Você está na página 1de 5

Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

Processo: 08B074
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
COLIGAÇÃO DE CONTRATOS
NULIDADE DO CONTRATO
Nº do Documento: SJ2008021400742
Data do Acordão: 14-02-2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I) - Contrato de crédito ao consumo é um contrato por meio do qual um credor concede ou promete
conceder a um consumidor um crédito.
II) – Na compra e venda financiada, o contrato de crédito, em vez de localizar-se na relação entre
consumidor e vendedor, polariza-se naquele e no terceiro financiador.
III) – Nela coexistem dois contratos distintos e autónomos: um contrato de compra e venda e um
contrato de crédito, existindo uma ligação funcional entre os mesmos – o crédito serve para
financiar o pagamento do bem que é objecto daquele outro contrato.
IV) – Trata-se de uma união de contratos, em que existe entre estes um nexo funcional que influi na
respectiva disciplina, que cria entre eles uma relação de interdependência bilateral ou unilateral, em
que um deles pode funcionar como condição, contraprestação, base negocial do outro, ou outra
forma de dependência criada por cláusulas acessórias ou pela relação de correspectividade ou de
motivação que afectam um deles ou ambos.
V) - A existência de uma coligação funcional entre dois ou mais negócios produz efeitos jurídicos
relevantes, na medida em que, em virtude dessa dependência funcional, as vicissitudes de um
acabam por se repercutir sobre o outro ou outros.
VI) – Para que as vicissitudes de um contrato de compra e venda influenciem ou possam influenciar
o contrato de crédito é necessário que o contrato de mútuo tenha sido concluído no contexto de uma
colaboração planificada entre o mutuante e o vendedor.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 03.10.28, na 5ª Vara Cível do Porto, AA e BB vieram deduzir oposição à execução que lhes foi
movida por CC S.A., em que esta última pretende a cobrança coerciva da quantia de 16.306,60
euros, titulada por uma livrança da subscrição dos primeiros, acrescida de juros de mora vencidos
no montante de 108,71 euros e dos vincendos até integral liquidação daquele primeiro quantitativo

alegando
em resumo, que
- estando o aludido título dado à execução na génese de um contrato de financiamento pelos
mesmos celebrado com o exequente, tendo em vista a aquisição duma viatura automóvel, sucedeu
que, após a aquisição desse veículo junto do estabelecimento comercial denominado "JM", com
recurso ao dito financiamento, constatou-se que a viatura assim adquirida era proveniente de furto,
tendo sido apreendida pelas autoridades policiais;
- o que deram conhecimento à exequente;
- tendo a partir dessa altura deixado de pagar as prestações referentes a tal empréstimo;
- já que o contrato de compra e venda que justificou a celebração do mencionado financiamento era
nulo, por envolver venda de coisa alheia, nulidade essa que arrastava a nulidade daquele outro de
crédito;
- sendo assim abusivo o preenchimento da livrança dada à execução e que havia sido entregue à
exequente para servir de garantia daquele contrato de crédito, apenas com as suas assinaturas, mais
tarde preenchida pelo exequente sem a sua autorização.

Contestando
e também em resumo, a exequente alegou que
- não pondo em causa a celebração dos aludidos contratos de compra venda e de crédito, os
mesmos tinham completa autonomia;
- donde a nulidade de que padecia aquele primeiro não implicava a nulidade do contrato de
financiamento, mantendo-se de pé com as inerentes obrigações que impendiam sobre os oponentes;
- assim como também a obrigação constante da dita livrança dada à execução, a qual encerrava os
correspondentes encargos da responsabilidade daqueles.

Findos os articulados e juntos aos autos documentos comprovativos da pendência de processos de


natureza crime e cível, relacionados, respectivamente, com a proveniência delituosa do veículo
objecto do aludido contrato de compra e venda, bem assim com a declaração de nulidade desse
mesmo contrato, o que se confirmou para esta última situação, veio a realizar-se audiência
preliminar, tendo sido proferido despacho saneador que conheceu do mérito da oposição, julgando-
se a oposição improcedente.

Os opoentes apelaram sem êxito, tendo a Relação do Porto, por acórdão de 07.06.28, confirmado a
decisão recorrida.

Novamente inconformados, os opoentes deduziram a apresente revista, apresentando as respectivas


alegações e conclusões.

