Você está na página 1de 126

resumos de

INTRODUÇÃO AO DIREITO I

Mónica Inês Oliveira e Silva

Docente Ana M. Gaudêncio

Segunda Turma - Ano Letivo 2020/2021 1º

SEMESTRE DO 1º ANO

Página 1
Nesta disciplina, procuramos as indicações fundamentais/estruturantes da tarefa do
jurista e do modo como ele a executa.

Direito é a ordenação normativa de validade e eficácia


Programa de estudos da disciplina

Conceitos iniciais
- Positivismo: filosofia da ciência, baseada na experiência variável, no dado objetivo e
no elemento quantitativo ➜ conhecimento obtido a partir de um procedimento lógico,
factual, matemático e dedutivo, onde se admite que o científico é a única e verdadeira
fonte;

Página 2
- Positivismo jurídico: corrente da filosofia do direito, onde se reduz o direito a apenas
ao que está posto, colocado e positivado ➜ sem nenhum método científico para o
estudar;

- Relativismo: negação da possibilidade da objetividade e do caráter exato da ciência ➜


ênfase no emotivo, subjetivo e intuitivo.

Página 11-29, de Fernando José Bronze – Lições de Introdução ao Direito (Lição 1)

O sentido geral do direito


O direito e o jurista (diversas perspetivas de abordagens)
O jurista perante o direito
São as abordagens externas em que o direito surge como um elemento
constitutivo do objeto em estudo na sua manifestação (≠ da abordagem interna,
i.e. da assunção interna do direito com intencionalidade normativa e que é
propósito da ação).
A filosofia do direito dos filósofos é diferente da dos juristas, levando-nos a
diferentes abordagens e conclusões.
1. Filosofia do direito dos filósofos
Os filósofos adquiriam uma perspetiva humanista: reflexão acerca do direito que vai
além da própria normatividade (metonormatividade).
É uma “crítica-reflexão” teórica e prática do humano, que não envolve a realização
histórico-concreta do direito.

Página 3
2. Filosofia do direito dos Juristas
Os juristas procuram assumir internamente a intencionalidade do direito, para
estabelecer um pensamento reflexivo-especulativo sobre o fundamento desse direito.
3. Filosofia epistemológica do direito
Consideração do direito como objeto cognoscível (conhecido por um sujeito, o
cognoscente), para a elaboração de enunciados de regularidade dos fenómenos.
O direito é, maioritariamente, encarado, nas experiências Positivistas, como uma
ciência: “ciência do direito sem direito”.
4. Filosofia sociológica do direito
Estudo do direito enquanto fenómeno social, não comprometido com o objeto que
estuda.
Os resultados que dele provém permitem, contudo, compreender a sua utilidade prática,
o que o leva a ser um elemento do estudo global da sociedade.
A perspetiva que iremos assumir é uma perspetiva interna:
De acordo com esta, o jurista não se assume apenas numa perspetiva técnico-
profissional (daquele que conhece absolutamente todo o direito em vigor e o projeta
mecanicamente na realidade), mas assume também uma atitude criticamente
comprometida, a da compreensão do sentido do múnus (dever/obrigação) que abraça.
Ser jurista não é apenas conhecer o direito vigente e aplicá-lo mecanicamente. Ser
jurista implica, assim:

 um caminho crítico-reflexivo;
 a assunção internamente da intencionalidade que a normatividade jurídica
oferece;
 uma reflexão sobre a realidade, que não lhe é alheia.
O direito é um modo possível de organização da intersubjetividade, mas que
não é único e que não se dirige a todos os nossos problemas.
Poderíamos pensar no direito como uma organização regulativa assente na categoria
do poder (como garante a sua eficácia), todavia se o conteúdo não se conformasse com
aquilo que culturalmente consideramos como direito, não o reconheceríamos como
direito.
Assim, o direito é uma manifestação de um sentido de orientação da
regulação da vida intersubjetiva, assente na função de validade
normativa, que assume diferentes sentidos (generalizantes ou restritivos – estes, por
sua vez, diacrónicos ou sincrónicos).

Página 4
Nota:

➜ as perspetivações generalizantes do sentido do direito correm o risco de serem ou


generalizantes (ao ponto de não estabelecerem qualquer especificação) ou redutoras
(por serem impositivas);

➜ o direito é uma manifestação cultural de tempo e no espaço.

Mas quem é o destinatário do direito?


Todos somos destinatários do direito positivo. E o
que quer isto dizer?
Ser destinatário do direito significa procurar, no direito, respostas para a
delimitação da intersubjetividade e, correspondentemente, para a resolução de certos
problemas práticos.
Ora, o direito não toca todas as relações subjetivas: só faz sentido falar em direito se
houver intersubjetividade (pois um sujeito isolado não precisará de direito)
juridicamente relevante.
Como saber o que é um problema juridicamente relevante? E qual a sua
solução?
Segundo Castanheira Neves:
“Direito é a solução possível para um problema necessário”
O problema necessário é o da partilha do mundo, que interpela o ser
humano a criar um modo de posição relativa dos sujeitos (ser ou não ser direito).
Desta forma, percebermos que os problemas juridicamente relevantes são aqueles
em que está em causa a mediação do mundo.
O problema da partilha obriga a criar um modo de ordenação da posição relativa
dos sujeitos, que pode ser direito ou não:

 Ser direito implica um acervo axiológico e normativo que diferencia a


ordem de direito de outras ordens normativas sociais.
Que outras ordens? Ordens do trato social, p.e..

Então…
Como o direito compreende, atualmente, uma ordem normativa que visa um certo
tipo de intersubjetividade, não podemos dizer que tem apenas uma função resolutória de
conflitos, tendo também uma função ex-ante (suposição) da intersubjetividade que
apela a uma ordenação pacífica ➜ estabelece, assim, uma delimitação e definição
das subjetividades intersubjetivamente interferentes.

Página 5
É neste contexto que surge a bilateralidade atributiva, uma característica que
posiciona os sujeitos uns perante os outros, relativizando-os e assumindo- se como um
terceiro género, que, de fora, estabelece a posição relativa desses mesmos sujeitos ➜
surge numa tercealidade que lhe é característica, ao estabelecer a posição relativa dos
sujeitos (p.e. o credor/o devedor; o senhorio/o arrendatário, etc.).

O direito perante o jurista


Quando olhamos para o Direito como resposta, vemos um horizonte de referência
caracteristicamente normativo, válido e eficaz para as perguntas do tipo de
intersubjetividade que exige uma resposta do direito.
Ver no direito a resposta implica interrogar o direito enquanto ordem normativa vigente,
enquanto fundamento intencionalmente predicante dos juízos de resposta.

 problemas DE direito: o que o direito tem a dizer sobre um determinado


problema concreto (“o quê do direito?”)

Quid Iuris?
Para responder a estes problemas de modo criticamente comprometido, há um problema
prévio fundamental a ter em conta:

 problemas DO direito: vendo o próprio direito como problema


(fundamento/critério normativo da intersubjetividade a que nos referimos) e
aquele onde nos iremos concentrar em IAD (“o que é do direito?”)

Quid Ius?
Atenção
Não podemos distinguir os dois problemas, pois as nossas circunstâncias exigem a
interpenetração de ambos ou das questões a que esses respondem.
Também não devemos impor estas ideias sem as questionar, pois isso seria uma
forma de violência: a manifestação das ideias só pode resultar do diálogo.
Entramos, portanto, na noção de autonomia, que foi historicamente herdada do
velho continente, mediante as suas perspetivas liberais (não é, dessa forma,
linearmente universalizável pois o limite noutras civilizações pode não ser o mesmo,
dado a subjetividade da posição do limite).

A evolução do direito
O direito, enquanto contínuo constituente, tem de ser aberto ao diálogo e à
realidade, mas também objeto de uma reflexão crítica (de forma a evitar a sua

Página 6
instrumentalização).
Direito como uma ciência social não estática, onde existe uma evolução constante.
Desenvolve-se continuamente, implicando uma relação dialética entre o já
adquirido e o que a prática nos vai apresentando e vai sendo adquirido.

Página 31-58, de Fernando José Bronze – Lições de Introdução ao Direito (Lição 2)

A OJ como factum da experiência imediata do


“mundo do direito”
1) Análise da ordem jurídica
a) Estrutura da OJ
A OJ é o direito vigente num determinado contexto, sendo, por isso, um possível
modo de organização da intersubjetividade.
O direito, por sua vez, é uma expressão cultural em que os sujeitos se projetam para
a ordenação da sua vida social.
No nosso sistema de legislação, o primeiro contacto que temos com o direito é pela
ordem jurídica: é uma estruturação triangular que nos irá apresentar diferentes tipos
de realização da justiça como fundamento e objetivo do direito, e que, por
isso, se nos apresentará com três linhas (lados do triângulo).

Página 7
A ordem jurídica é, assim, uma manifestação da necessidade do ser
humano de racionalizar a sua ação.

Sociedade

D. PUB β) (3) γ) D. PUB

Particulares Particulares

α) D. PRIV

α) a linha das relações entre sujeitos particulares (ordo partium ad partes)


Nesta linha de base estão representadas as relações que estabelecemos uns com
os outros na veste do direito privado: “ordem das partes para as partes”. Estamos uns
perante os outros e a sociedade constitui o cenário onde se desenrolam as ações privadas
entre os sujeitos.
Aqui, a OJ coloca os sujeitos numa posição paritária e define as nossas autonomias,
limitando-as, e permite a realização dos nossos interesses, tutelando-os. Como há
interesses conflituantes nestas relações, a função do direito é garantir a atuação das
autonomias reciprocamente delimitadas e a de fornecer critério de resolução dos
conflitos que possam surgir.
Quem são os intervenientes?
Consideram-se as relações jurídicas em que intervém os sujeitos de direito
privado, que, caracterizando-se pela sua bilateralidade e estatutos associados, atuam
na construção da sua esfera enquanto se relacionam com outros, também no domínio
das suas relações particulares.
Os sujeitos, não como cidadãos, mas enquanto titulares de direitos subjetivos
que, com correspondentes deveres jurídicos, se apresentam nas relações que
estabelecemos entre nós com particulares.
Sujeitos que pretendem a sua autonomia para a realização dos seus interesses, todos
perante todos numa posição paritária.
Quais os valores fundamentais na linha de base?

 Liberdade individual (centrada em cada um) e relativa (vista sob a forma de


autonomia privada, onde as autonomias se encontram, relacionam e
relativizam mutuamente)
É a liberdade de um sujeito em relação a outro sujeito na atuação para a
concretização dos seus interesses particulares.
Traduz a correspetividade que caracteriza estas relações jurídicas: os

Página 8
sujeitos que se relacionam nesta primeira linha, afirmando reciprocamente as suas
autonomias, buscam a correspondência entre as suas pretensões.

 Igualdade como paridade (relação interpare)


A posição de paridade estabelece-se na relação entre sujeitos particulares.
Qual o objetivo principal da linha de base?
Este domínio pretende regular a posição dos membros de uma certa
comunidade enquanto sujeitos jurídicos privados (titulares de qualidades,
situações, direitos, etc.), definindo-lhes uma esfera jurídica particular,
fundamentalmente autónoma e disponível.
Estes encontram-se vinculados entre si por relações jurídicas cujo conteúdo e
imediato objetivo normativo não se referem à comunidade em si, mas à própria
disponibilidade particular que eles (como “senhores” de situações, interesses e
intenções pessoais ou privados), entre si autonomamente relacionam num plano de
paridade.
Que tipo de justiça aqui se verifica?
O direito visa, obviamente, a realização da justiça. Aristóteles
distingue justiça corretiva e justiça distributiva. Dentro da
justiça corretiva:

 Justiça corretiva (aquela que procura tornar indemne, veremos depois)


 Justiça comutativa (justiça da troca, que reflete transações particulares
voluntárias (responsabilidade civil contratual) onde os sujeitos dão causa por
manifestação de vontade às prestações)
A comutatividade como igualdade de correspetividade implica a justiça da troca e, por
isso, a correspondência entre prestações, que é fundamental no exercício da autonomia
privada e na conformação dos interesses geradora dos efeitos que os sujeitos no
exercício da sua autonomia pretendem produzir (realizar os seus interesses).
P.e.: A pretende vender, B pretende comprar. Se B concordar com o preço estabelecido
por A, temos igualdade de correspetividade e temos comutatividade, havendo uma
transação voluntária.
Nota: Nas transações particulares involuntárias (responsabilidade civil extra-
contratual) não teremos comutatividade nem correspetividade ➜ a atuação de um
sujeito face ao outro gera um desequilíbrio que não resulta da manifestação de vontade
recíproca.
Atenção: Dentro do direito privado geral, o direito civil e o direito administrativo são
aqueles que regulam as relações entre sujeitos particulares.

Página 9
β) a linha das relações entre os cidadãos e a sociedade (ordo partium ad totum)
Esta linha ascendente comporta todas as relações que se estabelecem entre
cada um e a sociedade ou com todos os outros enquanto cidadãos:
“ordem das partes para o todo”. Aqui a sociedade não está mais em segundo plano,
emergindo como sujeito das relações que estabelecemos com ela, estando em
causa o direito público.
Desta forma, a sociedade possui ela própria, um conjunto de valores e
interesses a garantir, que nos dirige e cujo cumprimento nos impõe, de forma a
garantir uma convivência pacífica.
Se violarmos tais interesses e bens jurídicos fundamentais que a sociedade pretende
conservar, seremos pela mesma responsabilizados.
Por seu turno, os indivíduos também dirigem à sociedade exigências que derivam
da afirmação da sua autonomia.
Os ramos do direito que se localizam nesta segunda linha (como o direito
constitucional, penal, fiscal, militar, de jurisdição ou criminal…) visam regulamentar as
exigências que a sociedade nos dirige, mas também institucionalizar, legitimar e limitar
o poder, sendo que também nós temos interesses a reivindicar, como os direitos
fundamentais.
Ou seja, a sociedade pode com certeza, exigir-nos prestações (p.e., serviço militar,
impostos…), mas não arbitrariamente!
Quem são os intervenientes?
Consideram-se todas as relações/situações e vínculos jurídicos que se
estabelecem em qualquer sociedade juridicamente organizada e institucionalizada, entre
as pessoas enquanto membros da comunidade (i.e., como cidadãos e não
apenas como indivíduos), uma vez que a sociedade, tomada com um todo, é
sujeito das relações jurídicas que com ela estabelecemos, surgindo em primeiro
plano.
Cidadão é aquele que adquire o estatuto de cidadania perante o Estado, o que
implica ser titular de direitos e deveres perante o mesmo. Quando somos
considerados socie, estabelecemos relações jurídicas entre cada um de
nós e todos os outros socie.
Desta forma, nas relações que estabelecemos com a sociedade estamos, todos
diante dela e não uns perante os outros, e por isso, esta segunda linha regulamenta as
relações das partes com o todo: dimensão do conhecimento recíproco de direitos e
deveres de cada cidadão e do conjunto de todos os cidadãos (sociedade) – p.e. o art. 27º
da CRP.
Quais os valores fundamentais na linha ascendente?

 Liberdade pessoal (singularmente enucleada, pois a sua atividade pessoal


produz efeitos nos outros sujeitos), de cada um perante o todo;

Página 10
 Igualdade material (como, p.e., no art. 13º da CRP);
 Responsabilidade social/comunitária (corresponsabilidade, i.e., todos somos
responsáveis pela garantia da efetivação daqueles valores e interesses
fundamentais que nos impomos enquanto sujeitos de direito público e cidadãos
com vida social).
Qual o objetivo principal da linha ascendente?
Esta linha tem uma função prescritiva, enquanto se constrói num princípio de
ação e critério de sanção (são os pressupostos da incriminação e da ação, que serão vistos depois) , e uma
função auto-organizatória, que lhe garante a unidade sistemática, o
desenvolvimento constitutivo e a realização orgânico-pessoal.
Cabe, assim, ao direito a função de tutela e garantia do valor da salvaguarda da
nossa autonomia em momentos fundamentais, como os que esteja em causa a nossa
liberdade pessoal singularmente enucleada e a responsabilidade social de cada um.
Que tipo de justiça aqui se verifica?
O tipo de justiça presente, a justiça geral, traduz-se em tudo aquilo que, em nome
de todos, se pode exigir a cada um ou tudo aquilo que cada um pode exigir ao todo.
P.e.: Quando consideramos a prática de um crime, estamos a analisar a violação desse valor fundamental que afetará toda a
sociedade e a própria agressão do autor do crime para com a vítima.

Para além disso, estamos igualmente perante uma justiça protetiva, sendo que o
direito vai institucionalizar formalmente, limitar e a controlar o poder e,
consequentemente garantir a situação dos particulares que com eles se confrontam (i.e.,
vai proteger a comunidade num eventual abuso do poder soberano e na sua aplicação
excessiva).
P.e.: aplicando uma pena, por um lado temos a legitimação na intervenção na liberdade de um sujeito e por outro temos a
intervenção nessa mesma liberdade, limitando-a.

Assistimos a toda uma ideia de um direito de garantias (p.e. o art. 24º CRP)
associado à justiça protetiva. Assim, os pressupostos da incriminação e os pressupostos
da punição (princípio da ação e da sanção) têm de estar previamente definidos,
mesmo antes de serem cometidos os atos violadores.
Nota: As relações entre sujeitos de direito como membros de uma sociedade (que se
relacionam com ela num conjunto de relações de reconhecimento recíproco de direitos e
deveres) é, visualmente, uma relação estática (que pode ser de caráter biológico, ético,
etc., mas é sempre cultural).

γ) a linha das relações entre a sociedade e os cidadãos-


destinatários sociedade (ordo totius ad partes)
Esta linha descendente surge num contexto histórico próprio: o

Página 11
surgimento de um novo tipo de Estado, o Estado Social, que pretende atuar para
diminuir as desigualdades e as injustiças.
Aqui, as relações que se estabelecem são distintas: a sociedade aparece como
entidade dinâmica com um projeto de ação a realizar e cuja efetivação leva a cabo
um conjunto de medidas que implica para o cidadão-sujeito direitos e deveres (a
sociedade confere prestações, mas também as exige).
Aqui, a sociedade corresponde ao Estado Social de Direito, onde se
verificam programas de ação voltados para a institucionalização de direitos
económicos, sociais e culturais e a prestação de serviços à comunidade (como o acesso à
saúde, cultura, educação, segurança social, p.e. o art. 63º da CRP) cuja efetivação é
exigida pelo cumprimento de determinados deveres ao sujeito.
Quem são os intervenientes?
Estando perante “o todo pelas partes”, o todo aqui aparece-nos enquanto
sociedade politicamente organizada em Estado, numa relação com os seus
sujeitos-cidadãos.
Comportam-se, assim, as relações jurídicas têm o seu ponto de partida
intencional na comunidade, que irá, por sua vez, estabelecê-las connosco
(cidadãos) enquanto “partes”, através das suas instituições, órgãos e representantes.
A sociedade é considerada como uma entidade atuante e dinâmica, que possui
um programa estratégico e que atuará de forma a atingir os objetivos a que se propõe.
Estes objetivos podem ser favoráveis para nós, mas podem também visar o
benefício da própria sociedade (p.e. o direito da providência e da assistência
social, em que aparecemos como beneficiários, mas temos também de contribuir para
determinados fundos sociais).
A igualdade não aparece como valor fundamental (pois só pode ser atingida através
do valor da solidariedade), mas como objetivo, dado que se pretende alcançar uma
aproximação à igualdade pelo caminho da desigualdade (p.e., os impostos
pagos variam consoante o rendimento de cada cidadão – a predisposição de cada um
para realizar uma prestação social será desigual, mas beneficiará os que têm menor
rendimento).
Quais os valores fundamentais na linha descendente?

 Liberdade pessoal (comunitariamente radicada), i.e., a liberdade como


firmação de um coletivo/comunidade, onde cada sujeito, como membro de uma
comunidade com um projeto a realizar e para o qual cada um contribui, assume
uma responsabilidade solidária que implica a atuação

Página 12
➜ responsabilidade da construção da solidariedade;
 Solidariedade, uma nota decisiva do modo de estar coletivo: esta igualdade
é diferente da igualdade material (vista como um fim), pois aqui é
necessário ter em consideração que, por diversas vezes, este valor da
solidariedade impõe frequentemente uma atuação em termos de desigualdade
para se atingir, no fim, a igualdade (ou melhor dizendo, a diminuição das
desigualdades).
Qual o objetivo principal da linha descendente?
Existe, portanto, a ação constante da sociedade (politicamente organizada
= Estado) sobre os cidadãos, que podem ser afetados positivamente (ter um
benefício fiscal, p.e.) ou negativamente (pagar impostos mais altos do que outros
cidadãos, p.e.) - art. 104º da CRP.
Pode afirmar-se que o direito aparece nesta linha como um estatuto de atuação
e de simultânea limitação, porque quando estamos a construir o estatuto, estamos a
limitar a atuação da sociedade.
Sendo assim, nesta terceira linha, a sociedade vai atuar o seu programa,
mas nos termos permitidos pelo direito, que visa fundar/legitimar, regular e
limitar o global projeto cultural, político, económico e social da sociedade.
Os ramos do direito que integram esta linha correspondem ao Direito Público em
geral (direito constitucional, direito da previdência social, direito público da economia,
direito do ambiente, etc.).
Que tipo de justiça aqui se verifica?
A justiça que se impõe nesta linha é a justiça distributiva (que estabelece uma
atuação de recolha e redistribuição de meios) como também a justiça
corretiva (recuperando a distinção de Aristóteles, esta procura corrigir as
desigualdades presentes na sociedade).
Assim, segue-se a atribuição a cada um, segundo as suas necessidades. Ao direito,
na relação com o Estado Social de Direito, cabe essa prossecução da justiça distributiva
(direito social).

De um modo geral, sobre as linhas:


Nesta estrutura triangular, manifestam-se determinadas dimensões axiológicas.
Porém não se deve estranhar a sua coincidência, porque a forma e o conteúdo se
implicam reciprocamente e porque esses valores são constitutivos e fundamentantes do
direito (permitindo-nos outras observações no futuro) – as linhas do triângulo,
atualmente, têm uma coexistência e não existe hierarquia entre elas.
Estas linhas não se afirmaram em termos historicamente sincrónicos, pois

Página 13
durante séculos a OJ apenas se resumia à linha de base.

ASSIM:
 Linha de base - estamos uns perante os outros, como pares;
 Linha ascendente – cidadãos (integrantes de uma comunidade) perante a
sociedade, estabelecendo um reconhecimento recíproco de direitos e deveres ➜
relação estática
 Linha descendente – sociedade atua sobre cidadãos, a seu favor ou/e em seu
benefício, existindo um respetivo programa de fins ➜ relação dinâmica

A OJ se apresenta-se como uma ordem ordenante e de cariz comunitário,


com uma índole dogmática (objetividade dogmática), que reclama e pressupõe
uma autoridade. Desencadeia, desta forma, efeitos de racionalização e
institucionalização, de liberdade, segurança e paz.
Confronto com os diferentes triângulos no manual do Dr. Pinto Bronze
(pág. 56 e 57) e a sua respetiva análise
Estamos perante a autonomização histórica das diferentes linhas da ordem jurídica e
o sentido de Estado.

No Estado pré-moderno, a linha de base concentrava a


construção das relações jurídicas.

No Estado moderno-iluminista, há o
surgimento da linha ascendente (2ª).

Nos Estados totalitários do nosso tempo, a linha de base


fica rarefeita (tracejado) e a linha descendente é a
principal – forte ação do Estado sobre os cidadãos.

Nos Estados liberais contemporâneos, temos a linha de


base como principal, a linha ascendente está presente e a
linha descendente rarefeita.

Devemos compreender isto não como a figuração de pré- definíveis


e compartimentáveis posições estáticas, mas como a tradição de
historicamente cunhadas e reciprocamente imbricadas situações
dinâmicas, num continuum de combinações infinitas.

Página 14
INÍCIO DO EXCURSO ---

Página 293-362, de Mário Reis Marques, Introdução ao Direito

A distinção entre Direito Público e Direito Privado encontra as suas raízes num
fragmento do Corpus Iuris Civilis, que definia o Ius Publicum como o governo da
república e o Ius Privatum como o que vela pelos interesses dos particulares.
No entanto, não existe uma perfeita equivalência entre a dualidade do direito
romano e a do direito moderno.
A evolução histórica dos conceitos implicou diferentes critérios de divisão:
1. Critério dos interesses em jogo
Temos os interesses públicos e os interesses privados.
Existem áreas do direito privado que prosseguem interesses públicos e vice- versa –
p.e. o licenciamento de obras particulares no âmbito do direito administrativo (público),
a regulação do casamento da filiação onde as relações privadas têm repercussões
públicas relevantes ou o contrato de compra e venda de bens imóveis celebrado por
escritura pública ou por documento particular autenticado (art. 875º do CC).
Não utilizaremos este critério: crítica à simultaneidade dos interesses em
jogo (interesses públicos e interesses privados).

Página 15
2. Critério da qualidade dos sujeitos
Temos as entidades públicas e as entidades privadas.
Existem situações em que os sujeitos de direito privado são entidades públicas e
vice-versa – p.e. a repartição de uma entidade pública é instalada num espaço privado,
sendo o seu contrato de arrendamento tratado pelo direito privado;
Não utilizaremos este critério, embora seja o critério mais geralmente aceite,
salvo algumas exceções.
3. Critério da posição dos sujeitos
Este é o critério no qual a doutrina se apoia.
Existe direito público quando os sujeitos intervenientes se relacionam conforme a
sua veste de entidade pública, no exercício da sua publica potestas (entidade
soberana) e quando a relação que se estabelece é entre os sujeitos de entidade
pública com os sujeitos privados.
Será de direito público:

 a regulação da organização e atividade do Estado e de outras


entidades públicas menores (como as autarquias regionais e locais)
 as relações estabelecidas por esses entes públicos entre si no exercício dos
poderes que lhes competem
 relação entre esses entes públicos e os sujeitos particulares
Isto acontece, pois, o órgão público atua no exercício da sua autoridade pública e os
particulares são os sujeitos que se lhe dirigem, procurando obter uma resposta dessa
autoridade à pretensão afirmada.
Existe direito privado (que regula as relações entre sujeitos privados e/ou sujeitos
privados e públicos) quando estes não atuem no exercício da sua publica potestas,
não estando revestidos de um poder de autoridade e, assim, se encontrarem
num plano de igualdade.

Direito Público Direito Privado


↓ ↓

 Organização e atividade do Estado e outros entes públicos menores  Relações entre particulares;
(autarquias, regionais e locais);  Relações entre particulares e entes públicos, quando estes não
 Relação das entes publicas entre si no exercício dos poderes que lhes intervenham revestidos de poder de autoridade.
competem

 Relações dos entes públicos, enquanto revestidos de poder de
autoridade (publica protestos), com os particulares. Ramos do Direito Privado: Direto Civil, Direito Comercial, Direito
↓ Internacional Privado, Direitos Reais, Direito da UE, Direito do Trabalho, etc..
Ramos do Direito Público: Direito Constitucional, Direito Administrativo, ↓
Direito Penal, Direito Fiscal, Direito Processual e Direito Internacional No direito privado já não será tanto assim, embora haja refrações
Público. fundamentais das relações jurídicas privatísticas, já que elas produzem

efeitos que têm relevância também pública, como p.e. o
No direito público teremos sempre referências que dizem respeito à

Página 16
organização da coletividade social. direito da família, direito da propriedade, etc..

AS SUBDIVISÕES DO DIREITO PÚBLICO


Direito Constitucional
A constituição da República Portuguesa…
Faremos a análise sintética do modo como a CRP se estrutura para podermos
considerar que o Direito Constitucional se ocupa da determinação dos pilares
fundamentais da constituição do Estado e, assim, das traves mestras da OJ:
- a organização do Estado
- as grandes linhas de orientação dos entes públicos
- a definição e atribuição de competências aos órgãos de soberania
- a distribuição de poderes entre esses órgãos
- a garantia da defesa da liberdade dos cidadãos
- a garantia dos direitos e deveres fundamentais dos cidadãos e, assim, as traves mestras
da ordem jurídica.
Como sabemos, a constituição é a lei fundamental e é nela que encontramos
os princípios fundamentais, os direitos e deveres fundamentais, a organização
económica, a organização do poder político e a própria proteção da constituição
enquanto lei fundamental.

Direito Administrativo
Uma referência contextualizante…
No âmbito do direito público, e considerando o direito administrativo,
encontramos o conjunto regulativo da organização e atividade da administração pública,
uma atividade executiva dos órgãos estatais e daqueles por eles instituídos dessas
funções (exclui-se, portanto, a atividade legislativa) – atuação de órgãos centrais e
agentes de autarquias regionais e locais.
Ora, a tradicional divisão organizatória do aparelho administrativo tem vindo a
sofrer alterações. Podemos, então, distinguir administrações estaduais e
administrações autónomas:
As administrações estaduais, dividem-se em:
Administração estadual direta – o Estado é constituído pelos órgãos organizados em
ministérios
Administração estadual indireta – é formada por institutos públicos e outras

Página 17
pessoas coletivas públicas distintas do Estado, que atuam sobre a
superintendência tutelar dos órgãos estaduais
Autoridades reguladoras independentes – instituições públicas nos ramos da
energia, telecomunicação, saúde, etc.
Autoridades administrativas independentes – formados pelo Provedor de Justiça e
Comissão Nacional de Proteção de Dados
As administrações autónomas dividem-se em:
Territoriais - as regiões autónomas e autarquias locais
Corporativas – são as associações públicas, ordens profissionais ou academias Existe
hoje, cada vez mais, uma relação entre a administração pública e
as várias entidades privadas (sejam entidades por princípio públicas com
participação privada ou vice-versa), sendo que, em qualquer dos casos, vamos nelas
encontrar a prossecução de atividades correspondentes à realização do
interesse público.

Direito Penal
Falamos do complexo de normas e princípios que regulam os crimes e as penas,
bem como as medidas de segurança.
Este ramo do direito público estabelece a proteção dos bens jurídico- penalmente
relevantes, ou seja, os bens que merecem, do ordenamento jurídico, uma proteção
acrescida.
Surge-nos, então, como o direito de última reação (mais grave) do ordenamento
jurídico às agressões mais graves contra os seus bens mais valiosos.
É, contudo, necessário que haja um consenso em torno do valor desses bens para
que a proteção jurídico-penal lhes seja conferida.
Quais são os bens? Depende do contexto:
- Há hoje atuações que nem sempre constituíram crimes, como p.e. a burla informática.
- Há práticas historicamente reconhecidas como crime que foram retiradas do elenco
dos tipos legais de crimes (descriminalizadas), como p.e. o adultério.
Neste sentido, reconhecemos que ao direito penal cabe a determinação legal
dos pressupostos constitutivos de um crime e o estabelecimento da
correspondente sanção.
Assim, nem toda a realidade juridicamente relevante é jurídico-penalmente
relevante.

Página 18
O direito penal encontra-se na linha ascendente da ordem jurídica,
porque é a manifestação, por excelência, da corresponsabilidade que nos interliga
enquanto cidadãos. Este é um reconhecimento recíproco das posições jurídicas, que nos
leva a exigir de cada uma a observância da tutela daqueles bens jurídico-penalmente
relevantes, ao ponto de as sanções correspondentes às agressões que esses bens sofram
serem mais ou menos graves.

Direito Fiscal
Este diz respeito à incidência, lançamento e cobrança de impostos.
E, por isso, é o ramo do direito público que trata da recolha de impostos para o
erário/tesouro público, prosseguindo um interesse público.

Direito Processual
O direito processual estabelece as regras segundo as quais se pode ou não exigir
judicialmente uma prestação ou a afirmação da (in)existência de um direito.
A efetivação dos direitos pode implicar a ativação dos direitos processuais.
Falamos do direito adjetivo.
Temos o direito processual penal, direito processual civil, direito processual
administrativo, etc..
Distinção entre direitos processuais enquanto direitos adjetivos e os
correspondentes direitos substantivos:
Esta distinção entre substantivo e adjetivo vai auxiliar-nos a compreender a
diferença e as relações que se estabelecem entre os diferentes direitos processuais,
enquanto direitos adjetivos, e os seus correspondentes direitos substantivos.
Esta distinção tem a ver com a função dos critérios e fundamentos que orientam os
diferentes domínios do direito.

 Direito substantivo – define os direitos e deveres das relações jurídicas


e, assim, o seu conteúdo.
Aqui vamos encontrar normas primárias, que são a definição do conteúdo da relação
jurídica.

 Direito adjetivo – regula os modos de efetivação dos conteúdos das


relações jurídicas.
Cabe-lhe estabelecer a realização efetiva do conteúdo das relações jurídicas, quando
essa realização não ocorra pela vontade espontânea dos sujeitos intervenientes.

Página 19
Aqui vamos encontrar normas secundárias / de segundo grau / regras sobre regras,
a quem cabe o estabelecimento das condições da efetivação do prescrito pelas regras
primárias.
Exemplo:
No direito penal (que define o que constitui crime e estabelece as consequências)
estamos perante um direito substantivo, pois temos a descrição da situação da realidade
que constitui um crime e a respetiva consequência jurídica. Desta forma, temos a
definição do conteúdo da relação jurídica que se estabelece.
Já se considerarmos os correspondentes direitos processuais penais (que regulam a
investigação, a análise dos factos, etc.). teremos os direitos adjetivos, i.e., os ramos do
direito aos quais cabe a efetivação da verificação das prescrições estabelecidas nos
correspondentes direitos substantivos.

Direito Internacional Público


Tem as suas raízes no ius gentium que o direito romano instituiu.
O modelo de DIP com que hoje nos confrontamos admite como sujeito de DIP o
Estado, as ONG, as organizações internacionais e o próprio indivíduo.

AS SUBDIVISÕES DO DIREITO PRIVADO


Direito Civil
Mesmo tendo origem no direito romano, o ius civile romano tinha um objeto mais
amplo do que aquele conferido ao direito civil.
O direito civil é o direito privado geral/comum que estabelece a matriz das
relações jurídicas entre sujeitos particulares e se encontra fundamentalmente na linha
de base do ordenamento jurídico.
O direito civil define e regula as relações jurídicas privatísticas em geral,
concentrando-se no Código Civil.
Notas para saber mais…
O código civil francês de 1804 constitui a matriz das codificações modernas do
direito civil.
O primeiro código civil português é de 1867. Segue, na sua influência
fundamental, o código francês, mas não o irá seguir quanto à sua sistematização.
O código francês foi o tributário das perdidas “institutas” de Gaio, que
distinguiam as temáticas de pessoas, coisa e ações.
O código civil português tem, quanto à sua sistematização, uma estrutura

Página 20
mais biográfica, que distingue quatro partes:
- a da capacidade civil
- a da aquisição de direitos
- a do direito de propriedade
- a da ofensa dos direitos e a sua reparação
Contudo, não é esta a estrutura atual do Código Civil (atualmente, é o de 1966),
pois tem vindo a ser adaptado às circunstâncias.
Este código sofre já outras influências, nomeadamente dos desenvolvimentos que o
pensamento jurídico alemão teve ao longo do século XIX, sendo daí que recebemos a
estruturação que leva a que o código seja composto, primeiro, por uma parte geral e,
depois, por um conjunto de partes especiais.
- Primeira parte: 17 princípios e critérios gerais no âmbito do direito civil (e
não só)
- Depois: áreas fundamentais, referentes a subdivisões que se seguem (são elas o
direito das obrigações, o direito das coisas, da família e das sucessões), i.e., temos a
divisão interna do código civil e o objeto do direito civil como direito privado comum.

Direito Comercial
Onde temos o Código Comercial de 1833 e o Código Comercial de 1888.

Direito Internacional Privado


Reflete as relações jurídicas de direito privado que têm atinência relevante com
diferentes ordenamentos jurídicos nacionais (no plano internacional).
Por exemplo:
A situação do senhor A de nacionalidade portuguesa que quer casar com a senhora
B francesa.
Quid iuris? quanto à idade e ao regime de bens que irá regular o casamento.
A situação de C, proprietário de um apartamento em Nova York, de nacionalidade
alemã, que morre no Algarve.
Quid iuris? quanto ao regime jurídico que regulará a propriedade do apartamento,
as regras de sucessão dos bens, etc..

Direitos Reais
É o ramo do direito privado que tem sofrido menos alterações, dado que,

Página 21
hoje, mantemos muitas regras do direito romano.

Direito da União Europeia


Aqui é crucial distinguir:

 Direito Originário, que são tratados constitutivos (p.e. CECA, CEE, UE);
 Direito Derivado, que provém de diferentes instituições da UE e vincula todos
os Estados-membros diretamente (p.e. a Proteção de Dados, de 2018) ou
indiretamente.

