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Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Número do 1.0056.13.017141-8/001 Númeração 0171418-


Relator: Des.(a) Cássio Salomé
Relator do Acordão: Des.(a) Cássio Salomé
Data do Julgamento: 30/09/2020
Data da Publicação: 02/10/2020

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - DENÚNCIA - HOMICÍDIO


QUALIFICADO E HOMICÍDIOS QUALIFICADOS TENTADOS - TRÂNSITO -
PRONÚNCIA - DESCLASSIFICAÇÃO - DOLO EVENTUAL - LESÃO
CORPORAL CULPOSA NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR -
HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR -
CONDENAÇÃO - FIXAÇÃO DA PENA - NULIDADE DO ATO -
CONDENAÇÃO INSUBSISTENTE - INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO -
SUPRESSÃO DE PROCEDIMENTO QUE INDICAVA A REMESSA DOS
AUTOS AO JUÍZO SINGULAR - NULIDADE NÃO ARGUIDA - PREJUÍZO À
DEFESA NÃO VERIFICADO - VÍCIO SUPERADO - RETOMADA DO
PROCEDIMENTO DE PRELIBAÇÃO DA ACUSAÇÃO - MATERIALIDADE
COMPROVADA - INDÍCIOS DE SUPOSTA AUTORIA DELITIVA
DEMONSTRADOS - CULPA CONSCIENTE - DOLO EVENTUAL -
DISTINÇÃO - VALORAÇÃO DA CONTUTA - AUSÊNCIA DE
COMPROVAÇÃO CERTEIRA SOBRE A CULPA CONSCIENTE -
PRELIBAÇAO DA ACUSAÇÃO - PREVALÊNCIA, EM TESE, DO DOLO
EVENTUAL - CIRCUNSTÂNCIAS EXTERIORES AO EVENTO -
QUALIFICADORA - PROBALIDADE DA CONFIGURAÇÃO - VALORAÇÃO
DA CONDUTA PELO CONSELHO DA SENTEÇA. - Na hipótese de
denúncia pela prática de crime doloso contra a vida, o procedimento a ser
observado é aquele previsto no Capítulo II do Titulo I, do Código de Processo
Penal, regulado nos artigos 406 e seguintes do diploma processual penal. Ao
final da instrução (CPP, artigo 419), se o juiz sumariante se convencer, em
discordância com a acusação, da existência de crime diverso dos referidos
no § 1º do artigo 74 do CPP e não for competente para o julgamento,
remeterá os autos ao juiz que o seja. Evidentemente, não poderá, na
oportunidade, examinar o mérito e aplicar pena, o que caberá ao juiz a quem
for redistribuído o feito, uma vez passada em julgado a decisão
desclassificatória. - A pronúncia constitui-se em uma decisão declaratória da

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admissibilidade da acusação, que se funda em uma prelibação de certeza da


materialidade do crime contra a vida e em uma mera suspeita sobre a autoria
desse delito. Improcede, nesta fase, valorar os fatos descritos na denúncia
ou ter plena convicção da autoria; isso é incumbência destinada ao Conselho
de Sentença. Vigora, então, o princípio "in dubio pro societate": a mínima
dúvida havida quanto aos fatos não beneficia o acusado, mas sim a
sociedade, e que deve ser dirimida pelo Tribunal do Júri, juízo constitucional
dos crimes dolosos contra a vida. Na fase de pronúncia, a prova sobre a
tese da culpa consciente deve estar madura, clara e apta a justificar a
desclassificação (crime culposo) e, por conseguinte, respaldar a remessa da
valoração da conduta para outro juízo que não o constitucional para a
apreciação dos crimes dolosos contra a vida - o Júri. - Não se desclassifica a
conduta caracterizadora de provável homicídio doloso para a de homicídio
culposo quando ainda não se pode precisar de forma clara, insofismável, a
ausência de dolo, ainda que eventual, por parte do agente. - Se o acervo
probatório demonstra a perspectiva da possível procedência da qualificadora,
defeso é o seu decote na fase de pronúncia, deixando aos jurados a missão
de proferir a decisão final sobre sua pertinência ou não. V.V: - Quando não
se comprova que a parte tenha assumido o risco na produção dos
resultados, isso na condução de um veículo automotor, imperiosa se faz a
desclassificação dos crimes para as modalidades culposas, contidas no
CTB.

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 1.0056.13.017141-8/001 - COMARCA DE


BARBACENA - APELANTE(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE
MINAS GERAIS - APELADO(A)(S): ROSEMARE DE OLIVEIRA

ACÓRDÃO

Vistos etc., acorda, em Turma, a 7ª CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de


Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos,
em dar provimento ao recurso, vencido o Vogal.

DES. CÁSSIO SALOMÉ

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RELATOR.

DES. CÁSSIO SALOMÉ (RELATOR)

VOTO

Trata-se de recurso de apelação interposto pelo Ministério Público


Estadual contra a sentença de fls. 244/248 que, em desclassificação, atribuiu
a Rosimare de Oliveira as condutas típicas previstas nos artigos 302 e art.
303 do Código de Trânsito Brasileiro, condenando-a, pela norma do artigo
302, do CTB, nas penas 2 anos de detenção, em regime aberto, substituída
por duas restritivas de direitos, e dois meses de suspensão da permissão
para dirigir veículos, e declarou a extinção da punibilidade relativa ao crime
do artigo 303 do CTB.

