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Évora
Processo: 96/14.8TBVRS-D.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
TRADIÇÃO DA COISA
CONSUMIDOR
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 25-05-2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Nada autoriza que se faça do preceituado na al. f) do n.º 1 do art.º 755.º do CC interpretação
restritiva, de forma a considerar que apenas o promitente comprador tradiciário de edifício ou
fracção autónoma destinada a habitação que haja prestado sinal, tem, em caso de incumprimento
imputável à outra parte, o seu crédito garantido pelo direito de retenção.
II. Em contexto insolvencial tem a qualidade de consumidor o promitente comprador que adquire
uma garagem, a qual lhe foi entregue aquando da celebração do contrato promessa e que vem
utilizando desde então para guardar a sua viatura automóvel e outros objectos da sua vida
doméstica, o que corresponde a um uso privado.
III. Tendo a Sr.ª AI recusado a celebração do contrato definitivo, o crédito reconhecido ao
promitente comprador goza do direito de retenção.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 96/14.8TBVRS-D.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo Comércio Olhão – Juiz 1
I. Relatório
No Juízo do Comércio de Olhão, por apenso ao processo em que foi decretada a insolvência de
(…) – Promoção Imobiliária, Lda., vieram (…) e (…), ao abrigo do disposto nos artigos 146.º a
148.º do CIRE, interpor a presente acção declarativa contra a insolvente, sua massa insolvente e
respectivos credores, tendo em vista obter a verificação ulterior do crédito de que se arrogam
titulares no montante de € 26.000,00, dobro do sinal passado no âmbito de contrato promessa
celebrado com a sociedade insolvente que a Sr.ª AI recusou cumprir, devendo ser reconhecido que
o mesmo crédito goza de direito de retenção sobre a fracção prometida vender, a qual foi objecto de
traditio.
Citados os RR, apresentou a massa insolvente a contestação de fls. 159 a 161, na qual impugnou a
factualidade alegada pelos AA., que disse desconhecer, sustentando que, ainda a ser reconhecido o
crédito dos demandantes, o mesmo não beneficia da pretendida garantia do direito de retenção.
*
Teve lugar a audiência prévia e nela, tabelarmente saneado o processo, foi determinado o
prosseguimento dos autos, com delimitação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida douta sentença que, na parcial
procedência da acção, decretou como segue:
a) Reconheceu o direito de crédito dos Autores (…) e (…) sobre a Insolvente (…) – Promoção
Imobiliária, Lda., no valor de € 10.000,00 (dez mil euros), acrescido de juros de mora à taxa legal
dos juros civis, vencidos a partir do trânsito em julgado da decisão e até integral pagamento;
b) Reconheceu o direito de retenção dos Autores relativamente à fracção autónoma designada pelas
letras “AN” – do prédio urbano regime de propriedade horizontal situado na rua da (…), na
freguesia de (…), concelho da Figueira da Foz, e descrito na Conservatória do Registo Predial da
Figueira da Foz sob o n.º (…) – em garantia desse crédito.
Inconformada, apelou a credora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…) e, tendo desenvolvido na
alegação que apresentou os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as
seguintes conclusões:
1.ª Ficou provado que “a fracção autónoma “AN” corresponde a lugar de garagem, situado na
cave, lado sul, sendo a terceira a contar de poente e identificada pelo nº 40”;
2.ª Ao sujeito processual que invoca um direito (de retenção) cabe a prova dos factos constitutivos
do seu pretenso direito;
3.ª Segundo o A.U.J. n.º 4/2014, só o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que
com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o
cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção
nos termos do art.º 755º, nº 1, alínea f) do Código Civil;
4.ª Em tal Acórdão se deu evidência às razões da tutela dispensada pelo legislador ao titular de
direito de retenção: “A opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares
consumidores, concedendo-lhes o “direito de retenção” teve e continua a ter uma razão
fundamental: a proteção destes últimos no mercado da habitação”;
5.ª O legislador do art.º 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil apontou à tutela do promitente-
comprador que, sendo consumidor, adquire para satisfação de necessidades habitacionais;
6.ª Só perante tão relevante direito – habitação de pessoas – se pode compreender a
subalternização a que são sujeitos direitos reais, mormente hipoteca, ainda que de registo
constitutivo anterior;
7.ª Um tão grande sacrifício a expensas da confiança, segurança e certeza do comércio jurídico só
pode ser compreendido para levar a cabo a tutela de um direito de valia social
incomensuravelmente superior;
8.ª E é essa superioridade que não se verifica no caso sub judice; habitação de pessoas e depósito
de coisas em lugar de garagem são materialidades distintas;
9.ª A aquisição isolada de uma garagem num prédio em propriedade horizontal, em tudo o mais
alheio aos promitentes-compradores (não consta que ali já fossem, anterior, contemporânea ou
posteriormente titulares de fracção autónoma com aptidão habitacional, vulgo apartamento) para
que estes na mesma depositem veículo automóvel ou arrumem pertences não alcança o patamar de
densidade axiológica conducente ao reconhecimento de um direito de retenção;
10.ª Se o direito à habitação é um direito de positivação constitucional (art.º 65.º, nº 1, da C.R.P.) o
mesmo não vale para o direito à aquisição e depósito numa garagem de um automóvel e/ou
pertences domésticos em desuso;
11.ª Reconhecer um direito de retenção nas circunstâncias em que o fez o Tribunal a quo não é
estar a usar de um direito, é estar a abusar de um direito, é levar a tutela dispensada pela norma a
um fim que a mesma nunca teve em vista;
12.ª O Tribunal a quo levou a tutela legal à satisfação de necessidades supérfluas ou sumptuárias
que nada têm que ver com necessidades habitacionais autênticas;
13.ª Choca, nestas circunstâncias, que o credor hipotecário não tenha posição de prevalência
sobre os promitentes-compradores e a garantia real se veja postergada, mercê do reconhecimento
de um direito de retenção.