Direito do Trabalho
(…)

FIM DO EXCURSO ---

Página 59-92, de Fernando José Bronze – Lições de Introdução ao Direito (Lição 3)

b) Funções da OJ
Como é que o ordenamento jurídico vigente desempenha as suas funções
práticas?
Breve introdução…
O direito pretende regular determinadas relações sociais nas quais os sujeitos se
encontram em diferentes vestes, e, por isso, compreendemos que o direito globalmente
considerado desempenha um função social porque é direito.
Ora, sabemos, então, que a OJ não constitui um mero caos de prescrições, sendo,
antes, um todo coerente e se, assim não fosse, a nossa convivência (visada pela OJ)
seria impossível.
O direito é uma ordenação normativa prática com um objeto e intenção

Página 22
específicos. O modo como encara o objeto e a intencionalidade com que o aborda é o
da construção normativa conducente a uma convivência pacífica, naquilo que
lhe diga respeito.
As funções da OJ
Efetuaremos a análise da OJ tal como ela se nos apresenta, sob a forma de norma
legal, para percebermos quais as funções que desempenha.
Encontraremos as funções desempenhadas pela OJ vigente: funções práticas,
enquanto concretização num certo tempo, num certo espaço, do sentido do direito
(maioritariamente assente na relação com os sujeitos destinatários e como se organiza
internamente).
α) Função primária ou prescritiva
β) Função secundária ou organizatória
(Não há maior ou menor relevância em relação a estas funções)

Página 59-77, de Fernando José Bronze – Lições de Introdução ao Direito

α) Função primária ou prescritiva


Esta função da OJ apresenta-nos normas primárias que visam a regulação das
relações intersubjetivas, através de critérios e modelos de comportamento
que os destinatários cumpram.
As normas primárias são aquelas que definem a situação da realidade a que o direito
se vai dirigido, e estabelecem as consequências da (não) verificação da situação da
realidade a que o direito dá relevância.
O direito não pretende apenas ser uma teoria comportamental, mas sim

Página 23
normativo e vigente (positivo).
αα) O direito como princípio de ação e como critério de sanção
relativas, os nossos direitos e os nossos deveres, de forma a manter um ideal de
convivência pacífica.
- Como critério de sanção, o direito vai estabelecer as condições para a efetivação
daqueles direitos e daqueles deveres.
Ao falar em princípio de ação e critério de sanção estamos a fazer uma alusão à
estrutura formal de uma norma jurídica, que é composta por uma
hipótese/previsão e uma estatuição/consequência/injunção.
Hipótese - descrição da situação da realidade a que a norma se dirige. É um recorte da
realidade a que uma norma dá relevância, pelo modo por que a descreve.
Estatuição/consequência - é o estabelecimento do efeito jurídico que a norma faz
corresponder à luz da realidade descrita na hipótese, à verificação ou não verificação do
recorte da realidade que a norma descreve na hipótese ➜ sanção.

Enquanto princípio da ação, a OJ pretende definir as nossas autonomias,


delimitando-as reciprocamente e estabelece as consequências para a
observância ou inobservância das suas prescrições – é idealmente prático.
Enquanto critério de sanção, o direito visa a efetivação das suas prescrições.
O direito ou é positivo (vigente), ou não é entendido como direito. Assim, estabelece as
condições para a efetiva verificação na prática, daquilo que prescreve –
estabelece condições para ser efetivamente prático.
ββ) O carácter sancionatório do direito

SANÇÃO (SANCTIO)
Significa consagrar, tornar são, sério, digno de respeito, efetivo – é todo um meio
que a OJ mobiliza para tornar eficaz as suas prescrições fazendo
corresponder consequências positivas ou consequências negativas.
A toda a violação juridicamente relevante corresponderá uma sanção.
O caráter societário do direito implica a característica sancionatória,
mas não implica a característica coativa.
Ora, sabemos que o direito se dirige a uma intersubjetividade específica, em que há
dois sujeitos que se enfrentam, sendo que há algo entre eles cuja manutenção é essencial
à convivência pacífica.
Estamos, então, perante a bilateralidade atributiva do direito, que atribui aos
sujeitos “dois lados” a quem se dirige um estatuto (o que implica

Página 24
simultaneamente a titularidade de direitos e deveres) e um “terceiro de comparação”
inter est (i.e., uma ordem normativa – o direito – externa à relação intersubjetiva que
delimita as posições dos sujeitos), que reflete a comparabilidade que o direito faz
entre os próprios sujeitos (relativizando-os).

Moral / Ética vs. Direito


Quais são as notas diferenciadoras entre o direito e a moral/ética?
O direito é bilateral, a moral é unilateral: se no direito se fala de atribuição de
direitos e deveres simultaneamente (vemo-lo, p.e., na questão do positivismo), na moral
fala-se na existência de apenas direitos fundamentais (vemo-lo, p.e., na caridade onde
quem recebe por caridade não tem direito a exigir e quem oferece não espera nada em
troca).
Por isso, os sujeitos relativizados no direito não são os mesmos sujeitos
da moral e ética, pois atuam nos diferentes papéis jurídicos que vão surgindo nas
suas vidas, i.e., não há uma denegrição da pessoa e dos seus direitos fundamentais (p.e.,
não está em causa se é a Ana e o António, mas sim a proprietária e o arrendatário).
Então, esta bilateralidade do direito conjuga-se com um certo tipo de
exigibilidade recíproca e executabilidade que não existe na moral. As
pretensões juridicamente tuteladas são exigíveis ao outro sujeito que, se não cumprir,
será alvo do recorrimento às instâncias competentes.
AULA PRÁTICA

O direito orienta a nossa vida, prescrevendo modelos de conduta, valorando os nossos comportamentos no sentido de eles serem (ou não) conformes ao direito.
Um verdadeiro plano orientador de “dever ser”.

Esta orientação, para além de existir no campo do direito, existe também na moral e ética, por isso temos de as distinguir. Como distinguir?

É necessário analisar uma nota de exterioridade: Kant distingue o direito enquanto garantia de liberdade externa (exige-se ao sujeito um comportament
É também necessário analisar a nota da bilateralidade: o direito é bilateral (todas as relações jurídicas são intersubjetivas, marcadas por uma teia de direitos e
Ligados à bilateralidade atributiva do direito, há que ter em conta a nota de exigibilidade (o titular do direito pode exigir ao outro o cumprimento desse deve
Invocando a ética, é também necessário analisar a nota da comparabilidade: a ética de autoridade obriga-nos a olharmos para os outros como indivíduos únicos/i
Se existe um problema juridicamente relevante, este terá de ser solucionado, através da tercialidade do direito (existência de um terceiro sujeito imparcial que ap
Direito “dever ser” = princípio de ação, que tem de ser efetivo (critério de sanção).

Página 25
γγ) Tipos de sanções
A descrição de uma norma vai corresponder a um efeito jurídico, que incorporará a
sanção sob vários tipos:
Positivas: função promocional do direito, correspondentes a vantagens ou benefícios
do destinatário (p.e. a atribuição de um subsídio, isenção fiscal, etc.).
Negativas: função repressiva do direito, correspondentes a uma desvantagem ou
prejuízo do destinatário (p.e., exclusão de uma sociedade, dissolução da pessoa,
restrição da liberdade, etc.).

Proposta de classificação de sanções negativas (em termos introdutórios)

1)
LINHA DE BASE
Sanções reconstitutivas: procuram estabelecer a situação que existiria se a
norma não tivesse sido violada (são aquelas que o direito prefere – espelhado no
art. 562º do CC)
Podem apresentar-se sob 3 subtipos:
 Reconstituição sob espécie (in natura) – visa repor a situação que existia se o
dano não tivesse sido produzido/norma não tivesse sido violada, sem recurso
a bens que não existiam nesse momento (p.e., o art. 1341º do CC –
relativo às obras, sementeiras ou plantações feitas de má-fé, cujos donos do
terreno podem exigir que sejam desfeitas).
 A execução específica – diz respeito ao direito das obrigações e implica a
prestação específica da norma violada, i.e., perante o incumprimento de
uma norma, vai o credor exigir ao devedor o cumprimento da norma em sede de
execução específica – entrega determinada ou prestação

Página 26
de facto (p.e., o art. 827º do CC ou o art. 828º do CC, relativo à prestação de
facto fungível – A contratou B para pintar uma parede; B não aparece; A pode
exigir que B assuma os custos da prestação que será realizada por C, dado não
ter cumprido o que tinha acordado em momento próprio).
 Indemnização específica – visa tornar indemne, i.e., repondo a situação
que existiria se a norma não tivesse sido violada com um bem que, não sendo
o que não foi danificado, permite desempenhar a mesma função (p.e., A
danifica um eletrodoméstico de B; pode ser exigido a A a reposição a B do
eletrodoméstico semelhante e que desempenhe a mesma função).
Sanções compensatórias: não sendo possível compensar a situação como aquela
que existia antes da violação da norma, é valorativamente equivalente à situação
em causa.
Podemos falar, assim, de um montante pecuniário a título desta violação
➜ atenção que é possível distinguir indemnização pecuniária de compensação, pois a
compensação é utilizada nas situações em que não é possível tornar verdadeiramente
indemne (p.e., o art. 566º do CC).
Considerar que…
À luz das normas legais não é sempre claro se a solução é a reconstituição ou a
compensação (p.e., o art. 483º/1 do CC), pois é necessário analisar a circunstância
concreta.
2)
LINHA AScENDENtE
Coloca-nos vários problemas.
Em sentido lato, a ineficácia é a reação da OJ que leva a que os atos praticados
não produzam (parte) dos efeitos jurídicos que, através deles, se pretendia,
efetivamente, aplicar (são, portanto, situações em que a OJ reage e impede que os
atos violadores produzam os efeitos que, através deles, se pretendia produzir).
 Inexistência jurídica: quando a OJ, perante um ato tão grave contra si, reage
como se não tivesse existido (p.e., o art. 1628º/c do CC, relativo aos
casamentos juridicamente inexistentes, determina que, se faltar a manifestação
de vontade expressa, aquele casamento é considerado inexistente).
 Invalidade jurídica: sendo menos grave do que a inexistência (p.e., o art. 1630º
do CC), esta (total ou parcial) admite que o ato existe, mas que sofre de um
vício formal ou material que justifica a não produção de efeitos
jurídicos, sob forma de:

NULIDADE ABSOLUTA NULIDADE RELATIVA / ANULABILIDADE


↓ ↓
O ato violador da norma jurídica ofende o interesse A norma violada protege um interesse particular.
público. ↓

Página 27
Está transcrita no art. 286º do CC, que determina que esta Está transcrita no art. 287º/1 do CC, só podendo ser
pode ser invocada por qualquer pessoa, sendo insanável e invocada pelas pessoas a que respeita, não podendo ser
não suscetível de qualquer confirmação. declarada pelo tribunal e sendo sanável pelo decurso do
↓ tempo ou pela confirmação jurídica dos interessados (art.
A consequência de uma nulidade absoluta estará, p.e., no art. 288º do CC).
220º do CC (quando existe uma exigência de escritura pública ↓
de compra de bens e imóveis para a realização de um Temos a, p.e., coação moral presente nos art. 255º do CC e a
negócio), no art. 285º do CC ou no art. sua respetiva consequência no art. 256º do CC, que fere
280º do CC (referente aos requisitos dos negócios alguns pilares fundamentais do direito.
jurídicos).

 Ineficácia em sentido estrito: o ato violador é válido (logo, será sancionado),


mas viola uma norma que determina que não produza todos/parte dos
efeitos jurídicos (p.e., o casamento de menores, no art. 1649º/1 do CC, onde
um menor que se case sem a autorização dos pais não tem emancipação para
administrar os seus bens ou capacidade jurídica para exercer funções).

3)
LINHA DE BASE (cIvIS) E LINHA AScENDENtE (pENAIS)
Estas sanções dizem respeito à aplicação de uma consequência negativa
para o infrator como repreensão da violação de uma norma.
O direito penal (através das sanções criminais) afere a possibilidade e, caso o sujeito
seja inimputável (p.e., tenha doenças mentais, etc.), aplica uma medida de segurança e
não uma pena (não se formula um juízo de censura ético-jurídico, dado essa pessoa não
ter culpa do que fez/faz).
Já as penas podem apresentar-se de vários modos: criminais (penas, no âmbito do
direito penal, sendo as principais a prisão ou a multa e as acessórias a delimitação ou a
restrição de funções), responsabilidade civil (declaração de incapacidade sucessória por
indignidade, no art. 2034º/a do CC), disciplinares (vai desde a advertência até à
exclusão do sujeito que tenha violado a norma), etc..

4)
LINHA
Estas sanções dizem respeito à necessidade de evitar futuras violações, pois
apresentam-se perante a violação de uma norma (p.e., a liberdade condicional, o art.
781º do CC, relativo à dívida liquidada em prestações, onde a falta do pagamento de
uma delas implica o vencimento de todas ou o art. 70º/2 do CC).
Mostram que, nas relações jurídicas, existem consequências, sobretudo a nível
do ordenamento jurídico.
δδ) O direito e a coação
A coação é um dos tipos de sanção que implica o recurso à força, que, no
direito, não é estritamente necessário.

Página 28
AULA PRÁTICA

No plano das sanções negativas, se não estiver sempre a coercitividade (efetivação com recurso à força), pelo menos estará a coercibilidade (sanção vir
Caracterização do direito objetivo (em sentido amplo): conjunto de critérios/fundamentos que compõe o sistema jurídico e que irão ser utilizados para resolve
AQUELE DE QUEM ESTAMOS A FALAR:

Caracterização do direito subjetivo (em sentido amplo): poder ou faculdade de exigir de outrem um determinado comportamento positivo ou negativo (facere
Subdivide-se:

Sentido estrito - poder ou faculdade de exigir de outrem um determinado comportamento positivo ou negativo (no exemplo de chamar um táxi e não o pag
Sentido potestativo - poder ou faculdade de, por um ato livre de vontade ou integrado num ato de uma autoridade pública, produzir determinados efeitos q

Concluindo…
A apresentação da OJ do ponto de vista das normas primárias implica a
definição dos direitos, deveres, consequências, etc..
Contudo, a mesma não é apenas um conjunto de normas que prescrevem
consequências.
Nota…
Ónus jurídico: não é bem uma modalidade, mas enquadra-se nas sanções por não ser
propriamente um dever jurídico, uma vez que não há do outro lado um sujeito que exija
o cumprimento de algo – é um encargo que cai sobre determinado sujeito e que ele pode
(ou não) assumir, acontecendo a contestação voluntária perante a acusação. Se não
cumprir o ónus pode sofrer consequências jurídicas negativas na sua esfera.

Página 29
Página 77-92, de Fernando José Bronze – Lições de Introdução ao Direito

Página 201-207, de António Santos Justo – Introdução ao Estudo do Direito

β) Função secundária ou organizatória


A OJ exige uma organização determinada, que implica um esforço de
racionalização garantido pelos critérios secundários.
Se ficássemos pela função primária estaríamos mergulhados num caos de prescrições
e critérios, porque os critérios são multiplíssimos. O direito transformar-se-ia num puro
caos e é preciso garantir que o direito permanece em organização e equilíbrio.
Ora, se na função primária a OJ diz respeito ao estabelecimento da nossa conduta, ao
assumir-se na função secundária estabelece as condições para a sua organização
interna.
Logo, não há uma precedência cronológica entre função primária e secundária.
A ordem é auto-organizada, através de critérios de segundo grau, com regras
secundárias.
Se a norma é a consequência da realidade, as sanções organizatórias não serão
normas, mas sim regras que visam estruturar o ordenamento jurídico e garantir-lhe
uma coerência interna, evitando contradições (entre normas e princípios) e
estabelecendo os modos de criação do direito, os órgãos a quem lhe compete essa
criação e, por isso, todo o funcionamento e efetivação prática das prescrições
que a OJ estabelece.
Sabendo que:
Ser norma – implica ter conteúdo normativo, tendo uma prescrição para a ação e uma
consequência para a mesma.
Ser regra – não é a definição de um comportamento, podem ser primárias ou secundárias.
Tipos de problemas que a ordem jurídica irá resolver e as propostas que
apresentam permitem uma classificação que se estrutura em 3 momentos
(ou 4 se olharmos para Castanheira Neves):

Página 30
1) Momento da unidade sistemática / sistemático
As regras secundárias que visam evitar contradições entre regras secundárias e/ou
normas primárias apresentam-se de diferentes modos:

 concorrência sincrónica de critérios primários


O problema traduz-se na existência de mais do que uma norma visando o mesmo
objeto, i.e., na situação em que, perante um problema, se encontra mais do que uma
norma que parece dirigir-se-lhe (qual delas é suscetível de ser mobilizada para a
resolução do problema?).
Existem dois critérios que pretendem afastar este problema:
- critério da hierarquia (lex superior derogat legi inferiori) – os critérios
hierarquicamente inferiores devem ser interpretados de acordo com os critérios
hierarquicamente superiores (remissão para o art. 112º da CRP, que estabelece a
relevância relativa dos atos normativos).
P.e.: lei constitucional > leis e decretos-lei > regulamentos
- critério da especialidade (lex specialis derogat legi generali) – havendo uma norma
especial, é essa que se aplica, derrogando a geral (se a geral for alterada, a especial
mantém-se, como vemos no art.7º/3 do CC).
I.e.: a lei geral não revoga a lei especial, exceto se essa for a intenção inequívoca do
legislador.

➜ são os critérios especiais que estudaremos (p.e., há o direito privado especial, como o
comercial, que se aplica aos atos de comércio/comerciantes; em primeira instância, será
a eles que recorreremos, e só depois ao direito civil – ex. da

Página 31
locação, nos arts. 1022º e 1023º do CC, que se distingue em arrendamento (coisa
imóvel) e aluguer (coisa móvel), tendo cada um deles normas especiais – o
arrendamento urbano, p.e., tem um direito especial).

 concorrência de critérios no espaço (as normas de DI privado


como critérios secundários)
Existem situações da vida social internacional juridicamente relevantes com a
tendência para se diferenciarem na OJ nacional.
P.e.: A pretende casar com B em Espanha; A é de nacionalidade francesa; B é de
nacionalidade norte-americana.
Quid iuris quanto à capacidade nupcial? Que ordenamento jurídico responde?
P.e.: C, de nacionalidade alemã, faleceu nos EUA e é proprietário de um apartamento
no Algarve.
Quid iuris quanto à sucessão/determinação dos herdeiros quando ao apartamento
no Algarve (determinação da qualidade de proprietário resolvida no art. 46º/1 do CC
sobre direitos reais)? Que ordenamento jurídico responde?
No direito da UE, existe a harmonização com uma forte base cultural e a cedência
da autonomia em função de um projeto comum, fazendo com que haja um regime
jurídico que vigora do mesmo modo em (quase) todos os Estados- membros.
Entre os arts. 25º e 65º do CC está a indicação da lei competente ou pelo menos dos
critério secundários para a determinação da conjugação dos diferentes ordenamentos
jurídicos nacionais em causa de qual vai responder aquele problema plurilocalizado.
São estas as chamadas normas de DI privado enquanto critérios secundários: as
ditas regras de conflitos, que visam determinar qual o ordenamento jurídico
nacional que responde a um determinado problema plurilocalizado.
Nota: o critério 46º/1 sobre direitos reais resolve o problema da determinação da
qualidade de proprietário e do regime de posse e propriedade.

 concorrência de critérios no tempo (o problema da “aplicação” das


leis no tempo – lex posterior derogat legi priori)
As relações jurídicas consolidadas tendem a perdurar no tempo (p.e., os contratos
de arrendamento, casamento).
O facto de elas se desenvolverem pode ou não ser alheio às alterações legislativas.
Independente da lei mudar ou não, aquele contrato está em desenvolvimento.

Página 32
O problema que surge é: será que as leis novas sobre aquele tipo de relação jurídica
alteram o seu conteúdo já anteriormente estabelecido? Qual deveremos utilizar (a lei
antiga ou a lei nova)?
Depende do que está em causa. O ato jurídico é o da sua validade aferido à luz do
ordenamento da lei em vigor quando ele é constituído.
É, por isso, necessário determinar como se irá selecionar o critério jurídico a
mobilizar para resolver o problema: se seleciona o que estava em vigor no momento em
que o ato foi estabelecido ou a lei que posteriormente entrou em vigor.
O art. 12º do CC estabelece uma das regras fundamentais, um critério organizatório
que diz que a lei só dispõe para o futuro (prospetividade da lei), não definindo
conteúdos da relação jurídica.
Chamos assim ao princípio da lex posterior derrogat legi priori: em princípio, a
lei nova substitui a lei antiga, sendo apenas o modo como depois se irá aplicar as
relações jurídicas em desenvolvimento que pode sofrer alterações em função dos factos
que estejam em causa e dos tipos de relação jurídica.

2) Momento constitutivo
O problema aponta para a existência do direito vigente na História: a necessidade
de a OJ manter a estabilidade da relação jurídica, existindo uma relação entre
estabilidade e mutação, i.e., se ao direito cabe a conferência de estabilidade nas relações
jurídicas e previsibilidade das resoluções, cabe-lhe também a atualização e
acompanhamento com a realidade (não lhe cabe, portanto, estar agarrado ao passado,
mas às necessidades que a prática apresenta).

Página 33
Esta conjugação entre a estabilidade e a mutação exige também regras (regras
secundárias), que questionam sobre a constituição do direito, sobre quais as fontes
de direito, o modo e o tempo do início e da cessação da vigência das leis.
Como sabemos, a ciência (e o direito está incluído) resulta da discussão e não da
tomada de uma posição unívoca por todos os sujeitos. Serve, então, para modelar a
nossa prática.
Como se constitui o direito como direito vigente?

 Fontes do direito
Seguindo a tendência histórica das codificações modernas, estabelecem-se as fontes
de direito admissíveis através de critérios secundários (que, por sua vez, são
estabelecidos através de outros critérios legais) que determinam a constituição do
direito.
São os arts. 1º a 4º do CC:
1º: as fontes imediatas do direito - as leis e as normas corporativas (ordens
profissionais)
2º: os assentos
3º: o valor jurídico dos usos
4º: o valor da equidade assumida como a concretização da justiça num caso concreto

Página 34
 Início e cessação da vigência das leis
Tarefa: Quando e como entra uma lei em vigor?
Existem regras fundamentais que respondem a esta questão. Sabemos que é
necessário que o órgão legislativo aprove o diploma, que será promulgado e referendado
para que possa entrar em vigor (sendo, depois, publicado no DR).
A entrada em vigor e a sucessão da vigência são momentos constitutivos – o art.
112º da CRP determina quais os atos normativos e o art.119º/1 da CRP determina a
sua publicação.
Quando é que uma norma entra em vigor?
O que art. 5º/1/2 do CC nos diz, respetivamente, é que a lei só se torna obrigatória
depois da publicação no jornal oficial, entrando em vigor no tempo em que ela própria
determina (se a lei nada disser, nunca entrará em vigor no dia em que é publicada e sim
no quinto dia após a publicação – espelhado na lei nº 74/98, de 11 de novembro). Já a
lei 74/1998 na redação da lei 43/2014, determina os critérios quanto à entrada em
vigor dos diplomas legais.
Já o art. 7º do CC estabelece os modos de cessação da vigência, sendo hoje
determinado maioritariamente pela revogação (surgimento de uma nova norma legal de
igual nível hierárquico que cessa a vigência do diploma legal anterior).
O período entre a publicação e a entrada em vigor de uma lei é designado

Página 35
por vacatio legis.
Quando não se distingue que uma lei vigore temporariamente, essa mesma lei irá
terminar a sua vigência até ter sido revogada por outra.
Revogação: ato legislativo de igual ou superior valor hierárquico à lei que revoga e
que faz cessar a vigência dessa lei agora revogada, de diversos modos.

 Expressa – tem de haver um ato legislativo de igual ou superior valor,


declarando que revoga uma lei anterior

 Tácita – incompatibilidade do regime jurídico novo e do anterior, sobre o


mesmo assunto

 Global – se a nova lei regula completamente um instituto jurídico ou


apenas um ramo do direito

 Específico – quando a lei nova revoga apenas uma lei anterior

 Total (ab-rogação) – quando a lei anterior cessa completamente a sua


vigência

 Parcial (derrogação) – quando a lei anterior cessa apenas numa parte a sua
vigência
Temos também outro tipo de problemas:
O problema da consideração de normas que criam órgãos e lhes atribuem competência.
Toda a organização política do Estado consagrada na CRP (no que diz respeito
desde logo aos órgãos de soberania e suas competências) cumprirá esta função
constitutiva.

Página 36
3) Momento orgânico e momento processual/procedimental
Um momento orgânico e associado a este, mas separável, o momento procedimental
processual (também momento orgânico, no caso de se considerar o iter “caminho” de
resolução das instâncias competentes nas questões resultantes da aplicação das normas
primárias, o conjunto desses atos num processo).
- Momento orgânico: constituição de órgãos e conferência de competência aos
mesmos para a realização da prescrição que a função primária estabelece.
- Momento processual/procedimental: regras formais de construção estrutural do
iter procedimental e processual, regras de processo, regras que visam estabelecer o
sentido de construção interna das decisões e regras de juízo.

 Criação de órgãos e atribuição de poderes e competências


No que diz respeito à dimensão processual, está em causa o conjunto de regras
secundárias que determina o caminho percorrido na realização institucional das
prescrições jurídicas constantes das normas primárias.
No que diz respeito ao processo, estão em causa as regras das entidades
administrativas, falando-se, sobretudo, de um procedimento propriamente dito, i.e., a
realização do prescrito nas normas primárias pelas instâncias judiciais.

 Realização procedimental-processual (estão em causa as regras


secundárias)
Assim, teremos de considerar, nas regras referentes ao momento procedimental
processual (momento do processo):
As regras de procedimento, que determinam que tribunais existem, as suas

Página 37
competências, que tipos de ação judicial existem, quem pode ser sujeito, quais os passos
do item processual, etc., i.e., as regras que determinam como se procede um momento a
nível formal (decisão formal): são o modus operandi das autoridades a quem compete
a efetivação das prescrições que o direito estabelece (que atos, em que momento e como
se procederá à efetivação).
As regras de juízo, que visam orientar a construção da decisão judicial
substancial/quanto ao seu conteúdo (decisão interna) – p.e., os arts. 9º e 10º do CC, onde
se confere os critérios metódicos e pré-fixados à elaboração do juízo decisório, para a
sua construção interna ao nível do conteúdo.
Esta é uma proposta de organização interna da OJ, através das regras secundárias.
Alguns autores defendem que o ordenamento jurídico é composto por regras
primárias e secundárias (racionalizando as primeiras).
Outros autores defendem que apenas estes fatores bastariam para tornar a ordem
jurídica uma ordem de direito.
AULA PRÁTICA
(1) Função secundária ou organizatória:
Permite garantir que os critérios primários permaneçam num direito organizado. São critérios secundários que organizam todos os critérios primários. Os
problemas que aqui se colocam não são nenhum deles problemas de Quid iuris. Mas, há problemas de segundo grau em que vamos ter de mobilizar critérios
secundários, que resultam da complexidade da função primária (critérios que são múltiplos e que, muitas vezes, entram em colisão).

Dentro da função secundários vamos distinguir vários momentos:

1. Momento da procura de unidade sistemática: vamos considerar critérios secundários que procuram tornar essa procura menos complexa,
ou seja, garantir que os critérios primários aparecem num todo coerente e organizado.
Que problemas é que se podem levantar neste primeiro momento:

1.1. Problema da concorrência sincrónica de critérios primários: estamos a considerar o confronto entre critérios (pe.: entre leis) primários
que concorrem para a solução de um mesmo problema. Por exemplo: duas normas legais que são suscetíveis de responder ao mesmo caso concreto,
estas duas normas dão duas soluções diferentes.
Exemplo de critérios secundários:

(1) A lei hierarquicamente superior afasta a lei hierarquicamente inferior (por exemplo: confronto entre a lei constitucional e a lei da AR).
(2) A lei especial derroga a lei geral: sempre que exista um regime especial

1.2. Problema da concorrência no espaço: estamos a falar das situações jurídicas plurilocalizadas, que tem pontos de contato com mais do que
uma ordem jurídica. Por exemplo: uma relação entre um português, que casa com uma espanhola, em Inglaterra. Têm filhos em Inglaterra. Mais
tarde, pretendem divorciar-se. Mesmo antes de considerar as respostas aos problemas, poem-se problemas de espaço.
Há uma área dogmática do direito que disponibiliza critérios de segundo grau que visa responder a este problema de concorrência no espaço: Direito
internacional privado. Artigo 41º e seguintes do CC; artigo 46º e seguintes do CC; artigo 49º e seguintes do CC, etc.

1.3. Problema da concorrência diacrónica de critérios: tradicional problema da aplicação das leis no tempo- é um problema que surge no
momento da unidade sistemática em que estamos a considerar relações jurídicas que se prolongam no tempo. No decurso desse relação jurídica há
uma alteração legislativa. A questão da concorrência diacrónica dos critérios tem a ver com esta pergunta: “Qual é a lei que vai resolver o
problema? A lei nova ou a lei antiga?”. Deve ser mobilizada a lei nova (a lei nova derroga a lei velha). Por exemplo: ao nível do Direito Penal há
um princípio que é o princípio da lei mais favorável ao individuo.

2. Momento do desenvolvimento ou de assunção da dinâmica histórica: o que está em causa é um contraponto entre estabilização
dogmática e mutação (mudança). Por um lado, o direito deve garantir uma certa estabilização dogmática. O direito é convocado sistematicamente a
responder à novidade, a problemas novos, à mutação. Não é possível garantir que o direito se feche num sistema. O que determina essa mudança
são os problemas concretos da vida. As novidades vão implicar a necessidade de o sistema se reconstituir permanentemente. Exemplo: 4 primeiros
artigos do Código Civil.
- Artigo 5º, nº 1
- Artigo 5º, n 2º: vacatio legis- entre a publicação da lei e a vigência decorre um tempo que a própria lei fixar.
-Artigo 7º: cessação da vigência formal da lei- duas formas de cessação:

Página 38
AULA PRÁTICA
(2) Revogação: quando não é temporário o modo de cessação será a revogação, isto é, só deixa de vigorar no momento que for revogada por outra.

2.1. Expressa ou tácita

2.2. Global ou especifica

2.3. Total ou parcial

Nota: Vigência das normas legais num plano de reflexão metodológica: casos há em que uma lei está perfeitamente em vigor no plano formal, todavia perante um
caso novo em que o juiz vai mobilizar essa norma, o julgador vai deparar-se com a dúvida de dever considerar a norma vigente.

3. Momento da realização orgânica ou momento da realização orgânico-processual (momento da realização orgânica ou momento da
realização procedimental): Um está ligado à criação de órgãos e o outro está ligado ao modus operandis desses órgãos.

Momento de realização orgânica: Estamos a considerar critérios secundários que criam órgãos, atribuem competências a esses órgãos que os hierarquizam-se
entre si. Parte terceira da CRP: encontramos uma série de órgãos que são criados e as suas competências. Criação de órgãos que são fundamentais para a ordem
jurídica subsistir e as suas competências.

Momento procedimental: Considerar o modus operandi (regras de procedimento) destes órgãos, ou seja, de que forma é que os órgãos vão atuar; que passos é
que têm de dar para realizar as suas competências.

O processo ao nível jurisdicional, também aí, quando chegamos ao momento da realização do direito em concreto, quando depois de ocorrida a situação
real que legitima o problema jurídico, existe um espaço próprio para responder a este caso em concreto. Associamos a cada área substantiva do direito a
correspondente área adjetiva.

Quando estamos a identificar o direito civil estamos a identificar o direito substantivo (critérios primários que dão respostas aos problemas). Ao direito
substantivo corresponde um direito adjetivo (neste caso, direito processual civil). Aqui encontramos regras de processo. Temos condições substantivas e condições
adjetivas.

Exemplo: Art. 1550º do CC que atribui um direito potestativo  Condição substantiva: critério que dá uma resposta ao problema // Art. 9º do CC: insere-se na
função secundária, mas não é propriamente uma regra de processo.

Página 93-114, de Fernando José Bronze – Lições de Introdução ao Direito (Lição 4)

c) Notas caracterizadoras de uma OJ em geral


Aqui veremos as notas caracterizadoras que nos mostram que a OJ, enquanto
operador fundamental da nossa vida social, prossegue valores que visam uma certa
convivência pacífica e não uma mera coexistência.

Página 39
Por isso, o direito pretende que as suas prescrições sejam observadas não pela
ameaça da sanção, mas pelo acordo dos seus destinatários relativamente às suas
prescrições.
Desta forma, o objetivo do direito vigente não é apenas ser eficaz, mas ser
válido enquanto ordem normativa de cumprimento espontâneo e positivo, com relações
intersubjetivas procuram favorecer uma convivência pacífica entre nós.
α) A ordem como "cosmos" cultural
A OJ é operadora da vida social, prossegue valores que visam a convivência pacífica
e pretende que as suas subscrições sejam observadas, não pela existência de sanções,
mas pela concordância coletiva.
É, assim, um todo, uno e coerente, que, organizando-se internamente em termos
substanciais e formais, garante a ordenação da vida intersubjetiva
juridicamente relevante.
Segundo Pinto Bronze, é uma “projeção de segunda natureza cultural”, em
que os seres humanos projetam a superação da contingência da sua existência
através de uma racionalização estabelecida através de uma ordem de direito.
Ser ordem de direito é uma opção. O poder e o direito têm uma relação de
interdependência, que exige um diálogo constante entre ambos – até chegarmos à
definição de “Estado de direito”.
O “cosmos” cultural assume um caráter comunitário: esforço da OJ visa a
integração dos sujeitos para construir uma comunidade jurídica, baseada na comunhão
de valores relativos ao direito – direito enquanto instância que visa estabelecer um
controlo da vida comunitária de modo pacífico.
β) O carácter comunitário
A OJ constitui um esforço que tende para a integração dos sujeitos
numa coletividade, num todo comunitário jurídico, partindo da ideia de
comunhão de certos valores relativamente ao direito (aquilo que o direito deve
tratar e a que deve responder).
Haver áreas intersubjetivas em que o direito não se intromete ou que nós não
permitimos que o direito o faça, é uma opção cultural.
O direito, enquanto uma instância de controlo da vida em comum que pretende
estabelecer um controlo pacífico, não diz respeito a todas as nossas relações subjetivas,
embora diga respeito a muitas delas.
Assim, o seu caráter comunitário apresenta-se sob 2 formas:
- sentido formal: em que a OJ define o padrão normativo comum a uma determinada
comunidade concreta
- sentido material: em que a OJ, no que concerne aos valores que a fundamentam,
define o sistema/padrão normativo de uma comunidade concreta, tornando-se um fator
de integração.

