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Processo: 14232/17.9T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: ROSA TCHING
Descritores: AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
BEM IMÓVEL
OCUPAÇÃO
PRIVAÇÃO DO USO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 28-01-2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Numa ação de reivindicação em que os autores, para além, do reconhecimento do seu direito de
propriedade sobre o prédio urbano ocupado pelos réus, pretendem a condenação destes na
restituição do mesmo, por falta de título legitimador dessa ocupação, e no pagamento de
indemnização pelos danos para eles advenientes da privação do respetivo uso, tais pedidos devem
ser formulados apenas contra aqueles que, alegadamente, ocupam ilegitimamente o prédio em
causa e não também contra a pessoa que figura como arrendatária no contrato de arrendamento.
II. Se, mercê da ocupação de prédio urbano por terceiros sem título justificativo, os respetivos
proprietários ficaram impedidos, durante um certo período, de usá-lo, de fruir as utilidades que
eles normalmente lhes proporcionariam, essa privação injustificada do direito de propriedade
constitui os ocupantes na obrigação de indemnizar os proprietários pelos prejuízos para eles
decorrentes da perda temporária dos poderes de gozo e fruição.
III. Competindo ao lesado provar o dano da privação do uso, não é suficiente, para tanto, a prova
da privação da coisa, pura e simples, mas também não é de exigir a prova efetiva do dano
concreto, bastando, antes, que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela
pretende retirar as utilidades (ou alguma delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não
estivesse dela privado pela atuação ilícita do lesante.
IV. Sendo o imóvel em questão um prédio urbano, será, assim, suficiente demonstrar que o mesmo
destinava-se a ser colocado no mercado de arrendamento, correspondendo, neste caso, a
indemnização pela privação do uso ao seu valor locativo.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2ª SECÇÃO CÍVEL
***
I. Relatório
1. AA. e BB., intentaram a presente ação declarativa comum contra CC. e DD., pedindo que:
a) Seja declarado que as frações autónomas, melhor identificados supra nos artigos 11.° e 12.°,
pertencem à herança deixada por óbito do pai dos autores e da qual são os únicos herdeiros;
b) Sejam os réus condenados a restituírem aos autores as identificadas frações, livres e devolutas
de pessoas e dos bens que ali não se encontravam aquando da ocupação pelos réus;
c) Sejam os réus condenados a efetuarem as obras necessárias com vista a restituir a varanda (que
fruto das modificações operadas pelos réus é agora uma marquise) bem como a casa de banho do
quarto (suite) (onde substituíram a banheira de hidromassagem por um poliban) ao seu
estado/condição primitiva ou a pagarem todas as despesas que os autores tiverem de efetuar para
reporem a fração autónoma no estado em que se encontrava, à data da ocupação, a liquidar em
execução de sentença;
d) Sejam os réus condenados solidariamente a pagarem aos autores uma indemnização por danos
não patrimoniais a determinar equitativamente pelo Tribunal, mas em montante nunca inferior a €
10.000,00;
e) Sejam os réus condenados solidariamente a pagarem aos autores uma indemnização por danos
patrimoniais correspondente a um montante mensal de € 1.500,00 desde a data de início da
ocupação das frações autónomas que se vier a apurar até à sua efetiva entrega aos autores,
acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral e efetivo pagamento;
ou,
subsidiariamente, para o caso de assim não se entender,
i) a pagarem aos autores a quantia correspondente a um montante mensal de € 1.500,00 desde a
data de início da ocupação das frações autónomas que se vier a apurar até à sua efetiva entrega aos
autores, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral e efetivo pagamento,
a título de restituição por enriquecimento sem causa (pelo enriquecimento decorrente do uso e
fruição ilegítimo das frações autónomas — enriquecimento sem causa por intervenção de terceiros
em bens alheios);
ii) Sejam os réus condenados solidariamente a pagarem aos autores, a título de sanção pecuniária
compulsória, a quantia diária de € 100,00, desde a notificação da decisão até à efetiva entrega das
aludidas frações autónomas, ao abrigo do disposto no artigo 829.°-A, n.° 1 e 2, do Código Civil.
Alegaram, para tanto e em síntese, serem as frações dos autos pertencentes à herança indivisa da
qual são únicos herdeiros, a ocupação não autorizada pelos réus das frações descritas nos autos, os
prejuízos daí advenientes e a realização de obras não autorizadas numa das referidas frações.
2. Os réus contestaram, invocando a existência de contrato de subarrendamento e deduziram
pedido reconvencional requerendo a condenação dos autores no pagamento da quantia de euros 11.
213,36 euros, a título de indemnização pelas benfeitorias realizadas no locado, e de 3 881,06
euros, correspondentes às quotizações de condomínio referente às frações que pagaram.
3. Realizada audiência prévia, nela foi proferido despacho saneador que afirmou, para além do
mais, a legitimidade das partes.
De seguida, foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.
4. Procedeu-se a julgamento, após o que foi preferida sentença que julgou a ação parcialmente
procedente e improcedente a reconvenção e, em consequência:
a) Reconheceu que a fracção autónoma designada pela letra "AV" e descrita sob o n.° …. da C.R.P.
de …., freguesia da …, e que a fracção autónoma designada pela letra "EF" e descrita sob o n.° …
da C.R.P. de …, freguesia da …, são propriedade dos autores;
b) Condenou os réus a restituírem aos autores as identificadas fracções, livres e devolutas de
pessoas e bens;
c) Absolveu os réus do demais peticionado.
d) Absolveu os autores do pedido reconvencional.
5. Inconformados com esta decisão, dela apelaram os autores para o Tribunal da Relação …, que
por acórdão proferido, em 02.07.2020, julgou parcialmente procedente a apelação e,
consequentemente, decretou uma indemnização a favor dos autores do valor de 1.500,00 por cada
mês de ocupação do mesmo prédio a partir de 4 de dezembro de 2017 e até efetiva entrega do
mesmo, acrescida de juros à taxa legal, desde a data do respetivo vencimento e até efetivo
pagamento.
