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4.

entre a oficina e a villa: uma discussão sobre o neoliberalismo

Pós-neoliberalismo?

A autora inicia dizendo que o neoliberalismo depende de incontáveis regulações


e instituições1, razão pela qual a crise do neoliberalismo não é definida pela crise do
livre mercado, mas sim por uma crise de legitimidade dessas políticas. Sob o contexto
da América Latina, a subjetividade e suas derivadas resistências foram a causa da crise
do sistema de regulações, emergindo novas oportunidades para e da vida coletiva. O
ponto crucial é enfatizar as variações de sentidos, sem um padrão definido de como se
dão, estimuladas de baixo para cima, conforme propõe Gutiérrez Aguilar.

Logo, o neoliberalismo não é o reino da economia sem o da política. É um modo


político – regime de governamentalidade – que irá “projetar” regras e balizas ao
mercado competidor. Caso contrário, negando tal premissa, a perspectiva do pós-
neoliberalismo na América Latina baseada na dicotomia estado vs mercado resulta
numa nova autonomia do político. Sob certo ângulo, toda a América Latina enfrenta um
mesmo problema referente a reposição do estado e as novas lideranças antiliberais, isto
é, ambas são capazes de superar o neoliberalismo? Questiona a autora. A sua tese é de
que os movimentos e revoltas das últimas décadas no aludido continente estimularam
novos sujeitos e racionalidades que se prestam a debater (novamente) a “recuperação do
estado”.

Surge, então, novas perguntas que a autora faz para que se possa pensar e
desenvolver a temática, sendo elas: a) “como conceituar essa racionalidade e afetividade
coletiva que se desenvolvem para além do neoliberalismo puro e duro, uma vez que elas
colocaram esse projeto em uma crise política ao mesmo tempo que incorporaram boa
parte das suas características, diante do fato de que disputam e usam a ideia de liberdade
e subvertem e englobam certos modos atuais de obediência?”; b) “Onde atua essa
racionalidade-afetividade?”; c) “Que tipo de política protagoniza?”; d) “Quais
economias são sustentadas por ela?”; e) “Que uso faz do espaço urbano?”; f) “Que
conflituosidade é desenvolvida?”; g) “Que institucionalidade própria é capaz de
construir?”; h) “Como negocia com a autoridade público-estatal em suas diversas
escalas?”; i) “Exibe que tipo de composição social?”
1
Nesse tocante, a autora resgata a compreensão de Foucault o qual define o neoliberalismo como “uma
política ativa e sem dirigismo”, caracterizando-se por objeto de intervenções diretas aptas a propiciarem
a sua dinâmica.
Neoliberalismo: a leitura de Foucault

Elencando as sustentações de Foucault, a autora aduz que o mencionado autor já


a partir do século xvii havia teorizações sobre o conceito de “governo econômico”,
primando pela ideia de uma liberdade incorporada tanto em sede de ideologia como em
sede de técnicas de governo. Inclusive, esta liberdade se manifestava como condição de
desenvolvimento das formas capitalistas da economia e de transformações das
tecnologias de poder.

Em face disso, a autora frisa que não é somente uma ideologia, mas
principalmente de uma tecnologia de poder, isto é, a forma que o poder é operado e
direcionado à regulação da liberdade2. Logo, Foucault define o liberalismo econômico
como uma arte de governar em meio a uma dicotomia formada entre possibilidade de
restringir condutas em prol de uma ordem e viabilização de uma obediência
relativamente duradoura; onde a sua eficácia é concentrada em liberar a interação de
uma pluralidade de fins específicos aptos a caracterizar a naturalização desses aspectos.

Adiante, a autora pensa a respeito de um novo realismo compreendido a partir de


uma economia que se aloca dos problemas da população e “das coisas”. Nas palavras da
autora, trata-se da “imanentização de uma lógica transcendente do capital na medida em
que esse novo realismo é identificado a um naturalismo liberal”.

O papel do estado

É dito que Foucault atribui a invenção dessa nova arte de governar aos
economistas, fazendo com que a razão econômica possa designar “novas formas de
racionalidade estatal”. Em razão disso, esclarece a autora, Foucault distinguirá o
liberalismo do século xviii do pós-nazismo na Alemanha onde terá a liberdade como o
centro do problema de governo, tendo em vista que os seus paradoxos vão impor uma
“reelaboração” da doutrina liberal de governo. Surgirá nesse contexto pós-nazismo o
pensamento “ordoliberal” dos alemães que se baseará em radicalizações, conforme
advertidas por Foucault: i) passagem de um mercado vigiado pelo estado a um estado
sob vigilância do mercado; e ii) verificação do limite de funcionamento da economia
como princípio formal de organização do social, do político, do estatal. Sujeição e
Subjetivação. A par dessas radicalizações, se compreenderá que a radicalização máxima
é a forma como toda a sociedade se personificará em empresa em decorrência da
2
Governar passa a ser uma “arte de exercer o poder na forma de economia”.
crescente necessidade de liberdade e segurança. O conceito de soberania recai, portanto,
no corpo de cada um. É no corpo onde o controle, a organização e a produção estão
territorializados. Singularização e Universalização.

Neoliberalismo de baixo para cima e economias barrocas

Segundo a autora, a crise do neoliberalismo na Argentina com todas as suas


repercussões nos mais diversos setores não significou a crise do livre mercado, mas sim
uma crise de legitimação dessas políticas. Por isso é elencado dois pontos de suma
importância: o primeiro consiste nas subjetividades resistentes – de toda a América
Latina – como causadoras da crise do sistema de regulações neoliberais. Já o segundo é
a proposta da autora de pensar a persistência do neoliberalismo para além da sua crise
de legitimação política, ou seja, pensar a partir de como o neoliberalismo se arraiga nas
subjetividades populares; ao que se denomina por “neoliberalismo de baixo para cima”.

Os “governos progressistas” da região deturparam a complexidade dos


diagnósticos e das retóricas políticas do neoliberalismo de modo a reduzir sua
compreensão a mera ausência de estado e, consequentemente, de regulação política.
Todavia, a advertência da autora é categórica: “o neoliberalismo não é o reino da
economia sem o da política, mas a criação de um mundo político (regime de
governamentalidade) que surge como “projeção” das regras e dos requerimentos
do mercado de concorrência”.