Página 40
P.e., o art. 13º da CRP, referente aos conceitos de igualdade (a nível formal ou
material) e discriminação (positiva ou negativa) que não são constitucionalmente
admitidos. Deste ponto de vista intencional-material, a OJ, através da convocação de
valores, assume-se como fator de agregação para que os sujeitos a que se destina se
considerem congregados em torno de um certo sentido de direito que é reciprocamente
exigível.
γ) A objetividade
Sabendo que a OJ tem de gerir uma dialética sempre reposta entre estabilidade e a
exigida mutação, podemos considerá-la como um elemento fundamental de
gestão, organização e regulação da intersubjetividade.
A OJ é um objeto que está fora de nós e é-nos imposta, perdurando no tempo
(podendo, claro, seguir direções distintas).
É importante referir que não podemos discordar da existência, das valorações e da
legitimação política da OJ, mas sim dos seus fundamentos (apenas depois de os
conhecermos).
 Plano de autossubsistência institucional (objetividade autárquica)
A OJ apresenta-nos uma objetividade autossubsistente, i.e., assenta nas suas próprias
forças de conteúdo e legitimação, através do poder institucionalizado.
Em termos de autossubsistência apresenta-nos uma objetividade autárquica: a
objetividade da OJ e a sua vinculatividade que assenta nas suas próprias forças, sendo
uma ordem institucionalizada.
Mas qual a sua legitimidade?
Se a OJ legitima o poder e se impõe numa relação com poder, a legitimidade desta
objetividade autárquica é a legitimidade democrática.
A legitimação política é uma das questões fundamentais para a determinação da
objetividade da OJ.
 Plano intencional-material (objetividade dogmática)
A OJ apresenta-nos uma objetividade dogmática: a afirmação de um conjunto de
valores constituendos com os quais nos confrontamos, i.e., como parte de cultura que é,
vai sendo constituída através de referências (e não como uma verdade indiscutível).
A dimensão dogmática da OJ mostra que, tal como a cultura, esta (por sendo
constituenda) vai sendo constituída ao longo do tempo, resultando todos os sentidos
com que hoje nos deparamos de uma evolução anterior.
Por isso, concordando ou não com esses princípios, eles existem e estão consagrados
na OJ sob a forma de princípios e critérios.
Desta forma, dizemos que a OJ é uma referência cultural objetiva (porque existe
realmente) e a sua objetividade é uma objetividade dogmática porque, do ponto de vista
histórico, é indiscutível.
δ) A projeção prática na autoridade

Página 41
A nota da objetividade autárquico-dogmática é fundamental para compreender a
prática da OJ (toda a prática postula uma dogmática).
Se considerarmos que a legitimação autárquica da OJ assenta na legitimação
democrática, todos seremos autores da mesma nesse sentido (p.e., na manifestação da
nossa legitimação democrática para a construção legislativa).
Por outro lado, não somos uns meros destinatários da OJ, pois esta é dinâmica e nela
participam todos os sujeitos que lhe são destinatários.
Logo, essa objetividade, faz de nós simultâneos destinatários e autores
da OJ (todos nós participamos na construção da OJ).
Ora, existem certas decisões que damos por adquirido, sendo essas referências
axiológicas que se vão constituindo e impondo (através da prática).
A prática não admite a indefinição, dado que implica uma base dogmática e
exige uma decisão – p.e., o art. 8º do CC. No direito, não pode deixar de existir decisão,
mesmo que existam discordâncias.
P.e.: seria muito difícil se todos os dias de manhã nos levantássemos e tivéssemos de
deliberar quem ia fazer o almoço. Não o fazemos porque isso vai sendo constituído ao
longo do tempo.
Assim, com todas estas características, a OJ projeta-se como autoridade,
delimitando a posição dos sujeitos e regulando as suas intersubjetividades.
Concluindo…
A OJ, como cosmos:
• Assume um caráter comunitário;
• Manifesta-se-nos como uma objetividade autárquica-dogmática;
• Projeta-se na autoridade para a sua efetivação enquanto ordem de regulação
intersubjetiva.
Estas características projetar-se-ão nos efeitos da OJ.
AULA PRÁTICA

Notas caraterizadoras da ordem jurídica:

Ordem jurídica é um cosmos cultural:


A primeira nota caraterizadora a ordem jurídica é um cosmos cultural, ou seja, a ordem jurídica é uma ordem e um cosmos. Não é um puro caos. Naturalmente, o homem tende pa
Caráter comunitário da ordem jurídica:
A ordem jurídica visa garantir a integração de todos em comunidade e sendo um integrante comunitário ela acaba por controlar a nossa vida social, impondo regras, sancionando
De um ponto de vista formal, a ordem jurídica garante a integração comunitária, porque define aquilo que é comum a uma dada comunidade concreta, ou seja, as regras que são c
De um ponto de vista material, a ordem jurídica garante a integração comunitária, porque os valores que fundamentam a ordem jurídica são partilhados por aquela concreta socied
A objetividade:
A ordem jurídica constitui um dado objetivo. Ela existe independentemente de a querermos ou não, é algo que é exterior e que nos vincula.

Página 42
AULA PRÁTICA

3.1. Objetividade autárquica:

Num plano formal ou institucional identificamos uma objetividade autárquica, tendo em conta que a ordem jurídica é autossubsistente e assenta nas
suas próprias forças. A ordem jurídica não se anula e não desaparece se eventualmente não a aceitarmos. Com que legitimidade a ordem jurídica se nos impõem? A
legitimidade democrática, ou seja, não somos apenas objetos, mas também sujeitos criadores da própria ordem. Esta criação está diretamente ligada à legitimidade
democrática.

3.2. Objetividade dogmática:

Num plano intencional (ao nível do conteúdo) a ordem jurídica apresenta uma objetividade dogmática. O que é um dogma? Um dogma é aquilo que
aceitamos sem criticar, sem se discutir.

Fará sentido a ordem jurídica apresentar esta caraterísticas dogmática? Se pensarmos na cultura onde está inserida a ordem jurídica toda a cultural
pressupõem a referência a dogmas, todo o agir humano assente em pressupostos que não se discutam. Se questionássemos tudo, não agíamos.

A objetividade dogmática traduz a ideia da necessidade da ordem jurídica de postular apoio para as suas decisões e ações que o Homem é chamado a
exercer. A ordem jurídica disponibiliza regras de ação. O Homem assimila essas normas de conduta e não as poe em causa. É isto que permite que o Homem não
esteja sempre a partir do zero. Na tarefa do juiz este não parte sempre do zero, não vai questionar todo o direito quando confrontado com um problema em concreto,
mas sim parte de uma base dogmática.

Parece que há razões a contrariar a importância destes dogmas:

(1) Há razões culturais ligadas ao espírito científico que critica os pressupostos dogmáticos que estão por trás das ações do Homem, mas a ciência
parte também de um certo paradigma.
(2) Há razões políticas ligadas à ideia da democracia, porque em democracia somos todos chamados a dar as nossas razões para o projeto
comunitária e muitas vezes as nossas razões chocam com os dogmas já pré-estabelecidos. Na democracia também é necessário a existência de
dogmas, porque sem esta base dogmática não estaríamos em condições de agir.

Esta base dogmática existe e é muito importante, só que essa base dogmática não pode ser absolutizada, ou seja, não podemos radicalizar esta ideia ao
extremo. Há uma herança dogmática por trás de nós, todavia esta base dogmática está aberta à evolução (revisível). O Homem é um ser aberto e sempre em
evolução.

O Homem quando age não parte do zero. Só que essa base dogmática de onde partimos corresponde já a um passo evolutivo.

O que aconteceria se absolutizássemos a base dogmática? Estaríamos paralisados no tempo. A tradição cultural é importante, mas quando a recebemos
nós próprios estamos a contribuir para essa revisão, e não a vamos transmitir da mesma forma, mas já num estado evolutivo.

O que determina a evolução da ordem jurídica e do direito? São os problemas que determinam a evolução dos próprios pressupostos que visam responder
aos problemas. É um constituendo. Uma reconstituição analógica da ordem jurídica, segundo o Doutor Pinto Bronze.

4. Autoridade:
Esta base dogmática tem na sua base uma decisão. Precisamente para agir precisamos de pressupor essa base dogmática. A decisão remete para um poder, por isso
compreendemos a interferência necessária de uma autoridade na esfera do direito. Daqui que a ordem jurídica apresente uma nota de autoridade, manifestação de
um poder.

Página 115-143, de Fernando José Bronze – Lições de Introdução ao Direito (Lição 5)

Página 43
d) Os efeitos imediatos de uma qualquer OJ
α) Racionalização
A OJ racionaliza a nossa ação intersubjetiva.
Embora os seres humanos tenham uma tendência natural para a sua socialização,
manifestam sempre uma afirmação individual (associal).
Por isso, uma grande necessidade das relações sociais assenta numa
construção racional e na sua expressão.
Significa, portanto, que, na sociedade, os seres humanos não admitem
permanecer na contingência e na indefinição, querendo racionalizar as suas
ações e conferir à sua ação social um sentido, uma racionalidade.
A racionalização da ação é um momento característico do ser humano, quer
subjetivamente quer intersubjetivamente.
Existem várias caracterizações de racionalização. De
uma perspetiva sociológica, distinguimos:
- finalística (uma ação é racionalizável em função de um objetivo que através dela seja
possível atingir, sendo mais racional quanto mais próximos os objetivos estivessem –
relação meio/fim, vazia de conteúdo)
- axiológica/valor (implica a convocação de fundamentos em que a ação será tanto mais
racional quanto maior for a concretização das referências axiológicas que a sustentam –
relação fundamento/consequência)
P.e.: “eu faço isto desta forma” porque tenho um fundamento material que me
legitima a fazê-lo e porque é justo, não sendo apenas para atingir um fim.
P.e., visando a eficiência económica: admitir que a eliminação dos mais frágeis
levaria a essa eficiência – é uma relação meio/fim, que causa um óbvio desconforto nos
nossos princípios.
É de salientar que não existe racionalização finalística sem axiológica e
vv.
- Racionalização sistémica (é a legitimação da ação que tem a ver com a pacificação e
redução da complexidade, sem o comprometimento com os fins ou os valores)
Desta forma, concluímos que a determinação estrutural sistémica poderia ser
puramente procedimental.
β) Institucionalização
Status = aquilo que está organizado para subsistir/está estabilizado
In status ou “institucionalizar” = garantir a subsistência e estabilidade
Fazêmo-lo através de instituições: estas garantem-nos um conjunto de apoios aos
mais diversos níveis (sentidos, prestações, organização logística, etc.), que nos
permitem encontrar um sentido já estabilizado onde nos integramos e com o qual
dialogamos.

Página 44
Podemos perguntar qual o sentido das instituições, mas sabemos que todas as
instituições têm já um valor intrínseco, bem como um padrão estabilizado de
comportamentos que nos garante estabilidade.
Por isso, para a integração social do ser humano, as instituições oferecem um
horizonte de referência que lhe poupa as angústias e o trabalho (p.e., a universidade, os
hospitais, as associações, as ordens profissionais e até a OJ são uma instituição).
As instituições judiciais (da OJ) constituem a nossa sociedade.
A OJ é, assim, uma instituição judicial que regula as relações jurídicas,
estabelece padrões de comportamento e critérios de juízo, delimita as liberdades
(garantindo o exercício das mesmas, em certo modo) e garante segurança, liberdade e
paz.
γ) Segurança
Segurança quanto à previsibilidade do sentido das decisões.
A OJ produz o efeito da previsibilidade dos nossos comportamentos interferentes e a
possibilidade de, parcialmente, antevermos, teoricamente, os resultados das nossas
ações.
P.e.: quem decide passar um sinal vermelho, a conduzir, sabe que pode vir a ser
responsabilizado e sabe as consequências que podem estar em causa.
Assim sabemos, parcialmente, o sentido geral dos nossos direitos e deveres,
estabelecido pela OJ, o que nos garante liberdade.
δ) Liberdade
Numa primeira análise, a OJ apresenta-se como uma limitação da liberdade
(estabelecendo deveres a cumprir e impondo certos comportamentos).
No entanto, a previsibilidade da OJ garante-nos uma liberdade societariamente
consonante (não a de fazermos aquilo que quisermos, mas a de poder agir dentro dos
limites definidos pela OJ), i.e., uma proporcionalmente igual liberdade para todos.
ε) Paz
A OJ apresenta-se como um fator essencial de paz.
Quando nos deparamos com uma sociedade plural e complexa, o direito/a OJ,
ao limitar o recurso da força privada e a substituir pela realização institucionalizada das
suas prescrições, torna possível manter a paz.
Ora, salvo as exceções dos art. 336º e 337º do CC (que determinam a ação direta em
legítima defesa), torna ilícito aos sujeitos efetivarem os seus direitos pelas
suas próprias mãos.
Neste sentido, através da organização racional que a OJ estabelece, a sua pretensão
de se tornar válida e eficaz torna-se um fator de paz.
Esta paz é referente a um direito com uma paz radicada na justiça, i.e., um
conjunto de valores materiais que se traduza numa justiça jurídica.

Página 45
Justiça: o direito vigente implica que haja um conjunto construído intersubjetivamente
de valores materiais que traduzam uma ideia de justiça jurídica.
Desta forma, não confundiremos os seus fundamentos com outros sentidos de justiça
extrajurídicos, pois, muitas vezes, aquilo que empiricamente se considera (in)justo pode
não corresponder aquilo que intersubjetivamente (em termos societários) se considerará
justo.
- Este é o sentido de justiça que iremos procurar compreender na análise do sentido do
direito, enquanto referência material (fundamento) e enquanto projeção prática
(objetivo).

Efeitos PRÁTICA
AULA da ordem jurídica:

1. Efeito da racionalização:
O Homem é um ser incompleto, o comportamento deste não está pré-definido à nascença, por isso, este efeito de racionalização surge porque o homem
quer que o seu comportamento não seja contingente e baseado na sua intuição e animalidade, por isso, ele faz um esforço para racionalizar o seu agir, para dar
sentido e coerência à sua ação. O que lhe vai permitir o relacionamento em comunidade. A ordem jurídica é, em parte, o resultado desse esforço de racionalização,
porque é uma criação humana destinada a instituir um modelo para o comportamento humano. A ordem jurídica aparece destinada a completar o que por definição é
incompleto (o Homem no seu estado de natureza). Este efeito leva ao efeito de institucionalização.

2. Efeito de institucionalização:
Este efeito está diretamente relacionado que é a nota da objetividade dogmática. O que é uma instituição? Entrar naquilo que se conseguiu organizar para
subsistir. Portanto, uma instituição é sempre um padrão estandardizado de comportamento que assimilou determinados valores. É uma organização estável de
comportamento.

O Homem precisa das instituições, porque o Homem é um ser livre e a liberdade humana é um fardo, porque o Homem sendo livre tem de estar
continuamente a optar e a tomar decisões. A existência de instituições desonera o Homem do exercício fadigoso e pesado da sua liberdade. O homem define nas
instituições certos padrões que o orientam. O que significa que este não tem de estar sempre a partir do zero.

Em termos esquemáticos, projeta-se numa segunda natureza (cultura) e esta objetiva-se em instituições.

 Dialética liberdade e comunidade e autonomia e instituições:


Significa que há uma dialética entre liberdade e comunidade, entre autonomia e instituições. O Homem para viver em comunidade cira instituições, mas
onde é que fica a liberdade e a autonomia do Homem? Até que ponto é que se admite essa institucionalização do Homem? O Homem precisamente porque é livre
cria instituições e estas, vão por sua vez, limitar a liberdade natural do Homem. Todos temos a nossa liberdade, mas a nossa liberdade tem de estar limitada pelas
liberdades dos outros. O Homem em comunidade só é verdadeiramente é livre quando limita essa liberdade. Isto significa que não podemos absolutizar nem a ideia
de comunidade e instituições, nem a ideia de liberdade e autonomia do Homem.

3. Efeito de liberdade:
Está diretamente ligado com o que acabámos de ver. Para garantirmos a nossa liberdade temos de limitá-la. A limitação da nossa liberdade é condição e
garantia da própria liberdade. O direito e a ordem jurídica vão aparecer como fator e garantia de uma liberdade.

4. Efeito de segurança:
No fundo, a ordem jurídica dá-nos a conhecer antecipadamente o efeito dos nossos comportamentos. O direito não impõe só um modelo de conduta,
permite-nos conhecer antecipadamente os efeitos desses comportamentos. O que significa que sabemos o que podemos esperar dos outros membros da sociedade.
Exemplos de institutos que nos permitem determinar esta previsibilidade dos nossos comportamentos: prescrição, caso julgado,

5. Efeito de paz:
Quando se fala aqui de paz é uma paz de justiça, radicada no exercício da nossa liberdade. O direito é um fator de paz, porque impede o recurso à força,
desde logo. Só em caso excecionais é que se admite o recurso à força, por exemplo, em legitima defesa.

Chegados aqui terminamos a nossa caminhada por toda a ordem jurídica. Percebemos aquilo que temos consciência. Por isso é que partimos de uma
experiência daquilo que todos temos da ordem jurídica.

Surge, então, a questão:


Será que a OJ, tal como está estabelecida, manifesta completamente (de modo
acabado) o sentido do direito? Ou será que o sentido é algo que está para lá do direito
positivado?

Página 46
Página 145-196, de Fernando José Bronze – Lições de Introdução ao Direito (Lição 6)

2) A ordem jurídica e o problema do sentido do direito


a) Considerações gerais sobre o problema do
sentido e a sua específica intencionalidade
Questiona-se: qual a capacidade de se assumir o sentido do direito especificamente a
partir desta descrição, i.e. o sentido do direito pode ser compreendido a partir da
consideração da sua objetivação contextual (histórica)?
Ora, não basta analisarmos a estrutura da OJ.
Isto porque o sentido material estará concretizado na OJ que opera como
cristalização possível do sentido constituendo evolutivo entre a realidade
e juridicidade, i.e., está para lá da determinação da validade e eficácia da OJ porque é
o horizonte de referência manifestado e concretizado pela mesma.
A OJ tem um óbvio sentido histórico, intemporal e universal.
A OJ sofreu, ao longo do século XX, várias modificações em termos formais
e em termos materiais, em função de diferentes perceções e reflexões críticas sobre
o sentido do direito.
Problema do sentido do direito: qual o papel prático do direito?
Se, por um lado, o direito é a resposta aos problemas da vida prática (quid iuris?),
por outro, é ele próprio um problema (quid ius?).
Mas então, será que temos, em termos estruturais e substanciais, o sentido do direito?
Não, porque a OJ vai sendo uma concretização possível do direito, que a

Página 47
alimenta e fundamenta.
Contudo, falando do positivismo jurídico do século XIX (aquele que reduz o direito
ao direito positivo), a resposta já seria sim, pois se o direito é positivo e se basta com a
sua concretização, não será necessário invocar mais nada para além disso – há uma
rejeição do naturalismo e idealismo do direito.
E será que a OJ é fundamentada em si mesma?
Não, convoca um direito externo.
Para um positivista sim, pois congrega o sentido do direito e basta-se a si mesma.
O positivismo continua a existir nos regimes de civil law e common law, o que
acabou por pôr em causa: existia a possibilidade de, no ponto de vista jurídico, a ação
humana ser analisada como objeto cognoscível e determinável através de teorias e
hipóteses explicativas?
Não, pois a ação humana é suscetível de ser compreendida, mas não
verdadeiramente conhecida numa relação jurídica.
As propostas de superação do positivismo fizeram-se pela consideração do direito
enquanto disciplina dirigida à vida social e ação humana, que assume uma
intencionalidade normativa prática e não apenas externa e formal.
Não iremos adotar uma perspetiva positivista (século XIX) nem naturalista.
O sentido positivo do direito não se fundamenta em si mesmo, mas
também não é um naturalismo porque os valores que o fundamentam, sendo
metapositivos, são constituídos e constituendos, sendo a comunidade histórica do direito
o seu destinatário e simultâneo autor.
Assim, não se apela a um direito superior, considerando-se que a construção
da juridicidade é de sujeito-sujeito através de uma estrutura dialógica, sendo algo
histórico e contruído numa comunidade concreta, que mais tarde é projetado
num ordenamento jurídico.
Como chegamos a esta conclusão?
Tendo analisado a OJ (1), estamos em condições de dizer que concluímos o sentido
do direito?
Desta perspetiva, não.
Segundo Pinto Bronze, ao dizermos que a OJ é uma cristalização
temporária integrada num determinado contexto, sabemos que não é
suficiente para aferirmos o sentido do direito, sofrendo de insuficiências.
b) a insuficiência objetiva da OJ
A insuficiência objetiva resulta da forma como a OJ está objetivada, sendo que essa
objetivação não basta para aferir o sentido do direito.
Quando consideramos a objetivação, a OJ apresenta-se com um conjunto de
características formais (“ser ordem”) que não basta para saber o seu sentido.

Página 48
Por 2 razões:
α) a OJ e outras ordens sociais
A OJ é uma ordem entre outras.
Embora ser ordem seja fundamental, não é suficiente para a OJ porque há
outras ordens normas sociais vigentes que podem ter estruturas análogas e
fundamentações axiológicas e jurídicas mais próximas da mesma.
Por isso, procuramos distinguir o direito de outras ordens ético-morais, sociais e
religiosas (que são ordens normativas também).
 Fundamentação material: distinguir o direito da ordem ético-moral
O direito relativiza-nos, colocando-nos em certas posições jurídicas mais próximas
(p.e., credor e devedor) ou mais longínquas (p.e., OJ estatal), surgindo estas relações
sempre à luz de um terceiro.
A ordem ético-moral concorre com a OJ na dimensão das posições jurídicas mais
próximas, por tomar cada sujeito como único (p.e., numa relação de amizade importa
que seja a Ana e a Margarida).
A ordem que regula a máfia ou outras relações terroristas concorrem com a OJ na
dimensão das posições mais longínquas, por apresentarem fundamentos
contrários/distintos, mas que estruturalmente são análogos (critérios, órgãos instituídos
para a realização desses critérios e efeitos) aos da OJ.
β) a insuficiência ainda da complementar qualificação pela estadualidade
Essas ordens, mais próximas ou afastadas da OJ, não são instituídas pelo Estado –
diferente da OJ, a que corresponde a nota da estadualidade.
A estadualidade legitima a OJ, pois é uma nota absolutamente decisiva e
essencial nos dias de hoje e que começou com a institucionalização do Estado e
com separação de poderes (2ª linha da OJ).
Mas basta isso para que a OJ seja suficiente?
Não, pois temos OJ que usufruem da nota da estadualidade mas que
não são, para nós, OJ (p.e. OJ totalitárias).
O Estado e o direito são entidades distintas do ponto de vista histórico-
intencional-material, de uma dimensão extensiva e ainda da expressão “estado de
direito” que implica que sejam dois conceitos em relação não confundíveis.
Características de distinção entre o Estado e o direito:
Histórico
Sendo o Estado uma institucionalização moderna que nasce maioritariamente
após as revoluções liberais (ainda que haja casos de experiências na Grécia Antiga),
sabemos que o direito é anterior à mesma (no DR, p.e., que mostra que os modos
de atuação são distintos).
Devemos considerar que antes da institucionalização dos Estados e do
estado de direito havia já toda uma construção da experiência jurídica

Página 49
pluridimensional que ao longo do tempo se vai modificando, o que nos leva a dizer
que ambos têm um passado lado-a-lado, mas que não se confundem.
Intencional-material
Intencional-materialmente, o Estado é uma organização política e de poder,
enquanto que o direito, por dizer respeito à dimensão da vivência dos sujeitos na polis
(político), não se reduzirá à política enquanto racionalização estratégica
dirigida à produção de fins.
Assim, o Estado visa a prossecução de fins e assenta a sua ação numa
finalidade instrumental-mobilística (i.e., mobilização de meios para a realização
dos fins).
Já o direito, é uma ordem normativa de valor que assenta numa validade
material que estabelece os seus fundamentos e ação numa racionalidade
axiológica e não finalística, visando a fundamentação material das suas
prescrições e, portanto, numa relação de fundamento-consequência e não numa relação
de meio-fim.
Há quem entenda que o direito deve ser um instrumento ao serviço das imposições
que externamente lhe sejam postas pelos outros domínios da sociedade (tecnologia,
economia, etc.), ou seja, que o direito seria melhor quanto mais se adaptasse aos
objetivos impostos por fora e permitisse obter os resultados mais próximos possíveis
desses objetivos.
Nota cultural

Direito Estado


↓ ↓
Aquele que herdámos (através de uma nota tem uma referência correspondente a uma
axiológica heterónoma sob o domínio construção racional e institucionalizante
jusnaturalista, do séc. VIII a.C. ao séc. XVIII)

tem uma referência correspondente a uma


intenção regulativa normativamente prática

Dimensão extensiva
O Estado e o direito são também extensivamente distintos, pois nem todo o direito
vigente provém do Estado.
Tal aplicação verifica-se nos sistemas de common law e de legislação, aquele que
herdámos pela conjugação de criação do direito sob a forma de lei com o
poder legislativo (influência do século XIX).
Esta dimensão é visível nas fontes do direito: p.e., o direito privado (contrato que não
tem de ser assinado para que se crie direito, i.e., que vincule os sujeitos; ainda que não
haja nenhuma lei que o diga) ou o direito consuetudinário.
Assim, não se identificam direito e Estado quando temos fontes interestaduais
– p.e., as convenções internacionais são direito que não é criado pelo Estado, mas
constituem direito criado entre Estados.

Página 50
Estado de direito
Ser Estado não é garantia de que estamos perante um Estado de direito
(dado que existem Estados de não direito). As
dimensões conjugadas são distintas:
O Estado de direito é um Estado que se legitima/fundamenta no direito, que
dialoga com ele e legitima a sua ação nele.
Não é o Estado que fundamenta o direito, pois assim o fundamento do direito
seria o poder do Estado (o que é falso, pois o fundamento material do direito é um
acervo axiológico intersubjetivamente constituendo que se vai precipitando
institucionalmente).
P.e.: no art. 24º/1/2 da CRP (direito à vida), temos aqui um princípio fundamental
por estar na CRP (1) ou temos aqui uma consagração na CRP de algo que é fundamental
(2)?
Temos a (2), pois o valor da vida é essencial.
Assim, os constitucionalistas falam, por vezes, de uma supraconstitucionalidade
autogenerativa – de facto, a lei constitucional é a lei fundamental, mas responde a si
própria quanto à sua legitimação.
Delimitação recíproca e dialogante entre a legitimação política do direito e a validade
jurídica desse direito institucionalizado pelo Estado: o direito fundamenta a
atuação do estado, que escuda a sua atuação no direito (são
interdependentes), mas não é o Estado que fundamenta o direito – existe um controlo
recíproco.
Ou seja…
Não basta a forma, é necessário que o conteúdo seja uma manifestação no
sentido do direito, pois a OJ coexiste com outras ordens sociais e é
proveniente do Estado (legitimada pela força do poder político do Estado).
No entanto, o direito assimila conteúdo e intenções normativas
específicas, logo, devemos ter em conta que Estado e direito não se identificam em
termos históricos, intencionais-materiais, extensão e Estado de direito.

EM SUMA
Para OJ ser classificada como ordem de direito ➜ tem de ter uma
manifestação de direito, porém só por si não encerra globalmente o
sentido do direito (que é algo que a transcende, por ser um acervo material
constituendo numa dimensão temporal e espacial distintas da que a OJ estabelece).
OJ é, só por si, insuficiente para definir/estabelecer o sentido do direito pois não é nas
suas funções e estrutura que encontramos esse sentido (que a ultrapassa) ➜
encontramo-lo no conteúdo que a OJ deve assumir, assumindo-o sempre de
maneira parcial e objetivada.
OJ, do ponto de vista normativo, também é insuficiente para determinar o
sentido do direito:

Página 51
 Não basta à OJ ser ordem
Como é uma ordem de direito, é-lhe característica uma dimensão normativa. Que
dimensão normativa?
Uma referência de valor em que vai residir a sua validade e que é apenas a afirmação
de um ideal alheado à projeção prática ➜ é uma afirmação de valor que pretende
orientar a prática, conferindo o critério para a atuação intersubjetiva na OJ.
São os critérios operadores mobilizáveis para a resolução de problemas concretos e
fundamentos de acervos axiológicos que baseiam a criação dos critérios.
 Não basta à OJ provir do Estado
No nosso OJ (sistema de legislação), distinguimos, para lá da lei enquanto critério, os
critérios práticos que são diretamente convocáveis para a resolução de um problema
concreto e os critérios que, sendo atuação do poder legislativo, não são autossuficientes
do ponto de vista da sua validade normativa (problema da fundamentação material, que
lhes é conferida pelos princípios normativos em que se fundamentam*.
Sentido dos critérios = concretização do sentido dos princípios que os fundamentam.
Se todo o direito fosse estadual, o poder seria o seu fundamento.
Isso não acontece, mas o direito e o poder cruzam-se: o primeiro precisa de
autoridade, conferida atualmente pelo poder político.
Mas o poder político não é fundamento do Direito, porque, se o fosse, qualquer
norma criada pelo Estado, seria direito.
Há valores jurídicos que transcendem a legalidade - os direitos fundamentais do
homem, que são trans-estaduais – radicando numa transconstitucionalidade).
Ou seja, para a legislação constituir uma ordem de Direito, tem que se inserir no
universo da validade que lhe confere esse caráter (de norma).
Atualmente, dá-se dimensão de direito ao poder, i.e., juridiciza-se o Estado (que
tende a ser, hoje, um Estado de direito material), onde o direito é apenas o limitador do
poder, mas o seu verdadeiro fundamento legitimante.
Relação entre normas e entre normas e princípios
Critérios normativos (nomeadamente os normativo-legais) ➜ delimitação positiva e
negativa quanto ao seu conteúdo, a intencionalidade dos princípios em que se sustentam
(se uma norma legal contrariar um princípio consagrado na constituição e se se arguir
essa inconstitucionalidade, poderá ser fiscalizada e declarada como inconstitucional).

* os princípios não são critérios, são referentes axiológicos que traduzem compromissos
práticos de realização intersubjetiva e que assimilam valores:

Página 52
p.e., os princípios da legalidade, da igualdade, da confiança, da autonomia
privada, do Estado de direito, estão consagrados sob a forma de norma legais na
constituição/constitucional).
c) a insuficiência normativa da OJ
α) a necessária consideração da dimensão normativa imanente,
normativamente substantivadora e sustentadora da vigência
O que implicou mencionar o sistema jurídico (abordado na IAD II)?
Permitiu compreender que uma norma legal, embora a sua legitimidade
democrática, tem de responder à questão da sua validade jurídica.
Ora, se a OJ é composta por critérios e por princípios, não é apenas composta por
normas legais – é pluridimensional.
E se se pretende assumir como ordem de direito, há de afirmar um sentido
normativo material para a prática.
Porém, ainda que seja imanente à OJ essa intencionalidade normativa, a OJ
constitui uma concretização contextual de uma intencionalidade que a
ultrapassa (o sentido do direito), que é o acervo significativo historicamente
construído, criticamente refletido e que constitui o direito numa civilização.
Assim, é necessário considerar que a OJ, para ser de direito, assumirá uma
dimensão normativa que a constitui substancialmente e sustenta a sua
vigência, pois a OJ não se basta ser válida e politicamente legitimada.
Para ser direito, tem de ser eficaz.
A validade não existe sem a eficácia e vv.:
- validade sem a eficácia = afirmação ideal axiológica sem efetividade prática
- eficácia sem validade ⇒ imposição pela força de um conteúdo que, se não afirmar a
validade substancial contextualmente reconhecida como direito, não será como tal
reconhecido.
Isto significa que, se uma norma for inválida, ela irá perder, provavelmente, a sua
eficácia.
P.e.: se uma norma legal determinasse a ilicitude dos seres humanos mais frágeis,
assumiríamos no nosso contexto cultural essa norma como uma norma de direito? Não.
Logo, não basta à OJ ser eficaz por força da imposição em virtude da
sanção (que é uma característica que resulta da necessidade da efetivação prática),
pois o direito tem de afirmar uma axiologia e uma normatividade positivas,
i.e., aptas a que o sujeito que compõe a comunidade jurídica em causa lhe dirijam uma
referência positiva.
P.e.: o facto de o art. 24º da CRP determinar que, em caso algum, existirá pena de
morte em Portugal manifesta uma referência fundamental do nosso contexto cultural
que leva àquela consagração constitucional.
O direito refere uma validade e refere-se a uma validade, pois não resulta de

Página 53
uma ordem de ser indisponível, da natureza das coisas ou de uma perceção de direito
natural externamente imposta.
Para ser direito, nesta perspetiva não-positivista ou não-jusnaturalista, assumirá e
afirmará uma validade material que é intersubjetivamente construída.

Não significa que seja contingente/fixa, porque a validade que vai sendo conferida ao
direito também traduz, enquanto aspiração à validade, uma vinculação como projeto a
atingir (e cuja construção está na autodisponibilidade dos membros da comunidade).

Assim, a axiologia que se vai manifestando/construindo está em contínua


constituição e, ao ser assumida como projeto de concretização, autoprojeta- se
nos sujeitos que a originam – compreenderemos a validade do direito na
determinação vinculativa de comportamentos, em nome da salvaguarda dos valores.
Não é a concordância individual que põe em causa a axiologia e a normatividade
contra-fática da norma, pois há uma concordância global da comunidade e que
legitima/fundamenta essa norma – i.e., podemos discordar individualmente da norma,
mas isso não afetará o fundamento axiológico- normativo dessa norma porque houve
uma concordância social da mesma que a legitima.
Logo…
À OJ cabe manifestar um sentido normativo imanente que substancia e
sustenta a sua vigência – essa normatividade imanente à OJ é a manifestação de
uma intenção normativa transpositiva, que a ultrapassa.
A OJ é positiva, válida e eficaz.
β) a intenção normativa transpositiva e regulativa — o direito
como princípio
A intenção normativa transpositiva e regulativa da OJ = sentido do direito, na sua
manifestação enquanto princípio normativo.
Como a OJ é uma concretização que ultrapassa o sentido do direito (que
é por sua vez um “dever ser”), tem uma própria fundamentação num “dever ser”
que o direito é.
Assim, o fundamento da construção dialógica dos valores que constituem o direito é
o reconhecimento recíproco dos sujeitos como pessoas, i.e., sujeitos com dignidade
ética, autonomia e responsabilidade.
O que implica que a relativização que o direito faz (padronização equiparadora)
seja uma manifestação cultural, que tem como pressuposto um referente
histórico que constitui a ideia de dignidade humana.
Dizer que um “sujeito de direito” é um sujeito com uma inabilidade

Página 54
dignidade ética não significa dizer que o direito é uma ética, mas sim que o
direito é um pressuposto ético-axiológico e cultural.
Partindo do princípio que temos um conjunto de referentes que auxiliem na
compreensão do que é a dignidade humana, pressupomos que o ser humano se
assume como membro da sociedade humana com um acervo cultural
adquirido pelo contexto e que o constitui enquanto pessoa – efetivação da
dignidade e do valor da vida.
γ) a intenção axiológico-normativa fundamentante da validade do
direito como direito como alternativa, para lá da resposta idealista e
da resposta positivista (remissão)
No direito, a afirmação da autonomia vai sempre acompanhada de integração
comunitária sem o qual não faria sentido – temos de falar de direitos com a
implicação de deveres.
Do ponto de vista jurídico, a dimensão de autonomia e responsabilidade
estão presentes na construção do sujeito de direito.
Tipos de responsabilidade
Nas linhas da ordem jurídica falámos dos tipos de justiça que o direito compreende:
 linha de base
- a justiça comutativa corresponde à responsabilidade contratual
- a justiça corretiva corresponde à responsabilidade civil extracontratual
 linha ascendente
- a justiça protetiva corresponde à corresponsabilidade (ex. da responsabilidade penal)
 linha descendente
- a justiça distributiva corresponde à responsabilidade de integração comunitária Ora,
um sujeito de direito apenas é de direito pela integração comunitária –
comunidade surge como ponto de integração.
Sujeitos relacionam-se entre si na afirmação de autonomia e na
afirmação de responsabilidade, dentro da comunidade.
Até que ponto é um sujeito responsável por outro sujeito? Onde está a fronteira entre
autonomia e responsabilidade do sujeito? O que é juridicamente relevante?
Pressupondo a existência de um direito natural e assumindo que os valores que
vinculam o direito não são contingentes, mas sim projeto de realização, verificamos que
não estamos numa perspetiva idealista nem positivista, pois não
admitimos que o direito seja direito por estar sob a forma de direito.
O que é juridicamente exigível é o que está sedimentado, mas também o que está em
corrente discussão e dúvida.
As repostas a que chegamos são suscetíveis de revisão, fazendo evoluir uma

Página 55
comunidade.
No entanto, não significa que não tenhamos em consideração:
- a relação entre comunidades, pois cada vez mais dentro de uma comunidade nacional
temos diferentes comunidades (diálogo interno entre as comunidades da comunidade)
- a relação do diálogo intercomunitário, pois devemos falar do diálogo da conjunção de
uma determinada comunidade/sociedade com outras, dado que os referentes axiológicos
não são universais (leva-nos ao problema de saber da possibilidade de reconhecimento
recíproco da condição de pessoa e das características intrínsecas, bem como de uma
proposta de respeito recíproco que permita uma tradução e mútua compreensão das
semelhanças e das diferenças entre ambos)
Tudo o que dissemos até aqui é suficiente para identificar uma autêntica ordem de direito?

Pensemos noutras ordens que tem também uma estrutura, funções, efeitos. A ordem da máfica, encontramos num plano formal tudo isto
AULA PRÁTICA que vimos até
agora, por exemplo. Essas ordens não são ordens de direito, porque não está lá o Estado. Nota objetiva que nos permite dizer que o Estado é um elemento essencial.
Isso é suficiente para identificar uma ordem de direito?

Insuficiência objetiva: por um lado, uma insuficiência objetiva de definição, ou seja, não é pelo facto de definirmos o direito como ordem que conseguimos
alcançar o seu objetivo. Por outro lado, uma insuficiência objetiva de identificação. A nota da estadualidade não é suficiente para identificarmos uma autêntica
ordem de direito.