Quanto ao mais e uma vez não provados os danos não patrimoniais, julgou improcedente o
recurso quanto a esta parte da sentença, deixando ainda consignado, relativamente à ilegitimidade
dos autores suscitada pelos réus na sua resposta, que esta matéria não foi objeto de recurso, pelo
que se trata de questão transitada nos autos.
6. Inconformados com este acórdão, os réus dele interpuseram recurso de revista para o Supremo
Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se
transcrevem:
«1.ª Tendo em vista o exposto na 1.ª questão, deverá conhecer-se da exceção do litisconsórcio
necessário, de conhecimento oficioso do tribunal que, em consequência deverá declarar extinta a
instância, com as legais consequências sem prejuízo do disposto na parte final do nº.3 do artigo
278º, do C.P.C, com a repristinação da decisão de 1ª. instância.
2.ª Tendo em vista o disposto no nº.4 do artigo 607º, do C.P.C, por força da confissão dos autores
no articulado da ação, na decisão de mérito deverão dar-se como provados os seguintes factos:
i. Que a Mãe dos AA celebrou para a fração reivindicada contrato de arrendamento com EE. (14.º
fls. 7); (facto nº.4).
ii. Que, o prazo do contrato era de um ano, renovável automaticamente, com início em 1.3.1997
(15.º fls. 7);
iii. Que a renda à época era de 960.000$00 anuais (16.º fls. 7);
iv. Que nunca colocaram em causa a validade dos atos praticados pela sua Mãe por
desconhecimento e quando foram informados “…o prazo para exercer tal direito já se
encontravam exauridos” (19.º e 20.º fls. 7);
v. Que não conseguiram por fim ao contrato em 2012 e por isso viram-se forçados a respeitar
aquele contrato (21.º e 23.º fls. 7vs);
vi. Que, em 2015, os AA. tentaram atualizar a renda (25.º);
vii. Que a arrendatária continuou a pagar o montante de 445,41€;
3.ª Considerando que:
a) Conforme consta da confissão dos AA nos artigos 14.º a 23.º e se verifica do documento de fls.
41, a fração reivindicada encontra-se arrendada conforme consta do contrato de arrendamento a
fls. 41.
b) Os AA reconhecem o arrendamento, e referem ainda, que a “inquilina” continuou a pagar a
renda (cf. art.º 26.º da p.i.);
c) No entanto, não fizeram intervir na ação, a parte interessada, arrendatária, procurando servir-se
dos autos num uso anormal da ação para, sem a intervenção da arrendatária, conseguirem um fim
proibido por lei, que é a resolução do arrendamento sem utilizar a ação de despejo contra a
arrendatária, posto que à luz do disposto no artigo 1084.º do CC, a resolução do contrato de
arrendamento, na falta de acordo terá de ser decretada pelo tribunal.
d) Pretenderam assim os AA, através de meio processual impróprio e ilegítimo, obter um benefício
económico e jurídico que não têm direito, posto que o direito dos AA recorridos, no caso, é a
contrapartida da renda acordada com a arrendatária e que confessam receber.
e) Sem prejuízo do requerido na 1ª conclusão, perante a falta de legitimidade dos RR pela falta da
arrendatária na ação e posteriormente dos herdeiros na relação material controvertida, e, em face
da fase processual dos autos, deverá a instância ser declarada extinta em face do disposto no nº.1
alínea “d” do artigo 278º do C.P.C, com as legais consequências.
4.ª Considerando o exposto na anterior conclusão, existindo sobre a fração reivindicada, o ónus de
arrendamento habitacional que não foi resolvido através de ação de despejo, tal ónus impede os
recorridos de usar e fruir da coisa para além do valor da renda que recebem da arrendatária, tal
facto apenas lhe confere o direito à perceção das rendas que recebem tal como se considerou na R,
sentença proferida em 1ª, instancia, não assumindo aqui qualquer relevância a avaliação da fração
como se estivesse livre de tal ónus ou encargo.
5.ª Que, tal como confessam na ação e se verifica dos documentos prova vinculada existentes nos
autos a fls. 103 a 177, os AA recebem a renda da fração no valor de 445,41€.
6.ª Perante a factualidade antecedente, inexiste fundamento jurídico para justificar a condenação
dos recorrentes no pagamento do valor de 1500,00€ mensais, como se sobre a fração em causa não
existisse o ónus de arrendamento.
7.ª A que acresce ainda o facto de que o raciocínio jurídico expendido na R, decisão recorrida não
é justa nem adequada, porquanto:
a) O contrato de arrendamento celebrado obsta à pretensão dos recorridos no pedido de qualquer
tipo de indemnização por danos, designadamente os que reclamam como se não existisse
arrendamento, e que foram reconhecidos no acórdão recorrido constituindo tal decisão um
enriquecimento injusto e sem causa que à indemnização fixada, soma-se ainda o valor da renda
num total de 1945,41€, mensais.!
8.ª Tal como se considerou na R. decisão de 1.ª instância:
“…a verdade é que no caso em apreço os Autores não se viram privados da utilização das frações
reivindicadas porquanto sobre estas incidia um contrato de arrendamento com uma terceira pessoa,
EE., que se manteve em vigor pelo menos até à propositura da acção pelo que mesmo sem a
ocupação dos Réus não poderiam ter fruído dessas fracções...”
9.ª Contrariamente ao decidido no Acórdão recorrido, a obrigação dos herdeiros do arrendatário
nos casos de caducidade do arrendamento não é na data do óbito, mas no prazo de seis meses a
contar de tal data – conforme dispõe o art.º 1053º, do CC, sendo certo que para que tal pudesse
ocorrer, teria de existir factualidade nos autos de prova de que o arrendamento não se transmitiu
aos herdeiros da arrendatária – o que no caso não se verifica.
