica ou política. Daí a preocupação básica da teoria neoliberal em
mostrar o mercado como um mecanismo insuperável para estruturar e coordenar as decisões de
produção e investimento sociais.43 Consequentemente, mecanismo indispensável para solucionar
os problemas de emprego e renda na sociedade.
Muito embora o neoliberalismo tenha surgido como uma reação localizada ao Estado
intervencionista e de bem-estar, ele nasce como um fenômeno de alcance mundial. Com efeito,
depois da Segunda Grande Guerra, assiste-se a um processo crescente de sincronização
internacional do ciclo industrial,54 de tal forma que os movimentos conjunturais de acumulação
de capital afetam indistintamente qualquer país. O desdobramento desse processo encontra seu
ponto máximo de desenvolvimento com a mundialização dos circuitos financeiros, que criam um
único mercado de dinheiro, virtualmente livre de qualquer ação de governos nacionais.65 De
sorte que, assim sendo, dizem, a transnacionalização do sistema capitalista de produção
representou a morte do Estado, isto é, seu poder de fazer políticas econômicas e sociais e forma
autônoma e soberana.
Esse contexto histórico em que nasce o neoliberalismo transforma a teoria neoliberal numa
teoria de alcance prático universal. Seu programa de ação, que é fazer do mercado a única
instância a partir de onde todos os problemas da humanidade podem ser resolvidos, torna-se, por
isso mesmo, um credo mundial que deve ser abraçado por qualquer país. Dessa perspectiva,

1
* Do livro: “Neoliberalismo e reestruturação produtiva – as novas determinações do mundo do trabalho” –
Francisco J. S. Teixeira e Manfredo Araújo de Oliveira (organizadores), Cortez Editora, São Paulo, 1996, pp.
195-252
2
1 Anderson, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: Sader, Emir & Gentili, Pablo (orgs.). Pós-neoliberalismo: as
políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro, Paz e terra, 1995
3
2 Idem, ibidem
4
3 Oliveira, Manfredo Araújo de. Ética e economia. São Paulo, Ática, 1995.
5
4 Mandel, Ernest. A crise do capital: os fatos e sua interpretação marxista. São Paulo, Ensaio, 1990.
6
5 Moffitt, Michel. O dinheiro do mundo: de Bretton Woods à beira da insolvência. Rio de Janeiro, Paz e terra, 1984
acredita-se que o melhor caminho para falar desse programa é pôr a descoberto os princípios
filosóficos da teoria que lhe dá sustentação, que lhe dá legitimidade discursivo-ideológica.
Partindo daí, pretende-se, inicialmente, dar conta dos fundamentos clássicos da teoria
liberal, para então descobrir as idéias centrais de que se servem os neoliberais para formularem
os seus princípios teóricos e seu programa de ação. Para ser conseqüente nesta tarefa, é preciso,
ainda que em rápidas pinceladas, descortinar as dimensões políticas e econômicas da teoria
liberal, tal como ela foi formulada pela ciência política moderna e pela economia política
clássica. Sem tais mediações, acredita-se, o neoliberalismo não poderá ser compreendido na sua
verdadeira essência e, assim, criticado consequentemente. Só depois então é que se poderá passar
à descrição das origens históricas do liberalismo nos países centrais. Enquanto programa de
ação, com pretensões de alcance mundial, seria interessante descrever o processo histórico de
nascimento do neoliberalismo na realidade brasileira, O passo seguinte deverá ser o mais difícil.
Será o momento da exposição da teoria neoliberal e da sua crítica. Trata-se um esforço para
imitar o discurso filosófico, não por uma questão de pedantismo, mas por exigência dessa a qual
pretende ser um discurso universalizante.76 portanto, o que se quer é, primeiro, entender o
neoliberalismo na sua pretensão de ser uma teoria portadora de um programa de ação, para em
seguida se passar à sua crítica.

2. Gênese e desenvolvimento da teoria liberal

2.1. Introdução

Em sua forma histórica original, o liberalismo nasce como um corpo de formulações teóricas
que defendem um Estado constitucional,87 isto é, um Estado em que a autoridade central é
exercida nas formas do direito e com garantias jurídicas preestabelecidas. Em outras palavras, o
Estado tem como função principal e específica a instituição de um estado jurídico, no qual a
liberdade de cada um possa coexistir com os outros segundo um conjunto de leis expressas num
código ou numa constituição.
Esse conjunto de formulações repousa em três concepções teóricas básicas: a teoria dos
direitos naturais ou jusnaturalismo, o constitucionalismo e a economia política clássica. Dessas
três teorias, aqui serão destacadas somente a primeira e a última. Isto deverá ser suficiente para

7
6 Esclareça-se que tais proposições não têm a pretensão de ser um saber absoluto, um saber infalível. A teoria
neoliberal é um saber científico fundado na racionalidade procedurístico-hipotético-regional, que é própria das
ciências modernas. Trata-se portanto, de uma racionalidade que tem a ver com os procedimentos do conhecimento.
isto é, urna racionalidade que não tem a pretensão de dizer o que é o real, mas, sim, os procedimentos de
conhecimento do real. Enquanto saber hipotético, a verdade de suas proposições deve ser testada através de um
confronto com a experiência. Isto posto, quando se fala do conteúdo universalizante das proposições da teoria
liberal, se está querendo dizer que esta teoria tem a pretensão de ser a única resposta possível aos problemas da
humanidade.
8
7 Segundo Merquior. "o liberalismo clássico, ou liberalismo em sua forma histórica original, pode ser toscamente
caracterizado como um corpo de formulações teóricas que defendem um Estado constitucional (ou seja, uma
autoridade nacional central com poderes bem definidos e limitados e um bom grau de controle pelos governantes) e
uma ampla margem de liberdade civil...... (Merquior, José Guilherme. O liberalismo: antigo e moderno. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1991. p. 35-6.
dar conta dos fundamentos do liberalismo e, assim, estabelecer um contraponto com o novo
liberalismo reinante na contemporaneidade: o neoliberalismo.

2.2. Os direitos naturais como limites ao poder do Estado

Partindo da idéia de que o liberalismo nasce como um corpo de formulações teóricas que
defendem um Estado constitucional, os jusnaturalistas advogam que o Estado tem um limite
externo, um limite que impede que a ação do poder político seja exercida contra os direitos de
liberdade dos indivíduos. Este limite externo são os direitos naturais, que nascem com os
indivíduos e são imanentes à natureza humana enquanto tal,98 independentemente da
constituição de qualquer comunidade política. É neste sentido que Bobbio entende que “os
direitos naturais constituem [...] um limite ao poder do Estado, pelo ato de que o Estado deve
reconhecê-los, não pode violá-los, pelo contrário, deve assegurar aos cidadãos o seu livre
exercício”.109
E daí que partem Hobbes e Locke para formularem suas teorias sobre a constituição do
Estado moderno. Para legitimarem a necessidade de criação de uma instância política que seja
capaz de normalizar a vida dos indivíduos na sociedade, estes autores constroem uma ficção
teórica, o assim chamado estado de natureza, a partir de onde julgam como deve ser estruturada
e organiza da a sociedade política. Esta ficção teórica pode ser entendida, na verdade, como uma
hipótese de alcance meramente epistemológico ou nominal, que serve para mostrar por que os
indivíduos devem abandonar o estado de natureza para ingressarem numa vida regrada por
normas e leis positivas.
No caso de Hobbes, o homem deve sair deste estado porque, se nele permanecer, diz ele, não
haverá lugar para a indústria, para o cultivo da terra, para a navegação e transporte de
mercadorias entre países; igualmente não haverá lugar para as artes e para as letras. Em uma
palavra: não há sociedade. Eis aí a sua definição de estado de natureza.1110
Mas o que leva os homens a deixarem o estado de natureza para viver em sociedade? A vida
insegura e incerta a que estão submetidos neste estado, onde predomina a guerra de todos contra
todos. Essa insegurança e incerteza criam, no homem, o sentimento do medo da morte e, assim, o
desejo de uma vida onde cada um possa garantir a posse do que é capaz de conseguir.
O medo da morte leva os homens, portanto, a buscar a paz, que só poderá ser assegurada
mediante a criação de uma instância política capaz de refrear os impulsos auto destrutivos dos
indivíduos, pois "as leis de natureza (como a justiça, a eqüidade, a modéstia, a piedade, ou, em
resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de
algum poder de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos

9
8 Oliveira, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. São Paulo, Loyola, 1993. p. 20. "o indivíduo traz consigo
direitos naturais que devem ser considerados na constituição da sociabilidade e da vida política. Esse primado
político do indivíduo sobra a comunidade social e política é o axioma fundamental da teoria política dos tempos
modernos. Já que todas as teorias situam-se no nível do indivíduo, a questão central vai ser a de associação dos
indivíduos isolados
10
9 Bobbio, Norberto, Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Brasília, Editora Universidade de Brasília.
1984 p, 15-6.
11
10 Hobbes, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo, Abril
Cultural, 1979. Ver especialmente o capítulo XIII.
fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a
espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém".1211
Por conta disso, então diz Hobbes, "os homens concordam entre si em submeterem-se a um
homem, ou a uma assembléia de homens, voluntariamente, com a esperança de serem protegidos
por eles contra todos os outros”.1312 É desta forma, conclui ele em outro lugar, “que derivam
todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é conferido
mediante o consentimento do povo reunido".1413
O Estado aparece, assim, como resultado da vontade dos indivíduos. São eles que, por
consentimento voluntário, criam o poder político para protegê-los e preservar suas vidas. Como
se trata de uma ação voluntária, os súditos julgam-se os verdadeiros autores da construção deste
poder, como deixa clara a seguinte passagem:
A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos
estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para
que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver
satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que
possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que
eqüivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representantes de
suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que
aquele que representa sua pessoa possa praticar, em tudo que disser respeito à paz e à segurança
comum [... I Isso é mais do que consentimento e concórdia, é uma verdadeira unidade de todos
eles, numa e só mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de
modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: cedo e transfiro o meu direito de
governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de
transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à
multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas.1514
A despeito do fato de serem os indivíduos os autores da todas, de uma forma absoluta, todos
os seus direitos para a coisa pública, eles acabam por transferirem, de uma vez por todas, de uma
forma absoluta, todos os seus direitos para a figura que encarna este poder, o soberano. Em
conseqüência disto, os indivíduos perdem o direito de dizer não, de impor limites à ação do
Estado, cabendo-lhes tão-somente obedecer às leis instituídas pelo soberano. Com efeito, diz
Hobbes, "dado que todo súdito é por instituição autor de todos os atos e decisões do soberano
instituído, segue-se que nada do que este faça pode ser considerado injúria para com qualquer de
seus súditos, e que nenhum deles pode acusá-lo de injustiça".1615
Diferentemente de Hobbes, para Locke, os direitos naturais são uma garantia contra o poder
absoluto do Estado. Tais direitos nascem com os indivíduos independentemente de eles
pertencerem ou não a uma dada comunidade política.1716
12
11 Idem, p. 103.
13
12 Idem, p. 106. O grifo é nosso
14
13 Idem, p. 107. O grifo é nosso
15
14 Idem, p. 105
16
15 Idem, p. 109
17
16 Locke se apresenta, dentro da tradição dos teóricos do Estado moderno, como o verdadeiro pai do liberalismo.
Foi com ele, segundo Merquior, que se inaugurou a política da confiança, isto é, o consentimento como fonte
legitimadora do poder estatal. Nesse sentido, diz Merquior, "Locke encarou os governantes como curadores da
cidadania e, de forma memorável, imaginou um direito à resistência e mesmo á revolução. Desta maneira, o
consentimento tornou-se a base do controle do governo” (Merquior, José guilherme. Op. cit., p. 45) Nessa mesma
perspectiva, isto é, de imposição de limites ao poder do Estado, Bobbio ressalta que as modernas teorias do Estado
moderno, cujos desdobramentos estabeleceram as bases do Estado liberal e democrático, têm nas teorias dos direitos
O Estado não pode violar estes direitos. Ao contrário, deve reconhecê-los e assegurar o seu
exercício por cada indivíduo, Isto transforma o indivíduo em um cidadão, na medida em que ele
é reconhecido como portador de direitos e pode, assim, cobrar do Estado a liberdade de
exercê-los contra todo e qualquer poder arbitrário imposto a ele sem seu consentimento.
Se Hobbes e Locke compartilham da idéia de que os indivíduos vêm ao mundo trazendo
consigo direitos que lhes pertencem por natureza, como se explica que eles tenham concepção
tão distinta sobre o poder do Estado? A resposta não é tão difícil. Enquanto para Hobbes o
mercado não é capaz de criar nenhum laço de sociabilidade, as coisas se passam muito diferentes
em Locke.1817 Para este último, o mercado se apresenta como uma instância originária de
socialização, que cria normas e regras de convivência social, que aparecem como direitos
naturais. Neste sentido, essas normas e regras se apresentam como resultado de um longo
processo de aprendizagem, que ensina os indivíduos a quererem tais direitos porque sabem que
são seu sujeito. De sorte que, assim sendo, tudo indica que os direitos naturais aparecem como
objeto do seu saber e do seu querer.
Não parece difícil sustentar essa argumentação em Locke. Com efeito, viu-se acima que,
para ele, a economia é a base originária a partir de onde se tece uma malha de relações sociais
contratuais entre os homens. Antecipando em quase um século o princípio da mão invisível de
Adam Smith, Locke vê a divisão social do trabalho, engendrada pela própria necessidade dos
indivíduos intercambiarem os produtos dos seus trabalhos independentes, como o lugar a partir
do qual os homens criam laços entre eles e, assim, regras e normas de convivência social.
Assim, no intercâmbio das mercadorias, os homens criam um sistema universal de regras, de que
se servem então para garantir sua sobrevivência social. Aprendem, dessa forma, a depender um
dos outros e a fazer dessa dependência o meio para assegurar uma convivência harmoniosa.
Locke não diz explicitamente, mas se pode dele deduzir que é esse processo de
aprendizagem, produzido pela troca de mercadorias, que permite aos indivíduos interiorizarem a
idéia de que eles são portadores de direitos naturais, e que devem ser preservados quando da
instituição da sociedade civil, do Estado. Dentre esses direitos, o mais importante a ser
preservado é o direito de propriedade, pois esta é concebida como resultante do trabalho próprio,
isto é, do esforço individual que cada indivíduo realizou para retirar do patrimônio comum que
Deus deu aos homens, a natureza, a fatia que lhe deve caber. Entretanto, esse direito natural
vê-se ameaçado pelo desenvolvimento da troca de mercadorias, que acaba por afastar o trabalho
como principio originário da propriedade, para fazer do dinheiro seu novo fundamento, como se
pode ler nesta passagem: “seja lá como for, ao que não quero dar importância, ouso afirmar
corajosamente o seguinte: a mesma regra de propriedade, isto é, que todo o homem deve ter tanto
quanto possa utilizar, valeria no mundo sem prejudicar ninguém [...] se a invenção do dinheiro e
o tácito acordo dos homens, atribuindo um valor à terra, não tivessem produzido - por
consentimento - maiores posses e o direito a elas ...”1918A partir do momento em que o valor da
propriedade passa a ter sua fonte no dinheiro, e não mais no trabalho, produz-se uma
desigualdade social na apropriação do principal meio de produção - a terra -, dando origem,

naturais ou jusnaturalismo o ponto de partida da teorização sobra o abuso do poder político. À teoria dos direitos
naturais, segue-se a da separação dos poderes e a da soberania popular ou democrática(Bobbio, Norberto. Op. cit.)
18
17 Para um exame mais demorados das diferenças entre Hobbes e Locke, ver meu livro Economia e filosofia no
pensamento político moderno. Campinas, Pontes, 1995.
19
18 Locke, John. Carta acerca da tolerância. Segundo tratado sobre o governo. 2. Ed. São Paulo, Abril, 1987, p.
48-9. (Os Pensadores.)
então, a uma época de conflitos sociais. O mais sagrado de todos os direitos naturais - o direito
de propriedade - vê-se, assim, ameaçado. Para preservá-lo, os homens acordam em fundar uma
comunidade política, que tem no Estado a garantia de resguardar este direito natural e. com ele, a
liberdade de dispor de sua própria vida, uma vez que cada indivíduo deve sua existência ao
trabalho. Segue-se daí, portanto, que a propriedade é, para Locke, o fundamento da liberdade do
homem e, este sentido, condição de possibilidade para o exercício da cidadania.2019
Se o homem deve sua existência ao trabalho, renunciar ao direito de propriedade seria, para
Locke, abdicar da própria vida. Por isso, o homem não pode transferir tal direito para o Estado,
como advoga o autor do Leviatã, Neste sentido, os homens devem conservar sempre o poder de
eleger e destituir seus representantes, cuja razão de ser é defendê-los do abuso ou da injustiça
que se venha a cometer contra a propriedade. E o que se pode ler na seguinte passagem do
Segundo tratado sobre o governo:

“Embora em uma comunidade constituída, erguida sobre sua própria base e atuando de acordo
com a sua própria natureza, isto é, agindo no sentido da preservação da comunidade, somente
possa existir um poder supremo, que é o legislativo, ao qual tudo mais deve ficar subordinado,
contudo, sendo o legislativo somente um poder fiduciário destinado a entrar em ação para certos
fins, cabe ainda ao povo um poder supremo para afastar ou alterar o legislativo quando é levado
a verificar que age contrariamente ao encargo que lhe confiaram... E nessas condições, a
comunidade conserva perpetuamente o poder supremo de se salvaguardar dos propósitos e
atentados de quem quer que seja, mesmo dos legisladores, sempre que forem tão levianos ou
maldosos que formulem planos contra a liberdade e a propriedade dos súditos......”2120
Nessa passagem, Locke não poderia ter sido mais claro: a ação do Estado deve se dar dentro dos
limites da lei instituída pelo poder legislativo. Em outras palavras, o poder do Estado deve ser
cercado de salvaguardas constitucionais, que o impeçam de extrapolar os direitos dos cidadãos.
Mais claramente, como esclarece Rodrigo Uprimny2221 as diversas ações do Estado, seja no
campo militar, para defender o território nacional, seja na esfera policial, para estabelecer a
ordem pública, seja em matéria judicial, para o esclarecimento e a sanção de delitos, devem ser,
portanto, diferenciadas e reguladas de forma específica.
Essas breves reflexões teóricas devem ter sido suficientes para dar conta das origens
históricas do liberalismo clássico, na sua vertente jusnaturalista, que nasce com a preocupação de
criar um corpo de formulações teóricas que defendam um Estado de direito, um Estado cujo
poder deve ser exercido dentro de normas jurídicas preestabelecidas. Entretanto, essas reflexões
não estariam completas sem que se levasse em conta os seus desdobramentos contemporâneos,
que redundaram nas teorias da soberania popular ou democracia. O fulcro destas teorias é o
pensamento de Rousseau, cuja preocupação principal foi pensar o Estado de direito como um
Estado democrático. Rousseau, como se sabe, não queria apenas limitar o poder do Estado,
queria mais do que isso: sua pretensão era transformar a coisa pública em um poder governado
pela vontade geral, pelo povo. Como bem esclarece Bobbio, "trata-se de uma verdadeira quebra
do poder estatal, o qual, pertencendo a todos, [...] é como se não pertencesse a ninguém". De
sorte que, assim sendo, a diferença entre esta teoria e a do jusnaturalismo salta aos olhos: frente
ao abuso do poder, a teoria dos direitos naturais busca motivos para limitar o poder do Estado; a

20
19 Ver a este respeito Oliveira, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. Op. Cit., especialmente o capítulo 5
21
20 Locke, John. Op. cit., p. 93
22
21 Uprimny, Rodrigo. Violência, ordem democrática e direitos humanos na América Latina.. Lua Nova, n. 30,
CEDEC, 1993
teoria democrática, diz Bobbio, "considera que o único remédio seja o fato de atribuir o poder a
quem por sua natureza não pode abusar dele, ou seja, à vontade geral".2322

2.3. O mercado enquanto espaço determinante da


sociabilidade

Se a ciência política moderna parte de uma ficção teórica, o estado de natureza, para a partir
dela compreender e julgar a realidade presente, a economia política clássica (EPC) se arma desse
mesmo recurso metodológico. Adam Smith, por exemplo, constrói sua teoria do valor partindo
de um estado hipotético habitado por caçadores, que permutam entre si os diversos produtos de
seus diferentes trabalhos. Nesse estado, em que não há patrões nem empregados, o valor do
produto pertence integralmente ao seu produtor. A única regra que os produtores observam,
quando trocam entre si suas diferentes mercadorias, são as quantidades de trabalho nelas
inseridas. A liberdade de que gozam os produtores para produzir o que mais lhes convier garante
o pleno abastecimento do mercado e, assim, a satisfação das necessidades da sociedade. A
ausência total de regulação externa, para coordenar as diversas atividades dos indivíduos, é a
melhor maneira para a sociedade alcançar a prosperidade e a felicidade de seus membros.
É a partir daí que Smith constrói seus conceitos e critérios para seu juízo sobre a sociedade
de seu tempo. Uma sociedade ainda dominada pela presença de resquícios feudais e com uma
forte intervenção estatal, que ditava as normas de comércio e de produção. Contra esta forma de
organização da produção social, considerada por ele como um dos principais obstáculos à
riqueza das nações, Smith contrapõe aquele estado idílico,2423 onde ninguém estava sujeito a

23
22 Bobbio, Norberto. Op. cit., p. 16-7
24
23
Partindo do que ele chama de um rude e primitivo estado de natureza, Smith intenta demonstrar que as quantidades
de trabalho inseridas nas mercadorias são as únicas regras que os homens devem observar ao permutar seus
diferrentes produtos.
O grande problema que ele teve que enfrentar foi o de como passar desse estado de natureza para a sociedade
capitalista. Naquele estado original, não havendo patrões nem empregados, o valor do produto do trabalho pertencia
integralmente a quem o produzia. Nestas condições, as mercadorias poderiam ser trocadas proporcionalmente no
tempo de trabalho necessário à sua produção. Em outras palavras, a troca obedecia ao princípio da equivalência.
Entretanto, esse princípio perde sua validade na sociedade capitalista, diria Smith. A razão disso está no fato de
que, agora, na sociedade capitalista, o produto do trabalho já não pertence integralmente a quem o produz. O
trabalhador é obrigado a repartir o fruto do seu trabalho com quem o empregou. Logo, sua remuneração deixa de ser
igual ao valor do que ele produziu e, assim, a base racional da teoria do valor, a troca de equivalentes, vê-se
ameaçada. É então que Smith procura substituir o conceito de valor, com base no trabalho contido nas mercadorias,
pelo conceito de trabalho comandado, isto é, o valor de cada mercadoria passa a ser determinado pelo valor do que
ela pode comprar ao comandar. Mas. por conta disso, sua teoria cai num circulo vicioso, ferindo, assim, o principio
da não contradição reclamado pela lógica formal. Realmente, para fazer do trabalho comandado a medida do valor,
seria necessário conhecer, primeiro, o valor que comanda este trabalho. Neste sentido, Smith chega a uma
proposição destituída de sentido: o valor depende do valor.
Para livrar a teoria de Smith destas contradições, Ricardo passa a sustentar que, tanto naquele rude estado de
natureza, como na sociedade capitalista, o valor das mercadorias é determinado pelas quantidades de trabalho nelas
inseridas. Em outras palavras, para ele, é o conceito de trabalho contido e não o de trabalho comandado que deve
ser afirmado na construção da teoria do valor, Entretanto, ele não consegue ser bem-sucedido nesta sua tarefa, A
esse respeito ver meu livro Pensando com Marx: uma leitura crítico comentada de O capital, São Paulo, Ensaio,
1995
nenhuma autoridade externa, apenas aos seus próprios interesses particulares, para defender a
idéia de que "numa sociedade civilizada, o homem a todo momento necessita da ajuda e
cooperação de grandes multidões, e sua vida inteira mal seria suficiente para conquistar a
amizade de algumas pessoas". Por isso, diz ele, o homem

“terá maior probabilidade de obter o que quer, se conseguir interessar a seu favor a auto-estima
dos outros, mostrando-lhes que é vantajoso para eles fazer ou dar-lhe aquilo de que ele precisa. É
isso que faz toda pessoa que propõe um negócio a outra. Dê-me aquilo que eu quero, e você terá
isto aqui, que você quer... é dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos
serviços de que necessitamos. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro, ou do padeiro
que esperarmos nosso jantar, mas da consideração que eles têm por seu próprio interesse”.2524

Vê-se, então, que a vida em sociedade é determinada por um conjunto de relações de compra
e venda, que integram os indivíduos numa grande teia de relações de dependência recíproca. O
interesse pessoal, a auto-estima, é, portanto, condição de possibilidade para a formação dos
laços sociais que prendem os indivíduos entre si. Nada melhor do que o próprio interesse para
garantir a coesão do todo social. É o que Smith traduz com o seu conceito de mão invisível, que
mostra que cada indivíduo, quando guiado exclusivamente pela busca do lucro, necessariamente
se esforça para aumentar ao máximo possível a renda anual da sociedade. Geralmente, na
realidade, ele não tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o está
promovendo. Ao preferir fomentar a atividade do país e não de outros países, ele tem em vista
apenas sua própria segurança; e orientando sua atividade de tal maneira que sua produção possa
ter o maior valor, visa apenas o seu próprio ganho e, neste, corno em muitos outros casos, é
levado como que por uma mão invisível a promover um objeto que não fazia parte de suas
intenções.2625
É com base no princípio da mão invisível que Smith explica o desenvolvimento da
Inglaterra. De acordo com suas próprias palavras,

“embora os altos gastos do governo, sem dúvida, devam ter retardado o curso natural da
Inglaterra em direção à riqueza e ao desenvolvimento, não foi possível sustá-lo. A produção
anual da terra e do trabalho na Inglaterra é, sem dúvida, muito maior hoje do que na época da
restauração ou da revolução Em conseqüência, maior deve ter sido o capital empregado
anualmente no cultivo da terra e para manter essa mão-de-obra. Em meio a todas as exceções
feitas pelo governo, esse capital foi silencioso e gradualmente acumulado pela frugalidade e pela
boa administração de indivíduos particulares, por seu esforço geral, contínuo e ininterrupto no
sentido de melhorar sua própria condição. Foi esse esforço, protegido pela lei e permitido pela
liberdade de agir por si próprio de maneira mais vantajosa, que deu sustentação ao avanço da
Inglaterra em direção à grande riqueza e ao desenvolvimento em quase todas as épocas
anteriores, e que, como é de se esperar, acontecerá em tempos futuros”.2726

25
24 Smith, Adam A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. 2. Ed. São Paulo, Nova
cultural, 1985. p. 49-50
26
25 idem, p. 379
27
26 Idem, p. 296
Assim, se a cada indivíduo for garantida a liberdade de agir por conta própria, e o Estado
não interferir na economia, cada país poderá atingir o pleno desenvolvimento econômico e com
ele o bem-estar geral da sociedade. É isso o que revela o princípio da mão invisível. Trata-se de
um princípio que procura demonstrar que a economia deve funcionar sem qualquer
regulamentação social direta. Além disso, serve como denúncia às políticas mercantilistas da
época, bem como sintetiza as idéias filosóficas do autor, do que é e deve ser a sociedade
capitalista: uma sociedade na qual o mercado deverá ser a instância suprema e intranscendível
da vida humana. Afinal de contas, o mercado é um produto da natureza humana, que se
desenvolve sem que ninguém tenha consciência disso, pois, diz Smith: "é por negociação, por
escambo ou por compra que conseguimos uns dos outros a maior parte dos serviços recíprocos
de que necessitamos, da mesma forma é essa mesma propensão ou tendência a permutar que
originalmente gera a divisão do trabalho"," e, assim, o mercado.2827

Com isso, pode-se dar por encerrada a exposição das idéias centrais do pensamento liberal
da EPC Completam-se, portanto, os fundamentos gerais do pensamento clássico liberal, tanto na
sua vertente política, como econômica. Sendo assim, pode-se passar, agora, à apresentação da
teoria neoliberal. Antes, porém, para atender ao plano expositivo adiantado no início, é preciso
descrever as origens históricas do neoliberalismo, enquanto programa de ação voltado para a
implementação de uma política de desenvolvimento econômico e social.