O pensamento acerca da governamentalidade neoliberal na Argentina, em certa


medida com extensão para a América Latina, se dá por meio alguns eixos, sendo eles: i)
dinheiro e força de trabalho; ii) financeirização da vida popular; iii) massificação do
consumo; iv) “cidadania do consumo”. À vista disso, tem-se o interesse de pensar a
dinâmica extrativista que está vinculada ao consumo e ao endividamento os quais
promovem novas formas de criação de valor das periferias por meio de economias
informais com flertes reflexivos sobre ilegalidade. A operacionalização do
neoliberalismo a partir de dinâmicas concomitantes de territorialização e
desterritorialização; tanto por cima como por baixo.

Redefinir o Neoliberalismo a partir da América Latina

A proposta de falar de um neoliberalismo de baixo para cima é o


reconhecimento da complexidade de seu próprio conceito e de sua dinâmica para além
do conjunto de políticas emanadas de cima planificando estruturalmente. Por isso o
apoio de Foucault pensado na força do neoliberalismo como governamentalidade com a
inclusão do termo (indeterminado) “liberdade”, bem como da ideia ordem livre. Além
disso, fala-se sobre o cálculo econômico e político na perspectiva de suas
monstruosidades fundadas na atribuição de responsabilidades por condições que sequer
são garantidas, isto é, o sentido utilitário da pragmática vitalista.

Sobre o cálculo como pragmática vitalista

A abordagem da autora no contexto do cálculo como pragmática vitalista se


baseia na profunda complexidade que envolve o tema, sendo necessário a reunião de
uma perspectiva filosófica e política. Valer-se-á da premissa de que o cálculo é conatus3
e em razão disso funciona como tal. Em linhas muito gerais, há o aporte da filosofia no
contexto de conceber o conatus como “vitalismo de uma vida”4, isto é, todos os
elementos e fatores que formam a vida de indivíduo e também os próprios reflexos que
desencadeia na vida coletiva; a construção social (individual). Noutro plano, a partir das
contribuições de Foucault sobre o neoliberalismo, este será apresentado pela autora
como “esforço de ler a liberdade das pessoas e de incluir no cálculo o incalculável de
seus motivos e ações. Esse incalculável não pretende ser restringido, mas estimulado
através da presença de um “meio” e das interações que ali se dão”. Partindo dessas
considerações gerais, passa a ser possível o entendimento sobre o cálculo ser conatus,
pois a liberdade é aquilo que a racionalidade neoliberal reconhece como base de seu
cálculo. Esta afirmação se dá pela alocação do que vem a ser “liberdade” como a base
do cálculo.

Dito de outra maneira, a fórmula desenvolvida pela autora de cálculo é conatus


está onde o cálculo pode ser tomado simultaneamente pela sua face essencialmente
neoliberal – a pretensão exploradora da liberdade e a perspectiva do governo como
governamentalidade, ambos resgatando a subjetividade – e a face de um conatus, isto é,
o “vitalismo da vida”, a manifestação da vontade e condições de viver. Ambas as faces
propiciam novos modos de organização, de convívio social, a criação de linguagem e,
em suma, de valor.

3
É válido lembrar que o termo é dotado de uma gama de variações e sujeito, ao mesmo tempo, de
novas composições/significações.
4
Sentido empregado pela filosofia desenvolvida por Spinoza a qual a autora se filiará mais em virtude
deste sentido englobar uma maior variação e desenvolvimento pluralístico.
Já no contexto político, em apartada síntese, a fórmula elaborada pela autora
recai na ideia de se aceitar as regras de cálculo ligadas a uma subjetividade que
possibilite oportunidades de “se salvar”, de buscar melhores condições de vida. O
cálculo se direciona para uma autodesenvolvimento do conatus coletivo.

Financeirização da vida popular

É importante considerar que a financeirização da vida popular ocorre tanto pelas


finanças que circulam por baixo as quais nutrem um sistema monetário capaz de gerir
certas iniciativas como pela financeirização impulsionada de cima para baixo por meio
de órgãos estatais e instituições financeiras, sendo ambas as dinâmicas dotadas de uma
lógica conflitiva permeada por um caráter de ensamblagem (de se adaptarem, numa
certa medida, e de se incorporarem, em outra medida) onde as subjetividades disputarão
a imposição que o capital tenta realizar como sendo relação social.

A tese de financeirização impulsionada por cima está relacionada, para o


exemplo argentino, com práticas econômicas desenvolvidas em uma economia migrante
e da autogestão dos desempregados em face da crise de empregos, abarcando toda a
dinâmica empenhada pelos indivíduos para a concretização das práticas econômicas e o
respectivo desenvolvimento que chamou a atenção das instituições estatais e bancárias.
A produtividade social através das iniciativas populares, mormente a economia têxtil e
feirante, produziu uma jurisprudência, uma criação de direitos e discussões pertinentes
a inclusão cidadã, especialmente nas villas e bairros de periferia.

Quanto ao sistema de finanças por baixo que funcionou como recurso na crise
proveniente da mencionada economia migrante e da rede de microempreendimentos,
ambos trouxeram novas formas de contratação e assalariamento informal e, em
consequência da experiência que alcançaram, se expandiram ainda mais por gerar
consumo e reativação de setores tradicionais que movimentam a circulação do capital.
Tornou-se muito atrativo e valorativo mesmo em se tratando de economias antes vistas
como insignificantes e meramente subsidiárias. Mudou-se a realidade.

Cidadania por consumo: uma nova relação entre estado e capital?

Com vistas ao informe da Procuraduría de Criminalidad Económica y Lavado de


Activos (Procelac) não resta dúvidas que a introduz do sistema financeiro na economia
dos setores populares por meio de empréstimos ou emissões de cartão de crédito fez
com que produzisse diferenças sociais nos mais diversos âmbitos sociais, até mesmo no
âmbito popular. Quando se tem disponibilidade de linhas de créditos certamente haverá
um nível de endividamento e, em se tratando do contexto dos setores populares,
provocará complicações na subsistência dos endividados. A autora, oportunamente, cita
Feldman trazendo que “(...) as pessoas com menor fonte de renda pagam mais pelas
compras dos mesmos produtos. Os setores populares, então, são objeto de uma violência
econômica sem paralelo em outras camadas da população, o que gera um dano social
cujas consequências repercutem tanto nas famílias concretas quanto, potencialmente, na
economia nacional em seu conjunto”.