A denúncia narrou que no dia 26/06/2013, por volta das 14h, na Rodovia
BH 040, Km 694, em Barbacena, a recorrida, de forma livre e consciente,
assumindo o risco de produzir o resultado morte, conduziu o veículo VW/gol,
placa GRX-0683, com capacidade psicomotora alterada em razão da
influência de álcool, situação que gerou violento acidente automobilístico,
causando o óbito da vítima M. T. M. C., e lesões corporais nas vítimas H. R.
C., L. M.C. e M. M. C. R. Desta forma, a apelada foi denunciada nos termos
dos artigos art. 121, §2º, IV, e art. 121, §2º IV c/c art. 14, II, por três vezes, na
forma do artigo 70, do Código Penal e art. 306 do Código de Trânsito
Brasileiro.

A denúncia foi recebida em 06/04/2017 (fls. 112).

Sentença proferida em 22/08/2019, com as intimações regulares, fls. 348


e fls. 260.

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O recorrente pleiteia, razões de fls. 266/271, a modificação da sentença


com a consequente pronúncia da apelada para o julgamento pelo Tribunal do
Júri, eis que demonstrado o dolo eventual nas condutas praticadas,
desautorizando a desclassificação reconhecida pelo Juízo "a quo".

Contrarrazões nas fls. 273/278, em que a apelada pugna pelo não


provimento do recurso.

A d. Procuradoria-Geral de Justiça opinou pelo não provimento do


recurso, fls. 397/398.

É o relatório.

O recorrente é parte legítima para a interposição do recurso e detém


interesse na reforma da sentença proferida.

Por sua vez, o recurso, em tese, é próprio e tempestivo, de sorte que os


requisitos de admissibilidade recursal previstos nos artigos 577 e 593, caput,
do Código de Processo Penal, restam satisfeitos.

Assim, CONHEÇO DA APELAÇÃO, presentes os pressupostos de


admissibilidade extrínsecos e intrínsecos e de processamento.

Preliminarmente, cumpre observar "ex officio" a impropriedade técnica da


sentença constituída, eis que seria hipótese de "decisão" a remeter o
procedimento para o juízo comum ou para o Tribunal do Júri, "data vênia".

Rememore-se que na hipótese de denúncia pela prática de crime doloso


contra a vida - caso dos autos: art. 121, §2º, IV, e art. 121, §2º IV c/c art. 14,
II, por três vezes, na forma do artigo 70, do Código

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Penal -, o procedimento a ser observado é aquele previsto no Capítulo II do


Titulo I, do Código de Processo Penal, regulado nos artigos 406 e seguintes
do diploma processual penal.

Ao final da instrução, nos exatos termos do artigo 419 do CPP, se o juiz


se convencer, em discordância com a acusação, da existência de crime
diverso dos referidos no § 1º do artigo 74 do CPP e não for competente para
o julgamento, remeterá os autos ao juiz que o seja.

Evidentemente, não poderá, na oportunidade, examinar o mérito, tarefa


que caberá ao juiz a quem for redistribuído o feito, uma vez passada em
julgado a decisão desclassificatória.

Sobre o tema, vale transcrever a lição de Guilherme de Souza Nucci:

"Desclassificação: é a decisão interlocutória simples, modificadora da


competência do juízo, não adentrando o mérito, nem tampouco fazendo
cessar o processo. Ensina Tornaghi que desclassificar é "dar-lhe nova
enquadração (sic) legal, se ocorrer mudança de fato, novos elementos de
convicção ou melhor apreciação dos mesmos fatos e elementos de prova"
(Compêndio de processo penal, t. I, p. 323). O juiz somente desclassificará a
infração penal, cuja denúncia foi recebida como delito doloso contra a vida,
em caso de cristalina certeza quanto à ocorrência de crime diverso daqueles
previstos no art. 74, § 1º, do CPP (homicídio doloso, simples ou qualificado;
induzimento, instigação ou auxílio a suicídio; infanticídio ou aborto). (...)
Quanto o juiz desclassifica a infração penal, por entendê-la outra que não da
competência do Tribunal do Júri, remetendo o processo ao juízo que
considera apto a julgá-la, propicia a interposição, por qualquer das partes, de
recurso em sentido estrito (artigo 581, II, CPP). Caso seja esse recurso
julgado e deferido, o processo continuará seu percurso na Vara do Júri.
Entretanto, se não for dado provimento ao recurso, o processo segue, de
fato, a outro juízo" (in CPP Comentado - 13 ed. ver. e ampl - Rio de Janeiro:
Forense, 2014, pp. 884-885).

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Contra a decisão desclassificatória poderiam recorrer, portanto,


quaisquer das partes antes da definição acerca da culpabilidade do acusado.
Caso contrário, na hipótese de vir a transitar em julgado a desclassificação
operada, a competência seria do juiz singular, quem competiria dirigir o
procedimento específico. Consumada a desclassificação, recebendo o juiz o
feito que lhe foi enviado pela Vara do Júri, há necessidade de se abrir vista
às partes para manifestação, sendo possível, eventualmente, até o
aditamento da denúncia, para inclusão de eventual circunstância nela não
inserida anteriormente, ensejando-se produção de prova e novo
interrogatório. Entretanto, se mantida a capitulação da peça acusatória,
caberia aos jurados o exame do crime contra a vida.

