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Acórdãos TRC Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

Processo: 966/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: CURA MARIANO
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
REQUISITOS
DIREITO DE PROPRIEDADE
PRESUNÇÕES
CONCURSO ENTRE PRESUNÇÕES
MODIFICAÇÃO DA PROPRIEDADE HORIZONTAL

Data do Acordão: 09/05/2006


Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE AVEIRO - 1º JUÍZO
Texto Integral: S

Meio Processual: APELAÇÃO


Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 1268º, Nº1, 1311º E 1417º, 1422º-A, DO C. CIV..; 7º DO
C.R.P.

Sumário: I – São requisitos de procedência das acções de reivindicação, com


fundamento no direito de propriedade, a prova da titularidade desse
direito sobre a coisa reivindicada e a sua ocupação pelos demandados
.
II – A demonstração da titularidade do direito de propriedade deve
fazer-se pela prova do facto jurídico constitutivo do mesmo, o que
implica a demonstração da aquisição originária desse direito, ou pela
prova de factos que a lei reconheça como suficientes para presumir a
existência dessa titularidade – a posse (artº 1268º, nº 1, do C. Civ. ) e
o registo (artº 7º do CRP) .

III - A presunção do registo é ilidivel, mediante a prova de factos


demonstrativos que a titularidade do direito de propriedade não
corresponde à última aquisição inscrita no registo predial .

IV – Apesar da invocação da aquisição por usucapião de uns


arrumos reivindicados obrigar a uma modificação do título
constitutivo da propriedade horizontal, fora dos condicionalismos
exigidos pelo artº 1419º do C. Civ., dado que altera a constituição de
fracções em propriedade horizontal, a mesma é possível, uma vez que
podendo a propriedade horizontal ser constituída por usucapião (artº
1417º, nº 1, do C. Civ.) nada obsta a que possa ser modificada por
usucapião .

V – Verificando-se um caso de concurso de presunções (resultantes


do registo e da posse – artº 7º do CRP e 1268º, nº 1, do C. Civ.), o
mesmo é resolvido pelo disposto no artº 1268º, nº 1, do C. Civ., isto é,
prevalece a presunção mais antiga e, em caso de igualdade na
antiguidade, prevalece a posse .

VI – Sendo a data do registo mais antiga que a data da posse,


prevalece a presunção registral .

VII – Reconhecido este direito, os demandados só podem evitar a


procedência do consequente pedido de restituição da coisa
reivindicada se demonstrarem a existência duma situação jurídica
que lhes permita o seu gozo .

VIII – Tendo em atenção o disposto no artº 1422º-A, nº 1, do C. Civ.,


a inclusão de arrumos pertencentes a uma fracção noutra fracção do
mesmo prédio não necessita do acordo de todos os condóminos, sendo
suficiente o acordo dos proprietários destas duas fracções, uma vez
que dispensando este artigo o acordo de todos os condóminos para a
junção numa só fracção de duas ou mais fracções, desde que
contínuas, também para a operação de junção a uma fracção de
parte de outra fracção contígua àquela não se justifica a participação
de todos os condóminos, bastando a dos proprietários das fracções
envolvidas nessa operação, acordo esse que necessita de ser efectuado
através de escritura pública de modificação do título constitutivo da
propriedade horizontal – artº 1422º-A, nº 4, do C. Civ. – para ser
formalmente válido .

Decisão Texto Integral: Autores: A...


B...
Réus: C...
D...
Intervenientes acessórios: E...
F...

*
Os Autores intentaram a presente acção de reivindicação contra C...,
alegando que são donos de uma fracção urbana, que adquiriram por
compra, e dele faz parte um compartimento para arrumos, sito na cave,
que o Réu vem ocupando sem qualquer titulo
Concluíram, peticionando a condenação do demandado a reconhecer a
sua pro-priedade sobre a fracção e respectivos arrumos, a restituir os
mesmos arrumos e a pagar uma indemnização não inferior a € 1000 pela
ocupação ilegítima.

