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Acórdãos TRL Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa

Processo: 8997/18.8T9LSB.L1-3
Relator: MARGARIDA RAMOS DE ALMEIDA
Descritores: CONDUÇÃO PERIGOSA
DESISTÊNCIA DA QUEIXA
OFENSAS CORPORAIS
RELAÇÃO DE CONSUNÇÃO

Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N

Meio Processual: RECURSO PENAL


Decisão: IMPROCEDENTE

Sumário: I.– O crime de ofensa à integridade física negligente de que o arguido era
acusado, foi arquivado por desistência da queixa. O processo prosseguiu
para apreciação do crime de condução perigosa de veículo rodoviário,
prática de ilícito este do qual o arguido foi absolvido.

II.– O crime de condução perigosa de veículo rodoviário tutela um bem


jurídico complexo, nomeadamente a segurança rodoviária, na
perspectiva da protecção do perigo concreto que do exercício de uma
actividade em si mesma arriscada – a condução de um veículo automóvel
– pode advir para a vida, a integridade física e bens patrimoniais alheios,
de elevado valor.
Por seu turno, o crime de ofensa à integridade física negligente, tutela a
protecção do direito à integridade física, produzida por qualquer meio.

III.– Temos, pois, que os bens jurídicos tutelados por estes dois
normativos têm uma área em comum; isto é, em certa medida (e
independentemente do facto de terem depois outros campos de
abrangência), ambos tutelam o direito à integridade física.

IV.– A provarem-se factos que preencham os elementos do tipo de ambos


os crimes e, caso estejamos apenas perante uma única vítima ou potencial
vítima, resultante da actividade prosseguida pelo arguido, estaremos
perante uma relação de consumpção entre estes dois ilícitos, devendo tal
actuação, segundo as regras legais (designadamente o disposto nos artºs
30 e 79 do C. Penal) ser censurada unificadamente e punida pela moldura
penal mais severa.

V.– Na verdade, se por resultado de uma condução negligente,


imprevidente, é atingida a integridade física de uma única vítima, o facto
de a conduta ter produzido um resultado (um dano físico) já encerra, em
si mesma, o perigo concreto que a condução perigosa determinou; isto é,
o perigo concreto, concretizou-se em resultado, pelo que fica consumido,
englobado, integrado, no crime de ofensa à integridade física negligente.
O que sucede é que tal conduta terá de ser punida por recurso à moldura
penal mais grave, de entre os dois crimes em relação de consumpção.

VI.– Por outro lado, na acusação, em termos factuais, inexistem


elementos que permitam, a provarem-se, concluir ter o arguido tido uma
conduta dolosa, pelo que não pode este tribunal proceder à reapreciação
de um facto omisso ab initio, nem se mostra sequer equacionável o
preenchimento do nº3 do artº 291 do C. Penal.

VII.– Falta na acusação a factualidade atinente à colocação em perigo de


outros utentes que não o assistente que, a provar-se, permitiria a eventual
integração do crime de condução perigosa; i.e., a acusação carece de
enunciação factual que permitisse o preenchimento, autonomamente, do
crime de condução perigosa.
Decisão Texto
Parcial:

Decisão Texto Acordam em conferência na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa


Integral:
*

I–RELATÓRIO

1.–Foi proferida sentença, julgando a acusação deduzida pelo Ministério


Público contra o arguido JASR____, improcedente, por não provada, e
consequentemente, foi o mesmo absolvido da prática do crime de
condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos art.s 291º, n.º 1, al.
b), e 69º, n.º 1, al. a), ambos do Cód. Penal pelo qual se encontrava
acusado.

2.–Inconformado, veio o Mº Pº interpor recurso, pedindo a alteração da


matéria de facto e a condenação do arguido pela prática, em autoria
material e na forma consumada, de um crime de condução perigosa de
veículo rodoviário, previsto e punido nos termos do disposto no artigo
291.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na
pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 7,00 e na pena acessória de
proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 9 (nove) meses.

3.–O recurso foi admitido.


4.–O arguido não apresentou resposta.

5.–Neste tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no


sentido da procedência do recurso.

II–QUESTÕES A DECIDIR.

Erro de julgamento e erro no enquadramento jurídico

III–FUNDAMENTAÇÃO.

Erro de julgamento e erro no enquadramento jurídico

1.–A decisão proferida pelo tribunal “a quo” deu como provados


os seguintes factos:
1.-No dia 19 de Setembro de 2018, pelas 9h20, o arguido conduzia o
veículo ligeiro de passageiros de matrícula XX-XX-XX, na Praça de .....,
em L_____, na faixa central, na via da esquerda.
2.-Nas mesmas circunstâncias de tempo, AM PC______ conduzia o
ciclomotor de matrícula YY-YY-YY, no sentido oposto, na Avª. ..... ....., em
L_____, na via de trânsito da direita.
3.-À aproximação do cruzamento com a Avª. ..... ....., apesar da sinalização
luminosa, vertical e no pavimento obrigarem a seguir em frente, o arguido
mudou de direcção à esquerda.
4.-Consequentemente o arguido ficou com o veículo por si conduzido
atravessado na frente do ciclomotor conduzido por AM PC______.
5.-Face ao que não foi possível a AM PC_____ deixar de embater com a
frente do ciclomotor por si conduzido na lateral direita do veículo
conduzido pelo arguido.
6.-Em consequência do embate, JG_____ foi projectado ao chão, onde
ficou prostrado.
7.-O local situa-se dentro da localidade, configura um cruzamento, com
dois sentidos de trânsito, separados por separador central, comportando
cada um dos sentidos três vias de trânsito.
8.-O local apresenta uma visibilidade em toda a sua largura numa
extensão de, pelo menos, 50 metros.
9.-O pavimento, em aglomerado asfáltico, encontrava-se em bom estado de
conservação e manutenção, sem anomalias identificadas.
10.-No sentido em que o arguido circulava o semáforo tem uma seta
luminosa com indicação de sentido em frente, sobre um fundo circular
preto; existe também um Sinal de Obrigação D1c (seguirem frente); e no
pavimento marcas orientativas de sentido de trânsito: seta de selecção M15
(seguirem frente).
11.-A sinalização semafórica emitia, no momento, luz verde no sentido do
arguido e do Assistente.
12.-Como consequência directa a necessária do embate AM PC____
sofreu fractura do escafóide esquerdo.
13.-E, tais lesões determinaram para AM PC____ : “342 dias para a
consolidação médico-legal: sem afectação da capacidade de trabalho geral
e com 42 dias de afectação da capacidade de trabalho profissional (período
de imobilização gessada)”.
14.-O arguido bem sabia que era obrigado a seguir em frente, pelo que
efectuar a mudança de direcção à esquerda descrita, não observou as
precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era
capaz de adoptar e que devia ter adoptado para impedir a verificação de
um resultado que, de igual forma, podia e devia prever, mas que não
previu, causando as lesões e as consequências permanentes supra
descritas em AM PC_____.
15.-O arguido agiu, livre e conscientemente.