Os recorridos não contra alegaram.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que


- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de
conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo
conteúdo do acto recorrido
são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:
A) – Aplicação das regras relativas aos contratos de crédito ao consumo
B) – Coligação d contratos

Os factos

São os seguintes os factos que foram dados como provados nas instâncias:
A) - Os Oponentes celebraram com a Exequente o contrato de financiamento nº 71719;
B) - O financiamento destinou-se à aquisição pela Oponente mulher do veículo marca Fiat, modelo
Multipla 105 JTD, matrícula 00-00-PE;
C) - No contrato de financiamento figura como entidade vendedora a firma JM com sede em
Valadares;
D) - O montante do financiamento foi de Esc: 3.200.000$00 que os Oponentes se obrigaram a
pagar em sessenta mensalidades de Esc: 73.573$00, cada, excepto a primeira no montante de Esc:
97.909$34;
E) - Para garantia do cumprimento do contrato de financiamento foi constituída reserva de
propriedade a favor da Exequente do veículo supra referido;
F) - Os Oponentes entregaram à Exequente uma livrança em branco apenas com as suas
assinaturas;
G) - Livrança essa que é aquela que ora é dada à Execução;
H) - Sucede que no dia 24/09/2001 o veículo supra referido foi apreendido à Oponente mulher pela
Polícia Judiciária, devido ao facto de a mesma ser proveniente de furto;
I) - No mesmo acto a Polícia Judiciária apreendeu-lhe os respectivos documentos, nomeadamente o
livrete e impediu a Oponente mulher de circular com o referido veículo;
J) - A apreensão foi comunicada à Exequente pela Oponente mulher por carta datada de 29/10/2001
enviada sob registo no dia seguinte pelo seu Mandatário;
L) - Em carta datada de 21/01/2003 subscrita pelo seu departamento jurídico, a Exequente
respondeu à referida carta dizendo que reiterava a validade e eficácia do contrato de financiamento
e que se reservava o direito de intentar quaisquer iniciativas cabíveis, no sentido de recuperar os
montantes em atraso;
M) - Em 30/06/2002 a Exequente escreveu nova carta à Oponente mulher reclamando o pagamento
das prestações em atraso do contrato de financiamento e informando que, caso os Oponentes o não
fizessem consideraria a eventualidade de resolução do contrato;
N) - A esta carta respondeu a Oponente mulher por carta datada de 24/07/2002 na qual reitera a
informação prestada pelo seu Mandatário referindo ainda que o contrato de financiamento é nulo,
por nula ser a compra efectuada, e que um contrato nulo não pode ser resolvido;
O) - Finalmente em 23/06/2003 a Exequente envia uma carta desta vez aos Oponentes declarando a
resolução do contrato de financiamento e o vencimento imediato das prestações em atraso cujo
montante declara ascender a 16.306,30 Euros (Esc: 3.269.180$00);
P) - A esta nova carta os Oponentes respondem pela carta datada de 02/07/2003 e registada em
03/07/2003 que declaram não autorizar o preenchimento da livrança em branco em poder da
Exequente;
Q) - Os Oponentes pagaram doze prestações do contrato de financiamento, ou seja, todas as
prestações que se venceram desde 15/10/2000, (data do 1º vencimento) até 15/09/2001 (data do
vencimento da 12ª prestação), tudo num total de Esc: 907.212$00;
R) - Desde 24/09/2001 até à data de hoje a Oponente mulher mantém-se desapossada do veículo
objecto do contrato de financiamento;
S) - Foi a Exequente que completou a livrança que lhe foi entregue pelos Oponentes, preenchendo
no local e data de emissão, na importância, no vencimento, no nome e morada do subscritor e na
quantia em extenso.

Os factos, o direito e o recurso

A) – Aplicação das regras relativas aos contratos de crédito ao consumo

No acórdão recorrido entendeu-se qualificar o contrato celebrado entre a exequente/recorrida e os


executados/recorrentes como de “crédito ao consumo” e invocando a disciplina deste tipo de
contratos, decorrente do Decreto Lei 359/91, de 21/09, concluir pela validade do contrato de
financiamento outorgado entre as partes por “não vir evidenciada a existência de qualquer
colaboração entre o credor/banco e o vendedor na preparação ou conclusão do contrato de crédito,
o que seria necessário para justificar a propagação da nulidade do contrato de compra e venda ao de
crédito”.

