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O
TEORIA GERAL DO DIREITO PRIVADO
1.1. INTRODUÇÃO.
A dicotomia remonta aos juristas da Roma Antiga, sendo célebre a lição de Ulpiano: “Publicum jus
est quod ad statum rei romanae spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem” (“o direito público diz
respeito ao estado da coisa romana, o privado à utilidade dos particulares” – cf. Ulpiano, Digesto,
1.1.1.2), e se baseia na elementar distinção entre os interesses situados na esfera particular, de um ou mais
sujeitos privados, e os interesses que se põem na esfera pública, que são aqueles relativos ao Estado e à
sociedade como um todo.
Diversos são os critérios para a diferenciação dos campos do Direito Público e do Direito Privado, dos
quais os mais conhecidos são os seguintes: (a) critério do interesse: examina-se a predominância, em uma
situação ou relação jurídica específica, do interesse privado ou do interesse público, para se determinar tal
situação ou relação como de Direito Privado ou de Direito Público, respectivamente; (b) critério da
qualidade dos sujeitos: verifica-se se há a presença apenas de sujeitos privados, caso em que se tem uma
relação direito privado, ou se se dá a intervenção do Estado ou de outros entes públicos na relação jurídica,
hipótese em que a relação seria de direito público; e (c) critério da posição dos sujeitos: observa-se se os
sujeitos se encontram em situação de igualdade, nota característica do direito privado (relação de
coordenação), ou se há posição de soberania de parte de um ente estatal, caso em que se tem a prevalência do
direito público (relação de subordinação).
A distinção entre Direito Público e Direito Privado não deve ser absoluta, servindo, apenas, para
fins taxonômicos e didáticos, mormente considerando que a distinção a partir do interesse predominante é
insatisfatório, por existirem inúmeros interesses particulares na Constituição Federal e integrantes no
domínio do Direito Público (p. ex., proteção dos direitos fundamentais); de outra parte, em muitos casos no
Direito Privado há imposição unilateral de obrigações a uma parte pela vontade da outra parte (p. ex,
contrato por adesão).
Ao ramo do Direito Público, que versa sobre as coisas do Estado, pertencem áreas como o Direito
Constitucional, o Direito Administrativo, o Direito Tributário, o Direito Penal e o Direito Processual, entre
outras.
Ao Direito Privado cabe disciplinar os interesses individuais e coletivos no seio da sociedade,
abrangendo: (a) Direito Civil, este tradicionalmente dividido nas disciplinas direito das obrigações, direito
das coisas, direito de família e direito das sucessões; (b) Direito Empresarial, dividido em Direito das
Sociedades ou Empresarial e Títulos de Crédito.
Comumente às diversas disciplinas do Direito Privado, tem-se a Teoria Geral do Direito
Privado, que contém, fundamentalmente, o regime das pessoas, dos bens e dos fatos jurídicos.
1.1.1. Origem Histórica do Direito Privado: Código de Hamurabi (Babilônia), Decálogo Hebreu,
Código de Manu (Índia), Lei das XII Tábuas e Corpus Iuris Civilis (Roma), Direito canônico e o
Alcorão, O Código de Napoleão (França).
Data de 1902 a localização em Susa, no Irã, após escavação arqueológica, do Código de Hamurabi, a
mais antiga consolidação de leis, que disciplinou a civilização babilônica. Acredita-se que tenha sido escrito
pelo rei Hamurábi, aproximadamente em 1772 a.C. Decorre deste código o princípio de Talião: “olho por
olho, dente por dente”.
Quanto ao judaísmo, por volta de 1.300 a 1.400 antes de Cristo, destaca-se o Decálogo ditado a
Moisés, ressaltando-se que a legislação mosaica está reunida no Pentateuco, dividido em cinco livros:
Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
Redigido entre os séculos II a.C. e II d.C. em forma poética, o Código de Manu, com regras expostas
em versos, consubstancia a legislação do povo indiano, com preceitos de natureza religiosa, moral e política,
pelo qual foi estabelecido o sistema de castas na sociedade Hindu.
Destacável a realização romana da Lei das XII Tábuas, em 451 a.C. e, em 450 a.C., consolidando
definições sobre direitos privados e procedimentos.
Não se pode desprezar a disciplina do Direito Canônico caro ao cristianismo e o Alcorão, texto
sagrado do Islã, composto por uma série de revelações de Alá (Deus) a Maomé.
Sobreveio, então, a Era da Codificação. Acerca disso, “Uma série de fatores contribuiu para o surgimento da
era da codificação. Em primeiro lugar, a doutrina da divisão dos poderes, desenvolvida por Montesquieu e já concebida, na
Antiguidade, por Aristóteles, pela qual a competência de ordenar o Direito competia ao Poder Legislativo. Em segundo lugar, o
jusnaturalismo racionalista, dominante nos séculos XVII e XVIII, que considerava o Direito um produto da razão, baseado na
natureza humana. Com o poder de sua inteligência o homem poderia criar os padrões de regência da vida social, as normas jurídicas.
A Escola do Direito Natural defendeu a existência de um Direito eterno, imutável e universal, não apenas nos princípios mas também
no conteúdo e que poderia ser deduzido, more geométrico, da razão. O racionalismo promoveu, no plano teórico, o rompimento com
o passado. O Direito não dependia das tradições, não devia ser condicionado pelo que pensaram as gerações anteriores. A razão tinha
o poder de ordenar os passos do presente” [NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 36ª ed. Rio de Janeiro:
Forense. 2014, p. 17].
Já no final do século XVIII, na França, eclode a Revolução Francesa, marcada pela queda da Bastilha,
em 14 de julho de 1789, seguindo-se o fim da monarquia e a Assembleia Nacional Constituinte, que impôs
codificação, atendida por Napoleão Bonaparte 9, que ascendeu ao poder, e outorgou o Code Civil dês
Français, em 21 de março de 1804. Embora não tenha sido pioneiro, referido Código foi um marco na
positivação do direito e no estudo deste como sistema.
Acerca da codificação, impende registrar polêmico debate entre Thibaut e Savigny.
“Na doutrina, o Código Napoleão provocou, na Alemanha, uma célebre polêmica entre os juristas Thibaut e Savigny. Em 1814, Thibaut,
professor da Universidade de Heidelberg, publicou a obra Sobre a Necessidade de um Direito Civil Geral para a Alemanha, defendendo a
codificação do Direito nacional. A sua exposição é considerada o melhor estudo quando às vantagens da codificação do Direito. Thibaut
despertou a atenção da elite intelectual alemã, quanto à importância do código, não apenas para efeito de organização do ordenamento
jurídico, mas também como fator de unidade nacional.
O Direito Positivo deveria atender, na opinião de Thiabaut, a duas exigências, uma de natureza formal e outra de ordem material. A primeira
dizendo respeito à clareza e objetividade das normas jurídicas e, a segunda, ao conteúdo das instituições, que deveria estar de acordo com a
vontade popular.
(...)
No mesmo ano, Savigny publicou um livro intitulado Da Vocação de Nossa Época para a Legislação e a Ciência do Direito, no qual
combateu as ideias de Thibaut, defendendo, ao mesmo tempo, o costume como a fonte mais legítima de expressão do Direito. Para Savigny a
codificação possuía a inconveniência de não permitir que o Direito acompanhasse a evolução social, provocando o seu esclerosamento. Para
ele ‘...todo Direito se origina primeiramente do costume e das crenças do povo e, depois, pela jurisprudência e, portanto, em todas as partes,
em virtude de forças interiores, que atuam caladamente, e não em virtude do arbítrio do legislador” [NADER, Paulo. Introdução ao Estudo
do Direito. 36ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2014, p. 217].
Por seu turno, a revogação global se dá sobrevindo lei nova disciplinando inteiramente a matéria
tratada pela lei antiga.
9
"Minha verdadeira glória não foi ter vencido quarenta batalhas; Waterloo apagará a lembrança de tantas vitórias. O que ninguém
conseguirá apagar, aquilo que viverá eternamente, é o meu Código Civil" Napoleão Bonaparte
10
Eis o método burocrático da gênese do positivismo: (a) autoridade competente, (b) procedimento adequado e (c) validade fundada na
norma superior.
11
Art. 1o Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada.
12
LC n. 95/98, art. 9º. A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas.
13
Diálogo das fontes e a aplicação harmônica do Código Civil e Código de Defesa do consumidor.
14
§ 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
15
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois
turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda
Constitucional nº 45, de 2004) (Vide ADIN 3392) (Vide Atos decorrentes do disposto no § 3º do art. 5º da Constituição) .
Possível que uma lei revogadora seja revogada, restaurando a vigência da lei anterior, fenômeno
denominado repristinação, desde que haja previsão expressa nesse sentido [art. 2, §3º 16]. Há, no entanto,
efeito repristinatório caso seja declarada inconstitucional a norma revogadora. A propósito: “O repúdio ao ato
inconstitucional decorre, em essência, do princípio que, fundado na necessidade de preservar a unidade da ordem jurídica
nacional, consagra a supremacia da Constituição. Esse postulado fundamental de nosso ordenamento normativo impõe que
preceitos revestidos de menor grau de positividade jurídica guardem, necessariamente, relação de conformidade vertical com as
regras inscritas na Carta Política, sob pena de ineficácia e de consequente inaplicabilidade. Atos inconstitucionais são, por isso
mesmo, nulos e destituídos, em consequência, de qualquer carga de eficácia jurídica. A declaração de inconstitucionalidade de
uma lei alcança, inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados, eis que o reconhecimento desse supremo vício jurídico, que
inquina de total nulidade os atos emanados do Poder Público, desampara as situações constituídas sob sua égide e inibe - ante a
sua inaptidão para produzir efeitos jurídicos válidos - a possibilidade de invocação de qualquer direito. A declaração de
inconstitucionalidade em tese encerra um juízo de exclusão, que, fundado numa competência de rejeição deferida ao Supremo
Tribunal Federal, consiste em remover, do ordenamento positivo, a manifestação estatal inválida e desconforme ao modelo
plasmado na Carta Política, com todas as consequências daí decorrentes, inclusive a plena restauração de eficácia das leis e das
normas afetadas pelo ato declarado inconstitucional. Esse poder excepcional - que extrai a sua autoridade da própria Carta Política
- converte o Supremo Tribunal Federal em verdadeiro legislador negativo .” [STF, ADIn 652, Rel. Min. Celso de Mello, j.
02.04.1993]. Aliás, inexistirá efeito repristinatório sendo igualmente inconstitucional a norma anterior
revogada por norma inconstitucional [cf. STF, ADI n. 2.574, rel. Min. Carlos Velloso].