Na hipótese, suprimindo a dicção do aludido procedimento, foi proferida a


sentença condenatória pelo Juiz sumariante por crime diverso daquele que
determina a sua competência. Ineficaz, portanto, seria referida decisão.

No entanto, houve interposição de recurso pela acusação que, apesar de


não ter arguido referida nulidade, almeja reverter a desclassificação com a
consequente pronúncia da acusada.

Pertinente valorar os argumentos do recurso, em prestígio a economia e


a efetividade da prestação jurisdicional - sem a arguição da nulidade ex
officio -, porque o convencimento sobre o tema do juízo "a quo" já se
encontra perfilhado na "desclassificação das condutas".

Neste ponto, então, retomo o estanque do procedimento de verificação


da admissibilidade da acusação dos crimes contra a vida - pronúncia -,
salientado que provável alteração na modulação da decisão não acarreta
prejuízos às partes (CPP, art. 563).

Como se sabe a decisão de pronúncia caracteriza-se como um mero


juízo de admissibilidade da acusação e não exige prova

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incontroversa da autoria delitiva; referida decisão se respalda em elementos


indiquem uma probabilidade de ter os acusados praticados o crime contra a
vida.

Nesta fase, não cabe ao juiz sumariante valorar significativamente a


prova a fim de compor a lide, mas apenas verificar perfunctoriamente a
plausibilidade da acusação. De tal maneira que, nos casos dos crimes contra
a vida, na fase da pronúncia, havendo dúvida, por menor que seja, é de se
reservar ao Tribunal do Júri uma análise detalhada e pormenorizada do
tema, cabendo-lhe dirimir a questão, já que, neste procedimento, vigora, o
princípio in dubio pro societate.

Nos termos do art. 413 do Código de Processo Penal, para a decisão de


pronúncia são necessários que existam nos autos a certeza da materialidade
do fato delitivo e os indícios suficientes de autoria.

No caso em apreço, a materialidade do crime contra a vida e dos crimes


de tentados contra a vida estão comprovadas pelo conteúdo do exame de
corpo de delito e relatório de necropsia de fls. 29/30, laudo de fls. 13/44 e
exame de corpo de delito de fls. 63/732 - todas essas provas formando
perfeita sintonia com os demais elementos instrutórios produzidos.

Os indícios da suposta autoria atribuída à acusada são extraídos da


prova oral colhida nos autos, especialmente dos testemunhos e depoimentos
contidos na mídia de fls. 144.

Saliente-se que a defesa não contrariou o arcabouço probatório,


centrando sua tese na configuração da culpa consciente, ao revés do dolo
eventual, a decotar o possível dolo homicida da agente, ainda que de forma
eventual.

Sabe-se que diferença entre culpa consciente e dolo eventual é diminuta,


tênue. Em síntese, o que distingue a culpa consciente do dolo eventual,
embora em ambos haja a previsão do resultado, é a ocorrência na culpa
consciente do resultado não ser querido,

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decorrendo da falta do dever de cautela no agir; no dolo eventual há a


assunção, ainda que de forma sugestiva, da produção do resultado tido como
possível ou até mesmo de provável ocorrência.

A respeito da conceituação e distinção entre as referidas ficções jurídicas


- culpa consciente e dolo eventual -, propositada a doutrina:

"A diferença é que na culpa consciente o agente não quer o resultado nem
assume, deliberadamente, o risco de produzi-lo. Apesar de sabê-lo possível,
acredita sinceramente poder evitá-lo, o que só não ocorre por erro de cálculo
ou erro na execução. No dolo eventual, o agente não só prevê o resultado
danoso como também o aceita como uma das alternativas possíveis. É como
se pensasse: vejo o perigo, sei de sua possibilidade, mas, apesar disso, dê
no que der, vou praticar o ato arriscado". (Francisco de Assis Toledo -
Princípios Básicos de Direito Penal - Ed. Saraiva - 1987 - Pág. 291).

"Tem-se pretendido, em doutrina e na jurisprudência, identificar o "dolus


eventualis" com a culpa consciente (luxúria ou lascívia, do direito romano),
isto é, com uma das modalidades da culpa "stricto sensu". Sensível é a
diferença entre duas atitudes psíquicas. Há entre elas, é certo, um traço
comum: a previsão do resultado antijurídico; mas, enquanto no dolo eventual
o agente presta anuência ao advento do resultado, preferindo arriscar-se a
produzi-lo, ao invés de renunciar à ação, na culpa consciente, ao contrário, o
agente repele, embora inconsideradamente, a hipótese de superveniência do
resultado, e empreende a ação na esperança ou persuasão de que este não
ocorrerá". (Nelson Hungria - Comentários ao Código Penal - Vol. I - Pág.
116).

Destarte, restam estabelecidas as premissas sobre os brocados jurídicos


que ensejam a querela dos autos. Valoriza-se os fatos a fim de indicar qual
das ficções jurídicas supramencionadas deverá, em

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tese, neste momento de prelibação dos crimes contra a vida, ser prestigiada.

Analisando, então, a sentença objurgada, data venia, compreende-se


pela prematuridade da desclassificação realizada, considerando toda a
sistemática e paradigmas dos temas afetos aos crimes contra a vida e à
atribuição do Júri.