3. Um balanço do neoliberalismo

3.1. Considerações gerais: morte e vida do liberalismo

Se se observarem atentamente as idéias centrais da teoria clássica do liberalismo, aqui


expostas, pode-se notar que essa teoria é muito mais uma exigência do que deveria ser a
sociedade, do que mesmo uma análise estritamente empírica da realidade de então. Com efeito,
tanto a ciência política moderna como a EPC recorrem a uma ficção teórica, a hipótese de um
estado de natureza, para a partir daí lerem e julgarem a realidade presente, para, então, proporem
um programa de ação voltado para transformar o estado de coisas reinante. Contra o abuso do
poder estatal, quer na esfera da administração da sociedade (defesa do território nacional,
estabelecimento da ordem pública e esclarecimento e sanção de delitos), quer na esfera da
economia, todos os teóricos do Estado moderno, com exceção de Hobbes, defendiam um
governo limitado, um Estado de direito. O mesmo se observa em relação à teoria econômica da
época, que, sendo mais radical ainda, exigia o fim da intromissão do Estado nos assuntos
econômicos e nos da vida social, pregando uma política de livre comércio intra e internações.
Os defensores desse programa de ação não chegaram a vivê-lo. A sociedade em que viviam
estava ainda muito longe do que viria a ser o capitalismo mais tarde, Somente a partir de meados
do século XIX é que aquele programa liberal encontraria condições favoráveis para sua
realização efetiva. Tal programa pressupunha uma sociedade na qual a produção de mercadorias
houvesse se tornado a relação social dominante, a ponto de seus proprietários serem
reconhecidos reciprocamente como tais. Em outras palavras, o liberalismo só poderia se
transformar num programa prático a partir do momento em que o conceito de mercado adquirisse

28
27 Idem, p. 50. Os grifos são nossos.
a força de um preconceito popular. Portanto, a partir do momento em que a sociedade presente
tivesse varrido da memória social as mediações históricas (resquícios feudais, cercamentos de
terras, colonialismo, escravismo etc.) de sua gênese. Em síntese, quando o processo de
acumulação primitiva, para usar essa expressão marxista, deixasse de ser pressuposto externo ao
sistema de produção de mercadorias para se transformar em um elemento interno de sua
reprodução.2928
Essas condições objetivas tomam-se realidade efetiva a partir de meados do século
passado.3029 A partir daí o capitalismo vive a sua fase liberal por excelência. A democracia
representativa ganha existência efetiva, com o aparecimento do sufrágio universal; a redução da
jornada de trabalho aparece como uma conquista possibilitada pela produtividade do capital; o
comércio internacional de mercadorias avança com "botas de sete léguas"; as empresas podem
dispensar a ajuda direta do Estado, por conta da acumulação privada de seus lucros; o trabalho
escravo torna-se um obstáculo ao processo de acumulação; a existência das colônias começa a
deixar de ser pré-requisito para a acumulação de capital nas metrópoles.
Daí até as primeiras décadas deste século, o liberalismo (torna-se o credo do capitalismo.
Deixa, portanto, de ser uma exigência para se tornar mediação obrigatória para o
desenvolvimento do capital e da sociedade. Essa fase áurea chega ao seu fim com a grande crise
no final dos anos vinte e início da década de trinta. A Grande Depressão joga nas ruas milhares
de trabalhadores no mundo todo. Falências de empresas se seguem em uma cadeia sucessiva,
arrastando na sua esteira grandes blocos de capitais. As prateleiras abarrotadas de mercadorias
faziam os preços despencarem em uma velocidade aterrorizante para seus proprietários, que
viam, da noite para o dia, seu capital virar fumaça. As próprias instituições políticas da
sociedade viam-se ameaçadas na sua existência, pondo em risco a própria sobrevivência do
sistema. Parecia que o capitalismo estava chegando ao fim e com ele todas as teorias e
ideologias liberais.
O processo de superação dessa grande crise é bastante conhecido. A doutrina econômica
liberal, que recomendava liberdade total para as leis de mercado, como mediação política para
tirar a economia da crise, é vencida pela própria realidade. O Estado é obrigado a abandonar sua
posição de "vigia da economia" para se tomar instrumento de salvação do sistema, com suas
políticas de apoio direto ao processo de acumulação de capital e com suas políticas sociais
compensatórias de ajuda para os excluídos do mercado. É a partir daí que começa a fase do

29
28 Fausto, Ruy. Marx: lógica e política. São Paulo, Brasiliense, 1987. p. 283: "Para expor a teoria do capital
enquanto capital - que se segue à da circulação simples - Marx pressupõe a propriedade dos meios de produção pelo
capitalista e a despossessão dos meios de produção pelo trabalhador, isto é, pressupõe as relações de distribuição dos
meios de produção, assim como o livre contrato entre o trabalhador assalariado e o capitalista. Estas pressuposições
são de início simplesmente assumidas, e nesse sentido são a princípio pressuposições externas. É também na seção
sétima do livro I, em particular no capítulo 22, que essas pressuposições são interiorizadas. O movimento contínuo
do capital reduz o contrato livre a uma simples aparência (Schein) e faz das relações de distribuição dos meios de
produção um puro resultado do processo. Assim se interiorizam as pressuposições. O capital se torna autônomo em
relação a elas, no sentido e que ele as recria constantemente, elas são segundas em relação a ele”. Ver também o meu
livro Pensando com Marx. Op. cit., especialmente a primeira parte.
30
29 A partir de 1848 tem início o que Hobsbawm chamou de "a era do capital", para assim designar o período áureo
do liberalismo. A partir de então tem início um movimento em direção à total liberdade de comércio, como bem
ressalta nos capítulos segundo e sexto do seu livro. Hobsbawm, Eric J. A era do capital: 1848-1875. Rio de Janeiro,
Paz e terra, 1982.
capitalismo regulado estatalmente.3130 Desde então, assiste-se a uma inversão fundamental entre
a esfera da economia e do político: este último se transforma em condição de possibilidade para
o funcionamento da economia.3231
O desdobramento dessa nova relação entre economia e Estado vai ser responsável pela
criação do chamado modelo social-democrático de desenvolvimento. Nasce, a partir de então,
um novo sistema de produção: o "modo social-democrático de produção", que irá viver os seus
"anos gloriosos" desde a Segunda Grande Guerra até meados da década de setenta.
A análise da ascensão e crise desse modelo de acumulação é condição de possibilidade para
entender melhor a natureza dos programas neoliberais. Isso é o que se pretende fazer a seguir,
tomando como referência, inicialmente, os países do chamado capitalismo maduro.

3.2. Fordismo e social-democracia: a crise e os anos gloriosos da economia social de


mercado

A "economia política da social-democracia”3332 nasce a partir da crise do padrão de


acumulação de capital fordista, tendo como preocupação básica descrever as características desse
modelo, seu desenvolvimento e sua crise.3433 Nascido a partir de 1945, este modelo ou padrão de
acumulação tinha como base um processo de produção em massa, dirigido a um público
consumidor passivo e ávido de consumo.
A distribuição da riqueza se fazia mediante acordos coletivos, segundo os quais capital e
trabalho acordavam em elevar ao máximo a produtividade e a intensidade do trabalho, em troca
31
30 Para uma exposição crítica dessas teorias que falam do capitalismo regulado, ver Altvater, Elmar. O capitalismo
se organiza: o debate marxista desde a guerra mundial até a crise de 1929. In: _. História do marxismo. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1987, v. VIII.

32
31 Habermas, Jurgen. [1] Técnica e ciência como ideologia. Lisboa Edições 70, 1968. [2] Crise de legitimidade do
capitalismo tardio. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980
33
32 A expressão "economia política da social-democracia", pelo que se sabe, foi cunhada pelo professor Francisco
de Oliveira, em um artigo publicado na Revista da USP, n. 17, mar/abr./maio 1993, que tem como titulo esta mesma
expressão. Entretanto, advirta-se que esta expressão é aqui usada para dar conta da teoria da regulação, que nasce,
precisamente, como resposta ao modelo neoliberal de desregulação da economia. De acordo com Boyer, um
regulacionista preocupado em popularizar a teoria da regulação, diante do ataque avassalador dos neoliberais, “uma
tarefa específica apresenta-se ao economista: caracterizar com exatidão as razões que explicam esta sucessão de
diferentes fases de expansão e flutuações conjunturais moderadas e depois de estagnação e de instabilidade. Assim,
as duas últimas décadas seriam marcadas pela crise do modo de regulação monopolista ou de administrado, que teria
possibilitado a superação da crise de 1929. Portanto - e esta é uma das originalidades das análises em temos de
regulação - os problemas de política econômica de saída da crise não podem ser discutidos no abstrato, ou seja,
independentemente do conjunto de formas institucionais vigentes, Por outro lado, a questão não se coloca mais tanto
em temos do acerto da política conjuntural, mas da emergência de um modo de regulação adequado, processo no
qual o Estado pode tentar participar, menos direto do que indiretamente". (Boyer, Robert. A teoria da regulação:
uma análise crítica. São Paulo, Nobel, 1990. p. 37.) Segue-se dai que a preocupação básica da Escola da Regulação
é encontrar novas formas de regulação, para retirar a economia da crise. Daí a Preocupação deste mesmo autor, em
1986, em proceder um estudo minucioso das relações salariais em sete países europeus, para tentar descobrir as
novas possíveis formas de regulação em gestação na economia. A este respeito, ver Boyer, Robert, The search for
labour market flexibility: the European economies in transition. New York, Oxford University, 1988.

34
33 A este respeito ver o primeiro capítulo, onde se expõe detalhadamente a teoria da Escola da Regulação.
de salários e lucros crescentes. As entidades representativas de classes (partidos políticos de
massa e sindicatos com grandes estruturas corporativistas) eram a base sobre a qual se
desenvolvia a luta pela distribuição da riqueza social. Para garantir o cumprimento dos acordos,
era imprescindível a presença mediadora do Estado, cuja legitimação era assegurada, por um
lado, mediante uma política de subsídios à acumulação de capital e, por outro, através de uma
política de bem-estar social, fundada em medidas compensatórias: seguro-desemprego,
transporte subsidiado, educação e saúde gratuitas, entre outras coisas.
A partir do final dos anos sessenta, esse modelo de acumulação entra em crise. De acordo
com os teóricos da economia política da social-democracia, assiste-se, a partir de então, a uma
erosão crescente do compromisso entre capital e trabalho, da chamada "relação salarial fordista".
Lutas operárias contestando a organização do trabalho, reivindicações de salários reais acima dos
ganhos de produtividade, a crise fiscal do Estado, instabilidade financeira, inflação etc., tudo isso
cortou o círculo virtuoso de crescimento e de desenvolvimento social, jogando a economia em
uma crise estrutural, que se arrasta até os dias de hoje.
Essa crise vem sendo enfrentada através de um processo de reestruturação produtiva, que se
faz acompanhar de novas tecnologias, que permitem uma produção flexível capaz de satisfazer
as novas exigências do mercado e, assim, criar condições para que a oferta de bens e serviços
possa acompanhar as mudanças de hábitos no consumo. Se, antes, no chamado modelo de
acumulação fordista, as empresas produziam sem se preocupar com a demanda de mercado, a
partir de então as mercadorias não são mais produzidas para em seguida serem lançadas no
mercado. Desde então as empresas procuram planificar a venda de suas mercadorias, de tal modo
que elas possam ser vendidas no momento em que são produzidas. Para tanto, as empresas
procuram reestruturar a sua organização produtiva. Em lugar de grandes corporações produzindo
desde a matéria-prima até o produto final, em vez desta estrutura verticalizada, com suas
imensas redes burocráticas e com enormes custos de administração de pessoal, busca-se uma
estrutura mais enxuta, mais flexível, capaz de responder aos movimentos de mudanças na
composição da demanda. A terceirização, como é conhecida no Brasil, é um dos expedientes
mais utilizados pelas empresas hoje em dia.3534
Essa reestruturação do processo de produção de mercadorias, de seus elementos técnicos,
passou a exigir uma nova forma de contratação e gerenciamento da força de trabalho. As
empresas querem, hoje, um trabalhador que não seja mais aquele tipo de indivíduo que batia o
relógio de ponto, recebia ordens do chefe para executar uma tarefa específica e agia bovinamente
durante todo o dia de trabalho, sem se preocupar com os resultados de sua atividade... Agora,
precisam de um indivíduo capaz de contribuir para melhorar a qualidade do produto, um
indivíduo que pense e tenha iniciativa própria, um indivíduo que seja capaz de mudar, com
facilidade e precisão, de uma atividade para outra, um indivíduo que, na empresa, seja capaz de
vender, de produzir, de consertar os defeitos da máquina, de limpar o chão, de dar e receber
ordens. Em síntese, as empresas querem um trabalhador particular que incorpore as forças de
trabalhador coletivo, antes divididas entre diversos trabalhadores singulares. Não querem mais
um trabalhador coletivo combinado, mas um trabalhador que seja a síntese da combinação de
diversas operações parciais.3635

35
34 Teixeira, Francisco José Soares. Terceirização: os terceiros serão os últimos. Fortaleza, SINE/CE, 1993
36
35 Teixeira, Francisco José Soares. Marx e as metamorfose do mundo do trabalho. Universidade e Sociedade, n.
8, p. 11, 1995
É nesse contexto de reestruturação produtiva que os neoliberais encontram munição para
difundir sua doutrina e seus programas de política econômica. A crise do modelo de acumulação
fordista, cuja superação aponta para novas formas de produção, onde a flexibilização da
produção e das relações entre capital e trabalho passam a ser perseguidas por todas as empresas,
cria as condições propícias para tanto. Embora não tendo como objetivo explicar o ressurgimento
das teorias liberais, Clarke resume brilhantemente a crise do fordismo e o novo cenário
econômico, político e social que começa a se delinear na direção de um novo possível modo de
regulação, no qual o mercado poderá vir a se tornar dominante. Ainda que longa, vale a pena
citar a passagem do seu texto, em que ele descreve essas condições. Literalmente:

“A saturação dos mercados de massa leva a uma crescente diferenciação dos produtos, com uma
nova ênfase no estilo e/ou na qualidade. Produtos mais diferenciados exigem turnos de trabalho
mais curtos, e portanto unidades de produção menores e mais flexíveis. Novas tecnologias
fornecem os meios pelos quais se pode realizar vantajosamente essa produção flexível.
Entretanto, estas novas formas de produção têm implicações profundas. Uma produção mais
flexível requer máquinas mais flexíveis e de finalidades genéricas, e mais operários 64
polivalentes", altamente qualificados, para operá-las. Uma maior qualificação e flexibilidade
exige que os operários tenham um grau mais alto de responsabilidade e autonomia. Uma
produção mais flexível também requer formas mais flexíveis de controle de produção, ao passo
que relações de produção mais flexíveis requerem o desmantelamento das burocracias
corporativas. Os interesses de uma força de trabalho mais diferenciada não podem ser
eficazmente representados por sindicatos e partidos políticos fordistas, monolíticos e
burocráticos. São necessários acordos descentralizados para negociar sistemas de pagamentos
mais complexos individualizados, que recompensam a qualificação e a iniciativa. A
diferenciação do trabalhador de massa leva ao surgimento de novas identidades que não são mais
definidas ocupacionalmente, mas sim articuladas no consumo idiossincrático, em novos estilos
de vida e novas formas culturais, que reforçam a demanda por produtos mais diferenciados.
Tudo isso vai corroendo as velhas identidades políticas. As necessidades de bem estar, saúde,
educação e treinamento de uma força de trabalho diferenciada que não podem mais ser satisfeitas
por um Welfare State burocrático e padronizado, mas apenas por instituições diferenciadas,
capazes de responder de maneira flexível às necessidades individuais”.3736
Essa ascensão e crise do modelo de acumulação fordista guardam semelhanças com o que se
passa no Brasil. Aqui, tem-se a impressão de que pelo menos em grandes linhas o padrão de
acumulação passa por um processo semelhante: à fase liberal segue-se uma de intervenção
planejada que, por sua vez, começa a ser substituída por uma maior liberalização da economia. É
nessa direção que se caminhará agora.