1.1.2.4. Aplicação da lei no tempo [direito intertemporal]: direito adquirido, ato jurídico perfeito e
coisa julgada.
Pelo tempo conformar o desenvolvimento social e tornar premente a necessidade de novas regras
jurídicas, necessário o estudo do direito intertemporal e o exame da retroatividade, imediatidade e
ultratividade normativa.
Nesse contexto, há fatos passados (consumados integralmente sob a vigência de determinada norma
jurídica), fatos presentes (fatos praticados à luz da regra nova), fatos futuros (fatos que serão praticados
depois da regra nova) e fatos pendentes 17 (fatos praticados à luz de uma regra com produção de efeitos sob a
vigência de outra).
Com relação aos fatos pendentes é que se torna necessária a compatibilização da eficácia da
norma jurídica superveniente e o direito adquirido.
O direito adquirido é direito fundamental (CF, art. 5º, XXXVI), sob o manto da cláusula pétrea (CF,
art. 60, §4º).
A retroatividade da norma jurídica pode ser máxima (ingerência sobre efeitos de fatos já consumados),
média (ingerência sobre efeitos pendentes de fatos praticados antes da entrada em vigor da nova regra
jurídica) ou mínima (incidência sobre efeitos previsíveis futuros de fatos praticados no passado depois da
entrada em vigor da nova regra).
O ordenamento jurídico brasileiro adota a retroatividade mínima, incidindo a nova regra
imediatamente, com observância do direito adquirido.
A propósito do tema direito adquirido, mister destacar a influência da teoria subjetivista de Gabba,
pela qual a norma pode retroagir, desde que resguardado o direito subjetivo adquirido, isto é, [atos
constitutivos do direito] consumado segundo a lei vigente embora não exercido à luz desta.
Ainda, impende observar que, segundo a teoria objetivista de Roubier, a norma incide
imediatamente.
Como é possível extrair do art. 6º da LINDB, essas duas teorias conformaram a aplicação do direito
intertemporal brasileiro, incidindo a nova regra jurídica imediatamente, mas respeitando o direito adquirido,
o ato jurídico perfeito e a coisa julgada18 [CF, art. 5º, XXXVI].
Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.
Significa dizer que perfeito será o ato jurídico que preencheu todos os seus elementos constitutivos. A
propósito, José Afonso da Silva observa: “ A Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º, §1º, reputa ato jurídico perfeito o já
consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Essa definição dá a ideia de que ato jurídico prefeito é aquela situação
consumada ou direito consumado, referido acima, como direito definitivamente exercido. Não é disso, porém, que se trata. Esse
direito consumado é também inatingível pela lei nova, não por ser ato perfeito, mas por ser direito mais do que adquirido, direito
esgotado. Se o simples direito adquirido (isto é: direito que já integrou o patrimônio, mas não foi ainda exercido) é protegido contra
interferência da lei nova, mais ainda o é o direito já consumado ” [SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 380/381].
Importa “distinguir duas diferentes espécies de situações jurídicas: (a) as situações jurídicas individuais, que são formadas
por ato de vontade (especialmente os contratos), cuja celebração, quando legítima, já lhes outorga a condição de ato jurídico perfeito,
inibindo, desde então, a incidência de modificações legislativas supervenientes; e (b) as situações jurídicas institucionais ou
estatutárias, que são formadas segundo normas gerais e abstratas, de natureza cogente, em cujo âmbito os direitos somente podem ser
considerados adquiridos quando inteiramente formado o suporte fático previsto na lei como necessário à sua incidência. Nessas
16
§ 3o Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.
17
O debate clássico entre o italiano Gabba e o francês Paul Roubier tinha por objeto solucionar a seguinte pergunta: que se passa quando, de
um ato praticado no passado, na vigência da lei velha, decorrem efeitos futuros que apenas se concretizam quando a nova lei já se encontra
em vigor?
18
Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 1º Reputa-se
ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. § 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o
seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida
inalterável, a arbítrio de outrem. § 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.
situações, as normas supervenientes, embora não comportem aplicação retroativa, podem ter aplicação imediata ” [RE n. 211304,
rel. Marco Aurélio, rel. p/ Acórdão Min. Teori Zavascki, j. 29.04.2015].
Enquanto no ato jurídico perfeito os requisitos constitutivos do direito já foram efetivados
concretamente, no direito adquirido o seu titular, embora reúna todas as condições necessárias para o
implemento do direito, não o exerceu.
Para melhor elucidar a distinção entre ato jurídico perfeito e direito adquirido, importa ordenar
cronologicamente [a] a expectativa de direito; [b] o direito adquirido; [c] e o direito consumado.
Confira-se lição de Luis Roberto Barroso:
A expectativa de direito identifica a situação em que o fato aquisitivo do direito ainda não se completou quando sobrevém uma nova norma
alterando o tratamento jurídico da matéria. Neste caso, não se produz o efeito previsto na norma, pois seu fato gerador não se aperfeiçoou.
Entende-se, sem maior discrepância, que a proteção constitucional não alcança esta hipótese, embora outros princípios, no desenvolvimento
doutrinário mais recente (como o da boa-fé e o da confiança), venham oferecendo algum tipo de proteção também ao titular da expectativa de
direito.
Na seqüência dos eventos, direito adquirido traduz a situação em que o fato aquisitivo aconteceu por inteiro, mas por qualquer razão ainda
não se operaram os efeitos dele resultantes. Nesta hipótese, a Constituição assegura a regular produção de seus efeitos, tal como previsto na
norma que regeu sua formação, nada obstante a existência da lei nova. Por fim, o direito consumado descreve a última das situações
possíveis – quando não se vislumbra mais qualquer conflito de leis no tempo – que é aquela na qual tanto o fato aquisitivo quanto os efeitos
já se produziram normalmente. Nesta hipótese, não é possível cogitar de retroação alguma.
De modo esquemático, é possível retratar a exposição desenvolvida na síntese abaixo:
a) Expectativa de direito: o fato aquisitivo teve início, mas não se completou;
b) Direito adquirido: o fato aquisitivo já se completou, mas o efeito previsto na norma ainda não se produziu;
c) Direito consumado: o fato aquisitivo já se completou e o efeito previsto na norma já se produziu integralmente.
Cumpre fazer uma nota final sobre o que se convencionou denominar de regime jurídico ou regime legal. O chamado regime
jurídico designa um espaço no qual, segundo a doutrina e, em especial, a jurisprudência, não há direito adquirido. Alguns exemplos citados
com freqüência para exemplificar essa figura são as relações que existem entre o servidor e o ente público que o remunera e entre os
indivíduos em geral e o padrão monetário existente no país. Daí a afirmação, sempre repetida, de que, e.g., não há direito adquirido do
servidor ao regime jurídico existente quando de sua entrada no serviço público, estando a lei nova autorizada a modificar esse regime mesmo
em relação àquelas pessoas que já eram, antes de sua entrada em vigor, servidores 48. Isso não afasta, contudo, a possibilidade de aquisição de
direitos mesmo na constância de relações disciplinadas por um regime jurídico, bastando para tanto que os fatos aquisitivos legalmente
previstos se realizem na sua integralidade. A prerrogativa de alterar unilateralmente as condições sob as quais se desenvolve o vínculo não
poderia ter o condão de afastar a proteção constitucional conferida às situações já aperfeiçoadas segundo as exigências do Direito então
vigente” [BARROSO, Luís Roberto. Em algum lugar do passado. Segurança jurídica, direito intertemporal e o novo Código Civil. In
https://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm, acesso em 02.ago.2020].
Assim sendo, evidente que a Constituição Federal [art. 5º, XXXVI], para conferir estabilidade às
relações jurídicas, dispôs que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada. Por seu turno, o art. 6º, §2º da LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro define o
instituto do direito adquirido como o “ direito que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aquele cujo começo
do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem ”. Se consumado o direito, não
há falar em direito adquirido, pois este pressupõe o seu não exercício, embora completados seus pressupostos
na vigência da lei do seu tempo de constituição, fato pelo qual não se confunde o direito adquirido com a
expectativa de direito, porquanto nesta é apenas provável a aquisição de um direito, dependente de um
acontecimento futuro, que se sujeita à disciplina da lei nova, que pode influenciá-la a partir do momento em
que começa a vigorar.
Por sua vez, coisa julgada é aquela da qual não caiba recurso.
1.1.2.5. Antinomia jurídica
Eventualmente, duas regras conflitantes podem apresentar-se para disciplina normativa de um
específico fato subjacente. Nesse contexto, haverá a denominada antinomia jurídica.
Há três metacritérios de solução de antinomias jurídicas: (a) cronológico, segundo o qual norma
posterior prevalece sobre norma anterior; (b) especialidade, pelo qual a norma especial prevalece sobre a
geral; (c) hierárquico, no qual a norma superior prevalece sobre a inferior
As antinomias são classificadas quanto aos critérios que envolvem em (a) antinomia de primeiro
grau, hipótese de conflito de normas envolvendo apenas um dos meta-critérios referidos; (b) antinomia de
segundo grau, quando o conflito envolve dois dos meta-critérios mencionados 19; e quanto à possibilidade
de solução do conflito em (a) aparente20 21, situação de conflito em que há, dentre os meta-critérios
mencionados, um que solucione o conflito; (b) real, hipótese em que não há, pelo menos inicialmente, dentre
os meta-critérios mencionados, um apto a solucionar o conflito. Dá-se na hipótese de conflito entre uma
norma geral e superior e outra especial e inferior. Nesse caso, não há forma de solucionar o conflito pelas
vias ordinárias. Em tese, prevaleceria a norma superior, devendo-se optar pela força da hierarquia. No
entanto, por vezes a solução prática não convence. A doutrina orienta dois caminhos para a solução do
conflito, um pela via do Poder Legislativo e outro do Judiciário. No âmbito legislativo, o correto seria a
criação de uma terceira norma, que resolvesse o problema da antinomia; no âmbito judicial, a solução seria a
aplicação do que ditam os artigos 4.º e 5.º da LINDB, isto é, ou juiz aplica a analogia, os costumes e os
19
Critérios: cronológico [lex posterior derogat legi priori] x hierárquico = prevalece o hierárquico [lex superior derogat legi inferiori];
cronológico x especialidade = prevalece a especialidade [lex especialis derogat legi generali]; especialidade x hierárquico = doutrina divergente,
para a maioria não há prevalência; para a minoria deve prevalecer o critério hierárquico.
20
Casos de antinomia de primeiro grau aparente: conflitando uma norma posterior com outra anterior, prevalece a primeira, pelo critério
cronológico; conflitando uma norma especial com outra geral, prevalece a primeira, emergencial que é o critério da especialidade; conflitando
uma norma superior com outra inferior, prevalece a primeira, pelo critério hierárquico.
