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Tribunal da Relação de Coimbra

Processo nº 1018/13.9TAGRD.C1

Relator: VASQUES OSÓRIO


Sessão: 16 Dezembro 2015
Votação: UNANIMIDADE
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA

FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO

ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA

Sumário

I - A acusação é manifestamente infundada quando é notória a sua


improcedência, quando da respectiva leitura resulta evidente que o arguido
não poderá ser condenado com base nela. Em todo o caso, a lei define,
taxativamente, as situações em que, para efeitos de rejeição, a acusação deve
considerar-se manifestamente infundada.
II -Assim, excluída fica a rejeição da acusação fundada em manifesta
insuficiência de prova indiciária, tendo caducado a jurisprudência fixada pelo
Acórdão nº 4/93, de 17 de Fevereiro (DR, I-A, de 26 de Março de 1993).
III - O crime de falsificação ou contrafacção de documento é um crime comum,
de perigo abstracto e de mera actividade, que tutela o bem jurídico segurança
e credibilidade no tráfico jurídico probatório (cfr. Helena Moniz, Comentário
Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora,
pág. 680).
IV - A conduta que tem por objecto o requerimento para substituição de uma
carta de condução francesa, inválida por saldo nulo de pontos, por uma carta
de condução portuguesa, não pode ser qualificada como falsificação ou
contrafacção de documento, em qualquer uma das formas que se deixaram
referidas e que têm previsão típica nas seis alíneas do n.º 1 do art. 256.º do
CP.

Texto Integral

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Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de
Coimbra

I. RELATÓRIO

No inquérito nº 1018/13.9TAGRD, que corria termos nos Serviços do


Ministério Público – Guarda – Procuradoria da Instância Local – 2ª Secção de
Inquéritos, junto do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – Guarda –
Instância Local – Secção Criminal – J1, o Ministério Público requereu o
julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, do
arguido, A... , com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática de um
crime de uso de documento falso, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, d), com
referência ao art. 255º, a), ambos do C. Penal.

Remetidos os autos à distribuição, o Mmo. Juiz proferiu o seguinte despacho:

“ (…).

O Tribunal é o competente.

Autue como processo comum com intervenção do tribunal singular.

Vista a acusação deduzida pelo Ministério Público nos presentes autos a fls. 75
e 76 contra A... , verifica-se que aí se alega factualmente o seguinte: “No dia 8
de Novembro de 2013, o arguido deu entrada na Delegação Distrital de Viação
da Guarda, do requerimento para troca da sua carta de condução Francesa,
com o nº (...) , emitida pelas autoridades francesas de Strasbourg, em
9-6-2008, tendo obtido guia de condução portuguesa, tudo conforme se
constata dos documentos de fls. 2-18 dos autos e que aqui se dão por
integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais. Porém, a carta de
condução estrangeira pretendida trocar pelo arguido, conforme se veio a
apurar, está inválida, por saldo de pontos nulos, devido a infracções estradais
cometidas em território francês, o que era do seu perfeito conhecimento. Agiu
o arguido de forme deliberada, livre e conscientemente, querendo e sabendo
que obtinha carta de condução de veículos automóveis portuguesa através do
uso de carta de condução francesa inválida, assim visando alcançar para si um

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benefício ilegítimo à custa do prejuízo do Estado. Bem sabia o arguido que a
sua supra descrita conduta era proibida e punida criminalmente.”.

Com base em tais factos, imputa o Ministério Público ao arguido a prática de


um crime de falsificação de documento, p. p., entre o mais, pelo artigo 256º,
n.º 1, al. d), do Cód. Penal, ou seja, na modalidade que consiste em “fazer
constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto
juridicamente relevante”, tudo com a subjacente intenção (neste caso) por
parte do arguido em obter para si um benefício ilegítimo.

É certo que o Ministério Público refere um crime de “uso de documento


falsificado”, mas não aponta para alínea e) do referido artigo 265º, n.º 1, do
Cód. Penal (como assim seria mais de esperar), antes apontando, como se
disse, para a respectiva alínea d). Pressupomos portanto que seria a
modalidade constante desta última alínea aquela a que o Ministério Público se
pretenderia referir, embora sem prejuízo de se poder ter tratado de qualquer
eventual lapso e antes se pretender referir a alínea e).