Inexiste qualquer elemento seguro a indicar de forma clara, insofismável


e ululante, nesta fase de prelibação da acusação, em que não se apura
minuciosamente o comportamento do agente, a modalidade culposa do fato
praticado (culpa consciente). Ao contrário, a conjectura dos acontecimentos
autoriza, em tese, a consideração dos efeitos da ficção do dolo eventual, em
suposição.

Isso porque as orientações hodiernas sobre a caracterização do dolo


eventual afastam-se da análise ou da perquirição do desejo e da vontade do
autor no cometimento da infração penal. A previsibilidade de um possível
resultado negativo (visado/previsível) na conduta é verificada a partir de
fenômenos externos demonstrativos das atitudes psicológicas do autor.
Ademais de se verificar se o autor assentiu à conduta ou aceitou a produção
do resultado, deve-se ponderar se ele agiu de algum modo a evitar a
produção da consequência.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que o dolo


eventual deve ser extraído das circunstâncias que cercam o evento
criminoso, e não da mente do autor (www.stf.jus.br):

"DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME DE


COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. "RACHA" AUTOMOBILÍSTICO.
HOMICÍDIO DOLOSO. DOLO EVENTUAL. NOVA VALORAÇÃO DE
ELEMENTOS FÁTICO-JURÍDICOS, E NÃO REAPRECIAÇÃO DE
MATERIAL PROBATÓRIO. DENEGAÇÃO. [...] 4. Das várias teorias que
buscam justificar o dolo eventual, sobressai a teoria do consentimento (ou da
assunção), consoante a qual o dolo exige o agente consinta em causar o
resultado, além de considerá-lo como possível. 5. A questão central diz
respeito à distinção entre dolo eventual e culpa consciente que,

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como se sabe, apresentam aspecto comum: a previsão do resultado ilícito.


[...] Para configuração do dolo eventual não é necessário o consentimento
explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em relação às
circunstâncias do evento. Faz-se imprescindível que o dolo eventual se
extraia das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não
se exige uma declaração expressa do agente. 7. O dolo eventual não poderia
ser descartado ou julgado inadmissível na fase do iudicium accusationis.
(STF, HC Nº 91159/MG. 2ª TURMA. REL. MIN. ELLEN GRACIE. DJ
24/10/08).

A respeito do dolo eventual nos crimes de trânsito assentou-se o seguinte


entendimento (www.stj.jus.br):

"Não se pode generalizar a exclusão do dolo eventual em delitos praticados


no trânsito. Na hipótese de "racha", em se tratando de pronúncia, a
desclassificação da modalidade dolosa de homicídio para a culposa deve ser
calcada em prova por demais sólida. No iudicium accusationis, inclusive, a
eventual dúvida não favorece os acusados, incidindo, aí, a regra exposta na
velha parêmia in dubio pro societate. IV O dolo eventual, na prática, não é
extraído da mente do autor mas, isto sim, das circunstâncias. Nele, não se
exige que resultado seja aceito como tal, o que seria adequado ao dolo
direto, mas isto sim, que a aceitação se mostre no plano do possível,
provável. V O tráfego é atividade própria de risco permitido. O" racha ", no
entanto, é em princípio anomalia extrema que escapa dos limites próprios da
atividade regulamentada. Recurso não conhecido" (STJ, REsp nº 249604/SP,
5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJU de 24/09/2002).

Analisando os elementos de prova coligidos aos autos, verifica-se que a


recorrida conduzia seu veículo automotor na contramão da rodovia BR040,
ziguezagueando, sob o efeito de álcool. Por consequência, atingiu o veículo
conduzido pelas vítimas, que seguia em sentido contrário, em correta mão de
direção, provocando o acidente que ensejou o óbito de M. T. M. C. e as
lesões corporais que não levaram a óbito L. M. S., H. R. C., e M. M S. por
circunstâncias alheais, eis que foram prontamente socorridos.

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Embora o simples fato de se conduzir o veículo sob o efeito de álcool não


seja o bastante para caracterizar a assunção do risco de se produzir o
resultado morte no trânsito (dolo eventual), não se pode descontextualizar
que, em suposição, a recorrida, em nítido estado de alcoolemia, guiava o
veículo automotor na contra mão de direção direcional da pista - BR040,
sabiamente de grande movimento, também de veículos de carga, pesados,
com alto risco e de elevado perigo aos que nela transitam - sem o elementar
cuidado necessário de direção defensiva e, dessa forma, ocasionou o fato
"sub judice".

No caso dos autos, todos os elementos juntos perfazem, possivelmente,


a hipótese do dolo eventual. Indicam, supostamente, em uma análise
superficial - própria da fase da pronúncia em que se verifica apenas a
plausibilidade da acusação -, que a agente, em tese, pela cadeia de fatores
concatenada nos autos (supostamente dirigir sob a influência de álcool em
rodovia que exige máxima atenção e na contramão direcional), teria
assumido o resultado homicídio e tentativa de homicídio, em comento.

Evidente que na hipótese, o dolo não se extrai da mente (desejo) da


autora, mas, em tese, das circunstâncias objetivas do evento. Mesmo que a
condução de veículo automotor implique sempre algum risco, a anormalidade
na forma com que a recorrida a fez - embriagada, ziguezagueando na
contramão direcional de rodovia sabiamente perigosa -, possivelmente,
ultrapassa a previsibilidade da modalidade culposa, ensejando, nesta fase do
procedimento, a ficção jurídica do dolo eventual, aparentemente.