3.3. Brasil: origem, desenvolvimento e crise de um capitalismo estatalmente regulado3837

De acordo com Francisco de Oliveira, a partir dos anos trinta deste século, instaura-se um
novo modelo de acumulação “qualitativa e quantitativamente distinto, que dependerá
37
36 Clarke, Simon. Crise do fordismo ou crise da social democracia, Lua No)va, n. 24, p 120, CEDEC, 1991.
38
37 Desenvolvimento e crise do Estado interventor no Brasil foram analisados por mim em um artigo intitulado “El
secreto de la plusvalia, más oculto que nunca. Revista Horizonte, jan./mar. 1995.
substancialmente de uma realização interna crescente". 3938Em outras palavras, trata-se da
substituição de um modelo agrário-exportador por um outro que passa a ter na indústria o centro
do processo de acumulação.
Essa substituição não foi tão simples, A implementação do novo modelo de acumulação teve
que enfrentar três problemas básicos. O primeiro foi o da inadequabilidade do mercado de
trabalho frente às novas exigências do modelo de acumulação emergente. O predomínio de
relações de trabalho herdadas do modelo agrário exportador ia de encontro com as novas
relações de compra e venda da força de trabalho, assim como também com as novas técnicas de
produção.
Os outros dois problemas eram, primeiro, a ausência de um setor financeiro capaz de
financiar o processo de acumulação industrial e, segundo, a ausência de um setor produtor de
bens de capital (máquinas, equipamentos, instalações) e de insumos básicos.
As condições materiais para resolver tais problemas precisariam ser criadas. A burguesia
industrial não tinha possibilidades de assumir e resolver as demandas requeridas pelo novo
padrão de acumulação emergente. Com efeito, quando se tem em conta que até então a
acumulação de capital dependia basicamente da inversão dos lucros gerados pelas empresas,
torna-se claro que a burguesia não poderia financiar as modificações estruturais do novo modelo
de acumulação.
Sendo assim, a criação desse mercado de trabalho urbano, adequado às exigências do novo
modelo de acumulação, foi mediada pela presença ativa do Estado, que cria uma legislação
trabalhista compatível com as novas relações de trabalho. Dentro dessa legislação, a instituição
de um salário mínimo era de crucial importância. De acordo com Oliveira, a criação do salário
mínimo teve um papel extremamente importante no novo modelo de acumulação “que se
iniciava ou que se buscava reforçar, por duas razões básicas: de um lado, propiciava o horizonte
médio para o cálculo econômico empresarial, liberto do pesadelo de um mercado de
concorrência perfeita, no qual ele devesse competir pelo uso dos fatores; de outro lado, a
legislação trabalhista igualava reduzindo – antes que incrementando – o preço da força de
trabalho”. 4039
Além de criar o mercado de trabalho, o Estado teve que resolver o problema do
financiamento do processo de acumulação. Na ausência de um mercado de dinheiro, as
necessidades de financiamento da acumulação, agora voltada para uma realização parcial interna
crescente, não podiam ser satisfeitas pela própria burguesia industrial; e isto por duas razões;
primeiro, não havia capital-dinheiro ocioso para potenciar o nascimento de uma rede bancária,
que pudesse capitalizar os recursos disponíveis em um setor e realocá-los naqueles que
demandavam financiamento; segundo, o processo de concentração e centralização de capital
industrial era ainda muito frágil, o que impossibilitava a formação de mecanismo de
financiamento. Diante desta realidade, somente o Estado poderia financiar o processo de
investimento do novo modelo emergente de acumulação. Um dos expedientes utilizados pelo
Estado é sobejamente conhecido: o confisco cambial imposto sobre as receitas dos exportadores
de café. Assim, através deste confisco, o excedente gerado no setor exportador da economia era
transferido para o setor industrial. Além disso, o Estado reestrutura sua rede de bancos oficiais e
cria outros, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE).

39
38 Oliveira, Francisco de. A economia brasileira: crítica da razão dualista. Petrópolis, Vozes, 1987. p. 14.
40
39 Idem, p. 16
Quanto ao setor produtor de bens de capital e de insumos básicos, novamente foi o Estado
que teve que criá-lo. Tal como o problema do financiamento, este não poderia Ter sido resolvido
pela burguesia industrial. A razão da incapacidade da burguesia para instalar este setor é clara: o
capital aí investido tem um tempo de rotação muito elástico; vale dizer: o capital-dinheiro
somente é recuperado depois de um longo período de produção e de circulação. A burguesia
industrial de então não dispunha de dinheiro suficiente para aplicar em atividades desta natureza,
não estava disposta a abrir mão de seu capital-dinheiro para recuperá-lo somente depois de
muitos anos.
Assim, somente o Estado poderia realizar as inversões necessárias para criar o setor de
produção de bens de capital e de insumos básicos. Para isto, o Estado se valeu de dois caminhos:
primeiro incentivou as exportações para gerar as divisas necessárias, com as quais seriam
comprados, no exterior, os insumos para as mercadorias que seriam produzidas internamente; e
segundo investiu diretamente na produção de máquinas, equipamentos e instalações, energia etc.
De sorte que, assim sendo, ao mesmo tempo em que o Estado incentivava as exportações,
diversas empresas estatais eram criadas para produzir os insumos básicos requeridos pela
economia, tais como energia, telecomunicações, siderurgia e assim por diante.
Dessa forma são criadas as condições materiais para o desenvolvimento do novo modelo de
acumulação industrial, que nasce, é claro, pelas mãos do Estado. O Estado é o seu parteiro.
A partir daí a ação estatal assume uma nova forma: além de garantir os pré-requisitos
estruturais (defesa da propriedade privada, intervenções cíclicas para corrigir as
desfuncionalidades do sistema etc.) para a reprodução do sistema enquanto sistema produtor de
mercadorias, sua função clássica, por excelência, passa a criar e recriar, permanentemente,
através dos fundos públicos,4140 as condições para o processo de acumulação de capital. De
Estado gendarme passa a ser Estado interventor.
Assim nasce, portanto, o Estado interventor no Brasil. Em comparação com seus parceiros
do capitalismo maduro, o Estado interventor brasileiro guarda identidades e diferenças, que
valem a pena ser ressaltadas, uma vez que disto depende a compreensão de como o
neoliberalismo ganha, aqui, a força ideológica que assume em nível internacional.
Começando pelas identidades, convém ressaltar que, tanto no Brasil como nas assim
chamadas economias centrais, o ,surgimento da ação estatal interventora coincide no tempo. Os
anos trinta são seu ponto de partida. Esta coincidência não é apenas uma questão cronológica.
Ela se deve à própria natureza internacional do capital, que, ao se desenvolver, prende todas as
economias a uma única e mesma lógica: a lógica da acumulação, que obriga que o Estado ponha
o capital sob os grilhões da regulação esta tal,4241 como também exige do Estado que este,
principalmente através da dívida pública, revalorize os capitais improdutivos, que não encontram

41
40 No capitalismo contemporâneo, os circuitos de valorização do capital passam cada vez mais por um processo
de reciclagem estatal. O Estado, ao se apropriar do excedente de capital sob a forma de impostos, devolve pane deste
excedente aos capitalistas, que dependem cada vez mais dos fundos públicos pula sustentar sua capacidade de
investimento. O Estado cumpre, assim, uma função socializadora, na medida em que redistribui parte do excedente
entre os diversos circuitos privados de acumulação e desta maneira, contrapõe-se à tendência decrescente da taxa de
lucro.

42
41 Marx, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo, Nova Cultural, 1985. livro I, v. I, p. 196: “O
impulso à prolongação da jornada de trabalho, a feroz voracidade por mais trabalho, que temos observado até agora
numa área, na qual os abusos desmesurados são ultrapassados... pelas crueldades dos espanhóis contra os índios na
América, colocaram finalmente o capital sob os grilhões da regulação legal".
canais de valorização produtiva. Assim, o Estado é obrigado a assumir funções permanentes de
planejamento da economia, não só via produção de bens públicos (educação, saúde, transporte,
saneamento, seguridade social etc.), como também sustentar o processo de acumulação por meio
da intervenção direta nas políticas de inversões privadas. É esta lógica que está na base do
Estado interventor, não importa sua localização geográfica.
Se a lógica que fundamenta a racionalidade do Estado interventor é a mesma, no Brasil e no
resto do mundo capitalista, os desdobramentos de sua ação têm particularidades específicas. Nos
países do capitalismo maduro, o Estado interventor gozou de um relativo êxito e legitimidade,
diante da sociedade como um todo. Na sociedade brasileira, ao contrário, a intervenção estatal
foi estruturalmente incapaz de propiciar um mínimo de bem-estar material para a grande maioria
da população. 4342Diante disso, cabe perguntar o que explica a legitimidade de que desfrutou o
Estado interventor no "Primeiro Mundo".
Longe de minorar as desigualdades sociais, o Estado interventor, no Brasil, aprofundou-as
cada vez trais. Isto POI-(ILIC ele nasce no Brasil sob uma base econômica herdada do período
colonial e, por isso, com uma estrutura extremamente brutal de concentração de renda, o que não
aconteceu com os seus congêneres do mundo industrializado. Além disso, aqui, o Estado nasce
para criar um modelo de acumulação industrial que não existia e que, por isso mesmo, surge
desde o princípio sob uma dupla pressão: criar as condições para o nascimento-desenvolvimento
da indústria e promover uma política social voltada para atenuar as desigualdades sociais. Esta é
a principal razão que diferencia o Estado interventor no Brasil dos seus parceiros do "mundo
desenvolvido"- Aqui o Estado nasce para criar uma sociedade capitalista industrializada; lá,
surge quando o capitalismo ingressava em sua terceira revolução tecnológica e, assim, com um
modelo de distribuição de renda entre capital e trabalho mais eqüitativo, não marcado pelas
desigualdades de renda de um país onde o grosso da população era egresso da escravidão.
No que pese tais diferenças, o fato de o Estado interventor brasileiro e seus congêneres nos
países centrais serem marcados por uma mesma racionalidade, tanto aqui como naqueles países o
Estado entra em crise pelas mesmas razões: erosão de suas bases de legitimidade e crise fiscal.
A crise fiscal decorre da natureza mesma da lógica da produção de mercadorias. Com efeito, é
inerente ao sistema produtor de mercadorias produziu uma desigualdade crescente na
apropriação da riqueza social. Isto porque o processo de acumulação se converte em um
processo em que a apropriação do excedente econômico se faz cada vez mais à custa do

43
42 Comparando as políticas do trabalho e de garantia de renda no Brasil, na Itália, na França e na Inglaterra,
Pochmann defende a tese de que aqui, no Brasil, estas políticas, ao invés de potencializarem um padrão de consumo
mais homogêneo, como aconteceu naqueles países europeus, foram utilizadas muito mais como instrumentos
efetivos da acumulação e de controle inflacionário. efetivos da acumulação e de controle inflacionário.
Reconhecendo que a implementação do salário mínimo, no inicio dos anos quarenta, tinha como preocupação fazer
deste salário um salário suficiência, isto é um salário comprometido com as necessidades biológicas do trabalhador,
o abandono desta concepção, a partir de meados da década de sessenta, diz Pochmann, "deixou de ser uma forma de
incorporação controlada da força de trabalho (padrão salário suficiência) ao padrão de consumo fordista para se
transformar claramente, a partir de 1964, num elemento de universalização excludente dos frutos da industrialização.
Isso porque a generalização da legislação do mínimo para o setor rural e outras ocupações urbanas ocorreu
descomprometida com a garantia de um nível mínimo de satisfação das necessidades normais du trabalhador. Ou
seja, a política do salário mínimo, ao romper com os seus objetivos originais, excluiu automaticamente a
possibilidade de efetivamente atuar como uma medida voltada para o enfrentamento da pobreza nacional".
(Pochmann, Marcio. Políticas de trabalho e de garantias de renda no capitalismo em mudança: um estudo sobre as
experiências da França, da Inglaterra, da Itália e do Brasil desde o segundo pós-guerra aos dias de hoje. São
Paulo, LTr, 1995. P. 223
trabalho.4443A este respeito é bastante ter presente que o desenvolvimento do processo de
acumulação leva a que uma parcela cada vez menor deste excedente seja reinvestida em salários.
Em conseqüência disso, cresce o número de desempregados, que aumenta na medida em que o
sistema procura recuperar a taxa de lucro via aumento da mais-valia relativa, que se faz através
da incorporação de tecnologias voltadas para dispensar trabalho vivo. Resultado: crescem a
miséria e as desigualdades sociais. O Estado não tem como enfrentar essa dialética inerente ao
sistema produtor de mercadorias, pois só pode agir sobre os seus efeitos e não sobre as suas
causas. Além disso, os recursos de que dispõe para tanto são cada vez menores diante do
aumento das necessidades e das carências sociais. Aliado a isso, o Estado se vê obrigado a
sustentar grandes monopólios, para evitar a sua falência e, assim, impedir uma crise de
dimensões sociais e políticas imprevisíveis para o sistema. Abre-se, por conta disso, urna crise
fiscal permanente, que se expressa numa dívida pública gigantesca, que, em alguns países, chega
a representar quase 80% do Produto Interno Bruto.
No caso do Brasil, os efeitos dessa crise fiscal foram bem mais acentuados do que nos
chamados países centrais. Aqui, ela representa a falência de um modelo de acumulação que tem
no Estado o seu principal financiador. É o que os economistas chamam de crise do padrão de
financiamento brasileiro.
Mas isso ainda não é tudo. Além da crise fiscal, assiste-se, hoje, no mundo todo, a uma
erosão das bases políticas de sustentação do Estado interventor. Referindo-se aos países
europeus, essas bases do Estado do bem-estar social vêm sendo erudidas, argumenta Offe, por
conta da "desorganização de vastas, relativamente estáveis e abrangentes comunidades de
interesse econômico, filiação associativa, valores culturais e estilos de vida, [que] constituem a
chave para a compreensão adequada do enfraquecimento geral dos comprometimentos de caráter
solidário"4544 que dão sustentação ao Estado do bem-estar.
As coisas não são muito diferentes no Brasil. Aqui, a descrença com o Estado interventor é
alimentada por campanhas políticas da direita populista, que vê na intervenção do Estado a raiz
de todos os males sociais: inflação, corrupção, ineficiência, desmandos etc. Por conta disso,
passam-se a advogar idéias contra a ingerência estatal abusiva na economia e na sociedade como
um todo, ao mesmo tempo em que se põem em ação políticas voltadas para desestatização da
sociedade. O governo de Fernando Henrique Cardoso prega abertamente a necessidade de se
passar de uma fase estatal do desenvolvimento econômico e social para uma outra fase, na qual a
sociedade possa comandar, a partir de si mesma, ações para combater a miséria, a fome e a
marginalidade social.
Essa política liberalizante não começou no governo de FHC . Ela tem antecedentes
históricos, que guardam semelhanças muitos próximas com o que vem ocorrendo nos chamados
países centrais. Aqui, como lá, a lógica para superar a crise é a mesma: desmantelamento do
aparato burocrático do Estado,, desverticalização produtiva, flexibilização do mercado de
trabalho e, desregulação da economia.
No plano das idéias, esses antecedentes históricos remontam ao ano de 1989, quando em
novembro daquele ano reuniram-se, em Washington, funcionários do governo norteamericano e