Contestou o Réu C..., alegando, em síntese:


- o seu cônjuge deve ser demandado, sob pena de ilegitimidade ;
- os arrumos eram parte integrante da fracção que adquiriu à anterior
proprietária, que tinha a posse dos mesmos, e adquiriu a fracção com os
ditos arrumos, acedendo na posse da anterior proprietária.
- a integração dos arrumos na fracção foi condição para a sua aquisição e
neles realizou obras de beneficiação, pelo que deve ser indemnizado por
tais obras, tendo ainda direito de retenção sobre os arrumos, caso seja
condenado a entregá-los.
Concluiu pela improcedência da acção e deduziu reconvenção, pedindo a
condenação dos Autores a reconhecerem ser ele o proprietário e
possuidor dos arrumos desde 1990, o seu direito a modificar o título
constitutivo da propriedade horizontal em conformidade, e a sua posse
sobre os referidos arrumos, desde Junho de 1990; no caso de procedência
da acção, pediu a condenação dos Autores a pagarem uma indemnização
de € 10.000, acrescida de juros de mora e a reconhecerem o seu direito de
retenção sobre os ditos arrumos.
Requereu ainda o Réu a intervenção acessória de E..., e F....

Responderam os Autores, mantendo a posição assumida na p.i., impug-


nando a realização de obras pelo Réu no referido arrumo e requerendo a
interven-ção ao lado do Réu, da sua mulher.

Foi proferido despacho que admitiu as intervenções requeridas.

A chamada D... declarou fazer seus os articulados apresentados pelo Réu


C....

Foi elaborado despacho saneador que considerou prejudicada a aprecia-


ção da excepção de ilegitimidade deduzida pelo Réu.
Naquele despacho julgou-se também improcedente o pedido de reco-
nhecimento do direito de propriedade dos Autores, com fundamento na
sua aquisi-ção por usucapião.

Desta parte do despacho saneador recorreram os Autores, invocando os


seguintes fundamentos:
“ - O meio próprio para os A.A. poderem exigir judicialmente do R. o
reconheci-mento do seu direito de propriedade e a consequente
restituição do compartimento para arrumo, que lhes pertence, é a acção
de reivindicação - art. 1311 o do Código Civil.
- O registo não é constitutivo de direitos.
- Os A.A. adquiriram o direito de propriedade sobre a fracção autónoma
descrita no art. 1° da p.i., por escritura pública.
- Da descrição dessa fracção, propriedade dos A.A., consta um
compartimento para arrumos com a área de 10,23 metros quadrados.
- Esse compartimento tem estado na posse do R..
- O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à
situação jurí-dica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio
jurídico imobiliário - cfr . art. 1º do Código do Registo Predial.
- Quando os A.A. intentaram adquirir a mencionada fracção autónoma a
sua des-crição era precisamente a mesma que ostenta presentemente,
com o compartimento para arrumo a fazer parte integrante dela.
- O douto saneador-sentença, ora posto em crise, ao julgar
improcedente, por caducidade do registo de aquisição, a presente acção
de reivindicação, violou, entre outras, as disposições constantes do art.
1º do Código do Registo Predial e dos arts. 1311º e 1316° do Código
Civil”.
Concluíram, pedindo o prosseguimento da acção de reivindicação,
intentada pelos Autores, até final.

Este recurso foi admitido, como de apelação, com subida diferida.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que


julgou improcedente a acção e, em consequência, absolveu os Réus dos
pedidos formulados pelos Autores, e julgou parcialmente procedente o
pedido reconven-cional, tendo condenado os Autores a reconhecerem
serem os Réus possuidores dos arrumos desde Junho de 1990, e
absolvendo os Autores do demais peticionado em sede de reconvenção.

Desta sentença recorreram novamente os Autores, invocando os seguintes


fundamentos, aqui expostos em síntese:
“- A decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada, uma vez que os
recor-rentes consideram que foram julgados incorrectamente os factos
constantes dos quesitos 3º, 6º, 12º, 20º, 21º e 24º.
- Tendo os Réus apenas a posse dos arrumos, eles gozam da presunção
da titula-ridade do respectivo direito, excepto se existir a favor de
outrem presunção fundada em registo anterior ao início da posse, pelo
que cabia aos Réus ilidirem a presunção da titulari-dade dos Autores, e
os Réus não ilidiram essa presunção, não se tendo provado que a posse
dos Réus seja anterior ao registo.
- Com a sua decisão o tribunal violou os artº 1311º, 342º, nº 2, 350º,
268º, todos do C.C., e artº 7º, do C.R.P.”.
Concluíram pela revogação da sentença recorrida.

Não foram apresentadas contra-alegações.