É a partir do governo que há o impulso ao consumo em massa em que de um


lado se tem a impossibilidade da conquista de um pleno emprego e, de outro, a tentativa
de democratização pelo acesso ao consumo. Desloca-se a cidadania (e seu exercício)
para (no) o consumo como pretexto de garantir a inclusão social. Em referência ao caso
brasileiro, a partir de Eduardo Viveiros de Castro, observa-se que o consumo dos
setores populares com acesso ao crédito implica, em um ponto, a obrigação do estado de
fornecer serviços públicos (gratuitos) a favor do endividamento e, em outro, a
renovação da diferença classista. É em razão dessas consequências que as economias
informais desses setores populares trazem debates sobre novas formas de inclusão e de
cidadania plena que desafia o esquema republicano liberal e o populismo como razão
estatal. Segundo a autora, “a partir do estado, a cidadania por consumo propõe-se como
paliativo ou reparação fornecida contra o neoliberalismo, referendando a ideia de um
estado não neoliberal na medida em que subsidia os pobres”.

Rumo a um conceito ampliado de extrativismo na América Latina

É tratado a discursiva estatal que enfatiza a função da integração social


alcançada a partir da exploração das transnacionais do agronegócio (commodities),
tendo em vista que as commodities são uma fonte do financiamento dos subsídios
sociais. Assim, é importante pensar sobre como as populações são parte de uma
dinâmica extrativista e não somente subsidiária, nesse contexto de integração social,
além de refletir como as populações urbanas e populações pobres se articulam e como o
estado participa nessa articulação. A extração de valor dominante passa pela relação
entre território e mercado global (circulação de dinheiro e mercadorias) onde a
capacidade de mediação estatal (extração de renda para financiamento de políticas
sociais e subsídios à produção), inserindo um conjunto de ensamblagens institucionais
amplas e dispositivos voltados para a governamentalização do estado.

O eixo da governamentalização do estado permite detectar a dinâmica dos


negócios envolvendo commodities e a dinâmica relacionada a circulação interna de
capital, de dinheiro e de mercadorias. A logística das finanças altas e baixas se reiventa
permanentemente pelo escopo captar os melhores ativos produzidos em ambas esferas,
pois se supõe a instauração de vias de comunicação entre logística mundial. Segundo a
autora, na América Latina, particularmente, o negócio financeiro global toma a forma
de extrativismo (valor-território por valor-dinheiro) onde seu êxito faz com que a
consequente acumulação adote como protótipo a renda financeira. Sinaliza-se: “o
consumo como mediação e o financeiro como figura de comando colocam todo o
mundo para trabalhar sem precisar repor a figura homogênea do trabalho”. Desde o
campo e as commodities até as cidades e as populações periféricas, inserindo os
territórios no mercado global.

Saques: a exasperação do consumo

Pelas perspectivas dos discursos políticos, a expansão do crédito fez com que a
opinião pública e midiática fixasse no ponto de que os pobres saqueiam não por
necessidade ou fome, mas para se apropriarem de produtos eletrônicos “supérfluos” em
descompasso com as “reais necessidades”; “a inflação das necessidades dos pobres
acostumados ao consumo, graças aos subsídios estatais e ao crédito fácil e caro”. A
relação entre saque e consumo é de exasperação, afirma a autora. Em se tratando dos
setores pobres, o consumo é propiciado a partir de cima na ideia de uma realidade
paliativa e é impulsionado para baixo pelo dinamismo informal que agencia
modalidades de trabalho heterogêneas, desde exemplos informais até ilegais5). As forças
policiais são as responsáveis pela regulação entre os tipos de trabalhos formais ou
informais e, em dezembro de 2013 na Argentina, as protagonistas das greves e saques
realizados. É importante destacar que a experiência inflacionária tem um efeito de
desmistificação do dinheiro. Ainda, é pertinente apontar que o saque se apresenta como
a continuidade de consumo por outros meios.

Mapear o neoliberalismo

5
A autora traz os exemplos de pirataria do asfalto, do narcotráfico, dos empreendimentos feirantes, das
vendas ambulantes, do empreendedorismo informal (“cuentapropismo”) e das oficinas clandestinas.
Mapeando as economias populares é, de um certo modo, mapear o
neoliberalismo como um terreno de disputa, pois se permite pensar o modo em que o
capital busca incorporar novos territórios, novos espaços. Esses territórios possibilitam
a conexão entre o neoliberalismo sendo deslegitimidado como política macroestrutural
e, concomitantemente, como sendo incorporado nas formas de saber-fazer popular em
resultado das reformas estruturais pretéritas. Caráter estrutural e dinâmico do
neoliberalismo. Realça, então, a perspectiva da ideia de “neoliberalismo vindo de baixo”
a partir da própria ideia de cálculo praticado pelas economias populares, seguindo o
pensamento da autora para o “oportunismo de massas” correspondente aos processos de
socialização da força de trabalho.

5. entre a cidadania pós-nacional e o gueto: a cidade abirragada

A cidade que vem

Nesse ponto da obra, se menciona a villa 1-11-14 a qual traz para Buenos Aires
o que a autora denomina por “pedaço da Bolívia, de El Alto” em razão do
impulsionamento da migração boliviana (mais marcante) e paraguaia em termos mais
estatísticos. Os traços da 1-11-14 traz um vermelho alaranjado, construções nas alturas
(com construções de até cinco andares; piso/piso), tijolos sem reboco, bem como
assentamentos de chapa e papelão, os quais possibilitam o crescimento vertical já que o
crescimento horizontal não encontra concretude.

Por oportuno, a autora faz menção de Beatriz Sarlo em que traz a seguinte
explanação: “Tudo exibe, cruamente, com o ar confiante do natural em expansão, uma
espécie de monstruosidade precária destinada a permanecer, já que a construção é de
alvenaria e está ali para ficar”. Nesse sentido, tem-se que a villa 1-11-14 demonstra a
“cidade dos pobres” com distinções feitas por Sarlo que traz discussões entre o público
e o privado, entre o humano e a natureza e os rumos para o civilizatório. A discussão
sobre a “cidade futura”.