44
43 Esse processo só pode ser entendido em todas as suas conseqüências quando se tem presente o que Marx
examina no capítulo 22 do livro I de O capital, onde ele mostra como as leis de produção de mercadorias se
convertem, por sua própria dialética interna, no seu contrário direto.
45
44 Offe, Claus, Capitalismo desorganizado. São Paulo, Brasiliense, 1989. p, 308.
dos organismos financeiros internacionais ali sediados (FMI, Banco Mundial e BID), para fazer
uma avaliação das reformas econômica empreendidas na América Latina.
"Nessa avaliação [...] registrou-se amplo consenso sobre excelência das reformas iniciadas
ou realizadas na região [...]. Ratificou-se, portanto, a proposta neoliberal que o governo
norte-americano vinha insistentemente recomendando [...] como condição para conceder
cooperação financeira externa, bilateral ou multilateral”.4645
As conclusões e recomendações dessa reunião passaram a ser conhecidas como o Consenso
de Washington. Suas propostas abrangiam dez áreas: disciplina fiscal, priorização dos gastos
públicos; reforma tributária; liberalização financeira; regime cambial; liberalização comercial;
investimento direto estrangeiro; privatização; desregulação e propriedade intelectual.
Essas propostas podem ser resumidas em dois pontos básicos: redução do tamanho do
Estado e abertura da economia. Em síntese, a política econômica deve ser feita em nome da
soberania do mercado autoregulável nas suas relações econômicas internas e externas.
Foi nessa direção que o governo Fernando Collor se desenvolveu. Com efeito, é com ele
que tem início o processo de abertura da economia ao mercado internacional, via redução das
barreiras alfandegárias. O programa de privatização e de desmonte do Estado faz parte da
agenda Collor, como precondição para o combate da inflação. Além disso, é no seu governo que
é lançado o programa de reestruturação produtiva, segundo o qual as empresas deveriam
procurar um processo de gestão pela qualidade e produtividade, único caminho capaz .de
torná-las mais competitivas para entrarem no chamado mundo desenvolvido, "com colaboradores
mais felizes e engajados, numa relação em que todos - patrões, empregados e a sociedade - sejam
vencedores O Primeiro Mundo exige qualidade como premissa; ser certificado pelo ISO é, sem
dúvida, o melhor passaporte para nele ingressar".4746
A falência política do governo Collor não muda as premissas básicas do seu programa. O
governo de Fernando Henrique Cardoso mantém a mesma agenda: acabar com a inflação,
privatizar, reformar a Constituição para flexibilizar as relações entre o Estado e a sociedade,
assim como as relações entre capital e trabalho. Corno declarou Weffort na imprensa, o Brasil
está saindo de uma fase estatal para ingressar em uma outra em que se exige uma menor
presença do Estado na sociedade. Sendo assim, não seria exagero afirmar que os governos de
Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso adotam, na sua essência, as propostas
preconizadas pelo Consenso de Washington. Tais propostas, nas palavras de um liberal
esclarecido, que fez carreira diplomática no governo, e que "acha que chegou a hora de botar a
boca no trombone"; ais propostas são "uma receita de regressão a um padrão econômico
pré-industrial caracterizado por empresas de pequeno porte e fornecedoras de produtos mais ou
menos homogêneos. modelo é o proposto por Adam Smith e referendado com ligeiros retoques
por David Ricardo faz dois séculos". Mais diante lê-se que tal modelo, que prega a redução do
Estado função estrita de manutenção da lei e da ordem econômica, "poderia ser válido no mundo
de Adam Smith e David Ricardo, em mercados atomizados de pequenas e médias empresas
gerenciadas por seus proprietários e operando em condições de competição mais ou menos
perfeitas; universo em que a mão-de-obra era vista como uma mercadoria, a ser engajada e
remunerada exclusivamente segundo as forças da oferta e da demanda; uma receita, portanto, de

46
45 Batista, Paulo Nogueira. o Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-americanos.
Caderno Dívida Externa, n. 6, p. 5, 1994.
47
46 Maranhão, Mauriti. ISSO: série 9000 (manual de implementação). Rio de Janeiro, Qualitymark, 1994, p. VII
há muito superior e que pouco tem a ver com os modelos modernos de livre empresa que se
praticam, ainda que de formas bem diferentes, no Primeiro Mundo.4847
Indignações de um liberal no fim da vida? Seja lá como for, uma coisa é certa: o Brasil caminha
com "botas de sete léguas" em direção a uma economia cada vez mais marcada e dominada pela
lógica do mercado.
Para uma economia em que a fase estatizante de seu desenvolvimento é considerada
superada e que, por isso, é chegado o momento da desestatização, da volta às leis do mercado,
como princípio regulador da economia e da sociedade como um todo. Nesse sentido, pode-se
dizer que o receituário neoliberal é uma realidade no Brasil.
Se o Brasil conseguirá ou não implementar esse programa neoliberal em todas as suas
conseqüências, é uma questão de natureza empírica. Vale dizer: ela não pode ser antecipada
teoricamente. Entretanto, a teoria que dá sustentação a esse programa de ação pode ser julgada,
que é o que se pretende fazer a partir de agora, de modo que, assim, se cumpram as exigências
expositivas adiantadas no início deste texto.

4.1 Neoliberalismo: o mercado como controle do poder político

De acordo com Hobbes e Locke, os homens nascem com certos direitos (direito à vida, à
liberdade e à felicidade), que são imanentes à sua própria natureza. Nascem com eles,
independentemente da constituição de qualquer comunidade política e, por isso mesmo, tais
direitos não podem ser violados pelo Estado, que detém o poder legítimo de exercer a força para
obter a obediência dos indivíduos. Ao contrário, devem ser respeitados e reconhecidos pelo
poder estatal.
Essa é a base sobre a qual se erigem as teorias do contrato social, que tomam a subjetividade
como princípio fundante do agir e do pensar do homem. É a partir daí que emerge a pergunta
pelas condições de possibilidades da sociabilidade, isto é, das condições de possibilidades da
unificação dos indivíduos num corpo político, que seja resultado da vontade de todos os
indivíduos. É assim que a associação pactual surge como questão central desta nova ciência. Sua
tarefa é fundar uma norma ética q, que seja expressão de uma vida livre, edificada na igualdade e
na fraternidade entre os homens.
No seu sentido mais geral, as teorias contratualistas inauguram uma nova forma de pensar,
segundo a qual “o único fundamento do homem é agora ele mesmo, que se descobre em sua
absoluta individualidade e dignidade. Se é assim”, continua Oliveira, “então na ordem política
natural prévia, que seja a suprema realização do homem, mas antes a questão do político surge ao
homem moderno como instância que é condição de possibilidade da subjetividade. Portanto, a
comunidade deixa de ser algo natural para tornar-se algo produzido pelo homem, e a primeira
pergunta neste contexto é a das condições de possibilidade da comunidade enquanto tal; esta é
precisamente, a pergunta pela soberania, tema central da filosofia política modema".4948
Entretanto, por trás da descoberta da subjetividade como princípio fundante da
sociabilidade, repousa uma concepção individualista de sociedade, Uma concepção que defende

48
47 Batista, Paulo Nogueira. Op. cit., P. 27. Neoliberalismo: o mercado enquanto condição de para a liberdade
humana

49
48
Oliveira, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. Op. cit., p. 96B
a idéia de que primeiro existe o indivíduo, com seus interesses e carências, e depois a sociedade,
como resultado de um pacto que eles estabelecem para viverem sob as leis instituídas
politicamente. A sociedade aparece, assim, não mais como algo natural, como o era no
pensamento antigo, mas, sim, como algo criado pelos indivíduos, para satisfazer suas carências e
interesses privados. Tudo isso é possível porque, como explica Bobbio, "existe na natureza uma
lei que atribui a todos os indivíduos alguns direitos fundamentais de que o indivíduo apenas pode
se despir voluntariamente, dentro dos limites em que essa renúncia, concordada com a análoga
de todos os outros, permite a composição de uma livre e ordenada convivência".5049
Com o surgimento da EPC, essa concepção individualista de sociedade assume uma
dimensão fundante. Para esta ciência, todos os indivíduos nascem com carências e desejos que
precisam ser satisfeitos. E ninguém melhor do que o próprio indivíduo para satisfazê-los, pois,
como dirá Adam Smith, todos os homens nascem com desejos isentos de paixão, que "herdamos
do seio materno e que nunca nos abandonará até a sepultura. Em todo espaço de tempo que
medeia entre o berço e a sepultura, dificilmente haverá um só momento em que uma pessoa
esteja tão perfeita e completamente satisfeita com sua situação, que não deseje alguma mudança
ou melhoria, de qualquer tipo que seja".5150
É a partir daí que a EPC vai fazer do interesse próprio, do egoísmo, o centro a partir do qual
se tece e se constrói a sociabilidade, se edifica a sociedade. O interesse próprio, enquanto
qualidade inata dos indivíduos, é o melhor meio para assegurar a coesão do todo social, pois cada
um, ao cuidar de si mesmo, termina por beneficiar o outro, na medida em que aprende que sua
atividade e a satisfação de suas carências dependem da atividade e da satisfação dos desejos e
carências dos outros indivíduos. De sorte que, assim sendo, porque cada um só cuida de si
próprio e nenhum do outro, todos realizam, sob os auspícios de uma razão invisível, o bem
comum de todos, o interesse geral da sociedade.
Essa razão invisível, quase diabólica e que constrói o todo social a partir do resultado dos
encontros e dos desencontros de interesses, é o mercado. Ele surge como algo natural, porque
não foi produzido de forma intencional, mas, sim, como produto de certa propensão ou tendência
natural, que empurraria a todos os indivíduos para viverem em uma sociedade em que suas
necessidades só podem ser satisfeitas pelo comércio, pela troca. Este é o espaço, por excelência,
da realização da liberdade dos indivíduos. Por conta disso, o Estado deve interferir o mínimo
possível na liberdade dos indivíduos. Afinal de contas, foi o esforço individual de cada um, no
sentido de melhorar a sua própria condição, como diria Adam Smith, que deu sustentação ao
avanço da Inglaterra em direção ao progresso e ao desenvolvimento social.
É daí que parte a teoria neoliberal para defender a idéia de que o mercado é o único meio
para a obtenção da liberdade política. Isto porque "a ameaça fundamental à liberdade", diz
Friedman,

“consiste no poder de coagir, esteja ele nas mãos de um monarca, de um ditador, de uma
oligarquia ou de uma maioria momentânea. A preservação da liberdade requer a maior
eliminação possível de tal concentração de poder e a dispersão e distribuição de todo o poder que
não puder ser eliminado - um sistema de controle e equilíbrio. Removendo a organização da
atividade econômica do controle da autoridade política, o mercado elimina essa fonte de poder

50
49 Bobbio, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo, Brasiliense, 1988. P. 16
51
50 Smith, Adam. Op. cit., p. 293
coercitivo, Permite, assim, que a força econômica se constitua num controle da poder político,
então num reforço.5251

4.2. Os conceitos centrais da teoria neoliberal


4.3.
A partir do que foi exposto, pode-se afirmar que o mercado desempenha um duplo papel na
promoção de uma sociedade livre. De um lado, porque garante a liberdade econômica, que é
parte da liberdade entendida no seu sentido amplo e, portanto, um fim em si própria. Em
segundo lugar, o mercado é um instrumento para a obtenção da liberdade política. Daí a
necessidade, para a teoria neoliberal, de mostrar que o mercado é um mecanismo intranscendível
no processo de produção e reprodução da vida social. É o que Friedman deixa claro quando
admite que, nas sociedades contemporâneas, 4 g a necessidade de coordenação, para usar de
maneira totalmente conveniente as oportunidades oferecidas pela ciência e tecnologia modernas,
é muito maior. Literalmente, milhões de pessoas estão envolvidas em fornecer diariamente um
ao outro o pão necessário - além dos automóveis. O desafio para quem acredita na liberdade
consiste em conciliar essa ampla interdependência com a liberdade individual".5352
Para defender esta idéia, o neoliberalismo parte do mercado como a realidade empírica
central e a partir daí vai contrapor dois conceitos-limite,5453 um positivo, o conceito de mercado
perfeito ou de concorrência perfeita, e um negativo, o conceito de "caos", que serve, segundo
Oliveira,5554 para exprimir a destruição do mercado. Estes conceitos, de acordo com a leitura de
um filósofo, "não são em si mesmos conceitos empíricos, mas construídos a partir da experiência
empírica do mercado na intenção de demonstrar o caráter intranscendível do mercado numa
economia complexa... Trata-se, portanto, de idealizações com a finalidade de entender melhor a
realidade empírica de onde se parte”. 55
Mas, o que se deve entender por mercado perfeito ou por concorrência perfeita? É um
modelo de concorrência, em que cada agente econômico é tão pequeno em relação ao mercado
que não pode exercer nenhuma influência sobre o preço das mercadorias ofertadas. Além disso,
pressupõe-se que o produto de qualquer vendedor seja homogêneo quando comparado ao
produto de qualquer outro vendedor, de tal forma que os consumidores são indiferentes à
empresa na qual eles compram suas mercadorias. A essas características ideais do mercado
perfeito sornam-se duas outras: livre mobilidade dos recursos, de tal sorte que qualquer empresa
possa entrar e sair do mercado como resposta aos impulsos monetários; e perfeito conhecimento,
da parte dos consumidores, produtores e proprietários de recursos, do fato de um mercado ser
perfeitamente competitivo, de modo que obedeça as características delineadas anteriormente.
Um perfeito conhecimento do mercado exige que não só se conheça o presente, como também o
futuro. Sem esse conhecimento onisciente, a concorrência não poderá prevalecer.

