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Acórdãos TRE Acórdão do Tribunal da Relação de

Évora
Processo: 96/14.8TBVRS-D.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
TRADIÇÃO DA COISA
CONSUMIDOR
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 25-05-2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Nada autoriza que se faça do preceituado na al. f) do n.º 1 do art.º 755.º do CC interpretação
restritiva, de forma a considerar que apenas o promitente comprador tradiciário de edifício ou
fracção autónoma destinada a habitação que haja prestado sinal, tem, em caso de incumprimento
imputável à outra parte, o seu crédito garantido pelo direito de retenção.
II. Em contexto insolvencial tem a qualidade de consumidor o promitente comprador que adquire
uma garagem, a qual lhe foi entregue aquando da celebração do contrato promessa e que vem
utilizando desde então para guardar a sua viatura automóvel e outros objectos da sua vida
doméstica, o que corresponde a um uso privado.
III. Tendo a Sr.ª AI recusado a celebração do contrato definitivo, o crédito reconhecido ao
promitente comprador goza do direito de retenção.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 96/14.8TBVRS-D.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo Comércio Olhão – Juiz 1

I. Relatório
No Juízo do Comércio de Olhão, por apenso ao processo em que foi decretada a insolvência de
(…) – Promoção Imobiliária, Lda., vieram (…) e (…), ao abrigo do disposto nos artigos 146.º a
148.º do CIRE, interpor a presente acção declarativa contra a insolvente, sua massa insolvente e
respectivos credores, tendo em vista obter a verificação ulterior do crédito de que se arrogam
titulares no montante de € 26.000,00, dobro do sinal passado no âmbito de contrato promessa
celebrado com a sociedade insolvente que a Sr.ª AI recusou cumprir, devendo ser reconhecido que
o mesmo crédito goza de direito de retenção sobre a fracção prometida vender, a qual foi objecto de
traditio.
Citados os RR, apresentou a massa insolvente a contestação de fls. 159 a 161, na qual impugnou a
factualidade alegada pelos AA., que disse desconhecer, sustentando que, ainda a ser reconhecido o
crédito dos demandantes, o mesmo não beneficia da pretendida garantia do direito de retenção.
*
Teve lugar a audiência prévia e nela, tabelarmente saneado o processo, foi determinado o
prosseguimento dos autos, com delimitação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida douta sentença que, na parcial
procedência da acção, decretou como segue:
a) Reconheceu o direito de crédito dos Autores (…) e (…) sobre a Insolvente (…) – Promoção
Imobiliária, Lda., no valor de € 10.000,00 (dez mil euros), acrescido de juros de mora à taxa legal
dos juros civis, vencidos a partir do trânsito em julgado da decisão e até integral pagamento;
b) Reconheceu o direito de retenção dos Autores relativamente à fracção autónoma designada pelas
letras “AN” – do prédio urbano regime de propriedade horizontal situado na rua da (…), na
freguesia de (…), concelho da Figueira da Foz, e descrito na Conservatória do Registo Predial da
Figueira da Foz sob o n.º (…) – em garantia desse crédito.