*
1. Do recurso da decisão do despacho saneador
(…)
*
2 . Do recurso da sentença final
2.1. Os factos
(…)
*
2.2. O direito aplicável
A acção proposta pelos Autores é uma típica acção de reivindicação (artº
1311º, do C.C.), cumulada com pedido indemnizatório, tendo por objecto
um compartimento para arrumos, integrando uma fracção (fracção F) de
um prédio constituído em propriedade horizontal.
São requisitos de procedência deste tipo de acções, com fundamento no
direito de propriedade, a prova da titularidade desse direito sobre a coisa
reivindi-cada e a sua ocupação pelos demandados.
A demonstração da titularidade do direito de propriedade deve fazer-se
pela prova do facto jurídico constitutivo do mesmo, o que implica a
demonstração da aquisição originária desse direito, ou pela prova de
factos que a lei reconheça como suficientes para presumir a existência
dessa titularidade – a posse (artº 1268º, nº 1, do C.C.) e o registo (artº 7º,
do C.R.P.).
Os Autores, no intuito de provarem serem proprietários da coisa reivin-
dicada, invocaram a sua aquisição originária, por usucapião, e a
presunção do registo da aquisição a seu favor.
A primeira causa de pedir já foi julgada improcedente no despacho
saneador.
Quanto à presunção do registo, verifica-se que, efectivamente, a aquisi-
ção da fracção predial, de cuja descrição, no título constitutivo da
propriedade horizontal, consta o compartimento de arrumos reivindicado,
se encontra inscrita na Conservatória do Registo Predial, a favor do
Autor, pelo que este goza da presunção de que é o proprietário dessa
fracção, incluindo o compartimento de arrumos que a integra (artº 7º, do
C.R.P.).
Esta presunção é ilidivel, mediante a prova de factos demonstrativos que
a titularidade do direito de propriedade não corresponde à última
aquisição inscrita no registo predial.
Os Réus, na sua contestação, invocaram serem eles os proprietários dos
arrumos reivindicados, alegando a sua aquisição por usucapião.
Apesar desta invocada aquisição obrigar a uma modificação do título
constitutivo da propriedade horizontal, fora dos condicionalismos
exigidos pelo artº 1419º, do C.C., dado que alterava a constituição das
fracções F e B, a mesma era possível, uma vez que podendo a
propriedade horizontal ser constituída por usucapião (artº 1417º, nº 1, do
C.C.) nada obsta a que possa ser modificada por usucapião
[ Defendendo esta possibilidade, vide DURVAL FERREIRA, em
“Posse e usucapião”, pág. 446-447, da ed. de 2002, da Almedina.]
(o que permite o mais, permite o menos).
Contudo, os Réus apenas demonstraram serem possuidores, por si e por
actos dos seus antecessores no direito de propriedade da fracção B do
mesmo prédio, dos referidos arrumos, desde 1990.
Essa posse não registada, pelas características demonstradas, revela-se
não apoiada em título registado, mas exercida de boa-fé (artº 1260º, nº 1,
do C.C.), pelo que a aquisição do direito de propriedade sobre o
compartimento de arrumos possuído, por usucapião, só poderia ocorrer
ao fim de 15 anos (artº 1296º, do C.C.), ou seja em 2005.
Ora, verifica-se que os Réus foram citados para os termos da presente
acção em 2002, pelo que aquele prazo se interrompeu antes de se ter
concluído, nos termos do artº 323º, do C.C., aplicável ex vi do artº 1292º,
do mesmo diploma.
Não tendo os Réus logrado provar que já haviam adquirido o comparti-
mento para arrumos reivindicado, por usucapião, apenas restou a prova
duma situação possessória, com início em 1990, a qual também tem o
dom de permitir a presunção de que o respectivo direito de propriedade
pertence ao possuidor (artº 1268º, nº 1, do C.C.).
Verificando-se um caso de concurso de presunções (resultantes do registo
e da posse), o mesmo é resolvido pelo disposto no citado artº 1268º, nº 1:
“O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se
existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao da
posse”.
Nesta colisão de presunções prevalece a mais antiga e, em caso de igual-
dade na antiguidade, prevalece a posse.
Como já vimos a posse dos Réus sobre o compartimento de arrumos,
tendo em consideração o fenómeno da acessão na posse (artº 1256º, do
C.C.), iniciou-se em 1990.
A data do registo que releva não é apenas a do último adquirente, mas