Mais se provou que:


17.-O arguido não tem antecedentes criminais registados.
18.-Vive com a mulher e um sobrinho menor de 7 anos cuja guarda lhe foi
atribuída judicialmente; recebe reforma de € 485,00 e a mulher de €
420,00:
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da
presente causa.

Considerou não provados os seguintes factos:


a)-O arguido agiu deliberadamente.
b)-Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

2.–E fundamentou tal decisão fáctica nos seguintes termos:


A convicção do tribunal baseou-se na ponderação crítica do conjunto da
prova produzida em julgamento, apreciada segundo as regras da
experiência comum, sendo que o arguido prestou declarações e no
essencial conformou a dinâmica do embate ocorrido e descrito nos factos
provados.
Atendeu o tribunal às suas declarações quanto às condições pessoais.
A testemunha depôs de forma sincera, objectiva e coerente, tendo o seu
depoimento merecido a credibilidade do tribunal.
O Assistente AM PC____descreveu de forma objectiva e coerente a forma
como estava a circular e foi embatido pelo veículo conduzido pelo arguido
o que coincide com a dinâmica descrita nos factos provados. Disse que não
estava muito tráfego a circular na hora em que o embate ocorreu nem se
apercebeu de qualquer manobra de evasão feita por qualquer outro
veículo que tivesse sido causada pela manobra de mudança de direcção
realizada pelo arguido.
A testemunha HE_____, Agente da PSP referiu que se deslocou ao local
após o embate e elaborou a participação de acidente que consta dos autos
de fls. 30-32 cujo teor confirmou e bem assim a assinatura. Foi
confrontado com o teor da reportagem fotográfica de de fls. 124-127 cujo
teor confirmou.
Quanto à prova documental, o Tribunal formou a convicção com base em:
Participação de acidente, fls. 30 a 32; RIC, fls. 40; Comunicação de
responsabilidade das Seguradoras, fls. 42 e 43; Documentação clínica, fls.
71 a 76, 78 a 83, 171 a 176, e 232 a 237; e Relatório Técnico de Acidente
de Viação, fls.95 a 128; CRC de fls. 337.
Quanto à prova pericial o tribunal atendeu ao Relatório médico-legal, fls.
64 a 68, 156 a 158, e 179 a 182.
A análise dos depoimentos das testemunhas conjugados a prova
documental, permitem concluir que o embate ocorreu como consta dos
factos provados.
No que toca aos factos não provados, os mesmos assim resultam pelos
motivos que constam da fundamentação jurídica.

3.–Por seu turno, em sede de apreciação jurídica, o tribunal “a quo”