A villa como espaço inclusivo

Em que pese essas características marcantes da villa, é importante observar que


ela se tornou um campo fértil para pequenas empresas, empreendimentos familiares e
economias informais, haja vista a própria dinâmica criada na villa pela alta renovação
migrante existente. Da villa à oficina têxtil e desta à feira de La Salada, operando uma
articulação complexa e de profundas conexões onde se busca melhores
aproveitamentos.

Dispersão e aglomeração

A villa é parte constitutiva de Buenos Aires ainda que simultaneamente é posta


como estranha à cidade, localizada no centro do mapa. O desenvolvimento próprio da
economia da 1-11-14 também ensambla com a região metropolitana e fronteiriça dado
sua vitalidade econômica. “Uma cidade dentro de outra” com sua extensa
complexidade. Há o fluxo de mão de obra e também o cenário empresarial que ocasiona
uma nova economia política de caráter transnacional.

1-11-14

Em se tratando da população das villas e em especial da villa 1-11-14, do Bajo


Flores, esta é uma das mais populares pelo seu rápido crescimento e dinâmica que
impõe meios próprios (daqueles que gerem a villa) de medição e controle de dados. Em
2013, se estimava uma população de 80 mil pessoas só na 1-11-14 e, até 2018, 31
quarteirões conquistados. O vigor de uma era democrática possibilitou essa expansão e
permanência, inclusive a história da villa é que originou essa sequência de números
como a sua denominação. As crises econômicas e a experiência da villa durante o
enfrentamento delas criaram essa realidade de continuidade e de melhores
oportunidades.

A villa como âmbito de um internacionalismo forçoso

A população da villa é constituída de maioria estrangeira (peruanos, bolivianos,


paraguaios e, em menor escala, chilenos) – caracterizando um internacionalismo forçoso
– e sendo a parte subsidiada por programas sociais. Em razão desse caráter estrangeiro,
em gestos políticos, se criou um corpo plurinacional de delegados (devidamente
reconhecidos pelo parlamento municipal) para a representação e autogestão dessa
população, além de serem os responsáveis por inúmeras conquistas importantíssimas. A
capacidade social de inovação é que leva à criação de novos direitos, a sua ampliação
fronteiriça e um aprofundamento democrático, representando a via política como a
concretude destas feitas.

Um corpo comum: o surgimento do corpo de delegados


Quando se verifica a emergência de um novo povo constituído se verificará uma
emergência por uma nova forma política que seja suficiente para tanto. Nesta
perspectiva, a autora fala e pensa no corpo comum de delegados na villa e seus meios de
participação, disputa e negociação marcantes os quais misturam estratégias, discursos,
tradições e projeções variadas. A apontada inovação reconfigura a cultura político-
nacional e as tradicionais lutas villera argentina, bem como, de modo simultâneo,
reinventa as culturas políticas “originais” da população migrante a fim de dar maior
desenvolvimento na capacidade social de autogoverno, de autogestão.

À vista disso, o “lugar” é um importante foco de reivindicações e conquistas


sociais, de redefinição da noção de cidadania. Se pensa e se fala em identidade também
como digna de respeito e consideração nestas inovações e reinvenções. A criação de um
novo mecanismo de autoridade se encarregava de cuidar da pluralização existente e das
dificultosas e complexas lutas e contrapontos típicos de uma população heterogênea
recheada de desafios.

Direito de ser usuário

Considerando as características vastas que a villa exprime com muito impacto,


foi o corpo de delegados (o mecanismo de autoridade que se criou) que viabilizou a
população da villa, como coletivo singular, negociar seu direito aos serviços tanto junto
as autoridades estatais (especialmente municipal) quanto ao privado (mormente as
prestadoras de serviços). A busca por igualdade e dignidade de acesso a população da
villa foi de intensa negociações, pressões e conflitos. Nas palavras da autora, “trata-se
de reivindicar um direito ao uso, a serem usuários, para além do estatuto dos
proprietários do serviço”. A “excepcionalidade” 6
é vivida como injustiça pelos
“vizinhos-cidadãos de Buenos Aires” a partir dos argumentos proferidos de que os
migrantes, particularmente, vivem “de graça” às custas da cidade. Inclusive, essas
tensões se originam tanto de âmbito governamental (local- nacional) quanto dos
próprios argentinos para como os estrangeiros na medida que há maiores agravamentos
destas disputas. Logo, a “política de lugar” é fundamental.

A villa: uma cidade de negócios

6
Característica atribuída para a villa que expressa toda a complexidade e amplitude do termo. É válido
apontar os métodos “paralegais” que vigoram nas tratativas (internas) envolvendo a villa. Tanto o
governo local quanto o nacional devem essa “prestação de contas” para a população villera.
A questão econômica – de atividades econômicas desenvolvidas na villa –
repercute de maneira significativa os discursos referentes ao “exercício de cidadania” e
capacidade de se assemelharem aos demais bairros sem que prepondere essa imagem de
“subsidiada”. A população da villa não é exatamente “pobre”, tem-se possibilidades de
arcar com os custos, especialmente quando for constatado que numa villa o consumo
correspondente a uma moradia é de até quatro vezes superior que de uma propriedade
média em bairros “urbanizados” como Palermo, Villa del Parque ou Belgrano. A
clandestinidade e o obscuro é uma forma de vida bastante cara e polêmica que gera
discussões sobre desequilíbrio entre partes da cidade, recaindo mais precisamente na
ideia-pergunta “como os que menos têm são os que mais consomem? ”. A villa, para a
cidade, aparece como “espaço de vagabundagem, de ociosidade, de vida gratuita”.

O monstruoso como o não moderno

A excepcionalidade que é atribuída a villa com todas as suas atividades paralelas


ao padrão “da cidade” (paralegal) faz com que ela seja catalogada como um espaço
monstruoso. Essa monstruosidade é constatada pela ascensão de economias sustentadas
pela força de trabalho villera em desconformidade com o ideal neodesenvolvimentista;
pelas figuras feiras, villas e suas próprias arquiteturas precárias e “deformadas” onde
exprime o espaço de “atividades monstruosas”; e, também, pela mistura de línguas e
novidades linguísticas que desafiam o próprio conceito de identidade.