Inconformada, apelou a credora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…) e, tendo desenvolvido na
alegação que apresentou os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as
seguintes conclusões:
1.ª Ficou provado que “a fracção autónoma “AN” corresponde a lugar de garagem, situado na
cave, lado sul, sendo a terceira a contar de poente e identificada pelo nº 40”;
2.ª Ao sujeito processual que invoca um direito (de retenção) cabe a prova dos factos constitutivos
do seu pretenso direito;
3.ª Segundo o A.U.J. n.º 4/2014, só o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que
com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o
cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção
nos termos do art.º 755º, nº 1, alínea f) do Código Civil;
4.ª Em tal Acórdão se deu evidência às razões da tutela dispensada pelo legislador ao titular de
direito de retenção: “A opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares
consumidores, concedendo-lhes o “direito de retenção” teve e continua a ter uma razão
fundamental: a proteção destes últimos no mercado da habitação”;
5.ª O legislador do art.º 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil apontou à tutela do promitente-
comprador que, sendo consumidor, adquire para satisfação de necessidades habitacionais;
6.ª Só perante tão relevante direito – habitação de pessoas – se pode compreender a
subalternização a que são sujeitos direitos reais, mormente hipoteca, ainda que de registo
constitutivo anterior;
7.ª Um tão grande sacrifício a expensas da confiança, segurança e certeza do comércio jurídico só
pode ser compreendido para levar a cabo a tutela de um direito de valia social
incomensuravelmente superior;
8.ª E é essa superioridade que não se verifica no caso sub judice; habitação de pessoas e depósito
de coisas em lugar de garagem são materialidades distintas;
9.ª A aquisição isolada de uma garagem num prédio em propriedade horizontal, em tudo o mais
alheio aos promitentes-compradores (não consta que ali já fossem, anterior, contemporânea ou
posteriormente titulares de fracção autónoma com aptidão habitacional, vulgo apartamento) para
que estes na mesma depositem veículo automóvel ou arrumem pertences não alcança o patamar de
densidade axiológica conducente ao reconhecimento de um direito de retenção;
10.ª Se o direito à habitação é um direito de positivação constitucional (art.º 65.º, nº 1, da C.R.P.) o
mesmo não vale para o direito à aquisição e depósito numa garagem de um automóvel e/ou
pertences domésticos em desuso;
11.ª Reconhecer um direito de retenção nas circunstâncias em que o fez o Tribunal a quo não é
estar a usar de um direito, é estar a abusar de um direito, é levar a tutela dispensada pela norma a
um fim que a mesma nunca teve em vista;
12.ª O Tribunal a quo levou a tutela legal à satisfação de necessidades supérfluas ou sumptuárias
que nada têm que ver com necessidades habitacionais autênticas;
13.ª Choca, nestas circunstâncias, que o credor hipotecário não tenha posição de prevalência
sobre os promitentes-compradores e a garantia real se veja postergada, mercê do reconhecimento
de um direito de retenção.
14.ª O artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil é norma excepcional que deve ser interpretada
restritivamente, não comportando aplicação analógica;
15.ª Não se alcança da acção que o Autor tenha enquadrado a sua intervenção negocial no quadro
de uma relação jurídica de consumo apontando à satisfação de necessidades habitacionais,
relação que não se presume;
16.ª Os Autores prometeram comprar uma garagem isoladamente, sem que alguma vez aleguem
propósito ou conexão habitacionais; sem estes não há direito de retenção;
17.ª O reconhecimento de um direito de retenção nas circunstâncias dos autos configura abuso de
direito na modalidade de desequilíbrio do sub-tipo “desproporção grave entre o benefício do
titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem”;
18.ª Existe uma desproporção grave entre o reconhecimento de um direito de retenção aos Autores
para tutela do depósito de uma viatura e outros pertences num lugar de garagem à custa do
sacrifício de uma hipoteca de registo anterior da Recorrente;
19.ª Exercendo um direito que formalmente lhes assiste, os Autores fazem-no em moldes que
atentam contra vectores fundamentais do sistema, assim não se perca de vista a materialidade
subjacente;
20.ª Não estando materialmente em causa a satisfação de necessidades habitacionais, o direito à
habitação dos Autores, não se justifica, sob pena de incursão em abuso do direito, que a estes seja
reconhecido um direito de retenção;
21.ª Foi violado o disposto nos artigos 755.º, n.º 1, alínea f) e 334.º do Código Civil;
22.ª A intervenção do instituto deve aqui, e em concreto, consubstanciar-se no não reconhecimento
aos Autores de qualquer direito de retenção para garantia do seu crédito que deve ser qualificado
como comum.
Requer a revogação da sentença recorrida e sua substituição por outra que “não reconheça aos
Autores o direito de retenção relativamente à fracção autónoma designada pelas letras “AN” do
prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua (…), freguesia de (…), concelho
da Figueira da Foz, descrito na C.R.P. da Figueira da Foz sob o n.º (…) em garantia de qualquer
crédito de que sejam titulares, crédito que deve ser reconhecido como comum”.
Contra alegaram os AA, pugnando naturalmente pela manutenção do decidido.
*
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recuso, constituem questões a
decidir:
i. determinar se, conforme foi decidido, o crédito dos AA goza da garantia do direito de retenção;
ii. na afirmativa, se é abusiva a sua invocação.
*
II. Fundamentação
De facto:
Sem impugnação, é a seguinte a factualidade julgada provada e não provada a considerar:
Factos Provados
1. Por acordo escrito de 18.05.2009, a sociedade (…) – Promoção Imobiliária, Lda. prometeu
vender a (…) e (…), que prometeram comprar, a fracção autónoma designada pelas letras “AN” do
prédio urbano regime de propriedade horizontal situado na rua da (…), na freguesia de (…),
concelho da Figueira da Foz, e descrito na Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz sob
o n.º (…).
