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Governamentalidade Liberal a Práticas Psicológicas: a Logoterapia de Viktor Frankl e seu

recurso à psicometria

Apresentação Oral em GT

Autor(es): Olivia Maria Klem DIas (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Flávio Vieira
Curvello, Arthur Arruda Leal Ferreira

Resumo: No final da década de 1970, Michel Foucault lecionou no Collège de France os cursos
Segurança, Território, População e Nascimento da Biopolítica, nos quais estudou as práticas de
governo, ou governamentalidade. Por estas entende-se as maneiras pelas quais se estrutura a
condução da conduta alheia, desde as formas pastorais do cristianismo primitivo até as
práticas do Estado contemporâneo. O ponto de maior importância desta história se dá no
século XVIII, a partir do qual houve uma mudança no enfoque do funcionamento do governo,
que passou de um Estado de Polícia, coercitivo e interventor, a uma nova governamentalidade
liberal, tal como preconizada pelos fisiocratas e pensadores do liberalismo. Nesta, a população
é vista como um ente natural, governável pelo acompanhamento e conhecimento científico de
seus movimentos espontâneos. Com Nikolas Rose, encontramos um estudo específico sobre a
relação entre as práticas psicológicas e os modos liberais de governo, sendo a psicologia
concebida como dispositivo estratégico desta gestão. As sociedades democráticas
contemporâneas se caracterizariam por seu discurso de preservação da individualidade e
liberdade dos indivíduos e, nelas, a gestão se daria através destes atributos, tratando-se de
investir diretamente no auto-governo dos indivíduos. Rose explicita que a importância da
psicologia nesse contexto consiste no fato dela disponibilizar um vocabulário próprio que
consistiria nos conceitos cunhados por tal saber, difundidos na sociedade por uma série de
técnicas de inscrição (como os testes, as escalas de atitude, a clínica etc.). De igual maneira, a
psicologia contribuiria para a construção de uma imagem do homem como um eu autônomo,
que deve lutar por realização pessoal e interpretar sua realidade como questão de
responsabilidade individual. O governo do outro seria então efetivado por um governo de si
mesmo, um governo pela liberdade presente na responsabilidade do sujeito sobre as próprias
ações e na sua autonomia. Os sujeitos se tornam governáveis justamente pelo estímulo ao seu
auto-governo (Rose, 1998). A governamentalidade liberal atuaria, então, pela gestão destas
subjetividades pessoalizadas. Assumindo esta orientação, buscaremos analisar como uma
prática psicológica específica, a saber, a análise existencial, ou Logoterapia, de Viktor Frankl,
pode oferecer recursos para a efetivação de uma gestão liberal descrita nestes termos, uma
vez que trabalha privilegiadamente com as idéias de liberdade individual, responsabilidade e
busca de sentidos particulares, não necessários, à vida. Encontramos que não apenas estas
idéias estão presentes no procedimento clínico por ele proposto, mas também que dão origem
a técnicas de inscrição particularmente eficientes, como os chamados testes logoterápicos,
técnicas psicométricas específicas que visam medir fenômenos considerados relevantes para a
boa condução da terapia.

Texto completo: Governamentalidade Liberal e Práticas Psicológicas:

A Logoterapia de Viktor Frankl e seu Recurso à Psicometria


Arthur Arruda Leal Ferreira

(Professor do Instituto de Psicologia da UFRJ – arleal@superig.com.br)

Flávio Vieira Curvello

(Graduando de Psicologia da UFRJ – flaviocurvello@ufrj.br)

Olivia Maria Klem Dias

(Graduanda de Psicologia da UFRJ – oliviadias@ufrj.br)

1. Introdução

O presente estudo busca analisar de que modo a psicologia e algumas de suas práticas
específicas se relacionam com o tema do governo, tal como proposto por Michel Foucault em
dois dos cursos que lecionou no “Collège de France”: “Segurança, Território, População”
(1977-1978) e “Nascimento da Biopolítica” (1978-1979). Por governo, Foucault não entende a
atuação de um poder formal, tal como faz a filosofia política ao discutir o Estado e as
possibilidades de sua legitimação, mas as diferentes formas de condução da conduta alheia,
desde as práticas pastorais dos primeiros cristãos até as formas de governo contemporâneas.
Neste sentido, ele cunha um novo conceito, a “governamentalidade”, que se refere às
diferentes formas pelas quais aquela condução é estruturada e racionalizada, visando atingir
um determinado fim (Foucault, 2008a, 2008b). A psicologia toma parte neste cenário com a
consideração de um modo contemporâneo de governamentalidade, o modo liberal, que é
discutido de maneira mais detida por Nikolas Rose (1998). Adotando estas referências,
buscamos analisar como uma prática psicológica específica, a logoterapia de Viktor Frankl,
pode ser entendida como uma tecnologia desta forma de gestão, tanto no que diz respeito à
sua proposta clínica quanto aos recursos psicométricos por ela desenvolvidos.