10.ª A decisão recorrida para além do vício de nulidade por omissão de pronúncia afigura-se aos
olhos do recorrentes ilegal e manifestamente injusta porque não está adequada aos factos provados
quer aqueles que o tribunal recorrido considerou quer aqueles que resultam de prova documental
de força vinculada bem como da confissão no articulado da ação.
11.ª Que se considere e decida que os AA atuaram no âmbito da ação, em manifesto abuso do
direito a que se refere o artigo 334º, do CC.
12ª. O acórdão recorrido no entendimento dos recorrentes, violou as seguintes disposições legais:
a) Do Código Civil
- Artigo 9.º, 1106º,1113,1053º, e 1045, 1080 a 1084.
b) Do CPC
- Artigos 33.º, 278.º a contrário e 607.º nº.4 e 5., 615º, nº.1 alínea “d”;
c) Do NRAU:
Artigo 57º.».
Termos em que requerem seja revogado o acórdão recorrido, mantendo-se o decidido em 1.ª
instância no que se refere ao mérito, alterando-se a responsabilidade pelas custas que devem ser de
inteira responsabilidade dos autores visto que os réus não impugnaram a propriedade da fração
reivindicada.
7. Os autores responderam, terminando as suas alegações, com as seguintes conclusões, que se
transcrevem:
«A. Os Recorrentes-Réus invocam a excepção de ilegitimidade passiva, sendo que, no entanto, tal
questão já foi decidida nos presentes autos, aquando da prolação do despacho saneador, não tendo
sido impugnada por aqueles, pelo que transitou em julgado, tendo ficado definitivamente resolvida
nos autos;
B. Não obstante, e ainda que assim não se entendesse, sempre se diga que carece de qualquer
fundamento a invocação de tal excepção pelos Réus (que, aliás, não a invocaram sequer em
primeira instância), pois que analisadas as causas de pedir e pedidos inexistem quaisquer dúvidas
quanto à legitimidade processual dos Réus para a presente acção, uma vez que têm interesse
directo em contradizer, já que caso se viesse a provar (como, aliás, provou) que os Autores são
proprietários das fracções e que os Réus as ocupam ilegitimamente/ilegalmente, os mesmos
poderiam vir a ser condenados nos pedidos formulados pelos Autores, daí advindo um prejuízo
para os mesmos da procedência da acção (artigo 30.º, do CPC);
C. Além da questão da ilegitimidade passiva, os Réus insurgem-se, ademais, quanto à decisão
proferida pela Relação de os condenar a pagar uma indemnização aos Autores pela ocupação
abusiva das fracções autónomas identificadas nos autos;
D. Ora, os Autores também recorreram do douto Acórdão, estando a sua posição quanto ao mérito
daquela decisão plasmada na motivação de recurso que já apresentaram, pelo que se dá a mesma
aqui por integralmente reproduzida, por motivos de economia e celeridade processual».
Termos em que pugna pela improcedência do recurso.
8. Igualmente inconformados com o acórdão recorrido, os autores interpuseram recurso de revista
para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões,
que se transcrevem:
«A. As questões suscitadas no presente recurso dizem respeito a: i) da anulação da decisão do
tribunal recorrido quanto à impugnação da decisão da matéria de facto; ii) da indemnização devida
pelos Réus pela ocupação ilícita dos imóveis propriedade dos Autores;
- DA ANULAÇÃO DA DECISÃO DO TRIBUNAL RECORRIDO QUANTO À IMPUGNAÇÃO
DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
B. Conforme consta das alegações do recurso de apelação apresentadas pelos Autores (vide
conclusões F. e G.) os mesmos requereram o aditamento de diversos factos, tendo tal pretensão
sido indeferido pelo Tribunal a quo por entender (sem mais) que os mesmos não interessavam à
decisão jurídica das questões trazidas aos presentes autos;
C. que pelos mesmos foram alegados nos seus articulados, não são irrelevantes para a decisão da
causa, tanto mais que se inserem nos temas da prova enunciados no despacho saneador, em
particular, nos seguintes: “saber, se os Réus em momento algum deram conhecimento aos Autores
de tais ocupações, que as desconheciam”, “bem como desconheciam a identidade dos Réus até ao
dia 07.03.2017”;
D. Salvo o devido respeito por opinião diversa, ao contrário do decidido pela Relação os factos
cujo aditamento foi requerido pelos Autores, e que pelos mesmos foram alegados nos seus
articulados, não são irrelevantes para a decisão da causa, tanto mais que se inserem nos temas da
prova enunciados no despacho saneador não impugnado por nenhuma das partes, em particular,
nos seguintes: “saber, se os Réus em momento algum deram conhecimento aos Autores de tais
ocupações, que as desconheciam”, “bem como desconheciam a identidade dos Réus até ao dia
07.03.2017”;
E. Sendo certo que, ainda que assim não fosse (serem os factos relevantes para a decisão da causa),
o Tribunal a quo deveria fundamentar tal decisão, não se podendo bastar com a afirmação
conclusiva de que “à decisão destas questões não interessa qualquer um dos factos que se requer
que seja aditado”, verificando-se, em consequência, uma total falta de fundamentação (factual e de
Direito) da decisão de ser desatendida a pretensão de aditamento de tais factos;
F. Destarte, deve ser determinada a anulação do acórdão recorrido nesta parte a fim de ser
apreciado o mérito da apelação no que respeita à impugnação da decisão da matéria de facto
naquela parte (aditamento dos factos requeridos pelos Autores-Recorrentes no recurso de
apelação);
– DA INDEMNIZAÇÃO DEVIDA PELOS RÉUS PELA OCUPAÇÃO ILÍCITA DOS IMÓVEIS
PROPRIEDADE DOS AUTORES
G. O Tribunal a quo decidiu condenar os Réus a pagarem aos Autores o montante de € 1.500,00
mensais apenas com início a 04.12.2017 (e não desde a data da ocupação – Junho de 2002 –,
conforme peticionado pelos Autores) até à entrega efectiva do prédio (sendo que estavam em
discussão duas fracções autónomas e não apenas uma), acrescendo a tais quantias juros à taxa legal
desde a data do vencimento e até efectivo pagamento;
H. Se bem se entende da fundamentação da decisão recorrida, o Tribunal a quo apenas condena os
Réus a pagar uma indemnização correspondente a € 1.500,00 mensais desde 04.12.2017 pois que
considera que (conforme ali se escreve) “a partir da morte da arrendatária a ocupação dos RR é
ilegítima fazendo-os incorrer em responsabilidade civil extracontratual”.