pronunciou-se nos seguintes termos:
Atentos os factos provados, cumpre proceder ao seu enquadramento
jurídico-penal.
De realçar que os factos submetidos a julgamento tinham por base uma
imputação do crime que infra se aprecia, sendo certo que o Assistente
desistiu da queixa no que respeita ao crime de ofensa à integridade física
por negligência pelo que nessa parte o Tribunal já não tomará posição.
Cabe apenas ao tribunal dilucidar se os factos provados integram ou não a
prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
Do crime de condução perigosa de veículo rodoviário Dispõe o art.º 291º
do Código Penal que:
Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:
(…)
b)-Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à
prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção,
à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou
em estradas fora de povoações, à marcha atrás em autoestradas ou em
estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de
circular na faixa de rodagem da direita e criar deste modo perigo para a
vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais
alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com
pena de multa.
3-Se o perigo referido no n.º 1 for criado por negligência, o agente é
punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240
dias.
4-Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é
punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
O bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a segurança da
circulação rodoviária e o risco para a vida, a integridade física ou bens
patrimoniais alheios de valor elevado, em termos gerais. Trata-se de um
crime de perigo na medida em que a sua consumação não requer a
efectiva lesão do bem jurídico, bastando-se com a possibilidade ou
probabilidade de dano. Por outro lado, é um crime de perigo concreto, no
sentido em que implica que se verifique na situação concreta o perigo para
o bem jurídico protegido. Tem que se produzir um perigo real para o
objecto protegido pelo correspondente tipo. O perigo constitui elemento do
tipo, pelo que deve verificar-se um nexo de causalidade entre a actuação
do agente o correspondente resultado de perigo.
Os crimes de perigo contrapõem-se aos crimes de dano, já que nestes se
requer a efectiva lesão do bem jurídico protegido. - Figueiredo Dias,
Direito Penal – Parte Geral – Tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 292
O sujeito activo do tipo legal previsto no art.º 291º é o condutor do veículo.
No que respeita ao tipo subjectivo de ilícito do nº 1 do art.º 291º, é
necessário o dolo relativamente a todos os elementos do tipo legal
objectivo, incluindo a criação de perigo para os bens jurídicos enumerados
(designadamente a vida e a integridade física). É suficiente o dolo
eventual, bastando que o agente tenha consciência do perigo decorrente da
sua conduta para outras pessoas ou bens alheios de valor elevado, tendo-se
conformado com tal situação. Mas não basta que ele represente que é
fonte de um possível perigo (abstractamente entendido); terá que conhecer
as circunstâncias das quais emana esse perigo e terá que aceitar os seus
contornos concretos. – Paula Ribeiro de Faria, in Comentário
Conimbricense do Código Penal, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias,
Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 1088.
O dolo terá que abranger, quer a conduta do agente, quer a criação de
perigo.
Nos termos do nº 2 do art.º 291º prevê-se que o agente realiza de forma
dolosa a intervenção que coloca em perigo o trânsito mas cria tal perigo de
forma negligente (crime de combinação dolo-negligência em sentido
próprio). Ou seja, o agente sabe, tem plena consciência da sua
incapacidade para conduzir, mas não representa (negligência consciente)
ou representa e afasta a possibilidade (negligência consciente) da criação
de um perigo para os bens jurídicos em causa. - Paula Ribeiro de Faria,
ob. cit.
Neste caso, a acção é dolosa mas o perigo é criado por mera negligência.
Esta actuação é ainda mais censurável que a prevista no nº 3 em que o
agente desconhece por negligência a sua incapacidade dessa forma se
dispõe a conduzir. Neste caso, quer a acção, quer a criação de perigo
decorrem de mera negligência. Ao tipo legal em apreço subjaz não só o
perigo que decorre do facto de o agente não se encontrar em condições de
conduzir com segurança ou de conduzir com violação grosseira de
determinadas regras de trânsito, presumindo-se tal conduta como
perigosa, (…) mas também e especialmente uma concreta situação de
perigo, reflectida no risco de lesão dos bens jurídicos que se visam proteger
(vida, integridade física e bens patrimoniais de valor elevado). E daí que
no tipo legal a culpa tenha por referência, quer a acção perigosa
(condução de veículo nas condições ou contexto previstos no texto legal)
quer o resultado da acção (criação de perigo concreto para os bens
jurídicos tutelados).
O conceito de perigo concreto exige a verificação cumulativa dos seguintes
requisitos: a existência de um objecto de perigo (a vida ou integridade
física de alguém ou um ou mais bens patrimoniais de valor elevado); a
entrada do objecto do crime no círculo de perigo; a não ocorrência da
lesão por força de esforços extraordinários e não objectivamente exigíveis
da vítima ou de terceiros ou devido a circunstâncias criadoras de hipóteses
de salvamento incontroláveis e irrepetíveis (por exemplo as forças da
natureza). – Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal,
UCP, 2008, Anot. Art.º 272º - Nota prévia, por remissão da Anot ao art.º
291º.
A circunstância que possibilitou a não ocorrência da lesão não deve
parecer ao homem médio repetível, controlável, de fácil exercício ou
normal. Só se a circunstancia que que possibilitou o salvamento do objecto
do crime surgir aos olhos do homem medido como irrepetível,
incontrolável, de difícil realização ou extraordinária se pode concluir pela
verificação do perigo concreto.
O tipo subjectivo do crime de perigo concreto distingue-se do tipo
subjectivo do crime de dano correspondente. Ou seja, o dolo/negligência
de perigo não se confunde com o dolo/negligência de dano.
No que ao tipo subjectivo respeita, na modalidade dolosa, e tratando-se de
um crime de perigo, o dolo não está directamente relacionado com o
dano/violação, mas sim com o próprio perigo, consubstanciando-se na
consciência e previsão do perigo ou da acção desencadeados daquele,
sendo que nos crimes de perigo concreto a consciência ou previsão do
agente está dirigida ao resultado ou evento perigoso. - Rui Carlos Pereira,
O Dolo de Perigo, 1995, p. 32, citado por AM PC_____, Código da Estrada
Anotado, Coimbra, 2005, anot. art.º 72º;
Assim, verifica-se o dolo da acção sempre que para agente, suposta a
voluntariedade do acto, tenha consciência de que não se encontra em
condições de conduzir com segurança, por se encontrar em qualquer um
dos estados previstos na norma ou sempre que o agente tenha consciência
de que a sua condução viola grosseiramente alguma das regras de
circulação rodoviária ali previstas.
Por outro lado, verifica-se o dolo na criação de perigo sempre que o agente
tenha pelo menos consciência da efectiva possibilidade ou probabilidade
de lesão dos bens jurídicos tutelados pela norma face ao seu
comportamento, isto é, sempre que o agente haja previsto o perigo ou
situação perigosa (resultado ou evento perigoso) e com tal se conforme. -
AM PC____, Código da Estrada Anotado, Coimbra, 2005, anot. art.º 72º; o
dolo de perigo corresponde a uma negligência consciente de dano.
No caso dos autos o crime está imputado na sua forma de negligência
quanto ao dano mas nada é referido quanto ao perigo mas as
considerações que antecedem também valem para esta forma de culpa
quando o agente age com falta de cuidado a que estava obrigado e de que
era capaz na criação do perigo concreto para os bens jurídicos em
presença.

Lidos os factos provados, verifica-se que não estão verificados os


elementos subjectivos do tipo de crime em apreciação porquanto não é
imputada ao arguido a colocação em perigo de qualquer bem jurídico
(quer a título de dolo quer de negligência), não se fazendo referência a
qualquer criação negligente de perigo, mas apenas se faz referência à
violação das regras estradais por negligência susceptíveis de
consubstanciar o crime de dano pelo qual o processo foi já extinto por
desistência de queixa, sendo certo que ao tribunal não é permitido aditar
elementos subjectivos do crime imputado, conforme jurisprudência
fixada (AUJ n.º 1/2015 in DR, I Série de 27-01-2015: A falta de descrição,
na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que
se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as
circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na
vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não
pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no
artigo 358.º do Código de Processo Penal).

Do concurso de crimes
Acresce que o crime de perigo concreto encontra-se numa relação de
concurso efectivo com o crime de dano quando o perigo concreto se
verificou em relação a outros bens jurídicos além daquele objecto do dano,
uma vez que o bem tutelado pela incriminação de perigo não se encontra
integralmente tutelado pela punição através do crime de dano.
Assim o crime de perigo concreto encontra-se numa relação de concurso
aparente com o crime de dano quando o perigo concreto se verificou
apenas em relação ao mesmo bem jurídico que foi lesado, que foi o caso
dos autos (em que o arguido vinha acusado dos dois crimes em concurso
real).
Há uma relação de subsidiariedade entre o crime de condução perigosa e a
ofensa à integridade física por negligência quando o dano se produziu
apenas em relação à vítima que foi também objecto do perigo. Assim, o
arguido nunca poderia ser condenado pelo crime previsto pelo art.º 291º/1
al. b) e 3 do Código Penal uma vez que estava imputado o crime de ofensa
à integridade física por negligência.
Verifica-se pois uma situação de concurso aparente de normas que impede
que o arguido seja condenado pela prática do crime de condução perigosa
porquanto a sua conduta, para além do dano causado no Assistente não
produziu qualquer outro perigo concreto para a vida ou integridade física
de outrem ou bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Quanto ao crime de ofensa à integridade física por negligência foi já
declarado extinto o procedimento criminal por desistência da queixa pelo
que os factos dados como provados não integram a prática de qualquer
crime.
Assim, deve o arguido ser absolvido do crime que lhe é imputado e bem
assim da pena acessória por não se verificar o referido crime.