21
Casos de antinomia de segundo grau aparente: conflitando uma norma especial e anterior com outra geral e posterior, prevalece o critério
da especialidade, valendo a primeira norma; conflitando uma norma superior e anterior com outra inferior e posterior, prevalece também a
primeira, pelo critério hierárquico.
princípios gerais de direito na solução da antinomia ou aplica a lei que melhor atenda às exigências do bem
comum.
1.1.2.6. Obrigatoriedade da lei e ineficácia
Da obrigatoriedade da lei decorre o fato de que ninguém pode se escusar de cumpri-la [art. 3º 22], por
presunção absoluta de conhecimento público [presunção jure et de jure], ficção jurídica ou necessidade
social. Acerca do aspecto da obrigatoriedade da lei, importa registrar inexistência de incompatibilidade com
a regra do art. 139, III, do Código Civil, segundo o qual é substancial o erro de direito, que não implicando
recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou principal do negócio jurídico, porque nesta hipótese,
vício de consentimento que é, o erro de direito recai sobre a manifestação da vontade, desconstituindo-a.
A despeito de obrigatória e vigente, porque não sobreveio lei revogadora, possível que a regra não seja
eficaz. Diversas hipóteses podem ser relacionadas para demonstrar ineficácia de regra vigente: (a)
caducidade, hipótese na qual, pela superveniência de situação cronológica ou factual prevista, a regra se
tornou inaplicável23; (b) desuso, configurável com a cessação do pressuposto fático de aplicação da norma 24;
(c) costume contra-legem, aquele que contraria a lei 25; (d) decisão do Supremo Tribunal Federal
declarando a lei inconstitucional em ação direta de inconstitucionalidade; (e) Resolução do Senado
cancelando a eficácia da lei declarada incidentalmente inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal (CF, art. 52, X); (f) Princípio da anterioridade da lei tributária (CF, art. 150, III, b); (g) lei que
altera o processo eleitoral [CF, art. 16].
1.1.2.7. Interpretação
Por sua vez, interpretar 26a lei consiste em determinar o significado e delimitar o alcance da
norma jurídica.
Diversos são os elementos de interpretação: (a) gramatical ou filológico: a interpretação é feita a
partir do valor semântico das palavras, sujeitando-se, além do provável problema de ambiguidade da
linguagem escrita adotada, ao denominado desacordo moral razoável decorrente da determinação semântica
de sentido da norma segundo um interesse particular, fruto mesmo da sociedade pluralista e diversificada; (b)
lógico: o raciocínio lógico ou científico autoriza a interpretação, ressaltando Recaséns Siches que,
diversamente do fenômeno natural, regido pela lógica silogística, para aplicação do direito, norma cultural de
aplicação prática na solução de condutas humanas com inúmeras variáveis, imperiosa a adoção da “Lógica
do Razoável”, de modo que a norma jurídica, enquanto produto cultural, deve ser operacionalizada segundo
os valores em conflito realmente em conflito, a fim de que o julgador eleja a melhor solução possível para o
caso que se apresenta; (c) sistemático: a interpretação considera o sistema jurídico; (d) teleológico: a
interpretação é orientada pela finalidade da norma jurídica. A propósito, “ Enquanto o reino da natureza é regido pelo
princípio da causalidade, onde os fenômenos são explicados por sua causa, uma vez que há um liame inexorável entre causa e efeito,
no mundo da cultura, que é o âmbito da experiência e criatividade humana, onde o Direito se insere, o princípio é o da finalidade. As
ações, símbolos, objetos, são compreendidos pelo fim que realizam. O fato teleológico é um dos elementos-chaves do processo de
cognição do Direito. Ao elaborar um estatuto legal o legislador é guiado por uma ideia de fim a ser alcançado. Do valor eleito, e
adotando o método dedutivo, ele compõe o ato legislativo. Cada norma deve estar comprometida com a teleologia da lei. Na
observação de Jean-Louis Bergel ‘O método teleológico, fundamentado na análise da finalidade da regra, no seu objetivo social, faz
seu espírito prevalecer sobre sua letra, ainda que sacrificando o sentido terminológico das palavras’ ” [NADER, Paulo. Curso
de Direito Civil. Parte Geral. V. 1. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2016, p. 129]; (e) histórico: o contexto
histórico orienta a definição do sentido e alcance da norma jurídica.
A interpretação, quanto à fonte, diz-se autêntica quando orientada pelo legislador; e não autêntica,
quando jurisprudencial27 ou doutrinária. Aliás, já se assentou que " a hermenêutica é imanente ao ato de julgar, de tal
sorte que a extração de outro sentido da lei, que não aquele expresso, não equivale à declaração de inconstitucionalidade, se
harmônico com o conjunto de normas legais pertinentes à matéria. Mutatis mutandis, como bem ponderado pelo Ministro Castro
Meira, 'a interpretação extensiva e sistemática da norma infraconstitucional em nada se identifica com a declaração de
inconstitucionalidade ou com o afastamento de sua incidência'" (AgRg no Ag 1424283/PA, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda
Turma, DJe 05/03/2012)” [AgRg no REsp 1.231.072/RS, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, Primeira
Turma, DJe 14/5/2012] [realce não original].
Por seu resultado, a interpretação pode ser considerada declarativa, extensiva ou restritiva.
1.1.2.1. Aplicação e integração da norma.
Advertiu o legislador, ao juiz, quanto à aplicação da norma jurídica, o dever de atender “aos fins
sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum ” (art. 5º). Na lição de Cândido Rangel Dinamarco, “ a grande e
legítima liberdade que o juiz tem ao julgar é liberdade de remontar aos valores da sociedade, captá-los e compreendê-los com
sensibilidade e com mais autêntica fidelidade a um universo axiológico que não é necessariamente o seu. Agindo dessa maneira, o
juiz coloca-se como válido canal de comunicação entre os valores vigentes na sociedade e os casos concretos em que atua. Isso não é
22
Art. 3o Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.
23
ex: leis de vigência temporária, embora haja quem sustente tratar-se de hipótese de regra auto revogável.
24
ex: o das tartarugas marinhas (perda do objeto).
25
ex: emissão de cheque pré-datado.
26
Conferir material complementar: NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Parte Geral. V. 1. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2016, p. 119/142,
especialmente modelos de interpretação: a) grau de liberdade do intérprete; b) Método da Escola da Exegese; c) Método histórico-evolutivo;
d) Revelação Científica do Direito; e) Lógica do Razoável; f) Direito Livre.
27
Entende o Superior Tribunal de Justiça, de forma pacífica, que a mudança do entendimento jurisprudencial se aplica a processos em
andamento. Vejamos: “A eventual mudança de jurisprudência na interpretação dos mesmos dispositivos legais não limita a aplicação do novo
entendimento apenas a casos posteriores, incidindo sobre processos também iniciados anteriormente a tal modificação” [STJ, AgInt nos EDv
nos EAREsp 846180-GO, 2ª Seção, rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 08/02/2017, DJe 13/02/2017].
criar normas, mas revelá-las de modo inteligente, sabido que a lei não é a fonte única e exclusiva do direito, mas também os
princípios gerais de direito” (Instituições de Direito Processual Civil, volume I, 4ª Edição, Malheiros Editores,
p.135).
Em decorrência do princípio da indeclinabilidade da jurisdição (non liquet), o juiz é obrigado a
decidir, ainda que não haja lei, o caso concreto, superando eventual lacuna (art. 4º 28), ao que se denomina
integração normativa.
Decerto, o ordenamento jurídico, entendido como conjunto sistematizado de regras e princípios,
caracterizados pela coercitividade e imperatividade, por dispor solução, ainda que latente (não expressa e
cognoscível diretamente), para qualquer possível situação ou conflito entre pessoas, não apresenta lacuna
(lacuna de direito). Igual sorte não qualifica a lei, pois, por mais imaginativo e previdente fosse o legislador,
seria incapaz, por regras, de disciplinar todas as situações que a multifária riqueza da vida social, nas suas
constantes mutações, pode ensejar.
Rejeitando a figura do onomaturgo platônico, o preenchimento das lacunas da lei29 é possível por
analogia, pelos costumes e pelos princípios gerais do direito.
Analogia é solução de um caso concreto não previsto em lei, com a utilização de regra jurídica
relativa a hipótese semelhante, legitimadora da formulação de regras idênticas onde se verifica a identidade
de razão jurídica.
A analogia pode ser classificada em legis e juris. Na analogia legis aplica-se norma reguladora de um
determinado caso a outro semelhante, mas que não possua regulamentação legal; por sua vez, na analogia
juris, a norma é retirada de um caso singular, mas abstraída de todo o sistema ou de parte dele, não de regra
específica.
Distingue-se a interpretação extensiva da analogia, no sentido de que a primeira é extensiva do
significado textual da norma e a última é extensiva da intenção do legislador, da própria disposição.
Algumas situações não admitem analogia como meio de integração normativa: (a) leis restritivas
de direito, aquelas que proíbem determinadas condutas (CF, art. 5º, II); (b) leis excepcionais, assim
consideradas as que regulam de maneira contrária à regra geral [CC, arts. 3º e 4º); (c) leis administrativas
que disciplinam a atividade administrativa do Estado.
Sendo inviável a analogia para integração normativa, recorrer-se-á ao costume, configurável pela
repetição social de conduta de maneira uniforme e constante (requisito objetivo), com a convicção da
sua obrigatoriedade (requisito subjetivo).
Ausente, ainda, a solução da lacuna de lei, deve o aplicador do direito observar os princípios gerais
do direito, que compreendem não apenas os princípios decorrentes do próprio ordenamento jurídico, como
ainda aqueles que o informam e lhe são preexistentes e transcendentes. Princípios gerais do direito são
premissas éticas universais. Aliás, a equidade não está prevista de forma expressa na LINDB, mas sim
implicitamente, pois ela decorre do referido princípio previsto no art. 4º, da LINDB.
1.1.2.2. Aplicação da lei no espaço
Relevante ainda referir disciplina da LINDB quanto à aplicação da lei no espaço no caso de relações
jurídicas em contato com mais de um ordenamento jurídico estatal contendo normas diversas, conflitantes.
Denomina-se elemento de conexão a circunstância que vincula uma das leis conflitantes a um determinado
fato jurídico.
Há diversos elementos de conexão: (a) local da Prática do Ato (lex loci actus): É o lugar onde e
ocorre o fato ilícito, irá determinar o local da relação jurídica. Com isso a lei aplicada será daquele local,
onde aconteceu o ato ilícito; (b) local do domicílio (lex domicilii): Aplica-se a lei do lugar onde as partes
estão domiciliadas. Se as partes possuem domicilio em lugar diferentes, irá prevalecer o domicilio do réu.
