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AULA TEÓRICA

(SEMANA 09/11/2020 A 13/11/2020)

Sumário breve:

Os fins do Direito.

Elementos e modalidades de Justiça.

A Justiça Social.

Relação entre justiça e segurança jurídica.

Ius strictum vs ius aequum

Técnica legislativa: cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados.

Sumário Desenvolvido:

Os fins do Direito

A Justiça
Como podemos deduzir da definição do conceito “direito objetivo”, os fins da ordem
jurídica são a realização da justiça.

O direito cumpre as suas funções a partir de uma ideia de justiça, que o legitima, sendo
esta ideia aceite (ou, pelo menos, tolerada) pela sociedade. Está em causa a aceitação
social daquilo que se entende por justo porque uma definição objetiva de justiça, perene
e comummente aceite, não existe. O sentir em relação ao entendimento do que é justo
modifica-se no decurso da evolução social e das convicções religiosas e morais e da
realidade económica e varia nas várias sociedades. Por isso, a justiça (inclusive os direitos
subjetivos e seu exercício) deve ser sempre aferida à realidade, deve respeitar a realidade
que resulta da evolução contínua dos conhecimentos, da técnica, da ordem social, do
sentir dos homens e das suas expectativas e deve ser consentânea com elas sob pena de
se criar um desfasamento, fatal para a aceitação da ordem jurídica, entre a realidade social
e as leis. Deve haver uma ligação, uma “comunicação” (uma interação), entre quem faz
as leis e os que as devem seguir. O que significa que a aceitação das leis pelos seus
destinatários é um pilar fundamental da legitimação democrática.

Com os olhos de hoje podemos considerar muitas soluções legais, vigentes no passado,
como injustas embora, na altura, não eram entendidas desta maneira1. Ao direito cabe
realizar a justiça na vida real e social que nos é acessível. E a justiça de que falamos é a
justiça humana, moldada, em termos mais ou menos perfeitos, por leis humanas.

Elementos da justiça
Os elementos da justiça em geral são a “impessoalidade” ao estabelecer limites e medidas
gerais (sem sentimentos pessoais como amor, caridade ou amizade [sendo certo que a
própria amizade é um valor superior ao da justiça]), e a “alteridade” no sentido de a justiça
se orienta para a convivência social (a sua sujeição à evolução contínua do mundo e a sua
orientação para a vida social). Podemos aferir o exemplo da justiça penal: o direito penal
de uma sociedade secularizada e plural só pode intervir para proteger bens jurídicos
fundamentais das pessoas ou da comunidade; só merecem proteção os bens jurídicos de
eminente e superior dignidade; contudo, esta avaliação está dependente das condições da
evolução social.

Os seus elementos lógico-formais da justiça são a proporcionalidade (ideia de equilíbrio


e da reciprocidade), a igualdade (como contraposto à arbitrariedade, de todo em todo
inaceitável) e o respeito pela dignidade da pessoa humana, de qualquer pessoa humana!

Em termos materiais compete ao direito resolver conflitos concretos, garantir a


comparticipação de todos nos bens da comunidade, a integração na sociedade em
consequência do facto de o homem apenas se poder realizar na convivência com os outros.

Mas daí não resulta que, em termos gerais, “nós sermos responsáveis pelo ser dos outros
e os outros são responsáveis pelo nosso ser”. Esta afirmação não corresponde aos
pressupostos da responsabilidade que, em toda a regra, pressupõe atos próprios
livremente (autonomamente) assumidos com os seus riscos inerentes e com a consciência
de responder em pessoa. E neste contexto devemos reconhecer que a auto-
responsabilidade abrange até a possibilidade de um agir que os outros podem considerar
irresponsável. Ser responsável por outrem pressupõe o poder de determinar a conduta
deste (é o artigo 491.º que prevê uma situação deste tipo) o que por regra não é o caso.

1
Como por exemplo, o estatuto da mulher casada no Código Civil de 1867.
Coisa diferente é considerar e respeitar o outro como igual, ser responsável pela sua
condição de homem.

Modalidades da Justiça
Quanto às modalidades da justiça em especial, costuma distinguir-se entre a justiça
comutativa; a justiça distributiva e ainda a justiça contributiva (geral ou legal).

Justiça Comutativa
A justiça comutativa, que assenta no princípio “prestação ↔ contraprestação”, pode ser
voluntária ou involuntária. Ela é voluntária no caso do sinalagma de um contrato bilateral2
e é involuntária3 no caso da obrigação de indemnizar em consequência da prática de um
facto ilícito que destruiu um equilíbrio, que há-de ser corrigido ao restabelecer a situação
que existiria se não tivesse havido o facto danoso.