4.–O recorrente sintetiza a sua motivação, nas seguintes conclusões:


1.ª -Nos presentes autos, foi deduzida acusação contra o arguido
JASR____, imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma
consumada e em concurso real, de um crime de condução perigosa de
veículo rodoviário, previsto e punido nos termos do disposto na alínea b),
do n.º1 e no n.º 3, do artigo 291.º, e no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), ambos
do Código Penal, e de um crime de ofensa à integridade física simples por
negligência, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 148.º, n.º 1
e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.
2.ª-Em momento prévio à audiência de julgamento, veio o assistente a
desistir da queixa pelo último dos mencionados ilícitos, a qual veio a ser
homologada e, em consequência, foi declarado extinto procedimento
criminal contra o arguido, quanto ao mesmo.
3.ª-Prosseguiram, então, os autos, para apreciação do imputado crime de
condução perigosa de veículo rodoviário.
4.ª-Por sentença de 15.09.2021, veio o Tribunal a absolver o arguido da
prática de tal crime.
5.ª-Decisão com a qual, salvo o devido respeito, não pode o Ministério
Público conformar-se, não subscrevendo o entendimento perfilhado no
que concerne ao enquadramento jurídico dos factos apurados;
6.ª-Nem, tão-pouco, pode o Ministério Público concordar com o elenco dos
factos dados como não provados na sentença recorrida, atinentes
unicamente ao elemento subjectivo do crime imputado ao arguido.
7.ª-Quanto ao mais, no que à matéria de facto respeita, o Ministério
Público não coloca em crise a sentença recorrida.
8.ª-A matéria de facto constante dos pontos a) e b) da matéria de facto não
provada resultam dos factos objectivos, provados nos termos expostos na
sentença e extraem-se daqueles, analisados à luz das regras da lógica e
experiência comum, atentas as concretas circunstâncias do caso,
designadamente, as características da faixa da rodagem e do veículo que o
arguido conduzia, as condições meteorológicas e do pavimento da estrada,
e as circunstâncias descritas em que ocorreu o embate.
9.ª-Considerando os factos apurados e dados como provados pelo Tribunal
a quo, conclui-se que o arguido agiu, pelo menos, com dolo eventual,
quanto à violação das regras de condução, pois que no local existiam três
tipos de sinalização de trânsito que o obrigavam a seguir em frente e,
mesmo assim, o arguido decidiu virar à esquerda;
10.ª-O arguido agiu com negligência quanto ao perigo que causou aos
bens jurídicos vida, integridade física e bens de elevado valor patrimonial
de terceiros, condutores que seguiam na viam onde entrou em contra-mão.
11.ª-Assim sendo, os mencionados factos, dados como não provados,
deverão integrar o elenco dos factos provados.
12.ª-Dada a sua especificidade e impondo-se a sua demonstração, não de
concretos meios de prova, mas das regras de experiência comum, entende-
se que, excepcionalmente, não tem aplicação o disposto na alínea b), do n.º
3, do artigo 412.º, do Código de Processo Penal.
13.ª-Para preenchimento dos elementos típicos do crime de condução
perigosa de veículo rodoviário é necessária, por um lado, a violação
grosseira das regras de condução rodoviária e, por outro, a verificação de
um perigo concreto para a vida, a integridade física, ou para bens
patrimoniais alheios de elevado valor.
14.ª-Considerando os factos dados como provados nos pontos 1. e 3. a 10.
da sentença em crise, é evidente que o arguido, nas circunstâncias
descritas nos autos, agiu em clara violação grosseira das regras de
condução rodoviária, pois que efectuou a mudança de direcção à
esquerda, entrando numa via em que a circulação apenas era permitida
em sentido contrário àquele em que seguia, sendo que, na via em que
primeiramente seguia, havia sinalização horizontal, vertical e luminosa
que lhe indicavam a obrigação de seguir em frente.
15.ª-Com a referida actuação, o arguido violou, entre o mais, o disposto no
artigo 44.º, do Código da Estrada e desrespeitou os sinais de trânsito
previstos no artigo 69.º, n.º 2, alínea c), sinal de obrigação D1c e seta de
direcção M15, todos do Regulamento de Sinalização de Trânsito.
16.ª-Tais factos, conjugados ainda com os factos 12. a 13. da sentença,
revelam que a conduta do arguido criou perigo (concreto) para a
integridade física do assistente, na medida em que não fora a sobredita
conduta do arguido e o assistente não sofreria as lesões descritas nos
autos.
17.ª-Mas a conduta do arguido produziu ainda claro perigo para a vida,
integridade física e bens patrimoniais de elevado valor de todos os outros
condutores que seguiam na mesma via que o assistente.
18.ª-Não obstante a factualidade dada como demonstrada na sentença em
crise, esta, em momento algum se pronuncia no sentido de esclarecer se,
no entendimento do Tribunal, tais factos são, ou não, susceptíveis de
integrar os elementos objectivos do mencionado ilícito.
19.ª-Não nos parece, todavia, subsistir qualquer tipo de dúvidas.
20.ª-Considerou a sentença que “No caso dos autos o crime está imputado
na sua forma de negligência quanto ao dano mas nada é referido quanto
ao perigo [....]não estão verificados os elementos subjectivos do tipo de
crime em apreciação porquanto não é imputada ao arguido a colocação
em perigo de qualquer bem jurídico (quer a título de dolo quer de
negligência), não se fazendo referência a qualquer criação negligente de
perigo, mas apenas se faz referência à violação das regras estradais por
negligência susceptíveis de consubstanciar o crime de dano pelo qual o
processo foi já extinto por desistência de queixa, sendo certo que ao
tribunal não é permitido aditar elementos subjectivos do crime imputado,
conforme jurisprudência fixada”.
21.ª-Salvo o devido respeito, que é muito, não podemos perfilhar de tal
entendimento.
22.ª-Com efeito, o crime vinha imputado ao arguido pela previsão da
alínea b), do n.º 1 e do n.º 3, do artigo 291.º, do Código Penal, sendo que o
n.º 3 da citada norma refere-se, precisamente, à negligência na criação do
perigo.
23.ª-Ao contrário do enunciado na sentença, vinha devidamente imputado
na acusação (aliás, na mesma medida em que a sentença o deu como
provado) que o arguido criou o perigo (entenda-se, de lesão dos bens
jurídicos vida, integridade física ou bens patrimoniais alheios de elevado
valor) a título de negligência, sendo a imputação que lhe é feita suficiente
para preencher tal previsão do elemento subjectivo.
24.ª-Já quanto à conduta que produziu o mencionado perigo,
considerando que, como se referiu, o arguido mudou de direcção à
esquerda, quando na via em que seguia tinha sinalização horizontal,
vertical e luminosa que lhe indicava expressamente que era obrigado a
seguir a frente, não se pode, sequer, equacionar a possibilidade de o
arguido ter agido com negligência, mas, no limite, com dolo eventual,
como supra se expôs.
25.ª-Donde, considerando os factos que se têm como provados, forçoso é,
pois, concluir que o arguido JASR____, ao efectuar a manobra de
mudança de direcção da forma descrita, conduziu de forma desatenta, não
respeitando os diversos sinais de trânsito do local, não respeitando o
sentido de trânsito da via em que entrou e não assegurando que executava
a manobra de mudança de direcção em segurança, isto é, sem colocar
outros condutores em risco, nomeadamente o assistente, tendo conduzido
de forma desatenta e imprudente, não observando o dever de cuidado que
lhe permitiria evitar acidentes, como o que vitimou o assistente, ao
contrário do que podia e devia fazer.
26.ª-O arguido não observou os deveres cuidado impostos pelas normas
legais relativas à circulação automóvel e, ao conduzir o veículo do modo e
nas condições descritas, não agiu com a diligência e cautela que lhe eram
exigíveis e que estavam ao seu alcance para evitar um resultado que podia
e devia prever, mas que não previu, dando causa às lesões descritas do
assistente, sendo o único causador do acidente em discussão nos autos.
27.ª-Donde se entende estarem preenchidos os elementos objectivos e
subjectivo do tipo de crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
28.ª-Entendeu também o Tribunal a quo que “o crime de perigo concreto