2. A fracção autónoma “AN” corresponde a lugar de garagem, situado na cave, lado sul, sendo a
terceira a contar de poente e identificada pelo n.º 40.
3. As partes do referido acordo escrito estabeleceram que o preço global da referida fracção
autónoma seria de € 20.000,00.
4. Mais acordaram que a fracção autónoma seria vendida livre de ónus e encargos.
5. O referido acordo foi subscrito pelos Autores e por (…) em representação da sociedade (…) –
Promoção Imobiliária, Lda..
6. No mesmo acordo, as partes outorgantes estabeleceram que os ora Autores se obrigavam a pagar
à sociedade agora insolvente a quantia de € 2.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento do
preço, na data da celebração do acordo.
7. Mais acordaram que o remanescente do preço, no valor de € 18.000,00, seria pago “até à
celebração da respectiva escritura pública de compra e venda”.
8. Nessa sequência, os ora Autores pagaram à sociedade agora insolvente as quantias seguintes:
i) € 2.000,00 em 18.05.2009;
ii) € 1.000,00, através de cheque n.º (…), datado de 27.06.2009, sacado sobre a Caixa Geral de
Depósitos, S.A. e emitido à ordem da sociedade (…) – Promoção Imobiliária, Lda.;
iii) € 2.000,00, em numerário e em cheque, em 31.07.2009;
iv) € 1.000,00, em numerário, em 23.10.2009;
v) €. 1000,00, em numerário, em 03.12.2009;
vi) € 3.000,00, através de depósito na conta bancária da sociedade (…) – Promoção Imobiliária,
Lda. sediada na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL., em 15.04.2010; e
9. Os Autores efectuaram um pagamento de € 3.000,00 a (…), então gerente da sociedade (…) –
Promoção Imobiliária, Lda., através de depósito na conta bancária por aquele titulada, sediada na
Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL., efectuado em 29.07.2010.
10. Em 18.05.2009, a sociedade (…) – Promoção Imobiliária, Lda. entregou aos Autores a chave da
fracção e, desde essa data, os Autores passaram a utilizar a garagem como se fosse sua, aí
guardando o seu veículo automóvel e outros objectos da sua vida doméstica.
11. Desde essa data os Autores suportaram os custos associados à garagem, como electricidade e
condomínio.
12. A sociedade (…) nunca agendou a escritura pública de compra e venda, apesar de o edifício e a
fracção autónoma em causa disporem de licença de utilização.
13. Os Autores, por diversas vezes, manifestaram à (…) a sua vontade em que o negócio fosse
concluído.
14. Tendo em conta o tempo que foi decorrendo e o silêncio da sociedade (…) em relação ao
agendamento da escritura para 28.01.2013, os Autores procederam à marcação da escritura pública
e notificaram a (…) para comparecer mediante carta registada com aviso de recepção de
09.01.2013, tendo informado a sociedade que a não realização da escritura em tal data equivaleria
ao incumprimento definitivo do contrato.
15. As cartas foram entregues mas não foram levantadas pela sociedade (…).
16. A sociedade (…) não se fez representar em tal escritura pública.
17. A 14.03.2013, os Autores interpuseram acção declarativa de condenação contra a sociedade
(…), que pendeu no 2.º Juízo do antigo Tribunal Judicial da Figueira da Foz sob o n.º
663/13.7TBFIG, pela qual pediram a execução específica do contrato e, subsidiariamente, a
restituição do sinal em dobro, no valor de € 26.000,00.
18. A sociedade (…) – Promoção Imobiliária, Lda. foi declarada insolvente por sentença de
19.05.2014, transitada em julgado.
19. Nessa sequência, foi apreendida para a massa insolvente a fracção autónoma supra identificada.
20. A Senhora Administradora da Insolvência declarou que não irá celebrar o contrato de compra e
venda relativo a tal fracção autónoma com os Autores, tanto mais que, em sede de liquidação do
activo da insolvente, a referida fracção autónoma já se encontra em processo de venda a terceiros.