Deste modo, a justiça comutativa procura:

a) obter um equilíbrio entre as prestações das partes de um contrato, livremente


celebrado com base no artigo 405.º do Código Civil, sendo neste caso voluntária:
o sinalagma de um contrato4, ou;

b) visa corrigir o desequilíbrio criado por um facto danoso mediante uma


indemnização imposta a quem causou o dano, sendo involuntária, pois é
determinada por lei5.

Portanto, distinguimos a justiça comutativa sinalagmática da justiça comutativa corretiva.

Justiça Distributiva
A justiça distributiva, que assenta na lógica “prestação sem contraprestação”, tem como
objetivo uma correção da repartição dos bens, tida como injusta, normalmente feita por
meio de prestações sociais atribuídas por organismos públicos a favor de cidadãos
necessitados e merecedores de apoio. É certo, todavia, que ninguém sabe explicar

2
O contrato bilateral é um contrato em que há prestações de ambas as partes como sucede, por exemplo,
no contrato de compra e venda; temos aqui a lógica do “do ut des”, a chamada “Austauschgerechtigkeit”.
Temos um equilíbrio das prestações. Pelo contrário, o contrato unilateral é um contrato em que há uma
prestação de apenas uma das partes como sucede no contrato de doação.
3
Também conhecida como justiça corretiva, no alemão, korrektive” ou “ausgleichende Gerechtigkeit”.
4
Segundo o princípio do do ut des; a “Austauschgerechtigkeit”.
5
Por exemplo, a obrigação de indemnizar, prevista no artigo 483.º do Código Civil como consequência da
prática de um facto ilícito não consentido [“korrektive” ou “ausgleichende Gerechtigkeit”].
convincentemente o que é uma repartição justa dos bens; apenas se pode sustentar que
uma determinada repartição é considerada socialmente como injusta. Também ao direito
sucessório, designadamente quanto à sucessão legal, pode estar subjacente esta ideia de
uma repartição justa dos bens em relação aos herdeiros e à partilha dos bens entre eles.

Justiça contributiva
A justiça contributiva (ou geral ou legal) significa a participação de todos segundo o
critério da igualdade proporcional nos encargos comuns da sociedade. Isto é, há a
igualdade para todos na obrigação de contribuir, mas já não há uma igualdade da
prestação para todos. A prestação de cada um depende da sua capacidade económica de
contribuir6.

A Justiça Social
A tudo isto sobrepõe-se o critério, indeterminado, da chamada “justiça social”. O conceito
goza de uma conotação positiva, mas sem usufruir de um entendimento comum. F. A.
Hayek chama-o um logro. Há sintomas claros que o conceito vem a ser utilizado como
um conceito de combate (Kampfbegriff) por parte de quem pretende introduzir
melhoramentos e/ou regalias sociais em benefício de quem é considerado desfavorecido.

Ao direito cabe, como sabemos, realizar a justiça na vida real e social dos homens, isto é,
na vida real e social que nos é acessível. Esta justiça é moldada, em termos mais ou menos
perfeitos, por leis humanas em sintonia com as condições humanas correspondentes. Por
isso, só podemos falar verdadeiramente de justiça, ou da sua falta, a respeito de situações
ou relações sociais juridificadas, quer dizer, situações ou relações jurídicas sujeitas às
normas jurídicas das leis feitas por homens.

Todavia, há inúmeras situações que nos perturbam e que nos atormentam e que sentimos
como “injustas”, embora não o sejam num sentido estrito: não ocorreu nenhuma violação
de uma lei, não se verifica uma desconformidade com o direito de um Estado mas, não
obstante, resulta delas um desconforto, uma insatisfação ou mesmo uma sensação de
repulsa ou de revolta. Trata-se de circunstâncias não causadas por atos humanos –
nomeadamente por fenómenos da natureza que se verificam independentemente de

6
Por exemplo, em princípio todos devem pagar os impostos sobre os seus rendimentos [= igualdade da
obrigação] mas a taxa dos impostos sobre os rendimentos é progressiva e aumenta em função da soma dos
rendimentos [= proporcionalidade da prestação].
qualquer ação humana – e por isso seria absurdo qualificá-las como injustas embora
possam ser encaradas como tais mas “apenas” apoiadas em sentimentos de compaixão ou
em critérios morais.