52
51 Friedman, Milton, Capitalismo e liberdade. São Paulo, Abril Cultural, 1984 p. 23-4. Os grifos são
nossos.
53
52 Idem, p. 21.
54
53 Idem, ibidem: "só há dois meios de coordenar as atividades econômicas de milhões: um é a direção central
utilizando a coerção - a técnica do Exército e do Estado totalitário moderno. O outro é a cooperação voluntária dos
indivíduos - a técnica do mercado”.
55
54 Oliveira, Manfredo Araújo de. Neoliberalismo e ética, In: _______. Ética e economia. Op. cit., p. 12
A teoria neoliberal usa esse conceito de mercado perfeito para contrapô-lo, assim, ao
conceito de "caos", que exprime a destruição do mercado. Usa aquele conceito, portanto, para
julgar que qualquer mecanismo de coordenação consciente da atividade econômica - quer se
expresse por meio de uma direção centralmente planejada, como foi o caso do socialismo real,
quer através de uma regulação socialmente dirigida do mercado através do chamado Estado do
bem-estar social -, é incapaz de promover, com eficiência, a produção e a distribuição da riqueza.
E, o que é pior, para esta teoria, quaisquer mecanismos de coordenação consciente do mercado
significam concentração de poder nas mãos de um grupo particular de pessoas e, assim, uma
ameaça fundamental à liberdade. Somente em uma economia de mercado "o consumidor é
protegido da coerção do vendedor devido à presença de outros vendedores com quem pode
negociar. O vendedor é protegido da coerção do consumidor devido à existência de outros
consumidores a quem pode vender. O empregado é protegido da coerção do empregador devido
aos outros empregadores para quem pode trabalhar, e assim por diante. E o mercado faz isso,
impessoalmente, sem nenhuma autoridade centralizada".5656
Além de tudo isso, a complexidade das sociedades modernas contemporâneas impede que
qualquer indivíduo ou grupo particular de pessoas possa coordenar as diversas atividades de
milhões de pessoas. Ao contrário do que se poderia pensar, tentar impor uma ordem à aparente
desordem do mercado seria produzir a desordem e o caos, pois ninguém poderia dispor de um
conhecimento tal que permitisse uma coordenação direta de todas as necessidades dos
indivíduos.
É nesse sentido que se diz que o mercado emerge como mecanismo capaz de suprir a falta
de conhecimentos. Isto porque qualquer indivíduo tem um conhecimento mais completo e
perfeito de suas atividades específicas do que qualquer plano de coordenação imposto de fora por
uma autoridade planejadora. Se cada indivíduo ou empresa busca apenas defender o que acredita
ser os seus próprios interesses, esse comportamento acaba por levar à formação de uma ordem
espontânea, dotada de uma lógica interna consistente e capaz de garantir uma alocação eficiente
dos recursos da economia.

4.3. Teoria neoliberal: uma teoria autocontraditória

Para que o mercado possa cumprir a sua função de alocação eficiente dos recursos da
economia (terra, capital e trabalho) e, assim, alcançar um ponto ótimo de equilíbrio, a
interferência do Estado deve ser a mínima possível. Cabe ao poder estatal unicamente a função
de determinar as regras do jogo, interpretá-las e fazer vigorar as regras estabelecidas. Assim,
cabe ao Estado proteger a liberdade dos indivíduos, preservar a lei e a ordem, reforçar os
contratos privados e promover o mercado competitivo.5757 Em síntese, desde que o Estado cuide

56
56 Friedman, Milton. Op. cit., p. 23.
57
57 Idem, p. 39: “Um governo que mantenha a lei e a ordem; defina os direitos de propriedade; sirva de meio para a
modificação dos direitos de propriedade e de outras regras do jogo econômico: julgue disputas sobre a interpretação
das regras; reforce contratos; promova a competição; forneça uma estrutura monetária, envolva-se em atividades
para evitar monopólio técnico e evite os efeitos laterais considerados como suficientemente importantes para
justificar a intervenção do governo; suplemente a caridade privada e a família na proteção do irresponsável, quer se
trate de um insano ou de uma criança; um tal governo teria, evidentemente, importantes funções a desempenhar. O
liberal consistente não é um anarquista”.
dos direitos de propriedade e reforce os contratos privados, o mercado, por si só, promoverá a
distribuição eficiente dos recursos e. assim, o bem-estar geral da sociedade.
Para admitir que essa função vigilante do Estado é suficiente para garantir o automatismo
auto-regulativo do mercado e, assim, o equilíbrio geral dos preços e quantidades ofertadas, os
neoliberais teriam que demonstrar as condições automáticas de possibilidade desse equilíbrio.
Isto eles não conseguem fazer. E não o conseguem porque sua teoria é autocontraditória.5858
Com efeito, o equilíbrio só pode se realizar na medida em que todos os agentes econômicos
possuam um perfeito conhecimento do mercado. Entretanto, para criticar qualquer tipo de
coordenação imposta de fora à economia, os neoliberais alegam que ninguém pode deter um
conhecimento dessa natureza, e que, por esta razão mesma, só o mercado poderá coordenar as
atividades econômicas de milhões de pessoas, de sorte que, assim, para que seja possível o
equilíbrio de mercado, pressupõe-se o que ninguém é capaz de possuir: um perfeito
conhecimento do mercado. Desse modo, a teoria neoliberal se autodestrói; desdiz o que diz.
Além disso, Oliveira reconhece outras restrições à teoria neoliberal, que comprometem toda
a sua estrutura argumentativa. Trata-se do fato de que, diz ele, “o mercado supre a falta de
conhecimento, mas jamais fornece propriamente informações, pois ele é simplesmente um
mecanismo que transmite reações: pelo mercado sabemos que atividade cortar, mas não que
atividade desenvolver. O mercado é , assim, um simples sistema de reações ex-post, e por esta
razão mesma não pode haver no mercado uma tendência ao equilíbrio, uma vez que tal tendência
pressupõe a possibilidade de derivar indicações confiáveis de ação ex-ante. Realmente, a
concorrência perfeita pessupõe um perfeito conhecimento do futuro tanto quanto do presente.
59
60
Implodem-se, assim, as bases sobre as quais se alicerça toda a estrutura conceitual de que se
servem os neoliberais para defender o mercado como único mecanismo promotor de crescimento
e de desenvolvimento social. Consequentemente, o programa de ação proposto pelos neoliberais
fica, no mínimo, comprometido teoricamente. O realismo de mercdo, como solução para a crise
do Estado interventor, não pode ser legitimado no plano da teoria e, assim, também, no plano
ideológico.

4.4 A base normativa da teoria neoliberal

Se a teoria neoliberal é uma teoria autocontraditória, isto deveria ser suficiente para
rejeitá-la, in totum. Entretanto, ela permanece exercendo uma grande influência, não só sobre a
direita, como também sobre a esquerda, nos seus mais diversos matizes. A razão disso deve-se,
talvez, á falta de esperança e descrença com as políticas do estado interventor, cuja crise assume,
hoje, uma dimensão desmotivadora em relação a quaisquer programas de abrangência coletiva.
Assim, o grande vazio produzido pelo fim do chamado socialismo real e a crise do modelo
social-democrático de produção abrem espaço para aqueles que propõem a liberdade de mercado
como a única alternativa para enfrentar os problemas atuais de emprego, seguridade, saúde,
educação, saneamento, transporte etc.
Em razão disso, faz-se necessário explicitar a base normativa da teoria neoliberal, para aí
perguntar, em seguida, se esta base é capaz de responder às exigências de uma vida
58
58 Deve-se reconhecer a Manfredo Araújo de Oliveira, que por sua vez apoia-se em F. J. Hinkelammert (El marco
categorial del pensamiento neoliberal actual. In: _________. Crítica de la razón utópica. San José, 1984), o mérito
na discussão desse caráter contraditório do pensamento neoliberal. A este respeito, ver Oliveira, M. A . de.
Neoliberalismo e ética. Op. cit. P. 19 e ss.
59
60 Ferguson, C. E. Teoria microeconômica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1983. P. 276 e ss.
verdadeiramente livre, na qual o homem possa ser senhor de sua própria vontade e, assim, sujeito
consciente de seu pensar e de seu agir. Em outras palavras, seerá que o mercado é realmente
capaz de realizar a liberdade? Será que ele pode de fato se constituir na instância, por excelência,
das condições de possibilidades para a realização de uma vida verdadeiramente ética?
Para tanto, faz-se necessário explicitar, ainda que em rápidas pinceladas, os pressupostos
éticos implícitos na teoria neoliberal. Tais pressupostos, como já deve Ter ficado claro, são
derivados da EPC, para quem o mercado era considerado um produto natural do
desenvolvimento da natureza humana. Realmente ao tratar da origem da divisão do trabalho,
Smith esclarece que a divisão do trabalho,

“Da qual derivam tantas vantagens, não é, em sua origem, o efeito de uma sabedoria humana
qualquer, que preveria e visaria a essa riqueza geral à qual dá origem. Ela é conseqüência
necessária, embora muito lenta e gradual, de uma certa tendência ou propensão existente na
natureza humana que não tem em vista essa utilidade extensa, ou seja: a propensão a
intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra... Essa propensão encontra-se em todos os
homens, não se encontrando em nenhuma outra raça de animais, que não aprecem conhecer nem
essa nem qualquer espécie de contratos”.6061
O homem é considerado, assim, uma animal que produz mercadorias, coisas para serem
trocadas, comercializadas. Por isso, aos olhos de um observador imediato, as sociedades
modernas, onde dominam as relações mercantis, são vistas como um grande bazar. Todos os
indivíduos se reportam uns em relação aos outros somente como proprietários de mercadorias,
que chegam ao mercado para vender seus produtos, e através desta venda obter aqueles que são
necessários à satisfação de suas necessidades, sejam elas provenientes do estômago ou da
fantasia. Só através do mercado podem os indivíduos obter o que é necessário à sua
sobrevivência, visto que tudo o que existe para este fim existe na forma de mercadoria. Portanto,
a troca de mercadorias emerge, assim, como elemento constituidor das relações entre os
indivíduos, pois cada um só é considerado pelo outro na medida em que se apresenta como meio
para a satisfação de suas necessidades. Na medida, pois, em que tem alguma coisa para permutar
com os demais indivíduos.
Se todo e qualquer indivíduo só é considerado na condição de proprietário de mercadorias, esta
qualidade transforma todos os membros da sociedade em pessoas livres e iguais. A igualdade é
uma exigência mesma imposta a todos os possuidores de mercadorias. Com efeito, para que a
troca possa se constituir na relação social dominante, os proprietários de mercadorias precisam
ser reconhecidos reciprocamente como tais. A troca mesma encerra em si as condições de
possibilidade para isto. De fato, para que as diferentes mercadorias possam ser permutadas entre
si, elas têm que se referir umas às outras como objetos de valores iguais.6162 Sem esta condição,
a troca desembocaria num roubo generalizado, cujo resultado seria um jogo de soma zero. Com
efeito, se um comprador qualquer vende sua mercadoria acima de seu valor, o que ele ganha
poderá perder na condição de comprador. Afinal de contas, ele só pode assumir a função de
vendedor se exerce a de comprador, pois ele é também um consumidor e. enquanto tal, só poderá
realizar seu consumo, como todo mundo o faz, através do mercado. Consequentemente, como
todo e qualquer indivíduo é, sirnultaneamente, comprador e vendedor, o resultado da operação de
vender acima do valor atinge a todos, o que termina por levar que as mercadorias sejam vendidas

60
61 Smith, Adam. Op. cit., p. 49
61
62 Marx demonstra isto quando investiga o processo de transformação do dinheiro em capital, no capítulo IV de O
capital, Livro I, V. I
e compradas de acordo com o principio da equivalência. De sorte que, assim sendo, a
equivalência dos valores permutados acaba por se impor como exigência do próprio processo
real de troca.
É assim que o princípio da equivalência se transforma no fundamento que legitima a própria
existência da sociedade produtora de mercadorias. Com efeito, é este princípio que dá ao
indivíduo certa segurança de que ele encontrará, no mercado, um equivalente, em valor, para o
que produziu; que ele poderá continuar a produzir para o mercado, porque aqui, como ele,
encontrará outros compradores e vendedores dispostos a permutarem os produtos de seu trabalho
com o dele. Consequentemente, todos, portanto, se apresentam como iguais porque o que cada
um possui, conseguiu-o na extensão do valor do que deu em troca.6263
A troca não exige apenas a igualdade entre os possuidores de mercadorias. Igualmente, ela
requer que eles sejam considerados pessoas livres. Tal exigência é reportada por Marx nos
seguintes termos: "ainda que o indivíduo A sinta a necessidade de possuir a mercadoria do
indivíduo B, não se apodera dela pela violência, nem vice-versa, senão que ambos se
reconhecem como proprietários de mercadorias, como pessoas cuja vontade está nas suas
mercadorias. Neste ponto aparece a noção jurídica da pessoa e, na medida em que se acha
contida naquela, a de liberdade".6364
Levando um pouco mais longe esta exposição das determinidades do processo de troca,
percebe-se que o único poder que leva os indivíduos a se relacionarem entre si é o proveito
próprio, a vantagem particular, os seus interesses privados. Cada indivíduo se serve do outro para
satisfazer a si próprio. Por conta disso, a reciprocidade assume a forma de um relacionamento
social fundado exclusivamente na lei do intercâmbio das mercadorias. Como diz Marx,

“O indivíduo A satisfaz a necessidade do indivíduo B, por meio da mercadoria “a”, somente


porque o indivíduo B satisfaz a necessidade do indivíduo A mediante a mercadoria “b”... Cada
um serve ao outro, para servir-se a si mesmo; cada qual se serve do outro, e reciprocamente,
como um meio. Na consciência de ambos indivíduos estão presentes os seguintes pontos: (1) que
cada qual alcança seu objetivo somente na medida em que serve ao outro como meio; (2) que
cada um se torna um meio para o outro (ser para o outro) somente enquanto fim para si (ser para
si); (3) que é um fato necessário à reciprocidade segundo a qual cada um é simultaneamente [...]
Essa reciprocidade é o pressuposto, condição do intercâmbio, porém enquanto tal é indiferente a
cada um dos sujeitos do intercâmbio.”6465
Segue-se daí que cada indivíduo só será reconhecido como tal na medida em que ele é, de
alguma forma, um produtor de mercadorias, um proprietário de coisas que tenham valor de troca.
Esta é uma condição que se impõe a todos, pois só como representantes de mercadorias, cada um
poderá participar do mercdo e, assim, ter acesso aos bens e serviços necessários à sua existência
individual e social. Ninguém, por mais amor que tenha à humanidade, pode deixar de se
comportar como um comerciante. Renunciar a isto é condenar-se a viver de esmolas ou da