Direito e Estado são realidade distintas:

 Ao nível cultural: O Direito é anterior ao Estado. O Direito autonomizou-se num contexto romano, emerge como uma tarefa prática de resolução de
problemas em que os romanos tiveram a consciência dos problemas e que estes tinham de ser resolvidos. O Estado surge só no contexto moderno.
Historicamente não se confundem.
 Materialmente: o Estado é uma organização de poder, o direito é uma ordem normativa. O Estado impõe aos cidadãos destinatários uma estratégia. O
Direito baseia-se me valores humanos e que padecem de proteção jurídica. A racionalidade mobilizada pelo Direito deve ser uma racionalidade
axiológica.
 Plano extensivo:

Nem todos os sistemas são sistemas de legislação, ou seja, nem todos os sistemas têm núcleo duro normas legais, por exemplo, o sistema de common
law que é compostos por precedentes. O núcleo duro do nosso sistema jurídico é a legislação (civil law). Mas, mesmo nos sistemas de civil law a lei não é o único
critério. Há mais critérios jurídicos para além dos critérios legais. Muito do que está no sistema jurídico advém do poder estadual (as leis), mas há outros critérios
para além dos critérios legais, como a doutrina, a jurisprudência.

Para além de existirem outros critérios existem fundamentos e princípios normativos que devem aparecer a limitar os critérios legais. Esses princípios
vão estar ligados à parte axiológica de direito. Quando dizemos que estamos num estado de Direito: estadualidade e juridicidade (fundamentação: o direito deve ser
o fundamento material da atividade do estado).

Estes dois polos relacionam-se: a juridicidade permite-nos dizer que o direito fundamenta a atuação do estado, e o estado empresta ao direito a força de
que ele precisa para se afirmar na prática.

Se a nota da estadualidade não é suficiente a pergunta subsiste.

Insuficiência normativa: o que falta à ordem jurídica para ser uma autêntica norma de direito é a dimensão normativa.

A ordem jurídica do modo como a tratamos não é suficiente para identificarmos uma ordem jurídica. Identificamos uma insuficiência objetiva.
O que falta é a dimensão normativa.

A ordem jurídica não tem essa dimensão normativa. A ordem jurídica só será uma autêntica ordem de direito se assumir e realizar determinados valores
implicados pela dignidade ética da pessoa humano. Esta dimensão normativa compreende-se em vários planos:

1. Imanência intencional: ou seja, o conteúdo material que determina a vigência do direito.

Uma autêntica ordem de direito assimila valores e empenha-se em realizá-los. Os critérios estabelecidos pela ordem jurídica fundam-se sempre num
determinado conjunto de valores que lhe atribuem um sentido prático e válido.

Distinção entre critérios (modelos imediatamente imperativos) e os fundamentos (estrela polar da constituição dos critérios). Uma ordem de direito tem
de ter esta dimensão material, assentar em valores e assumir esta validade.

A referência à validade não é suficiente.

Página 56
AULA PRÁTICA
A vigência compreende-se através da validade e da dimensão da eficácia, ou seja, o direito tem de ser socialmente operativo, tem de ser aplicável na
prática. O direito tem uma dimensão material que sem ela não é autenticamente direito, mas só será vigente se também compreender a dimensão da eficácia. “O
direito só é um, o que se possa dizer vigente e mais nenhum.”

Uma ordem de direito só será vigente simultaneamente válida e eficaz. Não se compreende uma sem a outra. A ordem de direito traduz sempre uma
intenção normativa que se exprime numa exigência que se funda em valores. Esta primeira dimensão basta? Se disséssemos apenas isto consideraríamos o direito
uma ordem estática, que não o é.

2. Intenção normativa transpositiva e regulativa:

Pretende-se afirmar que o direito não constitui uma normatividade absolutamente concluída e acabada. Os valores transcendem o plano do já constituída.
Os valores vão para além da sua concretização efetiva num dado momento histórico. Os valores são transpositivos. O direito vai-se constituindo em função dos
valores assumidos pelo homem. Em função daquilo que o Homem quer que seja o direito. O direito é o esforço humano.

Dizer isto significa dizer que esta ordem de direito nunca está acabada, mas sim em permanente reconstituição. O direito é, por um lado, um conjunto de
valores. Mas, também, evolui. É uma constituição já constituída (plano do ser-valores já constituídos), mas evolui (é um projeto normativo- plano do dever-ser). No
fundo, o direito verdadeiramente não é, vai sendo.

Então, qual é o dever-ser do dever-ser, ou seja, quando o fundamento do dever-ser?

3. O fundamento da transpositividade:

O direito como validade. Os valores constituem e fundamentam a ordem de direito, mas o fundamento último dessa validade é a pessoa humana,
enquanto portador de uma inviolável dignidade ética. O sujeito simultaneamente livre e autónomo e responsável e chamado a participar comunitariamente por outro.

A matriz axiológica que justifica o direito naquilo que ele é e naquilo que ele há de ser é o facto de nós reconhecemos uns aos outros como pessoas,
como sujeitos portadores de uma inviolável dignidade ética.

Quando consideramos as normas legais que uma norma que atente contra a dignidade humana não é válida. Não sendo válida não é vigente, e assim não
é direito.

O direito assenta em valores (plano do ser), mas essa validade é transpositiva (plano do dever-ser). E o fundamento último dessa validade radica na
pessoa humana (plano do dever-ser do dever-ser).

Permite-nos identificar o sentido geral do direito.

Olharemos, agora, para as relações entre direito e sociedade.

Página 197-270 (especialmente p. 218-270), de Fernando José Bronze – Lições de Introdução ao Direito (Lição 7)

Página 57
O direito e a sociedade
1) O direito na sociedade
Vivemos em sociedades heterogéneas, complexas e plurais em que as referências
agregadoras tendem a mudar e rarefazer-se em torno de um tronco central, o que
significa que a consideração da coesão social é crescentemente
problemática.
Hoje, temos a expressão direta das diferenças que nos caracterizam. Perante
isto, cabe-nos perguntar qual é, afinal, o papel do direito.
É sobre isso que temos versado: perguntamos qual a função que o jurista encara e
como a desenvolve. Vimos, por outro lado, que mesmo não sendo juristas (e analisando
a OJ), fizemos a descrição à luz de um pressuposto fundamental, concluindo que o
problema do sentido não é meramente observável.
Assim, o direito seria sempre um fenómeno cognoscível: se o direito for,
ainda, uma dimensão normativa e crítica-reflexiva da prática social, que implique
diferentes intencionalidades e fundamentos, exige uma nova reflexão que procura pelo
seu sentido.
Respostas plurais:
- construções ontologicamente assentes na determinação de um ser que o direito
assumiria e haveria de espelhar na realidade (com um sentido intemporal e
universal)
- correntes mais pragmáticas, que veem no direito uma regulação ao serviço da
sociedade de modo acrítico, i.e., uma regulamentação neutra à qual cabe apenas
cumprir os objetivos que as diferentes dimensões da sociedade se prepusessem atingir
Do ponto de vista por que olhamos para o direito (que tem a ver com uma linha de
evolução de pensamento e com a convicção direta e tomada de posição da professora),
significa que pensar no direito hoje nos obriga a dialogar com diferentes
compreensões daquilo que o direito seja e do pensamento que o pensa
(em termos dogmáticos imediatamente ou filosóficas mediatamente).
Falámos, assim, da OJ, que não é uma “ilha isolada”.
AULA PRÁTICA

Breves considerações sobre o que é a sociedade

Perceber o que é a sociedade: a sociedade é o campo de atuação do direito, o ponto comum da convivência humana e, como tal, distinguimos duas dimensões relevantes:
Dimensão comunitária: traduz a ideia de que a sociedade implica sempre um projeto.
Sociedade = teia constituída pela interferência das nossas ações significativas/comunitariamente relevantes, sendo a sociedade mais do que a mera soma aritmética dos seus memb

Dimensão de autonomia: o comum social não pode jamais esmagar a individualidade dos membros da sociedade, porque não somos robots comunitários e temos a nossa a

Página 58
AULA PRÁTICA

Estas dimensões dão conta da dialética entre a autonomia (eu individual) e a comunidade (eu social), que têm de estar em equilíbrio – nenhuma destas dimensões p

“Somos seres centrífugos (de liberdade e autonomia) a conviver num horizonte centrípeto (porque a sociedade nos chama a si)” – Pinto Bronze.

Como é que a sociedade disciplina a forma como nos organizamos? Como enquadra a nossa autonomia na comunidade?

Cada um de nós tem na sociedade um estatuto e desempenha, em função do mesmo, um determinado papel  o que importa nas nossas relações comunitárias é o papel (status

O facto de atuarmos segundo estatutos sociais definidos acaba por reduzir a complexidade inerente ao exercício da nossa liberdade: qual será o papel do direito?

Direito aparece aqui como resolutor/que previne de conflito, que surge pelo facto de interagirmos uns com os outros (na sociedade).

Direito = subsistema social destinado, por um lado, a prevenir e, por outro, a resolver os conflitos que ocorram na sociedade  Direito como regulador, o que possibilita a noss
Nas sociedades encontramos dois modelos: o espaço de equilíbrio e o espaço do conflito (é aqui que direito aparece como regulador). É este conflito que possibilita o di

a) a sociedade: sentido geral e a problemática da sua conceção teórica


(de um imediato, mas muito esquemático, ponto de vista sociológico)
Até que ponto é que não nos guiamos por uma linha positivista (século XIX) ou por
uma linha jusnaturalista (antiguidade clássica e atualidade)?
No DR, há uma autonomia específica do pensamento jurídico que tem a ver com
a autonomização de magistrados próprios e de algumas actiones e, simultaneamente,
um direito enquanto sistema pluridimensional (fontes de direito para além da lei –
doutrina, jurisprudência, costumes).
Já a partir da idade moderna, tem a ver com a teoria da soberania popular
e com o princípio da separação de poderes.
Como tanto o DR como a IM ou não reconhecem ao direito um sentido autónomo ou,
reconhecendo-o, o recusam (não o entendem suscetível para a resposta da
intersubjetividade tal como ela hoje se apresenta), seguiremos outra perspetiva: ao
direito cumprirá olhar para a sociedade, que no fundo é a realidade em
que se desenvolve, à qual se dirigir e que procura regular.
Papel do direito na sociedade hoje:
- qual o papel que o direito desempenha na sociedade? Que relação se estabelece?
- será o direito função da sociedade? Será que deve ser aquilo que a sociedade lhe
imponha e deve sê-lo instrumentalizadamente?
- será a sociedade função do direito? (o que implica que o direito assuma um papel
constitutivo, sendo a sua função regular e constituir uma sociedade)
Devemos considerar diferentemente os modos por que o direito se relaciona com a
sociedade.
Falar de sociedade é diferente de falar de comunidade:
Esta sistematização diz respeito a uma proposta de um sociólogo do século XIX,
Ferdinand Tönnies.

Página 59
Este vê na comunidade uma agregação intersubjetiva espontânea e,
portanto, não convencionada, com o estabelecimento de laços/ligações entre os
sujeitos, que estabelecem uma interdependência de referenciação
agregadora/construção comum de sentidos.
- Comunidade (comunitas): designação daquilo em que comunga, em que se toma
parte;
Já a sociedade seria, diferentemente, o resultado de um acordo/contrato de
sujeitos individuais e livres, previamente a esse contrato, e que se vinculariam ao
mesmo se e quando, tal vinculação correspondesse à realização de interesses
individuais que, por essa via, se tornam interesses comuns.
- Sociedade (societas): como resultado da confluência de vontades.
Mas, de onde vem, historicamente, esta diferença?
Contextualização histórica
Idade Pré-Moderna:
O ser humano assume-se como referido a uma ordem pressuposta e integrado no
resultado dessa referenciação, numa agregação comum e, por isso, numa comunidade.
Sentido do ser humano
referidos a essa ordem pressuposta
Sentido da sua autocompreensão
 Cosmológica
Sentido da sua atuação  Teológica
Idade Moderna:
Essa referenciação é posta em causa: vai-se assumindo progressivamente o ser
humano como causa sui, desvinculando-se da referenciação transcendente.
Existe, assim, uma autonomização para a construção do coletivo que é
regulado pelo direito.
Por outras palavras, se na antiguidade clássica existia a referenciação da lei positiva e
uma ideia de direito natural que traduzia o equilíbrio do cosmos, essa compreensão irá
transpor-se para uma referenciação teológica (projetada para o futuro).
Nova compreensão: a relação tripartida entre a dimensão teológica (traduzida
numa lei eterna), a dimensão de direito natural e a dimensão da lei positiva não seguiu
os mesmos caminhos.
- em certos locais, perdurou a relação tripartida
- noutros locais, a assunção da perspetiva da lei eterna enquanto fundamentação
de uma certa intersubjetividade se vai separar progressivamente da própria
construção da lei natural enquanto fundamento do direito positivo ➜ a lei
natural deixa de assumir como referente último a determinação racional divina, para
passar a assumir a determinação racional humana

Página 60
Esta concentração antropológica, leva a que autores como, p.e., Hugo Grócio
assumam que o direito natural continuaria a existir mesmo que não tivesse essa
referência teológica.
Ou seja…
O direito progressivamente distingue-se da referenciação teológica/divina.

Mas o que isto significa para nós?


Com a modernidade, o ser humano vai deixar de se compreender como
nascido e já integrado no reflexo da ordem pressuposta numa
comunidade,
para passar progressivamente a reconhecer-se como livre e desvinculado à
nascença.

Esse ser livre e desvinculado é agora um indivíduo e, nesse sentido, vincula-


se e relaciona-se com os outros através de convenções de facto.
Assim, já não estamos perante uma construção meramente espontânea (uma
comunidade), mas sim perante uma construção convencionada/querida (uma
sociedade).
Estamos, então, perante pressuposto fundamental da construção da ideia de
sociedade.
A sociedade é um “artefacto cultural” em que os sujeitos confluem conscientemente
para a realização de um objetivo comum, através de uma declaração constitutiva.
Ora, o modo de organização do coletivo e do intersubjetivo têm sido alvo de muitas
construções e compreensões (opõem-se, em extremos, os liberalismos e
comunitarismos) e, esta perspetiva deste sociólogo do século XIX, é um exemplo.

A proposta de Max Weber na diferenciação entre coexistência e


convivência
Esta é uma nota fundamental para compreender que tipo de intersubjetividade se
pretender construir para/no direito.
De facto, numa construção societária procedimental formalista é possível
coexistir sem conviver. As construções individualistas mais extremadas propõem-
no, defendem-no e assumem-no.
No entanto, não podermos ter coexistência e convivência em extremos, pois as
nossas vidas intersubjetivas fazem-se de ambas.
O direito que queremos ter é uma opção, podendo ser um cimento agregador ou uma
mera construção procedimental para diminuir eventuais conflitos (reduzindo a sua
influência material).
No século XVIII, a lei surgia como:

Página 61
 forma racional fundamental da construção do direito

 um ideal racional da universalidade, generalidade e abstração para a


criação do direito

 a garantia de que o direito era criado e tinha poder legitimado para tal, sob a
forma de critério geral e abstrato

 o ideal racional iluminista que o positivismo absorveu, institucionalizou


e transformou para lá do enquadramento racional (no positivismo, o direito não vai
comprometer-se com as intenções de quem age/atua, sendo uma delimitação externa
da compossibilidade das esferas – contudo, é lido pelos positivistas como um meio
de implantação de um programa político, i.e., a construção do Estado
demoliberal)
No século XIX:
Com o instaurar do pensamento positivista, passamos de um ideal racional
para, conjuntamente com ele, se assumir a lei como móbil de ação/um meio de
construção de um certo tipo de sociedade política (no caso, o Estado
demoliberal).
Assim, o direito passa a ter uma existência racional abstrata num sistema fechado,
concluso, logicamente coerente/consistente ➜ encerramos todo o direito, separando-o
decisivamente da realidade.
«Direito é autónomo» (o que não significa que esteja isolado do mundo)
Não significa que o direito não tivesse uma função prática (visto que a sua principal
função é aplicar-se à prática), mas que a prática não tinha relevância autónoma para a
criação do direito.
O direito seria, assim, determinado do lado do sistema para a realidade
(que seria como um campo de aplicação de normas).
O pensamento positivista
Este pensamento jurídico seria um pensamento teorético, de intenção cognoscitiva
que cumpria as exigências e requisitos dos pensamentos científicos à luz da
compreensão positivista da ciência, a ciência do direito.
Desta forma, como quis ser ciência, teve de seguir os requisitos fundamentais da
construção das ciências à luz do exemplo do paradigma das ciências empírico-
explicativas.
Aqui surgem-nos dois sentidos de autonomia:
- o direito tem uma solução prática e vai responder a problemas práticos, sendo
autónomo da realidade por decretar a juridicidade da mesma.
- autonomia científica do pensamento jurídico.
Assim, o pensamento jurídico é autónomo de vinculações externas,
porque é científico e, por isso, não pode ser submetido ou instrumentalizado a outras
dimensões da realidade.

Página 62
Objetivo deste pensamento
A verdade é que o que o positivismo jurídico do século XIX pretendeu fazer foi
resolver juridicamente o problema político da institucionalização do Estado liberal.
E que solução jurídica encontrou?
A concentração da criação do direito na lei, para o Estado demoliberal de
legalidade formal.
b) A sociedade (em perspetiva material)
O objeto principal das nossas preocupações não é a autonomia do direito no
positivismo, mas sim a posição relativa do direito face às outras dimensões
da sociedade.
Dizer que o direito é um fator regulativo ao serviço da sociedade implicava
reconhecer que o direito seria tanto mais adequado quanto mais cumprisse as exigências
das outras dimensões da sociedade.
O direito não é alheio a nenhuma delas, mas também não se subordina a elas:
hoje, depara-se e dialoga com todas essas dimensões.
A proposta da procura da autonomia material (e não formal, como no
positivismo) assenta, segundo a perspetiva jurisprudencialista, no reconhecimento
da permanência do direito na história e do diálogo que faz com todas as
dimensões.
Contudo, por ser direito e se assumir na história com um papel constitutivo que
culturalmente lhe foi sendo conferido, toma uma posição perante essas outras
dimensões.
Nota:
Castanheira Neves salienta que o formalismo do século XIX gerou várias
instrumentalizações do direito, os chamados “funcionalismos materiais”, i.e., propostas
de instrumentalização do direito a dimensões que lhe são externas, no âmbito de uma
compreensão macroscópica da sociedade ➜ várias vertentes de atuação intersubjetiva
impõem-se ao direito como critério de construção, tornando o direito tanto mais
adequado quanto mais capaz de atingir esses objetivos for).
α) Os Interesses e O fatOr eCOnómICO
Considerar que é a economia que determina o direito é redutor. Essa
consideração transforma o direito:
 numa determinação de adequação entre meios e fins para a adaptação,
colocação de bens/recursos escassos às necessidades potencialmente infinitas
 num meio (sendo ele próprio, assumindo uma racionalidade finalística em nome da
eficiência económica, mais do que a eficácia – i.e., direito era transformado num
instrumento ao serviço da eficiência económica)
Isto poderia implicar um sacrifício dos pilares fundamentais

Página 63
historicamente constituídos do direito para chegar a conclusões/situações
favoráveis economicamente. P.e., permitir-se a eliminação de alguns sujeitos (pessoas)
em nome da eficiência económica (os mais frágeis).
Ora, o direito não é imune à economia e, por isso, falamos aqui de uma autonomia
relativa, i.e., o direito, por ser direito na nossa experiência cultural, dialoga/é
condicionado pela economia, mas não é determinado por ela.
O que acontece é que o direito, perante a realidade económica, reflete
criticamente e propõe soluções de realização de projetos económicos, no
equilíbrio com os valores fundamentais a que corresponde.
Nota:
Isto não foi sempre assim nem será, porque, tal como Pinto Bronze nos diz, o direito
é uma opção que vai sendo construída e, no limite, se os sujeitos envolvidos assim
entenderem, pode ser substituída por outro modo de regulação.
β) O pOder e O fatOr pOLítICO
Atualmente, a noção de Estado de direito mostra-nos uma interdependência: o
direito precisa do Estado para se impor e o Estado precisa do direito para se legitimar e
fundamentar a sua ação.
A legitimidade que herdamos e a legitimação democrática são coisas distintas.
A legitimação democrática é uma importante parte da fundamentação da atuação
do Estado e mostra, decisivamente, a tensão dialética entre Estado e direito.
Isto acontece porque, de facto, fazer residir as opções políticas na legitimação
democrática implica uma convocação do direito diretamente para construção dessa
legitimidade (já que o direito legitima e limita), i.e., o direito limita negativa e
positivamente o poder, dialogando continuamente com o poder.
Sempre existiram propostas de redução do direito à política (programa finalístico,
levado a cabo através de uma certa estratégia), o que é diferente de reduzir o direito ao
político (conjunto de valores que dizem respeito à ação numa determinada
comunidade, à atuação na polis).
Conclui-se, assim, que o direito é uma atuação do político, mas não
necessariamente uma atuação da política, já que a política implica um plano
estratégico de atuação com uma racionalidade finalística associada.
γ) Os vaLOres e O fatOr CuLturaL
Falamos agora da relação que o direito estabelece com os valores e com a
dimensão cultural.
O direito é um fator cultural fundamental na nossa experiência/hemisfério
civilizacional.
Manifesta-se como um referente autónomo da nossa cultura, uma autonomia
cultural dialogante com as outras dimensões da prática.
δ) O dIreItO COmO síntese seLetIva dOs fatOres

Página 64
menCIOnadOs
Quando falamos do papel do direito na sociedade, consideramos que o direito
tem um papel social, por ser direito, por ter as características que comporta, por ter
os fundamentos que convoca e por ter as consequências que produz.
Este papel social é, simultaneamente, de regulação constitutiva e de
reflexão crítica.
Visto que estas duas dimensões são a síntese contemporânea e os seus pilares de
regulação, poderemos considerar direito se não estivermos este ponto de vista crítico-
reflexivo?
Não.
O direito, sendo uma afirmação com um pressuposto ético e cultural (a partir da
época da idade moderna, pelo menos), vai-se separando da referenciação ético-
moral à procura de uma fundamentação própria. Chegando, inclusive, ao ponto
de, numa perspetiva positivista, abdicar dessa referência para uma fundamentação
transpositiva/suprapositiva, vindo depois a ser criticado exatamente por isso
(recuperando-se, por sua vez, os referentes materiais fundamentais para procurar
conferir o conteúdo e intenção material ao direito, com o grande contributo da filosofia
existencialista, da história do direito, da sociologia jurídica, etc.).
em suma…
Quanto à análise estrutura da sociedade e, assumindo uma perspetiva material,
podemos apresentar três tipos diferentes de elementos materiais irredutíveis aos
constitutivos da sociedade:
1. Os interesses que identificam a dimensão económica da sociedade;
2. O poder que define a dimensão política da sociedade;
3. Os valores que são a expressão da dimensão axiológico-cultural da sociedade.

Interesses Poder Valores

O interesse tem a ver com a nossa Permite-nos compreender que a política Cultura = sistema de valores, dos
relação com o mundo; é o inter-est, o traduz a organização, em termos sentidos e referentes de significação
que está entre nós e o mundo e aquilo estratégicos, da sociedade para que esta humana de uma sociedade
que nos liga a ele se afirme como tal ↓
↓ ↓
É um particular “modo de vida” que se
Todos estamos no mundo porque o Sociedade define, estrategicamente, os vai instituindo na sociedade
mobilizamos para satisfazer as nossas seus objetivos fundamentais através da ↓
necessidades e, em geral, para nos sua dimensão política.
realizarmos ↓ A ação pressupõe sempre uma
↓ fundamentação cujos fundamentos são
O poder representa a encarnação fornecidos pela cultura
O mundo é visto como objeto de uma da política ↓
apetência ↓
Esta desenha um “arco hermenêutico”,
P.e.: um livro serve-nos para alguma Institucionalização da dimensão política porque constitui uma tradição
coisa, por isso podemos dizer que nos da sociedade ↓
ligamos a um livro com uma
determinada apetência/interesse, Os referentes culturais são, desta forma,
porque com o livro satisfazemos certas herdados, embora estejam
necessidades

Página 65
↓ sujeitos a uma permanente revisão
constitutiva derivada de inovadoras
Isto significa dizer que os interesses nos experiências problemáticas que surgem.
permitem manipular o mundo (incluindo
os outros).

ECONOMIA

É o estudo da escolha dos instrumentos


de mobilização dos bens em carência,
para satisfazer certas necessidades e,
assim, dar resposta aos interesses.

Mas o que tem o direito a ver com estas dimensões? Estas três
dimensões são diferentes, mas estão coligadas.
Apresentam-se como fenomenologicamente distintas e irredutíveis, pois
correspondem a sentidos diferentes da nossa posição no mundo.
E sendo elas assim dimensões distintas, como é que se articulam reciprocamente?
O direito é um dos articulantes desta pluralidade de dimensões na
sociedade:
- é critério sobre os interesses no quadro de um poder e, para cumprir essa
tarefa, mobiliza alguns dos valores que o fundamentam
- é um sintetizador seletivo de todas as dimensões, embora aí se afirme com
uma intenção própria (que veremos à frente)

O direito ajuíza do mérito relativo dos interesses, sendo a instância crítica


do poder e que mobiliza alguns valores para realizar estes objetivos, deixando
outros de lado (sendo, por isso, um critério seletivo).

Página 197-270 (especialmente p. 218-270), de Fernando José Bronze – Lições de Introdução ao Direito (Lição 8)

2) O direito na sociedade

Página 66
Será o direito uma função puramente dependente da sociedade?
Por um lado, existem teses que defendem que o direito é, efetivamente, uma
pura função da sociedade e que dela depende.
Para essas orientações, o direito seria um mero resultado dos elementos
materiais irredutivelmente constitutivos da sociedade, sem qualquer
autonomia.
Assim, estas correntes defendem que o direito depende, exclusivamente, da
economia, da política e da cultura ➜ veem o direito como uma realidade fraca,
determinada pelas realidades mais fortes a que se aludiu.
Todavia, identificaremos três linhas de tendência que vão fazer com que,
progressivamente, consideremos o direito enquanto função da sociedade e
não enquanto direito que assume apenas um papel na sociedade (ou seja, que o direito é
e deve ser aquilo que a sociedade determine que seja direito).
São estas conceções redutivistas, pois têm o direito como variável dependente:
α) a redução do direito ao económico
Sumário das influências fundamentais, no âmbito da superação do positivismo, da
relevância da dimensão da economia no direito:
Para o economicismo (que sustenta a redução económica da normatividade jurídica),
o direito é a mera expressão normativa das relações económicas, não
traduzindo mais do que a normação do económico.
Esta é a posição do marxismo originário, onde Karl Marx entendia que a estrutura
económica da sociedade seria a base real e aquela que determinaria
todas as dimensões de sentido e de valor da vida humana, desde a sua
consciência individual à superestrutura jurídica e política que se viesse a
institucionalizar.
Referência à tese marxista e às revisões neomarxistas
A relevância da economia para o direito vem com o pensamento moderno, por isso
temos de recuar até aos fisiocratas para explicar a relação e a relevância da
atividade económica na construção da sociedade.
O liberalismo económico é viabilizado pela compreensão formalista do
direito, ou seja, pela compreensão da intersubjetividade, da liberdade, da autonomia
privada, da liberdade contratual mais especificamente.
A compreensão da liberdade como valor fundamental da construção liberal
espelhou-se em todas áreas, incluindo na económica e, nesse sentido, a delimitação
externa descomprometida do conteúdo é uma das vias para concretização desse
liberalismo económico.
Só que esse liberalismo também suscitou conflitos sociais, onde encontramos o
objeto das análises críticas do direito burguês.
Propostas como a de Karl Marx, para quem a base de construção da sociedade são as
relações de produção na infraestrutura económica e para

Página 67
quem a superestrutura comporta as dimensões culturais, sociais e o direito, enquanto
espelho da organização das relações de produção entre diferentes intervenientes
(nomeadamente no reflexo da atuação dominante de uma das classes face às outras).
Aqui, o económico é o motor do desenvolvimento social a todos os
níveis e, com isso, o direito é um reflexo ideológico do modo de organização
das relações de produção.
Para se considerar que esse direito tem uma componente formalizante é preciso ter
em conta uma construção ideológica de legitimação de um certo modo de produção
(sendo criticável em função de uma assunção ideológica, que poderia levar à superação
do direito por outro modo de regulação).
Ou seja, nesta perspetiva, o económico seria o elemento determinante e o
direito seria o estrato integrante da superestrutura, determinado pelo
económico.
Hoje, as análises económicas dominantes do direito assumem a relevância da
eficiência económica na proposta da construção do direito.
Esta crítica à construção liberal burguesa é um ponto de partida fundamental
para a formação das teorias críticas do direito de inspiração neomarxista.
Na crítica neomarxista, a Escola de Frankfurt teve um influência decisiva,
nomeadamente no que diz respeito ao uso alternativo do direito, na década de
60. Tiveram também influência as propostas sul-americanas emancipatórias, que
falavam dos direitos alternativos num pluralismo jurídico que admitiria a coexistência
de diferentes sistemas ditos jurídicos, ainda que alguns informais, em paralelo com o
sistema jurídico estatal.
Ou seja…
A linha do marxismo e neomarxismo que gerou construções em que a economia era
ideia fundamental, rapidamente conjugou a economia com outras dimensões e
viemos a encontrar referências de teorias ideológico- políticas, assumindo que o direito
é política.
Ora, atualmente, a determinação pelo económico não desapareceu, contudo foi-se
desenvolvendo com base noutros ideários: o grande exemplo que a análise do direito
nos dá vem de uma outra linha de evolução, onde o direito é um facto empírico
constitutivo da sociedade, que dialoga com a realidade em termos pragmáticos ➜ i.e.,
os resultados das decisões judiciais são essenciais para a sua
construção.
Posteriormente…
Dá-se lugar à proposta de que o direito deve permitir o livre desenvolvimento
do mercado e, com isso, restringir as limitações à auto- composição dos
interesses.
O direito deveria, para estas perceções de herança liberal projetadas na análise
económica do direito, restringir as limitações que se põe à livre composição dos
interesses – p.e., reduzir os custos de transação.

Página 68
Mas então, se a superestrutura cultural (direito) também atua sobre a infraestrutura
económica é porque não está na total dependência dela?
 Inicialmente, o pensamento marxista começou por afirmar uma estrita e
monocausal redução da superestrutura (direito incluído) à infraestrutura
económicas
 Depois, a partir da aceitação da evidência de que o direito era o enquadrante
estrutural da economia, foi-se abrindo ao reconhecimento de uma dialética
entre estes dois planos
Ao longo dos anos, a relação entre a estrutura económica e a dimensão ético- jurídica
da sociedade tem variado.
O económico é ainda hoje, o referente decisivo, mas nem sempre o foi, e o
marxismo compreendeu isto mesmo e passou a distinguir o elemento dominante do
elemento determinante da história.
Se a tese sustentada pelo economicismo fosse verdadeira, a relação entre a
infraestrutura e a superestrutura seria constante e seria sempre o económico o
fundamento determinante e o elemento dominante da história.
No entanto, esta relação tem-se modificado ao longo dos anos, e hoje é igualmente
pertinente distinguir a racionalidade económica da jurídica.
Racionalidade económica: é funcional, instrumental e de meio-fim, que só ajuíza em
termos de eficiência, pelo que deve ser qualificada como uma racionalidade técnica.
Sendo que a economia é a ciência que a justifica e que se dedica a equilibrar os
diversos interesses que surgem no palco comunitário, isto significa que se a realidade
social fosse totalmente dominada pela economia, haveria apenas uma
racionalidade puramente técnico-funcional.
Esta racionalidade não se afirma em exclusivo, pois já sabemos que nem
todos os meios podem/devem ser considerados válidos.
Os interesses não podem ser avaliados em termos de pragmática eficiência, sendo
necessário atender à sua válida satisfação, já que existem referentes culturais
mobilizados para ajuizar esses interesses que vão surgindo.
Assim…

SeAaintencionalidade condicionante
realidade social da racionalidade
fosse totalmente de ambas
dominada pelaé economia
diferente uma vez
haveria
que a racionalidade do económico se centra na eficácia
apenas uma única racionalidade: a racionalidade puramente técnico- (assentando
numa eficácia
funcional, o que pragmática e de caráter
poderia resultar no perigo funcional/instrumental
da instrumentalização comdo
base
direito numa relação de meio-fim) e a do racionalidade do jurídico
enucleia-se na validade.
Tudo isto mostra não ser o económico o determinante exclusivo.

Página 69
aos interesses.
Em relação à apreciação crítica da teoria redutivista do direito à economia:
• O jurídico também atua sobre o económico, como é reconhecido pelo próprio
pensamento marxista;
• O tipo de relação entre a esfera do económico e a esfera do jurídico tem variado de
época para época;
• Se a intencionalidade (que condiciona a racionalidade) de ambos é igualmente
diferente (a do económico centra-se na eficiência, enquanto que a do jurídico tem como
núcleo a validade), então vemos que económico não é o seu determinante exclusivo ➜
podemos concluir que o económico não reduz, nem teoricamente nem ao nível da
análise histórica, nem atendendo à intencionalidade os dois domínios em controlo: o
ético-jurídico, tendo, contudo, que contar com ele.
β) A redução do direito ao político
A comunidade tem no político uma dimensão constitutiva do seu próprio
sentido, uma vez que é nele que se encontram os valores e os princípios que o
humanizam.
O político é, assim, o húmus fundamentante da prática de qualquer
comunidade concreta.
Distingue-se, portanto, da política que se assume como um programa finalístico que
tem a sua estratégia e que é assumido por um governo.
Para esta concessão (a da política), o direito seria somente a concretização da
voluntas (vontade) política, constituindo como que “a política noutros termos”, ou
seja, o direito seria apenas uma política concretizada em normas.
Será o Direito redutível à política?
É óbvio que o direito cabe no político, pois é aí que ambos encontram o húmus em
que radicam.
Portanto, é então necessário apurar se o direito não passa da política
traduzida em normas.
A autonomização da política coincidiu com a afirmação do Estado moderno
que assumia a titularidade de toda a prática da comunidade, e portanto, também do
direito. Foi nesta época que se cedeu à tentativa de reduzir o direito ao político.
Numa longa fase pré-moderna, o direito era basicamente constituído pelos costumes,
pela jurisprudência e pela doutrina. Havia também leis, mas estas possuíam um valor
meramente declaratório de uma juridicidade que as transcendia.
Com o Estado moderno, o direito passou a ser a legislação e, portanto, uma mera
expressão da vontade do Estado, mas também um fator de limitação do seu
poder.
Mais tarde, assumiu-se como critério orientador das próprias ações

Página 70
concretas.
Foi, portanto, a partir da época pré-moderna que se criaram condições para reduzir o
direito à política, à prescrição da vontade do Estado.
Para esta tese, o direito não é mais do que a vontade da instância
politicamente soberana.
O pensador que mais se identificou com este redutivismo foi Hegel que, ao
compreender o Estado como a última expressão do espírito objetivo e da ética, inclui
nele todo o universo prático e portanto, também o direito.
Facilmente questionamos este redutivismo tendo em conta que o direito não está
inteiramente compreendido na lei.
Para além disso, se aludirmos ao plano institucional, o poder será legítimo se
estiver em consonância substantiva com os valores que entretecem o
político.
A legitimidade democrática, hoje em dia dominante, radica no reconhecimento
mútuo a nossa dignidade, ou seja, de nos compreendermos uns aos outros enquanto
pessoas.
Por detrás e acima do poder do Estado, afirma-se a dignidade da pessoa..
Isto demonstra que a dimensão axiológica legitimante do poder é o mesmo
conjunto de valências que o direito assimila, razão pela qual a legitimidade do
poder se objetiva numa autêntica normatividade.
Logo, o poder converge com o direito, não existindo qualquer tipo de
subordinação ➜ é no político que o poder encontra a sua legitimidade e que o
direito tira a fundamentação da validade que nuclearmente o predica.
O poder invoca a normatividade para se legitimar e, a normatividade precisa do poder
para existir e subsistir, “nenhum direito sem poder, nenhum poder sem
direito”.
Ora, o conteúdo material do poder está condicionado por uma
normatividade alheia ao poder. Se, efetivamente, o poder determinasse as
validades estas estar-lhe-iam subordinadas e o poder disporia sempre delas.
Hoje, releva-se o poder delimitado, nomeadamente pelo Estado de Direito (que é
uma limitação do poder em nome do direito, i.e., das exigências predicativas da
dignidade ética que nos reconhecemos).
O Estado de direito – uma delimitação ao poder político
O Estado de Direito representa uma tentativa de resolver o problema entre o
poder e as validades.
No entanto, também este “tipo” de Estado foi sofrendo uma evolução.
Na época do Estado de Direito de legalidade formal, invocava-se uma legalidade
criada pelo poder, para controlar o poder.
Nos dias de hoje, diferentemente, invocam-se os direitos fundamentais, afirmando-
se uma normatividade translegal e transconstitucional. Fala-se num

Página 71
Estado de Direito material porque se afirmam valores jurídicos que estão
acima da própria legalidade.
A juridicidade é autenticamente o fundamento material do poder, e por
conseguinte, da legislação.
No entanto, é ainda essencial ter em conta que mesmo que a legislação seja a forma
jurídica mobilizada pelo poder, isso não significa que o jurídico se esgote na legislação.
Ora, mesmo de uma perspetiva estritamente política, vai-se compreendendo a
impotência do poder para responder a todos os problemas com que se vê
confrontado.
De facto, existe uma relação entre o Direito e a Política, mas isso não significa que o
direito se identifique e se reduz, necessariamente, com/na política.
Neste nosso amplo hemisfério cultural, reivindicamos a nossa autonomia e
dignidade éticas, recusamo-nos a pôr a nossa liberdade de pessoas nas mãos de quem
quer que seja que pense por nós e assumimos nós mesmos o risco inerente à tentativa de
realização das possibilidades que nos predicam, por isso, reconhecemos um
sentido específico ao direito.
Podemos ainda, fundamentar a afirmação acima destacada, socorrendo-nos de
um ponto de vista intencional/material:
1. Por um lado, o direito e a política têm racionalidades muito distintas.