sim a do primeiro adquirente, tendo em consideração o princípio do trato
suces-sivo que vigora no sistema registral – o negócio pelo qual se
transmitem direitos só pode ser admitido a registo se esse direito se
encontrar inscrito a favor do transmi-tente – o qual assegura que o direito
cuja aquisição foi posteriormente inscrita é aquele cuja aquisição se
encontrava anteriormente inscrita a favor do transmitente.
A presunção da titularidade do direito constante das inscrições registrais
funciona, pois, desde a data da primeira inscrição registral, verificando-
se, um fenó-meno de sucessão nos efeitos do registo pelo actual titular
inscrito, relativamente aos seus antecessores registrais, não
interrompendo esta cadeia eventuais fenóme-nos de transformação que
afectem as características do prédio, como desanexações, construção de
edifícios (mudança de prédio rústico para urbano), ou constituição da
propriedade horizontal.
Deste modo, devemos considerar que a data do registo é a do 1º titular
inscrito no registo predial (“Joban- Construções, Limitada”),
relativamente ao prédio com as características primitivas, que é de 1983.
Sendo a data do registo mais antiga que a data da posse, prevalece a pre-
sunção registral, pelo que deve reconhecer-se que são os Autores os
titulares do direito de propriedade sobre o compartimento de arrumos
reivindicado.
Reconhecido este direito, os demandados só podem evitar a procedência
do consequente pedido de restituição da coisa reivindicada, se
demonstrarem a existência duma situação jurídica que lhes permita o seu
gozo.
Como resulta da matéria fáctica provada, a ocupação pelos Réus do com-
partimento para arrumos reivindicado resultou do facto destes se
encontrarem fisicamente integrados na fracção B, adquirida pelo Réu
marido nesse estado a "Cunha Queirós - Comércio de Material Eléctrico,
Lda", em 1997.
A integração física do compartimento para arrumos, que pertencia à
fracção F, na fracção B, ocorreu em 1990, quando “Cunha e Queiróz,
Limitada”, adquiriu essa fracção à construtora do edifício, tendo para
esse feito derrubado a parede que separava os arrumos da fracção B, com
a concordância de José Carlos Queiroz, sócio-gerente daquela sociedade
e então proprietário da fracção F.
E foi reconhecendo esta integração de facto duma parte da fracção F na
fracção B, e pretendendo legalizar tal situação, que em 6-5-1999 reuniu a
Assem-bleia de Condóminos, com vista à "Modificação do Título
Constitutivo da Proprie-dade Horizontal", tendo nela comparecido todos
os condóminos e deliberado por unanimidade, “autorizar o proprietário
da fracção "F" – 2º esquerdo, que, então, era "F...", a alterar o título
constitutivo da propriedade horizontal pelo que respeita ao referido
arrumo, por forma a que, em vez de ser parte integrante da fracção "F",
passe a ser parte integrante da fracção "B" propriedade de C.... Mais
deliberaram autorizar os então con-dóminos das fracções "B" e "F",
respectivamente, C... e o legal representante de "F...", a outorgarem a
respec-tiva escritura pública e a introduzir a correspondente alteração no
título constitu-tivo, tudo de acordo com as normas legais em vigor sobre
a propriedade horizontal, nomeadamente o art. 1422º do Código Civil,
providenciando as necessárias autori-zações para o efeito aprovado”.
A acta desta Assembleia foi assinada por todos os condóminos, incluindo
os então proprietários das fracções “F” e “B”.
Tendo em atenção o disposto no artº 1422º - A, nº 1, do C.C., a inclusão
dos arrumos pertencentes à fracção F na fracção B, não necessitava do
acordo de todos os condóminos, sendo suficiente o acordo dos
proprietários destas duas fracções, uma vez que dispensando este artigo o
acordo de todos os condóminos para a junção numa só fracção de duas ou
mais fracções, desde que contíguas, também para a operação de junção a
uma fracção de parte de outra fracção contí-gua àquela, não se justifica a
participação de todos os condóminos, bastando a dos proprietários das
fracções envolvidas nessa operação [ Vide, neste sentido, ARAGÃO
SEIA, em “Propriedade horizontal”, pág. 114-115, da ed. de 2001,
da Almedina, e ANA SARDINHA e FRANCISCO METELLO, em
“Manual do condomínio”, pág. 67, da ed. de 2003, da Almedina.].