Neste contexto devemos distinguir de uma verdadeira injustiça situações como o


infortúnio em consequência da natureza7 ou os acasos8. Pois um infortúnio, uma
infelicidade, um não merecimento, um acaso, etc. não são, desde já, sinais de uma
injustiça. Também uma desigualdade, por si só, tão pouco o é. As pessoas e as sociedades
estão habituadas a conviver com muitas situações de desigualdade tidas, mais ou menos,
como normais de acordo com os respetivos padrões de convivência num determinado
ambiente social. Os problemas surgem quando as desigualdades atingem um grau a partir
do qual são sentidas como socialmente incomportáveis e passam a ser consideradas
injustas, sendo estas injustiças corrigidas com base em critérios de justiça social.

Também não é injusto que a natureza distribui de forma desigual a herança genética,
favorecendo uns e prejudicando outros9.

Injusto é, todavia, não tomar medidas preventivas, por exemplo, mediante a intervenção
de serviços de saúde para evitar que nasçam crianças doentes ou diminuídas, ou não
atenuar ou mesmo eliminar os efeitos do infortúnio ou de condições desfavoráveis com
medidas assentes na justiça distributiva como também é injusto tratar situações iguais de
uma maneira arbitrária e não com os mesmos critérios.

Há hoje uma tendência muito acentuada no sentido de corrigir juridicamente o infortúnio


ou o acaso infeliz com a sujeição de cada vez mais relações sociais em que estas situações
acontecem ao direito. Com isso verifica-se uma extensão (ou mesma alguma diluição ou
até a banalização) dos conceitos “(in)justo” ou “(in)justiça”. De facto, quanto mais latos
são um conceito e seus contornos, tanto mais difícil é a determinação do seu conteúdo
preciso com o perigo subsequente de corrigir “injustiças” por meio de uma interpretação
e aplicação arbitrária das leis.

7
Como por exemplo, ser fértil ou infértil; bonito ou feio; saudável ou doente; inteligente ou pouco
inteligente; etc.
8
Como por exemplo, o lugar do nascimento, género, nacionalidade, deficiências ou lesões, etc.
9
Por exemplo, ter força de vontade ou não ou condições físicas boas ou não; assim, o êxito desportivo é,
em grande parte, genética ou fisicamente pré-determinado e não só o resultado de treino e disciplina;
portanto, visto assim, o êxito desportivo é resultado de uma “injustiça” em relação àqueles que não possuem
as mesmas características genéticas.
A tendência de juridificar, isto é, sujeitar a normas jurídicas, cada vez mais relações ou
situações sociais sentidas como “injustas”, como por exemplo, um necessitado deixar de
estar dependente de atos de misericórdia ou de caridade e passar a ter um direito subjetivo
público a prestações sociais, é defendida sob o lema da justiça social e caracteriza-se por
regras jurídicas diferenciadas e sempre mais complicadas. Há quase uma obsessão de
sujeitar tudo o que é considerado socialmente inaceitável ou “injusto” ao domínio do
direito com o propósito de criar mais justiça social por meio da juridificação
(Verrechtlichung) de tais situações.

Por outro lado, com frequência nem se pergunta quando alguém está necessitado ou em
dificuldades quais as razões, a evitabilidade, a culpa própria ou as alternativas, mas
sustenta-se simplesmente que estamos perante “injustiças” (ou também discriminações)
que o direito deve resolver ou eliminar. Cria-se uma cultura de vitimização (que tem a
tendência de se manter) em vez de lutar e não se deixar vencer por infortúnio,
contrariedades e derrotas. Assim, a propensão – em princípio bem-intencionada – de
juridificar sob o lema da justiça social um número crescente de ralações sociais
desfavoráveis não está isenta de dúvidas: a ideia da auto-responsabilidade pode ficar
esvaziada; as “circunstâncias” ou as “condições” é que são “injustas”, logo o direito deve
intervir, criando justiça e proporcionando ajudas sociais.

Além disso, quanto mais relações sociais passam a ser juridificadas, ou seja, passam a ser
relações jurídicas, tanto mais aumenta o poder do Estado (de quem emanam as leis) com
os seus meios coercivos e fica diminuído o espaço para as pessoas encontrarem
livremente, de uma maneira autónoma, normas de conduta social pelas quais se
pretendem guiar. E a liberdade acaba mesmo quando o Estado se encarrega de cuidar da
felicidade dos homens.

Ius strictum vs Ius aequum


Seja como for, a aplicação das leis exige que elas sejam redigidas em termos claros e
precisos para poderem ser seguidas. Neste sentido a aplicação estrita de uma norma é,
naturalmente, o caso comum. Mas pode não ser assim. É a este respeito que distinguimos
entre o ius strictum e o ius aequum. Quer dizer, à aplicação estrita de uma norma
contrapõe-se uma aplicação maleável. Na verdade, pode suceder que da aplicação estrita
de uma norma, obviamente destinada a fazer justiça, em determinados casos concretos
venham resultar consequências sentidas como injustas. Nestes casos, limitados, é certo, a
equidade aparece como exceção à aplicação estrita de uma norma por parte do julgador.
Todavia, só nos casos previstos na lei1011.