21. Por escritura pública celebrada no dia 3 de Fevereiro de 2009 no Cartório Notarial da Figueira
da Foz a cargo da notária (…), (…), na qualidade de legal representante da sociedade (…),
promoção imobiliária, Lda., e com poderes para o acto, declarou vender a (…), pelo preço de €
125.000,00, que declarou ter recebido do comprador, a fracção autónoma designada pelas letras
BE, segundo andar, com acesso pela entrada A, designada por segundo andar A, implantado do
lado norte/poente do prédio destinado a habitação, com o valor patrimonial tributável de €
123.480,00 sito na Rua da (…), n.ºs 12 e 14, freguesia de (…), concelho da Figueira da Foz,
descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz sob o n.º …/…, conforme
consta da escritura cuja cópia se encontra de fls. 183 a 187 dos presentes autos, dando-se por
reproduzido, quanto ao mais, o respectivo teor (documento não impugnado, considerado nos
termos das disposições conjugadas dos artigos 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2, do CPC).

Não se provou que


O pagamento de € 3.000,00, através de depósito na conta bancária de (…), referido no facto
provado n.º 9, foi por este integrado o património da Insolvente.
*
De Direito
Do direito de retenção
Encontra-se assente nos autos sem controvérsia que em data anterior à declaração da insolvência a
devedora (…) – Promoção Imobiliária, Lda. e os Autores (…) e (…)celebraram um contrato-
promessa de compra e venda tendo por objecto a fracção autónoma identificada no ponto 1,
correspondente a um lugar de garagem, conforme provado em 2.
Mais se provou que na sequência da celebração do referido contrato, tendo recebido dos
promitentes compradores quantia a título de sinal, a sociedade promitente vendedora fez-lhes
entrega da fracção prometida vender, a qual passou por eles a ser utilizada como se fosse sua, aí
guardando o seu veículo automóvel e outros objectos da sua vida doméstica (cfr. ponto 10 dos
factos provados), sem que, todavia, fosse celebrado o contrato prometido, a despeito das várias
interpelações que àquela foram feitas.
Declarada a insolvência da sociedade promitente vendedora e apreendida a aludida fracção para a
massa, no entendimento de que se estava perante negócio em curso nos termos e para os efeitos do
artigo 102.º do CIRE, recusou a Sr.ª AI a celebração do contrato prometido, fundamento do
reconhecimento aos agora apelados de um crédito de valor correspondente ao sinal passado em
aplicação da doutrina fixada no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 3/2021, de 27 de Abril
de 2021 (DRE 1ª Série, n.º 158, de 16 de Agosto de 2021). Trata-se de segmento decisório que, por
não impugnado, transitou em julgado, remanescendo como questão a decidir saber se tal crédito se
encontra – ou não, conforme defende a apelante – garantido por direito de retenção.
Argumenta a recorrente que o “legislador do art.º 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil apontou à
tutela do promitente-comprador que, sendo consumidor, adquire para satisfação de necessidades
habitacionais” e que “só perante tão relevante direito – habitação de pessoas – se pode
compreender a subalternização a que são sujeitos direitos reais, mormente hipoteca, ainda que de
registo constitutivo anterior”, a impor uma interpretação restritiva do preceito. Daí que, conclui,
não tendo os AA logrado enquadrar “a sua intervenção negocial no quadro de uma relação
jurídica de consumo apontando à satisfação de necessidades habitacionais, relação que não se
presume”, o crédito que lhes foi reconhecido não beneficia da garantia do direito de retenção.
Vejamos se tal argumentação é de atender.
O direito de retenção conferido aos promitentes-compradores foi introduzido pelo DL 236/80, de
18 de Julho, dispondo o n.º 3 do art.º 442.º do CC, na redacção que emergiu daquele diploma,
que no caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato-promessa, o promitente-
comprador gozava, nos termos gerais, do direito de retenção sobre ela pelo crédito resultante do
incumprimento pelo promitente-vendedor.
Ponderou-se então que “1. O contrato-promessa tem sido a via através da qual os interessados
em habitação própria têm procurado garantir a aquisição da desejada unidade habitacional, nos
casos em que, por qualquer motivo (…) não é possível a imediata celebração do contrato de
compra e venda.