A atribuição de monstruoso à villa, suas economias, sua língua e sua arquitetura


tem por escopo despolitizar e invisibilizar a sua população, isto é, ao mesmo tempo a
reconhece e a obscurantiza que realça incontáveis dilemas envolvendo a villa e “fora
villa”. A própria população manifesta divisões quanto a predominância de autonomia da
villa, sem a dependência ou mesmo contato com o externo, bem como a criação de
possibilidades ou mesmo vínculos com o externo de maneira a promover interações
importantes, especialmente para as crianças. Toda a discussão sobre o monstruoso de
uma cidade (“estranha”) dentro de outra maior, com suas excepcionalidades reflete o
desconhecimento quanto ao caráter produtivo e crescente da villa.

A villa como efeito do progresso

Há curiosidades peculiares que a autora traz acerca de crescimento da villa e da


própria Buenos Aires onde a primeira, juntamente com outras villas, cresceram
exponencialmente nos últimos anos não só em superfície – que inevitavelmente foi
encontrando limites – mas principalmente cresceram verticalmente, “em altura”,
enquanto a cidade não expressou expansão territorial significativa, exceto pelos
“movimentos populacionais”. O progresso produz mais villas e que traz
questionamentos sobre zonas supostamente, como traz a autora, “metropolitanas” ou
“suburbanas” no seio da urbe.

Viver bem

Como introduzido anteriormente a ideia (em crise) de identidade e de cidadania,


a nacionalidade argentina dos filhos e filhas desses migrantes constituem um ponto de
tensão acentuada, mormente quando se evidencia o contraste entre o status de cidadãos
e o local anômalo-paralegal em que vivem essas crianças e jovens. Os pais acreditam e
esperam que a nacionalidade argentina garanta maior inclusão aos seus filhos e
possibilitar que possam ir além. É nesse contexto de nacionalidade que o canto do hino
nacional figura como uma situação de suma relevância na transcendência dos
sentimentos e identificação ainda que no canto seja carregado os traços origens desses
argentinos filhos de migrantes. O canto se constitui, portanto, de (grande) desafio e que
com seu movimento penetra a própria língua da pátria, talvez, estática.

A língua da pátria

A autora remete para a preocupação de Judith Butler quanto a relação entre


linguagem, perfomatividade e política no exemplo do canto e seu desafio à língua da
pátria que, em meio a tais reflexões, surta discussões sobre a possibilidade do subalterno
falar. Em outras palavras, se o migrante pode falar e/ou cantar.

Democracia sensível

O canto seja do hino seja das festas que se faziam era percebida pela população
como uma forma de luta. As festividades (religiosas), em especial, transpareciam
também um caráter simultâneo ao religioso, isto é, transpareciam “as necessidades” e a
realidade da villa 1-11-14. Logo, os padres católicos desempenharam um grande papel
na villa quanto ao sincretismo político por meio do religioso. Os movimentos gerados
pelas festividades religiosas na 1-11-14 como epicentros da reunião de pluralidades e
diversidades ocasionaram migrações e incorporações de línguas, culturas, costumes e
movimentos os quais criam novidades e inovações marcantes. “Uma sociedade só é ela
mesma nos momentos em que está fora de si. E a festa é um dos momentos diletos e
mais propícios para encontrar esse exterior”. Por fim, a festa é financiada por uma
economia crescente e produtiva, sendo a economia da oficina têxtil.

A villa transnacional

Considerando que a villa 1-11-14 tem ligação intrínseca com a política boliviana
e paraguaia, conforme a autora discorre, torna-se factível estabelecer uma lógica que o
exemplo do corpo de delegados da villa permita analisar até que ponto a localização é
plano de projeção e ampliação da capacidade de diálogo político. Além disso, (re)
pensar formas organizacionais e momentos de comunidade a partir de uma
transnacionalização a qual se desdobra em múltiplas experiências e conexões.

Mapear o território

Retomando para o assunto relativo ao corpo de delegados da villa, a sua primeira


tarefa foi de produção demográfica e cartográfica sobre toda a villa, após, com o
percurso do tempo, foram atribuídos diversos outros ofícios e competências. A própria
condição de excepcionalidade bastante complexa da villa gera essa necessidade de
mapear o seu território e de construir uma imagem (documentos) realista e atualizada
para embasar negociações, bem como a própria gestão. Em suma, o corpo de delegados
7
assume as funções que o governo e autoridades não têm acesso, figurando como o
órgão representativo e intermediário.

A selva e a pólis

Antes da criação do corpo de delegados, considerando esse caráter paralegal ou


espaço sem lei que a villa expressava de modo mais acentuado, se permeava claramente
a visão de que a villa era uma selva e, portanto, cheia de desafios. É com a criação do
corpo de delegados, a auto-organização, que a necessidade de inventar e impor uma
forma de negociação com o estado se tornou mais próxima de realização.

As fronteiras da política

A autora coleciona uma experiência de uma delegada a qual expressa que o fato
de ter incorporado esse ofício foi suficiente para afastar o sentimento de “ser
estrangeira”, isto é, surgiu um sentimento de habitante que gerou um ímpeto de
demonstrar para a Legislatura o quão desafiador é a vivência da villa e,
7
A autora sustenta que o corpo de delegados, isto é, os delegados e as delegadas “parecem ser os
únicos capazes de medir e traduzir essa complexidade barroca que mistura bonança econômica,
crescimento populacional, proliferação de moradias nas alturas e novos negócios”.
simultaneamente, o quão ineficiente era esta Legislatura e o governo. O saber-fazer do
corpo de delegados8 junto de suas conquistas concretas e capacidade de negociação com
as autoridades foram os elementos responsáveis da criação de confiança entre vizinhos e
vizinhas.

Logicamente que a dinâmica promovida pelos delegados e delegadas gerariam


tensões e conflitos entre a população da villa, mormente pela transferência de maiores
encargos e responsabilidades pelo governo para o corpo de delegados. Se tornaram as
figuras responsáveis pela efetiva administração dos recursos que os governos
dispunham para a villa e, então, houve a incorporação da necessidade de fazer jus à
legitimidade popular concomitante a eficácia resolutiva. “O corpo de delegados foi
utilizado como equipe do governo da cidade de Buenos Aires, sem se quer receber um
salário, mas isso foi uma parte obrigatória, digamos, ou um requisito para que o próprio
governo os reconhecesse como delegados”.