I. Tal conclusão é, no entanto, e salvo o devido respeito, despicienda de qualquer sentido lógico e
jurídico;
J. Com efeito, e desde logo, porque a ocupação das fracções autónomas identificadas nos autos
pelos Réus sempre foi ilegítima, pois que os mesmos nunca possuíram qualquer título que lhes
reconhecesse legitimidade para as ocupar;
K. De facto, e na senda do que se referiu na 1.ª instância, “os Réus não demonstraram dispor de
título que afastasse a ilicitude da ocupação das fracções”, tanto mais que foi dado como não
provado que “os mesmos tenham sido reconhecidos como subarrendatários até pelos próprios AA,
e anteriormente pela sua legal representante que dos RR receberam as rendas que já em 2006 a
2010 eram depositadas na conta da Autora BB. e anteriormente em nome de FF. e actualmente em
nome do Autor AA.” (facto não provado n.º 7), não vingando, portanto, a estratégia processual,
assente numa falsidade evidente, apresentada pelos Réus, isto é, a existência de um pretenso
subarrendamento celebrado com uma pretensa ex-arrendatária, EE.(sendo que não se pode ignorar
que a Ré é ex-cunhada do filho – testemunha GG. – daquela EE., ou seja, irmã da ex-mulher
daquela testemunha (conforme resulta expressamente do depoimento daquela testemunha –
02m45s a 04m58s da gravação);
L. Assim, ao contrário do que se refere no Acórdão recorrido, tem que se concluir que a ocupação
dos Réus é ilegítima/ilegal desde o seu início, ou seja, desde Junho de 2002 (conforme factos
provados n.º 5.º e 6.º), e não apenas desde 04.02.2017, pois que os mesmos, ao contrário do que
alegaram e não provaram, nunca dispuseram de qualquer título que os habilitasse a ocupar tais
fracções, nem foram reconhecidos como arrendatários ou subarrendatários pelos Autores ou
anteriormente pela sua legal representante.
M. A acrescer, mal se entende que o Acórdão recorrido chame à colação para a decisão dos
presentes autos um anterior contrato de arrendamento celebrado em 1997 pela mãe dos Autores – o
qual, saliente-se, aliás, apenas tem como objecto a fracção autónoma “AV” e já não a fracção
autónoma “EF” –, quando a discussão da validade, execução e cessação não fazia parte do objecto
do presente litígio, nem dos temas da prova (vide objecto da lide e temas da prova constantes do
despacho saneador não impugnado);
N. De facto, nos presentes autos, o que está em apreciação é se a ocupação pelos Réus das fracções
autónomas “AV” e “EF”, propriedade dos Autores, era ou não lícita, tendo-se provado que os
mesmos não dispunham de qualquer título que lhes reconhecesse a licitude/legitimidade de tal
ocupação, pelo que a mesma é ilícita desde que utilizam aquelas fracções autónomas, ou seja,
desde Junho de 2002;
O. E, sendo tal ocupação ilícita desde Junho de 2002, devem os Réus ser condenados a indemnizar
os Autores nos termos da responsabilidade civil extracontratual por tal facto ilícito desde que o
mesmo se verifica e até que cesse (artigo 483.º do Código Civil);
P. Sendo que tal indemnização deve ser fixada em montante equivalente ao valor das rendas que as
fracções autónomas seriam susceptíveis de proporcionar se colocadas no mercado de
arrendamento, ou seja, € 1.500,00 mensais (ou valor mensal calculado nos termos do valor das
rendas de cada fracção constante no auto de perícia colegial constante a fls. dos autos);
Q. Devendo acrescer a tais montantes juros de mora, à taxa legal, contabilizados desde o
respectivo vencimento mensal e até efectivo e integral pagamento;
Caso assim não se entendesse, por mera cautela de patrocínio, sempre se diga que:
R. Ainda que se mantivesse a decisão do Tribunal a quo no sentido de limitar a indemnização no
montante mensal de € 1.500,00 contabilizado apenas a partir de 04.12.2017, nos termos da
responsabilidade civil extracontratual, sempre se diga que teriam os Réus que ser condenados ao
pagamento € 1.500,00 mensais aos Autores (ou valor mensal calculado nos termos do valor das
rendas de cada fracção constante no auto de perícia colegial constante a fls. dos autos), nos termos
do enriquecimento sem causa (por intervenção de terceiros em bens alheios), com referência ao
restante período de ocupação (Junho de 2002 a 03.07.2017), o que foi, aliás, precavido pelos
mesmos na presente acção, ao formularem tal pretensão, a título subsidiário, quer na petição
inicial, quer no recurso de apelação;
S. Ou, alternativamente, que os Réus, ao invés do decidido, fossem condenados a pagar aos
Autores o montante de € 1.500,00 mensais (ou valor mensal calculado nos termos do valor das
rendas de cada fracção constante no auto de perícia colegial constante a fls. dos autos), desde a
data de ocupação das fracções até até à sua efectiva entrega aos Autores, apenas e só com base no
instituto do enriquecimento sem causa (por intervenção de terceiros em bens alheios), e já não na
responsabilidade civil extracontratual;
T. De facto, conforme se faz notar no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03.10.2013,
proferido no âmbito do Processo n.º 1261/07.0TBOLHE.E1.S1, “Poderá o Direito ficar indiferente
a uma tal situação de alguém que beneficia de bens alheios à custa e contra a vontade do
respectivo dono? Seguramente que não, pois tal solução repugnaria ao mais elementar senso
jurídico. E o certo é que o Direito tem solução: o instituto do enriquecimento sem causa.”, cujos
requisitos são: a) que haja um enriquecimento de alguém; b) que o enriquecimento careça de causa
justificativa; c) que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição;
U. O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, podendo essa