Ausente prova contundente sobre a "culpa consciente" da acusada a


justificar a desclassificação da conduta, prescinde a classificação da ficção
do dolo eventual, em tese. Cumpre, pois, ao Conselho de Sentença
selecionar a qual dos brocados jurídico se subsome o comportamento da
recorrida.

O Supremo Tribunal Federal vem referendando, "a priori" na fase de


pronúncia, a presença do dolo eventual quando presentes embriaguez do
condutor e irresponsabilidade na condução do veículo,

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sustentado, ainda, que a questão deve ser dirimida pelo Conselho de


Sentença do Tribunal do Júri (www.stf.jus.br):

"HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE HOMICÍCIO PRATICADO NA


CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PLEITO DE
DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO PREVISTO NO ARTIGO 302 DO
CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. DEBATE ACERCA DO ELEMENTO
VOLITIVO DO AGENTE. CULPA CONSCIENTE X DOLO EVENTUAL.
CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI. CIRCUNSTÂNCIA QUE
OBSTA O ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO. REEXAME DE PROVA.
ORDEM DENEGADA. I - O órgão constitucionalmente competente para
julgar os crimes contra a vida e, portanto, apreciar as questões atinentes ao
elemento subjetivo da conduta do agente aqui suscitadas - o Tribunal do Júri
- concluiu pela prática do crime de homicídio com dolo eventual, de modo
que não cabe a este Tribunal, na via estreita do habeas corpus, decidir de
modo diverso. II - A jurisprudência desta Corte está assentada no sentido de
que o pleito de desclassificação de crime não tem lugar na estreita via do
habeas corpus por demandar aprofundado exame do conjunto fático-
probatório da causa. Precedentes. III - Não tem aplicação o precedente
invocado pela defesa, qual seja, o HC 107.801/SP, por se tratar de situação
diversa da ora apreciada. Naquela hipótese, a Primeira Turma entendeu que
o crime de homicídio praticado na condução de veículo sob a influência de
álcool somente poderia ser considerado doloso se comprovado que a
embriaguez foi preordenada. No caso sob exame, o paciente foi condenado
pela prática de homicídio doloso por imprimir velocidade excessiva ao veículo
que dirigia, e, ainda, por estar sob influência do álcool, circunstância apta a
demonstrar que o réu aceitou a ocorrência do resultado e agiu, portanto, com
dolo eventual. IV - Habeas Corpus denegado". (HC 115352, Relator(a): Min.
RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 16/04/2013,
PROCESSO ELETRÔNICO DJe-080 DIVULG 29-04-2013 PUBLIC 30-04-
2013)

"RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO NA DIREÇÃO


DE VEÍCULO AUTOMOTOR. DOLO EVENTUAL. CULPA CONSCIENTE.
PRONÚNCIA. TRIBUNAL DO JÚRI. 1. Admissível, em crimes de homicídio
na direção de veículo automotor, o reconhecimento do dolo

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eventual, a depender das circunstâncias concretas da conduta. Precedentes.


2. Mesmo em crimes de trânsito, definir se os fatos, as provas e as
circunstâncias do caso autorizam a condenação do paciente por homicídio
doloso ou se, em realidade, trata-se de hipótese de homicídio culposo ou
mesmo de inocorrência de crime é questão que cabe ao Conselho de
Sentença do Tribunal do Júri. 3. Não cabe na pronúncia analisar e valorar
profundamente as provas, pena inclusive de influenciar de forma indevida os
jurados, de todo suficiente a indicação, fundamentada, da existência de
provas da materialidade e autoria de crime de competência do Tribunal do
Júri. 4. Recurso ordinário em habeas corpus a que se nega provimento".
(RHC 116950, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em
03/12/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 13-02-2014
PUBLIC 14-02-2014)

Havendo, pois, indícios da provável autoria e prova da materialidade de


crimes, em tese, dolosos contra a vida, compete ao conselho de sentença a
aferição do real "animus" da recorrida, razão pela qual não há falar-se, nessa
fase, em desclassificação dos injustos para os de homicídio culposo e lesões
corporais culposas, ambos na direção de veículo automotor, ausente
comprovação irrefutável da culpa consciente

Nesse sentido é a orientação hodierna do STJ (www.stj.jus.br):

"RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO NA FORMA TENTADA.


CRIME DE TRÂNSITO. CONDUÇÃO DO VEÍCULO COM HABILITAÇÃO
SUSPENSA, SOB INFLUÊNCIA DE BEBIDA ALCOÓLICA, MEDIANTE
VIOLAÇÃO DE NORMA DE TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL.
RESTABELECIMENTO DA PRONÚNCIA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. Hipótese em que o Tribunal a quo deu provimento do recurso em sentido
estrito da defesa para desclassificar o delito para infração diversa de crime
doloso contra a vida, afastando-se a competência do Tribunal do Júri. 2. As
circunstâncias que envolvem o crime imputado - condução do veículo com
habilitação suspensa, sob influência de bebida alcoólica, mediante violação
de norma de trânsito e invasão de pista em que bicicletas trafegavam -
constituem fatos que definem a

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justa causa, autorizando-se, assim, a imputação por crime doloso (dolo


eventual) contra a vida e o restabelecimento da pronúncia, para a definitiva
valoração do crime e do elemento subjetivo pelo Tribunal do Júri. 3. Recurso
especial provido." (STJ, 6ª Turma, REsp 1794695/PR, Rel. Min. Nefi
Cordeiro, j. 25/06/2019, pub. DJe de 01/08/2019)

Este eg. TJMG também tem norteado (www.tjmg.jus.br):

EMENTA: EMBARGOS INFRINGENTES - DOS CRIMES DOLOSOS


CONTRA A VIDA - HOMICÍDIOS CONSUMADOS - DESCLASSIFICAÇÃO
PARA O DELITO DE HOMICIDIO CULPOSO NO TRÂNSITO -
IMPOSSIBILIDADE - DOLO EVENTUAL - MATÉRIA AFETA AO TRIBUNAL
DO JÚRI - IN DUBIO PRO SOCIETATE - EMBARGOS CONHECIDOS E
NÃO ACOLHIDOS.