Em muitos territórios é entendido como domicilio, o lugar onde a pessoa possui sua maior ocupação de vida;
(c) local da Execução do Contrato (lex loci executionis): Institui como parte da sede de uma relação jurídica.
A lei de Execução do Contrato estabelece que a norma a ser utilizada seja a do território onde o contrato será
pactuado para reger sua interpretação e seus efeitos; (d) local do Lugar do Foro (lex fori): É adotado nos
casos em que há incompatibilidade espacial de normas judiciais entre as partes, ou seja, a lei local
estabelecerá as condições da ação; (e) local da Coisa (lex rei sitae): Em conflitos de posses de bens, será
aplicada o regulamento do país em que encontra-se situados os bens imóveis.
Os elementos de conexão adotados no Brasil estão dispostos na LINDB.
A verificação da legislação aplicável a um caso concreto pressupõe duas etapas: (a) qualificação do
fato, pela qual se constata a natureza do conflito, podendo ser referente a pessoa, a bem, a obrigação etc.; (b)
definição da lei aplicável ao caso, pelo estudo do elemento de conexão que qualifica o fato ou a hipótese.
Segundo a LINDB, a lei material aplicável aos contratos é a do local do cumprimento da obrigação
[art. 9º]; a lei material aplicável ao começo e ao fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de
família é a lei do país do domicílio da pessoa, sendo certo que, quanto ao matrimônio e ao regime de bens,
aplicável será a lei do país de domicílio dos nubentes, ou a lei do país do primeiro domicílio conjugal, caso
os nubentes tenham domicílios diversos [art. 7º]; a lei material aplicável na sucessão por morte ou por
ausência é a do domicílio do de cujus ou ausente [art. 10]; a lei material aplicável aos bens é a do país em
28
Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
29
Ausência de enunciado descritivo de conduta abstrata e geral, com força coercitiva, prevendo consequência normativa a um substrato
fático.
que estiverem situados [art. 8º], competindo somente à autoridade judiciária brasileira dispor sobre imóveis
aqui situados [art. 12, §1º].
Direito civil é o conjunto de regras e princípios regente das relações jurídicas entre particulares
próprias da convivência social, disciplinando o sujeito de direito, o objeto e os fatos jurídicos.
“Conteúdo do Direito Civil é o conjunto de direitos, relações e instituições que formam o seu ordenamento jurídico, o seu sistema legal.
Sob o ponto de vista subjetivo, esse conteúdo são as relações jurídicas entre os particulares ou entre estes e o estado, quando situados em
posição de igualdade e coordenação.
Sob o ponto de vista objetivo, o direito civil compreende as regras sobre a pessoa, a família e o patrimônio, ou de modo analítico, os direitos
da personalidade, o direito de família, o direito das coisas, o direito das obrigações e o direito das sucessões, ou ainda, a personalidade, as
relações patrimoniais, a família e a transmissão dos bens por morte. Pode-se assim dizer que o objeto do direito civil é a tutela da
personalidade humana, disciplinando a personalidade jurídica, a família, o patrimônio e sua transmissão. Em seguida, a família, como grupo
social básico e primário, fonte da primeira disciplina ou controle social do indivíduo. Em terceiro lugar, o patrimônio, conjunto de bens
necessários à satisfação das necessidades humanas, garantindo a conservação da pessoa e da família” [AMARAL, Francisco. Direito Civil.
Introdução. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2002, p. 135].
O direito civil é orientado pelo princípio do personalismo ético, segundo o qual todas as pessoas são
livres, autônomas e indistintamente dignas de direito [sujeitos de direito].
A potencialidade criativa humana impõe a tutela jurídica da dimensão econômica de sua
personalidade (propriedade individual), exteriorizada pelo desempenho de atividade econômica habitual e
dirigida à produção e à circulação de bens e serviços, visando resultados patrimoniais (direito empresarial),
bem como com a aquisição, por seu trabalho ou forma jurídica qualquer, de bens, móveis e imóveis (direito
das obrigações e dos contratos), além da sua capacidade de disciplinar sua transmissão, no todo ou em parte,
em relação inter vivos e causa mortis (direito das sucessões disciplinam legitimidade da herança e direito
de testar).
Outra projeção da personalidade humana se dá com o desenvolvimento de relações de afeto como
causa originária e final caracterizada pela solidariedade, repercutindo na configuração de entidades
familiares (direito de família).
Decorrente da personalidade jurídica, “A autonomia privada é o poder que os particulares têm de regular pelo
exercício de sua própria vontade, as relações de que participa, estabelecendo-lhes o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica ”
(AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2002, p. 335).
No exercício da liberdade de contratar o sujeito pode conferir direitos e contrair deveres, sendo certa
a incidência, quando do efetivo exercício dessa prerrogativa, na disciplina normativa do próprio interesse
(negócio jurídico), que se torna obrigatória (obrigatoriedade) entre os participantes (relatividade contratual),
assim como em seu conteúdo e modo de execução, a função social, de tal modo que sua finalidade deve
transcender o interesse particular, compatibilizando valores sociais com o interesse individual (solidariedade
social), e a boa-fé objetiva, a qual determina um agir segundo o padrão de comportamento socialmente
aceito.
Corolário lógico do exercício livre da vontade a responsabilidade30, sob pena de arbitrariedade,
incompatível com a tutela da dignidade humana [responsabilidade civil].
1.1.5. Evolução do Código Civil Brasileiro. Código de 1916. Estrutura do Código Civil Atual
Durante os períodos históricos do Brasil colônia e também durante o Império, o sistema jurídico em
vigor era o sistema jurídico português, que se consistia nas Ordenações Afonsinas, criadas em 1443 e
revogadas em 1521 pelas Ordenações Manuelinas, e, por fim, em 1603, surgem as Ordenações
Filipinas.
Durante o Império, em 1857, após a frustrada tentativa do Imperador em tentar contratar Visconde de
Seabra, autor do Código Civil português, devido a críticas por buscar no exterior autoria para o Código Civil,
foi realizada a Consolidação das Leis Civis por Teixeira de Freitas, grande nome do direito no século
30
“Sobre a vinculação entre capacidade e responsabilidade, valiosa é a lição de Salvatore PUGLIATTI, que destaca a ‘relação entre liberdade,
como possibilidade de tomar uma dada iniciativa e de assumir um dado comportamento em relação a um determinado interesse próprio, e a
responsabilidade relativa. Sob esse perfil, pode-se afirmar que liberdade e autorresponsabilidade são termos correlativos; e se pode falar de
um princípio da autorresponsabilidade privada, correlata à liberdade de querer’ (Autorresponsabilità. Scritti guiridici, vol. IV. Milano: Giuffrè,
2011, p. 198. Tradução livre). No direito brasileiro, leciona Maria Celina BODIN DE MORAES : ‘A consequência da capacidade é, como se sabe, a
imputação de responsabilidade. A imputabilidade é a possibilidade de ser considerado, pelo direito, como o autor de seus próprios atos,
devendo em consequência por eles responder. Quem não tem discernimento tampouco tem responsabilidade, e as sanções jurídicas são
diferenciadas justamente com base nesta distinção. Ter discernimento é ter capacidade de entender e querer. Se o indivíduo for dotado desta
capacidade, dela decorrem a autodeterminação e a imputabilidade (isto é, a responsabilidade)’ (Uma aplicação do princípio da liberdade. Na
medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 192. Grifo do original)” [SOUZA, Eduardo Nunes de. Teoria Geral das Invalidades do
Negócio Jurídico. Nulidade e anulabilidade no direito civil contemporâneo. São Paulo: Almedina. 2017, p. 69]
XIX, projeto que serviu de base para o Código Civil argentino e uruguaio, mas foi abandonado pelo governo
brasileiro.
Também realizaram projetos de codificação Nabuco de Araújo, Felício dos Santos e Coelho
Rodrigues, até que enfim se efetivou a contratação de Clóvis Beviláqua para redação do Código Civil.
Durante a tramitação do projeto redigido por Beviláqua, Rui Barbosa foi rígido combatente 31 quanto à
forma da redação, tendo qualificado a obra como “tosca, indigesta e aleijada”.
Tendo suas fontes principalmente no código civil francês (Code Civil) e no alemão (BGB), o Código
Civil de 1916, em seus 1807 artigos, tinha em suas bases o positivismo jurídico e o liberalismo,
ocasionando na mais ampla autonomia individual, impossibilitando o Estado e lhe limitar ou interferir.
Sobrevieram transformações sociais e econômicas ao longo do século XX que impuseram a
necessidade de revisão do Código de 1916, mormente para redução do extremo individualismo incompatível
com a ordem jurídica dos novos tempos.
Miguel Reale supervisionou a comissão encarregada da redação de um anteprojeto, concluído
em 1972 e enviado à Câmara em 1975, permanecendo em tramitação no Congresso Nacional por mais
de vinte anos, e somente em 2002 foi aprovado e entrando em vigor no ano seguinte. Diante da morosa
tramitação, várias críticas foram traçadas ao Código Civil de 2002, no tocante de ter entrado em vigor como
uma legislação já ultrapassada, consistente em uma redação de 1973 e incapaz de atender aos anseios da
sociedade moderna.
A parte geral do Código Civil trata das pessoas, dos bens, atos e fatos jurídicos; a parte especial, das
obrigações, contratuais e extracontratuais, das coisas, da atividade empresarial, da família e das sucessões.
Dentre as inovações do Código Civil de 2002, destacáveis os três princípios basilares, sobre os quais
se fundamentam não só o Código Civil atual, mas todo o sistema civilista do país, quais sejam: princípios da
socialidade, eticidade e operabilidade.
O princípio da socialidade empreendeu uma releitura nos principais personagens do direito civil (pai
de família, testador, contratante, proprietário e empresário) inspirada pela compatibilização do interesse
coletivo com o particular, suplantando o pensamento anterior fundado no individualismo e absolutismo da
vontade.
Para entender o fenômeno da função social do direito subjetivo, importa, antes, compreender função.
Função se obtém pela definição da finalidade do que se observa.
Função pode ser entendida como posição jurídica caracterizada pela titularidade de deveres,
poderes e direitos para a realização de um fim transcendente ao interesse pessoal do sujeito.
A funcionalização das instituições de direito faz com que não valham por si, mas, sim, pela finalidade
a que servem.
Norberto Bobbio, há muito, em sugestivo livro intitulado “Da estrutura à função 32”, criticava o
estruturalismo jurídico em que se fundavam os grandes teóricos, que atribuíam ao direito a especificidade
“que não deriva dos fins a que serve, mas do modo pelo qual os fins, quaisquer que sejam, são perseguidos e
alcançados”. A teoria jurídica, segundo Bobbio, centralizou-se no estudo do instrumento para consecução do
fim, isto é, a coação e a organização desta para o atingimento da função específica do direito: o controle
social, independente de sua definição finalística.