vantagem consistir no uso ou exercício de direitos alheios, como é o caso da instalação em
imóveis/prédios alheios, como se verifica nos presentes autos, há mais de 17 anos (desde Junho de
2002);
V. A ausência de causa justificativa reconduz-se, grosso modo, à ausência de título ou fundamento
jurídico ou, de outro modo dito, quando a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito
impunha que o enriquecimento pertencesse a outrem que não o enriquecido, sendo que no caso em
apreço, não tendo os Réus demonstrado a titularidade de qualquer direito legitimador do seu uso,
é evidente que, segundo a ordenação jurídica dos bens, o aproveitamento daquelas vantagens
deveria pertencer aos Autores e não àqueles;
W. Por fim, é necessário que o enriquecimento seja obtido à custa de quem requer a restituição,
sendo que “à custa” não significa necessariamente que o credor da restituição seja empobrecido,
quer dizer e contemplando a deslocação patrimonial, que o valor que entra no património do
enriquecido corresponda ao que sai do empobrecido; com efeito, pode ocorrer enriquecimento
injustificado sem o correspondente e correlativo empobrecimento do lesado, o que, por via de
regra acontece, nos casos em que o beneficiado com a vantagem patrimonial se intrometeu nos
direitos, ou nos bens jurídicos alheios, isto é, quando alguém, sem ter a tal direito, usa, consome
ou utiliza bens alheios ou exercita direitos de outrem, sendo que, nestes casos, em bom rigor, não
se pode afirmar que se verifique um empobrecimento do lesado, mas apenas que alguém se
aproveitou dos seus bens, enriquecendo à custa deles; assim “à custa”, conforme ensina Antunes
Varela, quer dizer “obtido com meios ou instrumentos pertencentes a outrem”; e à luz desta
explanação, forçoso é concluir que o enriquecimento dos Réus foi obtido a custa dos Autores;
X. Sendo inquestionável que a ocupação e o uso das fracções autónomas, desde Junho de 2002,
implicou um enriquecimento injustificado dos Réus à custa dos Autores, a consequência jurídica é
a imposição aqueles da obrigação de restituir o enriquecimento (artigo 473.º, n.º 1, do Código
Civil);
Y. Ora, o objecto da restituição nos casos de enriquecimento sem causa fundado na utilização de
bens alheios é o chamado “valor de exploração” de tais bens, pois que o objecto da obrigação de
tal restituição é, primariamente dirigido em relação ao que foi obtido à custa de outrem, e em caso
de impossibilidade de restituição em espécie, ao valor correspondente, o qual, coincidirá,
conforme vem entendendo a jurisprudência dos nossos Tribunais e a doutrina (vide, por exemplo,
o Professor Menezes Leitão in Direito das Obrigações, vol I, 2000, p. 413), em caso de ocupação
de casa/prédio alheio ao valor locativo do mesmo;
Z. Assim, também por esta via (do enriquecimento sem causa), sempre teriam os Réus que ser
condenados a pagar aos Autores um montante correspondente ao valor locativo das fracções
autónomas desde a sua ocupação ilícita até à sua efectiva entrega;
AA. Com efeito, uma decisão que não condene os praticantes de actos ilícitos, nomeadamente
através da sua intromissão e utilização de bens privados alheios, violando um direito
importantíssimo como o direito de propriedade, ao pagamento de um montante justo que deva
corresponder ao valor locativo dos bens por todo o tempo da ocupação ilícita poria em causa a
confiança na justiça, no tráfego jurídico e a segurança jurídica, criando-se um precedente para a
verificação de um número crescente de situações similares à dos presentes autos, num sentimento
de impunidade e desconfiança que o Direito e os nossos tribunais não podem permitir».
Termos em que requerem seja determinada a anulação do acórdão recorrido a fim de ser apreciado
o mérito da apelação no que respeita à impugnação da decisão da matéria de facto na parte
referente ao aditamento dos factos requeridos pelos Autores-Recorrentes no recurso de apelação
(conclusões B. a F. supra).
Para o caso de assim não se entender, requerem seja revogada a decisão recorrida na parte em que
apenas condenou os Réus a pagarem aos Autores o montante de € 1.500,00 mensais com início a
04.12.2017 até à entrega efectiva do prédio, acrescendo a tais quantias juros à taxa legal desde a
data do vencimento e até efectivo pagamento, substituindo-se por outra que condene os Réus, com
base na responsabilidade civil extracontratual e/ou no enriquecimento sem causa por intervenção
de terceiros em bens alheios, a pagarem aos Réus um montante correspondente ao valor locativo
das fracções autónomas, equivalente a € 1.500,00 mensais (valor locativo dado por provado com o
n.º 9) ou à soma do valor das rendas de cada fracção constante no auto de perícia colegial
constante a fls. dos autos, com início na data da ocupação das duas fracções autónomas
propriedade dos Autores identificadas nos autos, ou seja desde Junho de 2002, até à entrega
efectiva daquelas fracções autónomas aos Autores, acrescendo a tais quantias juros à taxa legal
desde a data do vencimento e até efectivo pagamento.
9. Os réus responderam, terminando as suas alegações, com as seguintes conclusões, que se
transcrevem:
« 1ª Tendo em vista a “dupla conforme” a que se refere o nº 3 do Artigo 671º do CPC, tal facto
impede a Revista que, em consequência, deve ser rejeitada.
2.ª Sem prejuízo da anterior questão, e, tendo em vista o exposto na 2ª questão, há também a
verificação da dupla conforme impeditiva de que este V.dº Tribunal pudesse alterar a matéria de
facto dada como assente no tribunal da Relação, salvo nos casos previsto no artº 674 do C.P.C se o
recurso fosse admissível, o que não é o caso.