Portanto, a aplicação estrita da norma, do ius strictum, é o caso normal (quer dizer, vale
o princípio dura lex sed lex), porque só deste modo fica assegurado que o julgador (o juiz)
se mantém vinculado ao rigor da lei, evitando-se possíveis arbitrariedades. Partindo da
lógica que as leis são concebidas em função da justiça, o recurso à equidade, ao ius
aequum, não pode deixar de ser excecional como também resulta do artigo 4.º, a) do
Código Civil que refere “os tribunais só podem resolver segundo a equidade … quando
haja disposição legal que o permita”.

É dada prevalência a razões da justiça do caso concreto em que a equidade se funda. O


julgador não está subordinado aos rigorosos critérios normativos que são fixados na lei12
uma vez que estes vêm a ser atenuados por normas que recorrem ao critério da equidade,
como os exemplos já referidos dos artigos 494.º e 489.º, n. º 1, do Código Civil. Assim,
o rigor da lei, que leva a uma aplicação estrita do disposto no artigo 483.º que estabelece,
sem atender ao grau da culpa do lesante, a obrigação de indemnizar todos os danos
causados por este, é sacrificado à equidade e maleabilidade da decisão, que agora
contempla a situação concreta do causador do dano nos termos dos artigos 494.º ou 489.º,
n.º 1, sobretudo quando a sua culpa é leve e os seus meios económicos são insuficientes
ou quando não tem culpa mas o lesado não pode ficar sem indemnização.

Contudo, a equidade não é contraposta à justiça, mas uma forma específica da mesma:
ela visa a justiça do caso concreto particular. Nessa medida não há uma contradição entre
o ius aequum e o ius strictum. Ambos procuram obter a solução justa e correta. Mas a
respeito da equidade, o perigo da arbitrariedade e imprevisibilidade da decisão sempre
existe; daí as cautelas justificadas do artigo 4.º do Código Civil e sua limitação a casos
singulares. No entendimento tradicional dos antigos juristas, a equidade era uma espécie
de corretivo do rigor da lei, um “amaciador” que atenua com base na misericórdia e em
sentimentos benignos o princípio dura lex sed lex (com todos os riscos da
imprevisibilidade que isto implica).

10
Cfr. Art. 4.º. alínea a) do Código Civil.
11
E como exemplos, temos as soluções encontradas pelos artigos 489.º, n.º 1, e 494.º do Código Civil em
que o recurso à equidade é permitida.
12
Por exemplo, o artigo 483.º do Código Civil.
Resumindo, de tudo o que foi exposto podemos concluir que a ideia geral da justiça não
é facilmente concretizável e depende sempre das realidades que o direito enfrenta.

A segurança jurídica
Além da realização da justiça também a criação de segurança jurídica e certeza constitui
uma finalidade essencial do direito.

Sabemos que, para viver livre e tranquilamente em sociedade, os homens têm de manter-
se dentro dos quadros normativos estabelecidos pelo direito, ou seja, devem respeitar
(para além das regras ordenadoras das várias instituições sociais que são as normas de
conduta social) sobretudo as leis. São unicamente as leis que contêm as regras jurídicas
plasmadas pelo direito objetivo que, por sua vez, reconhece ou atribui os direitos
subjetivos.

As regras jurídicas conferem uma segurança ordenadora específica e própria em virtude


da sua positivação no direito legislado e da garantia da sua observância pelo
funcionamento correto do poder coercivo do Estado (policial, administrativo ou judicial).
Sem esta segurança oferecida pelo direito não é possível haver uma convivência estável
entre os homens e também não se pode desenvolver uma economia moderna; esta precisa
da confiança decorrente da estabilidade das normas e da previsibilidade da sua aplicação.

Em geral corresponde à convivência entre os homens que tanto as regras de conduta social
como as leis são voluntariamente respeitadas sem qualquer necessidade coerciva. Quer
dizer, as regras são aceites por serem sentidas como adequadas ou justas ou, pelo menos,
são toleradas. Aliás, sem estes pressupostos uma sociedade não pode sobreviver; por
outro lado, a sociedade também não pode dispensar da garantia assegurada pelos órgãos
estaduais13.