encontra-se numa relação de concurso aparente com o crime de dano
quando o perigo concreto se verificou apenas em relação ao mesmo bem
jurídico que foi lesado, que foi o caso dos autos (em que o arguido vinha
acusado dos dois crimes em concurso real)”, concluindo que, tendo havido
extinção do procedimento criminal quanto ao crime de ofensa à
integridade física simples, os factos praticados pelo arguido e considerados
provados não consubstanciavam a prática de qualquer crime.
29.ª-Uma vez mais, não podemos concordar.
30.ª-Fazendo apelo à regra primordial para distinção entre concurso
aparente ou concurso efectivo de normas, constatamos que os bens
jurídicos tutelados pelo artigo 138.º e o artigo 291.º, do Código Penal são
substancialmente diferentes, pelo que teremos de concluir pela presença de
um concurso efectivo de normas, como, aliás, se pronuncia Paula Ribeiro
de Faria, no Comentário Conimbricense, e como tem sido entendimento
perfilhado por este Venerando Tribunal
31.ª- Ademais, caso se admitisse a tese plasmada na sentença em crise,
sempre se dirá que, da prova produzida nos autos (quer das declarações do
arguido, quer das declarações do assistente), resultou que o arguido
colocou em causa a vida, integridade física e bens patrimoniais de elevado
valor de outros condutores que não o assistente, que seguiam na mesma
faixa de rodagem que este e, inclusive, tiveram que se desviar daquele.
32.ª-Tal circunstância resulta, aliás, desde logo, das regras da experiência
comum, considerando o local (Praça de ....., em L____) e as circunstâncias
de tempo em que ocorreu o acidente (dia útil, às 9 horas e 20 minutos da
manhã), sendo aquela zona, como é sabido, de elevado tráfego nas
chamadas “hora de ponta”.
33.ª-Pelo que, a ser assim, deveria a Meritíssima Juiz a quo, salvo melhor
opinião, ter dado como assente que, na via em que seguia o assistente,
seguiam outros condutores, sendo que o arguido colocou em perigo
(concreto) os bens jurídicos tutelados pela norma, relativamente também a
eles.
34.ª-Todavia, o Tribunal tira a conclusão de que o arguido não colocou em
perigo qualquer outro condutor, o que não corresponde à verdade nem
resulta da prova, não o fazendo por referência a qualquer facto provado
ou não provado.
35.ª-Donde, e ao contrário do que foi entendido pelo Tribunal a quo,
integrando os factos provados a previsão dos elementos objectivo e
subjectivo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, nos
exactos termos em que lhe vinha imputado na acusação pública, deve o
arguido ser condenado em conformidade, pela sua prática.
36.ª-O mencionado crime é punido com pena de prisão até dois anos ou
com pena de multa até 240 dias e com pena acessória de proibição de
conduzir veículos motorizados, por período a fixar entre os três meses e os
três anos.
37.ª-De acordo com o n.º 1, artigo 40.º,do Código Penal a aplicação de
uma pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na
sociedade, cumprindo, assim, a função de responder às necessidades de
prevenção gerais e especiais que se fazem sentir em cada caso.
38.ª-Já de acordo com o disposto no artigo 70.º, do Código Penal se ao
crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa
da liberdade, dar-se-á preferência à segunda, sempre que realizar de
forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
39.ª-No caso dos autos, as necessidades de prevenção geral são muito
elevadas, considerando que se trata de crime praticado no exercício da
condução, sendo elevadíssima a sinistralidade nas nossas estradas, todos
os anos, com elevado número de vítima (feridos e mortos), sendo que, por
isso, a comunidade exige dos Tribunal uma punição exemplar para os
autores deste tipo de crime, tanto mais que, no caso dos autos a conduta do
arguido assume especial gravidade, porquanto a mesma deu origem a um
acidente, da qual resultou um ferido.
40.ª-As exigências de prevenção especial mostram-se baixas, porquanto o
arguido não tem antecedentes criminais, está social e familiarmente
inserido, assumiu em Tribunal a prática dos factos, colaborou com este na
descoberta da verdade e apuramento dos factos, não escamoteou a sua
responsabilidade e assumiu uma postura de arrependimento que se reputa
como sincero.
41.ª-Ponderados todos os factos supra elencados, entendemos que é
adequada e suficiente a aplicação de uma pena de multa para a realização
das finalidades da punição.
42.ª-Para determinação da moldura concreta da pena a aplicar em cada
caso, a culpa constitui o limite máximo da moldura e a defesa da ordem
jurídica o seu limite mínimo.
43.ª-De acordo ainda com o disposto no n.º 2, do artigo 71.º, do Código
Penal, dentro daqueles referidos limites, a pena ideal encontrar-se-á,
ponderando todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de
crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
44.ª-Assim, na determinação da medida da pena a aplicar ao arguido
JASR____deverá ter-se em consideração que as exigências de prevenção
geral são, como já o referimos elevadíssimas; as exigências de prevenção
especial são, por sua vez, reduzidas; a ilicitude é elevada, atendendo à
violação das regras presentes no Código da Estrada e às graves
consequências da conduta do arguido, que levaram às ofensas à
integridade física do assistente, descritas nos autos; quanto à culpa, o
arguido agiu com dolo, quanto à violação das normas de condução,
nomeadamente a regras fundamentais como são as atinentes à mudança
de direcção, de proibição de efectuar determinadas manobras ou a de
proibição de circular em determinadas vias, deveres estradais que recaem
sobre qualquer condutor, e agiu de forma negligente, violando os deveres
de cuidado a que estava obrigado, relativamente ao perigo que deveria ter
previsto e que deveria ter tomado as devidas precauções para evitar.
45.ª-Tendo em consideração todos as circunstâncias enunciadas, a favor e
a desfavor do arguido, deverá este Venerando Tribunal condenar o
arguido JASR____ em pena de multa, nunca inferior a 90 (noventa) dias,
pena que se reputa justa e adequada aos factos que supra se elencaram.
46.ª-Quanto ao quantitativo diário a fixar, considerando o facto dado
como provado sob o ponto 18. da sentença em crise, entendemos que, no
caso dos autos, deverá ser fixado o valor de 7,00€ (sete euros).
47.ª-As penas acessórias são verdadeiras penas, não obstante serem
dependentes da aplicação de uma pena principal.
48.ª-Para a determinação da medida concreta da pena acessória, há que
fazer apelo aos mesmíssimos critérios legais de determinação das penas
principais, supra enunciados.
49.ª-Culpa e prevenção são pois, e como já supra aludimos, as referências
norteadoras da determinação da medida da pena acessória, valores que
deverão ser considerados em função de uma das finalidades consignadas
no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, designadamente, a protecção de
bens jurídicos; deverá ser também tido em consideração o grau de ilicitude
do facto, o modo de execução deste, a gravidade das suas consequências e
o grau de conhecimento e a intensidade da vontade, nos crimes dolosos, ou
o grau de negligência, que constituem factores decisivos para a avaliação
da culpa e, consequentemente, para a ponderação da pena.
50.ª-Posto isto, e revertendo ao caso sub judice, ponderando todas as
circunstâncias que se enunciaram para a determinação da medida da pena
principal, consideramos justa e adequada ao caso sub judice a aplicação
da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período
de 9 (nove) meses.
51.ª-Do que fica dito, resulta que, ao decidir como decidiu, violou o douto
Tribunal a quo, entre o mais, o disposto nos artigos 291.º, n.º1, alínea b) e
n.º 3, 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, 25.º e 27.º, da Constituição da
República Portuguesa,
52.ª-Deve, pois, a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra
que altere a matéria de facto, nos termos sobreditos, e que, a final,
condene o arguido JASR____, pela prática em autoria material e na forma
consumada, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário,
previsto e punido nos termos do disposto no artigo 291.º, n.º 1, alínea a) e
n.º 3 e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, nos termos e nas penas que
supra se expuseram.