3.ª Tal como referido na 3ª questão, na instauração da ação e no recurso a que se responde, os
Recorrentes partiram com sofisma, com base num facto irreal e não verdadeiro – inexistência de
arrendamento existente como ónus incidente sobre a fração, para construir toda a sua tese maldosa
em que assentou quer a ação quer o recurso a que se responde.
4ª. E, muito embora a R. decisão recorrida tenha sido clara no raciocínio e no conteúdo no que ao
mérito da ação nesta questão da existência de tal ónus se refere, o certo é que os recorrentes
ignoram uma questão de facto essencial considerada pelo tribunal, em ambas as instâncias de que a
fração reivindicada encontra-se com o ónus de arrendamento, cujo contrato consta a fls. 41 – Facto
provado n.º 4, ainda está em vigor por não ter sido denunciado – facto esse que, por si só, põe em
causa toda a estratégia maldosa dos AA recorrentes, tal como consta do Recurso dos Recorridos e
cuja fundamentação se dá por reproduzida por economia processual.
5ª. Considerando que os recorrentes invocam prestações retroativas ao ano de 2002, já ocorreu a
sua prescrição em face do disposto no artigo 310º, do CC, o que se invoca para os devidos
efeitos».
Termos em que requerem:
« 1. Que o recurso de Revista interposto pelos recorrentes, por inadmissível em face da dupla
conforme seja rejeitado, com as legais consequências.
2. Que, em consequência do anterior pedido, prejudicada fica a questão da modificação da matéria
de facto porquanto, no caso, também se verifica a dupla conforme ».
10. Em 22.10.2020, o Tribunal da Relação proferiu acórdão que, apreciando a nulidade do acórdão
recorrido invocada em sede de recurso, nos termos dos arts. 666º, 615º, nº1, al. b), 679º e 641º,
todos do CPC, concluiu pela inverificação de tal nulidade.
***
***
III. Fundamentação
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Antes, porém, de entrarmos na apreciação destas questões, importa decidir da questão prévia da
inadmissibilidade do recurso de revista interposto pelos autores suscitada pelos réus nas suas
contra alegações com o fundamento de que, sendo a decisão proferida pelo Tribunal da Relação
mais favorável aos autores do que a sentença de 1ª instância e tendo o Tribunal da Relação
decidido manter inalterada a factualidade dada como provada pelo Tribunal de 1ª Instância,
verifica-se, num e noutro caso, dupla conformidade de decisões obstativa da interposição do
recurso de revista, nos termos do disposto no at. 671º, nº 3, do CPC.
Vejamos.
Dispõe o nº 3 do citado art. 671.º, que «não é admitida revista do acórdão da Relação que
confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação substancialmente diferente ».
De salientar ainda que, não obstante a dupla conforme aferir-se em função da decisão final,
constatando-se que, no caso dos autos, a parte dispositiva da sentença, tal como do acórdão
recorrido, contém segmentos decisórios distintos e com objeto materialmente autónomo, impõe-se
aferir o conceito de dupla conforme previsto no art. 671º, nº 3 do CPC, separadamente,
relativamente a cada um deles[2].
Ora, se é certo ter o acórdão recorrido mantido inalterada a factualidade dada como provada pelo
Tribunal de 1ª Instância e conter o mesmo uma decisão mais favorável aos autores/recorrentes, na
medida em que, alterando a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância que havia absolvido
os réus do pedido de indemnização formulado pelos autores, condenou os réus a pagarem a estes
uma indemnização do valor de 1.500,00 por cada mês de ocupação do mesmo prédio a partir de 4
de dezembro de 2017 e até efetiva entrega do mesmo, acrescida de juros à taxa legal, desde a data
do respetivo vencimento e até efetivo pagamento, a verdade é que esta decisão, oposta à prolatada
em 1ª instância, envolveu uma fundamentação jurídica essencialmente diferente, sendo, por isso,
insuscetível de ser enquadrada no conceito de dupla conforme contido no nº 3 do citado art. 671º.
E resultando claro do disposto neste preceito legal, que o requisito delimitador da conformidade
das decisões radica na fundamentação jurídica que, em concreto, se revelou crucial para sustentar
o resultado declarado por cada uma das instâncias, evidente se torna ser totalmente irrelevante,
para efeitos de aferição da dupla conforme, a circunstância de o acórdão recorrido ter mantido
inalterada a factualidade dada como provada pelo Tribunal de 1ª Instância.
Acresce que a impugnação do acórdão recorrido, na parte respeitante à necessidade de ampliação
da decisão sobre a matéria de facto, suscitada pelos autores, por se tratar de questão que emergiu
apenas do acórdão da Relação proferido no âmbito do recuso de apelação, sem que tenha sido
objeto de apreciação na 1ª Instância, escapa também à figura da dupla conforme[3].
Daí não existir qualquer obstáculo à admissibilidade do recurso de revista interposto pelos autores.
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, se conclui pela improcedência da
questão prévia suscitadas pelos réus.
Mais requerem que, por força dos documentos constantes de fls. 103 a 177, seja dado como
provado que:
« vii. Que, a arrendatária continuou a pagar o montante de 445,41€»
Nesta matéria, preceitua o artigo 607º, nº 4, do CPC, que «Na fundamentação da sentença, (…), o
juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por
documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto
adquirida (…) », estabelecendo o nº 5 deste mesmo artigo que «(...) a livre apreciação não
abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser
provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por
acordo ou confissão das partes».
Resulta, assim, deste artigo que o juiz deve concentrar na sentença, não só a matéria de facto
refletida pelos meios de prova que foram produzidos ou apreciados na audiência final, mas
também a que resulta da apreciação de meios de prova plena constantes dos autos, mormente da
confissão (arts. 354 e 358º do C. Civil), documentos autênticos, autenticados e particulares (arts
371º, nº 1 e 376º, do C. Civil) e acordo expresso ou tácito das partes (arts. 574º, nºs 2 e 3, e 587º,
nº 1, do CPC)[7].