Contudo, esse acordo, para ser formalmente válido, necessitava de ser
efectuado através de escritura pública de modificação do título
constitutivo da propriedade horizontal (artº 1422º - A, nº 4, do C.C.), pelo
que podemos considerar que com a participação dos condóminos das
fracções B e F na referida deliberação estes se comprometeram a
posteriormente formalizar a respectiva alteração do título constitutivo da
propriedade horizontal, vinculando-se a outorgar esse negócio jurídico
modificativo.
Um acordo em que as partes se comprometem no futuro a realizar um
negócio jurídico é um contrato-promessa (artº 410º, nº 1, do C.C.),
mostrando-se neste caso observada a forma exigível para este tipo
negocial (artº 410º, nº 2, do C.C.), uma vez que a acta onde foi
documentada a deliberação encontra-se assinada pelos condóminos das
fracções B e F.
Não foi alegado qualquer facto extintivo deste contrato, que ainda não se
mostra cumprido. Não tendo sido marcado qualquer prazo para a outorga
da escritura pública de alteração do título constitutivo da propriedade
horizontal, nem havendo notícia de qualquer interpelação nesse sentido,
também não existe uma situação de mora, mantendo-se o contrato
vigente.
O mesmo é, todavia, susceptível de execução específica (artº 830º, nº 1,
do C.C.).
Entretanto, o compartimento de arrumos objecto da promessa de trans-
ferência da fracção F para a fracção B, já havia sido integrado
fisicamente nesta, mediante acordo dos proprietários das duas fracções,
tendo-se verificado assim uma antecipação dos efeitos do negócio
prometido.
Independentemente da qualificação do negócio que legitima a posse da
coisa prometida transmitir pelo promitente transmissário durante a
vigência do contrato-promessa [ Após algumas hesitações perante a
figura do comodato, é dominante a opinião que se trata de um
contrato atípico - vide Vaz Serra, na R.L.J., Ano 115, p. 208, e os
seguintes Acórdãos:
? da Relação de Lisboa, de 19/5/87, na C.J., Ano XII, tomo 3,
pág. 86, FARINHA RIBEIRO.
? do S.T.J., de 13-3-1986, no B.M.J. nº 355, pág. 364, relatado
por SOLANO VIANA.
? do S.T.J., de 2-11-1989, no B.M.J. nº 391, pág. 538, relatado
por FERNANDES FUGAS.
? do S.T.J., de 26-9-1995, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano III, tomo 3,
pág. 22, relatado por MARTINS DA COSTA.
? da Relação de Coimbra, de 26-9-2000, na C.J., Ano XXV, tomo
4, pág. 17, relatado por ABRANTES GERALDES.
Contudo, ANTUNES VARELA, em Anotação, na R.L.J, Ano 104,
pág. 269, e ANA PRATA, em “O contrato promessa e o seu
regime civil”, pág. 170-172, da ed. de 1999, da Almedina, negam
autonomia a este acordo, defendendo que estamos perante uma
simples cláusula acessória do contrato promessa.], é unanimemente
reconhecido que o mesmo é válido ( artº 405º, do C.C. ) e só cessa com a
celebração da escritura do negócio prometido, onde não há lugar à
restituição da coisa, ou com a resolução ou qualquer outro meio de
extinção do contrato-promessa, tendo, neste caso, o promitente transmis-
sário de restituir o objecto do contrato prometido, atenta a dependência
teleológica dos dois contratos (coligação de contratos).
Estando ainda vigente a promessa outorgada, mantém-se também vigente
o acordo que permitiu a integração do compartimento de arrumos da
fracção F na fracção B, antecipando, assim, os efeitos do contrato
prometido.
Apesar deste acordo de tradição antecipada da coisa prometida transmi-
tir, em princípio, ter efeitos meramente obrigacionais, nada impede que,
em certas circunstâncias, que normalmente ocorrem quando já não há
qualquer contrapresta-ção a satisfazer por essa transmissão, essa tradição
antecipada envolva uma trans-missão da posse, ou o transmissário inverta
o título possessório, passando a possuir como se fosse já seu proprietário
[ Leiam-se, admitindo estas hipóteses VAZ SERRA, nas R.L.J.
109, pág. 347 e 114, pág. 20, PIRES DE LIMA e ANTUNES
VARELA, em “Código Civil Anotado”, pág. 6-7, vol. III, 2ª ed., da
Coimbra Editora, ANTUNES VARELA, na R.L.J., Ano 124, pág.
347, MENEZES CORDEIRO, em “A posse”, pág. 77, da ed. de
1997, da Almedina, CALVÃO DA SILVA, em “Contrato-promessa”,
B.M.J., nº 349, pág. 86, nota 55, e em “Sinal e contrato-
promessa”, pág. 160, nota 55, da ed. de 1988, e os seguintes