5.–Apreciando.

O recorrente começa por pretender uma reapreciação probatória,


afirmando que a mesma se baseia não em depoimentos e declarações,
mas sim na análise da matéria de facto dada como assente.
Em concreto, pretende o Mº Pº que os factos dados como não provados
(a) O arguido agiu deliberadamente. b) Sabia o arguido que a sua
conduta era proibida e punida por lei penal.) sejam dados como
assentes, considerando que, atentas as circunstâncias do incidente, se
impõe que se entenda que o arguido sabia que não podia virar à
esquerda e que, não obstante, quis fazê-lo de forma deliberada, com
plena consciência da proibição da sua conduta.
Pretende ainda o recorrente que sejam aditados como factos assentes
que, na via em que seguia o assistente, seguiam outros condutores, sendo
que o arguido colocou em perigo (concreto) os bens jurídicos tutelados
pela norma, relativamente também a eles.

6.–Vejamos.

Como ponto prévio, convém esclarecer que ao arguido era imputada,


em sede de acusação, a prática dos seguintes crimes:
- um crime de ofensa à integridade física negligente, p. e p. pelos arts.
148º
nº 1, 15º e 69º nº 1 al. a), todos do CP; e
- um crime de condução perigosa, p. e p. pelo arts. 291º nº 1 al. b) e nº 3,
e 69º nº 1 al. a), todos do CP; em concurso aparente com uma contra-
ordenação, p. e p. pelo art. 145º nº 1 al. f) do CE, em conjugação com os
art. 69º nº 2 al. c), sinal de obrigação D1c e seta de selecção M15, todos
do RST, aprovado pelo DecretoRegulamentar nº 22-A/98, de 1 de
Outubro.

7.–No que se refere ao crime de ofensa à integridade física negligente,


houve desistência da queixa, devidamente homologada, tendo sido
determinado o arquivamento dos autos nesta parte.
Assim, o processo prosseguiu para apreciação do crime de condução
perigosa de veículo rodoviário, prática de ilícito este do qual o arguido
foi absolvido (a questão relativa às contra-ordenações foi remetida à
autoridade administrativa para procedimento contra-ordenacional).

8.–Deste circunstancialismo decorre que em apreciação nestes autos se


mostram apenas as questões relativas ao crime de condução perigosa.
Não obstante, por ter um interesse reflexo na decisão da causa, caberá
abordar desde já, ainda que sucintamente, a questão da eventual relação
de consumpção existente ou não entre este ilícito e o crime de ofensas
corporais negligentes.