Ora, a respeito da acima aludida alínea d), entende-se então que o


preenchimento do respectivo tipo objectivo de crime se verifica com o fazer
constar falsamente de um documento um facto que é juridicamente relevante.
Não se trata de uma falsificação material do documento, mas sim de uma
falsificação ideológica do mesmo, que tem igualmente cabimento no presente
tipo de crime. Documento, para efeitos de direito penal, não é o material que
corporiza a declaração, mas a própria declaração independentemente do
material em que está corporizada; e declaração enquanto representação de
um pensamento humano. Integra o referido tipo legal de crime não só a
falsificação material, como também a falsificação ideológica.

Constituindo a falsificação de documentos uma falsificação da declaração


incorporada no documento cumpre distinguir as diversas formas que o acto de
falsificação pode assumir: falsificação material e ideológica. Enquanto na
falsificação material o documento não é genuíno, na falsificação ideológica o
documento é antes inverídico: tanto é inverídico o documento que foi objecto
de uma falsificação intelectual como no caso de falsidade em documento. Na
falsificação intelectual o documento é falsificado na sua substância, na
falsificação material o documento é falsificado na sua essência material.

Revertendo ao nosso caso concreto, e nomeadamente aos factos constantes da


acusação deduzida pelo Ministério Público nos autos, verifica-se que nela não
se descreve nem se alega sequer que o arguido tenha tido qualquer tipo de
intervenção sobre qualquer espécie de documento, ou que nele tenha escrito,

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assinado ou feito constar o que quer que seja. Apenas se alega, em suma, que
o arguido entregou uma carta de condução francesa num determinado serviço
público português com vista a que a mesma fosse trocada por uma carta de
condução portuguesa, assim obteve uma guia que lhe permitia conduzir em
Portugal, e mais tarde veio a apurar-se que a carta de condução francesa
entregue pelo arguido não se encontrava válida, por motivos relacionados com
o excesso de infracções estradais.

Neste quadro, e perante tal singela imputação factual e objectiva, salvo o


devido respeito, não se vê como se possa daí concluir no sentido de que o
arguido tenha cometido o crime que lhe veio imputado, ou seja, não se vê
como se possa concluir que o arguido tenha feito constar falsamente de
qualquer documento ou de qualquer dos seus componentes qualquer facto,
quer ele fosse juridicamente relevante quer não.

Por seu turno, mesmo ressalvando o eventual lapso em que o Ministério


Público poderá ter incorrido como acima se referiu, mesmo que se
pretendesse apontar para a modalidade típica constante da alínea e) do
mesmo artigo 256º do Cód. Penal (ao invés da alínea d)), igualmente não
vemos que a conduta do arguido pudesse integrar um qualquer uso de um
documento falsificado, na medida em que o arguido teria apenas
alegadamente “usado” uma carta de condução francesa, a qual não se alega
que fosse falsa, mas sim e apenas que se encontraria inválida por motivos
relacionados com o excesso de infracções estradais.

Finalmente, igualmente não vemos, sequer, que os factos alegados pelo


Ministério Público na acusação possam integrar a prática por parte do arguido
de qualquer outro tipo de crime diverso daquele pelo qual vem acusado.

Isto posto, aqui chegados e em face do que acaba de ser dito, entendemos que
os factos alegados pelo Ministério Público na acusação não constituem a
prática de qualquer crime, razão pela qual se decide desde já rejeitar tal
acusação, por a mesma se mostrar manifestamente infundada, tudo ao abrigo
do estabelecido no artigo 311º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do Cód. de Proc.
Penal.

Sem custas.

Notifique.

Oportunamente, e após trânsito, arquivem-se os autos.

(…)”.