Sucede, porém, que, por efeito do regime legal do contrato-promessa – adequado a épocas de
estabilidade social e económica mas que não responde na justa medida a situações de rápida
mutação da conjuntura económica e financeira em que avulta, como factor preponderante, a
desvalorização da moeda –, inúmeros promitentes-compradores encontram-se em situação que
justifica diversa tutela normativa. Com efeito, ou vêem frustradas as suas aspirações face à
resolução do contrato pelo outro outorgante, com uma indemnização (o dobro do sinal passado)
que nem sequer equivale já à importância inicialmente desembolsada, não cobrindo o dano
emergente da resolução, ou acham-se coagidos, pela força das circunstâncias e para alcançarem o
direito de propriedade da casa que, muitas vezes, já habitam e pagaram integralmente, a
satisfazer exigências inesperadas que incomportavelmente agravam o preço inicialmente fixado”
(do respectivo Preâmbulo).
Ciente da apontada realidade, e com o declarado intuito de “reajustar o regime legal do contrato-
promessa, por forma a adequá-lo às realidades actuais, estabelecendo verdadeiro equilíbrio entre
os outorgantes (o que passa pela mais eficiente tutela do promitente-comprador) e desmotivando
a sua resolução com intuitos meramente especulativos”, o legislador estabeleceu que “no caso de
ter havido tradição da coisa para o promitente-comprador, em que se criou forte expectativa de
estabilização do negócio e uma situação de facto socialmente atendível, a indemnização devida
por causa da resolução do contrato pelo promitente-vendedor seja o valor que a coisa tiver ao
tempo do incumprimento - medida do dano efectivamente sofrido -, conferindo-se ao promitente-
comprador o direito de retenção da mesma coisa por tal crédito” (idem).
O regime jurídico do contrato promessa veio a ser alvo de alterações através do DL 379/86, de 11
de Novembro que, todavia, manteve as soluções introduzidas pelo DL 236/80, cujo objectivo
precípuo, conforme destacou, “foi acautelar a posição do promitente-comprador de edifícios, ou
de fracções autónomas destes, sobretudo quando destinados a fins habitacionais”, intervenção
justificada por manifestas anomalias que a prática revelava (cfr. Preâmbulo do diploma em causa,
sendo nosso o destaque).
Mais se deixou aí referido que, tendo “o legislador de 1980, para o caso de tradição antecipada da
coisa objecto do contrato definitivo, concedido ao beneficiário da promessa o direito de retenção
sobre a mesma, pelo crédito resultante do não cumprimento (artigo 442.º, n.º 3), pensou-se
directamente no contrato-promessa de compra e venda de edifícios ou de fracções autónomas
deles”. Sob ponderação de que nada justificava que o instituto ficasse confinado a tão estreitos
limites, e assinalando que em diversas previsões do artigo 755.º, n.º 1, do Código Civil desaparece
ou dilui-se a conexão objectiva que o precedente artigo 754.º pressupõe, em termos gerais, entre
a coisa e o crédito, alargou-se a concessão de tal direito ao beneficiário de qualquer promessa
com “traditio rei”.
Finalmente, e reconhecendo embora que o problema levantava “particulares motivos de reflexão,
precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda
de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas
construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, maxime tomados de instituições de
crédito”, dado que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente
registada (artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil)”, expressou o legislador de 1986 com meridiana
clareza que “Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos
particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a
protecção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como
elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no
caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios
ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a
respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras.
Persiste, em suma, o direito de retenção que funciona desde 1980.”
Pois bem, subsistindo desde 1980 o direito de retenção conferido ao promitente-comprador
tradiciário, não se tem furtado a críticas de vários quadrantes, nomeadamente no que se refere à
prevalência legal de que goza sobre a hipoteca, apontando-se ainda a incongruência que resulta
de se encontrar mais protegido quem não celebrou o contrato do que o comprador de coisa
onerada, não faltando mesmo quem defenda a eliminação do regime consagrado no n.º 2 do
artigo 759.º[1].
De todo o modo, assente que nos termos da al. f) do n.º 1 do art.º 755.º goza de direito de
retenção “O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a
tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do
não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º”, a aplicação do assim
preceituado no âmbito do processo insolvencial suscitou diversos e delicados problemas,
culminando com a prolação do AUJ 4/2014, de 20 de Março de 2014, publicado no DR I-Série de
19 de Maio de 2014 e que fixou a seguinte doutrina: “No âmbito da graduação de créditos em
insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente
obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por
parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos estatuídos no artigo
755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil”.