Os recorrentes entendem que no caso concreto em apreço não se trata de apreciar a validade de
qualquer contrato de crédito ao consumo, mas antes apenas, de apreciar a repercussão da nulidade
do contrato de compra e venda no contrato de financiamento.
Sendo aquele declarado nulo, desapareceu a causa ou a razão de ser do contrato de financiamento.
E, por isso, não podia a exequente preencher a livrança que lhes foi entregue em branco com o
montante das prestações ainda não pagas.
Não têm razão.

Do disposto no artigo 2º daquele Decreto-lei 359/91, podemos extrair a noção de contrato de


crédito ao consumo.
Trata-se de um contrato por meio do qual um credor concede ou promete conceder a um
consumidor um crédito.
Sendo que, destinando-se ao financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento
em prestações, deve indicar, para além dos outros requisitos referidos no artigo 6º, a descrição do
bem a adquirir e a identificação do fornecedor do bem ou serviço – cfr. alíneas a) e b) do nº3 do
citado artigo.

Conforme nos esclarece Paulo Duarte num trabalho publicado na revista “Sub Júdice”, n.º24, de
Janeiro /Março de 2003, intitulado “A sensibilidade do mútuo às excepções do contrato de
aquisição na compra e venda, no quadro do regime jurídico do consumidor”, na compra e venda
financiada, “o contrato de crédito, em vez de localizar-se na relação entre consumidor e vendedor,
polariza-se naquele e no terceiro financiador”, ou seja, “por um lado, o consumidor conclui com o
vendedor um contrato de compra e venda a pronto, (ou seja, sem qualquer convenção de
diferimento de preço); por outro lado, celebra com o terceiro financiador (uma instituição de
crédito ou uma sociedade financeira) um contrato de mutuo de dinheiro, sendo o capital mutuado
destinado ao pagamento imediato do preço estabelecido no conexo contrato de compra e venda”.

Na prática, as coisas costumam funcionar do seguinte modo:


- o consumidor subscreve um contrato manifestando a intenção de beneficiar da concessão de um
crédito;
- a entidade financiadora, em vista do exemplar do contrato e dos documentos que tenham sido
exigidos, confirmará ou recusará a concessão do crédito;
- em princípio, a confirmação ou recusa será feita através do estabelecimento comercial aderente,
como fornecedor de bens ao consumidor;
- confirmado o contrato, a sua execução pratica traduz-se na entrega pelo estabelecimento ao
consumidor, sendo o preço pago ao estabelecimento pela entidade financiadora.

No caso concreto em apreço, os opoentes outorgaram num contrato em que a exequente, sociedade
financeira, lhes emprestou a quantia de 3.200.000$00 destinada à aquisição de um automóvel pela
opoente mulher, obrigando-se aqueles opoentes a pagar o empréstimo em prestações mensais,
sendo a entidade vendedora do veículo a sociedade “JM”- cfr. documento nº1 junto com a petição
inicial da oposição, denominado de “contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo
duradouros”.

Trata-se, pois, manifestamente, de um contrato denominado de “crédito ao consumo”, a que se


aplicam as normas do Decreto-lei 359/91 já referido.

Nele coexistem dois contratos distintos e autónomos: um contrato de compra e venda e um contrato
de crédito, existindo uma ligação funcional entre os mesmos – o crédito serve para financiar o
pagamento do bem que é objecto daquele outro contrato.

Trata-se de uma união de contratos, em que existe entre estes um nexo funcional que influi na
respectiva disciplina, que cria entre eles uma relação de interdependência bilateral ou unilateral, em
que um deles pode funcionar como condição, contraprestação, base negocial do outro, ou outra
forma de dependência criada por cláusulas acessórias ou pela relação de correspectividade ou de
motivação que afectam um deles ou ambos.

Pressupõe, deste modo, uma pluralidade de negócios entre os quais intercede um nexo, que só é
juridicamente relevante quando se verifica uma conexão funcional entre os acordos, isto é, quando
os vários acordos se unem na prossecução de uma finalidade económica comum – finalidade esta
que não pode ser obtida senão através da realização das várias “facti-species” negociais – mas de
tal forma que cada um dos elementos constitutivos mantém a sua autonomia estrutural e formal.