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*

Inconformado com a decisão, recorreu o Digno Magistrado do


Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões
conclusões:

1ª A acusação não poderá ser havida por manifestamente infundada;

2ª Pois contem todos os elementos constantes do nº 3 do artº 311º:


identificação do arguido, a narração dos factos; a indicação das disposições
legais aplicáveis (ainda que se dê de barato que a al. da incriminação seja a al.
d) e não a e) como consta do libelo acusatório) e as provas que a
fundamentam, constituindo, ainda, os factos, o crime imputado ao arguido;

3ª No caso vertente, os elementos indispensáveis, nesta fase, para a acusação


prosseguir, estão lá;

4ª E poderão ser precisados em sede de julgamento o lugar próprio para tal;

5ª O juiz ao rejeitar a acusação está a apreciar o mérito da causa, o fundo da


questão;

6ª O que só poderá ser efectuado em sede de julgamento;

7ª Ao agir da forma sobredita, o juiz recorrido violou o princípio do acusatório;

8ª Por outro lado, o arguido, notificado da acusação, conformou-se com a


mesma, não a pondo em causa;

9ª Foi violado o disposto no artº 311º nºs 2 e 3-d).

Termos em que,

Deverá ser concedido provimento ao recurso ora interposto, revogando-se o


despacho recorrido, devendo ser ordenada a sua substituição por outro que
receba a acusação deduzida nos autos, como é de Justiça e Direito.

Respondeu ao recurso o arguido, alegando que a acusação apenas foi


rejeitada porque os factos que dela constam não constituem a prática de
qualquer crime, não se traduzindo por isso tal rejeição, na apreciação do

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mérito da causa mas na apreciação do mérito da acusação, que não foi violado
o princípio do acusatório, que a ausência de pedido de abertura da instrução
não transforma uma acusação infundada em acusação susceptível de ser
enviada para julgamento, e conclui pela manutenção do despacho recorrido.

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo.


Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, afirmando que a acusação rejeitada
contém todos os elementos exigíveis, que o arguido, mediante uma falsidade
que invocou por escrito, obteve um título de condução a que sabia não ter
direito, que o despacho recorrido se preocupou em julgar desde logo o mérito
da causa, e concluiu pela procedência do recurso.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal, tendo respondido o


arguido, reiterando o teor da contramotivação.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia


especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de
conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do
pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se
devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo Digno Magistrado recorrente, a


questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se a
acusação deduzida é, ou não, manifestamente infundada, por não constituírem
crime os factos nela narrados.

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Para a resolução desta questão, importa ter presente o teor da
acusação pública, que é o seguinte:

“ (…).

O Ministério Público acusa em processo comum e perante Tribunal


Singular:

- A... , solteiro, nascido a 23-12-1977, em França, filho de (...) e de (...)


, titular do BI nº (...) , com última residência conhecida na Avª (...) , em Vilar
Formoso, porquanto indiciam suficientemente os autos que,

No dia 8 de Novembro de 2013, o arguido deu entrada na Delegação Distrital


de Viação da Guarda, do requerimento para troca da sua carta de condução
francesa, com o nº (...) , emitida pelas autoridades francesas de Strasbourg,
em 9-6-2008, tendo obtido guia de condução portuguesa, tudo conforme se
constata dos documentos de fls. 2-18 dos autos e que aqui se dão por
integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

Porém, a carta de condução estrangeira pretendida trocar pelo


arguido, conforme se veio a apurar, está inválida, por saldo de pontos nulos,
devido a infracções estradais cometidas em território francês, o que era do
seu perfeito conhecimento.

Agiu o arguido de forme deliberada, livre e conscientemente, querendo e


sabendo que obtinha carta de condução de veículos automóveis portuguesa
através do uso de carta de condução francesa inválida, assim visando alcançar
para si um benefício ilegítimo à custa do prejuízo do Estado.

Bem sabia o arguido que a sua supra descrita conduta era proibida e punida
criminalmente.

Cometeu, pelo exposto, em autoria material, um crime de uso de documento


falsificado, p. e p. no artº 256º nº 1- d), com referência ao artº 255º -a), todos
do C. Penal.

PROVA:

Documental:

Doc. de fls. 2-18 e demais doc. dos autos.

(…)”.

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*

Da manifesta falta de fundamento da acusação por atipicidade


dos factos narrados

1. Como se deixou já enunciado, a questão a decidir no presente recurso é


apenas a de saber se a acusação deduzida nos autos pelo Ministério Público é
manifestamente infundada, por não constituírem crime os factos que nela são
imputados ao arguido, qualificados de crime de uso de documento falso.
Vejamos.

O art. 311º do C. Processo Penal, com a epígrafe «Saneamento do processo»,


estabelece no seu nº 2, a) que, se o processo tiver sido remetido para
julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de
rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.