9.–Dir-se-á então, a este propósito, que o crime de condução perigosa de


veículo rodoviário tutela um bem jurídico complexo, nomeadamente a
segurança rodoviária, na perspectiva da protecção do perigo concreto
que do exercício de uma actividade em si mesma arriscada – a condução
de um veículo automóvel – pode advir para a vida, a integridade física e
bens patrimoniais alheios, de elevado valor.
Por seu turno, o crime de ofensa à integridade física negligente, tutela a
protecção do direito à integridade física, produzida por qualquer meio.
Temos, pois, que os bens jurídicos tutelados por estes dois normativos
têm uma área em comum; isto é, em certa medida (e independentemente
do facto de terem depois outros campos de abrangência), ambos tutelam
o direito à integridade física, por exemplo, confluindo nesse âmbito.
Neste mesmo sentido se pronunciou o Ac. do STJ de 22-11-2007,
proferido no proc. 05P3638, disponível em www.dgsi.pt:, onde se refere:
“Sendo protegidos no crime de condução perigosa, além da segurança das
comunicações, os bens jurídicos individuais vida e integridade física,
postos em perigo pela conduta do agente, ainda que estes reflexamente, se
ocorrer uma lesão destes últimos como resultado daquela conduta, os
referidos bens jurídicos de natureza pessoal passam a ser protegidos não
só pelas disposições combinadas dos artigos 291º, 294º e 285º, mas
também, de forma genérica, pelos crimes dos arts. 137º e 148º, do CP.

10.–Assim, a provarem-se factos que preencham os elementos do tipo de


ambos os crimes e, caso estejamos apenas perante uma única vítima ou
potencial vítima, resultante da actividade prosseguida pelo arguido,
estaremos perante uma relação de consumpção entre estes dois ilícitos,
devendo tal actuação, segundo as regras legais (designadamente o
disposto nos artºs 30 e 79 do C. Penal) ser unificadamente censurada e
punida pela moldura penal mais severa.
E isto por uma razão simples – se, por resultado de uma condução
negligente, imprevidente, é atingida a integridade física de uma única
vítima, o facto de a conduta ter produzido um resultado (um dano físico)
já encerra, em si mesmo, o perigo concreto que a condução perigosa
determinou; isto é, o perigo concreto, concretizou-se (perdoe-se o
pleonasmo) em resultado, pelo que fica consumido, englobado,
integrado, no crime de ofensa à integridade física negligente. O que
sucede é que tal conduta terá de ser punida por recurso à moldura penal
mais grave, de entre os dois crimes em relação de consumpção.

11.–Tendo em mente o que acabámos de expor, prossigamos,


relembrando que, no momento temporal em que se deu início à
produção de prova, ao arguido é imputada apenas a prática de um
crime de condução perigosa de veículo. Assim, caberá antes de mais
verificar se, face ao mero texto da acusação, aí se encontram descritos
factos suficientes para, a provarem-se, preencherem os elementos
constitutivos deste tipo de crime.

12.–Estipula o artº 291 do C. Penal, na parte que aqui nos importa, dada
a imputação constante na acusação, o seguinte:
Condução perigosa de veículo rodoviário
1-Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou
equiparada:
b)-Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas
à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de
direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em
auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em
autoestradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade
ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita; e criar
deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem,
ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena
de prisão até três anos ou com pena de multa.

3-Se o perigo referido no n.º 1 for criado por negligência, o agente é


punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240
dias.
13.–Por seu turno, estipulam os artºs 14 e 15 do C. Penal:
Artº 14º - Dolo
1- Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de
crime, actuar com intenção de o realizar.
2- Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que
preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua
conduta.
3- Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for
representada como consequência possível da conduta, há dolo se o
agente actuar conformando-se com aquela realização.
Artº 15º - Negligência
Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que,
segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a)-Representar como possível a realização de um facto que preenche um
tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b)-Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do
facto.

14.–No caso, entende o recorrente – o que se mostra corroborado pelas


normas referidas no texto acusatório, designadamente a referência ao nº
3 do artº 291 do C. Penal – que ao arguido vinha juridicamente
imputada a prática do crime de condução perigosa, entendendo-se que a
conduta por si praticada (mudança de direcção) foi de natureza dolosa,
deliberada, querida, sendo que o perigo pela mesma criado seria a título
negligente.

15.–Sucede, todavia que, lida e relida a acusação, não se vislumbra a


referência factual a tal dolo concernente à conduta.
De facto, na acusação, a título de imputação subjectiva genérica (i.e., a
única aí constante e aparentemente dirigida a ambos os crimes que eram
imputados ao arguido), afirma-se:
14.–O arguido bem sabia que era obrigado a seguir em frente, pelo que
efectuar a mudança de direcção à esquerda descrita, não observou as
precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era
capaz de adoptar e que devia ter adoptado para impedir a verificação de
um resultado que, de igual forma, podia e devia prever, mas que não
previu, causando as lesões e as consequências permanentes supra
descritas em AM PC_____.
15.–O arguido agiu, livre e conscientemente.
16.–Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei
penal e contra-ordenacional.

16.–Em parte alguma se mostra factualmente imputado ao arguido, no


texto acusatório, a prática de uma acção deliberada, volitiva, querida,
intencional. A palavra “deliberadamente” ou qualquer outra similar,
não surge no texto da acusação.
É por isso com enorme estranheza que se constata que na sentença, seja
dado como não provado que “o arguido agiu deliberadamente” e, mais
estranho ainda, que o recorrente pretenda que essa factualidade passe
para o campo dos factos provados…

17.–O objecto do processo fixa-se com a acusação (ou, existindo, com a


pronúncia). Ficam então delimitados os poderes de cognição do
Tribunal, assim se consubstanciando os princípios da identidade, da
unidade e da indivisibilidade do objecto do processo penal.

18.–Isso significa que a actividade do tribunal, quer no que respeita à


investigação quer à prova da verificação factual, não pode sair fora dos
limites traçados pela acusação, tendo de se confinar à mesma, sob pena
de nulidade (excepto nos casos especificamente ressalvados pela lei
processual, em que se pode proceder a uma alteração dos factos – arts.
303.º, 309.º, 358.º e 359.º); por isso se diz que o objecto do processo tem
de se manter o mesmo – eadem res –, desde a acusação até ao trânsito
em julgado.

19.–No caso, não houve recurso a nenhum destes mecanismos de


alteração factual, nem o aditamento se mostraria sequer legalmente
admissível, atenta a jurisprudência fixada pelo Ac. do STJ n.º 1/2015 in
DR, I Série de 27-01-2015: A falta de descrição, na acusação, dos
elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no
conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da
factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de
praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser
integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo
358.º do Código de Processo Penal.