A racionalidade política é uma estratégia finalisticamente prosseguida, sendo por


isso, discriminadora.

Em contrapartida, a racionalidade jurídica/normatividade, como validade que é,


tem carácter universal, perfilando-se como um fundamento dialogicamente constituível,
mobilizável e afinável.
2. Por outro lado, o direito e a política sempre se afirmaram, na história,
como realidades intencionalmente distintas.
Ora, num primeiro tempo, o direito natural opunha-se às estratégias da
política, e os critérios que oferecia eram utilizados para aferir da validade dessas
estratégias.
Num outro momento, o direito identificava-se com a legalidade, e, portanto,
os valores jurídicos e políticos coincidiram (os três ideais de igualdade,
liberdade, segurança), não havia, portanto, qualquer subordinação de um à outra.
Todavia, esta coincidência logo se desfez quando a lei deixou de ser o estatuto
universal e o enquadrante estável e racional das liberdades, i.e., a pedra filosofal da
vivência comunitária, e passou a ser um mero instrumento da política.
Esta constatação leva a que, hoje, se insista na distinção entre lei/direito, a
significar a existência de uma normatividade vigente constituída pela jurisprudência e
pela própria realidade jurídica, que reconheça valores jurídicos translegais.

Página 72
Logo, concluindo, o direito distingue-se da legislação política e, portanto,
não se pode pensar uma redução linear do direito à política.
γ) A redução do direito ao axiológico-cultural
Se assumirmos que o direito, enquanto ordem normativa de uma certa coletividade
que tem uma certa fundamentação, intenção e conteúdo específicos que lhe conferem
autonomia, saberemos que terá, obviamente, uma palavra a dizer na vida social por ser
direito.
O que é diferente de dizer que o direito será tanto melhor se se converter na
instrumentalização das outras ordens da sociedade.
O direito foi-se autonomizando progressivamente.
Desta forma, questionamos a aptidão para o direito se adaptar à sociedade. Por isso,
discutimos (ao nível das notas caracterizadoras e dos efeitos da OJ,
do ponto de vista da objetividade, da institucionalização e da racionalização) que a OJ
vive numa constante tensão dialética entre a necessidade de garantir
alguma estabilidade às nossas relações jurídicas e a necessidade de
responder aos desafios da dinâmica da mutação social que é intrínseca à
convivência humana.
Resta, agora, saber como queremos responder a essa tensão dialética. Se é colocando
o direito numa regulação economicamente
/politicamente/biologicamente eficiente ou se havemos de o pensar, mantendo- o na
tensão.
Pois, claro que se instrumentalizarmos o direito a tensão fica resolvida.
Não queremos dizer que direito se resume a uma dimensão axiológica (existe,
sim uma referenciação do direito a valores, sobretudo se pensarmos nesses valores
como universais, imutáveis, tal como o pensamento jurídico moderno- iluminista
pensou o direito natural), pois, assim, cairíamos no extremo oposto, de fazer do
direito uma afirmação ideal de valores, sem projeção/adequação prática.
Por isso, falar da autonomia do direito não é falar de uma
fechadura/clausura do direito sobre si mesmo (“o direito não é uma ilha”) que
afirma contra tudo e contra todos uma axiologia atávica, mas significa, sim, pensar no
direito como uma normatividade/orientação que se quer vinculativa para o
comportamento dos sujeitos na prática social.
Por outras palavras, o direito é uma afirmação de um dever ser que é/a que
compete ser (não basta afirmar uma validade, é essencial associar uma eficácia).
Estas duas dimensões constituem a vigência do direito (iremos fazer uma análise
mais pormenorizada em IAD II).
O direito existe em vigência, que é a conjugação da validade (dimensão
ideal, axiológica) e da eficácia (dimensão fáctica, operacional e prática da projeção da
realidade).
O direito é uma normatividade vigente contextualizada, sob pena de não

Página 73
ter qualquer relevância do ponto de vista prático.
A intenção do direito não é um remédio e sim a afirmação de um sentido
(axiologia) que se quer realizar.
Por isso, tantas vezes, há a distinção da validade e da legitimidade.
Estas dimensões não existem separadas, conjugam-se decisivamente e a
verdade é que, hoje, além de uma construção dialógica da realidade, não temos uma
posição heterónoma da validade (a não ser que assumamos uma perspetiva
jusnaturalista, que afirma a ideia de que o direito positivo vem de fora da conjugação
intersubjetiva, sendo imposto por uma entidade racional, cosmológica, teológica ou
mesmo humana, pressuposta como necessária e inevitável).
O que está em cima da mesa, atualmente, é pensar no direito como uma
validade constituenda, dialogicamente, onde não encontramos uma
predeterminação da normatividade mas uma contínua discussão sobre o
que há de ser essa validade associada a uma legitimidade que irá seguir
(associadamente democrática) e que nos confere responsabilidade a todos.
No fundo, é pensarmos em direito positivo vigente que é na prática e será tanto mais
eficaz quanto menos dermos por ele, pois isso significa que a normatividade está
conjugada pelas convicções vigentes e as práticas instaladas/constituendas
numa determinada comunidade histórico-concreta.
Este é um processo exigente, que implica que contínua e voluntariamente nos
empenhemos em participar/tomar parte na discussão sobre esses fundamentos e a sua
contínua constituição.
É sobretudo esse o objeto da nossa preocupação: Quid ius?
Procuramos, assim, pôr o problema da reflexão sobre o que estamos a fazer, o que, na
conjugação dos diferentes operadores jurídicos, não implica que estejamos a
pensar tudo desde o princípio, mas sim que sejamos todos tributários
para perceber tudo o que a dogmática da própria OJ vigente constitui para
dialogarmos com ela.
Noutro sentido, a construção interna do direito também irá aplicar diferentes
dimensões, não apenas a dimensão da legislação, que compõe o sistema jurídico no seu
conteúdo.
Todas essas dimensões contribuem para a criação do direito e relacionam- se
dialeticamente entre si, constituindo assim a normatividade jurídica vigente (que é o
direito).
Mas quais as dimensões?
Estudá-las-emos posteriormente, mas podemos enunciá-las:
 Os princípios normativos (inspirados, como todos os critérios, no sentido do
direito)
 As normas legais
 As jurisprudências judiciais (conjunto de resultados das decisões judiciais)
 As jurisprudências doutrinais/dogmáticas (conjunto de reflexões

Página 74
/discussões sobre o sentido teórico-prático do direito)
 A realidade jurídica
 Os bordões procedimentais (conjunto de mecanismos operadores)
Precisamos, então, de compreender que, quando falamos de uma
compreensão pluridimensional do direito, que não se reduz à lei e que é
dialeticamente constituenda, todas estas dimensões são convocadas.
O direito não é apenas a lei, mas existem funções que só a ela cabe cumprir, devido
ao facto de vivermos num Estado constitucional.

Precisamos de compreender: Como é composta a sociedade materialmente? Quais as suas dimensões?


AULA PRÁTICA
A sociedade tem dimensão económica (composta por interesses, necessidades subjetivas, expectativas sociais que se quer ver satisfeitas),
política (composta pelo poder) e axiológico-cultural (composta pelos valores).

Mas o direito reduz-se a alguma destas dimensões? Será que é uma dimensão variável de alguma delas? Não. Porquê?

 O direito não se reduz à economia

Não se pode considerar apenas os interesses económicos (que são aquilo que nos separam). Contudo, também não podemos desconsiderar a importância da
economia do direito: o direito tem de considerar os interesses económicos (dado que não é uma ilha isolada).

É esse distanciamento entre economia e direito que permite a este último valorar a atuação de interesses nesse domínio.

 O direito não se reduz à axiologia

O direito fundamenta-se em valores, mas será que se reduz a esses valores?

Essa dimensão de validade é essencial, mas para ser direito vigente não pode ser apenas válido: é importantíssimo que o seja, mas se o direito se reduzir à
validade deixa de ser vigente (i.e., o direito não se reduz aos valores, tem de ser eficaz na prática e ser socialmente efetivo).

 O direito não se reduz à política

Distinguimos, primeiramente:

- Político = conjunto de valores presentes numa determinada comunidade, substrato dos valores, húmus axiológico da sociedade

- Política = realização estratégica de um determinado programa de fins (programa finalístico, levado a cabo através de uma certa estratégia) Desta forma,

percebemos que a política alimenta-se dos valores que integram o político, mas não se confunde com eles.

São sempre possíveis várias políticas dentro do mesmo quadro político. O que faz sentido porque, sobre o mesmo conjunto de valores, é sempre possível assumir-se
várias políticas.

Porque precisamos de saber se direito é uma pura variável dependente da política/poder estadual?

A lei é uma criação estadual (civil law). Se reduzirmos o direito a um conjunto de leis criadas pelo Estado, o fundamento do próprio Estado resultaria daquilo
que ele autodefinisse através da lei. O Estado não pode, através dos instrumentos legislativos, dar a si mesmo o fundamento dessa atuação, i.e., o fundamento do
Estado não pode estar só na lei.

A ideia de reduzir o Estado ao poder político só surge num contexto moderno, pois só com a afirmação do Estado Moderno é que se deu a
autonomização da política.

 Antes da afirmação do Estado Moderno, o direito resultava de diversas fontes (costumes, jurisprudência, doutrina, etc.) – o direito tem história mais
longa que próprio Estado.
 Posteriormente, foi no período moderno-iluminista que se deu a separação de poderes: se a lei é um instrumento do Estado (e não há direito para além da
lei), então o direito é uma expressão da vontade do Estado. Compreende-se conforme o Estado que estamos a considerar (absoluto – vontade do monarca
= Estado, liberal – vontade representativa).
 Com a afirmação do Estado Social, pós 2ª GM, a lei passa a ser vista como um instrumento de intervenção social (do qual o poder estadual se serve para
realizar esses fins que se propõe alcançar).

Colocado este problema, faz sentido distinguir Estado e direito?

Apesar de o direito ter uma ligação forte e inegável, faz sentido distinguir estas duas dimensões? Sim.

Distinguimos em dois planos:

Página 75
AULA PRÁTICA
 Institucional

Consideramos o problema da legitimidade do poder (a legitimidade não pode ser definida pelo próprio poder político, que deve fundamentar a sua atuação
nos valores assumidos, tutelados e protegidos pelo direito).

O fundamento da legitimidade do poder está no político, logo, não há subordinação entre Estado e direito, pois é este último que assegura que a intervenção do
Estado não atenta contra os valores.

Reconhecemos, também, a inviolável dignidade ética de todos – a dimensão axiológica que delimita e legitima o poder é a mesma na qual o direito
fundamenta a sua validade.

O direito e política convergem no mesmo político.

O direito também precisa do Estado para se afirmar em termos práticos: o poder convoca os valores para se afirmar, mas ao mesmo tempo a normatividade
precisa do poder para se afirmar.

Onde vamos encontrar os critérios que regem a atuação material do poder e permitem aferir a sua validade?

No contexto iluminista, os critérios eram determinados pelo direito natural (algo transcendente à lei)  o poder político e validade não coincidiam. E quanto ao

Estado de direito?

- formal

Com o aparecimento do Estado de direito formal e com o fim do absolutismo, identifica-se o direito pela lei (esta alteração pretendia reagir contra o abuso do
poder do monarca).

Princípio da separação de poderes: é necessário garantir a moderação e controlo recíproco dos poderes  lei = instrumento de defesa dos indivíduos em face da
atuação do Estado (resistência à opressão do Estado).

Quer isto dizer que o poder estava limitado pela lei (poder legislativo era um supreme power): poder estadual só pode intervir no âmbito daquela moldura
definida e fundamentada na lei.

Quem criava a lei? Poder estadual fundamentava a sua atuação na lei que ele próprio criava  existe uma coincidência entre poder e direito (identificado com
lei), e não uma subordinação.

- material

Hoje, não reduzimos o direito à lei.

O direito não se reduz à lei e a lei deixa de ser vista como quadro que delimita a atuação do Estado  o direito passa a ser um instrumento de atuação, que
pretende atuar na comunidade.

Será que direito está subordinado à lei criada pelo poder estadual? Não.

Mesmo que a lei tenha um papel fundamental, o direito não se reduz a essa legislação. Reconhecemos, para além dos critérios legais, as outras fontes (doutrina,
jurisprudência, etc.) e também os fundamentos dos critérios (onde reside a autonomia do direito – os valores transcendem a própria legalidade, estando em
condições de a limitar).

São esses valores que ajuízam a atuação do Estado, que só será legítima se estiver de acordo com estes valores que partilhamos e que estão fundados na
dignidade da pessoa humana (mesmo que estejam espelhados na CRP, não podemos pensar que é o poder estadual que os faz: verdadeiro fundamento material são
os valores juridicamente tutelados).

 Intencional / material

Aqui distinguimos o Estado e o direito (já visto anteriormente).

Mas quais as funções do direito na atualidade?


Apresentamos, agora, uma proposta de sistematização das funções do direito hoje:

Página 76
Página 271-306 (especialmente p. 283-306), de Fernando José Bronze – Lições de Introdução ao Direito (Lição 9)

Página 217-242, de Mário Reis Marques – Introdução ao Direito

3) A sociedade função do direito


Não é o direito que irá reduzir-se à sociedade, pois é esta última que irá instituir-se
naquilo que o direito lhe pode transmitir.
Vivemos numa civilização de direito, o que é, por si só, uma opção.
Em vez de dizermos que o direito é funcionalizado à sociedade, o que está em causa é
que um certo sentido de sociedade é missão do direito – a sociedade que o
direito constitui é uma sociedade diferente daquela que seria constituída
sem direito.
Abordamos, rapidamente, “Direito ao espelho”, onde o autor põe em causa o
ubi societas ibi ius – pois isso não é, para ele, garantido.
Poderá ser mais fácil que ubi ius ibi societas do que ubi societas ibi ius, mas tudo
é rebatível por depender do tipo de sociedade que o direito pretende criar.
A partir da sociologia, percebemos como são constituídas as relações
intersubjetivas juridicamente relevantes e sabemos que algumas construções da
ideia de Estado implicam um pressuposto de contrato como justificação
para a vinculação jurídica.
Desta forma, excluímos boa parte das relações intersubjetivas (pois, sabendo que
nem tudo pertence ao direito, temos de perceber como o organizamos: num
extremo estão os comunitarismos, que entendem que cada sujeito só se compreende
através da ligação à comunidade, e no outro estão aqueles que não

Página 77
permitem que um sujeito se ligue à comunidade; não estamos nem num extremo nem no
outro).
Estamos perante a constatação de que há, de facto, relações intersubjetivas que
podem gerar relevância jurídica que não resulta de uma vinculação prévia, consciente e
livre e há outras que resultam do contrato.
Ora, claro que nem tudo aquilo que faz parte da nossa vida diz respeito ao direito:
porque a intenção normativa do direito pode não abranger essas dimensões ou porque
nós não admitimos que o direito interfira ➜ é um facto cultural e histórico, que
mantém acesa a consciência de que podia ter sido de outra maneira, mas não foi.
Procuramos, assim, compreender para discordar: existem quatro pontos fundamentais
dado que estamos perante um certo tipo de sociedade como resultado da
atuação do direito (“civilização de direito”):
a) rápida alusão aos problemas do “por-quê?” (do fundamento originário) e
do “para-quê?” (da função humano-social) do direito
De facto, desde o início da reflexão das relações entre o direito e a sociedade
(respeitantes à 7ª lição) que tem sido posto na conjugação entre o que é o direito e
para que serve o direito.
A questão com que nos deparamos é essa.
“O que é o direito?” é a pergunta orientadora pelo sentido. “O quê direito?” / Quid
ius?
“Por-quê direito?” é a pergunta que busca pelo fundamento originário
(porque não o não direito?). É realmente uma opção cultural e histórica.
Temos expressões de civilizações cuja organização não corresponde ao direito
(cultural e historicamente assim reconhecido), falando das expressões de um “Estado
de não direito”: um Estado cuja organização do ponto de vista axiológico, normativo
e prático é contrária ao direito.
Quando perguntamos “O quê? Por-quê?” estamos à procura de saber do que falamos
e porque chegamos aqui: perguntamos à história sobre o direito com que nos
deparamos.
E “Para-quê direito?” Qual a função do direito na sociedade?
O direito é uma regulação instrumentalizada? É isso que deve ser? Quais são os
horizontes? Quais são as fronteiras? Para que serve? Quem é que está em causa? O que
é que está em causa (nessa relação)?
No limite do “o quê”, “por-quê” e do “para-quê” implica que perguntemos que
normatividade, qual o seu fundamento e qual a sua intencionalidade prática?
Falar dos limites do direito é decisivo.
De facto, para quem inicia uma vida social adulta, existem muitos desafios
apresentados no ponto de vista das relações intersubjetivas, com o meio ambiente, com
o outro, com os projetos, com os ideais, etc. e está tudo em causa

Página 78
quando falamos do sentido e da funcionalidade prática do direito.
Quem está em causa?
Os sujeitos de direito, titulares de direitos e deveres.
Põem-se, então, questões para definir o que é ser sujeito de direito ➜ o referente
axiológico (não apenas antropológico) do sujeito de direito é a pessoa, num certo
sentido cultural.
Ora, isto leva-nos a dizer que ser sujeito pode não corresponder ponto por ponto a ser
pessoa, tal como a ser indivíduo – do ponto de vista cultural.
O individualismo liberal assumia como sujeito de direito uma dimensão do
ser humano que não implicava toda a complexidade da construção da
pessoa, estando em causa fundamentalmente a relação de autonomia (e não a da
referenciação axiológica da relação entre essa autonomia e a responsabilidade).
Ser sujeito pode não implicar ser pessoa, por não lhe ir referido o juízo de dignidade
e por se considerar que o sujeito pode não ser livre.
Concluímos, então, que há duas dimensões fundamentais na construção da
pessoa (jurídica):
 Dignidade
Uma ineliminável dignidade ética.
- ineliminável: não se pode eliminar? De facto, pode. Mas é juridicamente
ineliminável? Sim, pois é conferido ao sujeito humano, que é diferente de todos os
sujeitos não humanos.
- dignidade: o que significa? É uma noção cultural. Podemos falar de dignidade no
mesmo sentido em todos os lugares? O que é ser digno? Ser digno é uma atribuição de
mérito? Estatuto? Valor? Direito? Que relação tem com o direito?
- ética: na relação intersubjetiva com o outro, que põe no outro um absoluto ético, i.e., o
“outro de mim” e “eu como o outro do outro”.
 Liberdade
Aquela que é societariamente consonante, comportando a autonomia e
responsabilidade próprias das pessoas jurídicas.
O direito não é um obstáculo para a realização da liberdade, mas sim um veículo para
uma liberdade que permita uma convivência pacífica.
Desta forma, o direito possui, obviamente, limites materiais: p.e., se um
proprietário exerce o seu direito de propriedade construindo um muro única e
exclusivamente para impedir que o proprietário vizinho tenha vistas para o rio, diremos
que o sujeito proprietário que construiu o muro incorreu em abuso de direito – do seu
próprio direito!
Em suma…
A pessoa jurídica é uma especificação, que constrói uma comunidade jurídica

Página 79
a partir do sentido global de pessoa: a pessoa jurídica como sujeito com ineliminável
dignidade ética (proposta decisiva: pressuposto ético da pessoa como sujeito de direito),
autonomia e responsabilidade.
Estes são os valores-horizonte de referenciação da axiologia na nossa construção
cultural.
Logo, aquilo que o direito é hoje é resultado de uma evolução.
b) a função específica do direito e a sua condicionalidade histórica:
referência aos três grandes ciclos histórico-funcionais (funções do
direito)
α) o direito pré-moderno
Vem desde a antiguidade clássica à idade média.
O direito aparece com uma função legitimante e intenção declarativa de
uma ordem natural pressuposta, em que o ser humano se inscreveria ao nascer e
da qual dependeria para a sua própria identificação cultural – manifestação da inserção
do ser humano numa ordem natural pressuposta (por referência teológica, a lei
eterna ou cosmológica), independentemente da sua vontade.
O direito natural com diversas sedes (referenciação cosmológica/ontológica a
apelar ao princípio racional de construção da normatividade e teológica a pressupor na
razão divina o sentido de construção de direito natural a partir da ideia de lei eterna) e
como fundamentação do direito positivo.
Esta divisão tripartida (do século IV e V) perdurará no pensamento jurídico ocidental
até ao século XVII, na Idade Moderna.
β) o direito moderno-iluminista
O direito surge com uma função constituinte de uma legalidade que nasce do
pensamento moderno, onde se abdica da influência divina na ação humana e se
assume o modo de estabelecimento das relações intersubjetivas dos sujeitos o seu
nascimento livre e desvinculado mas que, por sua vontade racionalmente
confluente, se relacionam entre si juridicamente.
Surge, então, a primeira forma do Estado moderno que conheceremos (e que aponta
para a separação de poderes).
Assim, o teocentrismo é substituído pelo antropocentrismo: caminho para a
consideração de que o direito deve ser criado para todos (ainda que implique a
divisão da sociedade em classes), que confere à lei uma manifestação racional e
politicamente legitimada para a criação do direito.
O pensamento moderno-iluminista conflui que o direito deve ser lei (a definição
da posição relativa dos sujeitos), assentando na racionalidade humana.
Aponta-se aqui para um Estado de direito demoliberal, cujo princípio da separação de
poderes é essencial.
γ) o direito contemporâneo
Surge uma proposta de uma validade axiológico-normativa e

Página 80
reflexivamente crítica como função do direito na sociedade – temos de
salientar que esta não é a via única, necessária ou maioritária, mas é a proposta
considerada.
Iremos, então, pensar no direito com uma função regulativa, constitutiva de um
certo sentido cultural, e com um papel de reflexibilidade prática que obriga a que se
discutam os seus fundamentos para se perceber qual o sentido normativo pretendido
(para que seja vigente e, com isso, quanto menos se der conta por ele mais eficaz seja,
pois aí o direito corresponderá à valoração intersubjetiva da convivência pacífica,
havendo um consenso).
Criar direito é papel de uma entidade legitimamente formada para tal e que
é criado para todos.
Hoje, há a colisão dos discursos e o direito é pressionado pelas outras áreas
da sociedade, o que o leva a reagir de formas diferentes e, assim, formalizar a lei e
abster-se à assunção de fins (tentando recuperar a autonomia).
Nota:
Salientamos Niklas Luhmann, que defende que o direito tem a função de
dirimir/dissolver conflitos sem se comprometer com os objetivos que os outros
subsistemas da sociedade, para lá do jurídico, pretendem prosseguir.
Neoformalismo do direito em crítica ao neomaterialismo: afirmação de que o direito
tem uma dimensão material de valor axiológico de diferente substrato cimento
agregador e que pressupõe a evidente evolução histórica da ideia, mesmo que
continuemos a falar sempre de um direito natural.
Isto verificou-se até chegarmos à ideia de que o direito natural pode ser
absorvido através da lei (entre os séculos XVII e XVIII) sendo, assim, que se
assume a lei como fonte principal do direito: pensamento (positivista) de que criar
direito é papel de uma entidade legitimada para tal.
c) determinação da função contemporânea do direito
Hoje, depois da evolução e de posta em causa a formalidade traduzida em
formalismo proveniente do século XIX, encontramos diferentes funções do direito,
relembrando que falar destas é uma opção.
 função regulativo-constitutiva
 função legitimante e crítica
O que quer isto dizer em termos práticos?
Poderíamos dizer que direito será tanto melhor quanto mais adequado for aos fins
que lhe são postos de fora.
Assim, o direito tem de se adaptar à sociedade, não significando que seja
acriticamente aquilo que a sociedade lhe quer impor, pois aí corremos o risco de
deixarmos de ter direito.
Contudo, há também o poder da consideração de que o direito estabelece um
formalismo excludente (fechado em mecanismos complexos formais) ou o de
afirmar que o direito é tanto melhor quanto mais acrítico for.

Página 81
Em qualquer um dos casos, há perspetivas que radicalizam aquilo que o direito pode
ser.
Ora, dizer que direito tem um fundamento material, intersubjetivamente
constituído e que afirma valores projetados/efetivados na sociedade é uma
opção (entre outras possíveis).
O que queremos que o direito seja está em contínua discussão.
Função contemporânea do direito, segundo Pinto Bronze
Temos cada vez mais sociedades complexas, heterógenas, plurais e desatualizadas,
em que a afirmação das diferenças vai cada vez mais tomando parte vs. um suposto
tronco maioritário.
Com isso, procuramos perceber, enquanto juristas, o que o direito pretende ser e
como queremos contruí-lo para o futuro.
α) função integrante
De facto, nestas sociedades heterogéneas, o direito surge como único referente
integrante e comum, que torna possível a clareza das relações
intersubjetivas e deixa, assim, de ser poder.
Existem, de facto, referentes muito mais valiosos nas relações intersubjetivas do que
aqueles que o direito estabelece, no entanto, quando estamos perante a ausência de
outras notas comuns de orientação ao sentido da ação e da orientação,
temos o direito enquanto agente integrante.
O direito é, assim, um apoio axiológico a um sentido de construção da
intersubjetividade, o que não significa a concordância individual das prescrições que
o direito estabelece mas sim que o direito é uma expressão cultural em que se
projeta o sentido das relações intersubjetivas.
Nota:
Esta função integrante hoje não é tão enfatizada quanto já foi e quanto pode ser, i.e.,
dizer que o direito tem uma base axiológica que é intersubjetivamente construída é
tomar um compromisso decisivo e, com isso, dizer que tem uma função integrante
confere ao direito uma relevância fundamental nas nossas relações intersubjetivas.
Nós estamos numa civilização de direito e, sabendo que há zonas da nossa
intersubjetividade em que não admitimos que o direito interfira, há outras em que o
direito é o único referente comum.
Posto isto, poderíamos falar dos princípios fundamentais consagrados na CRP: a
consagração histórica constituenda (p.e., o art. 13º/1/2 da CRP) é uma
dimensão fundamental e histórica do direito.
Reconhecemos a esta função integrante três dimensões: αα)
função de tutela de valores e interesses fundamentais
O direito estabelece os pilares fundamentais da intersubjetividade jurídica
e, com isso, a consagração dos princípios, direitos e deveres fundamentais
no DC.

Página 82
Não ficaremos pela referência ao DC: temos como horizonte fundamental da
tutela de última ratio que a OJ garante o direito penal, que surge como uma
manifestação de última ratio do ordenamento jurídico às agressões que lhe sejam
dirigidas.
Ora, mas de que agressões trata o direito penal?
Nem todas as nossas relações intersubjetivas são juridicamente relevantes e, mesmo
que sejam juridicamente relevantes, nem todas são jurídico- penalmente
relevantes.
Só é jurídico-penalmente relevante aquilo que o direito penal determina através do
princípio da legalidade criminal, no art. 29º da CRP (depois de desenvolvidos nos
art. 1º, 2º e 3º do CC).
Este implica que só seja jurídico-penalmente relevante/penalmente considerável
como crime e punido como tal a ação ou a omissão que estejam tipificadas em
lei prévia e certa que torne essa ação/omissão um crime.
Nota:
Isto mostra uma opção fundamental que advém do pensamento moderno- iluminista:
pressuposição de garantia da tutela de interesses e valores fundamentais
mostra-nos as fronteiras da relevância jurídica.
Desta forma, o direito, na sua função integrante, deve efetuar a proteção dos
interesses e valores fundamentais da comunidade (com dignidade
constitucional), a projeção direta na prática através do DC e a determinação do
que seja jurídico-penalmente tutelável ou tutelado e em que termos.
(Existência de uma corresponsabilidade atribuída pelo DC). ββ)
função de resolução de conflitos de interesses
Se na dimensão anterior tínhamos um sujeito-cidadão, recuperando o que dissemos
para a linha ascendente da OJ, aqui temos um sujeito de direito que desenvolve a
sua autonomia e autodeterminação, sobretudo enquanto sujeito de direito
privado.
Encontramos a tutela fundamental do direito civil e do direito comercial, pertencente
à função integrante na descrição da posição relativa dos sujeitos (conferindo o
seu direito de autonomia com a não interferência e a participação voluntária e a
vinculação através dos contratos).
γγ) função de garantia
Leva-nos a recuperar a questão da legitimidade do poder, conferida pelo direito.
De facto, ao direito cabe a institucionalização, por um lado, e a limitação, por
outro, do poder. Vemo-lo na organização política (DC) e nas realizações (direito
administrativo).
Cabe-lhe, assim, a garantia dos direitos e deveres fundamentais.
β) o sentido negativo e dogmaticamente formal da intenção imediata da
função integrante

Página 83
Dizer unicamente que a função integrante tem um sentido negativo significa
dizer que o direito é integrante pela negativa – funcionando como uma
delimitação externa (que não faria sentido).
P.e., no art. 13º da CRP, temos o princípio da igualdade que não está apenas consagrado em termos formais, dado que há
várias dimensões materiais da igualdade que estão consagradas na CRP.

O sentido de igualdade formal (herdado pelo pensamento moderno-iluminista) foi posteriormente temperado pela exigência da
procura da realização de um certo nível de igualdade material, que corresponde a uma “correção” daquilo que o formalismo liberal
propôs (i.e., constatando a condição do ser humano em concreto nas suas circunstâncias específicas e conferindo uma igualdade
formal, não bastaria para preencher aquilo que a prática mostrou ser objetivo do direito).

Mas não é isso que está em causa: há uma tutela fundamental de discrição
que o direito garante – a não interferência indevida dos outros sujeitos e do próprio
Estado, o que anui a autonomia a cada sujeito – permitindo uma convivência
pacífica.
Então...
 Primeira dimensão da função integrante: garantia recíproca/tutela de discrição e
de participação (salvaguarda das subjetividades de cada um), correspondente ao
sentido negativo.
 Segunda dimensão da função integrante: sentido regulativo-constitutivo e função
de validade legitimante e crítica, correspondente ao sentido positivo.
y) o sentido positivo específico do direito como validade
A integração que o direito confere também vale pela positiva.
Vamos considerar no direito a afirmação de um sentido material/de uma
validade específica na normatividade jurídica (a validade que conferimos ao
direito e que é intersubjetivamente construída com força normativa).
Encontraremos, assim, uma função regulativo-constitutiva e uma função
crucial de reflexão crítica (solução de validade legitimante e crítica de si próprio
– do direito – e do poder do Estado com que se relaciona). αα)
função regulativo-constitutiva
Determinação da normatividade específica da validade jurídica. ββ)
função de validade legitimante e crítica: o Estado-de-Direito
A ideia de Estado de Direito: relação dialética (e não de submissão), onde existe o
Estado cujo poder é legitimado e limitado pelo direito e o direito que também necessita
do Estado para garantir a efetivação das suas prescrições.
d) o direito como normatividade jurídica vigente (o que significa hoje)
α) direito e política
β) direito e economia
γ) direito e cultura
Chegando aqui, devemos acrescentar que o direito se relaciona com a política,
com a economia, com a cultura, com a tecnologia e com as dimensões que
quisermos acrescentar, não se reduzindo a nenhuma delas.

Página 84
O direito assume-se, antes, como uma afirmação de valores próprios, que
implicam o equilíbrio que a comparabilidade entre sujeitos à luz do direito
(relativizando-os) lhes confere e, portanto, que pressupõe sempre (nesta construção)
direitos e deveres, orientando, também, a construção da intersubjetividade
juridicamente relevante.
δ) o problema do fundamento da validade do direito e a fundamentação
dos direitos humanos: as diversas gerações de direitos humanos; os direitos do
homem e os direitos fundamentais
Hoje, é comum verificar propostas que assentam a fundamentação do direito nos
direitos humanos.
Que relação existe entre o fundamento de validade do direito que
falámos e a problemática dos direitos humanos?
Na verdade, a construção histórica dos direitos humanos leva-nos ao período
iluminista, à DDHC (1789), em que se reconhece os direitos e deveres recíprocos entre
todos os cidadãos.
A verdade é que há questões que se põe à DDHC: se, por um lado, ela traduz parte
do ideário liberal que a revolução francesa incorporou, por outro lado, há
múltiplas dimensões daquilo que hoje se consideram direitos humanos que não
estão lá consideradas (não correspondendo ao sentido com que esse
reconhecimento recíproco de direitos e deveres é estabelecido hoje em dia).
Se quisermos procurar o horizonte de referência da ideia de direitos humanos,
consideraremos a evolução histórica do pensamento filosófico, jurídico e político desde
o século VIII a.C., embora saibamos que a constatação da afirmação de direitos e
deveres (até na ideia de contrato), implicam sempre a referência da ideia de
transcendência, seja ela cosmológica ou teológica.
Do ponto de vista temporal e humano, há manifestações históricas do conhecimento
recíproco de direitos e deveres entre soberanos e súbditos, p.e., a declaração de direitos
perante o rei em Inglaterra, no século XIII com a Magna Charta – que não são
verdadeiras manifestações de direitos humanos.
Hoje, temos a consideração não apenas do homem universalmente compreendido nos
seus direitos (DDHC) mas também uma compreensão do homem enquanto ser
humano concreto, nas suas circunstâncias específicas e vulnerabilidades
intrínsecas (sendo, agora, objeto de consideração e tutela – como foi estabelecido na
DUDH, de 1948).
Por outras palavras, atualmente tem-se em consideração dimensões que, na
perspetivação liberal, não estavam incluídas na afirmação de direitos entre
sujeitos e entre sujeitos e o Estado.

Nota crucial:

O reconhecimento recíproco entre cidadãos entre si e entre cidadãos e o Estado é algo que vimos corresponder à linha
ascendente, com origem no Estado moderno (pensamento moderno-iluminista, com a institucionalização do Estado
demoliberal).

Esta afirmação é uma opção cultural e histórica, pois consideramos uma perceção jurídico-política do ser humano e da sua
manifestação em interação do que uma específica fundamentação material para o direito que é historicamente anterior à
afirmação/institucionalização dos direitos humanos.

Página 85
Surgem-nos, então, algumas questões quanto:
Às conceções dos direitos humanos
 Visão humanista: há quem entenda que os direitos humanos são direitos
intrínsecos ao ser humano por ser humano.
 Visão política/convencional: há quem entenda que os direitos humanos são o
resultado de estabelecimento intersubjetivo de um núcleo fundamental de
proteção.
 Via da índole/natureza: “o que são direitos humanos?”
 Visão universalista: há quem entenda que direitos humanos são universais e
intemporais
 Visão regionalista: há quem entenda que direitos humanos são resultado de uma
afirmação e evolução cultural que tendeu para o reconhecimento recíproco de
uma específica qualidade e de titularidade de certos direitos e deveres pelos
seres humanos
Ao surgimento, do ponto de vista institucional, dos direitos humanos?
Sabemos que o homem e o cidadão a quem se dirige a DDHC de 1789 é o homem
que corresponde à sociedade de final do século XVIII e à afirmação de uma classe que,
não cabendo na sociedade tripartida convencional (burguesia), emergia acedendo à
afirmação dos seus direitos e deveres jurídico-políticos.
É, por isso, fundamental o modo como evoluíram os direitos humanos, considerando
o horizonte referencial de 1789.