A acusação é manifestamente infundada quando é notória a sua


improcedência, quando da respectiva leitura resulta evidente que o arguido
não poderá ser condenado com base nela. Em todo o caso, a lei define,
taxativamente, as situações em que, para efeitos de rejeição, a acusação deve
considerar-se manifestamente infundada. Assim, nos termos das quatro
alíneas do nº 3 do art. 311º do C. Processo Penal [nº 3 este, introduzido pelo
Dec. Lei nº 59/98, de 25 de Agosto], é manifestamente infundada a acusação
que não contenha a identificação do arguido, que não contenha a narração dos
factos, que não indique as disposições legais aplicáveis ou as provas que a
fundamentam e cujos factos narrados não constituam crime.

Deste modo, excluída fica a rejeição da acusação fundada em manifesta


insuficiência de prova indiciária, tendo caducado a jurisprudência fixada pelo
Acórdão nº 4/93, de 17 de Fevereiro (DR, I-A, de 26 de Março de 1993). Com
efeito, a lei do processo não prevê e por isso, não permite a apreciação crítica
dos indícios probatórios colhidos no inquérito.

2. O crime de falsificação ou contrafacção de documento é um crime comum,


de perigo abstracto e de mera actividade, que tutela o bem jurídico segurança
e credibilidade no tráfico jurídico probatório (cfr. Helena Moniz, Comentário
Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora,
pág. 680). São elementos constitutivos do respectivo tipo (art. 256º, nº 1 do C.
Penal):

[Tipo objectivo]

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- Que o agente, a) fabrique ou elabore documento falso, b) falsifique ou altere
documento, c) abuse da assinatura de outra pessoa para falsificar ou
contrafazer documento, d) faça constar falsamente de documento facto
juridicamente relevante, e) use documento falsificado ou contrafeito, f) por
qualquer meio, faculte ou detenha documento falsificado ou contrafeito;

[Tipo subjectivo]

- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com


consciência da sua censurabilidade; e,

- O dolo específico, a intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si


ou outra para pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou
encobrir outro crime.

As modalidades da acção previstas no tipo objectivo permitem distinguir


várias formas que a falsificação de documento pode assumir.

Desde logo, a falsificação material, que ocorre quando o agente altera, total ou
parcialmente, um documento já existente. Aqui, o documento não é genuíno,
não é autêntico pois a sua integridade material foi sujeita a alteração.

Depois, temos a falsidade ideológica, que ocorre quando o documento integra


uma declaração escrita distinta da prestada pelo declarante [v.g., quando o
funcionário notarial faz constar da escritura facto contrário ao afirmado pelo
ou pelos outorgantes], falando-se então de falsificação intelectual, e quando o
agente presta no documento uma declaração de facto falsa juridicamente
relevante [v.g., o outorgante de escritura de justificação que aí faz declarações
que sabia não serem verdadeiras quanto à aquisição de direito de
propriedade, para depois, registar o imóvel em seu nome], falando-se, neste
caso, em falsidade (cfr. Helena Moniz, ob. cit., pág. 676). Aqui o documento é
inverídico isto é, não tendo sofrido qualquer alteração na sua materialidade,
incorpora declarações originárias que não têm correspondência com a
verdade.

Finalmente, temos o que podemos designar por uso de documento, e detenção


e cedência de documento, material ou ideologicamente falsificado.

Pois bem.

Na rejeitada acusação, ao arguido é atribuída a prática de um crime de ‘uso


de documento’ falso, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, d), com referência ao art.

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255º, a), ambos do C. Penal. Na alínea d) referida, a conduta típica consiste,
em síntese, em o agente fazer constar falsamente de documento facto
juridicamente relevante. Já a modalidade da conduta típica que podemos
sintetizar por uso de documento falso ou contrafeito, encontra-se prevista na
alínea e) do nº 1 do artigo citado.

Daí que se preste a equívocos, a denominação do crime imputado como uso de


documento falso e a subsunção da respectiva conduta à previsão da alínea d),
que nada tem a ver com aquele uso, já que o mesmo se encontra previsto na
alínea e). Não obstante, ainda que a redacção usada não seja, ressalvado
sempre o devido respeito, completamente esclarecedora, parece afirmar-se na
conclusão 2ª que sempre se pretendeu fazer a incriminação pela alínea d).