20.–O excesso de pronúncia consubstancia-se no conhecimento de uma


questão ou de matéria factual, que se mostre vedada à apreciação do
tribunal, por não ter sido suscitada e/ou não ser de conhecimento
oficioso. Assim, para que se verifique a nulidade da sentença por excesso
de pronúncia, é necessário que o Tribunal tenha proferido decisão não
abrangida pelo objecto do processo, consoante resulta da acusação.
No caso vertente, foi o que sucedeu, já que o tribunal “a quo” deu como
não provada factualidade não constante da acusação.
Assim sendo, a sentença mostra-se nula neste segmento, cabendo a este
tribunal proceder ao seu suprimento oficiosamente (nos termos do artº
379 nº2 do C.P. Penal), eliminando do rol de factos não provados a sua
alínea a) (o arguido agiu deliberadamente).

21.–Prosseguindo.
Uma vez que na acusação, em termos factuais, inexistem elementos que
permitam, a provarem-se, concluir ter o arguido tido uma conduta
dolosa, a verdade é que daí decorre que não pode este tribunal proceder
à reapreciação de um facto omisso ab initio, nem se mostra sequer
equacionável o preenchimento do nº3 do artº 291 do C. Penal.
Assim, resta saber se a matéria de facto constante na acusação, ainda
que integralmente dada como assente – e, no caso, apenas se mostra não
provada a consciência da ilicitude (Sabia o arguido que a sua conduta era
proibida e punida por lei penal) – seria susceptível de integrar o
preenchimento do tipo consignado no nº4 do artº 291 do C.
Penal (conduta e perigos causados por negligência).

22.–E a resposta é simples - os factos constantes na acusação são


insuficientes para tal fim.
Porquê? Porque em parte alguma da acusação se afirma que o arguido
deveria ter previsto que a sua conduta era susceptível de colocar em
perigo a circulação e de pôr em causa a vida e a integridade física dos
utentes da estrada, como efectivamente colocou. O que aí se diz é que o
arguido não actuou de modo a impedir a verificação de um
resultado que podia e devia prever, daí resultando lesões para a vítima.

23.–Constata-se assim que este segmento de facto (colocar em perigo a


circulação e pôr em causa a integridade física dos utentes da estrada,
isto é, de outras pessoas que não a vítima do crime de ofensas
negligentes), não consta na acusação. Nada aí é referido quanto a outros
utentes da estrada que não a vítima do crime arquivado e, em relação a
este, não se fala em perigo, mas antes em concretização de um dano
físico.

24.–Mas, dir-se-á, se houve dano, o mesmo terá sido forçosamente


precedido de perigo; i.e., para haver resultado, é imperativo que o
perigo tenha evoluído, escalado, para dano, para resultado, que se tenha
corporizado.
Só que, neste caso concreto, dada a desistência da queixa e o
arquivamento dos autos, na parte que toca à conduta do arguido em
relação à vítima assistente, não pode esse segmento factual servir de
base à condenação pela prática de outro ilícito, sob pena de violação dos
princípios da identidade, da unidade e da indivisibilidade do objecto do
processo penal. Arquivado que se mostra o processado, onde se
averiguava se uma factualidade concreta imputada ao arguido
constituía ilícito penal por um crime de resultado, não pode agora
pretender fazer-se uso da mesma para lhe assacar a responsabilidade
pela prática de um ilícito diverso. Essa factualidade deixou de poder
servir de base para a prossecução da acção punitiva do Estado; isto é, se
o eventual perigo para a vítima se mostrava consumido pelo resultado
da conduta, não pode agora individualizar-se o mesmo para, extinto o
procedimento criminal quanto ao primeiro, servir de fundamento para
condenação pelo segundo.
25.–De igual modo, não pode este tribunal (ou o tribunal “a quo”)
proceder ao aditamento da matéria que o recorrente propugna, uma vez
que a mesma se refere a elementos essenciais do tipo de crime, omissos
na acusação formulada. E não o pode fazer por duas razões:
- por um lado, pelo que se mostra decorrente do AUJ supra transcrito;
- por outro lado, porque o texto cuja inclusão é pedida não contém
praticamente nenhuma descrição factual, tendo antes natureza
conclusiva ou jurídica (na via em que seguia o assistente, seguiam outros
condutores, sendo que o arguido colocou em perigo (concreto) os bens
jurídicos tutelados pela norma, relativamente também a eles.).

26.–Mas, ainda que assim se não entendesse, dir-se-ia que, atenta a


consumpção que ocorreria (como supra se explicou) caso não tivesse
havido lugar a arquivamento do processo relativamente ao crime de
ofensas corporais negligentes e inexistindo referência a qualquer outra
pessoa ou bem, para além do assistente, que a conduta do arguido teria
posto em perigo concreto, daí decorreria que, por virtude da forma
como a própria acusação foi formulada, nunca se mostraria possível a
condenação do arguido pela prática do crime autónomo de condução
perigosa (mesmo que não tivesse havido desistência de queixa).
Na verdade, falta na acusação a factualidade atinente à colocação em
perigo de outros utentes que não o assistente que, a provar-se,
permitiria a eventual integração do crime de condução perigosa. E
assim sendo, mesmo que os autos tivessem prosseguido para julgamento
e este se realizasse relativamente a ambos os crimes imputados na
acusação ao arguido, a verdade é que o crime de condução perigosa
nunca se mostraria numa relação de concurso efectivo com o crime de
ofensas negligentes.

27.–Assim, a questão de apreciação probatória proposta neste recurso,


nunca seria de passível provimento, desde logo porque (como aliás o
próprio recorrente admite implicitamente, ao pedir o aditamento de
factos à matéria de facto provada) na acusação formulada, a mesma
carecia de enunciação factual que permitisse o preenchimento,
autonomamente, do crime de condução perigosa.
28.–Atento o que se deixa dito, resta concluir que o recurso interposto
pelo Mº Pº se mostra desprovido de bases que o sustentem e, embora por
fundamentos diversos dos constantes na decisão proferida pelo tribunal
“a quo”, mantém-se a absolvição do arguido, no que concerne à prática
de um crime de condução perigosa.

IV–DECISÃO.
Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto
pelo Mº Pº, mantendo-se a decisão alvo de recurso, embora por
fundamentos diversos.
Nos termos do artº 379 nº2 do C.P. Penal), elimina-se do rol de factos
não provados a sua alínea a) (o arguido agiu deliberadamente).
Sem tributação.

Lisboa, 9 de Fevereiro de 2022

Margarida Ramos de Almeida- (relatora)


Maria da Graça Santos Silva

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