Quando falamos da segurança jurídica estão em causa:

a) a paz social, tutelando as pessoas e os seus bens, prevenindo ou punindo as


agressões contra as pessoas e bens;

13
J. Baptista Machado refere que “… o próprio desenvolvimento do tráfico jurídico moderno é impossível
sem esta segurança adicional constituída pela garantia jurídica. Designadamente, os valores económicos
em circulação adquirem essa qualidade de valores contabilizáveis e transaccionáveis por força da confiança,
e esta confiança é fundamentalmente obra da garantia jurídica de que o direito se reveste. … A exigência
de segurança pode, porém, conflituar com a exigência de justiça. Justiça e segurança acham-se numa relação
de tensão dialéctica”.
b) a certeza jurídica, no sentido de nos conferir segurança quanto à previsibilidade
dos efeitos jurídicos dos nossos atos e decisões que foram praticados de acordo e
dentro dos quadros legais estabelecidos que garantem e, ao mesmo tempo,
também delimitam a liberdade das nossas decisões;

c) a segurança dos particulares perante o Estado cujos órgãos devem agir em


consonância com o princípio da legalidade, quer dizer, devem atuar sempre com
base numa justificação prevista na lei;

d) a imparcialidade e a independência dos tribunais; e

e) a segurança social14.

A relação entre justiça e segurança

Uma relação de sintonia


A segurança jurídica traz ordem e paz social e deve estar ao serviço da ideia da justiça e
legitimar-se perante ela. A ideia de justiça por seu lado, subjacente às leis, deve ter a
aceitação da sociedade à que as leis se dirigem e deve acompanhar a evolução desta
sociedade. Há uma certa comunicação, uma interação, entre quem faz as leis e o sentir da
sociedade. Quer dizer, a “mentalidade legislativa” deve ter em consideração a realidade
vivida pelas pessoas às quais as leis se destinam. No caso de isto não se verificar, as leis
desfasadas da realidade podem acabar por constituir um mero colete-de-forças. As leis
podem ser iníquas justamente por terem deixado de estar ao serviço da justiça. A
segurança criada deste modo já não contribui para a paz social. Situações muito graves
de dessintonia entre as leis e as convicções de justiça existentes na realidade social podem
legitimar o direito à resistência.

Há muitas razões em virtude das quais a lei considera a segurança como particularmente
relevante como sucede, por exemplo, quando estão em causa o estado civil das pessoas e
sua capacidade negocial, ou a atribuição (e o conteúdo) de direitos patrimoniais, ou a
circulação de bens onde o comércio jurídico exige confiança, estabilidade e

14
Como a exigência do direito ao trabalho ou, na sua falta, a disponibilização de meios de subsistência
condignos com base na justiça distributiva ou social.
previsibilidade das regras jurídicas, ou no que respeita à fixação de prazos. Aqui as
relações entre justiça e segurança estão em sintonia.

Situações de (aparente) conflito entre justiça e segurança


As relações entre justiça e segurança podem, todavia, surgir como difíceis em
determinadas situações em que a praticabilidade do direito pode exigir, aparentemente,
que o valor da segurança prevaleça sobre o da justiça. Mas, analisando bem as situações
em questão constatamos que uma verdadeira contradição entre justiça e segurança não se
verifica: também a segurança se baseia numa ordem jurídica legitimada pela ideia da
justiça que pondera os interesses em causa. À semelhança do que observámos acerca do
ius strictum e do ius aequum, eles não se contradizem, mas têm como finalidade comum
encontrar uma solução justa para um problema. Ora, também as relações entre justiça e
segurança são complementares à procura da obtenção de um resultado adequado e justo.

Podemos, a seguir, destacar alguns exemplos em que podemos encontrar situações de


(aparente) conflito entre as ideias de segurança e de justiça:

a) O princípio expresso no artigo 6.º do Código Civil que determina que a ignorância
ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as
pessoas das sanções nelas estabelecidas, ou seja, há segurança na aplicação da lei;

b) O caso julgado, quer dizer, quando há um litígio o processo vai a julgamento num
tribunal e termina com uma sentença transitada em julgado (= definitivo, não
recorrível)15. Esta sentença pode ser injusta, pois o tribunal decidiu, como não
pode deixar de ser, com base na “verdade processual”16 e não com base em
elementos extraprocessuais (ou difusos). Pode ser que a “verdade verdadeira” seja
outra mas acabou por não ser considerada pelo tribunal porque não chegou ao seu
conhecimento devido a insuficiências humanas17.