Posto isto.

A acusação imputa ao arguido, sinteticamente, a seguinte conduta:

[Tipo objectivo]

- No dia 8 de Novembro de 2013, na Delegação Distrital de Viação da Guarda,


o arguido apresentou um requerimento para troca da sua carta de condução
nº (...) , emitida pelas autoridades francesas de Estrasburgo em 9 de Junho de
2008, tendo então obtido uma guia de condução portuguesa;

- A carta de condução francesa que o arguido pretendia trocar encontrava-se


inválida, por saldo de pontos nulo, devido a infracções estradais cometidas em
território francês, o que sabia;

[Tipo subjectivo]

- O arguido agiu de forma deliberada, livre e conscientemente, querendo e


sabendo que obtinha carta de condução portuguesa através do uso de carta de
condução francesa inválida, visando alcançar para si um benefício ilegítimo, à
custa do prejuízo do Estado.

Como se vê, o que na acusação se imputa ao arguido é, brevitatis causa, ter


requerido a troca da sua carta francesa, por carta portuguesa, e obtido de
imediato uma licença provisória de condução portuguesa, quando a carta
francesa se encontrava inválida por saldo de pontos nulo, o que bem sabia.

Evidentemente que a conduta imputada é censurável uma vez que, através


dela, foi pretendido obter um título habilitante da condução automóvel, sem
que ao mesmo se tivesse direito. Mas não vemos que compita ao Direito Penal

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tal censura, por intermédio do crime de falsificação ou contrafacção de
documento. Explicando

3. Não carece de demonstração a afirmação de que a intervenção penal está


subordinada ao princípio da legalidade, cujo conteúdo essencial se mostra
reflectido nos brocardos, nullum crimen sine lege e, nula poena sine lege.

A este respeito, ensina Figueiredo Dias que, o princípio segundo o qual não há
crime sem lei anterior que como tal preveja uma certa conduta significa que,
por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento,
tem o legislador de o considerar como crime (descrevendo-o e impondo-lhe
como consequência jurídica uma sanção criminal) para que ele possa como tal
ser punido. Por isso, quaisquer lacunas e deficiências de regulamentação ou
de redacção que possam existir, devem funcionar sempre contra o legislador e
a favor da liberdade (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, pág.
168).

A conduta que tem por objecto o requerimento para substituição de uma carta
de condução francesa, inválida por saldo nulo de pontos, por uma carta de
condução portuguesa, não pode ser qualificada como falsificação ou
contrafacção de documento, em qualquer uma das formas que se deixaram
referidas e que têm previsão típica nas seis alíneas do nº 1 do art. 256º do C.
Penal.

Com efeito, tal conduta não consubstancia uma falsificação material, seja da
carta a substituir, seja da carta substituída [esta, aliás, nem chegou a ser
emitida], seja da licença de condução provisória emitida pelas autoridades
portuguesas, uma vez que nenhum destes documentos, nos termos da
acusação, foi alterado, depois de emitido.

E também nenhum dos três documentos referidos se encontra afectado de


falsificação ideológica. Na verdade, sendo liminarmente de afastar a
possibilidade de verificação de falsificação intelectual, em lado algum da
acusação se diz que o arguido, de qualquer deles, fez constar falsamente facto
juridicamente relevante, pelo que de afastar é também a possibilidade de
verificação de falsidade.

Aliás, da leitura do corpo da motivação do recurso resulta explicado o


equívoco em que lavrou a acusação rejeitada, já que torna claro que afinal, a
falsificação estará antes e apenas, no próprio requerimento de substituição da

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carta, apresentado pelo arguido à autoridade rodoviária nacional. Sucede que,
na acusação, a única referência a este documento resume-se a, «(…) o arguido
deu entrada (…) do requerimento para troca da sua carta de condução
francesa (…)», não se concretizando, factualmente, como e onde se encontrava
o falsificado o documento, nem, tão-pouco, afirmando a sua falsificação.