I - A sentença de pronúncia trata-se de simples juízo de admissibilidade da


acusação, bastando apenas à existência da materialidade e indícios de
autoria, prevalecendo, nesta fase, o princípio in dubio pro societate.

II - Somente é cabível a desclassificação do crime de homicídio consumado


para o delito de homicídio culposo previsto no Código de Trânsito Brasileiro,
quando não houver dúvidas que o agente agiu sem dolo eventual, sobretudo
se a somatória das circunstâncias não escusa tal probabilidade. (TJMG -
Emb Infring e de Nulidade 1.0183.17.000200-4/002, Relator(a): Des.(a)
Adilson Lamounier , 5ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 11/02/2020,
publicação da súmula em 17/02/2020).

EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - HOMICÍDIOS


CONSUMADOS E TENTADOS NO TRÂNSITO - DOLO EVENTUAL -
INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA - MATERIALIDADE DELITIVA
DEMONSTRADA - DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA - INVIABILIDADE -
AUSÊNCIA DE DOLO DE MATAR OU MERA OCORRÊNCIA DE CULPA
CONSCIENTE NÃO EVIDENCIADOS. 1. A decisão de pronúncia, por sua
natureza mesma,

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encerra mero juízo de admissibilidade da denúncia, bastante que é para sua


prolação a demonstração da materialidade e indícios de autoria delitiva, não
podendo o juiz togado, neste momento procedimental, proceder a exame
aprofundado dos elementos de convicção existentes, sob pena de inaceitável
invasão de competência. 2. Cabe ao Tribunal do Júri o cotejo dos termos da
denúncia com o substrato fático trazido pela prova, o qual verificará a
correção da narrativa ali exposta, isto é, sua identidade com a verdade dos
fatos e com o ânimo a informar a conduta do agente na ocasião. Ou seja, ao
Colegiado popular, somente a ele, compete emitir, ao depois,
soberanamente, sua decisão acerca da configuração, ou não, do dolo
eventual narrado na inicial acusatória. (TJMG - Rec em Sentido Estrito
1.0396.18.001961-6/001, Relator(a): Des.(a) Paulo Calmon Nogueira da
Gama , 7ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 13/03/2019, publicação da
súmula em 22/03/2019).

Lado outro, no tocante a qualificadora (CP, art. 121, § 2º, IV) há


elementos nos autos a sustenta-la, pois, observa-se, pelos testemunhos
contidos nos autos, que as vítimas foram surpreendidas pelo automóvel
guiado pela recorrida, fato que dificultou a defesa dos ofendidos.

A respeito, orienta a Súmula n. 64 deste e. Tribunal de Justiça, in verbis:


"Deve-se deixar ao Tribunal do Júri a inteireza da acusação, razão pela qual
não se permite decotar qualificadoras na fase de pronúncia, salvo quando
manifestamente improcedentes". (unanimidade).

Desse modo, ausente prova cabal e inequívoca de que tenha a recorrida


agido sem qualquer animus necandi, deve-se reservar ao Tribunal do Júri
uma análise detalhada e pormenorizada do tema, cabendo-lhe dirimir a
questão, eis que prematura a desclassificação operada pelo Juízo
sumariante porquanto a prova inequívoca da "culpa" da acusada não resta
delineada simples e claramente no arcabouço probatório, em prelibação.

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Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Pelo exposto, dou provimento ao recurso do Ministério Público para


reformar a sentença imprópria proferida no processo e, satisfeitos os
requisitos do artigo 413, do Código de Processo Penal, pronuncio Rosemare
de Oliveria pela provável incursão nas disposições dos artigos 121, §2º, IV do
Código Penal, em face de M. T. M. C., e artigo 121, §2º, IV c/c art. 14, II do
Código Penal contra L. M. C., artigo 121, §2º, IV c/c art. 14, II do Código
Penal contra H. R. C., artigo 121, §2º, IV c/c art. 14, II do Código Penal contra
M. M. C., na forma dos artigos 70 e art. 69 do Código Penal.

Custas ao fim.

JD. CONVOCADO JOSÉ LUIZ DE MOURA FALEIROS (REVISOR) - De


acordo com o(a) Relator(a).

DES. SÁLVIO CHAVES

Presentes os pressupostos de admissibilidade e processamento, também


conheço do recurso.

Peço venia ao eminente Relator para divergir em parte, de seu judicioso


voto, ao intento de manter a desclassificação das condutas imputadas à
recorrida ROSEMARE DE OLIVEIRA, no ato judicial combatido.