Contudo, havendo trânsito em julgado, o mal está feito. Com o trânsito em julgado
a lei opta, em benefício da segurança (ou da certeza), por pôr termo ao litígio –

15
A noção de trânsito em julgado consta do art. 628.º do Código de Processo Civil.
16
Quod non est in actas non est in mundo.
17
Como por exemplo, erradas interpretações e aplicações das leis por parte do julgador, ou mentiras
proferidas que não se conseguiram desmascarar, a não apresentação de provas ou a sua apreciação errada
ou a não admissão das provas que foram apresentadas fora de prazo ou que foram erroneamente
consideradas como irrelevantes.
que se arrastou ao longo do processo – e chegar a um fim para haver paz (embora
para a parte vencida a paz possa se amarga). Mas o caso julgado nem sempre
significa o fim definitivo: há casos excecionais em que a lei, precisamente para
fazer justiça, permite a revisão de uma decisão transitada em julgado18;

c) A não retroatividade da lei19, sendo a retroatividade uma anomalia que pode ser
um atentado às pessoas atingidas; a não retroatividade da aplicação de uma lei
satisfaz a exigência da segurança e corresponde normalmente também à
preservação da justiça;

d) O decurso de prazos, que determina a caducidade de direitos 20, a prescrição21 de


direitos, e a usucapião22. A caducidade opera ipso iure, sendo apreciada
oficiosamente pelo tribunal e não necessita de ser invocada23. Só os direitos
potestativos podem caducar. A prescrição, pelo contrário, para ser eficaz, tem que
ser invocada por quem dela beneficia e são os direitos de crédito que podem
prescrever24. O mesmo sucede com a usucapião, também designada de “prescrição
aquisitiva”, que deve ser invocada por quem dela beneficia25;

e) A inobservância de formalidades, nomeadamente formalidades registrais. Estas


formalidades foram especialmente concebidas em ordem a proteger a confiança e
a segurança do tráfico jurídico negocial mediante a inscrição de certos factos
jurídicos em registos públicos26. Consideremos um exemplo do registo
automóvel, que segue a lógica do registo predial. O contrato da aquisição de um
automóvel está sujeito a registo. Se o vendedor de um automóvel, devidamente
inscrito como o seu proprietário, o vender a um primeiro adquirente é este que se
torna o seu proprietário. Mas se este não regista o seu contrato de aquisição, pois
foi negligente, o vendedor continua inscrito como proprietário (em
desconformidade com a realidade jurídica, entretanto alterada). Se o vendedor se

18
Sobre o carácter excecional do recurso de Revisão e situações em que o mesmo é admissível, veja-se o
art. 696.º e seguintes do Código de Processo Civil.
19
Cfr. artigos 5.º, n.º 1, e 12.º, n.º 1, do Código Civil e art. 29.º da Constituição da República Portuguesa.
20
A caducidade extingue o direito.
21
A prescrição enfraquece o direito, não o extingue.
22
Refere-se este conceito jurídico à possibilidade de se adquirir um direito por “prescrição aquisitiva”.
23
Cfr. Artigos 298.º e 333.º do Código Civil.
24
Cfr. Artigos 298.º, 301.º, 303.º e 304.º do Código Civil.
25
Cfr. Artigos 1287.º e 1292.º do Código Civil.
26
Falamos aqui de registo civil, registo predial, registo comercial, registo automóvel, registo de navios ou
registo de aeronaves.
aproveita disso e dispõe de novo a favor de um segundo comprador que confia na
inscrição do registo, que mantém a aparência da propriedade em nome do
vendedor, e o segundo comprador, sendo uma pessoa diligente, regista o seu
próprio contrato de aquisição em primeiro lugar, ele adquire a propriedade (à custa
do comprador que não registou). Desta forma, a lei penaliza (castiga) a
negligência de quem não registou e, com a ameaça desta penalização, quer
incentivar a efetivação do registo.

As situações em que a segurança prevalece são o resultado de opções ponderadas da lei


que as considera justas e adequadas, porque põem termo a incertezas e pretendem criar
paz, embora neste exemplo em que é dada prevalência, pelo registo, ao segundo
adquirente, possa suscitar sérias dúvidas pois a lei aceita um resultado como bom, não
obstante ele ser a consequência de uma burla praticada anteriormente pelo vendedor.

O facto é que não se pode afirmar que a segurança prevalece sobre a justiça, mas antes
que existe uma complementaridade entre ambas.

Da técnica legislativa e a segurança jurídica


Para oferecer a segurança indispensável à convivência humana, as leis devem ser claras
e precisas na sua formulação, sem disfarces, com as suas finalidades bem delimitadas e
com os seus conceitos e conteúdos bem definidos e determinados. Por exemplo: o artigo
122.º define quem é menor, o artigo 138.º diz quem é o maior que beneficia das medidas
de acompanhamento e o artigo 140.º, n.º 1, explica a finalidade da medida, o artigo 204.º
circunscreve o que são coisas imóveis, o artigo 262.º dá-nos a noção da procuração,
enquanto o artigo 397.º esclarece a obrigação ou o artigo 1305.º o conteúdo do direito da
propriedade.