Por outro lado, ainda quanto a este aspecto, alega o Digno Magistrado do
Ministério Público recorrente que só em julgamento pode aferir-se se a
ajuizada ‘acusação defeituosa’ é ou não passível de configurar o crime
imputado, quer porque aí poderão concretizar-se os elementos que se
considerem relevantes para a verificação do tipo, sem que tal traduza uma
alteração substancial dos factos, quer porque o arguido, que se conformou
com a acusação, pode vir a confessar que pretendeu trocar um título de
condução inválido, por um título de condução nacional, acrescendo que o que
releva para o caso é o momento em que o arguido preencheu e assinou o
formulário ou modelo, constituindo «documento» o que nele declarou pelo
que, negar que a falsa declaração de extravio – troca de carta inválida – não é
um facto juridicamente relevante é negar uma evidência e assim, a falsa
declaração de extravio é não só uma declaração incorporada num escrito,
como é também uma declaração de facto falso, juridicamente relevante.

Ora, contrariamente ao que parece pressupor o Digno Magistrado do


Ministério Público, no despacho recorrido não foi efectuado um qualquer juízo
de indiciação probatória e portanto, uma apreciação extemporânea do mérito
da causa, até porque, como referimos já, é hoje ponto assente que a manifesta
insuficiência de prova indiciária não constitui fundamento de rejeição da
acusação. O que no despacho recorrido se fez foi a análise da aptidão da
narração contida na acusação para suportar a imputação efectuada e aqui
torna-se necessário deixar claro que, com a jurisprudência uniformizada pelo
Acórdão nº 1/2015 (DR, I, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015), em muito fica
afectada a possibilidade de ‘reparação’ de acusações com recurso ao
mecanismo previsto no art. 358º do C. Processo Penal.

Depois, é evidente que, no contexto dos títulos habilitação para a condução


automóvel, em tese, a falsa «declaração de extravio» constante de um modelo
de requerimento é um documento afectado de falsificação ideológica, na
medida em que tal declaração atesta um facto falso, juridicamente relevante.
Mas não é esta a situação retratada na acusação, como já dissemos. Com
efeito, em lado algum da acusação se imputa ao arguido a produção de uma
falsa declaração de extravio da sua carta de condução francesa. E mesmo
recorrendo aos documentos de fls. 2 a 18 [dados por integralmente

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reproduzidos na acusação, numa opção técnica que não perfilhamos, na
medida em que os documentos não são factos mas meios de prova de factos, e
por essa razão, como meios de prova foram ali indicados], verificamos então
que o modelo de fls. 5 não se encontra preenchido na parte relativa à
declaração do compromisso de honra, precisamente porque não houve
qualquer extravio do título francês, nem o mesmo se encontrava apreendido
por qualquer autoridade, já que o arguido o entregou quando requereu a
troca, vindo o IMT a remeter «o original da carta de condução n.º (...) emitida
em Strasbourg em 09-06-2008, ao condutor, A... .» ao Ministério do Interior
Francês, tudo conforme fls. 17.

Carece pois de fundamento, a alegação de que o arguido, quando preencheu e


assinou o modelo de requerimento para a troca do título de condução,
produziu uma falsa declaração de extravio. Como é igualmente carecido de
fundamento o entendimento de que, in casu, a pretendida falsa declaração de
extravio corresponde a uma falsa declaração de carta (in)válida. Na verdade,
não encontramos também o modelo de fls. 5, que o arguido subscreveu,
qualquer declaração deste no sentido de que a carta de condução francesa
cuja troca pretendia se encontrava válida no país emitente [de notar que a
declaração sob compromisso de honra, padrão, impressa no modelo, não prevê
sequer esta possibilidade].

Em qualquer dos casos, repetimos, nenhuma destas duas possibilidades


consta, factualmente narrada, da acusação.

4. Em conclusão, ainda que se provem em julgamento todos os factos


constantes da acusação, são os mesmos, de forma evidente, inequívoca e
incontroversa, insusceptíveis de preencherem o tipo do crime nela imputado
ao arguido, em qualquer uma das modalidades previstas nas alíneas a) a f), do
nº 1 do art. 256º do C. Penal.

Não merece, pois, censura o despacho recorrido.

III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da


Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o
despacho recorrido.

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Recurso sem tributação (art. 522º, nº 1 do C. Processo Penal).

Coimbra, 16 de Dezembro de 2015

(Vasques Osório – relator)

(Orlando Gonçalves – adjunto)

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