Em face da posição jurisprudencial assim uniformizada e sendo irrecusável que se reportava,
exclusivamente, ao promitente-comprador que detivesse, simultaneamente, a qualidade de
consumidor, conceito que, todavia, não fora objecto de uniformização, foi posteriormente proferido
o AUJ n.º 4/2019, de 12.02.2019 (DR-141 SÉRIE I, de 2019-07-25), nos termos do qual ficou
esclarecido que “Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor,
para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o
promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de “traditio”, a uso particular, ou seja, não o
compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa.”.
Do excurso feito retira-se que, nem sequer por apelo aos motivos que levaram o legislador a
conceder ao promitente comprador tradiciário a tutela particularmente robusta do direito de
retenção (elementos histórico e teleológico da interpretação), se pode extrair que visava
exclusivamente os contratos tendo por objecto a promessa de venda de edifícios ou fracções dele
destinadas a habitação. Acresce que a previsão legal não contém tal restrição nem, tão pouco, faz
qualquer referência à qualidade de consumidor do promitente comprador, nada autorizando,
portanto, que se faça do preceituado na predita alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do CC a pela
recorrente preconizada interpretação restritiva.
De volta ao caso em apreço, resulta comprovado nos autos que, conforme se assinalou na sentença
recorrida, os AA – que, para além, do mais, adquiriram uma fracção autónoma para habitação no
mesmo edifício, conforme resulta dos pontos 1 e 20 – afectaram a fracção autónoma prometida
vender, uma garagem, ao seu uso particular, vindo a utilizá-la para guardar o seu veículo automóvel
e outros objectos da sua vida doméstica, o que corresponde inequivocamente a um uso privado ou
particular. Ademais, atendendo ao modo de vida actual, em que a viatura se assume como uma
necessidade, não se secunda a caracterização da disponibilidade de uma garagem como um luxo,
antes se apresentando como uma extensão da habitação, sendo certo que nada nos autos contraria
tal asserção.
Decorre do exposto que, ao invés do que defende a recorrente, é de reconhecer aos apelados a
qualidade de consumidor para efeitos da aplicação dos enunciados AUJ 4/2014 e 4/2019, não sendo
de exigir para este efeito que a promessa respeite a edifícios ou fracções autónomas destinados a
fins habitacionais. Com efeito, repete-se, não formulando a lei tal exigência – a alínea f) do n.º 1
do artigo 755.º é, a este respeito, totalmente omissa –, não cabe ao aplicador fazê-la, distinguindo
situações que a lei não distingue, isto independentemente das eventualmente justas críticas que
possam ser dirigidas à solução legal.
Em suma, e tal como se concluiu na decisão recorrida, estão preenchidos os pressupostos
constitutivos do direito de retenção dos Autores para garantia do crédito que lhes foi reconhecido.
*
Do abuso de direito
Prevenindo o reconhecimento do direito de retenção, alega a apelante que a sua invocação pelos
AA é, no contexto dos autos, abusiva, resultando num sacrifício injustificado para a recorrente,
abalando o equilíbrio das posições, atendendo à “desproporção grave entre o reconhecimento de
um direito de retenção aos Autores para tutela do depósito de uma viatura e outros pertences seus
num lugar de garagem à custa do sacrifício de uma hipoteca de registo anterior a favor da
Recorrente”.
Não cremos, antecipa-se, que assista razão à apelante.
Nos termos do artigo 344.º, o exercício de um direito é ilegítimo quando o seu titular exceda
manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e
económico destes. O abuso, sendo um instituto puramente objectivo, não depende da culpa do
agente nem da verificação de qualquer elemento específico subjectivo; surgindo como
concretização da boa-fé, apresenta-se afinal como uma “constelação de situações típicas em que o
Direito, por exigência do sistema, entende deter uma actuação que, em princípio, se apresentaria
como legítima”[2]. “Dizer que, no exercício dos direitos, se deve respeitar a boa-fé, equivale a
exprimir a ideia de que, nesse exercício, se devem observar os vectores fundamentais do próprio

sistema que atribui os direitos em causa”[3].