O fenômeno da funcionalização dos institutos jurídicos se caracteriza, pois, nessa análise simplista,
por agregar à estrutura jurídica uma função, uma finalidade a servir 33.
E o Estado, fonte por essência do direito, tem forte participação nesse fenômeno pelo aporte
axiológico que empresta às categorias jurídicas. Tal realidade em nossa Constituição se verifica no rol do
artigo 3º, com nítido caráter promocional.
Oportuno referir advertência de Miguel Reale, quando da exposição de motivos do CC/2002, no
sentido de que “a orientação legislativa obedece a imperativos de socialidade e concreção, tal como se dá no presente
Anteprojeto.Novo Código Civil. Não é sem motivos que reitero esses dois princípios, essencialmente complementares, pois o
grande risco de tão reclamada socialização do Direito consiste na perda dos valores particulares dos indivíduos e dos grupos;
31
“Mas, ainda assim, se quisermos inscrever o Código Civil à sombra de dois nomes que o tenham marcado com os sinais dos seus espíritos
raros, creio que Clóvis Bevilacqua, realizando o Projeto, defendendo-o, impulsionando-o até o sucesso final, e Rui Barbosa combatendo-o,
reescrevendo-o e reclamando para êle a perfeição e a grandeza, que o tornaram um monumento tabular da sociedade republicana, são os
nomes a indicar. ” (San Tiago Dantas. Figuras do direito. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1962, p. 78)
32
BOBBIO, Norberto. Da Estrutura à função. Barueri: Manole, 2007, p. 85.
33
“Assim, o bem comum, nas relações civis, traduz a solidariedade mediante a cooperação dos indivíduos para a satisfação dos interesses
(particulares) diversos e recíprocos, sem comprometimento dos direitos da personalidade e da dignidade de cada parte.
A socialidade, ou função (fim) social, consiste exatamente na manutenção de uma relação de cooperação entre os partícipes de cada relação
jurídica, bem como entre eles e a sociedade, com o propósito de que seja possível, ao seu término, a consecução do bem (fim) comum da
relação jurídica” (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Parte Geral e LINDB. 12ª ed. Salvador: Juspodivm.
2014, p. 50)
e o risco não menor da concretude jurídica reside na abstração e olvido de características transpessoais ou comuns aos atos humanos,
sendo indispensável, ao contrário, que o individual ou o concreto se balance e se dinamize com o serial ou o coletivo, numa unidade
superior de sentido ético”.
A função social pode ser observada no Código Civil na disciplina do direito das obrigações com a
sanção do uso abusivo ou irregular do direito subjetivo; no direito dos contratos com a mitigação da
relatividade contratual e da liberdade contratual; na responsabilidade civil com a teoria do risco; no direito
das coisas com a concepção da propriedade como relação jurídica complexa, composta por direitos e deveres
exigíveis do seu titular que lhe impõe o exercício da propriedade vocacionada à satisfação do interesse
próprio e do interesse coletivo. Em especial, destaca-se um novo conceito de posse, a posse-trabalho, ou
posse "pro labore", em virtude da qual o prazo de usucapião de um imóvel é reduzido, conforme o caso, se os
possuidores nele houverem estabelecido a sua morada, ou realizado investimentos de interesse social e
econômico; no direito empresarial com a função social da empresa; no direito de família com a concepção
da família como entidade que se dirige à promoção dos direitos da personalidade de seus membros,
mormente à formação da prole e consolidação do dever de solidariedade recíproca entre seus membros; no
direito das sucessões na igualdade de disciplina do direito sucessório do cônjuge e companheiro.
Pelo princípio da operabilidade, buscando simplicidade, soluções viáveis, operáveis e sem grandes
dificuldades na aplicação do direito devem ser prestigiadas, para, com efetividade, conferir concretude ou
realizabilidade ao direito civil.
Sobre o princípio da operabilidade Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald destacam o
seguinte: “(...) O desenvolvimento da personalidade era, até então, fruto da expansão do patrimônio, e não do respeito e estímulo à
essência e à dimensão inerentes a cada um de nós. Em suma, negava-se a especificidade e a concretude de cada pessoa, de cada ser
humano, prestigiando-se apenas o status formal de cada integrante da relação jurídica. Não havia João ou Maria, mas o contratante, o
proprietário, o cônjuge; todos pessoas neutras e indiferentes, bem caracterizadas nos clássicos exemplos que faziam menção a Caio,
Tício e Mévio. Equivale a dizer: o Direito Civil ignorava as particularidades de cada pessoa, tratando a todos como se fossem
rigorosamente iguais. A norma, enfim, aplicava-se genericamente quem quer que se titularizasse em uma determinada situação
patrimonial. (...) O objetivo do atual do ordenamento jurídico é alcançar a pessoa como destinatária direta da norma, verificando-se a
‘ética da situação’, na conhecida acepção de Karl Larenz. (...) O Código Civil deseja afastar toda a forma de conceituação estéril, que
não revele efetividade. É preciso, verdadeiramente, se desvincular da velha herança francesa de preencher o desenho da norma em
todos os seus poros. Muitas vezes, a prática de conceituar é uma forma de esconder a nossa própria ignorância, ou um temor de
trabalhar com modelos abertos e mutáveis. A diretriz da concretude também atua em outro nível, o da operabilidade. Propugna ela
por rápidas formas de solucionar pretensões, bem como por meios que evitem a eternização de incertezas e conflitos. Como adverte
BOBBIO, o século XX foi a ‘era dos direitos’ e o século XXI pretende-se como a ‘era da efetividade dos direitos’, pois eles existem
para ser exercitados. Nesta linha, nada mais evidente do que a nova abordagem da prescrição e da usucapião, assim como a
autoexecutoriedade das obrigações de fazer e não fazer. Em outros termos, o magistrado será um homem do seu tempo e meio.
Caberá a ele a valoração do fato, mediante a ponderação das características dos seus artistas e a natureza da atividade econômica
desempenhada. A busca da facilitação da distinção entre prescrição e decadência, tornando mais fácil operar tais institutos, pode
servir como exemplo da busca da concretude (operabilidade) no Código Civil de 2002 ”. [FARIAS, Cristiano Chaves de.
ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Parte Geral e LINDB. 12ª ed. Salvador: Juspodivm. 2014, p. 54/55].
A Constituição sempre foi compreendida como norma suprema do sistema jurídico. Contudo,
essencialmente, o direito constitucional se restringia a cuidar da organização política e administrativa do
Estado, relegando para o Código Civil a tarefa de disciplinar as relações privadas, sendo, por isso,
compreendido como a constituição do homem comum.
A partir da superação do positivismo, com a necessária disciplina do Estado Social, a Constituição
passou a desfrutar não somente da supremacia formal, mas também de uma supremacia material,
axiológica, potencializada pela abertura do sistema jurídico e pela normatividade de seus princípios,
mandados de otimização.
A constitucionalização do direito civil se consubstancia na sujeição das normas e institutos do
direito civil aos princípios e regras constitucionais. De fato, valores constitucionais como dignidade da
pessoa humana, solidariedade social e igualdade substancial marcam decisivamente a mudança do direito
civil contemporâneo.
Neste sentido, a Carta da República está a determinar, como objetivo fundamental, a igualdade
substancial, com a erradicação da pobreza e a marginalização e a redução das desigualdades sociais e
regionais e a solidariedade social, com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, inciso
I, CF/88). Também assegura ao consumidor o direito à vida, igualdade e segurança (artigo 5º, caput, CF/88),
bem como garante a indenização por dano material, moral e à imagem (artigo 5º, inciso V, CF/88) o que
reflete cada vez mais a interferência dos primados constitucionais nas relações privadas.
Paralelamente à constitucionalização do direito civil, um outro fenômeno jurídico, atinente aos direitos
fundamentais, atingiu a essência das relações privadas, a eficácia horizontal dos direitos humanos.
Direito fundamentais são mecanismos de proteção do indivíduo em face do Estado, afastando as
ingerências deste na esfera privada.
Em sua dimensão objetiva, os direitos fundamentais se referem ao dever de proteção do Estado e dos
particulares em relação aos direitos fundamentais, devendo criar e manter instituições, mecanismos e
procedimentos para sua efetiva realização. Na dimensão subjetiva, os direitos fundamentais correspondem ao
conjunto de prestações exigíveis do Poder Público ou de particulares.
O Estado tem o dever não só de respeitar o direito fundamental (direito de defesa, eficácia
negativa) como promovê-lo [eficácia positiva], sendo certo que as violações a direitos fundamentais não
ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas
entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado.
Nesse contexto, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais impõe a aplicação do direito privado
nas relações particulares segundo a norma constitucional, isto é, protegendo e promovendo os direitos
fundamentais, com a mitigação da autonomia privada das partes em prol da tutela da dignidade humana.
Por sua vez, a repersonalização do direito civil prestigia o ser em relação ao ter, concebendo a
dignidade da pessoa humana como o epicentro do sistema jurídico.
Nesse contexto, em síntese, da constitucionalização do Direito Civil decorrem: [a]
despatrimonialização: tutela jurídica fundada na dignidade da pessoa humana além do seu patrimônio; [b]
eficácia horizontal dos direitos fundamentais: os direitos fundamentais incidentes na relação entre
particulares [CC, art. 57 – exclusão de associado; art. 1..337 – sanção a condômino antissocial]; [c]
repersonalização: o epicentro jurídico é a pessoa [o ser], fim e fundamento da norma jurídica, e não seus
bens [o ter].
Dúvida há sobre a aplicabilidade do direito civil constitucional, se direta, pela força normativa
intrínseca da norma constitucional, ou indireta, isto é, pela adequação hermenêutica civil, resguardada a
autonomia própria do direito civil.
Doutrinadores de escol referem perigo de sobrevalorização das constituições em prejuízo da disciplina
da autonomia privada.
A propósito, Nelson Rosenvald, em vídeo-aula pública 34, sobre o assunto da constitucionalização do
direito civil, apontou o seguinte exemplo: condôminos proprietários em condomínio edilício reúnem-se para
confraternização discriminando o único morador não proprietário. Nessa situação fática, se aplicarmos
diretamente a norma constitucional, o discriminado poderia ser compensado por danos morais dada a
violação de seu direito fundamental à igualdade. Segundo o jurista em referência, tal concreção normativa
substituiria a autonomia privada pela heteronomia judicial própria do estado paternalista nas relações
jurídicas entre particulares.