A economia da inclusão/exclusão

Um ponto chave que a autora levanta está numa constatação de Butler acerca dos
“sem-estado” em que “esses humanos espectrais, desprovidos de peso ontológico e
reprovados nos testes de inteligibilidade social exigidos para reconhecimento mínimo,
incluem aqueles cuja idade, gênero, raça, nacionalidade e situação trabalhista não
apenas os desqualificam para a cidadania, mas também os ‘qualificam’ ativamente para
a condição de sem-estado”. Para a autora, trata-se de uma população não só excluída,
mas produzida em sua exclusão.

Entre diálogos criados a partir de pontos levantados por Butler e por Arendt
sobre as complexidades da política e da cidadania, a autora se depara com a
possibilidade oferecida pela condição de “sem-estado” remeter para uma imagem de
populações governadas que se situam num estado aquém da cidadania, ou seja, o
funcionamento da cidadania como síntese de incluir excluindo e excluir incluindo9. Essa
reflexão se desdobra na medida em que é constatado o fato de estarmos diante
pretensões defensivas referente a autonomia do político como âmbito ativo do humano

8
Esse saber-fazer está intimamente ligado com a multiplicidade de saberes e competências que os
delegados e delegadas possuíam, bem como os respectivos feitos e as conexões que essa multiplicidade
agregava à villa. A própria interação do corpo de delegados consigo mesmo imprime esta ótica.
9
É no espaço político que se fertiliza essa inclusão excludente e exclusão inclusiva na medida que há o
reconhecimento e catalogação de sujeitos não políticos, na perspectiva complexa de produtividade
política a qual a autora desenvolve raciocínio.
frente aos automatismos da racionalidade econômica, especialmente quando há o
transbordamento dos limites do pensamento político ordenado que analisa os
dispositivos de governamentalidade intervencionistas nas questões de gênero, mão de
obra não qualificada e reprodução como políticas da vida (ação política). Ir além do
pensamento sobre a soberania.

Espaço urbano e acumulação

A villa é um local e um cenário que concentra uma série de conflitos


habitacionais, raciais e de direitos que sofrem tensões constantemente, além de
repercutir a rivalidade, a cooperação e a concorrência entre técnicas de governo (formal)
e meios de autogoverno pela própria população que marca a lógica neoliberal, conforme
aponta a autora. O conceito de urbanização figura uma permanente disputa para a villa
em razão de se tratar de um território fortemente heterogêneo que ao mesmo tempo se
localiza no centro da cidade e é concebido como zona periférica e marginal. Um cálculo
oficial voltado para gerir e propor políticas locais não é capaz de superar a dinâmica que
ocorre na villa, mais precisamente na política habitacional. A villa continua, portanto,
sendo mais vista como selva do que pólis; como sendo mais um espaço de natureza do
que propriamente de cultura.

El Alto: os inquilinatos

À vista do crescimento vertical na villa, os inquilinatos provocarão uma


aceleração do mercado imobiliário informal, pois ainda que não haja mais espaço a ser
ocupado as pessoas continuam chegando pelo impulsionamento e reativação da
economia têxtil. Os primeiros ocupantes dos terrenos passaram a locar quartos e camas
para essa nova população migrante que chega e que se direciona para se desenvolver
nessa economia têxtil, inclusive criando uma imagem de “cidade-dormitório”, conforme
a autora faz menção de falas de delegados. O inquilinato acaba gerando uma maior
heterogeneidade na composição da villa a partir desse novo fluxo de habitação e
serviços.

A tensão entre a urbanização e a erradicação

Se levado em consideração a perspectiva da planificação governamental, a


urbanização com todo o seu planejamento de infraestrutura parece estimular, ao menos
teoricamente, a erradicação da villa que não apresenta os traços urbanísticos e, portanto,
é projetado a passagem de villa para bairro de apartamentos. Logicamente que tal
projeção é sujeita de sabotagens pela dinâmica de crescimento por sobreposição, uma
vez que a velocidade operada na villa impõe inúmeros desafios de acompanhamento
oficial; e em razão da efemeridade das conquistas que se alcança pela população local é
que toda tentativa de titularização dos direitos-conquistas será tratado como prioridade.

Instituições econômicas diversas

Se tem um conjunto de práticas econômicas comunitárias bem sólidas que


estimulam a cooperação e um fluxo consistente. Toda a articulação econômica informal
possibilita que os estrangeiros que chegam à villa possa ter acesso a meios de se
assentar, investir e produzir onde instituições econômicas diversas desempenham essa
viabilidade de projetos e dinâmicas financiando-as por meio da cooperação, da
reciprocidade (ayni) e da necessidade. Além do termo ayni, o pasanaku 10que significa
“passa entre nós” é uma modalidade de financiamento e poupança – uma instituição
econômica – bastante utilizada na villa que envolve pequenas quantias de crédito para
microeemprendimentos ou mesmo algumas necessidades pessoais,. Há também o uso do
anticrético que é uma política de moradia que envolve um alto valor capaz de gerar
benefício mútuo tanto voltado para o migrante buscar os meios de se instalar com sua
família e se desenvolverem na economia quanto para os proprietários reunir um capital
suficiente para novos empreendimentos e investimentos. Em suma, conforme elucida a
autora, são práticas fundadas numa maior igualdade e possibilidade de realização entre
“credor” e “devedor”.

A noite dos delegados

A autora desenvolve algumas reflexões sobre a racionalidade econômica com


aportes de Derrida e Marcel Mauss onde é levantado o fator tempo como um ponto
chave. As argumentações se dirigem para pensar sobre o poder do corpo de delegados, o
qual a autora conclui que se trata de um poder coletivo “adquire tempo através dos
desempregados” a partir do ângulo de economia do tempo, do esforço a ser empregado,
da administração de recursos e, ainda, da confiança. Esses elementos se concretizavam

10
Ambos os termos são muito difundidos na Bolívia onde há uma clarividente participação da língua
como meio apto a gerar dinâmicas sociais e individuais voltadas para o crescimento. É possível até
mesmo pensar no termo “ubuntu” para continuidade dessas reflexões tão marcantes nas dinâmicas
individuais, sociais e culturais.
durante o dia pelas atividades dos delegados (fulltime) e durante a noite onde os
vizinhos e as vizinhas podiam participar de reuniões e discussões da organização.