2. Governamentalidade e Práticas Psicológicas

Nos cursos mencionados, Foucault esboça uma genealogia das formas de governo modernas e
contemporâneas, apontando para o papel fundamental que a pastoral cristã assume em seu
desenvolvimento e considerando-a o mais antigo registro de uma prática de gestão visando à
condução das condutas humanas (Foucault, 1990; 2008b). Em sua análise, Foucault pouco
encontra da analogia da figura do líder, tal como caracterizado nos textos da Antiguidade, com
a de um pastor, o qual deve zelar integralmente por seu rebanho. Esta analogia será
claramente estabelecida apenas com o cristianismo. Apesar de não se confundir com o poder
mundano durante seus primeiros séculos de existência, a relação do pastor para com o leigo
define uma arte de condução dos homens que servirá de condição de possibilidade à
governamentalidade que se esboça no século XVI, quando as preocupações políticas incidirão
menos sobre as questões territoriais e mais na condução da população.
Foucault diz que este movimento é caracterizado por um intenso questionamento acerca do
que é governar, buscando-se distinguir os governos pessoal (de natureza ética) e familiar (de
natureza econômica) do governo propriamente político, dos outros, visando definir o que este
último tem de próprio. Isto acontece com o surgimento de uma nova literatura sobre a prática
do governo que se opõe ao pensamento de Maquiavel, cuja obra representava as
preocupações correntes da soberania. Se para este filósofo a questão basilar do exercício do
poder político era assegurar a dominação territorial por parte do monarca, para as novas
“artes de governar”, de La Perrière, La Mothé Le Vayer e outros, a gestão se dava
primordialmente sobre uma população. Esta deveria ser considerada em seus vínculos com
certos aspectos territoriais – como riqueza, condições naturais e possibilidades de subsistência
–, constituindo o foco de atuação do poder político, devendo ser conduzida a um estado de
felicidade e bem comum (Foucault, 1990, 2008b). A despeito da limitada inserção destas
diretrizes na prática administrativa factual e de seu bloqueio por uma série de razões históricas
de ordem política e econômica – fragmentação territorial de algumas nações européias,
dívidas de alguns Estados para com outros, o mercantilismo, certos conflitos militares etc. –,
elas demarcam uma primeira necessidade do político governar uma população, forçando a
soberania a certas mudanças em sua gestão.

Estas questões conduzem ao momento de maior interesse para os propósitos do presente


estudo: a constituição de um “Estado de Polícia” e sua crítica através da economia política, tal
como preconizada pelos fisiocratas e filósofos liberais. O Estado de Polícia tem origem no
século XVII, quando estas transformações na atividade política soberana ocasionam a
formação de um conjunto específico de estratégias e doutrinas políticas, chamado “Razão de
Estado”. Baseada no modelo econômico mercantilista, ela procurava esquematizar o
funcionamento da cidade a tal ponto que se garantisse sua subsistência e funcionamento a
custos mínimos, intervindo em detalhes da organização urbana geral, da economia interna e
externa, da diplomacia etc. No século XVIII, porém, a desarticulação desta racionalidade
começou a se esboçar. A doutrina fisiocrata e a filosofia liberal buscaram explicitar o fracasso
desta intervenção excessiva a partir de determinados acontecimentos, como as crises da
produção agrícola e o flagelo da fome, que ela pretendia, mas não conseguia evitar. O modelo
fisiocrata propunha como princípio de um governo econômico a liberdade de mercado,
entendendo este como um conjunto de processos administráveis pelos seus movimentos e
oscilações naturais. Definiu-se assim, uma crítica ao excesso de controle governamental
presente no século XVII. As práticas liberais de governo se disseminaram na proposição de
outras técnicas, entendendo a gestão como acompanhamento dos livres fluxos do mercado e
se voltando para outros objetos, como a população e a diversidade de fenômenos a ela
associados. O Estado deixa de ser interventor autoritário para ser um regulador ocasional.