Acórdãos :
? da Relação de Coimbra de 23-1-1990, na C.J., Ano XV, tomo 1,
pág. 89, relatado por ROGER BENNET.
? do S.T.J., de 21-2-1991, no B.M.J. nº 404, pág. 465, relatado
por CABRAL DE ANDRADE.
? da Relação do Porto, de 9-3-1993, na C.J., Ano XVIII, tomo 2,
pág. 187, relatado por ARAÚJO DE BARROS.
? do S.T.J., de 26-9-1995, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano III, tomo 3,
pág. 22, relatado por MARTINS DA COSTA.
? do S.T.J. de 19-11-1996, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano IV, tomo
3, pág. 109, relatado por FERNANDO FABIÃO.
? da Relação de Lisboa, de 4-3-1997, na C.J., Ano XXII, tomo 2,
pág. 77, relatado por QUINTA GOMES.
? do S.T.J., de 11-3-1999, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano VII, tomo
1, pág. 137, relatado por DIONÍSIO CORREIA.
? do S.T.J., de 8-5-2003, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano XI, tomo 2,
pág. 46, relatado por FERREIRA GIRÃO.
? do S.T.J., de 12-10-2004, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano XII, tomo
3, pág. 50, relatado por ALVES VELHO.], como sucede no presente
caso.
Atentas as considerações expostas, verifica-se que a ocupação pelos Réus
do compartimento de arrumos da fracção “F”, é titulada pelo acordo de
tradição antecipada do objecto do negócio prometido e ainda não
cumprido, pelo que não lhes pode ser exigida a entrega daquele
compartimento, ainda propriedade dos Autores.
Estes apesar de não terem sido os outorgantes, nem do acordo que pos-
sibilitou essa tradição antecipada, nem da promessa de alteração do título
constitu-tivo da propriedade horizontal que tornasse definitiva tal
transmissão, estão vincu-lados à sua observância e cumprimento.
Na verdade, estamos perante uma obrigação propter rem ambulatória
[Sobre os efeitos da transmissão do direito real sobre a
titularidade das obrigações “propter rem”, vide HENRIQUE
MESQUITA, em “Obrigações reais e ónus reais”, pág. 311 e seg.,
da ed. de 1990, da Almedina.], que devido a só poder ser cumprida
pelo actual titular do direito de propriedade sobre o objecto da obrigação,
se transmite a este com a aquisição por ele desse direito de propriedade,
pelo que os Autores, independentemente da existência de tal obrigação
ter ou não ter sido prevista no negócio de compra e venda da fracção F,
com a sua outorga passaram a ser os sujeitos passivos dessa obrigação,
passando a estar obrigados ao seu cumprimento.
Assim, apesar de dever proceder o pedido de reconhecimento do direito
de propriedade dos Autores sobre o compartimento em causa, alterando-
se em consequência, nesta parte, a sentença recorrida, devem improceder,
quer o pedido de entrega, quer o pedido de indemnização, por ocupação
ilícita, uma vez que se revelou que a ocupação que os Réus fazem
daquele compartimento é legítima.
Quanto ao pedido de reconhecimento desta situação possessória que a
sentença recorrida julgou procedente, o mesmo corresponde aos factos
apurados, não sendo a procedência de tal pedido incompatível com o
reconhecimento do direito de propriedade dos Autores.

*
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se:
- improcedente o recurso interposto pelos Autores da despacho sanea-dor,
confirmando-se a decisão recorrida.
- parcialmente procedente o recurso interposto pelos Autores da sen-
tença, alterando-se esta apenas na parte em que julgou improcedente o
pedido de reconhecimento do direito de propriedade dos Autores,
julgando-se este pedido procedente e, declarando-se, em consequência,
que os Autores são titulares do direito de propriedade sobre fracção “F”,
do prédio sito na Rua José Luciano de Castro, nº 39, freguesia de
Esgueira, concelho de Aveiro, correspondente ao 2° andar esquerdo, na
qual se inclui um compartimento para arrumos sito na cave, do lado
esquerdo, com a área de 10,23 m2, sendo o primeiro a contar da esquerda
para a direita, confirmando-se a sentença recorrida, quanto ao demais
decidido.
Custas da acção, na proporção de 1/3 pelos Autores e 2/3 pelos Réus.

*
Custas do recurso do despacho saneador pelos Autores.
Custas do recurso da sentença, na proporção de 1/3 pelos Réus e 2/3
pelos Autores.

*
Coimbra, 9 de Maio de 2006

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