Crise do corpo de delegados: nativos versus migrantes

A partir de entrevistas com delegados e delegadas, a autora reuniu algumas


causas da crise do corpo de delegados que inevitavelmente surgiria. A primeira causa
foi o surgimento de uma economia de inquilinatos que é caro, exploratório e de
péssimas condições para os inquilinos; a segunda causa foi a exclusão da participação
da importante população inquilina que se formou; a terceira causa se depreende da
consolidação de uma dinâmica populacional diversa de maior rotatividade e, assim,
dificultosa de propiciar estabilidade e vínculos entre vizinhos; a quarta causa é a
oposição e sabotagens dos donos de inquilinatos aos planos de urbanização e à própria
autoridade do corpo de delegados; a quinta causa está na crise de reposição do corpo de
delegados que abarca desconfiança e desdém de vizinhos e vizinhas em razão da
representação do corpo de delegados ser de privilégio, elemento de poder,
especialmente quando se experimentava os critérios impostos por alguns membros na
distribuição de moradias; por fim, a sexta causa se encontra na função governamental
que recaiu ao corpo de delegados, o que modificou a relação entre os vizinhos e entre os
próprios delegados.

Festa e confinamento

As representações sobre o espaço da villa se sobrepesam em atribuir a ela como


espaço de vitalidade, especialmente aquela de natureza festiva, e como um espaço
mortífero em razão do fluxo entre a villa e a cadeia, mormente nos dias de visita.
Realça, desse modo, uma villa-confinamento que possui muitas faces, dentre elas a
villa-oficina.

A festa atravessa o bairro: do momento organizacional do corpo de


delegados à mudança de autoridades

Na villa a festa é religiosa e uma importante responsável pela criação do corpo


de delegados da 1-11-14 ante as oportunidades de visibilidade, comunicação e
organização. Ocorre que em um evento festivo, dedicado ao mulato Senõr de los
Milagros, em 2005, após um ano da extinção do corpo de delegados, foi o espaço de um
trágico massacre ocasionado pelo enfrentamento de grupos ligados ao narcotráfico por
territórios. Logo, entre as cenas de um experimento popular e plurinacional, de um lado,
e acertos de conta entre narcotraficantes, de outro, resultou na mudança de autoridades
sobre o território da villa.

6. entre o populismo e as políticas dos governados: governamentalidade e


autonomia

A autora cria um diálogo relacionado a política dos governados em que


governamentalidade (a arte de governar) postula a população como contraponto à ideia
de “cidadãos portadores de direitos, que compartilham a soberania popular”, pensada
por Chatterjee. Seguindo na linha de raciocínio do autor apontado, tanto a noção de
população como o seu sinônimo, os governados, são transformados positivamente em
prol de uma “potência popular pragmática”, nas palavras da autora. Segundo
Chartterjee, atualmente a democracia deveria ser vista como a política dos governados,
uma vez que eles não são povo, mas sim aqueles que sabem negociar com os
mecanismos de governabilidade de que são objetos e que a categoria de cidadãos não é
uma realidade nos países periféricos ou pós-coloniais.

Há um ponto tratado pela autora o qual aduz que os setores populares (os de
baixo) se preocupam mais com a forma de serem governados onde a política dos
governados propõe uma circunstância paradoxal: é assumido um grau de negociação
permanente com o governo e, ao mesmo tempo, estimula uma reapropriação a partir de
baixo, com base nos seus próprios recursos e linguagens. Elucida ainda que é
encontrado ambiguidade na posição de Chatterjee, tendo em vista, que para a autora, ele
aceita a impregnação do neoliberalismo e todo seu aparato de governo como campo de
disputas dos pobres, isto é, na medida que aceitam a condição de governados o autor
sugere uma fase de resistência política no interior desta racionalidade neoliberal.
Todavia, a autora encara o desafio de pensar em superação dessa compreensão e
aceitação.

Sociedade política e sociedade civil

Ainda com base nas lições de Chatterjee, se constata que a política dos pobres é
representativa do confinamento desses indivíduos como população; como sociedade não
civil na perspectiva de serem incivilizados. Adiante, a sociedade civil e a sociedade
política geram duas imagens divergentes do sujeito político por meio da antinomia entre
o nacional homogêneo e o social heterogêneo. A governamentalidade opera exatamente
como saber e tecnologia perante um corpo social heterogêneo e a possibilidade
democrática encontra lugar na política dos governados, pois esta é propícia para encarar
a heterogeneidade social. Em atenção a toda complexidade que envolve o tema, a autora
sustenta que a sociedade política ganharia potência se direcionada para além de uma
norma capitalista concatenada e progressiva, ou seja, está em lidar com âmbitos
capitalistas e promover confrontos com dinâmicas não capitalistas.

O tempo heterogêneo

A governamentalidade, nesse sentido, é compreensiva quanto as alterações do


tempo da política onde é sabido que as conquistas populares sofrem de precariedade
temporal. A partir disso, surge uma perspectiva de ingovernabilidade que é capaz de
reelaborar os dispositivos de governo e, mais ainda, capaz de anulá-los ou expressá-los.
A autora, então, questiona se uma elaboração popular do “Bem Viver” é possível de se
contrapor às técnicas de governamentalidade.

Populismo e pós-colonialismo: do povo à população?

Considerando a perspectiva populista e pós-colonial, tem-se que ambas


compartilham um enfrentamento em comum: pensam o sujeito popular a partir da
heterogeneidade em face da pretensão de um proletariado ideal (homem, branco,
europeu)11, além de que visam explicitar a racionalidade de um movimento popular não
condizente a eixos estritos da classe operária. Fala-se em modalidades de populismo,
conforme a autora persegue na perspectiva de Laclau.

O continente latino americano é muito peculiar, o que é imperioso compreender


que há uma perspectiva “de baixo para cima” na alocação do proletariado urbano como
desdobramento máximo de uma temporalidade desenvolvimentista. Para a autora, é
interessante a problematização e discussão acerca da racionalidade unicista que se
atribui à vida popular pela necessidade de articulação identitária, possivelmente se
constituem identidades sociais com diferentes níveis de universalização de exigências.