De fato, tal como bem apontado pelo i. Des. Relator, a sentença padece
de um vício parcial, ou seja, não poderia ter desclassificado a conduta e
julgado no mesmo ato o mérito da ação penal, isso seria de competência de
outro juízo, após eventual transito em julgado da desclassificação, neste
termos é o que estabelecem os artigos 383,

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Tribunal de Justiça de Minas Gerais

§2º e 74,§3º, ambos do CPP, além do enunciado da Súmula 337 do STJ.

A nulidade aqui reconhecida por ser parcial e não gerar prejuízo a


defesa, não ofende o teor do enunciado da Súmula 160 do STF, fica feito o
registro.

Pois bem, como adiantado, as condutas atribuídas à ré se enquadram


àquelas contidas nos artigos 302 e 303 do Código de Trânsito Brasileiro.

Tal como efetivado no ato judicial atacado, também entendo, que o


conjunto probatório não é capaz de sustentar a pronúncia da parte acusada
nas sanções previstas no art. 121, §2º, IV do CP(por uma vez) e artigo 121,
§2º, IV c/c art. 14, II (por três vezes) do Código Penal, na forma do art. 70 do
Código Penal.

Analisando as provas carreadas aos autos, bem como o voto que me


antecedeu no presente julgamento, observei que a desclassificação para
homicídio culposo (art. 302 CTB) e ainda lesões corporais culposas, (art. 303
do CTB), possuem aval probatório nos autos.

Lembre-se, uma das vítimas veio a óbito (M.T.M.C.) em virtude do


acidente noticiado na denúncia, os demais passageiros do veículo sofreram
lesões corporais.

Vejamos.

In casu, a conduta praticada pela ré não caracterizou "dolo eventual", não


tendo à acusação demonstrado, de forma indene de dúvidas, a ocorrência do
chamado animus necandi (vontade do resultado morte), não sendo possível,
portanto, a pronúncia de sua pessoa por homicídio doloso qualificado em
suas formas consumada e tentada, nos termos do art. 121, §2º, IV e 121,
§2º, IV c/c art. 14, II, ambos do Código Penal.

Sobre os fatos, uma das vítimas disse que em uma curva notou

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Tribunal de Justiça de Minas Gerais

que seguia em sua via direcional, que em sentido oposto vinha a ré, que ela
abriu a curva e entrou na contramão direcional, disse que após o acidente a
ré estava atormentada, que somente tomou conhecimento sobre eventual
embriaguez da ré no hospital, vide depoimento de L.M.C. fl.144.

Em igual sentido foram os dizeres da vítima Hebert, mídia de fl.144.

A testemunha M.F.M.P. disse que viu o acidente, que se prontificou a


ajudar e não percebeu sinais de embriaguez na ré, fl.158.

A recorrida confirma ter invadido a contramão direcional, que se envolveu


sim no acidente descrito na denúncia, fl.206.

Às fls. 77 e 81 existem termos de desinteresses de representação contra


a ré.

Importante registrar que, nada obstante a peça de fl.07, constatar que a


ré estava com concentração de álcool no sangue superior a permitida em lei,
compreendo que tal fato, por si só, não é prova suficiente de que tenha ela
agido com dolo eventual, sendo certo que a embriaguez ao volante não tem
o condão de caracterizar automaticamente a assunção do risco de produzir o
resultado morte, o que, a meu ver, desautoriza a pronúncia por quatro crimes
de homicídios dolosos, um consumado e outros três tentados.

No caso em apreço, o que a prova deixou assente é que a ré agiu com


culpa consciente, situação na qual o agente pratica a conduta tendo em
mente o possível resultado, porém, tem plena convicção de que ele não irá
ocorrer.

Sobre a questão, oportuno o magistério de Cezar Roberto Bitencourt:

"(...) A consciência e a vontade, que representam a essência do dolo

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Tribunal de Justiça de Minas Gerais

direto, como seus elementos constitutivos, também devem estar presentes


no dolo eventual. Para que este se configure é insuficiente a mera ciência da
probabilidade do resultado ou a atuação consciente da possibilidade concreta
da produção desse resultado, como sustentam os defensores da teoria da
probabilidade. É indispensável uma determinada relação de vontade entre o
resultado e o agente e é exatamente esse elemento volitivo que distingue o
dolo da culpa. Como lucidamente sustenta Alberto Silva Franco: "Tolerar o
resultado, consentir em sua provocação, estar a ele conforme, assumir o
risco de produzi-lo não passam de formas diversas de expressar um único
momento, o de aprovar o resultado alcançado, enfim, o de querê-lo". Com
todas as expressões - aceita, anui, assume, admite o risco ou o resultado -
pretende-se descrever um complexo processo psicológico em que se
misturam elementos intelectivos e volitivos, conscientes e inconscientes,
impossíveis de serem reduzidos a um conceito unitário de dolo. No entanto,
como a distinção entre dolo eventual e culpa consciente paira sob uma
penumbra, uma zona gris, é fundamental que se estabeleça com a maior
clareza possível essa região fronteiriça, diante do tratamento jurídico
diferenciado que se dá às duas categorias. (Bitencourt, Cezar Roberto,
Tratado de direito penal, volume 1: parte geral / Cezar Roberto Bitencourt. -
14 ed. rev., atual. e ampl., São Paulo, pág.290)

Prossegue o ilustre doutrinador:

(...) Há culpa consciente, também chamada culpa com previsão, quando o


agente, deixando de observar a diligência a que estava obrigado, prevê um
resultado, previsível, mas confia convictamente que ele não corra. Quando o
agente, embora prevendo o resultado, espera sinceramente que este não se
verifique, estar-se-á diante de culpa consciente e não de dolo eventual.
(Bitencourt, Cezar Roberto, Tratado de direito penal, volume 1: parte geral /
Cezar Roberto Bitencourt. - 14 ed. rev., atual. e ampl., São Paulo, pág.307)"

Trazendo, pois, o contexto doutrinário alhures para o caso dos autos,


impossível, a meu ver, afirmar, mesmo sob a égide de um juízo presumível,
que a recorrida, ao supostamente ingerir bebida alcóolica,

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Tribunal de Justiça de Minas Gerais

assumiu, sem se importar, com o resultado morte quando fora, em ato


contínuo, conduzir o veículo VW/Gol, placa GRX-0683 pela BR040.

Lamentavelmente, o caso dos autos foi uma típica fatalidade em que


naturalmente a sociedade em geral reclama uma resposta estatal rigorosa
em detrimento do causador do infortúnio, entretanto, sem qualquer esforço, é
possível ver que as provas amealhadas ao processo não avalizam que a
Recorrida agiu com dolo eventual (assumir o risco do resultado morte), tal
como acima discorrido, eis que, para tanto, a parte Acusada, inflexivelmente,
estaria colocando a sua própria vida em xeque, o que não é nenhum pouco
crível.

Nesse parâmetro, embora a atitude da denunciada, de ingerir bebida


alcóolica e assumir a direção de veículo automotor seja incontestavelmente
criminosa, irresponsável e extremamente reprovável, a dinâmica fática,
afasta qualquer especulação no sentido de ter ela agido com dolo eventual,
já que evidente que a ré tinha ciência do perigo, porém, jamais imaginaria
que o trágico resultado ocorreria, eis que, repita-se, ele estaria
comprometendo a própria vida.

Em casos similares, este Egrégio Tribunal de Justiça assim decidiu:

"EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - LESÕES CORPORAIS DOLOSAS -


DOLO EVENTUAL - INOCORRÊNCIA - DESCLASSIFICAÇÃO PARA
LESÃO CORPORAL CULPOSA NO TRÂNSITO - POSSIBILIDADE -
ABSOLVIÇÃO - CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA - INOCORRÊNCIA.
Inexistindo nos autos elementos suficientes para comprovar que o apelante,
na condução de veículo automotor, assumiu o risco de produzir o resultado
lesão corporal dolosa, deve ser reconhecida a existência de culpa consciente
e não de dolo eventual, operando-se a desclassificação para crime culposo.
Não havendo nos autos provas de que o acidente ocorreu por culpa
exclusiva da vítima, ao contrário, restando demonstrando que o apelante,
dirigindo de forma imprudente, atropelou a vítima, incabível a absolvição do
agente" (TJMG - APELAÇÃO CRIMINAL Nº 1.0701.12.044477-6/001 - 3ª
CÂMARA CRIMINAL- RELATORA: DESA. MARIA LUÍZA DE MARILAC; j.
23/01/2018).

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Tribunal de Justiça de Minas Gerais

"EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - DELITO DE TRÂNSITO -


EXCESSO DE VELOCIDADE - VÍTIMA FATAL - PRONÚNCIA POR
HOMICÍDIO DOLOSO - AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE DOLO EVENTUAL -
CRIME DA COMPETÊNCIA DO JUIZ SINGULAR - DESCLASSIFICAÇÃO
QUE SE IMPÕE. Não havendo nos autos elementos a demonstrar haver o
réu, com sua conduta, assumido, conscientemente, o risco de produzir o
resultado homicídio tentado, impossível submetê-lo a julgamento pelo
Tribunal do Júri, que só tem competência para julgamento de crimes dolosos
contra a vida. Recurso provido para operar-se a desclassificação para crime
da competência do Juiz singular". (TJMG - Rec em Sentido Estrito
1.0324.10.010765-9/001 - Relator (a): Des.(a) Fortuna Grion - j. 30/08/2016).

No caso em comento, ficou demonstrada a inexistência do animus da


acusada de causar o acidente automobilístico, inclusive, o de matar ou ferir
alguém.

Desta forma, em que pese o trágico e lamentável acidente provocado


pela recorrida, que veio a ceifar a vida de uma pessoa e lesionar outras, não
vejo como catalogar o aludido evento senão como homicídio culposo em
concurso com lesões corporais culposas.

Isso posto, com a devida venia ao eminente Desembargador Relator,


nego provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público do Estado de
Minas Gerais, de forma a manter a desclassificação das condutas criminosas
imputadas a ré para aquelas previstas no art. 302 (vítima M.T.M.C.) e 303
(vítimas H.R.C., L.M.C. e M.M.C.) do Código de Trânsito Brasileiro, na forma
do art.70 do CP, com competência do juízo singular para dar prosseguimento
ao caso, neste aspecto, de ofício, fica decretada a nulidade parcial da
sentença, ou seja, quanto a fixação da pena, pois o feito deve ser remetido
para o Juízo Competente com a tramitação regular nos termos dos artigos
74, §3º e 383, ambos do CPP.

Custas, ao final.

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É como voto.

SÚMULA: "DERAM PROVIMENTO AO RECURSO,VENCIDO O


VOGAL"

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