Nota para refletir:

O modo como a evolução do reconhecimento dos direitos humanos e a institucionalização jurídico-política no Estado
demoliberal europeu se faz não corresponde ao modo como ex-nuovo a construção dos EUA institucionalizou o mesmo
ideário iluminista  o “velho continente” era mesmo velho!

Karel Vasak fala-nos das dimensões e características internacionais dos direitos humanos: em 1979 propõe uma divisão
dos direitos humanos em gerações, ajudando a compreender esta questão. Faz corresponder cada geração a um dos ideais da
revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.

 1ª geração (liberdade): direitos liberdades, liberdades consagradas na DDHC de 1789 (ideário moderno-
iluminista) – liberdade de expressão, de pensamento, de conhecimento, de trabalhar, etc.
São os direitos civis e políticos.
 2ª geração (igualdade): liberdades definidas na DUDH de 1948, sendo que com estas teríamos, não direitos
liberdades (“liberdades de”), mas sim “direitos a” prestações e às competências atribuídas ao Estado para conferir
essas prestações (construção do Estado Social).
São os direitos económicos, sociais e culturais.

A institucionalização da linha descendente da OJ do 2º pós-guerra mostra-nos que os acontecimentos históricos


implicaram que houvesse uma diferente compreensão do papel do Estado face aos seus cidadãos e, simultaneamente, uma
evolução do pensamento filosófico e jurídico (desde a arte à filosofia – ler lição nº 12 para a contextualização e para
compreender que a ação humana e a sua fundamentação não é suscetível de ser conhecida como objeto/fenómeno, mas
apenas de ser compreendida).

P.e., é diferente falar de liberdade de trabalhar e de direito ao trabalho/emprego – verificamos diferença crucial entre a 1ª
e a 2ª geração.

 Mário Reis Marques autonomiza uma 2ª geração na viragem do século XIX para o XX, com a afirmação dos direitos
de participação política – “a transição para as democracias” (p.e., o direito de sufrágio, em geral), encontrando na 2ª geração
de Vasak uma 3ª geração:

 3ª geração (fraternidade): diz respeito ao património comum da humanidade (p.e., o direito ao ambiente ou à
paz).

Com o nascer do século XXI, p.e., o direito ao silêncio, ao esquecimento das redes sociais, a proteção de dados, a
identidade genética, etc..

Página 86
Para temos a ideia até onde a sequência nos traz, todas estes passos são decisivos na
constituição dos atuais direitos humanos.
P.e., para além da DUDH de 1948, temos a Convenção Europeia dos Direitos
Humanos de 1950, que provém do Conselho da Europa (que não é um órgão da UE) e
que institucionaliza o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (que não é um
tribunal da UE), onde estão 47 juízes de cada país europeu e de onde provém as
decisões sobre esta temática.
Ora, a existência de tantos documentos sobre direitos humanos implica reconhecer
que ser humano e ser titular de direitos humanos pode não significar o mesmo em todo
o planeta – e outras implicações também.
Esses direitos humanos (de origem natural, política, etc.) são direitos
morais ou direitos jurídicos?
Há autores que consideram que são direitos morais, outros consideram que são
direitos jurídicos e outros consideram que são direitos conjugáveis (não sendo
confundidos nunca).
Para a cultura anglo-saxónica, falar de moral rights não significa
necessariamente falar de moral substancial e referente a valores
agregadores da sociedade, pois, embora inicialmente seja a pressuposição objetiva
de um sentido orientador dos valores em que assenta a subjetividade, existem propostas
sobre o que seja a morality (há autores que veem na moralidade um referencial crítico
unicamente procedimental, outros que veem a projeção social e política através da
political morality, etc.).
Portanto, dizer que human rights são moral rights pode ter significados diferentes.
Por outro lado, dizer que são direitos jurídicos implica outra reflexão: para direitos
humanos serem jurídicos, na pressuposição do sentido do direito que assumimos,
aos direitos humanos hão de corresponder deveres (diferente dos direitos
morais, que não pressupõe deveres).
Isto coloca em dois planos diferentes os problemas: há várias construções ético-
moral, política e jurídica do que sejam os direitos humanos.
Por isso, ao associar os direitos humanos as diferentes noções de
dignidade humana, podemos estar a falar de múltiplas referências axiológicas
sem um referente garantido e de conteúdos discutíveis e muito discutidos
hoje.
Na verdade, os direitos humanos são uma manifestação histórica daquilo
que se assumiu como um certo tipo de ser humano.
Esclarecimento:

No início, direitos do homem e do cidadão como um sujeito liberal burguês, com uma origem política (embora exista quem diga
que a origem é anterior a isso e tem a ver com o modo de constituição da intersubjetividade na nossa matriz cultural, o modo como
se organiza a autonomia e responsabilidade – desde o DR e o cruzamento da filosofia grega e revelação cristã, admitindo a
existência da dignidade).

É de notar que a ideia de dignidade, na antiguidade oriental, tinha diferentes sentidos (como tem hoje).

Quando hoje se afirmam, simultaneamente, várias matrizes culturais, ao falarmos de dignidade humana podemos estar a referir
um significante cujos significados se dissipam.

Página 87
AULA PRÁTICA

Se o direito não se reduz a nenhuma das dimensões, embora seja fortissimamente codeterminado por elas (não está isolado das mesmas), então que
funções desempenha na sociedade? “Para-quê” do direito? Temos, primeiro, de perceber o “por-quê” do direito, i.e., as suas condições de emergência
na sociedade. Para que possa emergir, tem de se verificar 3 condições:

 condição mundanal, que nos remete para o problema da partilha do mundo (é apenas um, com recursos escassos que têm de ser repartidos –
direito responde a este problema, definindo que o nosso acesso ao mundo tem de ser legítimo)
 condição antropológica, que reflete o modo de ser do Homem e a sua natural indeterminação (num plano biológico-instintivo, o homem é um
ser inacabado – somos, assim, autores de nós mesmos)

As condições anteriores verificam-se sempre, sendo, por isso, estáveis. Exigem a existência de uma ordem que compense a indeterminação do Homem, por
um lado, e estabilize regras de partilha dos bens escassos, por outro.

Ora, se considerássemos apenas estas duas condições, a ordem exigida não teria necessariamente de direito. Por isso, para que seja de direito, é necessária
uma 3ª condição, que é variável (pois está dependente da perceção do Homem enquanto pessoa/ser de valor).

 condição ética, que assenta na forma como o Homem se autocompreende, remetendo-nos para o pressuposto axiológico do direito (sentido e
conteúdo material que fundamenta o direito, que já se sabe que provém da consideração do Homem como um ser com dignidade ética).

Só se o Homem se reconhecer enquanto sujeito portador de uma ineliminável dignidade ética (reconhecermo-nos como pessoas jurídicas – com
autonomia e responsabilidade, para além da dignidade e liberdade) é que temos as condições para ter uma ordem de direito.

No fundo, as funções (para-quê) do direito são determinadas pela 3ª condição: essas funções foram variando ao longo dos tempos, em função da forma
como o Homem se foi autocompreendendo. Portanto, o direito varia de acordo com a evolução histórica. O Homem não se compreendeu sempre da
mesma forma, logo as funções do direito não foram sempre as mesmas:

- na época pré-moderna (desde a sua formação em Roma passando pela IM), Homem estava inserido num cosmos que não discutia/numa ordem
transcendente (criação divina); a função do direito era a de explicitar essa ordem exterior ao próprio Homem (mesmo com função prática
característica)

- na época moderno-iluminista (movimento da secularização), Homem deixa de ver o mundo orientado pela ordem transcendente, para passar a assumir-
se como único responsável pela criação da sua própria ordem (a partir de si mesmo, cria as regras que autolimitam a sua liberdade
– através da legislação, expressão da vontade do povo): direito = expressão da liberdade do Homem, cuja função era de garantir a recíproca liberdade do
Homem (a sua realização e universalização)

- atualmente, o direito é visto, em grande parte, como um instrumento para a realização dos programas que o Estado pretende realizar/do poder: fortíssima
função integrante, porque torna a nossa convivência comum possível, integrando-nos numa sociedade e possibilitando a nossa interação uns com os outros
de modo válido.

Quanto mais plural for a sociedade, maior será a relevância da função integrante (que faz sentido na ausência de outros contextos agregadores, p.e.,
valores distintos dentro da mesma sociedade). Desdobra-se em três sub-funções:

 Tutela dos valores fundamentais de uma comunidade - direito como maior responsável pela preservação dos valores e bens jurídicos fundamentais
que se afirmam numa determinada comunidade, tornando-os dignos de respeito (estabelecendo meios adequados e eficazes à realização prática
desses valores: dignidade da pessoa humana, vida, paz, integridade física, etc.). Pune quem viole ou frustre esses valores [remissão para função
primária/prestativa do direito – princípio de ação, através da definição de condutas]: ligamo-nos ao direito penal.

 Prevenção e resolução dos conflitos de interesses – entre uma necessidade subjetiva e o bem suscetível de satisfazer essa necessidade, gerador de
conflitos, o direito estabelece os critérios relativos à distribuição dos bens e serviços aptos a satisfazer as necessidades. Atua em dois momentos:
no primeiro, atua com uma índole preventiva (direito, ao estabelecer condutas, visa evitar a ocorrência de conflitos no acesso aos bens) e, no
segundo, atua como uma índole resolutória (resolve os conflitos de interesses): ligamo-nos ao direito civil.

 Garantia – intimamente ligada à limitação do poder: o direito impõe certas regras que nos tutelam/protegem perante as situações de abuso do
poder, i.e., no âmbito de um Estado de direito a atuação do poder tem de se fundamentar num certo quadro jurídico (e só assim será válida e
legítima). Portanto, o direito garante-nos a todos contra um exercício abusivo, arbitrário e ilegítimo do poder: ligamo-nos ao direito constitucional
e administrativo

A função integrante tem dimensão positiva (participa ativamente na construção da realidade comunitária) e negativa na sociedade!

Função positiva:

Direito afirma e assegura o respeito dos valores íntimos da comunidade, ajuizando criticamente dos fins e dos meios mobilizados pelo
Estado para a realização dos seus programas. A lógica do direito não é só eficácia, mas também validade: racionalidade axiológica que funda os valores e os
realiza na prática.

Hoje, atendendo à fragmentação e pluralidade das sociedades, é a única e última instância de realização e de efetivação dos valores ligados ao Homem.

Página 88
Página 307-351, de Fernando José Bronze – Lições de Introdução ao Direito (Lição 10)

O sentido específico do direito


I. Alusão à determinação do sentido específico do direito no pensamento
pré-positivista
Porque é que o direito com que nos confrontamos e que reconhecemos sob a forma
de lei tem, hoje, as características que tem e assume as funções que

Página 89
assume?
Queiramos seguir uma perspetiva mais axiológico-normativa, mais eticamente
fundada ou qualquer outra mais funcional-materialmente definida em termos
estratégicos, encontramos respostas distintas.
Aqui, deixamos a consideração geral do direito que vimos a partir da atualidade, para
procurar o seu sentido específico e compreender as razões da evolução e
aquelas que levaram à necessidade de afirmação de uma axiologia/
validade específica do direito, para continuar a ter nele uma disciplina
autónoma e integrada/dialogante com uma prática social cuja origem
histórica deve ser compreendida.
[Num sistema de legislação como o nosso, perante uma circunstância que ponha em causa a nossa posição enquanto sujeitos, a
primeira preocupação é perceber qual é a lei que prevê essa situação – típica referência de um sujeito atuante num sistema de
legislação.]

Evolução histórica do pensamento jurídico ocidental (síntese) – a


resposta idealista (jusnaturalismo antigo, medieval, moderno e
contemporâneo)
Notas:

Considerar que o direito é o direito positivo, implica reconhecer a positividade do direito como vigência (ainda que hoje,
implique validade e eficácia).

Falar de positividade (qualidade daquilo que é positivo, i.e., positividade jurídica não implica a redução do direito ao direito
positivo) não é sinónimo de falar de positivismo (redução ao que é positivo -ismo reduz/leva ao limite, i.e., positivismo jurídico é a
redução do direito ao direito positivo, identificando-o com o direito positivado – pode ser sob a forma de lei).

Positivismo (jurídico = redução de todo o direito ao direito positivo) e legalismo (positivismo legalista = redução do direito
ao direito positivado sob a forma de lei), mesmo conjugáveis, não são sinónimos.

Legalismo (redução do direito à lei) pode não implicar positivismo – p.e., se direito tiver como única fonte admissível a lei,
será funcionalista (direito é meio para os objetivos externos) e não positivista.

Há experiências de positivismo do século XIX que não eram legalistas, p.e., o positivismo científico/dogmático alemão (a fonte
do direito crucial não era a lei, mas sim o costume) – diferente do francês.

Se do ponto de vista de compreensão da ciência do direito, há uma confluência entre o positivismo legalista francês e o
positivismo dogmático alemão, do ponto de vista das fontes, é diferente – mostra que a institucionalização política do direito nas
duas matrizes (francesa e alemã) foi radicalmente distinta.

Se o positivismo jurídico do século XIX reduzia todo o direito ao direito positivo, isso implicava excluir/abdicar/rejeitar a
referência da fundamentação da validade do direito positivo a qualquer outra entidade que não seja o direito positivo (fechamento do
direito) – esta não é a nossa herança histórica.

Como o nosso primeiro CC é de 1867, não vigorou entre nós o CC francês de 1807, mas inspirou o nosso.

O segundo CC (e último) é de 1966 e tem forte influência da sistematização alemã com origem na Escola Histórica do direito.

Surgimento do positivismo jurídico do século XIX


Pensar no direito positivo enquanto direito vigente ao longo dos séculos foi
distinto.
Consideraremos duas linhas fundamentais quanto à redução do direito ao direito
positivo (positivismo jurídico):
 problema da fundamentação do direito
Resposta idealista
Desde o século VIII a. C. que identificamos como referente fundamental uma
resposta idealista (segundo, p.e., Reis Marques) do direito (fundamentado no direito
natural, como um ideal material e estrutural a atingir e a concretizar sob a

Página 90
forma de direito positivo).
Essa resposta idealista implica que tenhamos o direito natural como
fundamento positivo e como limite (positivo e negativo) do direito positivo
admissível.
Este pensamento durou até ao século XIX, fosse ele de índole cosmológica, teológica
ou antropológica.
Resposta positivista
Por outro lado, contraposta à resposta idealista, temos a resposta positivista, que
sendo mais recente, só vem a efetivar-se de modo institucional/decisivo/absoluto no
século XIX.
Diversos tipos de racionalidade, com diferentes horizontes de concretização
prática e diferentes frentes temporais:
Ora, se no arco pré-moderno (desde a antiguidade clássica grega até ao fim da
idade média) o direito é referido a uma racionalidade primeiro cosmológica e depois
teológica, a partir da idade moderna o referente racional passa a ser humano
(antropológico).
 Direito pré-moderno
Quando o referente do direito natural assume a existência do direito natural
como fundamento positivo, consideramos sempre o equilíbrio do cosmos
como horizonte referencial de validade.
A assimilação, no DR e ao longo da idade média, da referência teológica leva-nos
a assumir que o direito positivo (a dita lei humana) veja como ideal de referência
axiológico a manifestação da razão divina.
Determinação do sentido material que o direito deve seguir enquanto direito
positivo (lei humana):
Marco fundamental I de Santo Agostinho:
Encontramos isto no século IV e V, quando este nos apresenta uma divisão
tripartida da lei que distingue lei humana, lei natural e lei eterna.
Como a lei eterna é inacessível à inteligibilidade humana, a possibilidade de
compreender o que a lei eterna estabelece faz-se através da lei natural.
A lei natural é vista como a transcrição na mente humana da lei eterna.
Marco fundamental II de São Tomás:
Vemos aqui que, mais tarde no século XIII, por inspiração em Aristóteles, a
conjugação entre a matéria leva a afirmação de que a lei natural é a participação
da mente humana na lei eterna.
Estes marcos perduraram, consoante as zonas geográficas, até mais tarde.
Centro e norte da Europa: através dos movimentos de reforma/contrarreforma,
assume mais a cisão entre o ser humano e a fundamentação transcendente.
Península Ibérica: até ao século XVII permanece a relevância da divisão

Página 91
tripartida que vimos, pois a neoescolástica peninsular faz uma interpretação da divisão
tripartida da lei num sentido direcionado para a relevância da lei positiva por si e
para uma construção volitiva do direito (i.e., mais do que ser a tradução para o
nível da lei humana da lei eterna através da lei natural, em qualquer um desses três
níveis encontramos uma dimensão de vontades) – ideia da lei natural, humana e eterna
como uma manifestação de vontade (imposição volitiva de auctoritas, a quem é
associada uma proposta de potestas).
Centro da Europa: autores tendem para a manifestação da cisão entre a ação humana
(e a respetiva fundamentação) e a determinação transcendente.
Isto não significa que a referência à transcendência tenha desaparecido, mas que,
numa assimilação do “Deus cartesiano”, passamos a identificar duas grandes dimensões
de configuração e fundamentação da ação humana: uma parte referida ao
horizonte transcendente e outra não.
De facto, a intersubjetividade social vai progressivamente sendo objeto de
justificação pela dimensão racional humana.
O antropocentrismo moderno traz-nos a acentuação progressiva do horizonte de
validade à racionalidade humana.
Não significa que o direito natural tenha desaparecido, mas que a referência à lei
eterna se vai esbatendo na problemática da fundamentação específica do
direito (e não nas outras dimensões da ação humana).
A redução progressiva da secularização ao secularismo vai levar ao
afastamento/rejeição da referenciação transcendente (algo não idêntico em
todos os autores).
 Direito na idade moderna
Se a racionalidade e a fundamentação da ação se tinham assumido como uma
reflexão referida a um horizonte pressuposto autossubsistente (referência cosmológica
da polis grega e da civitas romana ou a referência teológica na respublica cristiana), a
cisão que a idade moderna implica estabelece uma progressiva libertação das
“teias” estabelecidas por esse referente, assumindo-se (a partir do renascimento
e da reforma), que o ser humano faz assentar o seu saber e a sua ação na
sua construção racional como causa a sui (gerado dentro de si).
É por isso que Hugo Grócio com a Deuria Bela a Patris estabelece o referente do
direito natural como fundamentação do direito humano, mas assume que o
direito natural continuaria a existir mesmo que Deus não existisse ou que não se
ocupasse das coisas humanas.
As duas referências de fundamentação coexistem para âmbitos de inter-
relação distintos: cisão fundamental progressiva entre a fundamentação racional
teológica e a fundamentação racional humana.
Significou que, se até aqui a prática ia referida a um horizonte de referência
transumano, agora vai referida a um horizonte de referência humano.
Desde a antiguidade clássica que se assume pensar = conhecer, esta referência nem
sempre implicou uma determinação estritamente epistemológica

Página 92
(pensamento prático do saber agir = prudência ia referido ao horizonte da
sapiência).
Dois modos de compreender a ação:
Neste contexto, a fundamentação da ação prática é referida a um saber
autossubsistente supra-humano traduzido na sophia (sapiência).
Para o saber agir/fazer, o referente era a pressuposição de conhecimento ligada à
episteme de determinação de um objeto por um sujeito.
Desenvolvem-se, com isto, em sentidos diversos, as ciências empírico-
constitutivas que se orientam no sentido da determinação da verdade
quanto afirmação da regularidade dos fenómenos observáveis e a criação de
teorias sobre esses fenómenos, para a dimensão do saber agir onde o referente
fundamental é o referente axiológico que, pressupondo uma autossubsistente verdade,
respeita uma relação de fundamento-consequência.
Fundamentação do saber agir é a linha do pensamento prático que o direito vai
assimilar: pensamento jurídico (ainda que analisado da perspetiva do século XX), já
no império romano, se autonomiza como pensamento específico sobre o
direito enquanto objeto.
No DR, onde encontramos a autonomização do pretor, das actiones, do direito
enquanto disciplina e do pensamento jurídico sobre o direito, encontramos um sistema
pluridimensional (direito não é composto apenas por leis – existindo também o
costume, a jurisprudência e a doutrina) e não temos um positivismo (direito
positivo é fundamental num direito natural – juristas romanos distinguem a lei natural
da lei humana).
Dois níveis de autonomização fundamentais:
- tipos de problemas, pois o problema jurídico = problema específico, que exige uma
magistratura específica, já que o direito tem múltiplas fontes, tendo o sistema jurídico
uma dimensão pluridimensional.
Além da lei, há também o costume, a jurisprudência e a doutrina como fontes de direito.
- pensamento tópico-prático (a partir dos problemas para a construção e
integração das soluções no sistema)
Pensamento tópico-prático-argumentativo, pois parte dos problemas para a
construção fundamentada a partir de argumentos da sua resolução.
Continua a pensar-se assim na idade média, com notas decisivas para aquilo que o
positivismo do século XIX viria a ser.
Que notas?
 P.e. o Corpus Iuris Civiles, que versa sobre várias áreas do direito e vai sendo
progressivamente redescoberto a partir de finais do século XI (alimentando a
escola do pensamento jurídico dos glosadores, no século XIII, e dos
comentadores, no século XIV), sendo crucial depois no positivismo do século
XIX.

Página 93
Do ponto de vista das fontes, é crucial a identificação do direito como texto
(pensar juridicamente é pensar nos textos e decidir juridicamente é aplicar o
conteúdo desses mesmos textos) e a sua análise – princípio da autoridade dos
textos deixa-nos a nota crucial de que o direito positivista pode ser identificado com
textos do passado.
Do ponto de vista do pensamento, surgindo a ciência iuris num sentido prático,
com um pensamento prático e que é dialético (construído com base na argumentação).
A idade moderna, com a acentuação da relevância da determinação epistémica, traz
que o paradigma da validade de pensamento vai centrar-se nas
determinações de verdade face à intencionalidade epistémica do que ao referente
da sapiência.
Há uma confluência no sentido de que a racionalidade (que permite tornar
inteligíveis as observações e confere cientificidade ao pensamento) é a determinação
de verdade epistémica e não de discussão argumentativa- prática.
Se a construção medieval tinha como pressuposto dogmático a referência à entidade
de validade teológica, o pensamento moderno deixa esse referente e encontra
outros: referente fundamental da determinação epistémica de verdade, que
culmina nas propostas das compreensões positivistas da ciência.
Se, no século XIX, o pensamento jurídico quis ser ciência, teria de ter o mesmo
estatuto do pensamento das mesmas ciências e seguir esse paradigma – racionalidade
implica uma conjugação com a compreensão axiomático- dedutiva de si
mesma.
Lateralmente, a esta construção de uma nova racionalidade, verificamos que o
próprio ser humano se autocompreende de modos diversos: na idade moderna, há um
desligamento/desvinculação do ser humano face a uma ordem externa e
transcendente.
Sendo trazido pelo antropocentrismo moderno, implica-se uma progressiva
assimilação do individualismo (ser humano é compreendido e considerado como
ser des-ligado).
A construção do coletivo implica uma racionalidade humana – construção
da societas como resultado da vinculação de vontades livres no contrato social
moderno.
 fatores históricos, sociais e políticos
Que, estando associados à problemática da fundamentação anterior,
são temporalmente responsáveis pela evolução no sentido da supremacia
do direito positivo (não sempre positivado sob a forma de lei, mas sim no sentido de
ter sido criado ao nível da intersubjetividade humana sem referências externas/ao direito
natural)
É na confluência destes fatores que encontramos a passagem para os fatores próprios
do pensamento moderno-iluminista como referentes imediatos do positivismo do século
XIX – toda uma institucionalização que levou ao corte com

Página 94
a ideia de lei natural (assunção plena do positivismo jurídico que dominou no
século XIX).
Crítica conducente à resposta positivista
II. O problema da compreensão e determinação do sentido atualmente
fundamental do direito - o positivismo jurídico como o imediato referente
histórico-crítico dessa compreensão
1) Fatores determinantes
a) o pensamento moderno-iluminista
α) uma nova compreensão da prática
Os grandes autores do pensamento jurídico que estabeleceram as teorias de direito
natural, nos séculos XVII e XVIII, partem de pressupostos escolhidos dentre as
características humanas, observáveis e consideradas universais e
intemporais para as assumirem como axiomas a partir dos quais serão
deduzidos os princípios de direito natural – é assim, p.e., em Hugo Grócio com
a sociabilidade, em Samuel Pufendorf com uma certa fragilidade que conjuga a
apetência para a sociabilidade com uma certa fragilidade inspirada também na
compreensão antropológica negativa de Thomas Hobbes (não um egoísmo, mas sim
uma fragilidade associada à sociabilidade), em Kant com a insociável sociabilidade do
Homem como um ponto de partida.
Mas há uma distinção muito relevante entre estes: enquanto em Grócio, Pufendorf,
Volf e Thomasius o pressuposto vai constituir o axioma a partir do qual se
deduzem os princípios de direito natural (que vai ser encontrado numa
característica empiricamente observável), em Kant (e mais do que em Rosseau) a
compreensão da fundamentação do direito num direito natural, se assumida
como uma referenciação deontológica para o conteúdo do direito positivo,
não pode ser empiricamente obtida – ponto de partida deixa de ser
empiricamente observável, sendo contingente nesse sentido (será o conhecimento obtido
antes e através da experiência, a priori).
Neste sentido, para Kant, o direito natural é uma forma a priori, o que lhe
confere vinculatividade. Mais ainda, a referência no direito natural implica a
consideração de um sistema racional de fundamentação autónomo do direito
positivo.
Podemos distinguir dois grandes arcos, seguindo Castanheira Neves:
 no âmbito da fase moderna até ao final do século XVII
Encontramos aqui um direito naturalmente racional – pressuposição de que o
direito é racional, com um ponto de partida obtido pela observação, assumindo uma
característica como universal e intemporal que será o axioma para a dedução de
princípios do direito natural.
Devemos referir também Thomas Hobbes, cuja compreensão axiológica negativa
fazia identificar um certo egoísmo como uma característica empiricamente observável e
suscetível de universalização por parte da racionalidade humana. De facto, encontramos
uma compreensão da ideia de Estado da natureza que implica, pela natureza
egoísta e pela própria

Página 95
fragilidade humana, o Estado de guerra de todos contra todos.
Desta forma, Hobbes irá projetar no seu Leviatã a ideia de que a superação desse
Estado de anomia/desorganização tem como remédio a constituição de um Estado forte
e absoluto (monárquico ou ligárquico), o que implica que tenhamos a pressuposição de
que a intersubjetividade se cria através de um contrato onde o ser humano
nasce livre e desvinculado e apenas se vincula por vontade própria na
constituição de uma societas, que surge como remédio para o Estado de anomia
que o Estado de natureza constitui.
Portanto, a passagem do Estado de natureza para o Estado civil/de sociedade vai
concretizar-se num pactum de sujeição (onde os sujeitos aceitam que, para evitar o
Estado de guerra de todos contra todos, se tornem súbditos de um poder absoluto).
Assim, acentua-se a diferença entre esta construção e aquela que encontramos nas
propostas de contrato social que nos são apresentadas em Rosseau e em Kant.
 acentuação iluminista do século XVIII (das luzes)
Encontramos aqui, diferentemente, um direito formalmente racional – a
dimensão da referência à natureza enquanto referência empírica é substituída pela
referência racional pura.
Esta diferença, embora residente na razão humana enquanto fundamentação
do direito positivo, faz-se de modos diferentes consoante o horizonte de
referenciação da validade.
De facto, no pensamento moderno-iluminista (nomeadamente em Kant) os
referentes de validade não podem ser empiricamente obtidos, sendo o
direito uma forma pura a priori, que constitui um sistema racional separado do direito
positivo.
Os contratos sociais:
 Em Rosseau, a construção do contrato social implica dois pactos diferentes:
não um pacto de sujeição (os sujeitos não se tornam súbditos), mas um pacto
de união/confluência de vontades livres e, na sua consequência, um
pacto de sujeição (que transforma os sujeitos em cidadãos).
Falamos, então, de uma proposta de celebração de um contrato social como
modo de organização social, em que existe uma confluência de vontades livres
que, no exercício dessa liberdade, se autovinculam, assumindo e aceitando que, dessa
confluência, resulta uma imposição a que obedecem livremente (como se a cedência de
liberdade se transformasse num outro tipo de liberdade depois – liberdade
societariamente consonante).
Assim, do contrato social emanaria uma vontade racional e geral
(traduzindo a ideia do bem comum), que se exprimiria sob a forma de lei com
características essenciais (a lei moderno-iluminista) – esta não se confunde com a
vontade da maioria ou com a vontade de todos.
β) o fator antropológico (o individualismo)

Página 96
O individualismo progressivo resulta da desvinculação do ser humano face à
transcendência.
γ) o fator cultural (o secularismo, o racionalismo e o historicismo)
Resulta da secularização (separação entre pensamento jurídico e forma do direito
natural, a transcendência e a sua radicalização), do racionalismo (não a relevância da
racionalidade, mas o progressivo encaminhamento para uma racionalidade axiomático-
dedutiva que se formalizará) e do historicismo (não a historicidade do direito, mas a
ideia de que a progressão em planos que se superam uns aos outros encaminha o ser
humano para um estado de perfeição racional que apenas a modernidade lhe trouxe e
que o pensamento moderno- iluminista poderá assimilar e concretizar adequadamente).
δ) o fator social (o capitalismo)
Todo o movimento de desenvolvimento da idade moderna, começando no
renascimento/reforma, implica que do ponto de vista económico se vá
instaurando o liberalismo: o século XIX será o cerne dessa perspetiva.
Essa pressuposição será conjugada com a assunção racional de que o direito
não se compromete com a intenção de quem age dentro da
forma/determinação formal que a lei lhes concede.
Ε) o fator político (o contratualismo)
O contratualismo que falámos, ao abrigo do exemplo das propostas de
Thomas Hobbes, Rosseau e Kant.
Falaremos da proposta de John Locke, onde se estabelece a organização política
que vai conferir ao poder legislativo o estatuto de the supreme power, o
que estabelecerá uma institucionalização segundo uma perspetiva liberal (diferente
da institucionalização segundo uma perspetiva liberal mas mais democrática de
Rosseau).
b) o contexto ideológico: as ideologias liberal e democrática

A conjugação das ideologias liberal (afirmação da liberdade dos sujeitos) e


democrática (progressiva institucionalização da legitimação do poder no povo)
mostram-nos que tudo se encaminha para que, por via do facto político da Revolução
Francesa, se estabeleçam as condições para a institucionalização do ideal moderno-
iluminista do Estado, que será o Estado de Direito de legalidade formal (Estado
demoliberal).

Esta transição, na medida em que representa uma cisão com o direito natural,
vai acabar por conduzir ao positivismo.
c) o facto político – a Revolução Francesa
d) a conceção racionalista do direito, projetada na compreensão da
legalidade: a norma racionalmente geral, abstrata e formal
Que características tem a lei para que o seja, segundo a corrente moderno-
iluminista?
 Generalidade

Página 97
 Abstração
Ainda segundo Rosseau, estas duas traduzem a ideia de que a lei é um ato de todo
o povo para todo o povo sobre uma matéria comum, existindo uma
conjugação do ideário liberal com o ideário democrático.
Traduzem dois sentidos de universalidade racional da lei. Quais sentidos?
A generalidade quanto aos sujeitos, pois a lei é geral porque se aplica a todos.
A abstração quanto à matéria, pois a lei é universal quanto ao conteúdo, não versando
casos concretos (faz um padronização da realidade para determinar um certo tipo de
situações a que se dirige).
 Formalidade (em sentido estrito)
Em sentido estrito porque dizer que o direito é formal (descomprometido de
conteúdo) dirá pouco quando confrontado com este sentido estrito.
Neste sentido, falamos da formalidade que Kant faz corresponder à lei
jurídica (para a diferenciar da lei moral). Se para Rosseau a ideia de contrato
social era tão fundamental para a institucionalização dos poderes, para Kant era uma
exigência racional que vai institucionalizar os poderes de forma tripartida
e, simultaneamente, considerar o poder legislativo o poder superior que cria
o direito.
Moralidade e Direito são conceitos presentes na teoria de Kant.
Mas o que significa, para Kant, dizer que a lei moral é formal e que a lei jurídica é
formal?
São sentidos diferentes de formalidade.
Especificamente, enquanto a lei moral é autónoma (i.e., o sujeito é autónomo
quando a sua vontade é legisladora de si própria, sendo uma ação moralmente boa
aquela que se submete ao imperativo categórico – na moralidade kantiana não se impõe
um conteúdo, o “faz isto porque é bom”, mas considera-se que a ação é moralmente boa
quando é tomada por dever/cumprimento do imperativo categórico, o “age de
tal modo que a máxima da tua vontade possa ser considerada como um princípio de
legislação universal/age de tal modo que o critério que te orienta possa ser um critério
para todos, em todo o tempo e em todos os lugares”), o direito é formal em sentido
diverso pois basta-se com a conformidade externa dos comportamentos
às suas prescrições.
Por outras palavras, a vontade livre, aquela que é legisladora de si própria e que
implica o cumprimento do imperativo categórico, não é arbítrio (fazer o que se quer,
dado que consciência tem de aderir a esse imperativo categórico).
Então, o direito também não se comprometerá com o conteúdo dos
arbítrios, mas tratará da forma na relação entre os arbítrios, i.e., vai regular as
esferas nas quais cada um age conforme entender (a sua formalidade basta- se com o
cumprimento externo, mesmo que a consciência não adira à intenção).
O direito é coercível, a moralidade não o é.
De facto, cabe à lei delimitar as esferas dos sujeitos sem se comprometer

Página 98
com a intenção da atuação que assumem, desde que os limites não sejam tocados.
A lei iluminista, no sentido da sua formalidade, é uma delimitação externa
quase pela negativa (limite que estabelece o que não pode ser ultrapassado), onde o
sujeito agirá conforme o seu arbítrio que não é suscetível de ser
compreendido como ação moral.
e) a “Escola Histórica” e o conceitualismo sistemático
Iremos analisar, em IAD II, as escolas metodológicas que dominaram o pensamento
jurídico ao longo dos séculos (principalmente do século XIX até à primeira metade do
XX).
Falando apenas da Europa Central: ao confrontarmos o que se passa no contexto
francês com o que se passa no contexto alemão, verificamos que, se no contexto
francês tudo se encaminha para a revolução liberal e, após esta, a
constituição e a codificação (CC), no contexto alemão, por várias razões, a
escola histórica do direito que domina o início do século XIX empenha-se numa
construção histórica/historicista da construção do direito europeu desde a
construção romana.
Portanto, temos a Escola Histórica na busca das origens romanas do direito
germânico.
Nesse sentido, temos a acentuação da dimensão da historicidade
constitutiva da perspetiva material (cimento agregador que cria o direito) e a
acentuação da fonte fundamental no costume e não na lei.
Isto leva a que a compreensão do sistema jurídico seja diferente e que todo
o modo de encarar a construção do direito só venha, mais tarde, a acompanhar a
construção que ocorreu em França.

Na Escola Histórica vemos o direito enquanto normatividade, mas o modo e o


Segundo
pensar não é tãoadiferente
professora,
assim:talcomo
nãovimos,
significa que houvesse
o pensamento um oatraso
jurídico para no
positivismo
desenvolvimento
quis da ciência
ser ciência e teve jurídica,
de seguir pelo contrário,
os métodos verificou-se
das outras a sistematização
ciências para isso – isto foi
dos elementos de interpretação
comum tanto em França como na Alemanha. que hoje conhecemos (elemento gramatical,
histórico, sistemático e teleológico), segundo Savigny.
Concluindo..
Temos dois movimentos distintos que confluem na intencionalidade
teorética (epistemológica, cognoscitiva e de construção teorética/de enunciados
progressivamente mais gerais e abstratos e de induções dos dados particulares) que
conferem ao pensamento jurídico – tudo se encaminha no sentido de dizer que o
direito é o direito positivo, vigente e institucionalizado.
O direito natural perde a relevância de fundamentação material, com o
surgimento do positivismo nestes dois contextos.