É a partir desta viragem que a associação entre o tema do governo e as práticas psicológicas
ganha contornos mais definidos, como se observa no trabalho de Nikolas Rose (1998, 1999).
Segundo este autor, com as propostas de um governo pela liberdade será desenvolvida, ao
longo do século XIX, uma “governamentalidade liberal” que terá no advento das práticas “psi”
um poderoso recurso para efetivar sua gestão. A psicologia surge como uma tecnologia
individualizante, difundida na sociedade por meio do que o autor denominou “técnicas de
inscrição” (exemplificadas pelos dispositivos da clínica, testes de aptidão e testes
psicométricos, questionários, inventários, escalas de atitude etc.), que disponibilizam um vasto
arcabouço conceitual, segundo o qual os sujeitos passam a se referir às diversas dimensões de
sua experiência subjetiva e intersubjetiva (conceitos como inconsciente, personalidade,
emoção, motivação, cognição, vontade etc.). Neste sentido, não só se tornam referenciáveis
estas mesmas dimensões, produzindo formas de entendimento e relação do sujeito consigo
mesmo e com o mundo que o cerca, como também se tornam inscritíveis nas práticas de
governo, possibilitando sua conversão em gráficos, dados estatísticos, escalas etc. (Rose,
1999). Existe, deste modo, uma produção diversa de sujeitos pela psicologia. Não apenas
graças a tais técnicas de inscrição, mas a um modo ético em que os indivíduos passam a ser
concebidos como portadores de um eu autônomo, voltado para a sua auto-realização,
devendo alcançá-la por meio de seus atos voluntários e responsáveis, tornando-se agentes e
gestores de seu sucesso e satisfação pessoal (Rose, 1998).

Pode-se observar o porquê da atuação da psicologia ser de notável importância para um modo
de governo liberal, à medida que gera formas específicas de relação dos sujeitos com eles
mesmos e com os outros que são pautadas nos diferentes enunciados e instrumentos das
diversas psicologias. Os sujeitos passam a se entender, explicar e gerir a partir destes
conceitos. O governo do outro encontra sua realização maior, portanto, em um governo de si
mesmo, um governo pela liberdade presente na responsabilidade do sujeito sobre as próprias
ações e na sua autonomia. Os sujeitos se tornam governáveis justamente pelo estímulo ao seu
auto-governo (Rose, 1998).

3. A Logoterapia de Viktor Frankl

Partindo deste referencial, o que buscamos analisar no presente texto é a possibilidade de


encontrarmos na obra de Viktor Emil Frankl, psiquiatra e neurólogo austríaco criador da
logoterapia e da “Existenzanalyse”, certo conjunto de idéias ou enunciados compatíveis com a
descrição feita por Rose acerca do campo psicológico como um todo. Com efeito, como temos
podido avaliar em estudos anteriores (Ferreira et al., 2010, 2011), o conjunto heterogêneo de
propostas das psicologias humanista e existencial, sobretudo de base estadunidense, oferece
uma das mais prolíficas possibilidades de se exemplificar a tese de Rose, já que lida
diretamente em suas teorias com as categorias evocadas pelo sociólogo ao descrever os
propósitos gerais das práticas psicológicas enquanto tecnologias favoráveis a uma
governamentalidade liberal. Entre os diferentes autores humanistas e existencialistas em
psicologia temos, a despeito de eventual incompatibilidade teórica, do emprego de termos e
conceitos algo discordantes ou de quaisquer outras divergências menores, a manutenção geral
da idéia de que o homem deve se realizar – ou encontrar sentido, equilíbrio e contentamento
particulares para sua existência – através de escolhas em última instância livres e responsáveis,
comprometidas com certo sentido não-necessário que encontra sua legitimidade exatamente
no valor funcional que desempenha na estruturação daquela vida particular, em suas
idiossincrasias e nas condições concretas que a singularizam, que a tornam única. A facilidade
com que propostas deste caráter se aproximam da descrição de Rose, introduzida no item
anterior, é explícita. Sendo Frankl um autor de destaque entre o meio humanista e existencial
em psicologia, tendo influenciado amplamente o trabalho de autores americanos e sido
reconhecido como um dos grandes expoentes daquele meio, nosso propósito é verificar se, em
sua proposta clínica particular, ele oferece elementos concordantes com a tese de Rose ou se
inaugura modos de gestão mais finos e específicos, que talvez nos exijam maior cuidado
interpretativo na hora de retratá-los.