1.1.8. Pós-positivismo e técnica legislativa mista do Código Civil de 2002 (sistema aberto): cláusulas
gerais e conceitos jurídicos indeterminados. Jurisprudência dos conceitos, dos interesses e da
valoração.
1.1.9.Relação Jurídica de Direito Privado. Situação Jurídica. Distinção entre direitos obrigacionais e
direitos reais. Fontes. Classificação: situação jurídica ativa (direitos subjetivos e direitos
potestativos) e passiva (deveres e sujeições).
Relação é o modo de ser ou de ser comportarem dois elementos.
Diz-se jurídica a relação caracterizada pela produção de efeitos jurídicos.
Relação jurídica é o vínculo pelo qual, por força de imputação normativa, uma pessoa, chamada
sujeito ativo, tem o direito subjetivo de exigir de outra, referida sujeito passivo, o cumprimento de certa
prestação, tendo esta o correlato de dever jurídico de cumpri-la.
Vínculo de atributividade
Relação = Sujeito Prestação Sujeito
jurídica ativo passivo
Direito Dever
subjetivo jurídico
OBJETO
DIREITO ⇄ DEVER
↓ ↓
PRETENSÃO ⇄ OBRIGAÇÃO
↓ ↓
39
“A diferença entre o dever e o ônus reside no fato de que no primeiro, o comportamento do agente é necessário para satisfazer interesse
do titular do direito subjetivo, enquanto no caso do ônus o interesse é do próprio agente. No dever, o comportamento do agente vincula-se ao
interesse do titular do direito, enquanto que, no ônus, esse comportamento é livre, embora necessário, por ser condição de realização de
interesse próprio. O ônus é, por isso, o comportamento necessário para conseguir-se certo resultado que a lei não impõe, apenas faculta. No
caso do dever, há uma alternativa de comportamento, um lícito (o pagamento, por exemplo) e outro ilícito (o não pagamento); no caso do
ônus, também há uma alternativa de conduta, ambas licitas, mas de resultados diversos, como se verifica, por exemplo, da necessidade do
adquirente de um imóvel registrar seu título aquisitivo (CC, art. 1.245). Se não o registrar, não adquire a propriedade” [AMARAL, Francisco.
Direito Civil. Introdução. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2002, p. 194].
1.1.10. Revisão.
[A: o aplicador do Direito deve, sim, empregar os princípios constitucionais na interpretação das normas de Direito Civil; B: a
constitucionalização do Direito Civil é um fenômeno de ordem legislativa, que importou na previsão constitucional de matérias outrora unicamente
tratadas na legislação infraconstitucional civil, na enunciação de princípios constitucionais aplicáveis ao Direito Civil, e também um fenômeno de
ordem doutrinária e jurisprudencial, vez que, nos últimos anos, a doutrina e a jurisprudência passaram a aplicar mais as normas e princípios
constitucionais às relações civis; C: as normas civis constitucionais têm, em alguns casos, aplicação direta, mas, em outros, servem de vetor
interpretativo das normas infraconstitucionais civis, que, por óbvio, não são irrelevantes; D: está correta.]
10. (Magistratura TJ/PR – 2007) Sobre os princípios fundamentais do Direito Civil contemporâneo, assinale a alternativa correta:
(A) A função social dos contratos, que não é sinônimo de função econômica dos contratos, é apontada, no Código Civil brasileiro,
como um limite ao exercício da liberdade de contratar.
(B) A regra do Código Civil que prevê que o possuidor de boa-fé tem direito à indenização pelas benfeitorias necessárias e úteis que realizar
se refere diretamente à boa-fé objetiva.
(C) É suficiente para concluir que uma propriedade rural está cumprindo sua função social a demonstração cabal e inequívoca de sua
produtividade, uma vez que a Constituição proíbe expressamente a desapropriação de terras produtivas para fins de reforma agrária.
(D) O princípio da igualdade entre os filhos se aplica ao tratamento dos filhos consanguíneos e adotivos, mas não se impõe quando se tratar
de filiação sócioafetiva.
[A: art. 421 do CC; B: tal regra decorre imediatamente do art. 1.219 do CC e tem como fundamento mediato os princípios da boa-fé e do não
enriquecimento sem causa; C: o cumprimento da função social da propriedade não reclama, tão somente, a produtividade na terra, mas também o
atendimento aos incisos II, III e IV do art. 186 da CF; D: o critério para definir a igualdade é serem todos filhos, pouco importa a origem da filiação
(arts. 227, § 6º, da CF e 1.596 do CC).]
Relação jurídica é o vínculo pelo qual, por força de imputação normativa, uma pessoa, chamada sujeito ativo, tem o direito subjetivo de
exigir de outra, referida sujeito passivo, o cumprimento de certa prestação, tendo esta o correlato de dever jurídico de cumpri-la.
A estrutura da relação jurídica é composta por (a) sujeitos, ativo e passivo; (b) objeto; (c) fatos jurídicos.
Há três princípios reitores da relação jurídica: (a) intersubjetividade; (b) essencialidade do objeto; (c) correspectividade entre direito-
dever, pretensão-obrigação etc.
As relações jurídicas somente se estabelecem entre, no mínimo, dois sujeitos de direito diferentes, não entre sujeito e coisa ou com o mesmo
sujeito.
Por sua vez, acerca da essencialidade do objeto, é certo que “Toda relação jurídica há de ter, necessariamente, um objeto, sejam (a) coisas
(= res corporales), (b) bens imateriais (=res incorporales) ou (c) promessa de prestação, comissiva ou omissiva. Relação jurídica sem objeto seria
mera entidade lógica, sem substância na realidade. Se falta objeto, não há relação jurídica, porque o objeto é que lhe dá sentido e realidade”
BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Eficácia. Ed. Saraiva jur. 11ª edição. 2019. p. 204].
Deve o objeto da relação jurídica ser caracterizado pela licitude e possibilidade física, porque factível, e jurídica, considerando a forma
adequada. O objeto pode ser classificado em: (a) imediato, conduta ativa ou omissiva; e (b) mediato, referente ao bem da vida.
Por fim, acerca da correspectividade própria da relação jurídica, é certo que o direito subjetivo constitui-se na possibilidade jurídica de
que é titular o sujeito ativo de exigir o cumprimento da prestação, ou seja, na prerrogativa de utilizar-se dos mecanismos que o direito dispõe para
assegurar sua realização. Já o dever jurídico constitui-se na obrigatoriedade de que é investido o sujeito passivo de adimplir a prestação,
obrigatoriedade esta garantida pelo aparato coercitivo do sistema jurídico.
Em suma, para a satisfação do crédito, possível a atuação da sanção legalmente prevista, que é a responsabilidade patrimonial..
[CESPE - 2013 - DPE-TO - Defensor Público] Acerca do Direito Civil, assinale a opção correta.
[A] O princípio da eticidade, paradigma do atual direito civil constitucional, funda-se no valor da pessoa humana como fonte de todos os
demais valores, tendo por base a equidade, boa-fé, justa causa e demais critérios éticos, o que possibilita, por exemplo, a relativização do
princípio do pacta sunt servanda, quando o contrato estabelecer vantagens exageradas para um contratante em detrimento do outro.
[B] Cláusulas gerais, princípios e conceitos jurídicos indeterminados são expressões que designam o mesmo instituto jurídico.
[C] A operacionalidade do direito civil está relacionada à solução de problemas abstratamente previstos, independentemente de sua
expressão concreta e simplificada.
[D] Na elaboração do Código Civil de 2002, o legislador adotou os paradigmas da socialidade, eticidade e operacionalidade, repudiando a
adoção de cláusulas gerais, princípios e conceitos jurídicos indeterminados.
[E] No Código Civil de 2002, o princípio da socialidade reflete a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais, razão pela qual o
direito de propriedade individual, de matriz liberal, deve ceder lugar ao direito de propriedade coletiva, tal como preconizado no socialismo
real.
CORRETA: A
1.1.10.2. LINDB.
1.1.10.2.1. Norma de sobredireito.
[A: correta, conforme texto do art. 1 º, § 3º, da Lei de introdução às Normas do Direito Brasileiro – LIDB (Dec. lei 4.657/42); B: incorreta,
pois “as correções a texto de lei já em vigor consideram-se lei nova” (art. 1º, § 4º, da LIDB), e, como é de conhecimento de todos, lei nova não pode
retroagir para prejudicar direitos adquiridos (art. 5º, XXXVI, da CF; art. 6º, caput, da LIDB); C: incorreta; apesar de tais correções serem
consideradas lei nova, nem sempre suas disposições se tornam obrigatórias de imediato, pois pode haver vacatio legis; D: incorreta, pois, nesse caso, a
lei nova NÃO revoga a lei anterior, conforme dispõe o art. 2º, § 2º, da LIDB; esse dispositivo significa que lei geral nova não revoga lei especial
velha; E: incorreta, pois o dispositivo legal é no sentido de que “a lei nova que estabelece disposições GERAIS ou especiais a par das já existentes,
NÃO revoga nem modifica lei anterior” (art. 2º, § 2º, da LIDB).]
40
MARTINS-COSTA. Judith. A boa-fé no direito privado. Critérios para a sua aplicação. 2ª ed. São Paulo: Saraivajur. 2018, p. 158/160.
(A) em nenhuma hipótese haverá novo prazo para entrar em vigor.
(B) se depois de entrar a lei em vigor, a correção não se considerará lei nova.
(C) se antes de ela entrar em vigor, a vacatio legis começará a correr da nova publicação.
(D) se depois de entrar em vigor, será retroativa à data da primeira publicação.
(E) se antes de ela entrar em vigor, a vacatio legis consistirá do prazo restante contado desde a primeira publicação.
[Após a aprovação da lei pelo Congresso Nacional e a sanção do Presidente da República a lei é publicada no Diário Oficial. Após tal
publicação, inicia-se a vacatio legis, tempo que medeia entre a publicação e a efetiva vigência da norma. Caso ocorra nova publicação da lei destinada
à sua correção, a art. 1 º, § 3º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro prevê uma hipótese de “interrupção legal” do prazo da vacatio.
Nesse caso o prazo retorna ao seu início para nova recontagem, desconsiderando-se eventual lapso já transcorrido.]
4. (Magistratura TJ/PB – 2011) À luz das disposições legais e da jurisprudência acerca da vigência e da eficácia da lei, assinale a opção
correta.
(A) A norma declarada inconstitucional é nula ab origine e, em regra, não se revela apta à produção de efeito algum, sequer o de
revogar a norma anterior, que volta a viger plenamente nesse caso.
(B) As regras de direito intertemporal, segundo as quais as obrigações devem ser regidas pela lei vigente ao tempo em que se constituíram,
não são aplicáveis quando a obrigação tiver base extracontratual.