62
63 "Não existe absolutamente nenhuma diferença entre eles, enquanto determinação formal, que é também a
determinação econômica, a determinação na qual esses indivíduos se determinam na relação do intercâmbio, [que] é
o indicador de sua função social ou de sua relação social mútua. Cada sujeito é um comerciante, isto é, tem com o
outro a mesma relação social que este tem com ele. Considerado como sujeito do intercâmbio, sua relação é pois de
igualdade” (Marx, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la economía política – Grundrisse: 1857-1858.
México, Siglo Veintiuno, 1972, v. I, p. 179.)
63
64 Idem, p. 182.
64
65 Idem, ibidem.
caridade alheia. Mesmo neste caso, ele não poderia deixar de se comportar como um
comerciante, pois, como diz Smith, “a maior parte dos desejos ocasionais do mendigo são
atendidos da mesma forma que os de outra pessoas, através d negociação, de permuta ou de
compra. Com o dinheiro que alguém lhe dá, ele compra alimento. A roupa velha que um outro
lhe dá, ele a troca por outras roupas velhas que lhe servem melhor, por moradia, alimento ou
dinheiro, com o qual pode comprar alimento, roupas ou moradia, conforme tiver
necessidade”.6566
Neste exemplo Smith deixa claro que cada indivíduo só pode entrar em contato com os
outros na medida em que ele é um proprietário de mercadorias. Por isso o mercdo se constitui
como o lugar, por excelência, no qual e através do qual se tece a malha de relações sociais. Ele se
apresenta assim como o fundamento mesmo da sociabilidade. Em conseqüência, as relações
entre os indivíduos só existem na medida em que são mediadas pela troca de mercadorias. Estas
são o elo de ligação entre eles e, como tal, transformam o poder que cada homem exerce sobre os
demais na extensão do seu poder de compra.6667 Por conta disso, as diferenças sociais entre os
indivíduos passam a ser vistas unicamente como diferenças quantitativas, como resultantes do
fato de que alguém possui mais dinheiro do que outro.6768 Com efeito, se dois consumidores
entram num supermercado, toda diferença que possa existir entre eles desaparece a partir da
lporta de entrada. Para o supermercado, o que conta é se eles dispõem de dinheiro para pagar o
preço da mercadoria que desejam comprar. É o que observa Marx, quando diz que "um
trabalhador que compra uma mercadoria por 3 sh., se apresenta ante o vendedor, na mesma
função, na mesma igualdade - sob a forma de 3 sh. - que um rei que faz a mesma compra. Se
dissipa toda a diferença entre eles. O vendedor, enquanto tal, aparece somente como possuidor
de uma mercadoria cujo preço é de 3 sh., de modo que ambos são perfeitamente iguais".6869
Segue-se de tudo isto que a troca de mercadorias é o fundamento mesmo da sociabilidade.
Enquanto tal, ela exige que todos os indivíduos sejam representantes/produtores de valores de
troca, o que os reduz a uma igualdade abstrata meramente mercantil: cada um vale pelo que tem,
isto é, as pessoas só são consideradas na condição de consumidores, de tal forma que todos
valem quanto pesa o volume do que carregam em seus bolsos. Aos olhos do vendedor, cada

65
66 “O poder que cada indivíduo exerce sobre a atividade dos outros ou sobre as riquezas sociais, ele o possui
enquanto é proprietário de valores de troca, de dinheiro. Seu poder social, assim como seu nexo com a sociedade, ele
o leva consigo no bolso.” (Marx, Karl. Grundrisse. Op. cit., v. I, p. 84.)
66
67 As diferenças sociais entre os indivíduos aparecem como consequência da própria propensão que cada um tem
para ser um comerciante. São, portanto, diferenças que surgem de uma escolha voluntária dos indivíduos em se
engajar em atividades específicas. É o que diz Smith ao admitir que “a diferença de talentos naturais em pessoas
diferentes é muito menor do que pensamos; a grande diferença de habilidade que distingue entre si pessoas de
diferentes profissões, quando chegam à maturidade, em muitos casos não é tanto a causa, mas antes o efeito da
divisão do trabalho. A diferença entre as personalidades mais diferentes, entre o filósofo e um carregador comum da
rua, por exemplo, parece não provir tanto da natureza, mas antes do hábito, do costume, da educação ou formação.
Ao virem ao mundo, e durante os seis ou oito primeiros anos de existência, talvez fossem muito semelhantes entre
si, e nem seus pais nem seus companheiros de folguedo eram capazes de perceber nenhuma diferença notável. Em
torno dessa idade, ou logo depois, começam a engajar-se em ocupações muito diferentes. Começa-se então a
perceber a diferença de talentos, sendo que esta diferenciação vai-se ampliando gradualmente, até que, ao final, o
filósofo dificilmente se disporá a reconhecer qualquer semelhança. Mas, sem a propensão á barganha, ao escambo e
à troca, cada pessoa precisa ter conseguido para si mesma tudo o que lhe era necessário ou conveniente para a vida
que desejava. Todos devem ter tido as mesmas obrigações a cumprir, e o mesmo trabalho a executar, e não poe Ter
havido uma tal diferença de ocupações, que por si fosse suficiente para produzir uma diferença tão grande de
talentos”, (Smith, Adam. Op. cit., p. 51.)
67
68 marx, Karl, Grundrisse. Op. cit., p. 184-5
68
consumidor é tão importante quanto qualquer outro. Não lhe importa a cor, a raça, o sexo, a
origem social, ou qualquer outra diferença. O que conta é o que ele traz na carteira: seu dinheiro.
Assim, o dinheiro apaga todas as diferenças entre as pessoas, para consideraras unicamente como
consumidoras/vendedoras. E não só isto. É necessário que todos sejam livres e que possam
gozar de sua liberdade de comprar e vender, de poder dispor do que possuem para exercerem
suas funções mercadológicas e, assim, obedecer unicamente às leis de mercado.
E daí que partem os neoliberais para defender a idéia de que o mercado é o melhor caminho
para a sociedade alcançar a felicidade e a liberdade. Afinal de contas, numa economia de livre
mercado, ninguém estaria sujeito a nenhuma autoridade despótica que dissesse às pessoas o que
elas deveriam fazer. É suficiente que os agentes econômicos consultem os seus próprios
interesses para encontrar a felicidade, a liberdade e a igualdade. Por isso, os neoliberais vão
alegar que tais valores, que todo e qualquer ser humano busca, só podem ser alcançados numa
sociedade dominada por relações mercantis. Mas é precisamente nisto que reside o caráter
minimal desta ética, que, de acordo com Oliveira, tem como imperativo "a efetivação do
mercado, que toma em princípio toda ética impossível..." Isto assim acontece porque, argumenta
Oliveira, "o pressuposto da ética é a ação consciente e livre do indivíduo através da qual ele toma
posição a respeito das coisas e das pessoas, em última instância a respeito de si mesmo e de seu
mundo; uma ação que não é predeterminada em relação ao que é ou pode ser feito, numa palavra,
um processo não-coercitivo de autoexteriorização aberto e espontâneo". Ao contrário disso, na
teoria neoliberal, continua argumentando Oliveira, "a liberdade é produto de um mecanismo
inconsciente, de um automatismo que libera o homem da deliberação a respeito das razões
legitimadoras de seu agir e sobretudo do engajamento pessoal a partir de razões". Assim, ele
conclui dizendo que, "no pensamento da economia neoclássica é o automatismo infalível que
garante a liberdade, fazendo da ética algo inútil."6970

4.5. Para uma crítica ética da ética neoliberal

O parágrafo anterior registrou o confronto de duas posturas éticas: contra o egoísmo ético,
que faz do mercado o fundamento da liberdade, se contrapôs uma ética que vê a liberdade como
uma ação livre e consciente dos indivíduos de poderem dispor de sua vontade. Uma postura
ética que tem como pressuposto a ação consciente e livre dos indivíduos, através da qual eles
tomam posição a respeito das coisas e das pessoas. Uma postura ética, portanto, que nega a
submissão dos indivíduos às forças cegas e incontroláveis do mercado, que se impõem a todos
como uma fatalidade, que escapa a seu autocontrole.
Entretanto, essa reflexão crítica dos pressupostos da teoria neoliberal poderá cair no vazio
simplesmente porque se poderia argumentar dizendo que, aqui, o que se tem são duas posturas
éticas e que, por esta razão mesma, caberia ao indivíduo escolher aquela que acha que é a
correta, o que, convenha-se, não é de todo um mal. Afinal de contas, não há vida ética se se
retirar dos indivíduos a capacidade de escolher, de decidir. Mas não é isso o que está em jogo, O
que se tem em mente é se este confronto não poderia desembocar numa relação "mau infinito",
justamente porque as argumentações de ambas posturas poderiam se desenrolar num jogo de
opiniões, onde não haveria nenhum critério último de julgamento capaz de dar razão a nenhuma

69
70 Oliveira, Manfredo Araújo de. Neoliberalismo e ética. Op. cit., p. 27. Os grifos são nossos.
delas. Portanto, não haveria nenhuma base racional a partir da qual os indivíduos pudessem
tomar uma posição segura sobre aquelas duas posturas éticas.
Essa pretensa aporia se desfaz tão logo se descobre que a ciência econômica trabalha com
um tipo de racionalidade que dispensa todo e qualquer julgamento de valor. Trata-se de um tipo
de procedimento metodológico que dispensa toda e qualquer consideração sobre problemas
éticos, como condição de possibilidade para a construção de um saber científico.
Realmente, o conhecimento científico trabalha com um conhecimento hipotético e que, por
esta razão, é um conhecimento que não tem a pretensão de dizer o que é o real, isto é, de
perguntar pelas razões últimas que fazem do real o que ele o é enquanto tal. Vale dizer, o que
preocupa as ciências não é a pergunta pelo sentido do real, mas, sim, estabelecer procedimentos
metódicos para dele se apropriar e, assim, poder manipular a realidade para resolver os
problemas práticos que o homem enfrenta no cotidiano de suas vidas. Neste sentido, não
interessa a este tipo de racionalidade perguntar pela razão de ser dos problemas com que a
humanidade se depara, mas, sim, descobrir meios para administrar e tentar resolver tais
problemas. Tudo se passa mais ou menos assim: um motorista que dirige um carro de passeio
não quer saber e nem lhe interessaria saber o que é um carro; quer saber como ele deve proceder
para fazê-lo andar e, assim, poder desfrutar do prazer proporcionado pelo passeio.
Pode-se entender agora por que este tipo de racionalidade produz uma espécie de
conhecimento que é sempre condicional um conhecimento que parte de algo não-demonstrável
para, a partir daí, derivar suas sentenças teóricas. Portanto, como esclarece Oliveira, “se trata de
urna dedução lógica de sentenças a partir de sentenças ‘postas axiomaticamente' num sistema de
sentenças sintático-semânticas".7071 Trata-se daquele tipo de procedimento adotado pela ciência
econômica que, partindo do mercado como algo dado e natural, constrói, a partir deste
pressuposto, que em nenhum momento é submetido a qualquer tipo de questionamento ou
julgamento, suas sentenças para explicar a realidade.
Ora, uma ciência que trabalha com pressupostos axiomáticos, não-demonstráveis, cujas
sentenças são sempre de caráter provisório, não pode, por isto mesmo, chegar a nenhum saber
seguro sobre o que fala. Por isto mesmo, não pode oferecer nenhum critério de julgamento capaz
de fundamentar suas sentenças. Aliás, é próprio das ciências modernas afastar qualquer
julgamento de valor de seus enunciados, pois a presença de sentenças valorativas tiraria o seu
caráter de ser um saber científico, um saber isento de opiniões e de valores. Portanto, neste
horizonte de conhecimento, não se põe a questão da diferença da realidade como ela é e como
ela deveria ser. Isto é próprio da racionalidade econômica que, segundo Oliveira, "se
autocompreende como uma racionalidade exclusivamente empírica, um reino de verdade isento
de qualquer valoração".7172
Diante disso, os neoliberais não têm como sustentar, como diz Milton Friedman, que só em
uma economia de livre mercado se pode assegurar a liberdade humana. Eles não têm como
demonstrar este seu julgamento de valor. E, o que é pior: se tentassem fazer isto, teriam que
negar as premissas metodológicas que tomam possível a construção do saber econômico,
enquanto saber isento de valores.
Sendo assim, o confronto entre as duas posturas éticas, que parecia caminhar para um
impasse, perde soa razão de ser. Principalmente agora quando se sabe que a ciência econômica
exclui de seu campo de saber qualquer tipo de valoração, qualquer julgamento de valor, o que faz
da ética algo inútil.

70
71 idem, p. 50
71
72 Idem, p. 26
Muito embora a economia negue qualquer postura ética, é preciso continuar investigando se
o mercado pode ser considerado como pressuposto necessário para a realização da liberdade.
Por conta disso, é-se obrigado a perguntar pelo significado do conceito de liberdade.
Para isto, e considerando que as ciências se afirmam como um saber isento de valoração, só
há um caminho: assumir a racionalidade do discurso filosófico. Aqui reside a dificuldade maior,
pois o que está em jogo é o julgamento de um saber por outro, na medida em que se assume, a
partir de agora, o discurso filosófico para avaliar criticamente a afirmação da teoria neoliberal de
que o mercado é condição indispensável para a realização da liberdade. Ora, um saber que
pretende submeter um outro ao julgamento da razão deverá ser um saber seguro de si mesmo, um
saber capaz de dar conta de si mesmo. Se a filosofia pretende ser o tribunal da razão, ela terá que
ser capaz de demonstrar a validade de suas sentenças, ser capaz de legitimar seu saber como um
saber que se sabe que é. É neste sentido que se diz que a filosofia é autoconhecimento da própria
racionalidade humana e, assim, o que é próprio do seu "jogo de linguagem" é "a questão da
validade, o que significa que ela levanta a questão dos critérios, da medida última, das regras e
dos procedimentos para se estabelecer a validade dos conhecimentos, ou seja, numa palavra,
filosofia tem a ver com fundamentação e, mais radicalmente ainda, com fundamentação
última...”.7273
Mas a filosofia não é tão-somente lógica, fundamentação. Ela é também conhecimento das
determinidades do agir do homem, da vida humana. Neste sentido ela é um tipo de atividade
intelectual preocupada com as produções do homem, através das quais ele se conquista como
homem, na medida em que sua vida depende de sua própria atividade criativo-produtiva.
Quando a filosofia pergunta por este mundo criado pelo homem, sua preocupação básica é a de
saber se as instituições econômicas, políticas, sociais, jurídicas etc., enquanto produto daquela
atividade, são capazes de realizá-lo como ser verdadeiramente livre. É o que faz Hegel na sua
Filosofía do Direito. Tendo demonstrado na Ciência da lógica, enquanto lugar específico de
demonstração da validade das categorias que dizem o que é o real, tendo demonstrado aí que o
homem é um ser da liberdade, Hegel, na Filosofia do Direito, vai investigar como o homem
conquista esta liberdade nas diversas instituições da vida social: no direito, na moral, na política,
na economia e assim por diante. 7374
Sabendo-se que a filosofia é um tipo de saber que se sabe como saber, como ela, então, pensa a
economia e, assim, as condições de possibilidade desta esfera da vida se constituir como
mediação necessária da liberdade do homem? Isto permite tratar, filosoficamente, os
pressupostos implícitos na teoria neoliberal, ou seja: sua concepção de homem, de liberdade e da
ação humana. Mas isto apenas dirá o que o homem é, o que é a liberdade e a ação humana. É
preciso ainda estabelecer uma relação dos resultados aí alcançados com as pressuposições da
teoria neoliberal. Em outras palavras, é preciso tentar fazer aquilo que Hegel fez na Filosofia do
Direito: passar do discurso universal para uma relação deste discurso com as ciências, com o
conhecimento hipotético e regionalizado da realidade. Ou seja, é preciso elevar os resultados
desde conhecimento hipotético ao nível das proposições universais da filosofia, para aí descobrir,