Frankl foi um intelectual formado na tradição fenomenológica em psiquiatria – tendo tido


grande proximidade de importantes autores desta área, como Victor von Gebsattel – e na
psicologia individual adleriana – tendo inicialmente se apoiado nesta orientação
psicoterapêutica para sua atuação profissional. Também de base fenomenológica (mas não
científica, e sim filosófica) foram as influências por ele recebidas e que o conduziram a um
afastamento em relação à psicologia individual. Fazemos referência aqui à ética material dos
valores de Max Scheler, figura dominante do círculo fenomenológico de Munique. Como
veremos ao fim desta breve exposição teórica, o tema dos valores é de grande importância
para a obra de Frankl. Foi, contudo, após sua experiência como prisioneiro nos campos de
concentração nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, como os campos de Dachau e
Auschwitz, nos quais perdeu praticamente todos os seus familiares e sua esposa, que o autor
desenvolveu seu método clínico particular, fortemente inspirado pela possibilidade de ainda se
perseverar na vida e encontrar nela algum sentido, não obstante todo o sofrimento que lhe
fora imposto. A logoterapia, também conhecida como “Psicoterapia do Sentido da Vida”, é um
procedimento terapêutico que defende a idéia de que mesmo nas condições mais adversas
possíveis, o homem pode encontrar sentido em sua existência e persistir diante dos males que
lhe sobrevêm – idéia que teria encontrado na própria sobrevivência de Frankl e na elaboração
de uma obra inteira por ela motivada uma verificação de que careceriam muitos outros
procedimentos clínicos ou filosofias da vida (Spiegelberg, 1986). Consideremos de modo breve
as idéias fundamentais do psicólogo para termos certo entendimento do que é a sua
logoterapia.

Na própria definição do nome de seu método, Frankl (1992) busca afastar os entendimentos
mais usuais do vocábulo grego “logos”, não o tomando como “razão”, “conhecimento” ou
“linguagem”, mas sim como “sentido”. Por meio desta acepção específica e pouco freqüente
do termo, o autor aponta para o principal tema de sua obra e para o seu conceito de base,
uma certa “vontade de sentido” como o principal motor da vida humana. Antes mesmo de se
assumir a legitimidade das propensões ao prazer – de origem psicodinâmica e que
conceberiam o homem como necessariamente direcionado à descarga de suas intensidades –
ou os desejos de afirmação e emulação – de origem societária e que atentariam à vontade de
dominação e conquista por parte do indivíduo –, deve-se reconhecer a busca pelo sentido
como a orientação primordial do existir humano. Em outras palavras, antes de se assumir a
pertinência de um “princípio de prazer” ou de uma “vontade de poder”, tal como defendiam,
respectivamente, as clínicas psicanalítica e psicológico-individual, há que se analisar a estrita
necessidade da vida de tornar habitável, significativo e ordenado o seu mundo circundante. E é
exatamente este traço mais originário do ser do homem o que Frankl chama vontade de
sentido, ao qual a logoterapia se dedica privilegiadamente.

Tendo em vista dar sustento filosófico a tais idéias, Frankl (1978) oferece uma concepção
antropológica fundamental à sua psicologia, concebendo o homem como estrutura triádica
composta pelas dimensões: (1) “somática”, referente às condições anatômicas e fisiológicas do
organismo, i.e., tanto à sua conformação estrutural quanto à funcional; (2) “psíquica”,
referente aos impulsos, apetites, afetos e cognições; e (3) “noética” ou “espiritual”, referente à
vontade, autoconsciência, experiência de valores, capacidade de escolha e responsabilidade.
Para além de uma clínica estritamente ocupada com as disfunções de natureza orgânica e
psicodinâmica, como seriam certas tendências da psiquiatria empírica e da psicanálise, a
logoterapia de Frankl seria atenta àquela dimensão e àqueles fenômenos da vida que as
diferentes terapias de seu tempo, via de regra, negligenciavam: a existência humana em seu
aspecto noético (Pascual, 2003; Roehe, 2005). Neste sentido, o autor afirma: “A logoterapia
trata não com medicamentos atentos a funções orgânicas, não com a ajuda de transferências
afetivas atentas à dinâmica emocional do paciente, mas com armas espirituais para a luta
espiritual que ocorre dentro do paciente.” (Frankl, 1988, p. 46)