Página 99
São, de facto, diferentes porque, em França, temos o positivismo legalista
(porque o direito parte da lei) e, na Alemanha, é o positivismo científico-
dogmático (porque o direito parte também de normas legais, mas não necessariamente
delas, sendo a fonte de direito fundamental o costume).
f) o positivismo epistemológico – os dualismos metodológico e
intencional (sub specie iuris)
Com uma breve referência ao positivismo epistemológico, i.e., a pressuposição
de que o direito é dado ao sujeito cognoscente como objeto cognoscível e cabe a esse
sujeito cognoscente, que será o interprete e o jurista decidente do pensamento jurídico,
conhecê-lo, interpretá-lo, elaborar a partir dele princípios gerais de direito e conceitos e
aplicá-lo.
Se o pensamento jurídico foi prático durante todo o arco pré-moderno e
durante boa parte da idade moderna, na transição para o positivismo vai-se
assumir o pensamento como uma determinação de verdade sobre um
objeto (ideia de que pensar é conhecer).
Esta ideia já nos acompanha há muito: desde a Grécia antiga, onde tinha um referente
de verdade que também tinha um referente de validade material (a sophia),
passando por Roma (pela sapiência), pelo dogma teológico como pressuposição de
validade e valor que depois se vai esbatendo no sentido de que pensar continua a ser
conhecer mas também é interpretar os textos de autoridade, na Idade Média.
Neste sentido, pensar é conhecer só que a ligação entre esse
conhecimento que é traduzido na desimplicação das determinações
assumidas dogmaticamente, seja na sapiência seja na referência teológica, vai
sendo substituído por uma referência racional humana que permanece
como fundamento de uma racionalidade prática (i.e., continuamos a assumir
que pensar é conhecer, mas que esse conhecimento conjuga a dimensão epistemológica
e prática – o direito é uma prática e o pensamento jurídico é um pensamento prático).
A transição para o pensamento moderno-iluminista vai progressivamente conduzir a
uma abstração face ao objeto pensado (e, com isso, uma formalização da
racionalidade) que se distingue/separa do objeto pensado – isto associado ao
cumprimento das determinações da cientificidade do pensamento que o positivismo
traz, i.e., a determinação epistemológica para o pensamento jurídico que, com isso,
deixa de ser prático e se assume como um pensamento teorético-cognitivo
(teórico e determinado pela base cognoscitiva e a intencionalidade epistemológico-
científica, o conhecer e elaborar sobre o objeto conhecido enunciados de verdade).
Estas são notas cruciais para compreender que, uma vez verificada a transição
política para o Estado demoliberal, todas estas propostas se assumam no enquadramento
dessa mesma compreensão do Estado e, com isso, aquilo que era a proposta
moderno-iluminista vai transformar-se em construção racional
institucionalizada, legitimada por um poder e visando decisivamente a
sua prescritividade.

Página 100
Página 353-376, de Fernando José Bronze – Lições de Introdução ao Direito (Lição 11)

2) Coordenadas caracterizadoras do positivismo


Encontramos na transição para o positivismo a institucionalização dos
pressupostos que analisámos, que irão permitir separar as suas características
analiticamente.
Essa analítica será feita em função da compreensão da conjugação entre a
dimensão político-institucional e a dimensão científica.
Identificamos cinco coordenadas caracterizadoras do positivismo jurídico do século
XIX. Aqui, o que está em causa é a leitura pelas lentes positivistas das propostas
moderno-iluministas, i.e., como será a assimilação moderno-iluminista do direito pelo
positivismo.
Sabemos que, do ponto de vista científico, opera o corte decisivo entre o
direito positivo e natural, que deixa de ser fundamento do positivo – o corte
fundamental é a assunção definitiva que o direito é uma regulação que
deve abster-se de interferir materialmente na intenção com que os
sujeitos atuam e o pensamento jurídico é um pensamento teorético-
cognitivo, sobre um objeto dado que é esse direito objetivo vigente que é
pressuposto ou criado (sobre a forma de lei ou qualquer outra).
a) coordenada político-institucional: o Estado-de-Direito de legalidade

Encontramos aqui a institucionalização do ideário moderno-iluminista, desde


logo na própria legitimação política da construção do direito.
α) o princípio da separação de poderes
Este vinha sendo construído por vários autores, nomeadamente John Locke,
Montesquieu e Kant, em sentidos diferentes. Agora, irá projetar-se numa efetiva
atribuição de cada poder aos sujeitos que o titulam de modo
constitucionalmente consagrada e legislativamente estabelecido.

Página 101
Esta separação de poderes, que permite distinguir o poder legislativo, executivo e
judicial, assume-se como, essencialmente, distinguido nestas três vertentes,
originariamente de forma a evitar ingerências recíprocas, i.e., no sentido de
estabelecer um sistema de pesos e contrapesos com uma divisão quase empírica
dos poderes, no sentido de que os poderes devem limitar-se reciprocamente
(segundo Montesquieu) quase que negativamente (no sentido de que uma
delimitação que visa evitar que os poderes extrapolem as suas fronteiras).
De facto, ao poder legislativo cabia criar direito em forma de lei; ao poder executivo
cabia a dimensão administrativa e a execução do que fosse determinado pela lei; ao
poder judicial cabia dizer a lei, i.e., aplicar em concreto aquilo que a lei em geral e
abstrato determinasse.
Para Montesquieu, existe uma ligação entre estratos sociais e distribuição
dos poderes: o poder legislativo, nas diferentes câmaras, representaria a aristocracia e
o povo (reside aqui uma ideia de democracia); o poder executivo representado pelo
monarca; o poder judicial, pelos diferentes tipos de jurisdição, não seria
verdadeiramente representativo mas, de certo modo, nulo (por não ser um poder
constitutivo e sim declarativo, cuja relevância da sua atuação reside na sua
independência).
Depois, segundo a construção kantiana, a exigência racional da delimitação
passa a residir na assunção das competências, onde, pela positiva, teremos os
três poderes enquanto constituição do Estado, por excelência, que garante o
poder criativo que cabe ao legislador e a independência judicial.
β) o princípio da legalidade
Este determina que o direito é criado sob a forma de lei, o que nos traz as
noções de reserva de lei e de preferência de lei (i.e., em princípio o direito é
preferencialmente criado sob a forma de lei).
Há matérias sobre as quais só a lei pode criar direito – mantemos, em parte, essas
matérias na reserva de competência legislativa da AR (absoluta, no art. 164º da CRP, e
relativa, no art. 165º da CRP).
E porquê? Porque a legitimação (democrática) é soberana na construção do
direito sob a forma de lei.
Existem momentos e movimentos positivistas que nem admitem sequer outra fonte
de direito que não a lei, p.e., o legalismo positivista centra o direito positivo na lei.
Nota:

- Não confundir o positivismo jurídico (identificação do direito com o direito positivo e a ausência de fundamentação do direito
noutras ordens normativas, como o direito natural) e o positivismo legalista (identificação do direito com a lei);

- Não esquecer que há outros positivismos (p.e., o alemão que vimos anteriormente e que não assenta exclusivamente na lei pois
admite outras fontes de direito);

- Ser legalista não garante que estamos perante um positivismo como o do século XIX (p.e., existem legalismos finalistas
– reduções do direito económico, social, etc. que podem assumir como única fonte do direito a lei que são legalistas e não
positivistas no sentido do século XIX. – se o direito for instrumento para a realização de objetivos externos, deixa de existir um
descomprometimento com o conteúdo, contudo podemos assumir que apenas a lei é fonte desse direito);

- Os formalismos que o século XIX nos legou não foram apenas normativistas-legalistas (como o positivismo francês), pois também
há formalismos nos sistemas de common law, p.e..

Página 102
- Positivismo alemão não foi legalista mas foi normativista porque, do direito consuetudinário a ciência do direito elaboraria
proposições normativas gerais, abstratas, formais e com hipótese/estatuição que eram objeto do direito.

- No positivismo legalista francês temos uma conjugação de normativismo, legalismo e positivismo.

γ) o princípio da independência judicial


Este leva-nos a considerar o poder judicial como um poder, de certo modo,
nulo (como disse Montesquieu).
Ser nulo não significa que tenha a sua relevância reduzida, mas no sentido
em que, para além de não representar nenhuma classe social, assume a função
de aplicação a lei (i.e., ao juiz cabia apenas declarar direito através da sua aplicação
lógico-dedutiva).
Dizer que os juízes apenas estão submetidos à lei garante a sua
independência e autonomia, embora o desonere da sua tarefa.
Mais do que isso, quando Montesquieu propõe que ao juiz, p.e., não devia caber a
interpretação/problematização do sentido das normas e que as dúvidas deveriam ser
remetidas para o poder legislativo (problema da interpretação autêntica) fá-lo com o
objetivo de proteger o juiz, dizendo que este é a mera “boca que pronuncia as
palavras da lei”, e não reduzir a sua relevância.
Se, de facto, a jurisprudência judicial não é, neste contexto, considerada fonte
do direito, a verdade é que continua a ser através da aplicação lógico- dedutiva que o
direito é posto aos sujeitos vinculativamente.
Isto significa que quando considerarmos o método jurídico positivista iremos
concluir que a aplicação da lei é um momento técnico, i.e., nesse momento todos
os problemas de interpretação de uma norma legal já estarão resolvidos.
b) coordenada especificamente jurídica: o direito identificado com a lei e o
sentido moderno-iluminista da lei (norma geral, abstrata, formal e imutável)

Esta coordenada diz respeito à compreensão da lei.

No positivismo legalista francês o direito identifica-se com a lei.

Que lei é esta?

Poderemos dividi-la em dois sentidos:

 institucionalmente, é o resultado da atuação do poder legislativo (sendo


imperativa)
 científica/dogmaticamente, é vista como uma norma (jurídica e legal)

Que norma?

Norma enquanto comando/orientação para a ação.

A norma jurídica e legal que é um enunciado de universalidade racional e


cuja validade aí reside e é composta por hipótese/estatuição, tendo por
características fundamentais aquelas que herdou do pensamento moderno- iluminista (a
generalidade, a abstração e a formalidade a que vem associada a permanência
e imutabilidade, que garante, por um lado, a manutenção do

Página 103
ideário que institucionalizou as revoluções liberais, e por outro lado, a certeza das
soluções jurídicas).

Enquanto para o pensamento moderno-iluminista, a generalidade (enquanto


universalidade dos sujeitos), a abstração (enquanto universalidade do conteúdo) e a
formalidade (enquanto descomprometimento da intencionalidade), agora são
características atualmente impostas – a lei vale por ser lei, do ponto de vista
imperativo, enquanto norma, e apenas é norma se cumprir estas características.

Conclusão:

De facto, o direito identifica-se com a lei e com um certo tipo de lei; se até
aqui esse tipo de lei era um enquadramento racional externo, agora, por ser esse
enquadramento racional externo, é a razão para a ação e a fonte de legitimação e
móbil de ação.

A lei, no positivismo, é a legitimação e a definição da ação


intersubjetivamente relevante do ponto de vista do direito.

Por isso, é a projeção, pela via da institucionalização do Estado demoliberal, do


ideário da lei moderno-iluminista, continuando a manter as características fundamentais
que vimos.

A separação de poderes que o Estado demoliberal operou garantiu que a


criação do direito caberia exclusivamente ao legislador e a sua aplicação
exclusivamente ao poder judicial, ao ponto de se considerar que os juízes apenas
declaram/aplicam direito.

Agora é, então, o poder legislativo institucionalizado que estabelece a norma no


sentido moderno-iluminista, institucionalizando-a como o móbil legitimante para a
ação.

Esta coordenada liga-se com a axiológica porque é essa lei geral, abstrata,
formal e imutável que vai garantir validade ao direito.

c) coordenada axiológica

A validade concedida ao direito não é, agora, substancial/material.

Segundo uma axiologia puramente formal, a validade do direito resulta da


universalidade racional das normas (uma norma é válida se for geral, abstrata,
formal, imutável e composta pela estrutura hipotético-condicional), que constitui o
direito (sob a forma de lei) e lhe garante validade.

Consolidando…

A formalidade da lei, segundo a distinção entre moralidade e direito de Kant, significa genericamente a ausência de
imposição de conteúdo e a mera delimitação de fronteiras onde os sujeitos poderão agir conforme o seu
arbítrio (opostamente à lei moral, onde existe uma exigência de adesão da consciência ao imperativo categórico).

Esta formalidade é distinta da formalidade associada ao direito que trata da sua exterioridade: a
interioridade moral e a exterioridade do direito, que nos é imposto de fora e se basta com a conformidade externa dos
comportamentos às suas prescrições.

Página 104
A lei jurídica é formal porque não faz relevar a intenção com que os sujeitos atuam; a lei moral é
autónoma porque é legisladora de si própria (o sujeito impõe à sua consciência o cumprimento da norma moral), o
direito é heterónomos porque não compromete a realização da ação livre e moralmente boa mas apenas regular os arbítrios (e
não o seu conteúdo), consoante o horizonte da lei geral de liberdade.

A imutabilidade aparece-nos em dois planos: o plano ideológico-político e a garantia da certeza das decisões jurídicas
(lei ser imutável é um fator de segurança).

α) a igualdade perante a lei e a certeza do direito


Neste ponto, os valores que estão em causa são a igualdade perante a lei, que é
garantida por essas características de universalidade que vimos (todos são
iguais perante a lei, por isso esta aplica-se a todos).
Simultaneamente, a igualdade perante a lei garante a segurança enquanto
certeza do direito.
Estas são duas características cruciais para a compreensão desses dois valores aqui
vistos num sentido puramente formal.
β) carácter formal desta axiologia
A axiologia é vista de um ponto de vista formal e até procedimental.
O direito é válido se for, primeiro, criado segundo o procedimento
institucionalmente estabelecido para tal e se for como lei geral, abstrata,
formal e imutável porque isso garante a igualdade perante a lei e a segurança do
direito.
Posteriormente, verificaremos que esta igualdade puramente formal perante a lei
acabou por desconsiderar muitas desigualdades materiais. Tal levará a que, na
superação do positivismo, vejamos a afirmação de um sentido de igualdade material
complementar à igualdade formal que o ideário moderno-iluminista liberal afirmou.
Já quanto à certeza do direito, veremos que falar de certeza/segurança do
direito é falar, sobretudo, da garantia da existência e estabelecimento de
consequências para as questões juridicamente relevantes. Contudo, em
superação à perspetiva positivista, para lá da construção da certeza/segurança do direito,
é preciso pensar/falar/tratar do problema da certeza/segurança dos sujeitos perante o
direito.
Consequentemente, temos uma relação específica e bem delineada entre o
direito e o poder. Se isso tem sido claro até agora, será ainda mais notória de uma
outra coordenada, a funcional.
d) coordenada funcional: a cisão intencional entre direito e pensamento
jurídico
Esta vai dirigir-se à função desempenhada pelo direito, por um lado, e pelo
pensamento jurídico, por outro.
Durante todo o período pré-positivista, dominou uma compreensão de que o direito é
uma ordem normativa prática e o pensamento jurídico é um pensamento
intencionalmente prático.
Já na viragem do pensamento moderno-iluminista para o positivismo, com a
assimilação das exigências racionais das disciplinas empírico-analíticas, o

Página 105
pensamento jurídico, querendo ter o estatuto de ciência, teve de assumir-se como
ciência na relação entre um sujeito e um objeto (em que o sujeito é
cognoscente o objeto é o objeto conhecido).
Esta cisão gera um dualismo normativo-intencional e metodológico.
O dualismo normativo traduz-se na afirmação de que o direito é criado e
pressuposto como dado/objeto cognoscível, enquanto que o pensamento
jurídico é o conhecimento desse direito.
Por outras palavras, traduz-se em continuar a reconhecer que o direito é uma
ordem normativa prática (constituída legitimamente pelo poder legislativo e
pressuposta) criada e dada ao pensamento jurídico, que surge como um
pensamento teorético-cognitivo e lógico-apofântico a quem cabe o
conhecimento desse objeto dado e a construção de enunciados de universalidade
explicativa (teorias) sobre esse mesmo objeto.
Com isto, o direito é criado pelo poder politicamente legitimado para tal e a ciência
do direito assume-o como um pressuposto.
Temos com isso, consequentemente, um dualismo intencional, porque a função
que o pensamento jurídico assume é, agora, a de estabelecer o conjunto de
afirmações sobre a regularidade de fenómeno direito (enquanto objeto dado
cognoscível) e, por isso, se o direito é intencionalmente prático o pensamento jurídico é
intencionalmente teorético.
Este dualismo normativo-intencional projetar-se-á no dualismo metódico: o
direito é, no sistema jurídico, constituído, assumindo-se como uma entidade
racionalmente autossubsistente e como objeto da ciência do direito. Por
isso, o momento da criação do direito é intencionalmente distinto dos
momentos da sua construção hermenêutica e conceitual e da sua aplicação.
Conclusão:
Temos de considerar a relação entre o direito e o poder, no sentido de que o
direito é criado por um poder legitimamente estabelecido para tal e, uma
vez criado, é, para o pensamento jurídico, pressuposto.
O direito é um ordenamento normativo prático e o pensamento jurídico é
um pensamento teorético que visa ser ciência e, por isso, tem de cumprir as
exigências das ciências empírico-explicativas na conceção positivista do século XIX.
Significa que o direito é criado pelo legislador e vai ser tratado pela ciência do direito
como um objeto cognoscível.
Se a intenção do direito é prática (porque regula a vida social), a intenção do
pensamento jurídico é teorética (porque é a construção de uma ciência do direito).
 Dualismo normativo: o direito é criado pelo poder legislativo e não pelo
pensamento jurídico ou pelo poder judicial
 Dualismo intencional: o direito é intencionalmente prático e o
pensamento jurídico é intencionalmente teorético
 Dualismo metódico: transitamos para a próxima coordenada

Página 106
e) coordenada epistemológico-metodológica
De facto, o método jurídico positivista que encontramos na confluência das propostas
de duas escolas, implicava alguns momentos fundamentais numa construção
hermenêutica, primeiro, e científica, depois, bem como um momento técnico
de aplicação.
Nos dois primeiros momentos (relacionados entre si), estamos no âmbito da
intenção teorética do pensamento jurídico – a ele cabe pensar e interpretar
(momento hermenêutico) o direito pré-dado e, subsequentemente, a construção
teorética e conceitual sobre o objeto (momento científico), onde já teremos o
direito objetivo enquanto direito cientificamente tratado em princípios gerais de direito
e em conceitos.
Já no terceiro momento, encontramos a aplicação do direito pré-constituído
e já hermenêutico-cientificamente tratado.
Neste sentido, existe uma cisão lógica e cronológica entre o momento da
interpretação/construção conceitual e o momento da aplicação.
A aplicação é tida como cientificamente aproblemática porque todas as
questões referentes à elaboração científica e sentido do direito já estão tratadas.
Isto não significa que a norma não seja interpretada e que o juiz ou outro operador
jurídico) não interpretasse a norma, mas sim que a interpretação era feita num
momento anterior ao momento da aplicação.
Que aplicação?
A aplicação lógico-dedutiva das normas no positivismo do século XIX,
seja ele legalista ou científico-dogmático.
I.e., a aplicação é considerada como uma operação de lógica formal que é feita
através da convocação de um silogismo jurídico, onde teremos uma premissa
maior, uma premissa menor e a conclusão.
- A premissa maior é a norma jurídica.
- A premissa menor é a subfunção do facto à hipótese da norma (só faz sentido falar de
uma relação entre facto e norma se o facto for uma espécie em concreto do género que a
norma descreve em abstrato).
Temos, então, uma relação entre factos e normas que é ajuizada.
Isto significa que as características fundamentais do positivismo do século XIX se
concentram nestas cinco coordenadas caracterizadoras.

Página 107
Página 377-399, de Fernando José Bronze – Lições de Introdução ao Direito (Lição 12)

3) A atual superação do positivismo jurídico


a) Fatores do contexto histórico-cultural e político-social
À medida que fomos avançando na análise das notas caracterizadoras do positivismo
jurídico do século XIX demos conta que, em cada uma delas, há afirmações postas em
causa pelas correntes discordantes do positivismo.
Assim, ponto por ponto e face a cada uma das coordenadas, encontraremos
argumentos contrários que visam rebater essas afirmações essenciais do
positivismo do século XIX.
A proposta que seguimos, partindo das lições de Pinto Bronze, leva-nos a
identificar fatores de cariz cultural e político-social que procurarão conjugar a
referência a um novo sentido de cultura e a uma nova intencionalidade
político-social.
Fundamentalmente, está em causa a análise de uma nova antropologia, uma
nova compreensão quanto à racionalidade e quanto à intencionalidade político-social.
Sabemos que esta superação do formalismo do positivismo jurídico, para além de
não ser unívoca, não apagou as características do mesmo.
Desde logo, o intelectualismo científico que dominou o pensamento
positivista, seguindo o paradigma das ciências da natureza (empírico-
experimentais/analíticas), a que correspondeu o pressuposto fundamental da
racionalidade formal do contexto liberal foi sendo superado e posto em crise,
nomeadamente no que diz respeito à sua dimensão empírico-analítica, filosófico-
matemática e lógico-apofântica.
Especificamente, consideramos que a racionalidade privilegiada pelo positivismo
foi, desde a sua afirmação, criticada do ponto de vista da

Página 108
fundamentação do direito que convocava (abdicando da referência a um direito
natural e, portanto, afastando as perspetivas jusnaturalistas e moderno- iluministas, para
afirmar que o direito positivo não necessitava de qualquer fundamento fora dele próprio,
bastando-se a si mesmo na sua racionalidade e prescritividade formal).
Enfrentamos, assim, a crítica à perceção de que a racionalidade tem como
único paradigma o cientismo.
Para esse efeito, vários fatores contribuem. Porque, mesmo que crítica à construção
formalista advenha de diversas áreas do conhecimento e se desenvolva em diferentes
sentidos, existe alguma confluência.
Nesta viragem do século XIX para o XX, existe a constatação de que a
consideração dos sujeitos como formalmente iguais, livres e
desvinculados, relacionando-se se e na medida em que tenham interesse
nisso, deixa veladas muitas desigualdades e injustiças materiais.
Por isso, considerar que os problemas da vida prática são suscetíveis de ser
resolvidos como se de problemas científicos se tratassem é uma redução da
realidade a factos (fenómenos cognoscíveis e determináveis cientificamente).
Mas a vida não é só isso. Por isso, há uma espécie de novo renascimento que vem de
vários movimentos, como p.e., o vitalismo, o intuicionismo, o existencialismo, a
fenomenologia e outros posteriores que encontraremos na construção da
intersubjetividade.
Aqui, o objeto do nosso estudo implica tomar consciência de que, ao lado
da determinação epistemológica da racionalidade (i.e., da dimensão teorético-
cognitiva), há uma dimensão de compreensão a que vai ligada a racionalidade
prática.
Portanto, há uma diferença fundamental que Kant já tinha estabelecido de modo
indelével: para lá da dimensão epistemológica da determinação teorético- cognitiva,
temos a dimensão prática da racionalidade que não apela ao conhecimento
de um objeto, mas à compreensão/pensamento concreta sobre a ação.
Para além disso, verifica-se a determinação cognitiva das ciências, que
sofrerão uma alteração no seu paradigma entre sujeito e objeto e assumirão uma
discursividade comunicativa com uma relevância fundamental que veremos a
seguir.
Assim, a diferenciação entre a dimensão teorética e a racionalidade prática, é ainda
hoje muito discutida, com o objetivo de compreender a distinção entre a
racionalidade (determinação lógico-científica) e a razoabilidade (questão
compensatória na ausência da racionalidade para a compreensão do sentido).
Na perspetiva que analisamos, uma sem a outra não fazem sentido, pois não há
apenas a racionalidade teorética ➜ o cerne da superação é a racionalidade prática, ao
lado do logos teorético, bem como a assunção e desenvolvimento das disciplinas
hermenêuticas enquanto filosofia prática.

Página 109
α) uma nova cultura
A ideia de que a interpretação da cultura, mesmo que a víssemos na
referenciação da tradição enquanto um texto hermenêuticamente determinável, tem
implicações reflexivas práticas.
Assim, a sua constituição não depende apenas de determinações lógico- teoréticas.
Esta transição da perspetiva da cultura irá manifestar-se em vários movimentos:
filosófico-culturais, artísticos (a afirmação da especificidade da obra de arte face à
possibilidade de reprodução de imagens que, na época, a fotografia começava a
permitir, o que nos leva à transição do realismo para o surrealismo ou do
impressionismo para o pós-impressionismo), etc..
Esta projeção estética da compreensão do singular, do único e do concreto
é tão relevante que vários autores escrevem sobre a perda que a reprodução automática
provoca quando se perde a ligação direta entre o autor e a obra (com a reprodução em
massa, p.e.).
αα) uma diferente perspetiva antropológico – cultural
Assim, enfatizamos que, neste contexto, a afirmação da individualidade da
dimensão estética é transponível para a concretização do ser humano na
realidade.
A ideia de que ao se considerar que o sujeito liberal burguês é predefinido, em geral e
abstrato, como um ser livre/desvinculado que estabelece ligações em função do
interesse da realização da sua autodeterminação e está, simultaneamente, padronizado
em função de uma generalidade, abstração e formalidade consideradas, se perde toda a
singularidade em concreto da circunstância de cada sujeito.
Esta perceção, na segunda metade do século XX, tem grande incidência, p.e., ao nível
da literatura, em obras como “A obra de arte na época da sua reprodutividade
técnica”, “A sociedade industrial” ou “O homem dimensional”, onde verificamos
exatamente a perda que a massividade provoca quanto ao caráter concreto
e circunstancial da condição humana (“eu sou eu e vivo na minha
circunstância”).
A intersubjetividade é vista como condição essencial à construção do
sujeito e a circunstância concreta do mesmo como elemento constitutivo.
Encontramos, então, a alteração da compreensão da posição do ser
humano perante si, os outros ou a intersubjetividade (incluindo jurídica).
ββ) um novo quadro epistemológico (as “ciências da cultura”,
a hermenêutica)
Por outro lado, encontramos a superação da relação sujeito-objeto (i.e., a
construção da objetividade científica da verdade na relação entre um sujeito
cognoscente e um objeto conhecido).
Conjuga-se, mesmo nas ciências empírico-explicativas, a epistemologia crítica
com a estrutura dialógica da construção da verdade, significando que se
supera o método indutivo pelo método dedutivo (método progressivo da

Página 110
tentativa-erro) – o crivo da experiência: a corroboração ou falsificação, pela
experiência, das afirmações que se apresentam como hipóteses para criar teorias cuja
validade científica depende da discussão entre pares.
Então, por um lado, a estrutura sujeito-objeto permanece, mas o método
científico muda no sentido de que se abandona a construção indutiva que logicamente
permitira a construção de conceitos alheando-se da observação e da experiência, para
afirmar que o método científico é dedutivo, estando em causa refletir
criticamente sobre a projeção prática das afirmações (teorias tentativa que são
experimentadas e, posteriormente, corroboradas ou falsificadas).
Esta nota é crucial para compreender que, de facto, o discurso científico muda,
ainda que a pressuposição da determinação epistemológica do sujeito cognoscente e
objeto conhecido permaneça.
Mas há uma nota fundamental: ao lado da compreensão das ciências empírico-
explicativas, recupera-se a construção das ciências sociais e humanas (p.e.,
a sociologia do direito) que afirmarão a sua racionalidade prático-argumentativa
e a construção discursiva comunicativa de sentidos com validade científica
(diferente da afirmada pelo cientismo).
γγ) a restauração do sentido específico da praxis (o fazer e o
agir, a técnica e a prática)
Logo, temos toda uma recompreensão do sentido da prática que verificamos: se
até aqui tínhamos uma cisão entre o logos teorético com efetiva racionalidade e
verdade, de um lado, e o logos prático, do outro, agora temos uma recuperação da
racionalidade prática que convoca uma fundamentação material para a
conferência de sentido numa relação de fundamento- consequência para as suas
prescrições e decorrentes ações.
Assim, há dois paradigmas que agora convivem, bem como correntes que avançarão
no sentido da técnica/saber fazer dadas pela epistemologia.
Toda esta construção encaminha-se para as considerações de que:
- além dos problemas do conhecimento/determinação epistemológica, há
problemas de compreensão que, por serem do ser humano, não se reduzem apenas
à primeira dimensão
- o ser humano não é definível em geral e abstrato, mas sim um ser que particular e
concretamente assume características muito específicas (sendo a dimensão
material crucial)
β) uma nova intencionalidade político-social
Encontraremos um avanço na afirmação de um individualismo liberal, i.e., a
ideia de que os Homens são abstratamente livres e iguais, onde a conceção formal de
igualdade sofre uma progressiva construção para um ideal social- democrata em que,
por um lado, por baixo das desigualdade formais se vão afirmando as desigualdades
materiais e se afirma progressivamente uma compreensão material da igualdade.
Isto não significa que a igualdade implique sempre ser uma determinação

Página 111
geral, abstrata e formal, como um pressuposto necessário cuja correção passe pela
diferença/diversidade.
A igualdade material não é o inverso da igualdade formal, mas sim um reverso,
pois uma dimensão não existe sem a outra (p.e., o art. 13º da CRP).
De facto, a transição para as democracias sociais implicou a afirmação
da dimensão de concreto que é intrínseca ao ser humano. Portanto, a ideia de
concretização de igualdade material implica muito mais do que a definição geral
e abstrata da igualdade.
αα) o compromisso social – o “Estado social” ou Estado
providência” e a sua crise atual
Isto implica, por um lado, um compromisso social que se veio a institucionalizar
sob a forma de Estado social / providência (aquele que assume como sua incumbência a
prestação de bens/serviços aos seus cidadãos, hoje em crise social) e as próprias
construções pós-liberais do Estado (que evoluíram no sentido das democracias
liberais ou num sentido mais neoliberal).
Estas duas dimensões não são extremas, mas implicam uma diversidade ideológica
por conviverem hoje na construção dos Estados de direito do nosso tempo.
ββ) a chamada ao concreto e às circunstâncias histórico-
sociais
Esta chamada ao concreto, às circunstâncias histórico-culturais, à perspetivação
do ser humano na sua circunstância e aos ideários que, quer por via das
consequências da revolução industrial quer por via das duas grandes guerras mundiais,
gerou perspetivações constitucionalmente consagradas que conferem
diferentes compreensões do sentido material do direito e fazem impender
sobre o Estado um conjunto de competências e deveres fundamentais para a
manutenção de um certo sentido de equilíbrio material que em muito diverge da
pressuposição que ao Estado demoliberal presidia (competia-lhe garantir a segurança
dos cidadãos e a certeza do direito).

Página 112
Página 399-405, 412-439, 439-457, de Fernando José Bronze – Lições de Introdução ao Direito (Lição 12)

b) Fatores especificamente jurídicos

Esta transição implicou que, do ponto de vista jurídico, se notem diferenças


substanciais.
α) a superação do juridicismo formal por uma intenção jurídica
material (“cláusulas gerais”, “abuso do direito”, o novo sentido do “princípio da
autonomia privada”)
Nesta compreensão, cruzam-se sentidos de superação da coordenada político-
institucional, especificamente jurídica e axiológica do positivismo.
Poderemos, a partir desta cisão entre o juridicismo formal e intenção jurídica
material, superar todas as coordenadas.
De que juridicismo formal se fala?
Efetivamente, para o positivismo, primeiro, o sujeito de direito seria o sujeito
visto geral e abstratamente como indivíduo que o liberalismo construiu.
Desta forma, o direito é aí visto como uma prescrição formalmente
estabelecida no sentido de que, desde que cumpridos os requisitos formal-
procedimentalmente escritos, o direito admitiria qualquer conteúdo.
Com isto, reafirma-se que o direito visaria tutelar as posições relativas dos
sujeitos mas aquilo que o caracterizaria como direito não era o conteúdo afirmada e
sim o modo da afirmação (no positivismo legalista, p.e., todo o conteúdo que fosse
criado sob a forma de lei seria direito) – o conteúdo não seria discutido, apenas a
forma estaria em causa quando se considerasse a juridicidade.
Isto é assim na coordenada político-institucional (princípio da separação dos poderes
e da legalidade), na coordenada especificamente jurídica (direito identifica-se com a lei
geral, abstrata, formal e imutável), na coordenada

Página 113
axiológica (a lei é válida, garantindo a igualdade formal perante a lei e a certeza do
direito), na coordenada funcional (a lei criada pelo poder legislativa é, para o
pensamento jurídico, objeto de conhecimento enquanto norma e vai, em abstrato, ser
interpretada por ele, sendo sobre a norma elaborados princípios gerais de direito e
conceitos como enunciados de verdade científica sobre a regularidade do fenómeno lei)
e na coordenada epistemológico-metodológica (a lei, depois da operação científica em
abstrato, será aplicada lógico- dedutivamente aos factos que lhe correspondam).
Este juridicismo formal tanto se afirma do ponto de vista institucional, projetado
na lei, no sentido de relevância do ponto de vista e da aplicação, quanto no modo por
que os sujeitos destinatários desse direito-lei o encaram reciprocamente.
Se o direito regula, formalmente, a relação entre os arbítrios (e não o conteúdo),
quem age no contexto do âmbito formal que lhe é definido, age com intenção que quiser
o seu arbítrio.
A lei é enquadramento e móbil de ação.
Neste sentido, temos aqui de compreender que, formalmente, o direito deixaria de
fora boa parte das circunstâncias da realidade.
Assentaremos a validade do direito no construção comunitária de
compromissos (dialógica, mas não meramente discursiva-procedimental), sendo que
os valores que fundamentam o direito são construídos intersubjetiva e
dialogicamente e não são meramente contingentes, sendo projetados para fora da
comunidade e retroprojetados como condições de possibilidade de realização de um
certo sentido material que, no direito, será traduzido na confluência de um
compromisso prático em torno de valores fundamentais a realizar que serão
traduzidos para o sistema jurídico sob a forma de princípios normativos.
Assim, falar de uma fundamentação trans-legal do direito é falar de uma
axiologia/conteúdo específico do direito a que vai associado um modo de
pensamento prático também específico para o direito.
Exemplo caricatural:
Prever, em geral e abstrato, a proibição da mendicidade seria muito diferente
consoante os destinatários mas poderia estabelecer-se numa norma geral, abstrata,
formal e imutável e, portanto, seria imposta igualmente a todos.
É deste tipo de formulação descomprometida do conteúdo e da posição
concreta dos destinatários da lei que se trata quando se fala do
juridicismo formal do ponto de vista da construção legislativa, por um lado, e da
compreensão que os sujeitos têm sobre a sua atuação intersubjetiva no
domínio da juridicidade.
Para a construção positivista, a afirmação da autonomia é muito mais ampla que a
determinação da responsabilidade.
Veremos que a superação dessa intenção formalística conduz a uma
progressiva relevância do sentido material do conteúdo e da intenção com
que o direito é criado e como é exercido pelos sujeitos seus titulares que vai

Página 114
implicar que, em virtude de uma responsabilização pela intenção/conteúdo, a dimensão
da responsabilidade do comune se dilate na superação do positivismo.
Vemos esta dilatação e relevância da intencionalidade material na consideração dos
valores e das circunstâncias concretas dos diferentes ramos do direito:
 Direito constitucional: no modo como os direitos fundamentais estão
consagrados nas constituições (comparando a CRP de 1976 com a de 1822).
 Direito administrativo: para lá da determinação formal da atuação dentro da
legalidade, temos duas dimensões materiais de proibição do excesso
(princípio da proporcionalidade) e da discricionariedade enquanto
característica da atuação administrativa no enquadramento formal e material da
lei habitlitante.
Por outras palavras, veremos que além da dimensão da legalidade, a dimensão
dos fundamentos materiais (reconhecidos sob a forma de princípios normativos).
 Direito penal: a acentuação progressiva do direito penal do facto (e não da
personalidade), de que a pena só pode corresponder à prática de um facto típico,
ilícito e punível com base na perceção ética de pessoa, incluindo o arguido.
 Direito privado civil (onde nos concentraremos):
Aqui, iremos analisar a relação direta que, no nosso direito positivo se verifica,
entre a construção individualista do CC de 1867 e as propostas de superação
materializante do CC de 1966.
- o instituto do abuso do direito
A superação do juridicismo formal para uma intenção jurídica material no âmbito da
construção do nosso CC de 1966.
Pensar em abuso do direito implica que pressuponhamos a distinção entre
direito objetivo e direito subjetivo.
Esta matéria iremos analisá-la em IAD II, mas agora é essencial estabelecer esta
diferença:
Direito objetivo: direito visto da perspetiva da OJ, o direito enquanto ordenamento
jurídico que está objetivado perante nós (destinatários do mesmo)
– direito positivado sob forma de normas legais, p.e.
Direito subjetivo: sendo o sujeito titular de direitos, este é o direito titulado por
um sujeito – direito à imagem, de personalidade, p.e.
Neste sentido, o abuso do direito refere-se ao abuso do direito subjetivo
por parte do seu titular.
Não se trata, por isso, do direito ser vítima de abuso enquanto conjunto de leis.
Há que distinguir o abuso de poder e o abuso do direito: o poder, uma

Página 115
competência conferida por lei a um sujeito, implica direitos e deveres no âmbito do
exercício de uma determinada função; o abuso do direito é o exercício abusivo de um
direito que se titula.
Que relevância tem como exemplo de superação do positivismo do século XIX?
Para o positivismo do século XIX, a compreensão formal da definição dos direitos e
do próprio exercício dos direitos subjetivos implica que o direito não se comprometesse
a intenção com que o sujeito exercia o seu direito, desde que não ultrapassasse os
limites formais da definição legal.
Vemos, p.e., o art. 13º do CC de 1867, segundo o qual “quem, em
conformidade com a lei, exerce o próprio direito não responde pelos prejuízos
que possam resultar desse mesmo exercício”: aqui temos uma delimitação
formal de que, quem age dentro dessa delimitação formal do direito
subjetivo, não responde por danos que não estejam tipificados e tenham sido
provocados por esse mesmo exercício.
Ora, esta delimitação formal de que quem age no âmbito do seu direito subjetivo é
livre de o exercer no sentido que bem entender segundo o seu arbítrio,
independentemente de isso prejudicar ou não terceiros, foi alvo de críticas muito
diretas porque, em termos jurisprudenciais, a determinação formal da licitude
pode encobrir prejuízos que deveriam ser juridicamente relevantes (e que,
no contexto do positivismo do século XIX, não eram).
Esta construção, com início na jurisprudência francesa, será corroborada, p.e., por
Laurent da Escola da Exegese, que irá procurar saber se o exercício de um
direito subjetivo é, do ponto de vista material, ilimitado.
Posteriormente, as dogmáticas influenciaram a construção dos vários CC.
A projeção desta ideia para o nosso CC tem forte influência do art. 281º do CC
Grego.
O nosso CC de 1966, no seu art. 334º, consagra o abuso do direito: “é ilegítimo
o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites
impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico
desse direito”.
Assim, segundo Castanheira Neves, no exercício abusivo de um direito temos
uma desconformidade entre a delimitação formal do direito subjetivo e a
violação, em concreto, do fundamento que, material- normativamente, constitui
esse direito (i.e., uma contradição entre o cumprimento da estrutura formal e a
violação do fundamento material do direito subjetivo que se titula).
Por isso, se um proprietário que constrói no seu terreno uma chaminé com única e
exclusiva finalidade de prejudicar as vistas do proprietário vizinho, temos um exemplo
de abuso do direito.
Por outro lado, não incorrerá em abuso do direito quem não for titular de um direito:
se A entra na casa de B, sem ter de nenhum direito sobre essa casa, A não estará a
abusar de um direito pois não titula nenhum.
Para existir abuso do direito quem o exerce tem de ser titular do direito!