14.ª O artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil é norma excepcional que deve ser interpretada
restritivamente, não comportando aplicação analógica;
15.ª Não se alcança da acção que o Autor tenha enquadrado a sua intervenção negocial no quadro
de uma relação jurídica de consumo apontando à satisfação de necessidades habitacionais,
relação que não se presume;
16.ª Os Autores prometeram comprar uma garagem isoladamente, sem que alguma vez aleguem
propósito ou conexão habitacionais; sem estes não há direito de retenção;
17.ª O reconhecimento de um direito de retenção nas circunstâncias dos autos configura abuso de
direito na modalidade de desequilíbrio do sub-tipo “desproporção grave entre o benefício do
titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem”;
18.ª Existe uma desproporção grave entre o reconhecimento de um direito de retenção aos Autores
para tutela do depósito de uma viatura e outros pertences num lugar de garagem à custa do
sacrifício de uma hipoteca de registo anterior da Recorrente;
19.ª Exercendo um direito que formalmente lhes assiste, os Autores fazem-no em moldes que
atentam contra vectores fundamentais do sistema, assim não se perca de vista a materialidade
subjacente;
20.ª Não estando materialmente em causa a satisfação de necessidades habitacionais, o direito à
habitação dos Autores, não se justifica, sob pena de incursão em abuso do direito, que a estes seja
reconhecido um direito de retenção;
21.ª Foi violado o disposto nos artigos 755.º, n.º 1, alínea f) e 334.º do Código Civil;
22.ª A intervenção do instituto deve aqui, e em concreto, consubstanciar-se no não reconhecimento
aos Autores de qualquer direito de retenção para garantia do seu crédito que deve ser qualificado
como comum.
Requer a revogação da sentença recorrida e sua substituição por outra que “não reconheça aos
Autores o direito de retenção relativamente à fracção autónoma designada pelas letras “AN” do
prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua (…), freguesia de (…), concelho
da Figueira da Foz, descrito na C.R.P. da Figueira da Foz sob o n.º (…) em garantia de qualquer
crédito de que sejam titulares, crédito que deve ser reconhecido como comum”.
Contra alegaram os AA, pugnando naturalmente pela manutenção do decidido.
*
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recuso, constituem questões a
decidir:
i. determinar se, conforme foi decidido, o crédito dos AA goza da garantia do direito de retenção;
ii. na afirmativa, se é abusiva a sua invocação.
*
II. Fundamentação
De facto:
Sem impugnação, é a seguinte a factualidade julgada provada e não provada a considerar:
Factos Provados
1. Por acordo escrito de 18.05.2009, a sociedade (…) – Promoção Imobiliária, Lda. prometeu
vender a (…) e (…), que prometeram comprar, a fracção autónoma designada pelas letras “AN” do
prédio urbano regime de propriedade horizontal situado na rua da (…), na freguesia de (…),
concelho da Figueira da Foz, e descrito na Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz sob
o n.º (…).
2. A fracção autónoma “AN” corresponde a lugar de garagem, situado na cave, lado sul, sendo a
terceira a contar de poente e identificada pelo n.º 40.
3. As partes do referido acordo escrito estabeleceram que o preço global da referida fracção
autónoma seria de € 20.000,00.
4. Mais acordaram que a fracção autónoma seria vendida livre de ónus e encargos.
5. O referido acordo foi subscrito pelos Autores e por (…) em representação da sociedade (…) –
Promoção Imobiliária, Lda..
6. No mesmo acordo, as partes outorgantes estabeleceram que os ora Autores se obrigavam a pagar
à sociedade agora insolvente a quantia de € 2.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento do
preço, na data da celebração do acordo.
7. Mais acordaram que o remanescente do preço, no valor de € 18.000,00, seria pago “até à
celebração da respectiva escritura pública de compra e venda”.