Tendo em vista clarificar o que entende por sentido, o psicólogo aproxima a acepção estrita
deste termo do conceito de “Gestalt”, tal como definido pela escola berlinense homônima de
psicologia da percepção, representada por Wertheimer, Köhler e Koffka. Assim como a
experiência imediata seria caracterizada por uma tendência intrínseca ao fechamento, à
estabilidade e à disposição a mais harmônica possível de suas partes significativas, como
descrevem os psicólogos gestaltistas, o voltar-se do homem ao mundo seria também
naturalmente orientado à completude, à organização e ao estabelecimento de relações
equilibradas entre os termos envolvidos. A vontade de sentido, portanto, seria a capacidade
interior de se encontrar “Gestalten” plenas de sentido no real – i.e., nas condições
efetivamente vividas pelo indivíduo – e no possível – naquilo que lhe surge de modo inatual,
como por expectação (op. cit.). Ademais, a conquista do sentido não seria um fenômeno
absolutamente intimista, em que o homem doaria às coisas um valor cuja origem e cujos
caracteres distintivos seriam tão-somente intra-psíquicos, remontáveis à sua interioridade. Em
vez disto, trata-se de um movimento de auto-transcendência, de superação de si – um gesto
pelo qual o indivíduo se refere a outra coisa que não ele próprio e trava, neste contato, uma
relação significativa (Pascual, 2003; Pereira, 2007; Roehe, 2005).

É também em relação a esta vontade de sentido que se definem as formas de sofrimento


subjetivo enfocadas pela logoterapia. Se podemos encontrar uma grande diversidade de
quadros neuróticos (psicogênicos, sociogênicos, iatrogênicos, coletivos etc.), distúrbios
psiquiátricos (psicoses endógenas) e problemas psicossomáticos referentes às duas dimensões
mais básicas descritas pela antropologia de Frankl – as dimensões somática e psíquica –,
podemos encontrar também um quadro específico, existente apenas em referência à
dimensão noética, a saber, a “neurose noogênica”, ocasionada pela intensa frustração da
vontade de sentido. De acordo com Frankl, o mau exercício da vontade de sentido ou sua
simples frustração por causas adventícias conduz a um “vazio existencial”, ou a uma
experiência (mais ou menos intensa) de ausência de sentido no que se vive, de propósitos e
metas em relação às próprias ações e de motivos suficientes para a própria manutenção da
existência pessoal. Em graus particularmente intensos, esta frustração da vontade de sentido
conduz à neurose noogênica, que não se distingue das outras formas de sofrimento subjetivo
por seu quadro sintomático – podendo compreender depressão, angústia, pensamentos de
ruína, adicções diversas, irritabilidade etc. –, mas sim por sua origem, que é espiritual. Para seu
tratamento eficiente, portanto, apenas uma clínica atenta aos fenômenos espirituais poderia
ser indicada (Frankl, 2004).
Por fim, o manejo clínico da logoterapia se dá a partir de três conceitos básicos formulados por
Frankl acerca da experiência dos valores, i.e., quais são os três horizontes fundamentais de
nossa experiência a partir dos quais uma relação significativa com algo pode ser estabelecida.
Eles seriam: (1) os “valores criativos”, referentes à atividade produtiva geral do homem, seja
no campo prático, teórico ou técnico; (2) os “valores vivenciais”, referentes às experiências de
contemplação da beleza, regozijo estético e aos afetos nascidos no trato intersubjetivo; e (3)
“valores de atitude”, referentes ao poder espiritual de resistência diante das dificuldades e
vicissitudes da vida. Frankl os expõe na seguinte passagem:

“Uma vida ativa serve ao propósito de dar ao homem a oportunidade de realizar valores em
um trabalho criativo, enquanto uma vida passiva de prazer lhe confere a possibilidade de obter
preenchimento pela experiência da beleza, da arte ou da natureza. Mas existe também
propósito naquela vida que é quase privada tanto da criação quanto do prazer e que admite
apenas uma possibilidade de comportamento moral mais elevado: a saber, a atitude do
homem em relação à sua existência, uma existência restringida por forças externas. Uma vida
criativa e uma vida de prazer lhe são vetadas. Mas não apenas a criatividade e o prazer são
significativos. Se há algum sentido na vida, então deve haver sentido no sofrimento.” (Frankl,
1992, p. 76)

Ao analisar a dinâmica espiritual do paciente a partir deste enquadre conceitual, o


logoterapeuta deveria oferecer, na relação clínica propriamente dita, as condições para que o
paciente se assenhore de sua capacidade de estabelecer relações significativas com as
condições concretas de sua existência, através do exercício ponderado, responsável e sempre
engajado de sua liberdade. Trata-se, na clínica de Frankl, de auxiliar o paciente em sua
resposta à vida, tendo sido uma tal atuação chamada por vezes de uma “educação para a
liberdade”.