Mas muitas vezes, a lei recorre a conceitos jurídicos indeterminados ou a cláusulas gerais,
o que sucede em inúmeros preceitos legais, e então parece que a lei quer desmentir a
necessidade da clareza no que respeita à finalidade da norma e que desconsidera a
exigência da precisão quanto ao conteúdo das suas formulações, parecendo deste modo
minar ou subverter a segurança jurídica que deve garantir em primeiro lugar.

Neste contexto temos que ter em conta que as palavras usadas pelas leis estão sujeitas à
evolução linguística que acaba por influir no seu sentido e também no conteúdo dos
conceitos. Basta ler um texto antigo para nos apercebermos como o uso linguístico
entretanto mudou, como o sentido de um conceito é agora diferente. Mas já não temos a
mesma situação quando a lei utiliza, logo à partida, conceitos jurídicos sem um conteúdo
preciso, recorrendo a conceitos jurídicos indeterminados ou a cláusulas gerais.

Os conceitos jurídicos indeterminados


Os conceitos jurídicos indeterminados apresentam-nos um conteúdo que é concretizado
(= determinado) na altura da solução de um caso concreto. Aqui há muitos exemplos que
podemos aduzir: assim, os três conceitos empregues no artigo 127.º, n.º 1, alínea b)
[negócio da “vida corrente” do menor, ao alcance da sua “capacidade natural”,
implicando despesas de “pequena importância”]; as “concepções dominantes no
comércio jurídico” (artigo 253.º, n.º 2) cuja observância faz com que um dolo seja lícito;
a “ordem pública” (artigos 280.º, n.º 2, e 281.º) ; o “fim económico e social” do direito
(artigo 334.º); o “bom pai da família” (artigos 146.º, n.º 1, 487.º, n.º 2, e 1446.º); o animal
de companhia (artigo 483.º-A, n.º 3); a “prudência normal” (artigo 621.º); o “bem da
família” (artigo 1671.º, n.º 2); o “superior interesse da criança”, aliás definido por
terceiros (artigo 1794.º) ; e, historicamente situado, o “espírito das forças armadas”
(MFA); além de muitos outros tais como ser essencial, interesse público; violência, casos
absolutamente excecionais, fundamentação pertinente, etc.

Podemos acrescentar que aos conceitos indeterminados pertencem também os conceitos


gradativos (exemplos: a “pequena importância”, referida no artigo 127.º, n.º 1, alínea b),
a “culpa grave” ou “mera culpa”, em contraste com o dolo, mencionada no artigo 483.º).

As cláusulas gerais
Diferente são as cláusulas gerais. Cláusulas gerais incluem conceções ou reflexões que
têm uma conotação valorativa. Por exemplo: as “injúrias graves” (que o artigo 4.º da Lei
do Divórcio de 1910 contava entre as causas do divórcio), a “violação culposa dos deveres
conjugais” (que pela sua gravidade ou reiteração comprometia a vida em comum, assim
o artigo 1779.º do Código Civil, na redação de 1977, entretanto revogado), os “bons
costumes” (artigos 280.º e 281.º, em que a lei, excecionalmente, juridifica a moral, ou
seja, os valores morais positivos gerais, vigentes na sociedade), a “justa causa” (artigo
1170.º, n.º 2), a “violação culposa dos deveres para com os filhos” (artigo 1915.º, n.º 1),
a “boa fé”, um conceito que perpassa todo o articulado do Código Civil, entendida como
padrão ou critério de conduta num sentido objetivo (ver nomeadamente os artigos 227.º,
334.º, 762.º), etc. Aqui a lei estabelece diretrizes gerais a aplicar aos casos concretos que
o juiz decide.
O conceito da boa fé, aqui referida e entendida como um padrão de conduta, uma atitude
que as pessoas devem assumir, é uma regra ou norma de comportamento (Treu und
Glauben) e como tal um critério normativo. Falamos da boa fé objetiva.

Contudo, o conceito da boa fé tem ainda um sentido subjetivo, e aqui falamos da boa fé
subjetiva que corresponde a um estado de espírito como saber ou ignorar, ter ou não ter
conhecimento, confiar ou acreditar (gutgläubig ou bösgläubig). No caso da boa fé em
sentido subjetivo a lei não deixa para todos os casos o conteúdo da cláusula geral
completamente em aberto para ele ser concretizado depois ao resolver um caso concreto,
mas sente a necessidade de o elucidar de acordo com os contextos e a atitude subjetiva e
mental em que o ato a avaliar é praticado como podemos ver nos exemplos seguintes:
artigo 892.º (a lei não define), artigo 291.º, n.º 3 (a lei define), artigo 243.º, n.º 2 (a lei
define, embora num sentido diferente do artigo 291.º, n.º 3) e o artigo 119.º, n.º 3, onde a
lei a define pela negativa, ou seja, pela má fé)27.