E se é certo que, por via da sucessiva remissão do arts. 663º, nº 2 e 679º, ambos do CPC, esta
norma tem aplicação no julgamento do recurso de revista, certo é também que o Supremo Tribunal
de Justiça só deve aditar à decisão sobre a matéria de facto, nos termos do citado art. 607º, nº 4,
«os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a
escrito» nos casos em que tal factualidade se mostre relevante para a decisão de direito.
Ora, no caso vertente, basta atentar na factualidade supra descrita no ponto 4 dos factos dados
como provados (com base no doc. de fls. 41) para facilmente se constatar que a mesma abrange os
factos constantes dos pontos i), ii) e iii) e que os recorrentes pretendem sejam aditados, carecendo,
por isso, de fundamento tal pretensão.
E o mesmo vale dizer quanto aos factos constantes dos pontos iv), v) e vi), porquanto,
contrariamente ao que sustentam os recorrentes, não só não se vê que dos factos alegados pelos
autores nos artigos 19º, 20º, 21º, 23º e 25º da petição inicial, se possa extrair qualquer declaração
confessória, como os mesmos não se revestem de qualquer interesse para a decisão da causa.
Do mesmo modo carece de fundamento a pretensão dos réus em ver aditada aos factos provados a
factualidade constantes do ponto vii), ou seja, que «a arrendatária continuou a pagar o montante de
445,41€», pois para além de estarmos perante factualidade que não foi alegada por nenhuma das
partes, não se vislumbra que os documentos constantes de fls. 103 a 177, façam prova plena da
referida factualidade[8].
Termos em que improcede, neste segmento, o recurso interposto pelos réus.
Termos em que improcede também, neste segmento, o recurso interposto pelos autores.
Vejamos.
Como é consabido, sobre a problemática do direito à indemnização pela privação do uso de um
determinado bem formaram-se três correntes.
Assim, segundo uma tese, defendida, designadamente por Abrantes Geraldes[9] e Menezes
Leitão[10] e perfilhada mormente no Acórdão do STJ, de 05.07.2007 (processo nº 07B18496)
[11], a privação do direito de uso e fruição integrado no direito de propriedade configura, por si só,
um dano indemnizável, independentemente da utilização que se faça, ou não, do bem em causa
durante o período da privação.
Já para os defensores de uma segunda tese, defendida entre outros, nos Acórdãos do STJ, de
10.07.2012 (processo nº 3482/06.3TVLSB.L1.S1), de 04.07.2013 (processo nº
5031/07.7TVLSB.L1.S1) e de 10.01.2012 (processo nº 189/04.0TBMAI.P1.S1)[12], a atribuição
de uma tal indemnização depende da prova do dano concreto, ou seja, para a determinação do
dano deve o lesado concretizar e demonstrar a situação hipotética que existiria se não fosse a lesão
(ocupação ou privação do uso).
Assim, no que concerne à privação do uso de um bem imóvel, afirmou-se, nos Acórdãos do STJ,
de 08.05.2007 (processo nº 07A1066) e de 06.05.2008 (processo nº 08A1389) [13], que a mera
privação (de uso) da fração reivindicada ou do prédio reivindicado «impedindo, embora, o
proprietário do gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição nos termos do art.
1305º do CC, só constitui dano indemnizável se alegada e provada, pelo dono, a frustração de um
propósito real, concreto e efetivo de proceder à sua utilização, os termos em que o faria e o que
auferiria, não fora a ocupação-detenção, pelo lesante». No mesmo sentido, afirmou-se no acórdão
do STJ, de 10.07.2008 (processo nº 08A2179)[14] que «A mera privação (de uso) do prédio
esbulhado, impedindo, embora, possuidor do gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e
disposição (nos termos do artigo 1305.º do Código Civil) só constitui dano indemnizável se
alegada e provada, por aquele a frustração de um propósito, real, concreto e efectivo de proceder à
sua utilização, os termos em que o faria e o que auferiria, não fora a ocupação-detenção, pelo
lesante ».
Por sua vez, para os defensores de uma terceira tese, sufragada entre outros, nos Acórdãos do STJ
de 02.06.2009 (processo nº 1583/1999.S1), de 12.01.2012 (processo nº 1875/06.5TBVNO.C1.S1),
de 03.10.2013 (processo nº 1261/07.0TBOLHE.E1.S1) e de 14.07.2016 (processo nº
3102/12.7TBVCT.G1.S1)[15], apesar de não chegar a prova da privação da coisa, pura e simples,
também não é de exigir a prova efetiva do dano concreto, bastando, antes, que o lesado demonstre
que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou alguma delas) que a
coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela atuação ilícita do lesante.
Em sentido próximo, escreve Paulo Mota Pinto[16] que a indemnização do dano da privação do
uso pressupõe a demonstração da possibilidade de certa utilização concreta ou da afetação da
possibilidade dessa utilização, como integradora das faculdades do proprietário.
Assim, sendo a coisa em questão um prédio urbano, decidiu-se no Acórdão do STJ, de 26.05.2009
(processo nº 09A0531) [17], que «será suficiente demonstrar que se destinava a ser colocado no
mercado de arrendamento ou que o seu destino era a habitação própria, se pudesse dispor dele em
condições de normalidade. Mas será dispensável a prova efectiva que estava já negociado um
concreto contrato de arrendamento e a respetiva renda acordada ou os prejuízos efectivos
decorrentes de o não poder, desde logo, habitar ».