(C) O fato de, antes da entrada em vigor de determinada lei, haver nova publicação de seu texto para simples correção não é capaz, por si só,
de alterar o prazo inicial de vigência dessa lei.
(D) Como, em regra, a lei vigora até que outra a modifique ou revogue, lei nova que estabeleça disposições especiais a par das já existentes
revoga ou modifica a lei anterior.
(E) A repristinação ocorre com a revogação da lei revogadora e, salvo disposição em contrário, é amplamente admitida no sistema normativo
pátrio.
[A: correta, pois como regra, o efeito da decisão que declara inconstitucional dada norma, exarada em ação que visa o controle concentrado
de constitucionalidade, é ex tunc, ou seja, retroage, conforme interpretação a contrario sensu do disposto no art. 27 da Lei 9.868/99; B: incorreta, pois
tanto as obrigações contratuais, como as extracontratuais são regidas pela lei vigente ao tempo em que se constituírem; porém, é bom lembrar que
essa regra vale para reger a validade das obrigações; já, quanto aos efeitos das obrigações (ex. juros, correção monetária), são regidos pela lei que
estiver em vigor quando os efeitos acontecerem, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução (art. 2.035 do CC); C:
incorreta, pois se antes de a lei entrar em vigor, ocorrer nova publicação de seu texto, destinada a correção, o prazo deste artigo e dos parágrafos
anteriores começará a correr da nova publicação (art. 1 º, § 3º, da LIDB); D: incorreta (art. 2º, § 2º, da LIDB); E: incorreta (art. 2º, § 3º, da LIDB).]
11. (Defensor Público TJ/RN – 2006 – adaptada) Segundo a Lei de Introdução ao Código Civil
(A) a edição de uma nova lei de caráter especial revoga a lei anterior.
(B) na omissão da lei o juiz decidirá o caso concreto de acordo com a analogia, a equidade e os princípios gerais do direito.
(C) os direitos de família são regulados pelo País de nascimento da pessoa.
(D) O divórcio realizado no estrangeiro, se um ou ambos os cônjuges forem brasileiros, só será reconhecido no Brasil depois de 1
(um) ano da data da sentença, salvo se houver sido antecedida de separação judicial por igual prazo.
41
Art. 1o Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada.
42
LC n. 95/98, art. 9º. A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas.
43
Diálogo das fontes e a aplicação harmônica do Código Civil e Código de Defesa do consumidor.
44
§ 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
45
Art. 3o Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.
46
Diálogo das fontes e a aplicação harmônica do Código Civil e Código de Defesa do consumidor.
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§ 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
[Art. 7º, § 6º da LINDB]
[“Ab-rogação: Revogação total de uma lei ou decreto, de uma regra ou regulamento, por uma nova lei, decreto ou regulamento. Derrogação:
Derivado do latim derogatio, de derogare (anular uma lei), é o vocábulo empregado para indicar a revogação parcial de uma lei ou regulamento.”
Vocabulário Jurídico – Edição Universitária. De Plácido e Silva, Forense, v. I e II, 1993.]
13. (Magistratura TJ/SP – 2018) Segundo a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, quando se houver de aplicar lei estrangeira,
a) ter-se-á em vista a disposição da lei estrangeira, mas considerando as remissões por ela feita à lei de outro Estado estrangeiro.
b) não se terá em conta a norma primária, mas o direito internacional privado alienígena, aplicando-se o retorno.
c) ter-se-á em vista a norma primária, aplicando-a diretamente, o que significa a inaplicabilidade do retorno.
d) caberá ao juiz verificar se o caso é de aplicabilidade direta da norma primária, ou se o caso exige retorno.
1.1.10.2.2.3. Repristinação
5. (Magistratura TJ/SP – 2009) O denominado efeito repristinatório da lei
(A) segundo entendimento majoritário, foi adotado como regra geral no direito brasileiro e implica restauração da lei revogada, se extinta a
causa determinante da revogação.
(B) segundo entendimento majoritário, não foi adotado como regra geral no direito brasileiro e implica restauração da lei revogada,
se extinta a causa determinante da revogação.
(C) foi adotado como regra geral no direito brasileiro, não comporta exceção e implica restauração da lei revogada, se extinta a causa
determinante da revogação.
(D) foi adotado no direito brasileiro como regra geral e implica incidência imediata da lei revogadora.
[Art. 2º, § 3º, da LIDB. A repristinação não é a regra geral no direito brasileiro, sendo admitida somente quando houver “disposição em
contrário”.]
1.1.10.2.2.4. Obrigatoriedade
A regra do art. 3º da LInDB é incompatível com a regra do art. 139, III, do Código Civil?
Art. 3o Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.
Da obrigatoriedade da lei decorre o fato de que ninguém pode se escusar de cumpri-la [art. 3º 48], por
presunção absoluta de conhecimento público [presunção jure et de jure], ficção jurídica ou necessidade
social. Acerca do aspecto da obrigatoriedade da lei, importa registrar inexistência de incompatibilidade com
a regra do art. 139, III, do Código Civil, segundo o qual é substancial o erro de direito, que não implicando
recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou principal do negócio jurídico, porque nesta hipótese,
vício de consentimento que é, o erro de direito recai sobre a manifestação da vontade, desconstituindo-a.
[I: falsa, as faculdades legais não se incorporam ao patrimônio jurídico das pessoas, ficando disponíveis enquanto a lei as estipular; um
exemplo é o de a lei admitir que as pessoas fumem em ambientes fechados (faculdade legal); sobrevindo lei não mais admitindo o fumo em tais
lugares, os interessados não poderão alegar direito adquirido ou irretroatividade da lei; II: falsa, vide comentário à afirmativa I; III: falsa (art. 127 do
CPC).]
48
Art. 3o Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.
CELEBRAÇÃO. - Os contratos submetem-se, quanto ao seu estatuto de regência, ao ordenamento normativo vigente à época de sua
celebração. Mesmo os efeitos futuros oriundos de contratos anteriormente celebrados não se expõem ao domínio normativo de leis
supervenientes. As conseqüências jurídicas que emergem de um ajuste negocial válido são regidas pela legislação em vigor no momento de
sua pactuação. Os contratos - que se qualificam como atos jurídicos perfeitos (RT 547/215) - acham-se protegidos, em sua integralidade,
inclusive quanto aos efeitos futuros, pela norma de salvaguarda constante do art. 5º, XXXVI, da Constituição da República. Doutrina e
precedentes. INAPLICABILIDADE DE LEI NOVA AOS EFEITOS FUTUROS DE CONTRATO ANTERIORMENTE CELEBRADO -
HIPÓTESE DE RETROATIVIDADE MÍNIMA - OFENSA AO PATRIMÔNIO JURÍDICO DE UM DOS CONTRATANTES -
INADMISSIBILIDADE. - A incidência imediata da lei nova sobre os efeitos futuros de um contrato preexistente, precisamente por afetar a
própria causa geradora do ajuste negocial, reveste-se de caráter retroativo (retroatividade injusta de grau mínimo), achando-se desautorizada
pela cláusula constitucional que tutela a intangibilidade das situações jurídicas definitivamente consolidadas. Precedentes. LEIS DE ORDEM
PÚBLICA - RAZÕES DE ESTADO - MOTIVOS QUE NÃO JUSTIFICAM O DESRESPEITO ESTATAL À CONSTITUIÇÃO -
PREVALÊNCIA DA NORMA INSCRITA NO ART. 5º, XXXVI, DA CONSTITUIÇÃO. - A possibilidade de intervenção do Estado no
domínio econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os postulados que emergem do ordenamento constitucional
brasileiro. Razões de Estado - que muitas vezes configuram fundamentos políticos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte
principis, a inaceitável adoção de medidas de caráter normativo - não podem ser invocadas para viabilizar o descumprimento da própria
Constituição. As normas de ordem pública - que também se sujeitam à cláusula inscrita no art. 5º, XXXVI, da Carta Política (RTJ 143/724) -
não podem frustrar a plena eficácia da ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade e desrespeitando-a em sua autoridade.
RE 205193 / RS - RIO GRANDE DO SUL
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator(a): Min. CELSO DE MELLO
Julgamento: 25/02/1997
No ano de 1947, MARIA e JOSÉ, que eram primos, foram adotados por escritura pública –
adoção simples – por ARISTIDES, motivo pelo qual passaram a ser irmãos adotivos.
À época, a adoção simples tinha, como uma das suas principais características, o fato de
estabelecer parentesco somente entre o adotante e o adotado (art. 376 do CC/1916). Além disso, o art.
1.618 do CC/1916 dizia, expressamente, que “não há direito de sucessão entre o adotado e os parentes
do adotante”. Sobreveio então, no ano de 2012, o falecimento de MARIA, ocasião em que JOSÉ
ajuizou ação de petição de herança, a fim de que fosse reconhecido o seu direito sucessório em relação
à irmã adotiva, em igualdade de condições com os irmãos consanguíneos de MARIA – EOLO e
MARGARIDA– oriundos de sua família primeva.
Segundo consta do CC/2002, art. 1.787, o regime sucessório reger-se-á pela lei vigente ao tempo
de sua abertura (na hipótese, o CC/2002). No mais, após a entrada em vigor da CF/88, “os filhos,
havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações,
proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” (art. 227, §6º).
No caso, deve prevalecer a tese de que a aplicação do regime sucessório existente após a CF/88
feriria o ato jurídico perfeito de adoção simples por escritura pública realizado no ano de 1947, motivo
pelo qual a questão deveria ser regida pelo CC/1916, vigente à época da prática do referido ato
jurídico, inclusive quanto às discriminações que a legislação revogada fazia entre os filhos
consanguíneos e os filhos adotivos?
Considerando que a irmã adotiva do recorrido faleceu em 2012, quando já estavam em vigor o art.
227, §6º, da CF/88 e o art. 1.596 do CC/2002 e tendo em vista que a lei que regerá a sucessão é aquela
vigente ao tempo da sua abertura (art. 1.787 do CC/2002), não há que se falar em retroação constitucional
para violar o ato jurídico perfeito de adoção simples, de modo que o recorrido tem o direito de participar da
sucessão de sua irmã adotiva em concorrência com os demais irmãos consanguíneos.
“CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA. OMISSÃO. INOCORRÊNCIA. ADOÇÃO SIMPLES
REALIZADA NA VIGÊNCIA DO CC/1916. ATO JURÍDICO PERFEITO E CONSUMADO. INVIOLABILIDADE. DISTINÇÃO
ENTRE ATO JURÍDICO PERFEITO DE ADOÇÃO, DIREITO ADQUIRIDO E EXPECTATIVA DE DIREITO AO REGIME
SUCESSÓRIO. INEXISTÊNCIA DE DIREITO AO REGIME SUCESSÓRIO VIGENTE À ÉPOCA, POIS CONDICIONADO A
EVENTO FUTURO E INCERTO. REGRAS DE DIREITO INTERTEMPORAL. SUCESSÃO QUE SE REGE PELA LEI VIGENTE AO
MOMENTO DE SUA ABERTURA. NORMA CONSTITUCIONAL DE ISONOMIA ENTRE FILHOS. MODIFICAÇÃO, POR
CONSEQUÊNCIA, DO CONTEÚDO DO DIREITO DE SUCESSÃO. INEXISTÊNCIA DE RETROATIVIDADE OU DE VIOLAÇÃO
AO ATO JURÍDICO PERFEITO. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL DEMONSTRADA, MAS INSUSCETÍVEL DE FAZER
PREVALECER A TESE JURÍDICA DO PARADIGMA.
1- Ação distribuída em 11/10/2012. Recursos especial interposto em 15/07/2014 e atribuído à Relatora em 25/08/2016.
2- Os propósitos recursais consistem em definir se houve negativa de prestação jurisdicional; se a parte adotada de forma simples e por
escritura pública na vigência do CC/1916 deve ser excluída da sucessão hereditária de sua irmã igualmente adotada sob o mesmo
regime, especialmente após a entrada em vigor do art. 227, §6º, da CF/88, que garante a igualdade de direitos e de qualificações entre os
filhos; e, ainda, se há dissídio jurisprudencial com julgado desta Corte.
3- Tendo o acórdão recorrido enfrentado, detalhadamente, a questão suscitada pela parte em seus embargos de declaração, não há que se
falar em violação ao art. 535, II, do CPC/73.
4- A adoção simples realizada sob o manto do CC/1916, cujas características marcantes eram a de estabelecer parentesco somente
entre adotante e adotado e de vedar o estabelecimento de direito de sucessão entre o adotado e os parentes do adotante, é um ato
jurídico perfeito e consumado, sendo insuscetível de violação por regra de natureza constitucional ou legal superveniente.
5- O ato jurídico perfeito e o direito adquirido, porém, são institutos jurídicos conceitualmente distintos, inclusive porque atos
jurídicos perfeitos possuem aptidão para gerar meras expectativas de direito e não somente direitos subjetivos ao titular.
6- O ato de adoção simples realizado em observância aos critérios e pressupostos vigentes à época de sua consumação confere direito de
filiação, mas não gera o direito adquirido ao regime sucessório então vigente, que somente será aplicado se houver a efetiva abertura
da sucessão hereditária na vigência do mesmo diploma legal.
7- O ato jurídico perfeito de adoção simples praticado sob a égide do CC/1916, quando se permitia a distinção das relações familiares a
partir de sua origem, permanece intacto quando sobrevém uma nova ordem constitucional que iguala os direitos e qualificações dos
filhos e impede discriminações, na medida em que o direito sucessório, que é distinto do direito de filiação, reger-se-á pela lei vigente
ao momento de sua abertura, momento em que já vigorava o art. 227, §6º, da CF/88.
8- A divergência jurisprudencial, a despeito de suficientemente demonstrada, não se revelou suficiente para fazer prevalecer a tese
jurídica estabelecida no paradigma. 9- Recurso especial conhecido e desprovido”. [REsp n. 1503922, rel. Min. Nancy Andrighi, j.
24.04.2018]
CONSTRUTORA DE IMÓVEL BONITOS S.A. protocolou pedido de licença para implementar loteamento no local.
[A] Se protocolado pedido de licença sob a vigência de norma benéfica, ainda que sobrevenha outra restritiva, aquela ao tempo do protocolo
pode ser exigida?
Já se decidiu:
ADMINISTRATIVO – RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA – REGULARIZAÇÃO DE IMÓVEL URBANO –
DIREITO DE PROTOCOLO – ALTERAÇÃO SUPERVENIENTE DA LEGISLAÇÃO – EFEITOS DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA –
INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO – RECURSO ORDINÁRIO IMPROVIDO. 1. CONTROVÉRSIA. Sobre a existência de
direito adquirido a regime jurídico fundado em lei revogada, quando o suposto titular apresentara mero requerimento administrativo. 2.
DIREITO ADQUIRIDO A REGIME JURÍDICO. O conceito de direito adquirido, instituto sediado na Constituição Federal (art. 5°, inciso
XXXVI, CF/1988), encontra densidade discursiva no direito infraconstitucional, especificamente o art. 6º, § 2º, LICC, que assim considera o
direito exercitável sem limite por termo pré-fixo ou condição pré-estabelecida inalterável ao arbítrio de outrem. 3. AUSÊNCIA DOS
REQUISITOS DO DIREITO ADQUIRIDO. Observado o critério proposto na obra de Francesco Gabba, o recorrente não tem direito
adquirido a regime jurídico, porquanto: a) não possuía, à época do requerimento, todas as condições necessárias para o implemento do direito
à regularização imobiliária, porque seu requesto demandava, além de outros aspectos, o placet do órgão administrativo, verdadeiro requisito
de eficácia do direito a que almejava; b) a superveniente alteração legislativa esvaziou sua pretensão, antes do preenchimento dos requisitos
plenos, necessários à aquisição do direito; c) a nova lei suprimiu a possibilidade de concessão de eficácia ao que pretendia o requerente, na
medida em que impediu seu reconhecimento jurídico, o que tornou impossível a constituição do próprio direito. 4. EFEITOS DO "DIREITO
DE PROTOCOLO" NO CASO CONCRETO. Nesta espécie, não há como se resguardar o "direito de protocolo", ou seja, o direito à
aplicação, durante todo o processo administrativo, do regime jurídico existente no momento do protocolo da petição inicial, na forma como
deseja o recorrente. Precedente do STF. 5. ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. A legislação originária, sob a qual se fundava o
protocolo do recorrente, foi escoimada de ilegal e inconstitucional. Esses foram os fundamentos da ação civil pública movida pelo Ministério
Público de São Paulo. A severidade dessa increpação foi tamanha que o Município, ora recorrido, não mais deu seqüência ao procedimento
do recorrente e, momentos depois, revogou os atos normativos impugnados. Recurso ordinário improvido. (RMS 27.641/SP, Rel. Ministro
HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe 14/10/2008).
[b] Se concedida a licença enquanto vigente norma benéfica sobrevém legislação restritiva, é possível a revogação da licença?
[c] Se, na hipótese anterior, já foi iniciada a obra, esta terá de ser demolida?
Pode-se afirmar que a previsão in abstracto da legislação de uso e ocupação do solo sobre um
determinado terreno gera legítima pretensão do particular de explorar o potencial edificatório (direito de
construir) ou as atividades (direito de livre iniciativa) nela estabelecidos, conquanto apenas a licença fixará
in concreto tais potencialidade, tornados atos juridicamente perfeitos e acobertados pelo direito adquirido a
partir de seu efetivo exercício (início da obra ou do funcionamento do estabelecimento).
Licença de construção – Revogação. Fere o direito adquirido a revogação de licença de construção por motivo de conveniência, quando a
obra já foi iniciada. Em tais casos, não se atingem apenas faculdades jurídicas – o denominado ‘direito de construir’ – que integram o
conteúdo do direito de propriedade, mas se viola o direito de propriedade que o dono do solo adquiriu com relação ao que já foi construído,
com base na autorização válida do Poder Público. Há, portanto, em tais hipóteses, inequívoco direito adquirido, nos termos da Súmula 473
(STF. RE 85.002-SP. Rel. Min. Moreira Alves. RTJ 79/1016).
Direito de construir - Mera faculdade do proprietário, cujo exercício depende de autorização do Estado - Inexistência de direito adquirido à
edificação anteriormente licenciada, mas nem sequer iniciada, se supervenientemente foram editadas regras novas, de ordem pública,
alterando o gabarito para construção no local. (...) a licença anteriormente concedida não está imune à superveniência de regras novas
editadas no interesse público, alterando o gabarito para a construção no local (STF. Agravo Regimental em Agravo de Instrumento 135.464-
0/RJ. Relator: Ministro Ilmar Galvão. Julgamento: 05 de maio de 1992)
REsp 226858 / RJ
RECURSO ESPECIAL
1999/0072778-9
Relator(a)
Ministro ARI PARGENDLER (1104)
Órgão Julgador
T3 - TERCEIRA TURMA
Data do Julgamento
20/06/2000
Data da Publicação/Fonte
DJ 07/08/2000 p. 105
RSTJ vol. 136 p. 281
Ementa
CIVIL. LOTEAMENTO. LEI MUNICIPAL SUPERVENIENTE QUE, SEM DETERMINAR MODIFICAÇÕES NO LOTEAMENTO
ORIGINÁRIO, ADMITE O USO DO SOLO ALÉM DOS LIMITES PREVISTOS PELAS RESTRIÇÕES CONVENCIONAIS.
DIFERENÇA ENTRE ALTERAÇÃO URBANÍSTICA DITADA PELO INTERESSE PÚBLICO E LICENÇA PARA CONSTRUIR NO
INTERESSE DO PROPRIETÁRIO. O loteador está sujeito às restrições que impôs aos adquirentes de lotes, não podendo dar aos
remanescentes destinação diversa daquela prevista no memorial descritivo, pouco importando que a lei municipal superveniente permita a
alteração pretendida; as leis urbanísticas só se sobrepõem aos ajustes particulares quando já não toleram o status quo - hipótese de que não se
trata na espécie, onde tanto o loteamento originário quanto sua pretendida alteração estão conformados às posturas municipais. Recurso
especial não conhecido.
Incidência do Código de Defesa do Consumidor – CDC a contratos celebrados antes de sua vigência,
se renovado durante sua vigência:
"Embora a Lei 9.656/98 não retroaja aos contratos celebrados antes de sua vigência, é possível aferir a abusividade de suas cláusulas à
luz do Código de Defesa do Consumidor, ainda que tenham sido firmados antes mesmo de seu advento" (AgRg no REsp
1.260.121/SP, Relator Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/11/2012, DJe 6/12/2012).
[De fato, há normas específicas em matéria de Direito Penal e Direito Tributário, por exemplo.]
Antinomia de primeiro grau aparente: conflito entre normas válidas que envolve apenas um dos critérios expostos.
Antinomia de segundo grau: conflito entre normas válidas que envolve dois dos critérios.
Casos de antinomia de segundo grau aparente:
Conflitando uma norma especial e anterior com outra geral e posterior, prevalece o critério da especialidade, valendo a primeira norma.
Conflitando uma norma superior e anterior com outra inferior e posterior, prevalece também a primeira, pelo critério hierárquico.