4. O Recurso da Logoterapia à Psicometria

Frankl demonstrava interesse em validar cientificamente seu método clínico. Este interesse se
traduziu, freqüentemente, por um recurso à psicometria. Contudo, não foi do próprio Frankl
que partiram as tentativas mais bem sucedidas de dar conta de tal propósito. O que se mostra
recorrente em seu trabalho é a menção aos dados e métodos desenvolvidos por terceiros. E
dentre os diversos testes desenvolvidos por seus colaboradores, um dos primeiro e mais
destacados foi o “logoteste” de Elisabeth Lukas, que será analisado aqui em maiores detalhes.

O procedimento de elaboração do teste consistiu na formulação de uma pergunta a 1.000


pessoas, com mais de 17 e menos de 70 anos, que foram abordadas ao acaso, em Viena e seus
arredores. Elas foram identificadas pela idade, pelo sexo, pelo tempo que demoravam a
responder à única pergunta que lhes era feita e pela própria resposta à pergunta: “Você
poderia me dizer se existe algo que você qualificaria como doador de sentido para a sua vida?
Você poderia expressar esse sentido em algumas poucas palavras?” (Frankl, 1988, p. 256). Ao
final deste procedimento, as 1000 respostas foram reduzidas a nove conceitos: próprio bem-
estar (posses, comer, beber, vida agradável); auto-realização (auto-educação, êxito); família
(filhos, casa, independência econômica); ocupação principal (estudos, profissão); sociedade
(amor, contato social, deveres sociais); interesses (ciência, hobbies, esportes, viagens);
experiências (apreciação da natureza, da arte); serviço a ideais (religião, política); necessidade
vital (saúde, auto-abastecimento das próprias necessidades) (op. cit., p. 260 e 261). Cabe
observar que esses conceitos diriam respeito, após nova redução, aos três tipos de valores
discriminados por Frankl, expostos no item anterior.

Após essa primeira fase, pôde-se desenvolver o logoteste, que foi aplicado, inicialmente, a 340
pessoas. Ele era composto por três partes: na primeira, buscava-se identificar em qual das
nove categorias acima descritas a pessoa se veria realizada; na segunda, o nível de frustração
existencial na qual ela se encontrava; e na terceira, pedia-se que a pessoa realizasse uma auto-
avaliação, no que diz respeito ao estabelecimento de suas metas, sua atitude frente às
mesmas e o grau de êxito que logrou em concretizá-las. Segundo Lukas, o teste buscava se
estabelecer como um “instrumento de controle”, que poderia ser aplicado em diversas
instituições, como escolas, empresas, centros de assistência à infância e à juventude etc. O
resultado do teste possibilitaria a identificação do grau de frustração existencial, quando esta
se fizesse presente, ainda em um quadro normal de manifestação. Caso algum grau dessa
frustração estivesse presente, se faria necessário o recurso à logoterapia; esta poderia atuar
minimizando os efeitos maléficos das complicações noogênicas sobre o ser humano (op. cit., p.
277).

5. Conclusão

A partir desta descrição do quadro teórico geral da logoterapia e de um instrumento específico


originado em sua busca por validação empírica, podemos apontar alguns aspectos da obra de
Frankl que nos parecem favorecer a interpretação de Rose acerca da psicologia enquanto um
campo científico comprometido com certo modelo liberal de governo. Estes aspectos seriam:

(1) O entendimento de que toda vida se direciona à realização de uma vontade de sentido, e
que esta realização se dá pela ação individual livre e responsável – com efeito, não só Frankl
afirma que é pelo bom exercício desta vontade que a vida encontra satisfação e propósito, mas
que isto é expressão de uma dimensão específica de nossa estrutura antropológica, a
dimensão noética, havendo mesmo uma teoria do que seria característico do homem
enquanto homem para dar sustento àquela tese e colocá-la no lugar de centralidade
pretendido. O ser-homem implicaria naturalmente aquilo que Rose identifica ao propósito
geral da psicologia enquanto tecnologia liberal de gestão: que a subjetividade seja configurada
como uma individualidade ativa, livre e responsável por si mesma.