Ora, relativamente a esta matéria e aderindo à tese seguida no citado Acórdão do STJ, de
03.10.2013 de que «a indemnização do dano da privação do uso pressupõe, portanto, a
demonstração da possibilidade de certa utilização concreta ou da afetação da possibilidade dessa
utilização, como integradora das faculdades do proprietário», decidiu a sentença proferida pelo
Tribunal de 1ª Instância que «independentemente do entendimento seguido a verdade é que no
caso em preço os Autores não se viram privados da utilização das fracções reivindicadas
porquanto sobre estas incidia um contrato de arrendamento com uma terceira pessoa, EE., que se
manteve em vigor pelo menos até à propositura da acção pelo que mesmo sem a ocupação dos
Réus não poderiam ter fruído dessas fracções»
Diferente entendimento teve o Tribunal da Relação que, tendo em conta resultar dos factos
provados que «a arrendatária faleceu em 4 de dezembro de 2017, portanto, já no decurso da
causa», considerou que, «nesta data caducou o contrato de arrendamento em face do disposto no
artigo 1051º, alínea d) do CC » e que «a partir da morte da arrendatária a ocupação dos RR é
ilegítima, fazendo-os incorrer em responsabilidade civil extracontratual nos termos do disposto no
art. 483º do CC uma vez que esta ocupação viola e afronta o direito de propriedade dos AA que
por essa razão se vêem impedidos de fruir o seu direito de propriedade (art. 1305º do CC)» e
constitui os mesmos na «obrigação de indemnizar de acordo com as regras do artigo 562º e
seguintes do CC».
Assim, perfilhando a orientação da terceira tese, entendeu, no caso dos autos, que «da conjugação
dos factos provados, mormente do uso dado ao imóvel que foi arrendado e assim se manteve até à
morte da inquilina e do valor locativo do mesmo fixado em 1.500,00 euros mensais, resulta quanto
a nós e desde logo uma realidade processual demonstrativa que os AA usariam normalmente o
prédio, do que ficaram privados, com o consequente prejuízo, que mesmo pela simples aplicação
da teoria diferença se pode considerar ser o correspondente ao valor locativo do imóvel -
1.500,00 euros mensais - o que é, a nosso ver, suficiente para lhes atribuir uma indemnização».
E a verdade é que não vemos razão para dissentir, no essencial, desta decisão.
É que se é certo que, não tendo os autores instaurado contra a arrendatária EE. ação de resolução
do contrato de arrendamento, sempre seria de concluir que, subsistindo este contrato, pelo menos,
até 4 de dezembro de 2017, não se podia falar em privação do uso das frações em causa por parte
dos autores - o que, desde logo, faz cair por terra a pretensão dos autores/recorrentes no sentido de
que a indemnização fixada por privação do uso é devida desde a data da ocupação pelos réus das
ditas frações, ou seja, desde junho de 2002 – certo é também que, por morte da arrendatária EE.,
ocorreu, nos termos do art. 1051º, al. d)[18], do C. Civil, a caducidade deste contrato de
arrendamento.
Assim e porque, por via desta caducidade, o contrato de arrendamento resolveu-se ipso iure, sem
necessidade de qualquer manifestação de vontade[19], não sofre dúvida que, a partir desta data (4
de dezembro de 2017), a ocupação pelos réus das referidas frações impediu e continua a impedir
os autores, seus proprietários, de usá-las, de fruir as utilidades que elas normalmente lhes
proporcionariam, ou seja, de dispor delas como melhor lhes aprouver, de harmonia com o disposto
no art. 1305º do C.C., o que vale por dizer que estamos perante uma privação injustificada do uso
das ditas frações por parte dos autores.
E nem se argumente, como o fazem os réus/recorrentes, que, para que assim fosse, necessária seria
que se tivesse provado que o arrendamento não se transmitiu aos herdeiros da arrendatária, EE., já
que era sobre eles que sempre recairia o ónus de alegar e provar essa transmissão, pelo que, não o
tendo feito, são os próprios que têm de sofrer as consequências dessa falta de prova.
De resto sempre se dirá que, tendo ficado provado que os réus ocupam as duas fracções autónomas
“Av” e “ EF” desde o ano 2002, nem se vê que se possa colocar a questão da não caducidade do
contrato do arrendamento por transmissão mortis causa, que, de harmonia com o disposto no art.
57º do NRAU, pressupõe a residência no locado por parte do arrendatário e demais pessoas ali
referidas.
Daí carecer também de fundamento a afirmação feita pelos réus de que, atento o disposto no art.
1053º do C. Civil, o prazo para a restituição das ditas frações por parte dos respetivos herdeiros
sempre seria o de 6 meses a contar da data do óbito da arrendatária.
Do mesmo modo, não colhe a tese defendida pelos réus de que, continuando os autores a receber €
445,41 de renda, a condenação deles no pagamento aos autores de uma indemnização no montante
de € 1.500,00 por cada mês de ocupação das ditas frações a partir de 4 de dezembro de 2017 e até
efetiva entrega das mesmas constitui um enriquecimento injusto e sem causa por parte dos autores,
porquanto não resulta dos factos provados que os autores, após a morte da arrendatária,
continuaram a receber qualquer renda.
E muito menos se vê que a conduta dos autores consubstancie abuso de direito, pois é
inquestionável que, estando os réus a ocupar as ditas frações desde 2002 sem qualquer título que
legitimador dessa ocupação, recusando-se a entregá-las aos respetivos donos e privando estes de
usufruírem das respetivas utilidades, foram eles que forçaram os autores a interpor a presente ação
de reivindicação com vista à obtenção da restituição das frações em causa e ao ressarcimentos dos
danos causados.
Daí que, em face de todas estas considerações, resultando provado que o valor locativo das duas
frações é de € €1500,00 mensais e evidenciando os demais factos provados que os autores
continuariam a destinar tais frações ao arrendamento, entende-se que a indemnização devida aos
autores pela privação do uso das mesmas deve corresponder ao seu valor locativo, pelo que
nenhuma censura merece, nesta parte, o acórdão recorrido.
Termos em que improcede, neste segmento, quer o recurso interposto pelos réus, quer o recurso
interposto pelos autores.
***
IV – Decisão
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Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o
presente acórdão tem o voto de conformidade da Exmª. Senhora Conselheira Catarina Serra e do
Exmº Senhor Conselheiro Paulo Rijo Ferreira que compõem este coletivo.
***