A existência de uma coligação funcional entre dois ou mais negócios produz efeitos jurídicos
relevantes, na medida em que, em virtude dessa dependência funcional, as vicissitudes de um
acabam por se repercutir sobre o outro ou outros.

Seque-se inequivocamente o “modelo de separação”, aludindo expressamente a “contrato de


crédito” e “contrato de compra e venda”.

A relação de interdependência entre os dois contratos e o vínculo substancial que influencia o


regime normal desses contratos está patente, designadamente, na disciplina prevista no artigo 12º
do citado Decreto-Lei 359/91.

Para o que interessa à questão em apreço, dispõe-se no n.º2 desse artigo e sobre a influência, a nível
de cumprimento, do contrato de compra e venda sobre o contrato de crédito, o seguinte:
“O consumidor pode demandar o credor em caso de incumprimento ou de cumprimento defeituoso
do contrato de compra e venda por parte do vendedor desde que, não tendo obtido do vendedor a
satisfação do seu direito, se verifiquem cumulativamente as seguintes condições:
a) Existir entre o credor e o vendedor um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido
exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos
por este último;
b) Ter o consumidor obtido o crédito no âmbito do acordo prévio referido na alínea anterior”.

Ou seja, para que as vicissitudes de um contrato de compra e venda influenciem ou possam


influenciar o contrato de crédito é necessário que o contrato de mútuo tenha sido concluído no
contexto de uma colaboração planificada entre o mutuante e o vendedor.

Ora, uma vez que os opoentes não alegaram e, portanto, não demonstraram, a existência de
quaisquer factos que demonstrassem ter havido, por parte da exequente/credora, aquela
colaboração, temos como não demonstrada a existência daquele acordo prévio.
E, consequentemente, que os opoentes tenham obtido o crédito no âmbito desse acordo.
Sendo assim, a nulidade do contrato de compra e venda, – cfr. folhas 222 e seguintes e 199
seguintes - não podia ter qualquer influência no contrato de crédito e no sentido de o extinguir.

Subsistente o contrato de financiamento, subsistentes estavam as obrigações dele derivadas.


Nomeadamente, o pagamento das prestações.
Face ao não pagamento destas, a exequente resolveu o contrato, exigiu o pagamento imediato de
todas as prestações ainda em dívida após essa resolução e preencheu a livrança dada à execução, de
acordo com o ponto 4º das condições específicas e do ponto 14 da condições gerais do contrato em
causa – cfr. documento nº1 junto com a oposição, acima referido.

Concluímos, pois, que a livrança não foi abusivamente preenchida.

B) – Coligação de contratos

Mas mesmo que não se aplicasse o regime dos contratos de crédito ao consumo, mesmo assim, não
havia que censurar o preenchimento da livrança efectuado pela exequente.

Na verdade e ao contrário do que afirmam o recorrentes, dos factos dados como assentes e até dos
factos por si alegados, não resulta que haja uma coligação funcional entre o contrato de crédito
outorgado com a exequente e o contrato de compra e venda outorgado com a sociedade fornecedora
do automóvel.
Não há qualquer alegação da relação de dependência daquele contrato em relação a este, em termos
de a sua validade ficar dependente da validade do contrato de compra e venda do veículo.
Sendo que o ónus dessa alegação e prova pertencia aos opoentes – cfr. artigo 342º do Código Civil.

Não está estabelecida no contrato de financiamento essa dependência.


Nele apenas se refere, quanto ao fornecimento da viatura, a sua identificação e a da entidade
vendedora.
Disto não se pode concluir que a exequente só concedeu o crédito aos opoentes porque o veículo
era aquele e a entidade vendedora era aquela.
Dito doutro modo, não resulta que exequente tenha de qualquer forma intervindo na escolha de
veículo e da entidade vendedora.
Caso em que, sim, podíamos considerar que “as partes quiseram a pluralidade dos contratos como
um todo, como um conjunto económico, estabelecendo entre eles uma dependência – Galvão Telles
“in” Manual dos Contratos em Geral, 4ª edição, página 476.

Não havendo como demonstrada essa dependência, é evidente que a validade do contrato de
financiamento não dependia da validade do contrato de compra e venda.
Sendo assim e pelas razões acima aduzidas, o preenchimento da livrança pela exequente também
não podia ser considerado abusivo.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.


Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2008

Oliveira Vasconcelos(relator)
Serra Baptista
Duarte Soares

Você também pode gostar