Página 116
- o princípio da liberdade contratual e os seus contornos materiais
Este exemplo tem a ver com o conteúdo intencional da atuação no âmbito
do exercício de direitos, mas diz respeito a um contrato.
O princípio da liberdade contratual está consagrado no art. 405º/1 do CC,
onde falamos da livre fixação do conteúdo dos contratos.
Estando dentro do princípio da autonomia privada, comporta as liberdades de
(não) contratar, da escolha de quem se contrata e de afixação do conteúdo dos contratos
(no art. supracitado).
Para uma perspetiva formalista-positivista, esta liberdade contratual implicaria a total
liberdade na construção desse contrato e, eventualmente, a não relevância de uma
intenção danosa não prevista que pudesse estar a presidir a celebração do mesmo.
Uma vez celebrado o contrato, vigoraria o princípio respeitante à eficácia dos
contratos, no art. 406º/1 do CC, o chamado pacta sunt servanda (“os pactos
devem ser respeitados”).
Ora, este princípio era crucial no positivismo e continua a sê-lo hoje.
A questão reside, agora, em saber se era possível admitir algumas
exceções a este princípio.
Temos, assim, três momentos na construção e desenvolvimento de um contrato:
1) Momento da negociação
Uma compreensão formalista dita que aqui não há responsabilidade.
Porém, o nosso CC consagra a responsabilidade civil pré-contratual (ou culpa in
contrahendo) – p.e., o art. 227º/1 do CC.
Assim, existe uma exigência material de compromisso prévia à celebração
do contrato quando uma das partes contraentes se retira e isso produz danos,
culposamente, para a outra.
2) Momento da celebração
3) Momento da execução/cumprimento
Os sujeitos estão vinculados ao cumprimento do contrato, mas existem exceções.
P.e., supondo que em virtude de alguma situação imprevista que implicasse que uma das
partes se visse na contingência de cumprir a sua obrigação. Quid iuris?
Para uma compreensão positivista, o pacta sunt servanda implicaria que os sujeitos
ficassem absolutamente vinculados à vinculação livre.
Na superação do positivismo, é proposta a cláusula rebus sic stantibus que permite a
alteração superveniente das circunstâncias das coisas – no art. 437º/1 do CC.
- as cláusulas contratuais gerais

Página 117
Teremos de considerar a limitação à liberdade de fixação do conteúdo dos
contratos estabelecida por estas cláusulas, pelo estabelecimento de contratos
apenas compostos por estas.
As cláusulas contratuais gerais são cláusulas estabelecidas
padronizadamente em contratos pré-tipificados que visam a celebração
de contratos em massa, regulados pelo decreto lei nº 446/85 de 25 de outubro, e
que estabelecem os limites a esse tipo de conteúdo contratual já que, nos
casos concretos, uma das partes fica com a sua liberdade contratual de aderir ou não a
estas cláusulas limitada.
Neste sentido, acentuamos que todas as dimensões materiais que a liberdade
contratual positivista defendia têm hoje algumas limitações materiais em nome da
dimensão comunitária e da responsabilidade da validade material da
atuação.
- as cláusulas gerais
Os conceitos indeterminados são conceitos cujo conteúdo e extensão
são incertos e indeterminados – pensamos em circunstâncias de facto, que só em
concreto são possíveis de determinar, como p.e., as circunstâncias do caso, o feito
social/económico do direito, a afetação grave, os riscos próprios do contrato, etc..
As cláusulas gerais são conceitos normativos extralegais para que a lei
nos remete, que serão fundamentais para uma realização normativamente adequada
do caso concreto.
Seguindo a noção de Reis Marques, temos de verificar que as cláusulas gerais são
remissões que as leis fazem para juízos extralegais, para a dimensão
trans-legal e para a fundamentação material.
P.e., a referência ao princípio da boa-fé.
Desta forma, temos aqui vários mecanismos que nos mostram que, por um lado, o só
formalismo da terminação legal é redutor para a realização do direito, por
outro lado, que o juízo decisório não pode ser lógico-dedutivo porque, se o for,
realizará logicamente o direito mas não a justiça material (jurídica) para o caso
concreto.
β) a alteração do sentido do “princípio da igualdade”
A igualdade formal da perceção positivista positivada através da lei é superada
quando se assume que não é a lei que define a igualdade, mas a lei está vinculada
ao princípio da igualdade.
O fundamento da lei é trans-legal, pois o princípio da igualdade impõe-se à
lei.
Se a lei não estabelecer uma igualdade material, será inválida e, eventualmente,
inconstitucional.
Mais do que isso, a igualdade perante a lei é uma igualdade perante o direito (que vai
além da lei, porque o sistema jurídico não é fechado).

Página 118
γ) o carácter lacunoso do direito constituído e a constituição do
direito na sua problemático – concreta realização judicativa
Na superação do positivismo há um reconhecimento de que o problema das
lacunas não é uma situação patológica de contra-polo entre previsão literal ou
ausência de previsão literal, mas é antes uma condição natural do direito.
O sistema jurídico é aberto ao diálogo com a realidade, sendo constituendo
(e não fechado constituído).
Existem problemas justificadamente reconhecidos como juridicamente relevantes
para os quais não há norma legal, o que não significa que não sejam juridicamente
relevantes mas que, admitindo o art. 8º do CC, determina que, se o problema é
juridicamente relevante, ele tem de ter uma solução jurídica.
Ser juridicamente relevante não implica estar previsto na lei.
δ) o direito a distinguir-se da lei
O direito e a lei, de facto, não se confundem.
A lei é um dos modos de criação do direito, entre outros, e tem de responder
ao problema da sua fundamentação face aos princípios normativos em que deve
fundamentar-se.
ε) a evolução do Estado-de-Direito (formal) de mera legalidade para
o Estado-de-Direito (material)
É isto que leva à consideração de que, efetivamente, a relação entre o Estado e o
direito se alterou decisivamente.
Enquanto que na perspetiva do Estado demoliberal vimos que a partir daí é que
falamos de Estado-de-direito pois o Estado submete a sua atuação ao direito, que é um
instrumento para a realização do direito do Estado, no Estado- de-direito material o
Estado vem relacionar-se equilibradamente porque é um Estado a que o direito se
dirige e sobre que tem, realmente, legitimidade para fixar a sua
competência e legitimação jurídico-política, necessitando, ao mesmo tempo, de
ser um poder instituído pelo Estado para se efetivar (não sendo um direito que
sirva o Estado no sentido da determinação formal de um projeto como se verificou no
Estado demoliberal).
Chegamos agora à atualidade, sendo o próximo passo o de refletir aquilo que
queremos que o direito seja hoje.
Tal iremos ver em IAD II.

Página 119
AULA PRÁTICA – O
Sentido específico do direito

O direito tem dimensão normativa: o que o distingue das outras dimensões e lhe dá autonomia.

Faremos um percurso rápido ao longo dos séculos, passando pelo século XIX (paradigma do positivismo – pensando que não existia outra forma de fazer
direito). Hoje, não temos nenhum paradigma: temos múltiplas visões sobre o que é e deve ser o direito.

Contexto pré-moderno (do DR a hoje):

 Século XV para trás – arco pré-moderno, dividido entre a época clássica e a época medieval

Homem era entendido como o homem que se inseria numa ordem transcendente pela qual não era responsável e os princípios orientadores da sua prática eram
assumidos como estando nessa ordem – falamos, por isso, de comunidades (implica integração forte dos membros que assumem valores sem discutir e praticam-
nos). Falamos da polis grega, civitas romana e respublica medieval – direito natural (jusnaturalismo).

Portanto, o direito, apesar de ser uma tarefa prática de resolução de problemas em Roma e foi assim que se manteve durante a IM, a resposta aos problemas era
dada respeitando os referentes imutáveis e ahist´´oricos da ordem transcendente.

Claro que, ao dizer isto, não podemos esquecer que a fundamentação da ordem transcendente era diferente no contexto clássico (fundamentação cosmológica –
ordem do Ser; os valores eram entendidos como verdadeiras entidades metafísicas eternas pelas quais o homem não era responsável, procurando explicitá-las e ser
orientado por elas) e no contexto medieval (fundamentação teológica – ordem de Criação; transcendência ligada a Deus, que é onde encontramos valores que
orientam a prática)  isto não significa que direito não é uma tarefa prática.

 Século XV e XVI – rutura moderna

Mudança radical do ponto de vista: homem deixa de se compreender inserido numa ordem transcendente, procurando compreender-se a si e aos domínios da
prática a partir de si mesmo como ser racional.

Homem assume-se como ser livre, de vontade, de interesses e racional – características permitem romper com a transcendência e compreender todos os domínios
do conhecimento pela razão humana.

Mudança de um direito natural para um direito natural que a razão conhece – o jusnaturalismo passa a ser o racionalismo. Rutura

moderna vai ganhando peso e vai influenciar a cremação do positivismo, nos finais do século XVIII e século XIX.

O que defende a visão positivista do direito?

Trata o direito pura e simplesmente como estando identificado pela lei: direito é criado pelo legislador como um objeto posto e imposto pelo poder legislativo –
positivismo estabelece como única fonte do direito a lei.

Direito é produto da vontade do poder legislativo em regime de monopólio.

Introdução de uma cisão fundamental entre o poder legislativo e a aplicação a prática: todo criado pelo legislador e aplicado pelo juiz (logico- dedutivamente,
onde a norma legal passa a ser o prius criada previamente).

Agora, assiste-se a uma divisão absoluta entre direito e pensamento jurídico: até aqui, o direito e o pensamento jurídico partilhavam a mesma intenção de
justiça, depois direito é encarado como objeto previamente criado posto e imposto e o pensamento jurídico influenciado pelas ciências também quer ser ciência e
ter um objeto para descobrir em termos puramente cognitivos (direito = objeto, pensamento jurídico = ciência que pretende conhecer cognitivamente o direito).

O papel do juiz era aplicar de forma neutra o direito tratado em abstrato (sendo um conjunto de factos desarticulados) – lei aplicada de forma logico-
dedutiva, o que garante a neutralidade do juiz.

Resposta que legislador deu em abstrato, é a resposta que iremos dar ao caso – juiz passa de uma premissa maior (norma), para uma menor (sob solução dos
factos à hipótese da norma) e conclui que a resposta a dar ao caso é a que o legislador deu – conclusão lógica é a de que a resposta é a necessária.

Isto implica recuar no tempo para perceber quais os fatores que determinam o surgimento do positivismo:

 filosófico-cultural geral (pensamento moderno iluminista)

Antropológico

Assistimos ao surgimento de uma nova conceção do homem, que passa a ser compreendido como um ser de autonomia, liberdade e vontade, onde o homem
moderno é um ser de extraponência (encontra o sentido da sua existência em si) e passa a compreender-se como um ser de imanência (autor de si próprio).

Ao desligar-se de tudo o que é exterior a si, o homem cai num individualismo: assume a pretensão de se auto-regular – construir uma ordem a partir de si
(sociedade e o Estado = criações humanas), passa a dar a si mesmo as normas reguladoras da sua existência e define as leis da sua própria vivência.

Com que instrumento? A legislação – instrumento que homem mobiliza para cortar as amarras com a transcendência e formar o individualismo moderno.

Página 120
Cultural

1. Plano da religião: modernidade trouxe o secularismo (absolutização da ideia de secularização = reconhecimento por parte do homem dos valores do
século, i.e., do tempo da história). Homem é responsável pela sua própria história, não se deslocando de Deus para o homem a responsabilidade pelo evoluir da
espécie humana – há corte com a transcendência de Deus, sendo as regras agora ditadas única e exclusivamente pelo homem através da legislação.

2. Plano racional: afirmação do racionalismo moderno (absolutização da razão moderna: a própria razão era entendida como uma razão que se bastava a si
própria, autossuficiente, que não partia do mundo). Homem entendia que a resposta para tudo partia da razão humana, sendo possível contruir, a partir de axiomas
racionais (verdades incontestáveis da razão), de forma especulativa sistemas acabados para todos os domínios do conhecimento  racionalidade moderna =
racionalidade axiomático-normativa.

O direito passou a ser uma construção racional: direito posto e imposto pelo poder legislativo, onde os casos vêm depois (direito posterior e lógico-
dedutivamente aplicado aos casos).

Racionalismo leva à afirmação do legalismo, que identifica o direito como um sistema abstrato de normas legais.

Direito identificado com a lei, com características de norma (não sendo qualquer produto do poder legislativo que pode ser identificado como lei)
– a generalidade, abstração e formalidade em sentido estrito (e a permanência).

3. Plano da historicidade: afirmação do historicismo (absolutização da noção de hisotiricidade = compreensão da historia com base numa visão de
conjunto, onde o presente é o reflexo do passo e uma projeçao do futuro). Historicidae permite-nos compreender o que somos hoje com base no que fomos ontem e
iremos compreender-nos amanhã com base no que fomos hoje – coerência totalizante onde não separamos os tempos. Com historicismo perde-se o fio condutor da
evolução da história, onde os acontecimentos acontecem isoladamente  historia = sobreposição de acontecimentos, que se anulam uns aos outros.

Esta visão leva à afirmação do individualismo, pois os acontecimentos históricos são compreendidos em função da vontade do homem, portanto desligados da
história concreta por detrás desses acontecimentos.

Social

Projeção do individualismo: assistimos à emergência de um novo modelo de produção.

Qual? O capitalismo (e a ascensão da burguesia). Permite que o homem se afirme como homo economicus, que realiza todos os seus interesses económicos de
forma plena. Na satisfação dos interesses, o “outro” é o meio de acesso aos bens escassos.

Homem individualista (e egoísta) que pretende realizar de forma plena todos os seus interesses económicos e necessidades subjetivas.

Como esses bens são escassos, temos de estabelecer regras no acesso a esses bens escassos – regras deviam ser iguais para todos: lei orientará o acesso aos
bens e a satisfação dos interesses.

Político

Remete-nos para o contrato social. O Homem moderno é um ser individualista que afirma a lógica do “cada um por si”, tendendo a negar o outro, mas sendo
obrigado a viver com ele.

Sociedade é uma criação humana com base no contrato social (pacto já existia, mas era meramente omulgador, pois omulgava e visava interpretar uma
realidade pré-existente, p.e. Magna Charta) – agora, ideia de contrato é nova!

Todos os autores modernos procuravam o homem enquanto Estado de natureza: antes de nos associarmos aos outros, estamos num estado de natureza.

Sociedade e estado são construções que vêm depois do homem enquanto estado natureza.

Contrato social = acordo de vontades, onde o homem é um ser livre, de vontade, racional e de interesses (estado de natureza).

É preciso que o homem saia do estado de natureza para a convivência com os outros (para garantir a segurança de si mesmo e dos seus próprios bens) – desafio
do contrato social: garantir que o homem permanece tão livre e igual como era antes de passar do estado de natureza para o contrato social.

Maior parte dos autores modernos procuram construir uma sociedade – contudo, o que se vivia na realidade era uma continuidade do anterior regime.

Como é que da passagem para o estado social se garante que obedeçamos a nós mesmos, permanecendo livres e iguais como no estado de natureza? Através da
legislação (com as características de norma), enquanto expressão da vontade geral.

Todos nós, ainda que representados, damos a nós mesmos as leis que orientam a nossa conduta.

--

Características da lei para ser direito:

- direito ligado a características formas

- não há direito antes da lei

Página 121
1. Característica da generalidade

Segundo Rosseaux:

Temos de estar perante atos de todo o povo para/perante todo o povo

Lei nunca pode considerar sujeitos individualizados, tendo de ser geral ao nível dos sujeitos (todos são iguais).

2. Característica da abstração

Segundo Rosseaux:

São atos de todo o povo para e todo sobre o povo que tratam matéria comum.

Leis têm de ser abstratas e não podem conter casos concretos – legislador não responde a casos concretos, prevê tipos de problemas (norma com estrutura de
hipótese/estatuição).

Igualdade no sentido da parificação no resolvimento dos problemas.

3. Característica da formalidade em sentido estrito

Segundo Kant:

Lei deve limitar-se a impor aos destinatários limites de ordem formal (não se devem escuir na matéria do arbítrio/fim/conteúdo).

Lei concede aos destinatários várias faculdades, impõe limites às mesmas, mas não diz de que modo e para que fins utilizará essas faculdades (lei deve apenas
limitar).

Distinção entre liberdade e arbítrio: é necessário que os arbítrios (exercício da vontade sem constrangimento) sejam contecíveis (onde começa um, acaba outro),
segundo uma lei geral da liberdade.

Segundo Rosseaux:

Vontade geral = racionalização da vontade de todos, que é a soma das vontades individuais de cada um (distingue o que é contingente/real/único/repetível do que é
racional) – lei sai do contingente para a realidade, sendo a expressão da vontade de todos.

--

Este direito é puramente pensado num plano ideal, não tendo correspondência com a realidade.

Tem de haver facto político que permite transformar um direito ideal/pensado em direito real: é a revolução francesa (liberal), que permite a
afirmação do estado demoliberal, assumido enquanto estado de direito formal.

Existem 2 ideologias fundamentais:

- ideologia democrática (baseada na separação dos poderes)

- ideologia liberal (baseada no individualismo)

Contributo da “Escola Histórica”

Surgiu na Alemanha, em contra-corrente, i.e., para combater a visão legalista francesa (ideia de que direito devia ser criado pelo legislador e que a lei estava
toda estilizada em códigos).

Ao combater o legalismo, defendia que direito era resultado do ?? do povo: procurar nos costumes, nas leis avulsas, no corpus iuris civiles, etc.

Trabalha todos os materiais dispersos, afastando-se deles e transformando-os em normas – importa-se apenas com o tratamento dos conceitos que estão nos
enunciados dessas normas.

Afastando-se do historicismo, degenera no conceito alismo (tratamento dos conceitos das normas, resultado dos materiais dispersos que constituíam o
direito) – positivismo conceitual.

Positivismo Científico

Absolutização das ciências empírico-analíticas. Assistimos à redução do domínio de ciência ao domínio experimentado do objeto.

Pinto Bronze diz que ciência há só uma: pensamento jurídico quer assumir-se como ciência, tendo um objeto cognitivo o sistema fechado de normas legais
(direito só estava ali, criado num momento prévio à prática, para o pensamento jurídico o conhecer de forma mais acabada possível para se poder aplicar posterior
e lógico-dedutivamente à prática).

Caracterização do paradigma positivista:

1. Coordenada político-institucional

Distinção de 3 princípios fundamentais:

- separação dos poderes

Página 122
Para um autor: Chave do poder moderado (encontrado em qualquer tipo de regime), defendendo que o exercício do poder conduz à abusos e, por isso, é preciso
que controlar e moderar reciprocamente os poderes – poderes devem estar tripartidos e moderar-se mutuamente (legislativo cabe ao monarca, executivo cabe à
nobreza e à representação popular, judicial cabe aos juízes recrutados do povo) – checks and balances.

Para Rosseaux e Kant: separação de poderes é o corolário da lei enquanto expressão da vontade geral, sendo por isso a ideia de separação de poderes
incompatível pela procura pelo poder moderado. A lei, com características de norma, é expressão da vontade geral e, por isso, no poder legislativo têm de estar
todos (representados), sendo o poder executivo orientado pela lei e o poder judicial deve dizer em concreto o que foi dito em abstrato pelo legislativo (em sentido
positivo, pois o juiz deve padecer de uma neutralidade e ser submetido a uma aplicação lógico-dedutiva, aplicando a lei de forma igual por todos)  remissão para
o princípio da independência do poder judicial.

- legalidade

Ideia de que a legislação é a principal e a determinante fonte do direito (identificação do direito com a lei). A possibilidade de considerar outras fontes só se
admitia se a lei assim o determinasse.

Verifica-se:

Por um lado, a supremacia ou prevalência da própria lei, i.e., a lei passa a ser o ato da vontade estadual que prevalece/tem preferência sobre todos os atos do
Estado.

Por outro lado, exigência de uma reserva de lei, i.e., reserva do próprio direito que se trata de levar a sério a lei como única forma de juridicidade
– identificamos as matérias reservadas ao território do direito.

- independência do poder judicial

Garantir que o juiz aplica o direito aos casos de forma neutral e igual para todos – o juiz tem de passar de uma premissa maior para uma menor, para concluir
com a estatuição da norma (juiz é a boca em concreto das palavras que o legislador disse em abstrato).

Ao identificar este papel do juiz: qual a função do jurista?

Introduzimos logo mais duas coordenadas, porque com o positivismo a intenção do direito passou a pertencer exclusivamente ao poder legislativo
– assim, a função do jurista passa a ser apenas a de conhecer (em termos puramente cognitivos) o direito pré-escrito /pré-criado pelo legislador (jurista = cientista,
para se dirigir ao direito como um objeto em termo científicos, tornando-o ilegível para que num momento cronológica e analiticamente superior, se possa aplicar o
direito à prática).

Fica então:

Direito criado pelo poder legislativo  direito irá ser objeto do pensamento jurídico (assumido como ciência e estudado pelo jurista, que pretende conhecê-lo
da forma mais acaba possível)  juiz parte de uma norma interpretada em abstrato, desenvolvendo o raciocínio da premissa maior para a menor até aplicá-la a um
caso concreto.

Jurista não tem papel na constituição do direito, apenas o deve conhecer – assiste-se à formalização do direito, para se garantir a aplicação em termos lógico-
dedutivos do direito à prática.

 Funcional
 Espitemológico-metódica

2. Coordenada especificamente jurídica

Identificação do direito à lei e a lei com as características de norma – remissão para a aula passada nas características da lei moderno-iluminista (geral,
abstrata, formal em sentido estrito e permanente/quase imutável – para garantir uma ideia de previsão para o futuro, conferindo estabilidade).

3. Coordenada axiológica

O positivismo foi um pensamento unicamente formal nos valores que defendeu, distanciando-se do conteúdo e validade material que até aí eram próprios do
direito (direito e pensamento jurídico partilhavam o mesmo conjunto de intenções).

Valor da igualdade formalmente compreendida como uma igualdade perante a lei está em causa: independentemente do conteúdo da lei, é a lei que a realiza:

- lei tem de ser geral, no plano dos sujeitos (lei tem de ser igual para todos – garantindo a liberdade na passagem para o Estado Social, através destas características
formais da lei)

- lei tem de ser abstrata, no plano de parificação (lei tipifica problemas)

- segurança através do direito (ligada diretamente aos destinatários), pois a lei deve garantir a cada um uma esfera de exercício de liberdade, dando a conhecer a
todos antecipadamente os efeitos dos comportamentos que violem as liberdades alheias (i.e., os destinatários do direito têm de saber com o que podem contar)

 isto é diferente da segurança do próprio direito, onde o legislador deve criar normas que sejam determinadas (não deve criar normas que deixem dúvidas)

Página 123
Fatores de superação do positivismo

Enfrentamos, na 12ª lição, a superação do paradigma positivista. O que nos leva à superação deste paradigma? Hoje não há

um paradigma que nos oriente, tendo nós várias propostas sobre o que é o direito.

Existem vários fatores que levaram à superação do positivismo.

Fatores do contexto histórico-cultural e político-social:

 Transformações político-constitucionais muito relevantes

Por um lado, ligadas a uma nova visão do principio de separação de poderes: atribuição de funções de poder legislativo ao poder executivo (põe- se em causa a
repartição estrita dos três poderes) e acentua-se a importância do papel do juiz (que não pode ser uma mera boca da lei – juiz, na afirmação do Estado de direito,
aparece como contra-polo da função legislativa porque a função jurisdicional é aquela que está em condições para garantir a autonomia do direito e não se trata
apenas de garantir o controlo da constitucionalidade das leis, mas sim também irá reconstituir as próprias leis na perspetiva da sua ratio iuris, i.e., leis devem ser
tratadas como critérios jurídicos e devem ser a objetivação de princípios jurídicos – quem estava em condições de tratar a norma assim era o juiz).

Por outro lado, nova visão do Estado: o Estado Social.

Este vem afastar o estado demoliberal e pretender ser interventivo, atuando e transformando a realidade social. Ao ter estes objetivos (de afirmar problemas
finais que pretendem transformar a realidade), vai tratar a lei como instrumente ao serviço desses fins.

Ao lado das normas formais, assistimos ao surgimentos de outros tipos de leis com uma estrutura final (que não são normas, no sentido moderno- iluminista):
aparecimento das leis-plano (ligada à mobilização explícita de uma intenção transformadora que especifica um plano final) e leis- medida/providência (aparece
como um comando/imperativo que nasce de uma situação real, concreta, contingente e repetível, numa situação de necessidade a que permanece de tal forma
vinculada que o enunciado legal nos aparece como particular tanto na titularidade como no nº de destinatários visados; pode também ser uma resposta concreta a
um problema – não é abstrata; é uma lei temporária que vai valer enquanto existir esta situação temporal que existe uma resposta do Estado – p.e., acontecimento
de um terramoto onde o Estado cria uma lei-medida)

As leis concretas podem pôr em causa o princípio da separação de poderes / princípio da igualdade (Castanheira Neves diz que este recusa a validade destas
leis, quando em causa estejam medidas/diferenciações que não sejam materialmente jusitificadas) – não é qualquer lei-medida que está em condições de respeitar
estes princípios, por isso é necessário atender a estes limites na sua criação.

 Nova conceção da ciência

Ciência descobre-se como prática, vinculada às opções metódicas da comunidade dos investigadores.

Também ao nível da ciência existimos a mudanças de paradigma/ruturas, sendo agora assumida a ciência enquanto prática: superação do monismo cientista da
razão moderna, pela afirmação de uma pluralidade de racionalidades possíveis.

Este reconhecimento recupera a firmação de racionalidades práticas.

 Fator antropológico

Nova conceção do Homem, que não é propriamente inequívoca/única: existindo várias conceções, podemos dizer que ultrapassamos a visão do Homem
moderno-iluminista.

Como deve/vai ser o Homem?

Homem social, da racionalidade estratégica que está ligado ao homo economicus, afirmando-se como um ser egoísta. Homem da

estética da existência (Homem ludus).

Homo humanus, das responsabilidades infinitas.

Homem de um sentido prático-hermenêutico, i.e., de existência concreta e que dá conta da sua finitude mas que, ao mesmo tempo, quer reconhecer valores
infinitos e que o transcendem.

Ao hipertrofiar com a liberdade e autonomia, desligamo-nos da responsabilidade. Veremos.

Fatores especificamente jurídicos:

 Exigência fundamental de recuperar a distinção entre direito e lei

Superação do legalismo.

A legislação tem limites: os limites objetivos cuja ideia é a de dizer que a lei não é capaz de prever tudo (há casos jurídicos que aparecem no futuro que o
legislador não consegue prever nas hipóteses das normas) – falam-se das lacunas que o positivismo reconheceu e tentou integrar (positivismo tentou dizer que,
perante uma falha no sistema fechado de leis, primeiro não existia a lei), etc.

Direito não deve estar identificado com a lei: há mais critérios/fontes de direito e há direito que transcende a própria lei.

Recuperação das outras fontes de direito, como autênticos modos de recuperação da norma.

Página 124
Para além de se reconhecer a existência de outros critérios, devemos ainda reconhecer a existência de DF, por um lado, e de princípios normativos, por outro,
que constituem uma normatividade jurídica diferente da lei – que estão, aliás, acima da própria lei (não é a lei que dá validade jurídica a estes DF, mas sim são
estes que se impõe à própria lei/poder; os princípios são fundamentos do direito, transcendem a estrita legalidade da lei – lei para ser válida tem de estar em
conformidade com estes princípios).

 Crítica: não é possível garantir a igualdade através desta característica formal

Igualdade garante-se em termos materiais: p.e., não é igual para um rico e para um pobre a proibição de dormir debaixo das pontes. Não basta

dizer que somos todos iguais perante a lei para que esse valor se realize:

Por um lado, podemos ter casos que abstratamente são iguais mas que em concreto são manifestamente diferentes (ideia de considerar a particularidade dos
casos – juiz tem de atender às especificidades daquele caso, não podendo considerá-lo simplesmente como um conjunto de factos desarticulados).

Por outro lado, a lei não se configura como um critério de igualdade, pois só garante igualdade para os casos que prevê. O legislador pode cometer 2 erros
diferentes: pode incluir na norma casos que merecem tratamentos diferentes (p.e., o rico e o pobre debaixo da ponte) ou pode deixar de fora da previsão da norma
casos que, sendo semelhantes, não são considerados pela lei como tal (p.e., proibida entrada a cães no comboio – senhor aparece com um urso no comboio; no
ponto de vista formal, é só proibida a cães).

Não podemos seguir a igualdade formal, pois teremos sempre de fazer juízos de valor – igualdade MATERIAL garantida apenas em concreto, devendo-se
tratar igual o que é igual e diferente o que é diferente na medida dessa diferença.

Hoje o princípio da igualdade deve ser compreendido como igualdade formal e material – no art. 13º da CRP: devemos atender ao conteúdo material da
igualdade, que deve sempre respeitar e ser fundamentada na lei.

Ao longo do século XIX e XX, identificamos uma crítica metodológica.

O juiz tem de fazer ponderações e juízos de valor, por isso como é que ele parte logo de uma premissa maior?

Juiz tem de ter critérios para fazer as ponderações (ao seguir os critérios positivistas, não existem ponderações para garantir a neutralidade do juiz).

Assiste-se a uma acentuação da necessidade de superar o pensamento jurídico formalista para um finalista – direito deve estar ao serviço da vida, tem a ver
com fins.

O pensamento formalista parte de uma norma jurídica enunciada (nos textos) e pretende que, na prática, se aplique essa norma geral e abstrata à prática,
fechando o direito – de uma estrutura dogmática autossubsistente.

Afirma-se o pensamento finalista que parte de um sentido e de uma realidade material dos fins – exigências e compromissos práticos.

Como se deve modelar o direito para dar satisfação às necessidades subjetivas da própria vida?

Atendendo, agora, a um pensamento finalista, há uma necessidade teleológica que irá fazer dois caminhos distintos:

- caminho que atende a fins como necessidades subjetivas/expectativas sociais

- caminho que procura articular fins enquanto necessidades subjetivas com valores, exigências de sentido e compromissos práticos (quanto temos necessidades
subjetivas, o outro é sempre o meio ou o obstáculo para satisfazermos necessidades – os valores unem-nos)

O direito só deve atender a fins ou deve articular fins com valores?

Muitas vezes, estas dimensões chocam. O direito deve intervir aqui como dimensão de validade para conjugar fins com valores, pois o direito é, fundamentalmente,
uma ordem de validade.

 Princípio da autonomia da vontade privada

Ao nível do direito privado.

Superação de uma compreensão individualista deste princípio, i.e., o positivismo hipertrofia o polo da nossa liberdade e autonomia e esquecendo o polo da
responsabilidade.

O que se assiste é a superação desta visão individualista, que não é unívoca (tendo várias direções):

- visão do Estado Social / institucionalização da sociedade: temos de ter em conta o interesse comum da sociedade

- superação comprometida com o regresso da comunidade e o horizonte da validade que esta existe (partilha de valores e exigências de sentido)  isto significa
recuperar o equilíbrio de que falámos nos planos da dimensão normativa, onde o fundamento último do direito é a pessoa: no pensamento individualista, demos
excessivo valor ao “eu”, esquecendo-se por completo o polo da responsabilidade.

O regresso à ideia de comunidade vê-se em vários exemplos de direito privado, p.e., no plano dos contratos, o princípio da liberdade contratual
(art. 405º do CC):

- restrições às liberdades (p.e., deveres de contratar e proibições de contratar) – p.e., art. 280º/2 do CC.

Página 125
- exigência de submeter a própria formação do contrato e a sua execução ao princípio da boa-fé (cláusula geral cada vez mais frequente – art. 227º/1 do CC) 
existe a exigência de uma série de deveres de conduta ligados ao princípio de boa fé que devem ser respeitados.

- exigência de garantir uma concordância prática entre “os contratos são para se cumprir” pacta sunt servanda (que acentua a ?, ? e a ? dos contratos) e o
princípio da imprevisão (ligado à cláusula, no art. 437º do CC – sublinhar ultima parte sobre a boa-fé  articular o art. 437º com o art. 406º do CC).

Art. 236º do CC: consagra o critério dogmático da impressão do destinatário, superando a consagração objetivista do princípio da declaração (tem de se
colocar em concordância pratica com o princípio da imprevisão)

 Problema do abuso do direito (ao nível do direito privado)

Art. 334º do CC. A expressão direito que aparece no artigo é direito em sentido subjetivo (faculdade atribuído a um determinado destinatário): trata-se de
reconhecer a superação da visão formalista que visava impor limites formais à atuação dos destinatários do direito (direito apenas enquadra para os fins, não
adiantando aqueles que serão)  assiste-se ao reconhecimento de que o direito também deve intervir nos fins, não podendo o seu exercício exceder os limites da
boa-fé.

P.e. real: sujeito A proprietário de um terreno que, deliberadamente, vai construir um muro no meio do seu terreno com o único objetivo de tapar as vistas do vizinho
que tinha um negócio de turismo rural – o fim para que usa o direito de propriedade só diz respeito a A.

Será que o direito não deve atuar aqui? Deve, pois não atua de acordo com os valores e princípios da boa fé.

O exercício dos direitos subjetivos marcados pela dimensão formal passa a ser comprometido pelos princípios da boa-fé – isto aconteceu após
desenvolvimento e prática jurisprudencial.

Apenas em concreto é que o juiz está em condições para identificar uma situação de abuso de direito (subjetivo).

 Uso deliberado por parte do legislador de conceitos indeterminados e cláusulas gerais

Ideia de que a lei devia ser clara, não devendo utilizar expressões vagas e difusas.

Reconhece-se que uma linguagem não é 100% determinada.

Mas o legislador passou a utilizar deliberada e frequentemente conceitos indeterminados para dar ao juiz a oportunidade de interpretar esses em função de uma
situação concreta e de de densificar esses conceitos indeterminados em função das especificidades do caso (diferente do que acontecia no positivismo, em que era
tudo determinado para garantir a neutralidade do juiz).

Página 126

Você também pode gostar