Das situações típicas a propósito das quais o abuso de direito tem sido chamado a intervir, e
mediante as quais o conceito vem sendo densificado, é possível destacar uma categoria particular
-a do desequilíbrio no exercício de posições jurídicas- que “constitui um tipo extenso e residual de
actuações contrárias à boa fé”[4]. Comporta diversos sub-tipos, a saber: i. o exercício danoso inútil;
ii. dolo agit qui petit quod statim redditurus est[5]; iii. desproporção grave entre o benefício do
titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem, sendo que em todas as hipóteses se pode
considerar que o titular, exercendo embora um direito formal, fá-lo em moldes que atentam contra
vectores fundamentais do sistema, com relevo para a materialidade subjacente. O desequilíbrio está
na origem do abuso[6].
Numa outra formulação, esta figura caracteriza-se “pela ocorrência de circunstâncias
extraordinárias que fazem com que o exercício do direito dê origem a resultados totalmente
estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro
podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre
os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte
resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de
coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objectivo)” (do acórdão deste TRE
de 24 Maio de 2018, processo 1285/11.2 TYLSB-I.E2, subscrito pela ora relatora como 2.ª
adjunta).
De referir, por último, que situações não claramente integráveis nas categorias usualmente
identificadas mas com zonas de sobreposição, poderão, ainda assim, reconduzir-se a um exercício
abusivo do direito invocado pelo seu titular, posto que se verifique violação da boa fé com a
intensidade requerida, posto que o reconhecimento do direito, naquela concreta situação, defraude a
ordem jurídica, quer na intencionalidade com que o instituiu e reconheceu, quer no que respeita às
exigências de lisura e probidade que impõe e constituem limite ao seu exercício.
Aqui chegados, a análise dos factos assentes evidencia que nenhuma violação do princípio da boa
fé pode ser imputada aos apelantes, que se limitaram a exercer um direito que a lei lhes concede e
nos estritos limites por esta fixados. Com efeito, é a própria lei que, sopesando os interesses
conflituantes em presença, entendeu dar prevalência ao direito do promitente-comprador
tradiciário, “em quem se criou forte expectativa de estabilização do negócio e uma situação de
facto socialmente atendível”, priorizando, conforme explicitou, “a tutela dos particulares, o que
vem na lógica da defesa do consumidor”.
Ora, sendo os apelados promitentes consumidores tradiciários que, de boa fé, procederam à entrega
de quantias diversas a título de sinal e seus reforços, as quais, somadas, atingiram metade do valor
fixado à fracção, a qual vêm usando desde a data da celebração da promessa de venda, criaram
naturalmente uma legítima expectativa na celebração do contrato definitivo que viram agora
frustrada, com os inerentes prejuízos, atendendo a que a compra de uma fracção semelhante, dado
o incremente do preço do imobiliário, acarreta hoje seguramente um dispêndio superior. E foi
precisamente para atenuar os prejuízos infligidos ao promitente comprador que é também
consumidor que a lei veio conceder ao crédito emergente do incumprimento – que no âmbito da
insolvência nem sequer obedece à fórmula de cálculo do artigo 442.º do CC – a garantia do direito
de retenção, com o sacrifício, que foi devidamente ponderado pelo legislador, do credor
hipotecário. Tudo para concluir que o exercício pelos apelados do direito que a lei lhes confere
nada tem, no apurado contexto, de abusivo.
Improcedente este derradeiro argumento recursivo, impõe-se confirmar a decisão recorrida.
*
III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do tribunal da Relação de Évora em julgar
improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
*
Sumário:
(…)
*
Évora, 25 de Maio de 2023
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite
José Manuel Barata

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[1] Cf. Maria da Conceição Rocha Coelho, “O crédito hipotecário face ao direito de retenção”, pág.
48, dissertação de mestrado em Direito Privado sob a orientação de Brandão Proença, 2011,
acessível on-line, tendo-se acompanhado na exposição quanto se referiu a propósito do tema no
acórdão do TRC de 8/9/2015, relatado pela ora relatora, proferido no processo
3592/13.0TBVIS.C1, acessível em www.dgsi.pt.
[2] Na síntese do Prof. Menezes Cordeiro, “Do abuso do direito: estado das questões e
perspectiva”, ROA 2005, ano 65, vol. II, acessível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-
ordem-dos-advogados-roa/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/antonio-menezes-
cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-e-perspectivas-star/
[3] Idem.
[4] Prof. Menezes Cordeiro, “Do abuso…”.
[5] Age contra a boa fé o credor que exige uma prestação que deve restituir imediatamente ao
devedor.
[6] Prof. Menezes Cordeiro, “Do abuso…”.

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