A autora dialoga com a hipótese lacaniana que se apresenta de suma


importância: o sujeito-povo é sempre sujeito de fala, “sempre emerge a partir de uma
assimetria entre a plenitude (impossível) da comunidade e o particularismo dos lugares
de enunciação”. Noutro giro, quando o populismo, ao radicalizar a pressão e tensões
11
Se pensa propriamente na linha de eurocentrismo e fiel correspondência ao ideal; desejável
concretamente.
sobre as instituições, acaba por abri-las à cadeia equivalencial forjada na luta
democrática.

A categoria de “governados”, acompanhando a tese de autora, se adequa melhor


ao modelo atual, como o de classes, onde a operação da dialética política coloca os
sujeitos em circulação e concorrência pelo poder, originando, então, uma ideia de
democracia radical fundada em regras de “aglutinação e dissolução de demandas”. A
tensão que origina o povo é a tensão existente entre a particularidade das demandas
populares e as pretensões de totalização.

De um lado há uma perspectiva que abandona a ideia do povo por se tratar de


um conceito associado a uma cidadania ineficaz do estado-nação nos países pós-
coloniais enquanto, de outro lado, há uma perspectiva que propõe a nova estimulação a
esta primeira a partir de uma articulação capaz de produzir identidade popular por meio
de operações de nominação e afetividade.

O populismo torna hábil a lógica dualista amigo/inimigo a qual emerge a


autonomia da política (politicismo) como locus privilegiado da ação social que
dialogará com a noção de governados como campo de pensamento sobre a dimensão
política sem necessidade de mediações. O raciocínio de Laclau propõe a
“transcendência frustrada”, isto é, “a transcendência está presente, dentro do social,
como a presença de uma ausência” que, em contrapartida, necessitará de mediação
política o estado e os líderes populares se caracterizam nas figuras aptas a viabilizar a
totalização frustrada do povo – garantindo a unidade popular. Em Laclau, não há
articulação sem mediação, já em Spinoza e em Deleuze a potência coletiva é encontrada
na determinação recíproca (plano de imanência12) sem regulação prévia por ser
“desejante ou constituinte”.

Povo e população

Em linhas foucaultianas, o povo é “aquele que se comporta em relação a essa


gestão da população, no próprio nível da população, como se não fizesse parte desse
sujeito-objeto coletivo que é a população, como se pusesse fora dela, e, por conseguinte,
é ele que, como povo que se recusa ser população, vai desajustar o sistema”; “aquele
que resiste à regulação da população, que tenta escapar desse dispositivo pelo qual a

12
Conforme o raciocínio de Spinoza, a autora aduz que “o corpo político supõe uma dimensão material,
afetiva, de hábitos comuns, que determina o espaço político-jurídico”.
população existe, se mantém e subsiste num nível ótimo”; em completa oposição à
população. A autora levanta alguns questionamentos como, por exemplo, até que ponto
a noção de comunidade permite, atualmente, ir além da ideia de população e povo?
Como a comunidade foi redefinida diante da dinâmica neoliberal?

A partir desses questionamentos, obtém-se que o capitalismo teve necessidade


de destruir comunidades e substituí-las por regra estatal-nacional para se expandisse. A
crise da autoridade estatal-nacional no atual contexto de capitalismo global reaviva a
comunidade, em que pese de um modo totalmente novo, preenchido de ambivalências e
furtividades. Baseando-se em Chartterjee, a autora trata da ação política dos governados
como possuidora do objetivo de “buscar e obter seu reconhecimento como um grupo de
população singular, suscetível de converter-se, a partir do ponto de vista da
governamentalidade, numa categoria empírica funcional para definir e implementar
políticas públicas”, numa citação direta do autor, onde se remete a uma “experiência
compartilhada” entre os governados. Ainda, pode se apresentar como contraponto à
governamentalidade na medida que há a capacidade de inventar relações de parentesco
para produzir uma nova retórica de demandas políticas, especialmente pela experiência
da crise.

A crise como locus

Evidencia-se que a crise é um locus privilegiado para se pensar, conforme aduz a


autora. Uma das heranças mortíferas do liberalismo é a projeção do social como campo
feito de cima para baixo sem que haja consistência e muito menos potência própria.
Assim, num contexto de crise, a barbárie é vívida, se percebe como estágio não civil ou
pré-político. Na experiência argentina durante a crise de 2001, se desenvolveu uma
dinâmica eminentemente política de “experimentação em e a partir do social”, isto é, o
protagonismo social em movimento. A leitura “de cima para baixo” (politicista) é
deficiente por negar a politicidade elaborada “de baixo para cima” e por ser inefetiva
pelas ilusões que se criam pela imagem onipotente do estado. Logo, o popular, sintetiza
a autora, é considerado como legitimação de poder que repara e unifica.

A razão neoliberal: conclusão

Conclui-se que é preciso compreender o neoliberalismo de modo diferente,


especialmente quando se parte do seu ciclo na América Latina. Trata-se de uma
temporalidade não linear do neoliberalismo, uma vez que ele é atual e combatido,
reinterpretado e renovado. A razão neoliberal, a partir dessas considerações, se vale para
expressar o neoliberalismo como sendo uma racionalidade, ou seja, a partir de diversos
modos o neoliberalismo é usufruído e sofrido por recombinação e contaminação de
outras lógicas e dinâmicas.

Em suma, o neoliberalismo não é surgido apenas “de cima” (tese advogada por
antiestados e a favor do mercado), mas também “de baixo para cima” a partir das
tensões ligadas a capacidade polimórfica do neoliberalismo em “recuperar” inúmeros
postulados libertários. As lógicas barrocas são entendidas como dinâmica expressiva de
uma contemporaneidade social-política-econômica onde ao mesmo tempo se recupera
memórias e se adapta para fazer política, negócios, cidades a fim de desenvolver a ideia
de progresso. As experiências das economias populares latino-americanas são relevantes
neste ponto. Por sua vez, a pragmática popular como pragmática vitalista se desdobra
pela não correspondência do cálculo para com o homo economicus, isto é, o cálculo é
um conatus – modo de conquista de espaço-tempo onde economias populares desafiam
lógicas extrativista e expulsivas. É a contraposição (política) à moralização das classes
populares. Por fim, o comum é compreendido como espaço além do público e privado,
bem como campo de disputas e tensões.

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