8. Nessa sequência, os ora Autores pagaram à sociedade agora insolvente as quantias seguintes:
i) € 2.000,00 em 18.05.2009;
ii) € 1.000,00, através de cheque n.º (…), datado de 27.06.2009, sacado sobre a Caixa Geral de
Depósitos, S.A. e emitido à ordem da sociedade (…) – Promoção Imobiliária, Lda.;
iii) € 2.000,00, em numerário e em cheque, em 31.07.2009;
iv) € 1.000,00, em numerário, em 23.10.2009;
v) €. 1000,00, em numerário, em 03.12.2009;
vi) € 3.000,00, através de depósito na conta bancária da sociedade (…) – Promoção Imobiliária,
Lda. sediada na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL., em 15.04.2010; e
9. Os Autores efectuaram um pagamento de € 3.000,00 a (…), então gerente da sociedade (…) –
Promoção Imobiliária, Lda., através de depósito na conta bancária por aquele titulada, sediada na
Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL., efectuado em 29.07.2010.
10. Em 18.05.2009, a sociedade (…) – Promoção Imobiliária, Lda. entregou aos Autores a chave da
fracção e, desde essa data, os Autores passaram a utilizar a garagem como se fosse sua, aí
guardando o seu veículo automóvel e outros objectos da sua vida doméstica.
11. Desde essa data os Autores suportaram os custos associados à garagem, como electricidade e
condomínio.
12. A sociedade (…) nunca agendou a escritura pública de compra e venda, apesar de o edifício e a
fracção autónoma em causa disporem de licença de utilização.
13. Os Autores, por diversas vezes, manifestaram à (…) a sua vontade em que o negócio fosse
concluído.
14. Tendo em conta o tempo que foi decorrendo e o silêncio da sociedade (…) em relação ao
agendamento da escritura para 28.01.2013, os Autores procederam à marcação da escritura pública
e notificaram a (…) para comparecer mediante carta registada com aviso de recepção de
09.01.2013, tendo informado a sociedade que a não realização da escritura em tal data equivaleria
ao incumprimento definitivo do contrato.
15. As cartas foram entregues mas não foram levantadas pela sociedade (…).
16. A sociedade (…) não se fez representar em tal escritura pública.
17. A 14.03.2013, os Autores interpuseram acção declarativa de condenação contra a sociedade
(…), que pendeu no 2.º Juízo do antigo Tribunal Judicial da Figueira da Foz sob o n.º
663/13.7TBFIG, pela qual pediram a execução específica do contrato e, subsidiariamente, a
restituição do sinal em dobro, no valor de € 26.000,00.
18. A sociedade (…) – Promoção Imobiliária, Lda. foi declarada insolvente por sentença de
19.05.2014, transitada em julgado.
19. Nessa sequência, foi apreendida para a massa insolvente a fracção autónoma supra identificada.
20. A Senhora Administradora da Insolvência declarou que não irá celebrar o contrato de compra e
venda relativo a tal fracção autónoma com os Autores, tanto mais que, em sede de liquidação do
activo da insolvente, a referida fracção autónoma já se encontra em processo de venda a terceiros.
21. Por escritura pública celebrada no dia 3 de Fevereiro de 2009 no Cartório Notarial da Figueira
da Foz a cargo da notária (…), (…), na qualidade de legal representante da sociedade (…),
promoção imobiliária, Lda., e com poderes para o acto, declarou vender a (…), pelo preço de €
125.000,00, que declarou ter recebido do comprador, a fracção autónoma designada pelas letras
BE, segundo andar, com acesso pela entrada A, designada por segundo andar A, implantado do
lado norte/poente do prédio destinado a habitação, com o valor patrimonial tributável de €
123.480,00 sito na Rua da (…), n.ºs 12 e 14, freguesia de (…), concelho da Figueira da Foz,
descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz sob o n.º …/…, conforme
consta da escritura cuja cópia se encontra de fls. 183 a 187 dos presentes autos, dando-se por
reproduzido, quanto ao mais, o respectivo teor (documento não impugnado, considerado nos
termos das disposições conjugadas dos artigos 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2, do CPC).
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[1] Cf. Maria da Conceição Rocha Coelho, “O crédito hipotecário face ao direito de retenção”, pág.
48, dissertação de mestrado em Direito Privado sob a orientação de Brandão Proença, 2011,
acessível on-line, tendo-se acompanhado na exposição quanto se referiu a propósito do tema no
acórdão do TRC de 8/9/2015, relatado pela ora relatora, proferido no processo
3592/13.0TBVIS.C1, acessível em www.dgsi.pt.
[2] Na síntese do Prof. Menezes Cordeiro, “Do abuso do direito: estado das questões e
perspectiva”, ROA 2005, ano 65, vol. II, acessível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-
ordem-dos-advogados-roa/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/antonio-menezes-
cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-e-perspectivas-star/
[3] Idem.
[4] Prof. Menezes Cordeiro, “Do abuso…”.
[5] Age contra a boa fé o credor que exige uma prestação que deve restituir imediatamente ao
devedor.
[6] Prof. Menezes Cordeiro, “Do abuso…”.