(2) O entendimento de que esta vontade de sentido pode ser aprimorada ou reabilitada não
apenas pelo empenho pessoal, mas também pelo recurso à psicoterapia, o que explicita o
caráter de gestão desta última. O logoterapeuta oferece as condições para que o paciente se
posicione diante do curso de sua vida, responda a ela de maneira potente, afirmativa e
comprometida com um sentido absolutamente singular, dito daquele indivíduo específico,
naquelas condições específicas. Isto não só dá a medida da relevância desta resposta para toda
vida em geral, mas evidencia também como esta se encontra sempre manifesta na
singularidade, aproximando tais idéias da mesma tese de Rose evocada há pouco.

(3) A postulação de uma nova categoria diagnóstica para enquadrar os desvios severos da
vontade de sentido, para a qual a terapia eficaz seria aquela atenta à vida espiritual do
paciente. Não passar indiscretamente do sintoma à hipótese genética é de grande importância
aqui, pois isto pode conduzir a erros acerca do que efetivamente causa o mal a ser
compreendido – à confusão de problemas noodinâmicos com problemas psicodinâmicos ou
orgânicos. A logoterapia, assim, é uma técnica de todo relevante para uma avaliação cuidadosa
do sofrimento subjetivo, posto que supera as limitações teóricas das outras psicoterapias, dá
atenção a certo aspecto da vida que era ignorado ou mal avaliado por elas e desenvolve
modos de intervenção adequados às patologias que são particulares àquele aspecto, i.e., o
espiritual.

(4) Por fim, o desenvolvimento de recursos psicométricos como o logoteste para refinar tal
avaliação da conduta individual, o que exemplifica de maneira bastante clara aquilo que Rose
chama de técnicas de inscrição. A avaliação possibilitada pelo logoteste não só atende às
expectativas de validação empírica do procedimento clínico de Frankl, mas mostra como os
fenômenos por ela considerados podem ser vertidos em categorias quantificáveis e subsidiar
modos mais detalhados de intervenção, sejam eles clínicos ou institucionais, como aponta
Lukas. Pela mensuração daquele tipo de mal que conduz, em níveis acentuados, à neurose
noogênica – i.e., pela mensuração da frustração existencial –, o terapeuta produz dados
matemáticos acerca da subjetividade que podem servir bem à sua atuação, seja ela de que
caráter for. Temos aqui o movimento apontado por Rose, em que uma determinada
manifestação da conduta do sujeito é adequada a certo conceito e tratada por instrumentos
técnicos específicos que a tornam dado objetivo.

Deste modo, parece-nos adequado afirmar que o trabalho de Frankl oferece certos elementos
compatíveis com as análises de Rose e ilustra o comprometimento que as propostas e práticas
da psicologia possuem, de acordo com este autor, para com certa racionalidade liberal de
governo.

6. Referências

Ferreira, A. A. L.; Curvello, F. V.; Dias, O. M. K. (2011). Governamentalidade liberal e práticas


psicológicas: a pedagogia humanista. In: Espacios, no prelo.

Ferreira, A. A. L.; Curvello, F. V.; Monteiro, G. G. (2010). Técnica de governo e práticas


psicológicas: humanismo e empreendedorismo. In: Temas em Psicologia, v. 17, n. 1, pp. 261-
274.

Foucault, M. (2008a). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes.

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Frankl, V. (1978). Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Frankl, V. (1988) La voluntad de sentido. Barcelona: Editorial Herder.

Frankl, V. (1992). Man’s search for meaning. Boston: Beacon Press.

Frankl, V. (2004). On the theory and therapy of mental disorders. New York: Bruner-Routledge.

Pascual, F. (2003) Viktor Frankl: antropología y logoterpia. In: Ecclesia, v. 17, n. 1, pp. 37-54

Pereira, I. S. (2007) A vontade de sentido na obra de Viktor Frankl. In: Psicologia USP, v. 18, n.
1, pp. 125-136.

Roehe, M. V. (2005) Revendo as idéias de Frankl no centenário de seu nascimento. In: Revista
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Rose, N. (1998). Inventing ourselves. Cambridge: Cambridge University Press.

Rose, N. (1999). Governing the souls. Londres: Free Association Books.

Spiegelberg, H. (1972) Phenomenology in psychology and psychiatry. Evanston: Northwestern


University Press.

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