Da utilidade do uso de conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais


Nem sempre é fácil dizer se uma dada formulação legal deve ser considerada uma
cláusula geral ou um conceito jurídico indeterminado (é o que sucede em relação aos
“bons costumes”). Em ambos os casos refletem-se conceções económicas, sociais,
morais, o sentir relativo à justiça, etc. que, como sabemos, evoluem e se modificam.

O recurso a conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais e permite adaptar a


rigidez do texto das normas legais à evolução e a novas realidades que a lei deve
acompanhar. Deste modo, eles conferem um grau apreciável de flexibilidade ao julgador
na aplicação da lei, que assim se encontra sempre atualizada, mas ao mesmo tempo
introduzem alguma insegurança e dificultam a previsibilidade das decisões judiciais (ou
administrativas), pois os contornos das cláusulas revelam-se fluídos e os conteúdos dos
conceitos esbatem-se.

Sobretudo em períodos de rápida mudança social (ou de crise social) as cláusulas e os


conceitos referidos – se, por um lado, conferem um grande grau de flexibilidade à
aplicação das leis ao permitir a adaptação da sua rigidez normativa a novas realidades –
introduzem, por outro lado, alguma insegurança e dificultam a previsibilidade das
decisões judiciais. Todavia, o perigo enorme que representam é a sua utilização baseada

27
Pode ler-se a este respeito, Raúl GUICHARD, À volta do princípio da boa fé, Revista de Ciências
Empresariais e Jurídicas, N.º 26, 2015, pp. 33-87.
em critérios políticos e ideológicos e não de justiça (como, aliás, no passado já sucedeu
em larga escala).

Assim podemos tirar as seguintes conclusões:

Sendo fundamental que as normas jurídicas aceitam e protegem a liberdade, cada homem
tem direito a um máximo da liberdade (pessoal e económica) que é conciliável com a
idêntica liberdade dos outros.

Cada homem tem em relação a qualquer outro homem com que vive em sociedade o
direito de ser respeitado quanto à sua dignidade pessoal e quanto à sua vida, saúde e
integridade física e mental.

Conclusões
Atendendo aos elementos da justiça, deve haver procedimentos criteriosos e equilibrados
na aquisição (atribuição) e protecção dos bens. Quer dizer, a distribuição legítima dos
bens em resultado da justiça comutativa (do ut des) é de aceitar. Os direitos adquiridos
legitimamente (isto é, de acordo com a ordem jurídica) devem ser acatados. Neste sentido,
a ordem jurídica protege o adquirido, havendo naturalmente quem adquiriu mais e quem
adquiriu menos.

Deve haver também, no que respeita à justiça contributiva, igualdade da obrigação e


proporcionalidade na distribuição dos encargos.

Por fim, é de respeitar e cumprir o princípio da justiça distributiva a favor dos realmente
necessitados.

De acordo com as exigências da justiça distributiva (e justiça social) a cada homem deve
ser garantido o mínimo de existência (todos – e isto vale desde já para deficientes, vítimas
de guerras, pessoas com origens desfavorecidas, espécies desconsideradas, etc. – têm o
direito a uma vida humana digna, simplesmente devido à sua condição de ser humano).
Portanto, é preciso criar quadros legais que abarquem estas situações de desfavor para
que a justiça possa funcionar. Os desfavorecidos devem beneficiar, atendendo ao seu grau
de necessidade, de uma redistribuição diferenciada dos bens. Por outro lado, sempre que
possível devem existir, e devem ser estimuladas (!), oportunidades para que os
desfavorecidos possam libertar-se da sua condição.

A situação jurídica deve ser transparente, minimamente estável e percetível e as decisões


dos órgãos da justiça devem ser previsíveis. Deve haver a garantia de que a aplicação
estrita das normas jurídicas é efetivamente o caso normal. A credibilidade e eficácia do
direito dependem do aparelho de coerção do Estado e da independência e isenção dos
tribunais que fazem cumprir as leis.

Por fim acrescenta-se ainda um aspeto, não jurídico: as leis devem também ter em conta
a eficiência económica das suas normas com o objetivo de uma alocação otimizada dos
recursos para evitar o desperdício de meios, sendo certo, todavia, que a eficiência
económica não é um critério de justiça e ainda menos equivale à justiça nem a garante.
Não se pode reduzir o homem a raciocínios económicos.

Páginas a Ler: J. Baptista Machado, pp. 55-59 (59-62); Ángel Latorre, pp. 46-65.

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