72
73 Idem, p. 52
73
74Idem, p. 54: "A totalidade está presente em suas partes, em cada uma de maneira diversa e não se esgota em
nenhuma delas, pois do contrário não seria a totalidade. Então, no conhecimento filosófico de uma realidade
determinada, o sujeito universalíssimo das proposições filosóficos fica particularizado, o que significa dizer que o
conhecimento filosófico situa esta parte no todo da realidade. Trata-se, portanto, em contraposição á racionalidade
das ciências, de ver o particular e interpretá-lo a partir da totalidade da qual ele é parte, de desvelar o universal ínsito
no particular, a partir de onde se determina o sentido deste particular”.
no caso da teoria neoliberal, se ela é capaz de responder às exigências de uma vida
verdadeiramente ética. Como isto é uma tarefa mais própria ao filósofo, a quem cabe de direito
tal discussão, procurar-se-á dialogar diretamente com a teoria neoliberal por um outro caminho.
Ou seja, procurar-se-á, com base em Marx, partir da lei geral da troca de mercadorias (o
princípio da equivalência) para pôr a nu como esta lei se converte, por sua própria dialética
interna, nos seus contrários: numa troca de não-equivalentes, o que transforma o contrato em
uma mera aparência das noções jurídicas de liberdade e de igualdade, que são tão caras ao
pensamento liberal como um todo.
Começando então a leitura filosófica propriamente dita da economia, a filosofia parte da
concepção de que o homem é um ser aberto, um ser da história, que emerge, assim, como a
exigência (a interpelação) de constituir-se, ou seja, de produzir uma configuração de seu próprio
ser, que não está, então, desde sempre determinado. Seu ser é, enquanto tal, abertura,
indeterminação, o que em nossa tradição de pensamento é o primeiro nome de liberdade".7475
Liberdade aparece, assim, como a chance permanente de o homem construir novas
configurações, isto é, novas formas econômicas, jurídicas, sociais e políticas de organização de
sua vida.
Enquanto ser nunca acabado, nunca pronto de uma vez por todas, porque se constrói na
história e pela história, o homem manifesta sua liberdade na necessidade de dever ser, isto é, de
construir um mundo que ele possa reconhecer como produto de sua ação e nele realizar a
absolutidade do seu ser que é ser livre. Nisto consiste a dignidade originária do ser humano,7576
pois, como diz Hegel, "as circunstâncias ou motivos têm sobre o homem tanto poder quanto ele
próprio lhes conceder." 7677
Se a história é o lugar no qual o homem luta por sua liberdade, esta luta é, em primeiro
lugar, luta pela vida, pelas condições materiais que tomam possível a satisfação de suas
necessidades básicas, de sua reprodução biológica. Neste sentido, estas necessidades têm
prioridade em relação a qualquer outro tipo de necessidade. Afinal de contas, o homem só pôde
começar a pensar quando pôde dispor de um tempo livre, de um tempo não dedicado à
reprodução de sua vida.
É a partir daí que se poderá entender a dimensão da economia na vida humana. Com efeito,
sendo o homem um ser da história, que escreve sua liberdade no mundo pela mediação de sua
práxis social, isto é, nas suas relações com a natureza e com os outros homens, ele se constitui,
assim, como um ser carente, isto é, um ser que tem necessidades naturais a serem satisfeitas
através de suas atividades laboriosas, produtivas. É neste sentido que tanto Marx como Hegel

74
75 Idem, p. 33
75
76 Idem, p. 37-8: "Como liberdade, nos experimentamos na necessidade de dever ser: temos que ser, isto é, de
descobrir, de produzir criativamente uma configuração de nosso próprio ser. Nosso ser, enquanto tarefa, enquanto
dever-ser, nos é dado. Isto significa dizer que não somos simplesmente em função de qualquer coisa fora de nós
mesmos, somos seres que possuem sentido, f'im em si mesmos. O fim radical e último de nossas ações no mundo, na
história, é nossa própria realização como sujeitos livres, o que implica o reconhecimento mútuo desta liberdade.
Nisto consiste a dignidade originária do seu ser humano”.
76
77 Hegel, G. W. F. Propedêutica filosófica. Lisboa, Edições 70, 1989 p. 276
vão entender o trabalho7778 como momento imprescindível no processo de autogênese do
homem enquanto ser histórico.
Partindo daí, Oliveira vai entender a atividade econômica como um "conjunto de ações e
instituições através das quais o homem, pela mediação do trabalho, procura adquirir o necessário
para reproduzir sua vida. Isto significa dizer que o sentido originário do agir econômico é estar a
serviço da satisfação das necessidades básicas do ser humano; enquanto tal, ele é mediação no
processo de antropogênese. A economia tem assim de estar a serviço da efetivação do ser livre,
que, enquanto tal, pode pôr-se em relação com suas próprias condições de vida e desenvolver
aqui um espaço para suas ações. Isto significa dizer que o homem pode determinar a ordem
econômica, e, enquanto tal, ele é por ela responsável. Portanto, a ação econômica, enquanto
situada na esfera das ações do sujeito livre, tem uma dimensão ética insuperável".7879
Se a atividade econômica deve estar a serviço da satisfação das necessidades do homem,
neste sentido, a serviço da efetivação do seu ser livre, pergunta-se: em uma economia dominada
pela produção de mercadorias, a economia pode cumprir essa sua função ética? A resposta a esta
questão permitirá mostrar que, ao contrário do que advoga a teoria neoliberal, a liberdade de
mercado como condição necessária para a realização da liberdade humana é, na verdade,
condição para sua desrealização, para sua não-efetivação. A dimensão ética da economia, que a
razão filosófica demonstra, não poderá se realizar enquanto o mercado permanecer como
instância central da sociabilidade. É aqui que se recorrerá ao pensamento marxiano, como foi
anunciado há pouco.
Na seção 4.4, onde se discutiu a base normativa da teoria neoliberal, foram expostas as
determinidades gerais que fazem da sociedade produtora de mercadorias uma sociedade na qual,
como diria Marx, o que reina

“é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham. Liberdade! Pois comprador e


vendedor de uma mercadoria, por exemplo a força de trabalho, são determinados apenas por sua
livre vontade. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é o resultado
final, no qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em comum. Igualdade! Pois eles se
relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por
equivalente- Propriedade! Pois cada um dispõe sobre o seu. Bentham! Pois cada um dos dois
cuida de si mesmo. O único poder que os junta e leva a um relacionamento é o proveito próprio,
a vantagem particular, os seus interesses privados.” 7980
Entretanto, por trás desse paraíso, a partir de onde os defensores da economia de livre
mercado extraem suas concepções, conceitos e critérios para seu juízo sobre a sociedade
capitalista, esconde-se um outro mundo, não imediatamente acessível aos olhos do observador
imediato. Um mundo no qual aqueles valores de liberdade, igualdade e propriedade se
transformam em seus contrários diretos: a liberdade em não-liberdade, a igualdade em
não-igualdade e a propriedade em não-propriedade.

77
78Marx entende o trabalho a partir de uma dupla dimensão. Na sua acepção geral, "o trabalho é considerado como
sendo a unidade constitutiva de todos os momentos da vida humana. Neste sentido, o trabalho revela o caráter
universal da atividade humana, ou seja, a necessidade natural de o homem transformar a natureza para satisfizer suas
necessidades. Em seu aspecto particular (histórico), a troca universal do homem com a natureza é mediada por
relações criadas historicamente em sua atividade produtiva”. (Teixeira, Francisco José Soares. Trabalho e valor em
Marx. Fortaleza, Editora da Universidade Estadual do Ceará, 1990. p. 49.)
78
79 Oliveira, Manfredo Araújo de. Neoliberalismo e ética. Op. cit., p. 43
79
80 Marx, Karl. O capital. Op. cit., livro I, v. I, p. 145
Para descortinar esse mundo invisível, Marx não vai simplesmente contrapor uma outra
teoria à EPC. Ele parte dos resultados alcançados por esta ciência e a obriga a revelar o seu lado
mistificador, ideológico. Parte, portanto, do pressuposto, assumido pela economia burguesa, de
que a propriedade privada dos meios de produção, como diria Adam Smith8081 ao se referir à
propriedade da terra, é produto de uni esforço pessoal, de um trabalho de longa geração. Parte
daí para mostrar que essa propriedade, pela própria dialética interna da mercadoria, converte-se
em uma não-propriedade, isto é, em um direito de apropriação do trabalho alheio não-pago.
Para que se possa acompanhar melhor essa demonstração, 8182 vale a pena retomar de Smith
a idéia de como ele explica e justifica o lucro capitalista. Partindo da concepção de que a
propriedade capitalista é resultado de um trabalho passado, Smith vai dizer que, por isto mesmo,
“ao se trocar o produto acabado por dinheiro, ou por trabalho, ou por outros bens, além do que
pode ser suficiente para pagar o preço dos materiais e dos salários dos trabalhadores, deverá
resultar algo para pagar os lucros do empresário pelo seu trabalho e pelo risco que ele assume ao
empreender esse negócio".8283Vale dizer: o capitalista tem direito de exigir do trabalhador uma
parte do valor daquilo que este produz, como forma de recompensa por seu trabalho passado.
Dentro do horizonte da EPC, tal recompensa não se constitui em uma relação de exploração,
pois o que o capitalista exige do trabalhador é que este o recompense por seu esforço passado.
Afinal de contas, como diria Smith, enquanto o capitalista trabalhava para formar seu
patrimônio, o trabalhador dissipava tudo o que tinha, sem se preocupar com o futuro.
Assim, admitindo que a propriedade privada dos meios de produção foi conseguida com o
"suor do rosto do capitalista", Marx imagina que essa propriedade, acumulada com tanto
sacrifício, como quer Smith, possa ser representada por uma soma de valor de 1000 libras. Em
seguida supõe que a classe capitalista resolve empregar esta riqueza para dar emprego àqueles
que, no passado, viviam vagabundando e dissipando tudo o que produziam. Como castigo, esses
"vagabundos" terão, agora, se quiserem trabalhar para ganhar o "pão nosso de cada dia", I que
recompensar seus benfeitores com um lucro anual de 20%, isto é, de 200 libras. Essa
recompensa, de acordo com a teoria liberal, é mais do que justa, pois os proprietários dessa
riqueza estão correndo o risco de ver o seu patrimônio dilapidado nas mãos destes irresponsáveis
do passado. O que aconteceria, então, se a classe capitalista, cansada de trabalhar, resolvesse
assalariar esses "vagabundos"? Ao final de cada ano, esta classe receberia as 1000 libras de
volta, as quais adiantou sob a forma de salário, mais 200 libras a título de lucro. Este lucro ou
rnais-valia, apropriado pelos capitalistas, é a fonte de renda de que dispõem para adquirir os bens
e serviços necessários à satisfação de suas necessidades. Assim, diz Marx, "depois de se repetir
o mesmo processo durante cinco anos, a soma da mais-valia consumida será = 5 x 200, ou igual
ao valor do capital originalmente adiantado de 1000 libras esterlinas [... I Ao final de um certo
número de anos, o valor do capital que possui é igual à soma da mais-valia apropriada durante

80
81 Smith, Adm. Op. cit., p. 164: “os homens podem viver juntos em sociedade, com um grau aceitável de
segurança, embora não haja nenhum magistrado civil que os proteja da injustiça... entretanto, a avareza e a ambição
dos ricos e, por outro lado, a aversão ao trabalho e o amor á tranqüilidade atual e ao prazer, por parte dos pobres, são
as paixões que levam a invadir a propriedade... adquirida com o trabalho de muitos anos, talvez de muitas gerações
sucessivas”.
81
82 Advirta-se que essa demonstração exige um longo processo de mediações, que não serão aqui expostas. O leitor
deverá ter presente que por trás da simplicidade do que é aqui exposto, esconde-se um longo encadeamento
ategorial, que rvela como Marx passa do nível da representação dos capitais individuais para o do capital social
global; ou, se se preferir, do nível ds relações individuais par o das classes sociais. Para quem interessar, essa
passagem etá desenvolvida no meu livro Pensando com Marx, anteriormente citado.
82
83 Idem, p. 78
o mesmo número de anos, sem equivalente, e a soma do valor consumida por ele é igual ao valor
do capital original. Não subsiste nenhum átomo de valor de seu antigo capital".8384
Veja-se: ao final do quinto ano, o capitalista consumiu todo o capital original e dispõe
ainda da mesma soma de I 000 libras para reiniciar o mesmo processo a partir do sexto ano em
diante. A partir daí, esta soma de que dispõe não tem nada mais a ver com o seu trabalho
passado. Trata-se de uma soma de capital totalmente recriada pelo trabalhador, pois o capital
original de que ele dispunha foi consumido durante os cinco primeiros anos. A partir de então,
os fundos de que ele dispõe para pagar o trabalhador são adiantados por este último. Tudo se
passa como se o próprio trabalhador emprestasse ao capitalista o dinheiro com o qual este lhe
paga, pois, diz Marx, "é uma parte do produto reproduzido continuamente pelo trabalhador, que
reflui constantemente para ele na forma de salário [... l É com seu trabalho da semana anterior ou
do último meio do ano que seu trabalho de hoje ou do próximo meio ano será pago".8485
Segue-se, de tudo isso, que a renovação periódica e contínua do processo de compra e venda da
força de trabalho acaba por transformar essa relação em uma relação que aparece, do lado do
capitalista, como o direito de este se apropriar, sem nenhum equivalente, do trabalho alheio
não-pago. Com isto, cai por terra um dos pressupostos básicos da teoria liberal: o direito de
propriedade fundado no trabalho próprio.
Com a transformação da propriedade em um direito de se apropriar do trabalho alheio
não-pago, o contrato, outra instituição tão cara à concepção liberal, converte-se, por esta razão,
em uma mera aparência que é alheia ao seu próprio conteúdo e apenas o mistifica. Com efeito,
na relação contratual de compra e venda da força de trabalho, uma das partes contratantes (o
trabalhador) comparece, nessa relação, como vendedor e comprador de sua própria mercadoria: a
força de trabalho. Assim, desvanece o princípio segundo o qual o contrato é uma transferência
recíproca de direitos entre os contratantes, na medida em que só o trabalhador transfere, para o
capitalista, o direito de este explorar o uso de sua força de trabalho. Em conseqüência disto, a
liberdade e a igualdade dos contratantes não passam de uma ficção jurídica.
Assim, o mercado que aparecia como condição de possibilidade da propriedade, da
liberdade e da igualdade é, na verdade, condição de possibilidade para a criação da
não-propriedade, da não-liberdade e da não-igualdade. A teoria liberal e a sua sucedânea
contemporânea - a teoria neoliberal podem continuar defendendo suas idéias apenas enquanto
tomarem a aparência da realidade social como sendo sua essência. Podem continuar defendendo
suas idéias apenas enquanto tomarem a verdadeira essência humana, a chance permanente de o
homem construir novas configurações, como uma representação metafísica de um ser humano
extratemporal, permanente; enquanto fizerem da essência humana algo já dado ou totalmente
determinado. Enquanto, portanto, puderem continuar projetando para todas as épocas da história
da humanidade as particularidades históricas de uma vida historicamente determinada.

83
84 Marx, Karl, O capital. Op. cit., livro I, v. II, p. 155
84
85 Idem, p. 154

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